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Series & Trilogias Literarias
TRONOS
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
llesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.
CONTINUA
??? TRONOS ???
Allesandra ca’Vörl
Audric ca’Dakwi
Sergei ca’Rudka
Varina ci’Pallo
Enéas co’Kinnear
Jan ca’Vörl
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
Karl ca’Vliomani
Nico Morel
Allesandra ca’Vörl
A Pedra Branca
Allesandra ca’Vörl
DENTRO DE UMA LUA...
Esta foi a promessa feita pela Pedra Branca. Allesandra perguntou-se se conseguiria manter o fingimento por tanto tempo. Era mais difícil do que ela tinha pensado. A a’hïrzg era atormentada pelas dúvidas; sonhou nas últimas três noites que havia ido à Pedra Branca para tentar encerrar o contrato. — Fique com o dinheiro — dissera Allesandra. — Fique com o dinheiro, mas não mate Fynn. — Todas as vezes a Pedra Branca ria e recusava.
— Não é isso que você quer — respondeu a Pedra Branca. No sonho, a voz do assassino era mais grossa. — Não realmente. Farei o que você deseja, não o que diz. Ele estará morto dentro de uma lua...
Allesandra torceu para que Cénzi não a reprovasse. Fynn provavelmente considerou me matar quando o vatarh estava moribundo, por pensar que eu o desafiaria pela coroa. Fynn ainda me mataria se suspeitasse que eu tramo contra ele — Fynn praticamente disse isso. A morte não é menos do que ele merece pelo que o vatarh e ele fizeram comigo. Isso é o que Fynn merece por ser sempre arrogante comigo. É o que eu preciso fazer por mim; é o que preciso fazer por Jan. É o que preciso fazer pelo sonho do vatarh. É o único jeito...
As palavras soaram como brasas queimando em seu estômago, e elas tocavam todos os aspectos da vida de Allesandra. Ela suspeitou que um dia a situação chegaria a este ponto, mas também torceu para que esse dia jamais chegasse.
Desde a tentativa de assassinato, Fynn desfrutava da bajulação da população firenzciana e Jan — como o protetor do hïrzg — também se beneficiou com isso. Todo mundo parecia ter se esquecido completamente de que Allesandra teve algo a ver com o fato de o assassinato ter sido impedido. Até mesmo Jan parecia ter se esquecido disso — seu filho certamente nunca mencionou, em todas as vezes que recontou a história, que fora a matarh que apontara o assassino para ele.
Multidões reuniam-se para celebrar sempre que o hïrzg saía do palácio em Brezno, e havia festas quase todas as noites, com os ca’ e co’ da Coalizão. Havia novas pessoas lá todas as noites, especialmente mulheres que queriam se aproximar do hïrzg (ainda solteiro, apesar da idade) e de seu novo protegido, Jan.
Seu marido, Pauli, também se aproveitava do fluxo de novas moças na vida palaciana. Allesandra ficou bem menos contente com isso, e menos ainda com a atitude de Pauli em relação a Jan. — Ele é seu filho — disse a a’hïrzg para o marido. Seu estômago deu um nó com a discussão que Allesandra sabia que se desenvolveria, e colocou a mão na barriga para acalmá-lo, engoliu a bile ardente que ameaçava subir pela garganta e odiou o tom estridente da própria voz. — Você precisa alertá-lo sobre essas coisas. Se uma dessas ávidas ca’ e co’ em cima dele acabar grávida...
Pauli fez uma expressão com um sutil sorriso de desdém, o que fez a bile subir mais dentro dela. — Então nós pagamos umas férias em Kishkoros para a moça e sua família, a não ser que seja um bom partido para ele. Se for o caso, deixe que Jan case com ela. — Pauli deu de ombros despreocupadamente, um gesto irritante. Allesandra perguntou-se quantas férias em Kishkoros Pauli pagou durante os anos do casamento.
Os dois estavam na sacada acima do salão principal de bailes do palácio. Outra festa acontecia lá embaixo; Allesandra viu Fynn e a aglomeração de sempre de tashtas coloridas, isto fez suas mãos tremerem. O archigos Semini também estava próximo, embora a a’hïrzg não visse Francesca na multidão. Jan estava no mesmo grupo e conversava com uma jovem com o cabelo da cor de trigo novo. Allesandra não reconheceu a moça.
— Quem é aquela? — perguntou ela. — Eu não sei quem é.
— Elissa ca’Karina, da linhagem ca’Karina, de Jablunkov. Ela foi mandada aqui para representar a família no Besteigung, mas atrasou-se próximo ao lago Firenz e acabou de chegar há poucos dias.
— Você conhece bem a moça, então.
— Eu... falei com ela algumas vezes desde que chegou.
A hesitação e a escolha das palavras indicaram mais do que Allesandra queria saber. Ela fechou os olhos por um instante e esfregou o estômago. Perguntou-se se foram apenas flertes ou algo mais. — Tenho certeza de que Jan ficaria grato pelo seu interesse de família, assim como Fynn dá valor ao seu Primeiro Provador.
— Essa foi uma grosseria indigna de você, minha querida.
Allesandra ignorou o comentário e espiou sobre o parapeito. — Qual é a idade dela?
— Mais velha do que o nosso Jan alguns anos, julgo eu — falou Pauli. — Mas é uma mulher atraente e interessante.
— E candidata a umas férias em Kishkoros?
Allesandra ouviu Pauli rir. — Ela deve preferir uma localidade mais ao norte, mas sim, se a situação chegar a este ponto. — A a’hïrzg sentiu o marido se aproximar enquanto olhava para a multidão. — Você não pode protegê-lo para sempre, Allesandra. Você não pode viver a vida de Jan por ele e nem manter alguém da idade dele como prisioneiro, não sem esperar que Jan tenha raiva de você por isso.
— Eu fui mantida como prisioneira. — Allesandra afastou-se do parapeito. “Você não pode viver a vida de Jan por ele”. Mas eu darei forma ao futuro de Jan. Eu darei... — É melhor nós descermos.
Eles foram anunciados na festa pelos arautos à porta. Allesandra dirigiu-se diretamente para Fynn e Jan, enquanto Pauli fez uma mesura para a esposa e prosseguiu sozinho. O archigos Semini arregalou um pouco os olhos diante da aproximação da a’hïrzg — desde a tentativa de assassinato e a subsequente conversa entre eles, o archigos não trocou mais do que o esperado diálogo cortês com Allesandra. Ela se perguntou o que Semini acharia se contasse o que fez.
Os ca’ e co’ no grupo fizeram uma mesura quando Allesandra se aproximou. Ela também fez uma mesura — uma sutil inclinação da cabeça — para Fynn e o sinal de Cénzi para Semini. Sorriu na direção de Jan, mas o olhar estava mais voltado para a mulher ao seu lado. Elissa ca’Karina era uma dessas mulheres que eram incrivelmente impressionantes, embora não tivesse uma beleza clássica, e os braços visíveis através da renda da tashta eram com certeza musculosos — uma amazona, talvez. Os olhos eram seu melhor atributo: grandes, com um tom de azul-claro gelado, que ficavam proeminentes por conta de uma sábia aplicação de sombra. Allesandra julgou que a moça tivesse 20 e poucos anos — e se era solteira com essa idade, dado o status, então talvez estivesse envolvida em algum escândalo; a a’hïrzg decidiu que era necessária uma investigação criteriosa. Os traços do rosto da vajica eram estranhamente familiares, mas talvez a impressão fosse causada apenas por ela ser pouco diferente das demais: jovem, ansiosa, sorridente, toda olhares, risos e atenções.
— Uma bela festa, irmão — falou Allesandra para Fynn. O sorriso dele era praticamente predatório ao olhar em volta do grupo.
— Sim, não é? — respondeu Fynn. Seu prazer era óbvio. — Eu estou completamente cercado por beleza. — Risadas estridentes responderam ao hïrzg. Allesandra sorriu, mas observou o rosto animado do irmão. A imagem que veio à sua mente foi a de Fynn esparramado nos ladrilhos, sangrando, com um seixo sobre o olho esquerdo, enquanto o direito olhava cego para ela. A a’hïrzg balançou a cabeça para afastar o pensamento e engoliu a bile ardente outra vez. — Não acha, Allesandra?
— Acho sim. Vejo aqui duas jovens abelhas e uma velha vespa cercada por flores, e é melhor que as flores tenham cuidado. — Mais risadas educadas, embora ela tenha visto o archigos franzir a testa como se estivesse tentando decidir se fora ofendido. O olhar de Allesandra voltou-se para a vajica ca’Karina. — Jan, você ainda não apresentou a sua rosa amarela.
Jan endireitou-se e chegou quase imperceptivelmente perto da jovem. Quase de maneira protetora... Sim, ele está interessado nela. E veja a forma como ela continua olhando para ele... — Matarh, esta é a vajica ca’Karina. Ela veio aqui de Jablunkov.
Elissa abaixou a cabeça para Allesandra e falou — A’hïrzg, estou encantada em conhecer a senhora. Seu filho nos contou tantas coisas maravilhosas a seu respeito. — A voz tinha o sotaque de Sesemora e engolia sutilmente as consoantes. Era rouca e baixa para uma mulher. Algo a respeito da jovem, porém...
— Já nos conhecemos, vajica ca’Karina? — perguntou Allesandra. — Talvez em uma das festas do solstício do meu vatarh? O formato de seu rosto, as suas feições...
— Ah, não, a’hïrzg — respondeu a mulher. O sorriso era afável; o riso, encantador. — Eu certamente me lembraria de ter conhecido a senhora, e especialmente seu filho.
Allesandra tinha certeza da última afirmação, ao menos. — Então talvez seja uma semelhança familiar? Será que conheço seu vatarh e matarh?
— Não sei, a’hïrzg. Eu sei que ambos receberam o hïrzg Jan uma vez, há muitos anos, mas isso foi quando a senhora ainda era... — Ela parou por aí, ficou vermelha ao reconhecer o que estava prestes a dizer, e falou apressadamente — Eu fui batizada em homenagem à minha matarh, e meu vatarh é Josef; ele era um ca’Evelii antes de se casar com ela. Nosso castelo fica a leste de Jablunkov, nas colinas. Um lugar muito lindo, a’hïrzg, embora os invernos sejam um tanto longos lá.
Allesandra acenou com a cabeça ao ouvir isso e guardou os nomes na memória para a mensagem que mandaria. Jan tocou o braço de Elissa quando os músicos do salão de bailes começaram a tocar. — Matarh, eu prometi uma dança a Elissa...
A a’hïrzg deu o sorriso mais gracioso que pôde. — É claro. Jan, nós realmente precisamos conversar depois... — mas ele já levava Elissa embora. Fynn também foi para a pista de dança vazia.
— Ele é um belo rapaz, seu filho, e muito bravo. — O robe esmeralda de Semini balançou quando ele se virou para ela. O archigos parecia não saber se se aproximava ou fugia. O elogio era tão vazio que Allesandra não sentiu vontade de responder.
— Sua Francesca está bem? Notei que ela não está aqui hoje.
— Francesca está indisposta, a’hïrzg. Essas comemorações sem fim em nome do novo hïrzg são cansativas, especialmente para alguém com tantas doenças. Mas ela mandou seus pesares ao hïrzg; há uma reunião do Conselho dos Ca’ amanhã e minha esposa encara suas responsabilidades como conselheira com muita seriedade. Não há ninguém que pense mais sobre Brezno do que Francesca. É praticamente tudo que ela pensa a respeito.
O tom era abertamente desdenhoso. Allesandra percebeu então que tinha sido Francesca que colocou o archigos neste caminho. Era a ambição dela que o impelia, não a dele. Semini, suspeitava Allesandra, ainda seria um téni-guerreiro se não fosse pela esposa. A a’hïrzg perguntou-se se Francesca também via imagens de Fynn morto, mas com ela mesma tomando o trono. — E a senhora, a’hïrzg? — perguntou o archigos. — Perdoe-me, mas parece um pouco pálida na noite de hoje.
— Eu creio que estou um pouco indisposta, archigos.
Ele concordou com a cabeça. Sob as sobrancelhas grisalhas, o olhar sombrio vasculhou o salão; Allesandra acompanhou o olhar e encontrou Pauli rindo e gesticulando ao falar com um grupo de mulheres mais velhas. — Um problema de família? — perguntou Semini.
— Possivelmente.
Ele concordou com a cabeça, como se refletisse a respeito. — Da última vez que nos falamos, a’hïrzg, a senhora disse que estávamos do mesmo lado.
— Não estamos, archigos? Nós dois não queremos o que é melhor para Firenzcia?
Semini respirou fundo. — Acredito que sim. Pelo menos, eu espero que sim. E da última vez, a senhora me tirou para dançar. Disse que queria saber se levávamos jeito para dançar juntos, mas foi embora sem me responder. — Outra pausa para respirar fundo. Seu olhar se voltou para ela, intenso e sem pestanejar. — Nós levamos jeito para dançar?
Allesandra tocou no braço de Semini. Ela sentiu o espasmo dos músculos debaixo do robe, mas ele não se afastou. — Eu tenho a impressão de que sim, mas talvez seja bom recordar. Seria bom para nós dois.
Ela conduziu o archigos à pista de dança.
Allesandra achou que ele levava muito jeito para dançar, realmente.
Audric ca’Dakwi
A MAMATARH FRANZIU A TESTA quando ele teve dificuldades para respirar na cama. — Fique de pé, garoto. O kraljiki não fica aí deitado, fraco e indefeso. O kraljiki tem que ser forte; o kraljiki tem que demonstrar que pode liderar seu povo.
— Mas, mamatarh, é tão difícil. Meu peito dói tanto...
— Kraljiki? — Seaton e Marlon entraram no quarto pela porta que dava para o corredor da criadagem. Os dois faziam esforço para carregar um pesado cavalete com rodas, coberto por um tecido azul com brocados de ouro.
