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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MALDIÇÃO DE ANNE / Dama Beltrán
A MALDIÇÃO DE ANNE / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Londres, 14 de outubro de 1882, residência Moore.
Anne se olhou no espelho e suspirou.
Ela não queria, nem deveria participar de uma festa depois do que aconteceu, mas seus pais prometeram que seria a última vez que a obrigariam a fazer algo parecido. Desde que soube, fez tudo em seu poder para que Mary ocupasse seu lugar. Até fingira um tornozelo torcido! Mas foi inútil. Seus pais descobriram a mentira rapidamente e novamente rejeitaram a ideia de sua segunda filha acompanhando a terceira porque eles não queriam que ela se tornasse, novamente, o centro de qualquer conversa social. E eles não estavam errados... se alguém ousasse contradizê-la em alguma conversa sobre medicina, Mary se tornaria uma loba e acabaria chamando a todos aqueles que a contrariaram: bando de corpos sem cérebro. Apesar da explicação, ainda achava que estavam errados. Era preferível que Elizabeth sofresse um choque momentâneo pela reação de Mary, a ser constantemente humilhada pela sua presença. Porque a culpa pela transformação de Elizabeth ela dera, apenas dela e da maldição que padecia.
Desde que todos finalmente aceitaram sua existência, Elizabeth deixou de ser uma menina doce e terna para se tornar uma mulher frívola, descarada e ousada. Essa mudança se devia à falta de pretendentes. De fato, enquanto suas outras irmãs não estavam procurando um homem para casar, porque no caso das gêmeas eram muito jovens e Mary por ser fria como um bloco de gelo, Elizabeth usava sua maravilhosa beleza e audácia para encontrá-lo prontamente. No entanto, ela não conseguia o resultado desejado porque, depois do que aconteceu aos dois noivos de Anne, nenhum cavalheiro se atrevia a cortejar uma irmã Moore por medo de morrer...

 

 

 

 

 

 

Anne continuou a se olhar no espelho enquanto se lembrava de seus anos de infância. Fora muito feliz naquela época. Como qualquer criança, ela só se concentrava em atender a professora contratada pelos pais, cumprir as regras da casa e pintar. Sim, seu único dom, porque era muito desajeitada em todo o resto, era pintar. Portanto passava dias e dias apreciando a paz que seu jardim oferecia em dias de sol, enquanto pintava milhares de paisagens imaginárias em suas telas. Tudo estava indo bem até a puberdade chegar. Qualquer mulher a dominaria com integridade e bom senso, mas ela era incapaz de fazê-lo. Como deduziu, aquele sangue cigano que corria em suas veias era a causa de tudo. Ele queimava. Sim, a queimava tanto que houve momentos em que a dor era tão insuportável que ela se jogava no chão chorando. Por que sua natureza cigana era tão cruel? Por que era incapaz de controlá-la? Com o passar do tempo, aceitou e assimilou essas

mudanças nela. Mas nessa nova vida, Anne Moore deixou de ser uma menina para se tornar uma mulher com apenas um desejo: sedução. Ela se sentia tão adulta, tão radiante, tão sensual que, toda vez que andava por Londres e observava homens admirando-a, sua sexualidade brotava de dentro como uma flor abrindo suas pétalas. Por causa disso, uma tarde, enquanto suas irmãs apreciavam um piquenique, sua mãe a arrastou para a sala e decidiu confessar o que mantivera em segredo durante os dezessete anos de casamento.

—Seu avô, meu pai, adoeceu -- Sophia começou a dizer quando as duas se sentaram no sofá perto da lareira, -- e nenhum médico queria comparecer, exceto o bondoso Dr. Randall Moore. Eu sei que, desde que ele entrou na carruagem, não conseguia tirar os olhos de mim, como nem eu dele. Muitas vezes me pergunto como ele foi capaz de descobrir sobre a doença, se não prestou atenção -- ela continuou sorrindo. A atração que tivemos foi instantânea. Ele olhou para mim, eu olhei para ele e o amor nasceu.

—Realmente? Foi tão fácil? -- Ela perguntou com espanto.

—Já disse que as mulheres da nossa raça têm o dom de sonhar com o homem da nossa vida? -- Anne negou com um movimento suave da cabeça. —Bem, eu o vi por muitas noites no mesmo sonho: Ele aparecia entre as chamas de um fogo, o que para nós significa amor e paixão,

estendia a mão e.... bem, o resto pode imaginar -- explicou, desenhando um enorme sorriso.

-- Ainda não entendo o que isso tem a ver com a maldição que fala -- disse ela enquanto esfregava as mãos.

-- Desde aquela noite, seu pai e eu nos encontrávamos escondidos. Nem meu pai nem minha avó aceitaram a presença de um gajo, exceto para serem curados quando a feiticeira de nossa aldeia não era capaz de curá-los. Na primeira noite em que me entreguei de corpo e alma a seu pai, ele me pediu para fugir com ele, casar e ser a Sra. Randall para sempre. Durante vários dias pensei nessa proposta... -- Ela suspirou. Então aconteceu algo que me fez tomar uma decisão mais cedo do que eu esperava.

—O que aconteceu? -- Anne perguntou com expectativa.

—Minha avó paterna, Jovenka, arranjou um casamento para mim. Ela queria que me casasse com o filho de outra família cigana para que, segundo ela, o sangue não fosse contaminado.

—Ela sabia que estava se encontrando com o papai, certo?

—Sim, receio que nos descobriu... -- disse tristemente. -- Por essa razão, na noite seguinte, aceitei sem hesitação a proposta de Randall.

—Foi ela quem a amaldiçoou? Os procurou? Como fez? -- Ela perguntou sem respirar.

—Nós ficamos fora de Londres por um mês. Seu pai tinha

economizado o suficiente para alugar uma pequena casa e ficamos lá por algum tempo. Mas seu trabalho exigiu e tivemos que voltar. Quando me apresentou à sociedade, porque todo mundo estranhara que ele finalmente encontrasse uma esposa...

—Como estranharemos se Mary encontrar um homem que a aceite? -- Interveio Anne alegre.

—Implorei para que não revelasse minhas origens.

—Por que fez uma coisa dessas? -- Disse, se levantando. --

Rejeita seu sangue?

—Não! Jamais rejeitaria! ?Defendeu-se, se levantando também. -- Mas não era sensato, na época, declarar que um homem como Randall, com a reputação que estava sendo forjada depois de tantas dificuldades, acrescentasse que sua esposa era cigana. Parecia mais apropriado dizer que era filha de um burguês.

—O que aconteceu depois? -- Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

?Uma noite, nos preparávamos para uma reunião com outros médicos. Sabe, aquelas que Mary tanto ama e eu não suporto nem dez minutos. Estava de pé na porta, esperando pelo seu pai que tinha ido pegar seus óculos. Senti um forte vento ao meu lado, mas ignorei até que, momentos depois, percebi uma presença. Muito lentamente me virei para o

jardim e.... lá estava minha avó Jovenka. Ela olhou para mim com tanta raiva que notei como sua fúria perfurava meu corpo.