— Ah, ótimo. — Audric apontou para o quadro sobre a lareira. — Viu só, mamatarh? Agora a senhora pode vir comigo para qualquer lugar que eu vá. — Ele supervisionou os criados enquanto Seaton e Marlon tiraram o quadro e colocaram com cuidado no cavalete, atentos para que ficasse preso à moldura da engenhoca de modo a não cair. Audric observou e achou que Marguerite parecia contente. — Deve ter sido entediante ter que olhar para o mesmo quarto todo dia e noite. Isso teria me deixado maluco... — O kraljiki olhou para Seaton. — Eles vieram como ordenei?
— Sim, kraljiki — respondeu Seaton. — Eles aguardam o senhor no salão do Trono do Sol.
— Então não devemos deixá-los esperando. Tragam a kraljica conosco.
— E o senhor, kraljiki? Devemos pedir uma cadeira?
Audric balançou a cabeça. — Eu não preciso mais daquilo — falou ele para os criados e para Marguerite. — Eu andarei.
Seaton e Marlon se entreolharam rapidamente e fizeram uma mesura. Audric respirou o mais fundo possível e saiu do quarto à frente deles.
O kraljiki pensou que talvez tivesse cometido um erro quando eles quase caminharam por quase toda a extensão da ala principal do palácio. Audric ofegava rapidamente e percebeu que a nuca estava úmida de suor e a testa porejava. Sentiu a umidade na renda da manga ao chegar perto dos gardai do salão. Quando iam anunciá-lo, o kraljiki os deteve e falou — Um momento. — Ele fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego.
— Você é capaz de fazer isso. — Audric ouviu Marguerite dizer e acenou com a cabeça para os gardai, que abriram as portas para eles.
— O kraljiki Audric — entoou um dos gardai para o salão.
Audric ouviu o farfalhar de setes pessoas ficando de pé dentro do aposento, todas de cabeça baixa quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi, Odil ca’Mazzak... todos os integrantes nomeados do Conselho. Audric também notou que eles tentavam desesperadamente erguer os olhos para ver o que fazia tanto barulho quando Seaton e Marlon empurraram o retrato de Marguerite atrás dele. — Kraljiki — falou Sigourney ao se levantar da mesura quando Audric parou em frente a ela. — É bom ver o senhor tão bem.
O olhar de Sigourney passou por ele e seguiu para o quadro, e Audric viu o esforço que ela fez para evitar que o rosto demonstrasse perplexidade.
— Os relatórios de minha doença foram exagerados por aqueles que querem me prejudicar. Eu estou bem, obrigado, conselheira. — Ele acenou com a cabeça para os demais presentes no salão. Por um momento, sentiu medo como uma criança em uma floresta de adultos, mas então ouviu a voz de Marguerite, que sussurrava em seu ouvido. — Você é superior aos conselheiros, garoto. Você é o kraljiki deles; comporte-se como se esperasse obediência e vai consegui-la. Aja como se ainda fosse uma criança e os conselheiros o tratarão assim.
Com um aceno de cabeça para seus assistentes, Audric deu passos largos até o Trono do Sol e conteve a tosse que ameaçava dobrar seu corpo. Ele sentou-se e o Trono acendeu em volta dele, as facetas de cristal reluziram. Os e’ténis a postos em volta do salão relaxaram quando o brilho envolveu o kraljiki. Audric fechou os olhos brevemente conforme o cavalete era movido para ficar à sua direita. A mamatarh podia vê-los agora, ver todos os conselheiros.
Eles olhavam fixamente para o kraljiki e para Marguerite. — Veja a ganância nos rostos dos conselheiros. Todos querem se sentar onde você está, Audric. Especialmente Sigourney; ela quer mais do que todos os outros. Você pode usar a ganância deles para fazer com que concordem...
— Eu não vou ocupá-los por muito tempo aqui — disse Audric para o Conselho. — Todos nós somos pessoas ocupadas, e eu trabalho intensamente em maneiras de devolver o destaque de Nessântico contra nossos inimigos, tanto no leste quanto no oeste. Isto é, tenho certeza, o que cada um de nós quer. Eu juro para os senhores: eu reunificarei os Domínios.
O discurso quase exauriu Audric, que não conseguiu evitar, com um lenço de renda, a tosse que veio em seguida. — O Conselho dos Ca’ não está completo, kraljiki — falou Sigourney. — O regente ca’Rudka não está presente.
— Eu estou ciente disso. Ele não está presente por um bom motivo: o regente não foi convidado.
— Ah? — perguntou Sigourney, baixinho, enquanto os demais murmuravam.
— Notou a ansiedade, especialmente da prima Sigourney? Todos estão pensando como ficariam se o regente caísse e calculam suas chances...
— Sim — disse Audric antes que algum deles pudesse exprimir uma objeção. — Eu convoquei esta reunião para discutir o regente. Não perderei o tempo dos senhores com distrações e conversa fiada. Pelo bem de Nessântico, peço por duas decisões do Conselho dos Ca’. Um, que o regente ca’Rudka seja imediatamente preso na Bastida a’Drago por traição — o alvoroço praticamente abafou o resto — e que eu seja promovido ao governo como kraljiki de verdade, bem como por título. — O clamor do Conselho dobrou diante desta proposta. Audric recostou-se e ouviu, deixou que discutissem entre eles.
— Sim, use a oportunidade para descansar e ouvir...
Audric fez isso. Ele observou os conselheiros, especialmente Sigourney. Sim, ela continuava dando uma olhadela para o kraljiki enquanto falava com os demais colegas. Ele viu que estava sendo avaliado e julgado por Sigourney. — Isso é o que eu desejo — falou Audric finalmente, quando o burburinho diminuiu um pouco — e isso é o que a minha mamatarh deseja também. — Ele gesticulou para o quadro e ficou contente por vê-la sorrir em resposta. Os conselheiros olharam fixamente, todos eles, os olhares foram do kraljiki para o quadro e voltaram para Audric. — O regente é um traidor do Trono do Sol. Ca’Rudka deseja sentar nele como eu estou sentado neste momento e conspira para tanto, mesmo às custas de nosso sucesso nos Hellins e contra a Coalizão.
Aleron pigarreou algo, olhou de relance para Sigourney e disse — A conselheira ca’Ludovici mencionou para todos nós aqui suas preocupações, kraljiki, e quero lhe garantir que são levadas muito a sério, mas provas dessas acusações...
— Suas provas surgirão quando ca’Rudka for interrogado, vajiki ca’Gerodi — falou Audric, e o esforço de falar alto o suficiente para interromper o homem provocou um espasmo de tosse. Os conselheiros observaram em silêncio enquanto ele recuperava o controle.
— Não se preocupe. A tosse trabalha a seu favor, Audric. Todos pensam que, sem o regente e com você doente, talvez o Trono do Sol fique vago rapidamente e um deles possa tomá-lo. Sigourney, Odil, e Aleron já tinham ouvido por alto o que você pediu, então sabem o que você dirá. Olhe para Sigourney, vê como ela o encara com ansiedade? Veja como o avalia em busca de fraqueza. Ela tem ambição... aproveite-se disso!
Audric olhou com gratidão para a mamatarh e inclinou a cabeça na direção dela enquanto limpava a boca. — Estou convencido de que o regente ca’Rudka é o responsável pelo assassinato da archigos Ana, de que ele pretende abandonar os Hellins apesar do tremendo sacrifício de nossos gardai, e de que ele conspira com pessoas da Coalizão Firenzciana contra mim, talvez com a intenção de colocar o hïrzg Fynn aqui no Trono do Sol, se não conseguir que ele próprio se sente.
— Estas são acusações graves, kraljiki — falou Odil ca’Mazzak. — Por que o regente ca’Rudka não está aqui para responder a elas?
— Para negá-las, o senhor quer dizer? — riu Audric, e o riso de Marguerite cresceu como eco do seu. — É o que ele faria. O senhor está certo, primo: essas são acusações graves, e eu não acuso levianamente. É também por isso que eu acredito que o regente tem que ser tirado de seu posto. Deixem aqueles na Bastida arrancarem a verdade dele. — O kraljiki fez uma pausa. Eles observaram quando Audric sorriu para a mamatarh. — Deixem-me governar como o novo Spada Terribile como foi minha mamatarh e elevar Nessântico a novas alturas.
— Viu só? Eles olham para você com novos olhos, meu neto. Não ouvem mais uma criança, e sim um homem...
Os conselheiros realmente encaravam Audric com cautela e o avaliavam. Ele endireitou-se no trono e sustentou o olhar dos conselheiros da maneira majestosa como imaginava que a mamatarh fizera. Viu a própria sombra que o brilho do Trono do Sol projetava nas paredes e teto. — Eu sei — disse Audric para Marguerite.
— O senhor sabe o que, kraljiki? — perguntou Sigourney, e ele tremeu e segurou firme nos braços frios do Trono do Sol.
— Eu sei que os senhores têm dúvidas — respondeu Audric, e houve sussurros de aprovação, como as vozes do vento nas chaminés do palácio —, mas também sei que os senhores são o que há de melhor em Nessântico e que chegarão, como é necessário que cheguem, à mesma conclusão que eu. Minha mamatarh foi chamada cedo ao trono, assim como eu. Esta é a minha hora e peço ao Conselho que reconheça isso.
— Kraljiki... — Sigourney fez uma mesura para ele. — Uma decisão importante assim não pode ser tomada fácil ou levianamente. Nós... o Conselho... temos que conversar entre nós primeiro.
— Mostre a eles. Mostre a eles a sua liderança. Agora.
— Façam isso — disse Audric —, mas peço que mandem ca’Rudka para a Bastida enquanto deliberam. O homem é um perigo: para mim, para o Conselho dos Ca’ e para Nessântico. Isso é o mínimo que os senhores podem fazer pelo bem de Nessântico.
Audric ficou de pé, e os conselheiros fizeram uma mesura para ele. Atrás do kraljiki, Seaton e Marlon escoltaram a kraljica Marguerite do salão no rastro de Audric.
Ele ouviu a aprovação da mamatarh. Ele podia ouvi-la tão claramente quanto se ela andasse ao seu lado.
Sergei ca’Rudka
OS PORTÕES DA BASTIDA já estavam abertos e os gardai prestaram continência a Sergei da cobertura de suas guaritas de ambos os lados. O dragão chorava na chuva.
O céu estava zangado e taciturno, olhava a cidade furiosamente e jogava ondas de chuva intensa dos baluartes cinzentos. Sergei ergueu os olhos — como sempre fazia — para a cabeça do dragão, montada em cima dos portões da Bastida. Com o tempo ruim, a pedra branca ficou pálida conforme a água fluía pelo canal em meio ao focinho e caía como uma pequena cascata sobre as lajotas abaixo — havia um buraco raso ali na pedra causado por décadas de chuva. Sergei piscou ao olhar a tempestade e ergueu os ombros para fechar mais a capa. Gotas de chuva acertaram seu nariz e respingaram. O mau tempo penetrou nos ossos; as juntas doíam desde que ele acordou naquela manhã. Aris co’Falla, comandante da Garde Kralji, mandou um mensageiro antes da Primeira Chamada para convocá-lo; Sergei pensou em ficar um pouco depois da reunião, apenas para “inspecionar” a antiga prisão. Havia um mês ou mais desde a última vez — Aris faria uma cara feia, depois desviaria o olhar e daria de ombros. No entanto, até mesmo a expectativa de passar a manhã nas celas inferiores da Bastida, do medo doce e do terror encantador, fez pouco para aliviar a dor causada simplesmente por andar.
Uma vergonha que sua própria dor não tivesse o mesmo apelo que a dos outros. — Dia horrível, hein? — perguntou ele para o crânio do dragão e deu um sorriso para o alto. — Considere como um bom banho.
Do outro lado do pequeno pátio cheio de poças, a porta para o gabinete principal da Bastida foi aberta e lançou a luz quente de uma lareira na penumbra. Sergei prestou continência para o garda que abriu a porta, entrou e sacudiu a água da capa. — Um dia mais adequado para patos e peixes, não acha, Aris? — falou ele.
Aris só resmungou, sem sorrir, com as mãos entrelaçadas às costas. Sergei franziu a testa. — Então, o que é tão importante que você precisou me ver, meu amigo? — perguntou ele, depois notou a mulher sentada em uma cadeira diante da lareira, voltada para o outro lado. O regente reconheceu-a antes que ela se virasse. A umidade na bashta ficou gelada como um dia de inverno, e a respiração ficou contida na garganta. Você realmente está ficando velho e trapalhão, Sergei. Você interpretou muito mal as coisas. — Conselheira ca’Ludovici — disse ca’Rudka quando a mulher se virou para ele. — Eu não esperava ver a senhora aqui, mas suspeito que deveria. Parece que não andei prestando a devida atenção aos rumores e fofocas.
Ele ouviu a porta ser fechada e trancada atrás dele. Tinha o som do fim. — Sergei — falou co’Falla com gentileza —, eu exijo sua espada, meu amigo.
Sergei não respondeu. Não se mexeu. Manteve o olhar em Sigourney. — A situação chegou a este ponto, não é? Vajica, a mente do menino está insana com a doença. Ambos sabemos disso. Por Cénzi, ele conversa com um quadro. Não sei o que ele disse para o Conselho, mas com certeza nenhum dos senhores realmente acredita naquilo. Especialmente a senhora. Mas imagino que acreditar não seja a questão, não é? A questão é quem pode lucrar com a mentira. — Ele deu de ombros. — A senhora não precisa dessa farsa, conselheira. Se o Conselho dos Ca’ deseja a minha renúncia como regente, pode ter. Livremente. Sem essa farsa.
— O Conselho realmente quer a sua renúncia — respondeu Sigourney —, mas também percebemos que um regente deposto é sempre um perigo ao trono. Como o comandante co’Falla já lhe informou, nós exigimos sua espada.
— E minha liberdade?
Não houve resposta da parte de Sigourney. — Sua espada, Sergei — repetiu Aris. A mão estava no cabo da própria arma. — Por favor, Sergei — acrescentou o comandante, com um tom de súplica na voz. — Eu não gosto dessa situação tanto quanto você, mas ambos temos um dever a cumprir.
Sergei sorriu para Aris e começou a soltar a bainha da cintura. A espada fora dada a ele pelo kraljiki Justi durante o Cerco de Passe a’Fiume: era de aço firenzciano, negro e duro, uma linda arma de guerreiro. Ele poderia usá-la se quisesse — poderia aparar o golpe de Aris e trespassar a barriga do homem, depois se voltar para o garda atrás dele. Outro golpe arrancaria a cabeça da vajica ca’Ludovici do pescoço. Sergei poderia chegar ao pátio e sair para as ruas de Nessântico antes que começassem a persegui-lo, e talvez, talvez conseguisse se manter vivo por tempo suficiente para salvar alguma coisa dessa confusão...
A visão era tentadora, mas ele também sabia que era algo que conseguiria ter feito há 20 anos. Agora, não tinha tanta certeza de que o corpo obedeceria. — Eu não teria tomado o Trono do Sol se ele tivesse sido oferecido para mim — disse Sergei para Sigourney. — Eu nunca quis o trono; Justi sabia disso e foi por esse motivo que ele me nomeou regente. Achei que a senhora soubesse também. — Ele suspirou. — O que mais o Conselho exige de mim? Uma confissão? Tortura? Execução?
Sergei sentiu as mãos tremerem e pegou com força a bainha, com uma delas próxima ao cabo. Não deixaria Sigourney ver o medo dentro dele. Ele conhecia tortura. Conhecia intimamente. Aris observou o regente com cuidado; ouviu o garda aproximar-se por trás e sacar a espada da bainha.
Eu ainda consigo. Agora...
— Seus serviços prestados a Nessântico são muitos e notáveis, vajiki — falou Sigourney. — Por enquanto, o senhor será simplesmente confinado aqui, até que os fatos das acusações contra o senhor sejam resolvidos.
— Do que sou acusado?
— De cumplicidade com o assassinato da archigos Ana. De traição contra o Trono do Sol. De conspirar com os inimigos de Nessântico.
Sergei balançou a cabeça. — Eu sou inocente de qualquer uma dessas acusações, conselheira, e o Conselho dos Ca’ sabe disso. A senhora sabe disso.
Sigourney piscou os olhos cinza ao ouvir isso e franziu os lábios no rosto maquiado. — A esta altura, regente, eu sei apenas que as acusações foram ouvidas pelo Conselho e que nós decidimos, pela segurança dos Domínios, que o senhor deve ser preso até que tenhamos uma decisão final sobre elas. — A conselheira acenou com a cabeça para Aris. — Comandante?
Co’Falla deu um passo à frente. Ele esticou a mão para Sergei... eu poderia... e o regente colocou a espada, ainda na bainha, na palma de Aris. Com cuidado, lentamente, Aris pousou a arma sobre a mesa do comandante; a mesa atrás da qual o próprio Sergei se sentara. Depois, Aris revistou Sergei e tirou a adaga de seu cinto. Havia outra adaga, amarrada no interior da coxa. O regente sentiu as mãos de co’Falla passarem sobre a tira e viu Aris erguer os olhos. Ele deu um discretíssimo aceno para Sergei e endireitou-se. — O senhor pode acompanhar o prisioneiro para sua cela — falou Aris para o garda. — Se o regente ca’Rudka for maltratado de qualquer forma, qualquer forma, eu mandarei esse garda para as celas inferiores em uma virada da ampulheta, compreendido?
O garda prestou continência e pegou o braço de Sergei.
— Eu conheço o caminho — falou ele para o homem. — Melhor do que qualquer um.
Varina ci’Pallo
— VARINA?
Ela estava com Karl, e ele parecia tão triste que Varina queria tocá-lo, mas sempre que esticava o braço, o embaixador parecia recuar e ficar fora do alcance. Ela pensou ter ouvido alguém chamar seu nome, mas agora Varina estava em um lugar escuro, tão escuro que não conseguia sequer ver Karl, e ficou confusa.
— Varina!
Com o quase berro, ela acordou assustada e percebeu que estava em sua mesa na Casa dos Numetodos. Havia dois globos de vidro na mesa diante dela enquanto Varina pestanejava ao olhar para a lamparina. Viu a trilha de saliva acumulada sobre a superfície da mesa e limpou a boca ao se virar, com vergonha de ser vista dessa maneira. Especialmente de ser vista dessa maneira por Karl. — O quê?
Karl estava ao lado da mesa de Varina na salinha, a porta aberta atrás dele. O embaixador olhava para ela. — Eu te chamei; você não ouviu. Eu até sacudi você. — Karl franziu os olhos; Varina não tinha certeza se era por preocupação ou raiva e disse para si mesma que realmente não se importava com qualquer um dos motivos.
— Eu fiquei trabalhando na técnica ocidental até tarde da noite ontem. Isso me deixou tão exausta que devo ter adormecido. — Ela penteou o cabelo com os dedos, furiosa consigo mesma por ter sucumbido ao cansaço, e furiosa com Karl por tê-la flagrado nesse estado.
Furiosa consigo mesma e com Karl porque nenhum dos dois pediu desculpas pelas palavras do último encontro, e agora era tarde demais. As palavras continuavam entre eles, como uma parede invisível.
— Você está bem? — Ela ouviu a preocupação em seu tom de voz, e em vez de ficar satisfeita, Varina ainda mais furiosa. — Todo esse trabalho e todos esses feitiços que você está tentando. Talvez você devesse...
— Eu estou bem — disparou Varina para interrompê-lo. — Você não tem que se preocupar comigo. — Mas ela sentia-se fisicamente mal. A boca tinha gosto de algo mofado e horrível. A bexiga estava cheia demais. As pálpebras pesavam tanto que bem podia ter pesos de ferro presos a elas, e o olho esquerdo não parecia querer entrar em foco de maneira alguma; Varina piscou de novo, o que não pareceu ajudar. Ela perguntou-se se sua aparência era tão horrível quanto se sentia. — O que você queria? — perguntou. As palavras saíram meio pastosas, como se a boca e a língua não quisessem cooperar. O lado esquerdo do rosto parecia caído.
— Eu o encontrei — falou Karl.
— Quem? — Varina esfregou o olho esquerdo; a imagem ainda estava borrada. — Ah — falou ela ao se dar conta de quem Karl estava falando. — Seu ocidental. Ele ainda está vivo?
As palavras saíram em um tom mais ríspido do que ela queria, e Varina viu Karl levantar um ombro, embora ainda não conseguisse distinguir a expressão dele. — Sim, mas o homem me atacou magicamente. Varina, ele tinha feitiços estocados na bengala.
— Isso não me surpreende. Um objeto que alguém pode levar consigo todo dia, sobre o qual ninguém pensaria duas vezes a respeito... — Ela esfregou os olhos novamente; o rosto de Karl ficou um pouco mais nítido. — Você está bem? — Varina percebeu que a pergunta estava atrasada; pela expressão de Karl, ele também.
— Apenas porque eu consegui defletir a pior parte do ataque. As casas perto de mim não tiveram a mesma sorte. Ele fugiu, mas sei mais ou menos onde ele vive: no Velho Distrito. O nome do homem é Talis. Ele vive com uma mulher chamada Serafina, e há um menino com eles, de nome Nico. Não deve levar muito tempo para descobrir exatamente onde eles vivem. Pedirei para Sergei me ajudar a encontrá-los. — Karl pareceu suspirar. — Eu pensei... pensei que você estaria disposta a me ajudar.
— Ajudar você a fazer o quê? Você sabe se esse tal de Talis foi responsável pela morte de Ana?
— Não — admitiu Karl. — Mas eu suspeito dele, com certeza. O homem me atacou assim que fiz a acusação. Chamou Ana de inimigo e disse que se considerava em guerra. — Karl franziu os lábios e fechou a cara. — Varina, eu não acho que Talis se deixaria ser capturado sem luta. Eu precisarei de ajuda, o tipo de ajuda que os numetodos podem dar. Todos nós vimos o que ele pode fazer no templo, e alguns homens da Garde Kralji com espadas e lanças não serão de muita ajuda. Você... você é o melhor trunfo que nós temos.
Sim, eu ajudarei você, Varina queria dizer, ao menos para ver um sorriso iluminar o rosto de Karl ou quebrar a parede entre os dois, mas ela não podia. — Eu não irei atrás de alguém que você apenas suspeita, Karl. Eu não farei isso, especialmente quando há a possibilidade de envolver uma mulher e uma criança inocentes. Sinto muito.
Varina pensou que Karl ficaria furioso, mas ele apenas concordou com a cabeça, quase triste, como se esta fosse a resposta que esperava que ela desse. Se esse fosse o caso, ainda não era suficiente para Karl se desculpar. A parede pareceu ficar mais alta na mente de Varina. — Eu compreendo — falou Karl. — Varina, eu queria...
Isso foi o máximo a que Karl chegou. Ambos ouviram passos ligeiros no corredor lá fora, e um ofegante Mika chegou à porta aberta, dizendo — Ótimo. Vocês dois estão aqui. Tenho notícias. Más notícias, infelizmente. É o regente. Sergei. O Conselho dos Ca’ ordenou que fosse preso. Ele está na Bastida.
Enéas co’Kinnear
TÃO LONGE ABAIXO DELE que parecia com um brinquedo de criança em um lago, o Nuvem Tempestuosa estava ancorado sob a luz do sol, placidamente parado na água azul deslumbrante do porto recôndito de Karn-mor. Enéas andava pelas ruas tortuosas e íngremes da cidade, contente por sentir terra firme sob os pés novamente, e aproveitava as vistas extensas que ela oferecia. Ele queria ser um pintor para poder registrar os prédios rosa-claro que reluziam sob o céu com nuvens, o azul-celeste intenso do ancoradouro e o verde com cumes brancos do Strettosei depois do porto, os tons fortes dos estandartes e bandeiras, as jardineiras penduradas em cada janela, as roupas exóticas das pessoas nas ruas; embora um quadro jamais pudesse registrar o resto: os milhares de odores que flertavam com o nariz, o gosto de sal no ar, a sensação da brisa quente do oeste ou o som das sandálias na brita fininha que pavimentava as ruas de Karnor.
A cidade de Karnor — Enéas jamais entendeu por que a capital de Karnmor ganhou um nome tão parecido — foi construída nas encostas de um vulcão há muito tempo adormecido que se agigantava sobre o porto, e muitos dos prédios foram entalhados na própria rocha. Depois dos braços do porto, o Strettosei estendia-se sem interrupção pelo horizonte, e das alturas do monte Karnmor, era possível olhar para leste, depois da extensão verdejante da imensa ilha, e ver, ligeiramente, a faixa azul perto do horizonte que era o Nostrosei. Não muito depois daquele mar estreito ficava a boca larga do rio A’Sele, e talvez uns 150 quilômetros rio acima: Nessântico.
Munereo e os Hellins pareciam distantes, um longínquo sonho perdido. Karnmor e suas ilhas menores faziam parte de Nessântico do Norte. Ele estava quase em casa.
Enéas tinha que admitir que Karnmor ainda era uma terra estrangeira em muitos aspectos. Os habitantes nativos eram, em grande parte, pessoas ligadas ao mar: pescadores e comerciantes, com peles escurecidas pelo sol e línguas agradáveis com sotaques estranhos, embora agora eles falassem o idioma de Nessântico, e suas línguas originais estivessem praticamente esquecidas, a não ser em alguns pequenos vilarejos no flanco sul. A maior parte do interior da ilha ainda era selvagem, com florestas impenetráveis em cujas trilhas ainda andavam animais lendários. Nas ruas de Karnor era possível encontrar vendedores de especiarias de Namarro ou mercadores de Sforzia ou Paeti, e os produtos dos Hellins chegavam aqui primeiro. Se alguém não consegue achar o que deseja em Karnor, tal coisa não existe. Este era o ditado, e até certo ponto, era verdade: embora ele tivesse ouvido a mesma coisa sobre Nessântico. Ainda assim, Karnor era o verdadeiro centro do comércio marítimo ao longo do Strettosei.
Como era de se esperar, os mercados de Karnor eram lendários. Eles estendiam-se pelo que era chamado de Terceiro Nível da cidade — o segundo nível de plataformas esculpidas na montanha. Podia-se andar o dia inteiro entre as barracas e jamais chegar ao fim. Foi para lá que Enéas se viu atraído, embora não soubesse exatamente por quê. Após a longa viagem, ele pensou que não iria querer outra coisa além de descansar, mas embora tenha comparecido ao quartel de Karnor e recebido um quarto no alojamento dos offiziers, Enéas viu-se agitado e incapaz de relaxar. Saiu para andar, subiu os níveis tortuosos até o Terceiro Nível e foi de barraquinha a barraquinha, curioso. Aqui havia estranhas frutas roxas que cheiravam à carne podre, mas que tinham um gosto doce e maravilhoso, conforme Enéas descobriu ao mordiscar com uma cara feia a prova que o feirante ofereceu, e ervas que aumentavam a virilidade do homem e o apetite sexual da mulher, garantia o comerciante. Havia vendedores de facas, fazendeiros com suas verduras, peças de tecidos tanto locais quanto estrangeiros, bijuterias e joias, brinquedos entalhados, madeira de lei, instrumentos musicais de corda, sopro ou percussão. Enéas ouviu um pássaro cinza-claro em uma gaiola de madeira cujo canto melancólico tinha uma semelhança perturbadora com a voz de um menino, e as palavras da canção eram perfeitamente compreensíveis; ele tocou em peles mais macias que o tecido adamascado mais fino quando acariciadas em uma direção, e que, no entanto, podiam cortar os dedos se fossem esfregadas na direção contrária; Enéas examinou borboletas secas e emolduradas, cujas asas reluzentes eram mais largas que seus próprios braços estendidos, salpicadas com ouro em pó e com um crânio vermelho-sangue desenhado no centro de cada uma.