—O que ela disse? -- Anne insistiu, olhando para a mãe.

—Sem falar, me pegou pela mão e puxou com força. Queria me afastar da vida que escolhi. Mas naquele momento seu pai apareceu e me tirou de suas mãos. «Ela fica comigo! " -- Ele gritou.

—O que Jovenka fez? ?Insistiu.

—Sorriu com tanta maldade que me deixou congelada --

recordou, acariciando os braços como se o frio tivesse voltado para ela. --

Ela fechou os olhos e começou a evocar as almas ruins. Depois daquele cântico infernal, cuspiu no primeiro degrau da escada, curvou-se, fez vários círculos com sua saliva e disse: «Eu a amaldiçoo, Sophia. A amaldiçoo por rejeitar quem é, por negar o sangue que corre em seu corpo e por se tornar a mulher de um gajo. E para que a dor seja mais duradoura e cruel, não sofrerá essa maldição, mas sim a mais velha de suas filhas. Ela, se quiser lutar contra a vida que a espera, terá que se casar com um cigano, desta forma assumirá que a única verdade que existe no mundo é o poder da raça e do nosso sangue» -- relatou.

—Como? O que é isso de que devo casar com um

...? -- Anne apertou os lábios para não mostrar à mãe a negação que sentia em relação àquela palavra. Em nenhum momento de sua vida pensou que seu

futuro seria em um acampamento cigano. Nem muito menos se imaginava vivendo em uma carroça daquela maneira e de se tornando a esposa de um nômade. -- O que o papai fez?

—Sabe como é.... -- Disse com um leve sorriso. —Ele não acreditou nem acreditará nesse tipo de rituais ou feitiços, por isso me fez prometer que nunca diria o que aconteceu naquela noite. No entanto, aqui me tem, quebrando uma promessa.

—Por que faz isso, mãe? Por que confessa isso para mim agora?

—Porque tem meu sangue, Anne -- ela disse, voltando para o sofá, -- e eu vejo como ele a altera cada dia que passa.

E isso era verdade. De uns tempos para cá, ela sentia com muita força certa necessidade que não entendia. Se sentia como um campo cheio de orquídeas na primavera ao notar os primeiros raios do sol da manhã. Suas emoções, seus sentimentos sobre o mundo ao seu redor haviam se tornado, em pouco tempo, irracionais e incorretos. Quantas vezes olhou para um homem com indiscrição? Por que quando se contemplava no espelho, queria exaltar seu erotismo?

—Somos e seremos selvagens -- esclareceu Sophia ao ver sua filha franzir a testa. —Nascemos da Mãe Natureza e, como tal, só buscamos a liberdade de amar. Mas quero avisá-la, antes que algum cavalheiro ocupe seu coração, que não será fácil lutar contra essa maldição. Não sei o que

acontecerá, juro, mas não tenho dúvidas de que sofrerei quando a ver sofrer.

—Realmente acredita que estou amaldiçoada e que terei que casar com um cigano para fazer essa maldição desaparecer? Não seriam, como o papai disse, palavras sem sentido e que apenas expressaram semelhante estupidez para proporcionar medo? -- Ela falou enquanto se sentava ao lado da mãe.

—Não, Anne. Minha avó nunca evocaria almas ruins para me assustar -- disse, acariciando seu rosto jovem. -- Acredito nessa maldição, a única coisa que tento descobrir é como se livrará dela sem ter que se casar com um cigano.

Como ela poderia se apaixonar por um cigano? Como poderia abandonar uma vida confortável para transformá-la no oposto? Jamais rejeitaria a mistura de seu sangue, mas nunca aceitaria viver como eles. Por essa razão, decidiu que a única maneira de lutar contra essa parte selvagem era se trancar em casa e deixar que os anos passassem. No entanto, seu problema cresceu e cresceu a ponto de atingir uma loucura sem precedentes. Aos 22 anos ela decidiu enfrentar essa possível maldição. Começou a sair, aparecer nas festas em que era convidada e aproveitar tudo aquilo que não tinha aproveitado por ter se submetido ao isolamento. Durante essas celebrações, sua atitude era muito parecida com a de Elizabeth: ela conversava com os convidados sem se importar com a

classe social a qual pertencia, aceitava danças até mesmo dos homens menos apropriados e não evitava os olhares daqueles que a observavam. Só deixava as festas quando seus pés doíam tanto que não suportaria uma dança mais. Naquela época, ela conheceu Dick Hendall, um burguês bonito com quem se encontrou em muitas ocasiões. Primeiro, houve alguns olhares discretos, depois algumas conversas e acabaram ficando nas áreas mais escuras dos jardins. Dick era um verdadeiro sedutor e a transformou em uma mulher apaixonada e desinibida. Cada vez que estavam sozinhos, ela se apaixonava não apenas pelas palavras bonitas, mas também pelos beijos e carícias que a deixavam tremendo. Nunca imaginou que o cortejo de um homem em relação a uma mulher era tão enganador e assim acabou cedendo àquela paixão que ambos mantinham em segredo. Depois de vários encontros de amor, Dick propôs casamento argumentando que não tinha uma mulher no mundo que pudesse amar tanto. Naquele momento e prisioneira da felicidade, Anne aceitou sua proposta, esquecendo, novamente, a maldição que sua mãe havia comentado.

Na tarde em que seu belo Sr. Hendall apareceu na residência dos Moore para formalizar a proposta de casamento, ela estava tão nervosa que mal conseguia ficar sentada por mais de três segundos. Andou pelo corredor esfregando as mãos enquanto esperava que um dos pais saísse do escritório e reivindicasse a presença dela. Nesse ir e vir ao redor da casa, rezava para que

sua mãe, porque seu pai não acreditava em maldições ou feitiços, esquecesse a ideia daquele encantamento familiar. Desperdiçou quase sete anos de sua vida acreditando nessa insensatez e esperava que todos aceitassem, de uma vez por todas, que não havia maldição. Uma hora depois da chegada de Hendall, sua mãe abriu a porta e chamou por ela. Quando entrou, pôde ver a emoção nos olhos de Dick. Seus pais aceitaram o compromisso e, a partir daquele momento, ela se tornou noiva do sr. Hendall.

Nada poderia deixá-la mais feliz ou mais orgulhosa de si mesma. Não só se casaria com o homem por quem estava apaixonada, mas, com essa atitude, tinha abolido a estupidez de que estivesse amaldiçoada.

Foram dias muito felizes para a família. Suas irmãs se uniram nessa alegria, ajudando-a a procurar um vestido de noiva e a elaborar a lista de convidados. Até seu pai se unia, toda vez que seu trabalho permitia, àquelas divertidas reuniões de mulheres. A única pessoa que não compartilhava esse estado de euforia coletiva era sua mãe. Desde que Dick saíra de sua casa, ela permaneceu em silêncio, esquiva e misteriosa. Anne, furiosa com tal atitude inadequada, teve a audácia de censurá-la por ter passado toda a sua juventude assustada por uma mentira e que demonstraria, com o seu casamento, que estava errada e que não precisaria se casar com um cigano para ser feliz. Sophia relutantemente concordou que tudo o que pensara sobre seus ancestrais era uma mentira e que nenhum de seus parentes

tinha a habilidade de amaldiçoar.