Com o tempo, Enéas viu-se diante da barraquinha de um químico, com pós e líquidos coloridos dispostos em jarros de vidro em prateleiras que balançavam perigosamente. Ele chegou perto de um jarro com cristais brancos e passou o indicador pela etiqueta colada no vidro. Nitro, dizia a letra cúprica. A palavra parecia serpentear pelo papel, e um formigamento, como pequenos raios, subiu da ponta do dedo passando pelo braço até chegar ao peito. Enéas mal conseguiu respirar com a sensação. — É o melhor nitro que o senhor vai encontrar — disse uma voz, e Enéas endireitou-se, cheio de culpa, e recolheu a mão ao ver o proprietário, um homem magro com pele desbotada no rosto e braços, que o observava do outro lado da tábua que servia como mesa. — Recolhido do teto e das paredes das cavernas profundas perto de Kasama, e com o máximo de pureza possível. O senhor sofre de dores de dente, offizier? Com algumas aplicações disto aqui, o senhor pode beber todo o chá quente que quiser que não terá do que reclamar.
Enéas fez que sim e pestanejou. Ele queria tocar no jarro novamente, mas se obrigou a manter a mão ao lado do corpo. Você precisa disto... As palavras surgiram na voz grossa de Cénzi. Ele concordou com a cabeça; a mensagem parecia sensata. Enéas precisava disso, embora não soubesse o motivo. — Eu quero duas pedras.
— Duas pedras... — O proprietário inclinou-se para trás e riu. — Amigo, a sua guarnição inteira tem dentes sensíveis ou o senhor pretende preservar carne para um batalhão? Tudo que precisa é um pacotinho...
— Duas pedras — insistiu Enéas. — Pode separar? Por quanto? Um se’siqil? — Ele bateu com os dedos na bolsinha presa ao cinto.
O químico continuou balançando a cabeça. — Eu não consigo retirar tanto assim de Kasama, mas tenho uma boa fonte na Ilha do Sul que é tão boa quanto. Duas pedras... — Ele levantou uma sobrancelha no rosto magro e manchado. — Um siqil. Não posso fazer por menos.
Em outra ocasião qualquer, Enéas teria pechinchado. Com insistência, certamente ele poderia ter comprado o nitro pela oferta original ou algumas solas a mais, porém havia uma impaciência por dentro. Ela ardia no peito, um fogo que apenas Cénzi poderia ter acendido. Enéas rezou em silêncio, internamente. O que o Senhor quiser de mim, eu farei. A areia negra, eu criarei para o Senhor... Ele abriu a bolsa, tirou dois se’siqils e entregou as moedas para o homem sem discutir. O químico balançou a cabeça e franziu a testa ao esfregar as moedas entre os dedos. — Algumas pessoas têm mais dinheiro do que bom senso — murmurou o homem ao dar meia-volta.
Não muito tempo depois, Éneas corria pelo Terceiro Nível em direção ao quartel com um pacote pesado.
Jan ca’Vörl
ELE JÁ TINHA ESTADO COM OUTRAS MULHERES antes, mas nunca quis tanto nenhuma delas quanto queria Elissa.
Era o que Jan ca’Vörl dizia para si mesmo, em todo caso.
Ela o intrigava. Sim, Elissa era atraente, mas certamente não mais — e provavelmente tinha uma beleza menos clássica — do que metade das jovens moças da corte que se aglomeravam em volta de Fynn e Jan em qualquer oportunidade. Os olhos eram o melhor atributo: olhos de um tom azul-claro gelado que contrastavam com o cabelo escuro, olhos penetrantes que revelavam uma risada antes que a boca a soltasse ou que disparavam olhares venenosos para as rivais. Ela tinha uma leveza inconsciente que a maioria das outras mulheres não possuía, uma musculatura seca que insinuava força e agilidade ocultas.
— Ela vem de uma boa estirpe — foi a avaliação de Fynn. — Podia ser pior. Ela lhe dará uma dezena de bebês saudáveis se você quiser.
Jan não estava pensando em bebês. Não ainda. Jan queria Elissa. Apenas ela. Ele pensou que talvez finalmente pudesse acontecer na noite de hoje.
Toda noite desde a ascensão de Fynn ao trono do hïrzg, havia uma festa no salão superior do Palácio de Brezno. Fynn mandava convites através de Roderigo, seu assistente: sempre para o mesmo pequeno grupo de jovens moças e rapazes, quase todos de status ca’. Havia jogos de cartas (os quais Fynn geralmente perdia, e não ficava satisfeito), dança e celebração geral movidas à bebida até de manhãzinha. Jan era sempre convidado, bem como Elissa. Ele via-se cada vez mais próximo da moça, como se (como sua matarh insinuara) Jan fosse realmente uma abelha atraída para a flor de Elissa, especificamente.
Ela estava ao lado de Jan agora, com duas outras jovens esperançosas que pairavam ao redor dele. Jan estava na mesa de pochspiel com Fynn, que estava furioso com suas cartas e a pilha de siqils de prata e solas de ouro que diminuía diante dele, e bebia demais. Elissa deu a volta na mesa para ficar atrás de Jan, seu corpo encostou no dele quando ela se inclinou para baixo. — O hïrzg tem três sóis e um palácio. Eu apostaria tudo e perderia com elegância.
Jan deu uma olhadela para suas cartas. Ele tinha um único pajem; todas as demais eram baixas, do naipe de comitivas. A mão de Elissa tocou em seu ombro quando ela endireitou o corpo, os dedos apertaram Jan de leve antes de soltá-lo. As apostas já tinham sido pesadas nesta mão, e havia uma pilha substancial de siqils e algumas solas no centro da mesa. Jan tinha intenção de largar o jogo agora que a última carta fora distribuída — ele esperava fazer uma sequência do naipe, mas o pajem estragou o plano. Jan ergueu os olhos para Elissa; ela sorriu e acenou com a cabeça. Ele empurrou toda a pilha de moedas para o centro da mesa.
— Tudo — anunciou Jan.
O jogador à direita de Jan, um parente distante cujo nome ele esqueceu, balançou a cabeça e jogou fora as cartas. — Por Cénzi, você deve ter tirado os planetas todos alinhados! — Todos os outros jogadores descartaram suas mãos, a não ser Fynn. O hïrzg olhava fixamente para o sobrinho, com a cabeça inclinada para o lado. Ele deu uma olhadela para as cartas novamente e ergueu levemente o canto da boca, o tique que quase todo mundo que jogava pochspiel com Fynn conhecia, que era uma das razões porque ele perdia tanto. Fynn empurrou suas fichas para o centro com as de Jan; a pilha do hïrzg era visivelmente menor. — Tudo — repetiu ele e virou as cartas com a face para cima na mesa. — Se você aceitar um vale pelo resto.
Jan suspirou, como se estivesse desapontado, e falou — O senhor não precisará de vale, meu hïrzg. Infelizmente, me pegou blefando. — Ele mostrou a mão enquanto os outros jogadores vibraram e as pessoas em volta da mesa aplaudiram. Fynn recolheu as moedas, sorrindo, depois jogou uma sola de volta para Jan.
— Eu não posso deixar meu campeão sair da mesa de mãos vazias, mesmo quando ele tenta blefar com seu senhor e soberano com nada na mão — disse o hïrzg.
Jan pegou a sola e sorriu para Fynn, depois afastou a cadeira e fez uma mesura. — Eu deveria saber que o senhor enxergaria minha farsa — falou ele para Fynn, depois abriu um sorriso ainda maior. — Agora tenho que afogar a mágoa em um pouco de vinho.
Fynn olhou de Jan para Elissa, que pairava sobre o ombro do rapaz, e disse — Eu suspeito que você se afogará em algo mais substancial. Esta não é uma aposta que acredito que eu vá perder também.
Mais risos, embora a maior parte tenha vindo dos homens do grupo; muitas mulheres simplesmente olharam feio para Elissa, em silêncio. Em meio à gargalhada, ela chegou pertinho de Jan. — Encontre-me no salão em uma marca da ampulheta — falou Elissa, e depois se afastou dele. O espaço foi imediatamente preenchido por outra mulher disponível, e alguém entregou para Jan um garrafão de vinho enquanto as cartas da próxima mão eram distribuídas. A atenção de Fynn já estava voltada para as cartas, Jan afastou-se da mesa e conversou com as moças da corte que pairavam ao redor.
Quando ele achou que já havia se passado tempo suficiente, Jan pediu licença e saiu do salão. O criado do corredor fez uma mesura e deu uma piscadela de cumplicidade ao abrir a porta. Não havia ninguém no corredor, e Jan sentiu uma pontada de decepção.
— Chevaritt Jan — chamou uma voz, e ele viu Elissa sair das sombras a alguns passos de distância. Jan foi até ela e pegou suas mãos. O rosto estava bem próximo ao de Jan, e o olhar claro de Elissa jamais deixou seus olhos.
— Você me custou praticamente o soldo de uma semana, vajica — disse ele.
— E eu dei ao hïrzg mais uma razão para ele adorar seu campeão — respondeu Elissa com um sorriso. — Todo mundo à mesa teria pagado o dobro do que você perdeu para estar naquela posição. Eu diria que você me deve.
— Tudo que tenho é a sola de ouro que Fynn me deu, infelizmente. Ela é sua, se você quiser.
— Seu ouro não me interessa. Eu pediria algo mais simples de você.
— E o que seria?
Ela não respondeu: não com palavras. Elissa soltou as mãos de Jan, deu um abraço e ergueu o rosto para o dele. O beijo foi suave, os lábios cederam aos dele, macios como veludo. Os braços de Elissa apertaram Jan quando ele a apertou. Jan sentiu a fartura dos seios, o aumento da respiração, um leve gemido. O beijo ficou menos delicado e mais urgente agora, Elissa abriu os lábios para que ele sentisse a língua agitada. As mãos dela desceram pelas costas de Jan quando os dois se afastaram. Os olhos de Elissa eram grandes e quase pareciam assustados, como se estivesse com medo de ter ido longe demais. — Chev... — começou ela, mas foi impedida por outro beijo de Jan. A mão dele tocou o lado do seio debaixo da renda da tashta, e Elissa não o impediu, apenas fechou os olhos ao respirar fundo.
— Onde ficam seus aposentos? — perguntou Jan, e Elissa apoiou-se nele.
— Os seus são aqui no palácio, não é? — disse ela, e Jan fez que sim. Ele esticou a mão e ela pegou.
A caminhada até os aposentos de Jan pareceu levar uma eternidade. Os dois andaram rápido pelos corredores do palácio, depois a porta foi fechada quando eles entraram, Jan envolveu Elissa em um abraço e esqueceu-se de qualquer outra coisa por um longo e delicioso tempo.
Nico Morel
VILLE PAISLI ERA CHATA.
A cidade inteira caberia em um único quarteirão do Velho Distrito, eram mais ou menos 15 prédios amontoados perto da Avi a’Nostrosei, com algumas fazendas próximas e um bosque escuro e ameaçador que esticava braços cheios de folhas para os edifícios e sugeria a existência de terrores desconhecidos. Nico imaginava dragões à espreita nas profundezas montanhosas do bosque ou bandos de cruéis foras da lei. Explorá-lo poderia ser interessante, mas a matarh ficava de olho vivo nele, como fazia desde que os dois saíram de Nessântico.
Nico estava acostumado ao barulho e tumulto infinitos de Nessântico. Estava acostumado a uma paisagem de prédios e parques bem cuidados. Estava acostumado a estar cercado por milhares e milhares de desconhecidos, com cenas estranhas (ao saírem da cidade, ele vislumbrou uma mulher fazendo malabarismo com gatinhos vivos), com o toque das trompas do templo e com a iluminação da Avi à noite.
Aqui, só havia trabalho monótono e as mesmas caras idiotas dia após dia.
A tantzia Alisa e o onczio Bayard eram pessoas legais, proprietários da única estalagem de Ville Paisli, que era responsabilidade de sua tantzia. Ela parecia bem mais velha do que a matarh de Nico, embora Alisa na verdade fosse um ano mais jovem do que a irmã; o onczio Bayard tinha poucos dentes, e aqueles que sobraram tinham um cheiro podre quando ele chegava perto de Nico, o que fazia o menino imaginar por que a tantzia Alisa se casou com o homem.
Então havia as crianças: seis delas, três meninos e três meninas. O mais velho era Tujan, que tinha dois anos a mais que Nico, depois os gêmeos Sinjon e Dori, que eram da mesma idade que ele. O mais novo era um bebê que mal começava a andar, que ainda mamava no peito da tantzia Alisa. O onczio Bayard também era o ferreiro da cidade, e Tujan e Sinjon trabalhavam com ele no calor da forja, mexiam nos foles e cuidavam do fogo enquanto a tantzia Alisa, com a ajuda de Dori, fazia as camas e cozinhava para os hóspedes da estalagem — geralmente apenas um ou dois viajantes.
— Em Nessântico, há ténis-bombeiros que trabalham nas grandes forjas — disse Nico no primeiro dia ao ver Tujan e Sinjon trabalhar nos foles. O comentário lhe valeu um soco forte no braço, dado por Tujan, quando o onczio Bayard não estava olhando, e uma cara feia de Sinjon. O onczio Bayard colocou Nico para operar os foles com os primos a tarde inteira, e ele ficou cheirando a carvão e fuligem pelo resto do dia. O menino desconfiava que continuaria a cheirar assim, pois esperavam que ele trabalhasse na forja todo dia com os outros meninos, mas Nico já não sentia mais o cheiro, embora a bashta branca agora parecesse com um cinza rajado. A forja era sufocante, barulhenta com os golpes do aço no aço e reluzente com as fagulhas do ferro derretido. Os aldeões vinham até Bayard para ele criar ou consertar todo tipo de objeto metálico: arados, foices, dobradiças e pregos. A maior parte do comércio ocorria por troca: uma galinha depenada por uma nova lâmina, uma dúzia de ovos por um barril de pregos pretos.
Na forja, o dia começava antes da alvorada, quando o carvão tinha que ser reaquecido até formar um calor azul, e terminava quando o sol se punha. Não havia ténis-luminosos aqui para expulsar a noite ou ténis-bombeiros para manter o carvão em brasa. Depois do pôr do sol, o onczio Bayard trabalhava com a tantzia Alisa na taverna da estalagem, que gerava mais renda do que a própria estalagem. Nico, juntamente com os primos, era obrigado a trabalhar servindo canecas de cerveja e pratos de comida simples para os aldeões às mesas, até que o onczio Bayard berrasse “última chamada!” prontamente na terceira virada da ampulheta após o pôr do sol.
As noites após o fechamento da taverna eram o pior momento.
Nico dormia com Tujan e Sinjon no mesmo quarto minúsculo na casa atrás da estalagem, e os dois falavam no escuro, os sussurros pareciam tão altos quanto gritos. — Você é inútil, Nico — murmurou Tujan no silêncio. — Você consegue trabalhar nos foles tão mal quanto Dori, e o vatarh teve que mostrar para você três vezes como manter o carvão empilhado.
— Não teve não — retrucou Nico.
Tujan chutou Nico por debaixo das cobertas. — Teve sim. Eu ouvi o vatarh chamar você de bastardo, também.
— O que é um bastardo? — perguntou Sinjon.
— Bastardo significa que Nico não tem um vatarh — respondeu Tujan.
— Tenho sim. Talis é meu vatarh.
— Onde está. Talis? — debochou Tujan. — Por que ele não está aqui, então?
— Ele não pode estar aqui. Teve que ficar em Nessântico. Ele nos mandou aqui para ficarmos a salvo. Eu sei, eu vi...
— Viu o quê?
Nico piscou ao olhar para noite. Ele não deveria contar; Talis disse como seria perigoso para a matarh e ele. — Nada — falou Nico.
Tujan riu na escuridão. — Foi o que eu pensei. Sua matarh trouxe você aqui, não um Talis qualquer. Musetta Galgachus diz que a tantzia Serafina é uma puta imunda que ganha suas folias deitada, e você é apenas o filho de uma vagabunda.
O insulto atiçou Nico como uma pederneira em aço. Fagulhas tomaram conta de sua mente e fizeram Nico pular em cima do garoto maior e bater os punhos contra o rosto e o peito que ele não conseguia enxergar. — Ela não é! — gritou Nico ao bater em Tujan, e Sinjon pulou em cima dele para defender o irmão. Todos rolaram da cama para o chão, atacaram-se uns aos outros às cegas, descontrolados, aos gritos, enrolados nos lençóis. O fogo frio começou a arder no estômago de Nico, que gritou palavras que não entedia, as mãos gesticularam, e de repente os dois meninos voaram para longe dele e caíram no chão com força a uma curta distância. Nico ficou ali, caído nas tábuas rústicas do chão, momentaneamente atordoado e sentindo-se estranhamente vazio e exausto. Ele ouviu os cachorros, que dormiam lá embaixo na estalagem, latindo alto e perguntou-se o que acabara de acontecer.
A hesitação de Nico foi suficiente; na escuridão, os dois meninos ficaram de pé rapidamente e pularam em cima dele outra vez. — Bastardo! — Nico sentiu o punho de alguém bater em seu nariz.
A porta do quarto foi escancarada, uma vela tão intensa quanto a alvorada brilhou, e adultos berraram para eles pararem enquanto separavam os meninos. — O que em nome de Cénzi está acontecendo aqui? — rugiu o onczio Bayard ao arrancar Nico do chão pela camisola e jogá-lo cambaleando para os braços familiares da matarh. Ele percebeu que estava chorando, mais de raiva do que de dor, e fungou enquanto lutava para sair das mãos da matarh e bater em um dos meninos novamente. Sentiu sangue escorrer pela narina.
— Nico... — Serafina parecia oscilar entre o horror e a preocupação. Ela abaixou-se em frente ao garoto enquanto o onczio Bayard colocava os dois filhos de pé. — O que aconteceu? Por que vocês estão brigando, meninos?
Triste e parado ao lado da matarh, Nico olhou feio para os primos. A tantzia Alisa estava na porta, com o mais filho mais novo nos braços enquanto em volta dela as meninas espiavam, riam e sussurravam. Nico limpou o sangue que escorria do nariz com as costas da mão e ficou contente de ver que Sinjon também tinha um filete escuro que saía de uma narina e manchas marrons na camisola. Ele torceu para que a marca embaixo do olho de Tujan inchasse e ficasse roxa de manhã. — Nico? Quem começou isto?
— Ninguém — respondeu Nico, ainda olhando feio. — Não foi nada, matarh. A gente estava só brincando e... — Ele deu de ombros.
— Tujan? Sinjon? — perguntou o vatarh dos garotos enquanto sacudia seus ombros. — Vocês têm algo a acrescentar? — Nico olhou fixamente para os dois, especialmente para Tujan, desafiando o primo a contar para o vatarh o que dissera para ele.
Ambos os meninos balançaram a cabeça. Irritado, o onczio Bayard bufou e disse — Desculpe, Serafina, mas você sabe como meninos são... — Ele sacudiu os filhos novamente. — Peçam desculpas a Nico. Ele é um hóspede em nossa casa, e vocês não podem tratá-lo assim. Vamos.
Sinjon murmurou um pedido de desculpas praticamente inaudível. Tujan seguiu o irmão um momento depois. — Nico? — falou a matarh, e Nico fechou a cara.
— Desculpe — disse ele para os primos.
— Muito bem então — resmungou o onczio Bayard. — Não vamos mais aceitar isso. Tirar todo mundo da cama quando acabamos de ir dormir. Sinjon, pegue um pano e limpe o rosto. E não quero ouvir mais nada de vocês três hoje à noite. — Ainda resmungando, ele saiu do quarto.
Nico achou que conseguiria dormir imediatamente; agora que o fogo frio foi embora, ele estava muito cansado. A matarh ajoelhou-se para abraçá-lo. — Você pode dormir comigo se quiser — sussurrou ela. Nico abraçou Serafina com força e não queria nada além de exatamente isso, mas sabia que não podia, sabia que se fizesse, Tujan e Sinjon iriam implicar com ele sem piedade no dia seguinte.
— Eu ficarei bem — disse Nico. Serafina beijou a testa do filho. A tantzia Alisa entregou um pano para ela, que passou de leve no nariz de Nico. Ele recuou. — Matarh, já parou.
— Tudo bem. — Ela ficou de pé. — Todos vocês: vão dormir. Sem mais conversas, sem mais brigas. Ouviram?
Todos concordaram resmungando enquanto as meninas sussurravam e riam. A matarh e a tantzia Alisa trocaram suspiros tolerantes. A porta foi fechada. Nico esperou. — Você vai pagar por isso, Nico bastardo — murmurou Tujan, com a voz baixa e sinistra na nova escuridão. — Você vai pagar...
Nico dormiu naquela noite no canto mais próximo à porta, embrulhado em um lençol, e pensou em Nessântico e em Talis, e sabia que não podia continuar aqui, não importava se em Nessântico fosse perigoso.
Allesandra ca’Vörl
— A’HÏRZG! UM momento!
Semini chamou Allesandra quando ela saiu do Templo de Brezno após a missa de cénzidi. O pé da a’hïrzg já estava no estribo da carruagem, mas ela se virou para o archigos. Jan já tinha ido embora — acompanhado por Elissa ca’Karina e Fynn —, e Pauli disse que iria à missa celebrada pelos o’ténis do palácio na Capela do Hïrzg. Allesandra suspeitava que, em vez disso, ele passaria o tempo entre as coxas suadas de uma das damas da corte.
— Archigos — falou ela ao fazer o sinal de Cénzi para Semini. — Uma Admoestação especialmente forte hoje, eu achei. — Em volta dos dois, os fiéis que saíam do templo olhavam na direção deles, mas mantinham uma distância cautelosa: o que quer que a a’hïrzg e o archigos conversavam não era para ouvidos comuns. O criado da carruagem afastou-se para verificar os arreios dos cavalos e conversar com o condutor; os ténis de menor status que sempre seguiam o archigos permaneceram conversando, amontoados nas portas do templo. Semini deu a Allesandra o sorriso sombrio de um urso.
— Obrigado. — Ele olhou em volta para ver se havia alguém ao alcance da voz. — A senhora soube da notícia?
— Notícia? — Allesandra inclinou a cabeça, intrigada, e Semini franziu a boca sob a barba grisalha.
— Ela acabou de chegar a mim através de um contato da Fé. Achei que talvez a notícia ainda não houvesse chegado ao palácio. O regente ca’Rudka foi deposto pelo Conselho dos Ca’ e está aprisionado na Bastida, no momento.
— Ó, por Cénzi... — sussurrou Allesandra, genuinamente chocada pelo que ele acabou de ouvir. O que isto significa? O que aconteceu lá? Se o archigos ficou ofendido pela blasfêmia, ele não demonstrou nada. Semini acenou com a cabeça diante do silêncio perplexo da a’hïrzg.
— Sim, eu mesmo fiquei muito espantado. — Semini abaixou a voz e chegou perto de Allesandra, virou a cabeça de forma que os lábios ficaram bem próximos do ouvido dela. O som do rosnado baixo provocou um arrepio na a’hïrzg. — Eu temo que essa situação mude... tudo para nós, Allesandra.
Então o archigos afastou-se novamente, e o pescoço de Allesandra ficou frio, mesmo no calor do início do verão. — Archigos... — ela começou a falar. O que eu fiz? Como posso deter a Pedra Branca agora? Sem o regente, foi tudo por nada. Nada. O que eu fiz? A a’hïrzg ergueu os olhos para os pombos que davam voltas pelos domos dourados do templo. Havia dezenas deles, que mergulhavam, subiam e se cruzavam no ar como as possibilidades que giravam em sua mente. — Você confia na fonte dessa notícia?
— Sim — respondeu com a voz trovejante. — Gairdi nunca se enganou antes. Sem dúvida o hïrzg ouvirá a mesma coisa de suas próprias fontes em breve. Uma notícia como esta... — A cabeça foi de um lado para o outro sobre o robe verde, a barba moveu-se sobre o pano. — Ela se espalhará como fogo em mato seco. O Conselho enlouqueceu? Por tudo que ouvi, Audric não tem capacidade para ser kraljiki. E com ca’Rudka na Bastida...
— “Aqueles engolidos pela Bastida a’Drago raramente saem inteiros.” — Allesandra terminou o raciocínio por Semini com o velho ditado de Nessântico, geralmente murmurado com uma cara fechada e um gesto para afastar pragas voltado diretamente para as pedras escuras e torres impassíveis da Bastida. — Sinto pena de ca’Rudka. Eu gostava do homem, apesar do que ele fez com meu vatarh. — Ela respirou fundo e novamente olhou para os pombos, que agora pousavam no pátio, visto que a maioria dos fiéis tinha ido para casa. Agora que Allesandra teve tempo para absorver a notícia, o choque passou, mas a pergunta continuava girando na mente. O que eu fiz?
— Isso não muda nada — falou ela para Semini com firmeza e desejou ter tanta certeza quanto fez parecer pelo tom de voz. — O regente simplesmente foi substituído pelo Conselho, e alguns conselheiros com certeza têm a intenção de ser o próximo kralji. Audric ainda é Audric, e quando ele cair... bem, então estaremos prontos para fazer o que precisamos. Não se preocupe, archigos.
Semini concordou com a cabeça e fez uma mesura. Com cuidado, após olhar em volta mais uma vez, ele pegou as mãos de Allesandra e as apertou por um momento. — Rezo para que esteja certa, a’hïrzg — falou o archigos baixinho. — Talvez... talvez possamos falar mais a respeito disso, em particular, mais tarde nesta manhã. — Ele arqueou as sobrancelhas sobre os olhos penetrantes, que não piscavam.
— Tudo bem — respondeu Allesandra e perguntou-se se isso era o que ela realmente queria. Teria que pensar melhor para ter certeza. — Em duas viradas da ampulheta, talvez. Nos meus aposentos no palácio?
— Vou liberar minha agenda. — Semini sorriu. Ele deu um passo para trás e fez o sinal de Cénzi, em meio a uma mesura. — Aguardo ansiosamente. Imensamente.
— A’hïrzg... — Assim que o criado do corredor fechou a porta quando o archigos entrou, assim que ele percebeu que os dois estavam sozinhos, Semini foi até ela e pegou a mão de Allesandra. Ela deixou que o archigos a segurasse por alguns instantes, depois se afastou e gesticulou para uma mesa no meio da sala.
— Mandei meus criados prepararem um lanche para nós.
Semini olhou para a comida, e Allesandra viu a decepção no rosto dele.
Allesandra andou considerando o que queria fazer desde que se despediu do archigos. Ela precisava de Semini, sim, mas com certeza poderia ter essa ajuda sem ser amante do archigos. No entanto... Allesandra tinha que admitir que ele era atraente, que se via atraída por ele. Ela lembrava-se das poucas vezes que se permitiu ter amantes, lembrava-se da paixão e dos beijos demorados, do contato ofegante dos corpos abraçados, dos momentos quando os pensamentos racionais eram perdidos em um turbilhão de êxtase cego.
Allesandra gostaria de ter um marido que também fosse amante e parceiro, com quem pudesse ter verdadeira intimidade. Ela sentia um vazio na alma: não tinha amigos de verdade, nenhuma família que ela amasse e que devolvesse esse amor. A archigos Ana podia ter sido sua captora, mas também havia sido mais matarh para Allesandra do que sua própria, e o vatarh tirou isso dela quando finalmente pagou o resgate. E quando Allesandra finalmente retornou ao vatarh que um dia tanto amou, simplesmente descobriu que o amor de Jan ca’Vörl não mais brilhava como o próprio sol sobre a filha, mas agora estava totalmente concentrado em Fynn. Pelo contrário, vatarh deu Allesandra em casamento — uma recompensa política para selar o acordo que trouxe a Magyaria Ocidental para a Coalizão. Ela amava o filho originado de suas obrigações como esposa, e Jan também amou Allesandra quando era criança, mas sua idade e Fynn afastavam o menino dela.
No início, ela pensou em voltar para Nessântico — talvez como a hïrzgin, talvez como uma pretendente ao próprio Trono do Sol. Imaginou a amizade com Ana restaurada, o trabalho conjunto das duas para criar um império que seria a maravilha das eras. Mas Ana agora se foi para sempre, foi roubada de Allesandra.
Ela só tinha a si mesma. Não tinha mais ninguém.