Os dias passaram e, pela primeira vez em muito tempo, a palavra maldição foi banida de sua mente. Mas tudo isso mudou na noite em que um criado de Dick apareceu para informá-los da trágica notícia...

Depois de ouvi-lo, ela teve que sentar no primeiro degrau da escada do corredor para não cair no chão. Lágrimas lutavam para brotar, enquanto ela se recusava a assumir o que havia acontecido. Foi seu pai quem decidiu descobrir o que havia acontecido e, depois de ouvir várias vezes a versão do criado, pegou o casaco e saiu com ele. Aturdida e petrificada, Anne sentiu os soluços de suas irmãs como se estivessem a vários quilômetros de distância dela. Tudo ao seu redor havia desaparecido; ela deixou de ser Anne Moore, a noiva de Hendall, para se tornar um fantasma sem nome ou destino. Esse estado de choque a manteve longe da realidade por três dias, o tempo que os pais de Dick definiram para velar seu corpo inerte. Mesmo assim, embora se encontrasse durante aqueles dias ao lado de um caixão, só reagiu quando duas pessoas vestidas de rigoroso luto colocaram o caixão no mausoléu da família. Então ela teve que aceitar a verdade: seu noivo havia morrido. Um cavaleiro experiente, que competira em cem corridas, caiu de um garanhão ao galopar em direção à sua casa.

Após o cortejo fúnebre, ela se trancou em seu quarto e não saiu até que vários dias depois seu pai entrou e lhe disse a versão do Dr. Flatman:

que a morte de Dick poderia ter sido evitada se ele não estivesse andando em um cavalo não castrado depois de ter ingerido tanto álcool como para embebedar a tripulação do maior navio de Londres. Apesar dessa descoberta, embora Randall tentasse convencê-la de que ela não tivera nada a ver com isso, Anne não deu ouvidos as razões. Durante um ano e meio manteve um luto severo pelo noivo morto e o pensamento de que estava amaldiçoada voltou à sua mente.

Uma vez que o período de luto passou, a mesa de seu pai foi novamente preenchida com convites. Nessa ocasião, não convocavam apenas a ela, mas também Mary, que completara vinte anos, e Elizabeth, que tinha dezenove. A resposta de Mary foi sempre negativa, no entanto, Elizabeth não estava disposta a deixar passar o tempo sem aproveitar os benefícios de ser a filha do famoso Dr. Randall Moore. Embora a garotinha sempre tentara chamar a atenção dos presentes, dificilmente conversava porque era jovem demais. Para a angústia de Anne, os olhares se voltavam novamente para ela. Ninguém estava falando sobre a noiva infeliz que, faltando um mês para o casamento, seu pretendente morreu, nem ouviu rumores sobre uma possível maldição. Até aquele momento, o segredo ainda estava protegido. Mas isso mudou depois da morte de Lorde Hoostun, o único filho do conde de Hoostun...

Ela não sabia nada sobre o menino, talvez porque nunca tivesse

saído da residência onde vivera desde que nascera. O único que conhecia era o conde viúvo. O velho a observava com atrevimento quando coincidiram em algum

evento

e

tentava,

por

meio

de

conhecidos,

iniciar

conversas. Logicamente, ela recusou essas abordagens, mas a fixação do viúvo por Anne tornou-se cada vez mais exaustiva.

Na noite em que o velho conde apareceu em sua casa para pedir um compromisso entre ela e seu filho, Anne gritou aos céus. Repetiu para seus pais até que estivessem cansados de que deveriam se lembrar da maldição à qual ela foi submetida e que se eles aceitassem a proposta matariam outra pessoa. Randall refutou todas as suas alegações lembrando-a de que a morte de Hendall aconteceu por ele mesmo ser um tolo e não devia se tornar egoísta porque suas irmãs sofreriam um futuro incerto por causa dela. Anne implorou a sua mãe, a única que ainda pensava sobre a existência dessa maldição, mas ela não a ouviu. Talvez porque, depois de confessar que perdera a virtude com Dick, achasse que era a última chance que a vida lhe ofereceria para encontrar um marido que não a rejeitasse por não ir inocente para o casamento. Como o viúvo esclareceu, nem ele nem seu filho se importavam com o que Anne fizera no passado, mas com o que lhe ofereceria no futuro próximo: a descendência de que tanto precisavam para que o título não voltasse à coroa. Apesar de seus gritos e pedidos, Randall concordou com o compromisso. Dois dias depois que os jornais anunciaram que estavam

noivos, o jovem Hoostun, a quem ela ainda não havia encontrado pessoalmente, morreu. Nesta ocasião, foi o próprio Dr. Flatman que a visitou para falar sobre o que aconteceu. Por mais que ele insistisse que fora algo fortuito, porque ninguém previu que a arma dispararia durante a limpeza, Anne se sentiu tão culpada que mergulhou em uma terrível depressão. Embora não tenha saído de casa por meses, rumores sobre a aura maligna que a cercava chegaram aos seus ouvidos. Eles a nomearam de tantas maneiras diferentes que não podia contar com os dedos das mãos. Até mesmo uma cartunista, que trabalhava para um jornal semanal, fez uma caricatura explicando que, se quisessem fazer com que um libertino que estivesse atrás de uma dama honesta desaparecesse, a melhor maneira de se livrar dele seria promete-lo a filha mais velha do Dr. Moore. Logicamente, os convites para eventos sociais desapareceram. A mesa de seu pai estava vazia e isso causou uma controvérsia familiar muito perigosa. Por um lado, Mary ainda não queria um marido, Josephine aperfeiçoava a habilidade militar com a qual nascera e Madeleine manteria sua excessiva timidez em segurança. Por outro lado, Elizabeth não queria adotar essa posição. Cada vez que o tema aparecia nas poucas reuniões de família em que participava, a repreendia que, por culpa dela, nunca alcançaria seu sonho: casar com um aristocrata. Anne, desesperada, decidiu se afastar, inclusive, da própria família. Se trancou em uma sala e passou muitas horas praticando aquilo que a fazia feliz quando

criança: a pintura.

Lentamente, se levantou do banquinho, alisou o vestido e caminhou até a porta. Antes de sair, olhou para Mary, que, como de costume, já estava na cama e lendo um novo livro sobre medicina.

—Não faça essa cara -- comentou ao descobri-la olhando para ela sem piscar. -- Certamente apreciará a bela cerimônia.

—Se tem tanta certeza, por que não vai? -- Ela a repreendeu com um pouco de raiva.

—Porque tenho um compromisso que não posso adiar --

comentou, levantando o livro que ela tinha em suas mãos. -- E parece mais apropriado me informar de como enfrentaremos doenças futuras do que evitar os olhares de desaprovação dos cavalheiros que irão a essa bendita festa. --

Além disso, não estou tão desesperada quanto Elizabeth. Não estou procurando por um homem para arruinar a minha vida.

—De

acordo

com

Madeleine,

acabará

casada

--

comentou Anne, mordaz.

—As visões de nossa irmã mais nova não me causam nenhuma preocupação. Só as aceitei para que você não saísse de Londres depois da morte do seu segundo pretendente. Embora eu já tenha ouvido que continua com essa ideia e que o papai vai se encontrar hoje à noite com a pessoa que irá levá-la para a sua amada Paris -- explicou ela enquanto se sentava na

cama.

—Não

posso

ficar

mais

aqui,

a

machucarei

--

disse Anne tristemente.

—Não penso o mesmo. Estamos todos muito felizes, exceto você.

—Não está ciente da atitude que nossa irmã tomou? Não vê o que eu vejo? Enquanto continuar assim, terminará mal e nunca encontrará um marido.

-- O que Elizabeth faz com a vida dela é problema dela, não meu. Ela deve estar ciente de que é burguesa e que não realizará o sonho de se comprometer com um aristocrata. O que acho insuportável é que se culpe por isso. Se ela usasse alguma outra coisa em seu cérebro, em vez de se olhar tanto no espelho, perceberia que tem um dom tão precioso que qualquer homem, seja ou não um aristocrata, cairia a seus pés. Mas, felizmente para ela do que para você, é mais fácil culpar os outros pela imprudência que ela faz diariamente.

—E a maldição? -- Anne perguntou, se aproximando da cama da irmã.

—Isso é estupida! Pelo amor de Deus, realmente acredita nela?

—Depois das mortes de...

—Eles eram ineptos! Hendall era tolo por andar bêbado em um garanhão, o pobre Hoostun não tinha cérebro e seu pai acreditava que,

casando-o com uma mulher saudável, ele resolveria o problema. Além disso, você mesma testemunhou a impaciência do conde. Qualquer homem honesto teria gritado aos céus quando nossa mãe confessou que não guardou sua virtude e o que ele disse?

—Que ele não se importava com o que fizera no passado, que a única coisa que lhe interessava era que seu filho tivesse filhos logo --

comentou Anne, corando com a frieza com que sua irmã expunha o fato de que ela entregara o tesouro de sua virgindade para Dick.

—Exatamente! —Disse Mary, ajoelhada na cama. -- Aquele homem só queria netos saudáveis para mostrar seu título nobre, mas ele se esqueceu da insanidade de seus próprios filhos. Talvez se ele a tivesse reclamado como sua esposa, teria tido uma chance.

—Ou ele teria morrido -- disse Anne um pouco com raiva.

—Bem, certamente seu coração não teria suportado uma noite ao seu lado. Se o sangue cigano, que nossa mãe diz que a enlouqueceu a ponto de não ter consciência do que fez com Dick, ainda está em suas veias, o velho teria morrido só de vê-la nua. —E depois dessa declaração, ela soltou uma risada.

—E você? Não tem sangue cigano? Porque sua mãe é a mesma que a minha -- ela recriminou.

—Como já ouvi, o sangue cigano nos incita a viver paixões e

desejos para com os homens e eu, por enquanto, não quero deitar nos braços de ninguém. Então, felizmente para mim, eu não deveria ter uma única gota. É mais provável que o Moore predomine, então só preciso encher minha mente com sabedoria e não ter sonhos absurdos. A castidade, minha querida irmã, deve ser o segredo de eu ser mais inteligente que você —disse ela com orgulho.

—Espero que encontre o homem que Madeleine viu e se torne mais luxuriosa do que eu fui! —Anne gritou enquanto caminhava em direção à saída.

—Outra maldição? —Rosnou Mary com sarcasmo.

—Se isso a fizer uma mulher menos instruída, sim, é outra maldição —declarou antes de fechar a porta.

Não suportava à frivolidade que Mary expressava quando falava sobre o problema que tinham com Elizabeth, ou como podia zombar dela por se entregar ao homem que amava, ou como ria daquela maldição. Ela era culpada por tudo o que aconteceu! Só ela! Mas logo o problema seria resolvido... naquela mesma noite, o pai conversaria com o homem que a levaria para longe de Londres e da sua família. Uma vez que a filha amaldiçoada deixasse de existir para a sociedade, suas irmãs recuperariam o que haviam perdido por sua causa e finalmente encontrariam a paz.

Quando apareceu no topo da escada, notou que Elizabeth estava

esperando por ela na entrada ao lado de seus pais. Sua irmã havia escolhido um vestido azul claro para a ocasião e, como sempre, sua escolha foi muito sábia. O tom do tecido não apenas destacava a cor dos seus olhos, mas também enfatizava dourado do cabelo. Anne sentia pena dela. Ela era linda demais para adotar esse comportamento tão inadequado. Se ela se tornasse uma mulher respeitável e deixasse seu dom ser conhecido, como Mary explicou, os homens cairiam loucamente a seus pés.

—Finalmente! —Exclamou ao vê-la. -- Por que escolheu esse vestido horrível? Não percebe que essa cor não a favorece? Se usar algumas joias de estanho, vai parecer uma verdadeira cigana e estarão lhe pedindo o tempo todo para que leia o futuro —disse antes de soltar uma risada.

—Elizabeth... —advertiu sua mãe. -- Deveria estar agradecida por sua irmã ter decidido acompanhá-la até a cerimônia, em vez de zombar dela.

—Anne, agradeço por me acompanhar, —Eli resmungou. —Mas preferiria a Mary.

—Elizabeth! —Seu pai gritou. -- Como pode ser tão pérfida?

—Não sou pérfida, pai -- ela disse, suavizando o tom. -- Sou realista e a única coisa real que vejo neste acompanhamento, é que ninguém se aproximará de mim porque estarei sob a proteção de uma amaldiçoada que também usa um vestido horrível.

—Elizabeth Moore! Está de castigo! -- Gritou Sophia, com raiva.

—Não vai me deixar ir? O que minha amiga pensará quando não me ver? Que boato os convidados vão espalhar quando não houver representação dos Moore no evento mais importante do ano? —Ela perguntou com rancor.

—Não se preocupe, mãe. Cuidarei dela —Anne apaziguou.

—Se observar algo inapropriado, se o comportamento de Elizabeth se tornar insuportável, não hesite em arrastá-la até aqui --

pediu Sophia, apertando os olhos. —Então me ocuparei para que mude sua atitude quando ela passar pela porta.

—Lembre-se, mãe, que o sangue cigano corre pelas minhas veias e, como a senhora fez na época, eu também procuro por um homem que me faça feliz —expos Elizabeth enquanto Shira a ajudava vestir o casaco.

—Meu sangue cigano me avisa que sofrerá por um longo tempo

—Sophia murmurou. —Enquanto a tristeza cobrira esse coração sombrio, não encontrará a luz.