Você gosta muito de Semini, e é óbvio que ele já está apaixonado por você. Mas ele também era praticamente duas décadas mais velho, e ambos eram casados. Não havia futuro com ele — a não ser, talvez, que Semini pudesse se tornar o archigos de uma fé concénziana unificada.
Você está pensando como seu vatarh. Está pensando como a velha Marguerite.
Semini olhou fixamente para a refeição à mesa: os frios fatiados, o pão, o queijo, o vinho. — Se a a’hïrzg está com fome, então..
Você pode acabar sozinha como Ana, como Marguerite. Por que você não se permite se aproximar de alguém, gostar de uma pessoa? Você precisa de alguém que seja seu aliado, seu amante...
Allesandra tocou as costas de Semini e deixou a mão descer por sua espinha. — A refeição era para as aparências. E para mais tarde.
— Allesandra... — Ele virou-se na direção dela, e a expressão esperançosa no rosto do archigos quase fez Allesandra rir.
Ela ficou na ponta dos pés, com a mão no ombro dele, e o beijou. A barba, descobriu Allesandra, era surpreendentemente macia, e os lábios embaixo cederam a ela. Allesandra saiu da ponta dos pés e pegou as mãos dele, encarou o archigos com a cabeça inclinada para o lado e disse — Temos que ter cuidado, Semini. Muito cuidado.
Os dedos do archigos apertaram os dela. Ele inclinou o corpo na direção de Allesandra, que sentiu os lábios de Semini em seu cabelo. A boca mexia-se enquanto ele falava — Cénzi tem minha alma, mas você, Allesandra, tem meu coração. Você sempre teve meu coração. — As palavras foram tão inesperadas, tão atrapalhadas e melosas que ela quase riu novamente, embora soubesse que essa reação iria destruí-lo. Allesandra começou a falar, a responder alguma coisa, mas Semini inclinou o corpo novamente e beijou sua testa, de leve. Ela virou-se para encará-lo e abraçou-o. O beijo foi mais demorado e urgente, o hálito do archigos era doce, e a intensidade de sua própria resposta faminta assustou Allesandra.
Semini passou os lábios pelo cabelo dela, que teve um arrepio ao sentir o hálito na orelha. — Isso é o que eu quero, Allesandra, mais do que qualquer outra coisa.
Ela não respondeu com palavras, mas com a boca e as mãos.
Karl ca’Vliomani
— NÃO ACREDITO QUE estou vendo isso. O Conselho dos Ca’ enlouqueceu completamente?
Sergei, sentado com as pernas abraçadas em um canto da cela, inclinou a cabeça significativamente para o garda encostado na parede, do lado de fora das barras. — Não — falou ele com uma voz tão baixa que Karl teve que inclinar o corpo para ouvir. — Os conselheiros não enlouqueceram, só estão ansiosos para limpar os ossos de Audric quando ele cair. E eu? — Sergei deu uma risada amarga. — Sou o chacal mais fácil de expulsar da matilha. Serei o bode expiatório para tudo, inclusive para a morte de Ana.
Karl sentiu o gosto da bile atrás da língua. O ar da Bastida era carregado, parecia um imenso xale encharcado que pesava nos ombros. Karl sentou-se na única cadeira e foi tomado por lembranças: um dia, ele habitou essa mesmíssima cela, quando Sergei comandava a Garde Kralji. Na ocasião, Mahri, o Maluco, tirou Karl do aprisionamento com sua estranha magia ocidental...
... e as memórias daquela época, tão amarradas a Ana e ao relacionamento com ela, trouxeram plenamente de volta a tristeza e a revolta diante de sua morte. Karl ergueu a cabeça, cerrou o maxilar e os punhos, e os olhos ameaçavam transbordar. — Foi magia ocidental que matou Ana. Eu quase peguei o sujeito.
— Talvez. Eu lhe garanto que não fui eu.
— E eu sei disso — falou Karl. — Eu direi a mesma coisa ao Conselho. Irei à conselheira ca’Ludovici depois que sair daqui...
— Não. Você não fará isso. Não se envolva neste caso, meu amigo. Já é ruim que você tenha vindo me ver; os conselheiros saberão em uma virada da ampulheta ou menos. Você realmente não quer rumores do envolvimento dos numetodos em qualquer uma das conspirações de Audric; não se não quiser que os Domínios fiquem parecidos com a Coalizão. — Sergei fez uma pausa. — Você sabe o que quero dizer com isso, Karl. E tome cuidado com o que fará com esses ocidentais. Já tem gente de olho em você, e essas pessoas não têm muita simpatia com qualquer um que percebam que esteja contra elas.
— Eu não me importo — disse Karl enquanto a lava remexia-se no estômago novamente. A decisão que se assentou ali endureceu. Eu encontrarei esse tal de Talis novamente, e desta vez arrancarei a verdade dele. — E quanto a você?
— Até agora, fui bem tratado.
— Até agora. — Karl sentiu um arrepio. Ele pensou que Sergei estava aparentando ter mais do que a idade que tinha, que talvez houvesse mais fios grisalhos no cabelo do que há alguns dias. — Se quiserem uma declaração sua, se quiserem puni-lo aqui na Bastida...
— Você não precisa me dizer — respondeu Sergei, e Karl pensou ter visto um arrepio visível em sua postura normalmente imperturbável. — Eu sei melhor do que qualquer pessoa. Essa culpa está em minhas mãos, também. — A voz ficou mais baixa novamente. — O comandante co’Falla também é um amigo e me deixou uma opção, caso a situação chegue a este ponto. Eu não serei torturado, Karl. Não permitirei.
Karl arregalou um pouco os olhos. — Você quer dizer...?
Um discreto aceno de cabeça. Sergei aumentou a voz novamente quando o garda no corredor se remexeu. — Venha comigo, tem uma coisa que quero lhe mostrar. — Ele lentamente se levantou da cama e foi até a sacada enquanto o garda observava os dois com atenção; Sergei mais arrastou os pés do que andou. O vento mexeu o cabelo branco de Karl quando eles se aproximaram do parapeito de uma pequena saliência que se projetava da torre. Lá embaixo, o A’Sele reluzia ao sol ao fluir debaixo da Pontica a’Brezi Veste. Havia jaulas penduradas nas colunas da ponte, com esqueletos amontoados dentro. Karl sentiu um arrepio ao ver aquilo. — Olhe aqui — falou Sergei. Ele havia se virado, de maneira a não ficar voltado para a cidade, mas sim para a parede da torre, e pressionou uma das pedras com o dedo. No bloco maciço de granito, havia uma fenda em um canto; acima do dedo de Sergei, uma única florzinha branca florescia na pedra cinzenta. — É uma estrela do campo — disse ele. — Bem longe de seu habitat natural.
— Você sempre entendeu de plantas.
Sergei sorriu e enrugou a pele em volta do nariz de metal. Karl notou a cola se soltando e rachando. — Você se lembra disso, hein?
— Você cuidou para que fosse bem improvável que eu me esquecesse.
Sergei concordou com a cabeça e tocou a flor com delicadeza. — Olhe esta beleza, Karl. Uma rachadura mínima na pedra, que foi encontrada pela vida. Um pouco de terra foi trazida pelo vento, a chuva erodiu a pedra e criou uma mínima camada de solo, um pássaro por acaso deixou uma semente, ou talvez o vento tenha trazido de um campo a quilômetros de distância para cair bem no lugar certo...
— Você deveria ter sido um numetodo, Sergei. Ou talvez um artista. Você leva jeito para isso.
Outro sorriso. — Se essa beleza pode acontecer aqui, no lugar mais triste de todos, então há sempre esperança. Sempre.
— Fico contente que acredite nisso.
O dedo de Sergei afastou-se da pedra. As trompas começaram a anunciar a Segunda Chamada, e ele olhou de relance para a Ilha A’Kralji, onde o Grande Palácio reluzia em tom branco. Karl perguntou-se se Audric olhava de uma de suas janelas na direção da Bastida e se talvez estivesse vendo os dois lá.
— Eu me preocupo com você, Karl. Desculpe-me, mas você parece cansado e velho desde que ela morreu. Você precisa se cuidar.
Karl sorriu ao pensar que a opinião de Sergei sobre sua aparência era bem parecida com sua impressão de Sergei. — Eu estou me cuidando, meu amigo. — Do meu jeito... Seus dias e noites eram gastos investigando e tentando encontrar o ocidental Talis novamente. Ele estava cansado, mas não podia parar. Não pararia.
— Eu sei que você não acredita em Cénzi ou na vida após a morte — dizia Sergei —, mas eu sim. Eu sei que Ana está observando dos braços de Cénzi e também acredito que ela diria para você conter sua tristeza. Ela foi-se para sempre daqui, a alma foi pesada, e agora Ana mora onde quis ir um dia. Ana queria que você acreditasse pelo menos nisso e começasse a curar a ferida no coração que a morte dela deixou.
— Sergei... — Não havia palavras nele, nem jeito de explicar como era profunda a ferida e como sangrava constantemente. Havia apenas dor, e Karl só pensava em uma maneira de conter a agonia dentro dele. Mas isso podia esperar até que ele encontrasse o ocidental novamente. — Se eu realmente acreditasse nisso aí, então estaria tentado a pular desta saliência, agora mesmo, para que eu ficasse com ela outra vez. — Karl olhou para baixo novamente, para as lajotas distantes.
— Varina ficaria transtornada com isso.
Karl olhou para Sergei, intrigado. — O que você quer dizer?
Sergei pareceu estudar o florescer da estrela do campo. — Varina tem qualidades que qualquer pessoa admiraria, e, no entanto, por todos esses anos ela escolheu deixar todos os relacionamentos de lado e passar o tempo estudando o seu Scáth Cumhacht.
— Pelo que fico muito agradecido. Ela levou nosso entendimento do Scáth Cumhacht bem além.
— Tenho certeza de que ela dá valor à sua gratidão, Karl.
— O que está dizendo? Que Varina...? — Karl riu. — Evidentemente você não a conhece bem, de maneira alguma. Varina não tem problemas em dizer o que pensa. Ela recentemente deixou claro como se sente a meu respeito.
Sergei tocou a flor. Ela tremeu com o toque, e o frágil apoio na pedra ameaçou ceder. Ele afastou a mão e virou-se para Karl. — Tenho certeza de que você está certo. — Sergei deu um sorriso com um toque de melancolia. Aqui, à luz do sol, Karl viu as rugas profundas entalhadas no rosto do homem. Sergei olhou para a cidade e disse — Esse era o amor da minha vida. Essa cidade e tudo que ela significa. Eu dei tudo a ela...
Karl chegou perto de Sergei enquanto olhava o garda, que deixava evidente que não observava os dois. — Eu talvez consiga tirá-lo daqui. Do meu jeito.
Sergei ainda olhava para fora, com as mãos no parapeito, e respondeu para o céu. — Para nos tornar fugitivos? — Ele balançou a cabeça. — Seja paciente, Karl. Uma flor não floresce em um dia.
— A paciência pode não ser possível. Ou prudente.
Por um instante, o rosto de Sergei relaxou quando se virou para Karl. — Você é capaz de fazer isso? De verdade?
— Acho que sou, sim.
— Você colocaria em risco os numetodos com esse ato, entende? O archigos Kenne pode simpatizar com você, mas ele é a próxima pessoa que Audric ou o Conselho dos Ca’ irão atrás simplesmente porque ele não é forte o suficiente. Todos os demais a’ténis simpatizam menos com os numetodos; eu vejo o Colégio eleger um archigos forte que será mais nos moldes de Semini ca’Cellibrecca em Brezno ou, pior ainda, vejo o Colégio se reconciliar completamente com Brezno.
— Os numetodos sempre estiveram em perigo. Ana foi a única que nos deu abrigo, e ainda assim apenas aqui na própria Nessântico. — Karl viu Sergei dar uma olhadela para o garda e as barras da cela, depois notou uma decisão no rosto do homem. — Quando? — perguntou Karl para Sergei.
— Se o Conselho realmente der a Audric o que ele quer... — Sergei afagou a flor na parede com um toque gentil do indicador. Ela tremeu. — Aí então.
Karl concordou com a cabeça. — Entendi, mas primeiro preciso de sua ajuda e de seu conhecimento deste lugar.
Nico Morel
NICO DEIXOU A CASINHA atrás da estalagem de Ville Paisli algumas viradas da ampulheta antes da alvorada. Ele amarrou as roupas em um rolo que carregava nas costas e pegou uma bisnaga de pão na cozinha. Fez carinho nos cachorros, que se perguntaram por que alguém estava de pé tão cedo, e acalmou os bichos para que não latissem quando ele abrisse o trinco da porta dos fundos e saísse. Nico correu pela estrada de Ville Paisli na luz tênue da falsa alvorada, pulando nas sombras ao longo do caminho ao ouvir qualquer barulho. Quando o sol passou do horizonte para tocar com fogo as nuvens a leste, o menino estava bem longe do vilarejo.
Nico esperava que a matarh entendesse e não chorasse muito, mas se pudesse encontrar Talis e contar para ele como eram as coisas em Ville Paisli, então Talis voltaria a ficar ao seu lado e tudo ficaria bem. Tudo que Nico tinha que fazer era encontrar Talis, que amava sua matarh — o vatarh ficaria tão furioso quanto Nico com o que os primos disseram e, com sua magia, bem, Talis faria com que eles parassem.
Talis disse que Ville Paisli ficava a apenas oito quilômetros de Nessântico. Nico caminhou pela estrada de terra cheia de sulcos da Avi a’Nostrosei; se conseguisse chegar ao vilarejo de Certendi, então poderia despistar qualquer um que o perseguisse. Eles esperariam que Nico seguisse pela Avi a’Nostrosei até Nessântico, mas ele tomaria a Avi a’Certendi em vez disso, que desviava para sudeste para entrar em Nessântico, mais perto das margens do A’Sele. Era uma estrada mais comprida, mas talvez não procurassem por ele lá.