—Por favor... —Anne interveio. —Não é hora de começar outra discussão. Certamente nada acontecerá e Elizabeth se comportará corretamente.

—Espero que sim —Randall sussurrou antes de pegar a mão de sua esposa e beijá-la para tranquilizá-la.

Depois que saíram de casa, Elizabeth subiu primeiro na carruagem, sentou-se no banco e olhou para Anne com os olhos apertados.

—Espero que não me envergonhe novamente.

—Eu? —Anne perguntou atordoada. —Se alguma coisa a envergonha, é o seu comportamento. Parece uma prostituta.

—Se não tivesse enterrado dois pretendentes, não teria que mostrar o decote para encontrar um marido.

—Madeleine disse que iria encontrá-lo —Anne lembrou.

—Sim, ela também disse que apareceria no caminho entre a nossa casa e a do Bohanm, e você viu um cavaleiro rondando aquela área?

—Deveria ter paciência e....

—Não tenho tempo! —Ela exclamou em voz alta. —Não percebe que estou prestes a completar vinte e dois? Estou muito velha!

—Mas...

—Não há mais, Anne. Os dias passam cada vez mais rápido, minha beleza desaparecerá, e se não encontrar um marido antes do final do ano, me tornarei uma solteirona amarga como você —ela disse antes de virar o rosto para a janela da carruagem finalizando a conversa.

Anne a observou em silêncio. Ela estava tão desesperada para alcançar seu propósito que, como Mary dissera, qualquer coisa poderia acontecer com ela, da qual se arrependeria pelo resto de sua vida. Mas,

felizmente, ela permaneceria ao seu lado naquela noite para não cometer nenhum disparate e, quando voltassem para casa, seus pais cuidariam dela. Só esperava que o capitão do navio aceitasse a proposta de seu pai e que partissem o mais rápido possível...

Depois

de

suspirar

profundamente,

colocou

as

mãos

involuntariamente no peito. Não entendia por que estava tão inquieta ultimamente. Talvez fosse devido à angústia que sentia por Elizabeth ou à ansiedade de descobrir de uma vez quando iria embora. Independentemente da razão disso, o latejar aumentou durante a viagem e seu sangue cigano, que congelara após a morte de Dick, recuperou a vida, como se indicasse que seu destino mudaria para sempre naquele dia....


I


Como já temia, a cerimônia nupcial não apenas consistia em acompanhar o futuro casal na igreja, mas depois tiveram que assistir à celebração que o Marquês de Riderland havia preparado em sua residência em Londres. Anne, cansada depois de muitas horas sem poder se sentar, decidiu se esconder e se apoiar atrás de um dos pilares que cercavam a sala. Aquele lugar isolado permitiria que ela continuasse observando sua irmã enquanto apaziguava a dor insuportável em seus pés. Incapaz de piscar, para não perder um único movimento de Elizabeth, notou que ela e sua amiga Natalie, agora Sra. Lawford, olhavam com desconfiança para o local da sala destinado para jovens solteiros. Anne silenciosamente amaldiçoou ao descobrir quem eram os possíveis protagonistas da conversa. Como Elizabeth poderia agir dessa maneira? Ela não tinha nem um pouco de dignidade? Os dois rapazes aos quais observavam não eram apenas mais jovens do que ela, mas também eram os filhos de dois importantes aristocratas londrinos. Isso confirmava que o problema de sua irmã era maior do que pensava. Quando as duas amigas olharam para outro lado, Anne contemplou silenciosamente aqueles dois jovens. O primeiro, exceto pela cor dos olhos, era uma réplica idêntica ao duque de Rutland. Até se assemelhava à retidão de sua grande corpulência. Como suas clientes comentavam, a quem ela retratava diante de

uma bela paisagem e com vestidos que nunca compraria por sua exagerada extravagancia, o belo adolescente tornara-se um dos solteirões mais cobiçados da cidade. Sendo o primogênito do duque, e o único homem, herdaria um legado que muitas jovens casadoiras estavam ansiosas por conseguir, embora, felizmente para ele, ainda não estivesse interessado em encontrar uma esposa com quem compartilhar essa herança, mas em terminar os estudos que acabara de começar. O segundo menino que Elizabeth observou por um momento foi Eric Cooper, o filho do barão de Sheiton. Um jovem alto, com olhos de safira e uma cor de cabelo incomum, já que naquele cabelo avermelhado, umas mechas loiras brilhavam como ouro. Outro candidato a marido, pelo qual não apenas as jovens suspiravam, mas também as mães delas. Porque, se o filho do duque tinha uma aura de respeito, seriedade e honestidade que intimidava qualquer um que se aproximasse dele, lorde Cooper assustava ainda mais com seu comportamento nobre. Ninguém se atrevia a espalhar um boato falso sobre ele. Sua honestidade excedia em muito a do homem mais honesto do mundo e, de acordo com as declarações das jovens que se fascinavam por serem retratadas, o futuro barão de Sheiton recusou, sem rodeios, mostrar uma vida de devassidão. Que mulher em sã consciência não sonharia em ter um marido dedicado apenas para agradar a sua esposa? Esse comportamento incomum entre os aristocratas de Londres se confirmava em qualquer evento social. Um dos exemplos mais

significativos dessa atitude fria e distante poderia ser notado no momento das danças. Ele nunca levava uma mulher para dançar, exceto a esposa de seu pai, sua irmã Hope, a filha do marquês de Riderland ou as do duque de Rutland.

Devido a essa atitude distante, cada vez que o jovem caminhava ao lado de um grupo de jovens casadoiras, os suspiros se tornavam tão profundos quanto os gemidos de tristeza.

Depois de refletir sobre os dois jovens, ela decidiu deixar a área onde estava e ir para os lugares que eram destinados para as senhoras idosas, que se cansavam durante a noite, ou para aquelas jovens que esperavam um generoso cavalheiro que as levasse para dançar. Ela estava na primeira opção, embora não tivesse chegado aos vinte e cinco. Mas não conseguiria ficar de pé por nem mais um segundo. Enquanto caminhava pelo amplo corredor formado pelas colunas e a parede, observava os convidados. Todos bebiam, sorriam, dançavam e falavam sem prestar atenção à sua presença, como se ela não existisse. Isso, de certa forma, a agradava. Dessa forma, não teria que oferecer desculpas absurdas sobre o comportamento esquivo que mantinha ou ouvir de novo a triste história da morte de seus noivos. A sociedade, em vez de falar sobre a habilidade que adquirira com a pintura e o que era considerado entre as damas da alta sociedade por seus trabalhos, preferia se alegrar nos piores momentos de sua vida. Embora isso não importasse depois dessa noite. Quando a pessoa que seu pai visitaria concordasse em levá-la em

seu barco, ela partiria. Desta forma, esqueceria quem era e iria se concentrar em quem queria ser: Anne Moore, a pintora.

Fora Dick quem lhe contara sobre a viagem a Paris durante os encontros românticos que tiveram. Ela sempre dizia que estava cansada de morar em Londres porque, por mais que tentasse, não conseguia encontrar seu lugar em uma cidade tão esquiva e orgulhosa. Claro, nunca disse a ele que uma parte dela, seu lado cigano, insistia para que viajasse de um lugar para outro e descobrisse novos mundos como se fosse uma nômade. No final, ficou evidente que seu sangue cigano era maior que o Moore...

Após a morte do filho do conde, relembrou todas as histórias que Dick contara sobre a cidade e acabou obcecada com um ponto: a sociedade parisiense era muito diferente da inglesa. Ninguém perguntava sobre o passado das pessoas. A única coisa que os interessava era a pessoa que havia chegado e jamais perguntariam o que aconteceu para que saísse de sua cidade. Essa nova visão da vida seria fabulosa porque, uma vez que pisasse em Paris, esqueceria a tragédia que vivera em Londres e se apresentaria como uma jovem artista que procurava ter sucesso na arte da pintura.

?Uma jovem artista ... ?suspirou para si mesma.

Ela não era mais tão jovem, mas uma grande pintora nasceu dentro dela e tudo se devia à morte de seu segundo pretendente. Algo bom despontou desse passado horrível!

Durante a depressão que sofreu após o episódio, ela se concentrou em pintar e desenvolver sua técnica. A única coisa que a fazia sair de casa, era visitar uma livraria onde comprava livros que explicavam como evoluir no dom que possuía desde criança. No início, representava apenas paisagens sombrias e tenebrosas, no entanto, com o passar do tempo, começou a ver luz e beleza nelas. Sua mãe, como recompensa por essa nova perspectiva, colocou as telas que ela chamava de belas na entrada da casa, permitindo que todos que as visitassem pudessem admirá-las. Uma dessas visitas foi o casal Flatman. O parceiro de seu pai queria descobrir como estava após o segundo transe. Mas não falaram sobre a enfermidade mental que sofreu porque a esposa do médico concentrou todas as conversas em sua maravilhosa habilidade. Durante o jantar, a Sra. Flatman decidiu pedir-lhe para retratar suas filhas porque, segundo ela, ambas tinham uma beleza semelhante à das deusas gregas. Ela aceitou o trabalho rapidamente, esperando que essa alternativa fosse benéfica para ela. E assim foi. Antes de terminar o segundo retrato das filhas do médico, havia confirmado uma série de outros pedidos. Quase todas as senhoras, que podiam pagar seu preço, exigiam seus serviços. Embora só pintasse mulheres, porque os cavalheiros não se atreviam a olhar para ela, no caso de envenená-los com os olhos, gostava daquele novo rumo que a vida lhe dera. No entanto, com o passar do tempo começou a se cansar de ir de um lugar para outro com o cavalete, das

conversas que as jovens lhe ofereciam e de retratar mulheres bonitas que escondiam uma maldade parecida com a de sua bisavó Jovenka.

Essa era a segunda razão pela qual queria se afastar de sua família. Além de libertá-los da maldição, poderia se dar uma oportunidade.

Não queria se tornar uma testemunha silenciosa das projeções maravilhosas que as moças que ela retratava apresentavam, ela queria ser a protagonista dessas experiências. Já havia assumido que seu sangue materno era mais poderoso que o do pai, que dentro dela havia uma mulher apaixonada que queria amar e ser amada e que, a cada dia que passava trancada, seus anos de vida eram reduzidos. O que sua mãe disse? Que deveria casar com um cigano para que a maldição desaparecesse, mas em nenhum momento explicou que não poderia manter relações com os homens. Logicamente, devido à reputação de seu pai, não pretendia encontrar amantes em Londres, mas os encontraria em Paris. Talvez... até... sim, poderia até se tornar mãe. Anne fechou os olhos e suspirou. Se conseguisse ter um filho em seu ventre, se conseguisse gerá-lo, ela o amaria e cuidaria dele até o fim de seus dias. Nunca diria ao pai sobre a existência daquele filho, de modo que ele não insistisse em se casar e se tornasse a terceira vítima da maldição. Nunca pensou nisso enquanto mantinha relações amorosas com Dick. Talvez porque era muito jovem ou talvez porque ele prometera que, até que eles se casassem, não deixaria sua semente dentro dela. Independente do motivo, não

se imaginou com uma criança em seus braços até que decidiu deixar a cidade que odiava. Só Paris poderia oferecer-lhe o que sonhava e desejava!

Quando estava prestes a chegar na área da sala a qual se dirigia, escutou vozes masculinas muito próximas a ela. Por causa do tom que usavam, não pareciam estar tendo uma conversa cordial, muito pelo contrário. Embora devesse ser discreta, Anne olhou para aquelas duas figuras masculinas que afastadas dos convidados. Um, sem dúvida, era o marquês de Riderland. Mesmo que estivesse de costas, o cabelo loiro e a altura eram seus traços mais característicos. No entanto, os olhos castanhos de Anne se fixaram no cavalheiro desconhecido. Suas costas eram tão largas quanto às do Marquês e diferiam pouco em altura. Suas pernas longas e torneadas estavam perfeitamente moldadas pelas calças. Eles pareciam duas figuras exatas, no entanto, o estranho usava um longo cabelo escuro preso em uma fita preta, de acordo com o tom do terno que usava. Anne, percebendo que ele começava a mover seu lindo corpo virando para o lado dela, começou a andar em direção às cadeiras, tirando rapidamente os olhos daquele lugar. Se repreendia Elizabeth por seu comportamento descarado, não poderia fazer exatamente o que estava recriminando. Mas a curiosidade em descobrir quem irritou o marquês em um dia tão importante para a família, fez com que ela lentamente virasse o rosto para eles. No momento em que viu as feições do estranho, estendeu a mão para o encosto da cadeira mais próxima e se

agarrou a ela com força. Eles eram da família, disso não havia dúvidas. Somente os Riderland poderiam ter aquela cor de olhos tão especial e rara. Como Elizabeth dissera, era uma característica muito típica dos Bennett. Mas Anne não fixou apenas os olhos no homem, mas continuou a observá-lo com ousadia. Sua mandíbula, forte e máscula, ostentava uma barba bastante espessa e comprida. Parecia que ele havia demitido seu valete anos atrás. Lentamente, e sem conseguir parar de olhá-lo, contemplou seu nariz aquilino, as rugas em sua testa e aquela forma de coração que mostravam seus lábios vermelhos como o carmim. Atordoada por esse comportamento tão atrevido, se colocou na frente da cadeira que estava segurando e se sentou. No entanto, seus olhos pareciam não ter percebido aquele constrangimento que percorria seu corpo e permaneceram presos no estranho, reunindo todos os detalhes daquele corpo tão másculo e magnético. Conseguiu rapidamente a resposta a uma das perguntas que se fez mentalmente; ele era um legítimo Bennett, apesar de ser moreno. Talvez fosse um sobrinho, um primo ou um tio jovem do marquês. Mas sem dúvida, um Bennett.