Nico olhou para trás com cuidado para fugir de qualquer um que viesse cavalgando rápido pela retaguarda. Viu os telhados de palha de Certendi adiante e notou uma mancha de poeira que surgiu atrás de um grupo de ciprestes, depois de uma curva lenta na Avi. Ele saiu correndo da estrada e entrou em um campo de feijão-fradinho, ficou bem agachado nas folhas espessas. Foi bom ele ter feito isso, pois em pouco tempo o cavalo e o cavaleiro surgiram: era o onczio Bayard, que parecia sem jeito e pouco à vontade em cima de um cavalo de tração, com os olhos focados na estrada à frente. Nico deixou o onczio passar pela avenida até desaparecer na próxima curva.
Deixe o onczio Bayard procurar o quanto quiser em Certendi, então. Nico cortaria caminho para o sul através das fazendas e encontraria a Avi a’Certendi no ponto onde ela surgia, no vilarejo.
Ele continuou andando entre os campos. Talvez uma virada da ampulheta depois, talvez mais, Nico encontrou o que presumiu ser a Avi a’Certendi — uma estrada de terra cheia de sulcos, em sua maior parte sem grama ou ervas daninhas. Ele prosseguiu enquanto mastigava o pão e parava às vezes para beber água em um dos vários córregos que fluíam na direção do A’Sele.
No fim da tarde, os pés latejavam e doíam, e bolhas estouravam sempre que a pele tocava nas botas. As plantas dos pés estavam machucadas por causa das pedras em que ele pisou. Nico mais arrastava os pés do que andava, estava mais cansado do que jamais esteve na vida e queria ter outra bisnaga de pão. Porém, ele finalmente andava entre as casas amontoadas em volta do Mercado do rio em Nessântico. Nico estava em casa agora, e podia encontrar Talis. Agarrado firmemente ao rolo de roupas, ele vasculhou o mercado atrás de Uly, o vendedor que conhecia Talis. Mas o espaço onde a barraca de Uly fora montada há semanas estava vazio, o toldo de pano havia sumido e sobraram apenas algumas bancadas meio quebradas. Nico fez uma careta e mancou até a velha que vendia pimentas e milho ao lado do espaço; ele não queria nada além de se sentar e descansar. — A senhora sabe onde Uly está? — perguntou Nico cansado, e a mulher deu de ombros. Ela espantou uma mosca que pousou no nariz.
— Não sei dizer. O homem foi embora há um punhado de dias. Já foi tarde também. Ele ria quando soavam as Chamadas e as pessoas rezavam. E aquelas cicatrizes horríveis.
— Aonde ele foi?
— Eu pareço a matarh dele? — A velha olhou feio para Nico. — Vá embora. Você está espantando meus fregueses.
Nico olhou o mercado de cima a baixo; só havia algumas poucas pessoas, e nenhuma perto da barraca. — Eu realmente preciso saber — disse ele.
A mulher torceu o nariz e ignorou o menino enquanto arrumava as pimentas nas caixas e espantava moscas.
— Por favor — falou Nico. — Eu preciso falar com ele.
Silêncio. Ela mudou uma pimenta do topo da caixa para o fundo.
Nico percebeu que estava ficando frustrado e com raiva. Sentiu um frio por dentro, como a brisa da noite. — Ei! — berrou o menino para a velha.
Ela olhou Nico com uma cara feia. — Vá embora ou eu chamo o utilino, seu pestinha, e digo que você estava tentando roubar meus produtos. Saia! Vá embora! — A velha espantou o menino como se ele fosse uma mosca.
A irritação cresceu dentro de Nico, e na garganta parecia que ele tinha comido um dos pratos apimentados que Talis às vezes fazia. Havia palavras que queriam sair, e as mãos fizeram gestos por conta própria. A velha encarou Nico como se ele estivesse tendo algum tipo de convulsão, ela parecia fascinada com os olhos arregalados. As palavras irromperam, e Nico fez um gesto como se agarrasse com as mãos. A mulher de repente levou as mãos à garganta com um grito asfixiado. Ela parecia tentar respirar, o rosto ficou mais vermelho conforme Nico cerrava os punhos. — Pare! — Ele mal conseguiu distinguir a palavra, mas relaxou as mãos. A mulher quase caiu e respirou fundo.
— Conte! — falou Nico, e a mulher encarou o menino com medo nos olhos e as mãos erguidas, como se se protegesse de um soco.
— Eu ouvi dizer que ele talvez esteja no mercado do Velho Distrito agora — disse a mulher às pressas. — Foi o que ouvi, de qualquer forma, e...
Mas Nico já estava indo embora, sem escutar mais.
Ele tremia e sentia-se bem mais cansado do que há um momento. Também estava assustado. Talis ficaria furioso, assim como a matarh. Você podia ter machucado a mulher. Ele não faria isso de novo, Nico disse para si mesmo. Não deixaria que isso acontecesse. Não arriscaria. A fúria gelada o assustava demais.
Nico sentiu vontade de dormir, mas não podia. Ele tardou até a Terceira Chamada para encontrar a Avi a’Parete, ficou meio perdido na concentração de pequenas vielas tortuosas em volta do mercado e andava lentamente por causa dos pés doloridos. Nico parou ali e encostou-se em um prédio para abaixar a cabeça e fazer a prece noturna para Cénzi com a multidão perto da Pontica Kralji. Ele sentou-se..
... e ergueu a cabeça assustado ao se dar conta de que adormecera. Do outro lado da ponte, Nico viu os ténis-luminosos que acabavam de começar a acender as famosas lâmpadas da cidade em frente ao Grande Palácio — uma cena que estaria acontecendo simultaneamente por toda a grande extensão da Avi. Com um suspiro, ele levantou-se e mergulhou novamente na multidão, tomou a direção norte pelas profundezas do Velho Distrito, à procura de uma transversal familiar que pudesse levá-lo para casa.
Nico não sabia como encontrar Talis na imensa cidade, mas neste momento, tudo que ele queria era descansar os pés doloridos e exaustos em algum lugar conhecido, adormecer em algum lugar seguro. Ele podia ir ao mercado do Velho Distrito amanhã e ver se Uly estava lá. Nico mancou na direção de casa — a velha casa. Foi o único lugar que conseguiu pensar em ir.
A viagem pareceu levar uma eternidade. Ele precisou sentar e descansar três vezes, quase chorou de dor nos pés, forçou-se a manter os olhos abertos para não cair no sono novamente, e foi cada vez mais difícil se levantar novamente. Nico queria arrancar as botas dos pés, mas tinha medo do que veria se fizesse isso. Contudo, finalmente ele desceu a viela onde Talis fora atacado pelo numetodo e virou a esquina que levava para casa. Começou a ver prédios e rostos conhecidos. Estava quase lá.
— Nico!
Ele ouviu a voz chamar seu nome e deu meia-volta. A mulher acenou para Nico e correu até ele, mas ela não era ninguém que o menino reconhecesse. O rosto era enrugado e parecia cansado, como se a mulher estivesse tão cansada quanto Nico, e ela aparentava ser mais velha do que os cabelos que caíam sobre os ombros.
— Quem é a senhora?
— Meu nome é Varina. Eu venho procurando você.
— Talis...? — Nico começou a falar, depois parou e mordeu o lábio inferior. Talis não iria querer que ele falasse com uma pessoa desconhecida.
— Talis? — A mulher ergueu o queixo. — Ah, sim. Talis. — Ela ajoelhou-se diante de Nico. Ele achou que a mulher tinha olhos gentis, olhos que pareciam mais jovens do que o rosto enrugado. Os dedos dela tocavam de leve seu queixo, da maneira que a matarh fazia às vezes. O gesto deu vontade de chorar. — Você estava mancando agora mesmo. Parece terrivelmente cansado, Nico, e olhe só, está coberto de poeira. — A preocupação franziu as rugas da testa quando ela inclinou a cabeça de lado. — Está com fome?
Ele concordou com a cabeça e simplesmente respondeu — Sim.
A mulher abraçou Nico com força, e ele relaxou em seus braços. — Venha comigo, Nico — falou ela ao se levantar novamente. — Chamarei uma carruagem para nós, lhe darei comida e deixarei você descansar. Depois veremos se conseguimos encontrar Talis para você, hein? — A mulher estendeu a mão para ele.
Nico pegou a mão, e ela fechou os dedos. Juntos, os dois andaram de volta na direção da Avi a’Parete.
Allesandra ca’Vörl
ELISSA CA’KARINA...
Allesandra não parava de ouvir o nome toda vez que falava com o filho, nos últimos dias. “Elissa fez uma coisa muito intrigante ontem”... ou “eu estava cavalgando com Elissa...”
Hoje foi: “eu quero que a senhora entre em contato com os pais de Elissa, matarh”.
Allesandra olhou para Pauli, que lia relatórios do palácio de Malacki perto da fogueira em seus aposentos; os criados ainda não haviam trazido o café da manhã. Ele não parecia surpreso com o que a esposa disse; ela perguntou-se se Jan tinha falado com o vatarh primeiro. — Você conhece a mulher há pouco mais de uma semana — falou Allesandra — e Elissa é muito mais velha do que você. Eu me pergunto por que a família não arrumou um casamento para ela há anos. Não sabemos o suficiente sobre Elissa, Jan. Certamente não o suficiente para abrir negociações com a família dela.
Jan começou a fazer menear negativamente a cabeça na primeira objeção de Allesandra; Pauli pareceu conter um riso. — O que qualquer destas coisas tem a ver, matarh? Eu gosto da companhia de Elissa e não estou pedindo para casar com ela amanhã. Eu queria que a senhora fizesse as sondagens necessárias, só isso. Desta maneira, se tudo acontecer como deve e eu ainda me sentir do mesmo jeito em, ah, um mês ou dois... — Jan deu de ombros. — Eu falei com Fynn; ele disse que o sobrenome ca’Karina é bem considerado e que não faria objeção. Ele gosta de Elissa também.
Allesandra duvidava disso — pelo menos da maneira como Jan gostava de Elissa. Fynn considerava as mulheres da corte nada mais do que adereços necessários, como um arranjo de flores, e igualmente dispensáveis. Ele mesmo não tinha interesse em mulheres, e se um dia se casasse (e não se casaria, se a Pedra Branca fizesse por merecer o dinheiro — e este pensamento provocou novamente uma pontada de dúvida e culpa), seria puramente pela vantagem política que Fynn ganharia com isso.
Fynn não se casaria com uma mulher por amor, e certamente não por desejo.
Mas Jan... Allesandra já sabia, pelas fofocas palacianas, que Elissa passou várias noites nos aposentos do filho, com ele. Allesandra também sabia que não tinha apoio algum aqui: não de Jan, não de Pauli, e certamente não de Fynn, que provavelmente achava divertido o caso, especialmente porque, obviamente, irritava a irmã. Nem Allesandra podia dizer muita coisa sem ser hipócrita, dado o que ela começou com Semini. Ele não quer nada mais do que você quer, afinal de contas. Allesandra deu um sorriso tolerante, em parte porque sabia que iria irritar Pauli.
— Tudo bem — falou ela para o filho. — Eu sondarei. Veremos o que a família dela tem a dizer e prosseguiremos a partir daí. Isso está bom para você?
Jan sorriu e deu um abraço em Allesandra, como se fosse um menino novamente. — Obrigado, matarh. Sim, está bom para mim. Escreva para eles hoje. Agora de manhã.
— Jan, só... tenha cuidado e vá devagar com isso, está bem?
Ele riu. — Sempre me lembrando que devo pensar com a cabeça em vez do coração. Está bem, matarh. É claro.
Dito isso, Jan foi embora. Pauli riu e falou — Perdido em uma gloriosa paixão. Eu me lembro de ter sido assim...
— Mas não comigo — disse Allesandra.
O sorriso de Pauli jamais hesitou; isso magoava mais do que as palavras. — Não, não com você, minha querida. Com você, eu me perdi em uma gloriosa transação.
Ele voltou a ler os relatórios.
Allesandra andava com Semini naquela tarde, após a Segunda Chamada, quando viu a silhueta de Elissa passar pelos corredores do palácio, estranhamente desacompanhada. — Vajica ca’Karina — chamou a a’hïrzg. — Um momento...
A jovem pareceu surpresa. Ela hesitou por um instante, como um coelho que procurava uma rota de fuga de um cão de caça, depois ser aproximou dos dois. Elissa fez uma mesura para Allesandra e o sinal de Cénzi para Semini. — A’hïrzg, archigos, é tão bom ver os senhores. — O rosto não refletia as palavras.
— Tenho certeza — falou Allesandra. — Devo lhe dizer que meu filho veio até mim na manhã de hoje falar a respeito de você.
Ela ergueu as sobrancelhas sobre os estranhos olhos claros. — É?
— Ele me pediu para entrar em contato com sua família.
As sobrancelhas subiram ainda mais, e a mão tocou a gola da tashta quando um tom leve de rosa surgiu no pescoço. — A’hïrzg, eu juro que não pedi que ele falasse com a senhora.
— Se eu pensasse que você pediu, nós não estaríamos tendo esta conversa, mas uma vez que ele fez o pedido, eu o atendi e escrevi uma carta para sua família; entreguei ao meu mensageiro há menos de uma virada da ampulheta. Pensei que você deveria saber, para que também pudesse entrar em contato com eles e dizer que aguardo a resposta.
A reação de Elissa pareceu estranha a Allesandra. Ela esperava uma resposta elogiosa ou talvez um sorriso envergonhado de alegria, mas a jovem piscou e virou o rosto para respirar fundo, como se os pensamentos estivessem em outro lugar. — Ora... obrigada, a’hïrzg, estou lisonjeada e sem palavras, é claro. E seu filho é um homem maravilhoso. Estou realmente honrada pelo interesse e atenção de Jan.
Allesandra deu uma olhadela para Semini. O olhar dele era intrigado. — Mas? — perguntou o archigos em um tom grave e baixo.
Elissa abaixou a cabeça rapidamente e encarava os pés de Allesandra, em vez dos dois. — Eu tenho um sentimento muito grande pelo seu filho, a’hïrzg, tenho mesmo. Porém, entrar em contato com minha família... — Ela passou a língua pelos lábios, como se tivessem secado de repente. — A situação está indo rápido demais.