Estava tão encantada com ele, tão atraída por aquele corpo musculoso e sensual, que não percebeu que o observara por tanto tempo que acabaram cruzando seus olhares. No momento em que aquele estranho ergueu a sobrancelha direita, perguntando em silêncio para o que estava

olhando, Anne, ainda mais envergonhada, abaixou a cabeça. No entanto, percebeu que ele não tirara os olhos dela. Sentia como a olhava, como contemplava cada centímetro dela, e naquele exato momento queria que uma cortina de fumaça, como a usada pelos ilusionistas que atuavam no teatro, a cercassem para que pudesse escapar. Mas aquela névoa espessa não apareceu e

continuou

percebendo

o

escrutínio

daquele

homem

sobre

ela. Mereceu. Causara aquele constrangimento por ser tola. Como se atrevera a olhar para um homem assim? Não estava zangada porque Elizabeth fizera o mesmo com os dois jovens aristocratas? Bem, agora... quem ficaria chateado por sua atitude inadequada? Ela. Ela mesma ficou irritada com sua indiscrição e com a repercussão que sua atitude inconveniente havia causado.

Ela colocou as mãos no vestido, eliminou as poucas rugas que havia e respirou fundo para se acalmar. Como era a única culpada dessa indecência era, colocaria um fim nela. Muito lentamente, foi se levantando, precisava voltar para o lugar onde passara às últimas duas horas. Ninguém iria vê-la ali e esse homem pararia de olhá-la. Mas quando ergueu o rosto, quando seus olhos se dirigiram de maneira involuntária para o lugar em que ele estava, descobriu aterrorizada que continuava a observá-la. Suas pernas começaram a tremer, suas mãos estavam tão suadas que podia ver as manchas de suor em suas luvas e seu coração, que tinha parado de bater quando Dick morreu, começara a palpitar com tanta força que a obrigou a se balançar ao

ritmo dessas batidas. O que diabos estava acontecendo com ela? Por que estava tão paralisada? E.... por que sua temperatura subira? Desesperada, porque não havia palavra melhor para defini-la, virou-se, desviou os olhos daquele estranho e, ao dar o primeiro passo, esbarrou com uma mulher que conhecia há mais de vinte anos.

—Senhorita Moore, está bem?

—Milady —disse Anne, fazendo uma leve reverência. —Sim, muito bem, obrigada.

—Já vai? —A baronesa perguntou.

—Não, acabei de chegar. Estava prestes a sentar -- mentiu.

Estendeu a mão para a idosa e ajudou-a a ficar em pé na frente da cadeira ao lado da que ela havia permanecido.

—Então me acompanhe, se não tiver nada melhor para fazer --

pediu à filha mais velha de seu bom amigo Randall.

—Será uma honra —Anne respondeu, se acomodando novamente.

—Está aqui há muito tempo? Não a vi antes.

—Desde o início da tarde, milady. Como sabe, Elizabeth é a melhor amiga da atual esposa do Sr. Lawford e não poderíamos perder um dia tão especial —explicou lentamente.

—Então o fato de não ter ouvido falar a seu respeito até agora é

porque passou esse tempo cuidando da integridade de sua irmã em vez de aproveitar a festa, estou errada? —Vianey perguntou com grande confiança.

—É muito astuta, baronesa —disse Anne, esboçando um leve sorriso.

—Bem, tenho que informá-la que não serve como dama de companhia -- ela disse de forma repreensiva. —Caso não tenha notado, Elizabeth decidiu dançar com Lorde Lorre e posso assegurar-lhe que esta companhia não é muito apropriada.

Anne, diante do comentário da baronesa, olhou para a pista de dança e confirmou suas palavras. Elizabeth dançava e sorria para seu acompanhante. Como aceitou dançar com ele sem pedir permissão? Estava tão desesperada para ignorar os protocolos sociais? E o que ela fez para impedir isso?

—É só uma dança...—Anne murmurou para a baronesa. —Tenho certeza de que quando eles terminarem, ela virá até mim e tudo será resolvido.

—Sua irmã, querida, não deixará nada resolvido. Não sei se seus pais são conscientes da atitude inadequada que a terceira de suas filhas tem adotado, mas o resto da sociedade sim -- disse ela severamente. -- Seria uma lástima se, após o tempo que o seu pai levou para se posicionar onde está, a má reputação de uma de suas filhas o destrua.

—Milady, com todo o respeito, devo dizer que está dramatizando uma atitude afável. Minha irmã não adota uma...

—Como definiria o comportamento de uma jovem que, desesperadamente, tenta se casar com um aristocrata, Anne?

O fato de que aquela mulher a chamava pelo primeiro nome a deixou aturdida. Era verdade que seus pais e a baronesa de Swatton tinham um relacionamento muito íntimo depois que seu pai salvara seu amante, o administrador Arthur Lawford, de uma terrível doença. Mas nunca se dirigiu a ela com tanta familiaridade. Isso só poderia indicar que estava muito preocupada com a fama que Elizabeth poderia adquirir e o drama que acarretaria à sua família.

—Irá passar... -- Anne admitiu depois de respirar fundo.

—Acredita mesmo que depois que sair da cidade a sua irmã irá mudar? —Ela retrucou, olhando-a sem piscar.

—Como sabe...? —Tentou dizer.

—Sua mãe e eu, como bem sabe, somos muito boas amigas e me contou que decidiu ir para Paris pelo bem de suas irmãs —confessou.

—Não só por isso, milady, mas também pelo desejo de evoluir como artista. Não posso passar o resto da minha vida retratando damas, isso vai me destruir de novo e, como bem sabe, depois do que aconteceu no passado, só fui capaz de sair daquele estado horrendo através da pintura.

—Então... nenhum cavalheiro tentou se tornar seu terceiro pretendente, certo? ?Vianey estava interessada.

—Não. Nenhum e também não quero que o façam. Cheguei à conclusão de que quero ficar sozinha. Não quero um homem ao meu lado que esteja continuamente verificando o que farei durante o dia. Preciso de liberdade para fazer o que me agrada -- disse ela com as mesmas palavras que Mary usou quando sua mãe insistiu, três semanas atrás, que levantasse os olhos dos livros e os colocasse em algum homem.

—Entendo... -- a baronesa murmurou, desviando o olhar de Anne e o prendendo no outro extremo da sala. Para sua surpresa, descobriu que o irmão do marquês, o visconde de Devon, continuava observando o lugar onde estavam. Muito a contragosto, tinha certeza de que aquele belo cavalheiro não a contemplava, mas sim a sua companheira. Rapidamente voltou seus olhos para a filha mais velha de Randall e fez uma expressão de aborrecimento com a cor daquele vestido. —Paris não me agrada. Lá os cônjuges são infiéis.

—Os desta cidade não? —Anne perguntou, levantando as sobrancelhas castanhas.