Semini pigarreou. — Existe alguma coisa em seu passado, vajica, que a a’hïrzg deva saber?
— Não! — A palavra irrompeu com um fôlego, e a jovem ergueu a cabeça novamente. — Não há... nada.
— Você dorme com ele — falou Allesandra, e o comentário franco fez Elissa arregalar os olhos e Semini aspirar alto pelas narinas. — Se não tem intenção de se casar, vajica, então o que a faz diferente de uma das grandes horizontales?
As outras jovens da corte teriam se horrorizado. Teriam gaguejado. Esta apenas encarou Allesandra categoricamente, empinou o queixo levemente e endureceu o olhar pálido. — Eu poderia perguntar à a’hïrzg, com o perdão do archigos, como alguém em um casamento sem amor é tão diferente de uma grande horizontale? Uma é paga pelo sobrenome, a outra é paga pela sua... — um sorriso sutil — ...atenção. A grande horizontale, pelo menos, não tem ilusões quanto ao acordo. Em ambos os casos, o quarto é apenas um local de negócios.
Allesandra riu alto e repentinamente. Ela aplaudiu Elissa com três rápidas batidas das mãos em concha. O diálogo fez com que a a’hïrzg se lembrasse de sua época em Nessântico com a archigos Ana, que também tinha uma mente ágil e desafiava Allesandra nas discussões de maneiras inesperadas e com declarações ousadas. Semini estava boquiaberto, mas a a’hïrzg acenou com a cabeça para a jovem. — Não existem muitas pessoas que me responderiam assim diretamente, vajica. Você tem sorte de eu ser alguém que valoriza isso, mas... — Ela parou, e o riso debaixo do tom de voz sumiu tão rápido quanto gelo de uma geleira no calor do verão. — Eu amo meu filho intensamente, vajica, e irei protegê-lo de cometer um erro se vir necessidade para tanto. Neste momento, você é meramente uma distração para ele, e resta saber se o interesse vai durar após a estação. Seja lá o que possa vir a acontecer entre vocês dois, essa não será uma decisão sua. Está suficientemente claro?
— Claro como a chuva da primavera, a’hïrzg — respondeu Elissa. Ela fez uma rápida mesura com a cabeça. — Se a a’hïrzg me der licença...?
Allesandra abanou a mão, Elissa fez uma nova mesura e entrelaçou as mãos na testa para Semini. A jovem foi embora correndo, com a tashta esvoa-çando em volta das pernas.
— Ela é insolente — murmurou Semini enquanto os dois ouviam os passos de Elissa nos ladrilhos do piso do palácio. — Começo a me perguntar sobre a escolha do jovem Jan.
Allesandra deu o braço a Semini quando eles voltaram a caminhar. Alguns funcionários do palácio os viram juntos; mas Allesandra não se importava, pois gostava do calor corpulento de Semini ao seu lado. — Aquilo foi esquisito — continuou o archigos. — Foi quase como se a mulher estivesse aborrecida por Jan ter pedido para você falar com sua família. Ela não percebe o que está sendo oferecido?
— Eu acho que ela sabe exatamente o que está sendo oferecido. — Allesandra apertou o braço de Semini e olhou para trás, na direção para onde Elissa tinha ido. — É isso que me incomoda. Eu começo a me perguntar se foi de fato uma escolha de Jan se envolver com Elissa.
A Pedra Branca
A MEGERA NÃO DEU A ELA TEMPO... não deu tempo...
A raiva quase superou a cautela. A Pedra Branca queria esperar outra semana, porque, para falar a verdade, ela não estava certa se queria fazer aquilo — não por causa da morte que resultaria, mas porque significava que “Elissa” necessariamente teria que desaparecer. Ela não tinha mais certeza se queria que isso acontecesse; pensou que talvez, se tivesse tempo, pudesse dar um jeito de contornar essa situação. Mas agora...
A Pedra Branca tinha poucos dias, não mais: o tempo que a carta da a’hïrzg teria para ir de Brezno a Jablunkov e voltar. Antes que a resposta chegasse, ela teria que estar longe daqui — por dois motivos.
A Pedra Branca ficou abalada com o confronto com a a’hïrzg e o archigos. Ela foi imediatamente até Jan, que contou todo orgulhoso que Allesandra mandou a carta por mensageiro rápido. Teve que fingir ter ficado contente com a notícia; foi bem mais difícil do que ela imaginava. Dois dias, então, para a carta chegar ao palácio de Jablunkov, onde um atendente sem dúvida iria abri-la imediatamente, leria e perceberia que havia algo terrivelmente errado. Haveria uma rápida discussão, uma resposta rabiscada às pressas, e um novo mensageiro voltaria correndo para Brezno com ordens de ir a toda velocidade. Pelo que ela sabia, a carta já chegara a Jablunkov.
A Pedra Branca tinha que agir agora.
Quando chegasse a resposta, que informaria à a’hïrzg que Elissa ca’Karina estava morta há muito tempo, ela teria que ir embora ou teria que ter algo que pudesse usar como arma contra aquela informação. A nova fofoca palaciana era que a a’hïrzg e o archigos pareciam passar muito tempo juntos ultimamente. Os olhares que a Pedra Branca notou entre os dois certamente indicavam que eles eram mais que amigos, mas mesmo que ela conseguisse provar isso, não havia nada ali que ela pudesse usar — ambos eram poderosos demais, e ela não tinha a intenção de ser trancada na Bastida de Brezno.
Não, ela teria que ser a Pedra Branca, como deveria ser. Teria que honrar o contrato e sumir, como a Pedra Branca sempre fazia.
Ela ouviu uma risada debochada soar por dentro com a decisão.
O moitidi do destino estava ao seu lado, pelo menos. Fynn não era exatamente um homem com muitos hábitos, mas havia certas rotinas que ele seguia. A Pedra Branca chegara à corte preparada para fazer o possível para se tornar amante de Fynn, mas descobriu que isso seria uma tarefa impossível. Jan foi a melhor escolha a seguir, como a atual companhia favorita do hïrzg fora da cama.
Ela também se viu genuinamente gostando do jovem, apesar de todas as tentativas de se concentrar na tarefa para a qual fora tão bem paga. A Pedra Branca teria protelado o contrato pelo máximo de tempo possível porque se descobriu à vontade com Jan, porque gostava da conversa dele, do carinho e da atenção que ele dispensava durante suas noites juntos. Porque ela gostava de fingir que talvez fosse possível ter uma vida com Jan, que pudesse permanecer como Elissa para sempre. A Pedra Branca perguntou-se — sem acreditar, quase com medo — se talvez estivesse apaixonada pelo jovem.
As vozes rugiram e acharam graça daquilo.
— Tola! — As vozes internas a atacavam agora. — Como consegue ser tão estúpida? Você se importou com algum de nós quando nos matou? Você se arrepende do que fez? Não! Então por que se importa agora? Isso é culpa sua. Você não tem emoções; não pode se dar ao luxo de ter; foi o que sempre disse!
Elas estavam certas. A Pedra Branca sabia. Ela foi idiota e se deixou ficar vulnerável, algo que nunca deveria ter feito, e agora tinha que pagar pela própria loucura. — Calem-se! — berrou de volta para as vozes. — Eu sei! Deixem-me em paz!
As vozes gargalharam e destilaram de volta o ódio por ela.
Concentração. Pense apenas no alvo. Concentre-se ou você morrerá. Seja a Pedra Branca, não Elissa. Seja o que você é.
Fynn... hábitos... vulnerabilidades.
Concentração.
A Pedra Branca observou Fynn seguir sua rotina pelas últimas duas semanas; pelo menos duas vezes durante a passagem dos dias, Fynn cavalgava com Jan e outros integrantes da corte. Ela esteve nesses passeios e viu a atenção que Fynn dava a Jan, que também cavalgava ao lado do hïrzg; ambos conversavam e riam. Na volta, Fynn recolhia-se aos seus aposentos. Não muito tempo depois, seu camareiro, Roderigo, saía e ia aos estábulos, de onde trazia Hamlin, um dos cavalariços que — não deu para evitar notar — era praticamente da mesma idade, tamanho e compleição física de Jan. Roderigo conduzia Hamlin até as portas dos aposentos de Fynn e saía assim que o rapaz entrava, depois voltava precisamente meia virada da ampulheta mais tarde, momento em que Hamlin ia embora novamente.
Ela viu o procedimento acontecer quatro vezes até agora e estava relativamente confiante na segurança. E hoje... hoje o hïrzg e Jan saíram para cavalgar. A Pedra Branca alegou uma dor de cabeça e ficou para trás, embora a nítida decepção de Jan tenha feito sua decisão vacilar. Enquanto os dois estavam ausentes, ela andou pelos corredores próximos aos aposentos do hïrzg e sorriu com educação para os cortesãos e criados que passaram, depois entrou de mansinho em um corredor vazio. Os corredores principais eram patrulhados por gardai, mas não os pequenos usados pela criadagem, e, a esta altura do dia, os criados estavam ocupados nas enormes cozinhas lá embaixo ou trabalhavam nos próprios aposentos. Uma gazua retirada rapidamente dos cachos abriu uma porta fechada, e a Pedra Branca entrou de mansinho nos aposentos do hïrzg: um pequeno gabinete particular bem ao lado de fora do quarto de dormir. Ela ouviu Roderigo dar ordens para os criados no cômodo ao lado e dizer o que eles precisavam limpar e como tinha que ser feito. Ela escondeu-se atrás de uma espessa tapeçaria que cobria a parede (no tecido, chevarittai do exército firenzciano a cavalo atropelavam e espetavam com lanças os soldados de Tennsha) e esperou, fechou os olhos e respirou devagar.
A Pedra Branca prestou atenção às vozes. Ao deboche, às bajulações, aos avisos...
Na escuridão, elas eram especialmente altas.
Depois de uma virada da ampulheta ou mais, a Pedra Branca ouviu a voz abafada de Fynn e a resposta de Roderigo. Uma porta foi fechada, então houve silêncio, nem mesmo as vozes internas falaram. Ela esperou alguns instantes, depois afastou a tapeçaria e foi pé ante pé com os sapatos de sola de camurça até a porta do quarto de Fynn.
— Meu hïrzg — falou ela baixinho.
Fynn estava sentado na cama, com a bashta semiaberta, e deu um pulo e meia-volta com o som da voz. Ela viu o hïrzg esticar a mão para a espada, que estava embainhada sobre a cama, com o cinto enrolado ao lado, então ele parou com a mão no cabo ao reconhecê-la. — Vajica ca’Karina — disse ele, com a voz praticamente ronronante. — O que você está fazendo aqui? Como entrou? — A mão não deixou o cabo da espada. O homem era cuidadoso; ela tinha que admitir.
— Roderigo... deixou que eu entrasse — falou a Pedra Branca e tentou soar envergonhada e hesitante. — Eu... eu acabei de encontrá-lo no corredor. Foi Jan que... que falou com Roderigo primeiro. Estou aqui a pedido dele.
Ela olhou a mão de Fynn. O punho relaxou no cabo. Ele franziu a testa e disse — Então eu preciso falar com Roderigo. O que há com nosso Jan?
A Pedra Branca abaixou o olhar, tão recatada e levemente assustada como uma moça estaria, e olhou para ele através dos cílios. — Nós... Eu sei que nós dois amamos Jan, meu hïrzg, e o quanto ele respeita e admira o senhor. Até mesmo mais do que o próprio vatarh.
A mão de Fynn deixou o cabo da espada; ela deu um passo na direção do hïrzg e perguntou — O senhor sabe que ele pediu que a a’hïrzg falasse com minha família? — Fynn concordou com a cabeça e empertigou-se, deu as costas para a arma na cama. Isso provocou um sorriso genuíno da parte dela ao dar um passo na direção do hïrzg. — Jan tem uma enorme gratidão por sua amizade — disse a Pedra Branca. Mais um passo. — Ele queria que eu lhe desse um... presente de agradecimento.
Mais um. Ela estava em frente a Fynn agora.
— Um presente? — O olhar do hïrzg desceu do rosto dela para o corpo. Ele riu quando a mulher deu um último passo e a tashta esfregou em seu corpo. — Talvez Jan não me conheça tão bem quanto ele pensa. Que presente é esse?
— Deixe-me lhe mostrar. — Dito isso, a Pedra Branca passou o braço esquerdo por Fynn e puxou o hïrzg com força. Com o mesmo movimento, ela meteu a mão no cinto da tashta e tirou a longa adaga da bainha no lombo. A Pedra Branca enfiou a lâmina entre as costelas e girou. A boca de Fynn abriu em dor e choque, e ela abafou o grito com sua boca aberta. Os braços empurraram a mulher, mas ela estava perto demais e os músculos do hïrzg já fraquejavam.
Tudo estava acabado, embora tenha levado alguns instantes para o corpo de Fynn se dar conta.
Quando ele parou de lutar e desmoronou nos braços da Pedra Branca, ela deitou o hïrzg na cama. Os olhos estavam abertos e encaravam o teto. Ela tirou duas pedras pequenas de uma bolsinha enfiada entre os seios e colocou sobre os olhos de Fynn: o seixo claro que Allesandra lhe dera sobre o olho esquerdo, e sua própria pedra — aquela que ela carregava há tanto tempo — sobre o olho direito. Deixou que os seixos ficassem ali enquanto tirava a tashta ensanguentada e jogava na lareira, conforme lavava o sangue das mãos e braços na própria bacia do hïrzg e vestia rapidamente a tashta que deixara no outro cômodo. Finalmente, ela tirou a pedra do olho direito, recolocou-a na bolsinha e enfiou o peso familiar debaixo da gola baixa da tashta. Pensou já ser capaz de ouvir Fynn berrar ao ser recebido pelos outros...
Então, em silêncio a não ser pelas vozes em sua cabeça, a Pedra Branca fugiu pelo caminho de onde veio.
Ela ouviu o grito aterrorizado do pobre Hamlin assim que chegou aos corredores principais, e os berros de ordens apressadas dadas pelos offiziers dos gardai enquanto corriam para os aposentos do hïrzg.
A Pedra Branca deu as costas e saiu correndo do palácio.