—Os daqui também, mas menos do que os dessa cidade --

continuou em seu discurso. ?Além disso, nem tudo está perdido. Talvez apareça um cavalheiro que não tenha medo de enfrentar a morte e queira

descobrir o que está escondendo sob este horrível vestido laranja. Sua mãe não a proibiu quando a viu? Porque se fosse minha filha, teria feito isso em pedaços.

—Minha mãe, como bem sabe, respeita as decisões de suas filhas. Por essa razão, me permitiu usar este lindo vestido de seda laranja e me apoia na decisão de partir para Paris —disse sarcasticamente.

—Bem, sendo esse o caso, devo avisá-la para se concentrar, durante o tempo que permanecer aqui, na atitude de sua irmã, não acho que minha querida Sophia deseje ouvir conversas sobre a posição que sua terceira filha ocupará se desejar manter um relacionamento com o senhor Lorre.

—A qual posição está se referindo? —Ela perguntou, se virando para a baronesa.

—Não ouviu os últimos rumores sociais, certo?

—Como deve compreender, não estou disposta a prestar atenção a diálogos absurdos sobre o que a aristocracia faz ou não —disse seriamente.

—Nesse caso, farei um resumo. Aparentemente, os barões de Pherguin, os pais de Lorde Lorre, fizeram tudo ao seu alcance para trazê-lo de volta da Espanha. O muito ingrato dilapidou mais de dois terços da herança familiar e foram obrigados a concordar com um futuro casamento com a filha do casal Bakalyan, os donos da segunda mais poderosa empresa de ferro. Assim que o acordo se tornar público, o único lugar que o ilustre

Lorde Lorre poderá oferecer é o de uma amante. Sua linda irmã quer se tornar amante de tal homem? Sophia também respeitará essa alternativa para sua filha? —Disse de má vontade.

—Tenho certeza de que Elizabeth não sabe do que aconteceu, milady. Caso contrário, ela teria se recusado a conceder aquela dança —murmurou enquanto observava o casal sorridente. —Mas não se preocupe, assim que a peça terminar, falaremos sobre isso e verá como tudo foi um grande engano.

—Espero que a coloque em seu lugar —disse a baronesa, levantando-se depois de descobrir que Arthur estava indo em sua direção. --

Seria horrível que tal comportamento selvagem que resolveu ter, a levasse a se perder. Testemunhei catástrofes irreparáveis sobre a honra de uma mulher.

—Como eu disse, tenho certeza que foi um engano —disse Anne, se levantando também.

—Bem, confio em seu bom senso, Anne. Não gostaria de testemunhar a terrível humilhação que seus queridos pais suportariam —ela insistiu.

—Não seria a primeira vez... —murmurou para si mesmo, mas a baronesa ouviu.

—Que seus noivos tenham morrido não é tão importante quanto ver arruinada a honra de sua irmã. E agora, se me der licença, tenho que me

encontrar com Arthur. Estará cansado e quererá ir embora.

—Boa noite, milady —disse Anne, com uma leve reverência.

—Boa noite, Anne e lembre-se de uma coisa, a esperança é a última coisa que se perde.

—Se está se referindo a Elizabeth, não se preocupe, tenho certeza que tudo terminará em breve.

—Não me refiro a essa harpia disfarçada de menina, mas a você. Não perca a esperança de viver aqui o que sonhou, porque prevejo que sua vida mudará muito mais cedo do que imagina —disse ela antes de caminhar lentamente para o local onde o administrador a estava esperando.

Enquanto tentava se acalmar, observou a baronesa caminhando em direção ao amante sem se importar com a fofoca dos outros. Era ilógico que uma mulher como ela, que mantinha um caso com o tio do marido de Natalie há cinco décadas, notasse o comportamento infantil de Elizabeth. Mas isso só fortaleceu o que já havia concluído: que a aristocracia estaria sempre acima do resto do mundo. Incapaz de aplacar a raiva que sentia, Anne franziu o cenho e silenciosamente amaldiçoou que seus pais não tivessem escolhido Mary para ocupar seu lugar. Certamente, depois de ouvir as palavras da baronesa, ela teria se levantado, ido até os dois e, depois de esbofetear aquele rosto masculino bem-cuidado, teria agarrado Elizabeth pelo braço para arrastá-la para fora da residência do marquês. No entanto, ela, estava

paralisada olhando para as expressões coquetes de Elizabeth e rezando para que as cordas de todos os violinos arrebentassem e o baile acabasse de fato.

«Mais alguns minutos...", pensou enquanto começava a caminhar para aquela área onde queria se esconder até que a música terminasse. Se já era penitência suficiente suportar que todos a evitassem e sua irmã não se comportasse adequadamente, não queria acrescentar, a essa lista, que os convidados percebessem que ela estava zangada, muito zangada. Certamente sairiam correndo gritando que a bruxa queria matar outra pessoa. Mas quando ia se colocar atrás daquela grande coluna que a protegeria até que pudesse pegar sua irmã e fazê-la voltar para casa, tornou a sentir uns olhos fixos nela. Com medo, porque estava ciente de quem era a única pessoa que teria a coragem de fazê-lo, levantou o queixo lentamente e teve a confirmação. Lá estava ele, aquele estranho de olhos azuis, a observando. Sem tirar os olhos dela, levou o copo que tinha na mão até a boca, bebeu devagar e, depois de tomar aquele gole, lambeu lentamente os lábios. Aquele ato tão descarado causou um ardor tão imenso em Anne que ela quase se ajoelhou. Seu coração batia descontroladamente de novo, suas mãos suavam novamente e uma dor estranha apareceu em seu abdômen. O que diabos estava errado com ela? Seu sangue cigano tinha ressurgido das cinzas ao vê-lo? O que havia de especial naquele homem? Por que estava tão alterada? Anne respirou fundo e, embora suas pernas não respondessem como desejava, se escondeu atrás do pilar, mas

a saia de seu vestido laranja, uma cor bonita, mas não muito discreta, derramava de ambos os lados como se vestisse aquele pilar de mármore. «Se existe, me ajude a sair daqui», ela pediu fechando os olhos.

—Mais uma vez se escondendo? —Elizabeth perguntou.

—Elizabeth! —Exclamou surpresa.

—O que? —Ela retrucou, olhando-a com espanto. —O que aconteceu? Alguém riu do seu vestido horrível? —Ela zombou.

—Temos que ir. Temos que sair daqui... agora! —E, como havia pensado, agarrou o braço dela e arrastou-a para o corredor.

—Tenho que me despedir de Natalie! -- Ela disse uma e outra vez.

—Amanhã envie uma missiva para ela, se desculpe dizendo que não queria que ela perdesse mais tempo e que partiu porque já era muito tarde

—ela indicou sem olhar para ela.

Seu casaco. Tudo o que ela precisava para sair de lá era o casaco. Mas se o mordomo demorasse muito para oferecê-lo, sairia sem ele.

E enviaria Shira para buscá-lo no dia seguinte.

—Mas Anne! —Insistia Elizabeth. —Não. Não está correto agir...!

—Está depois do que fez! Sabe o que a Baronesa de Swatton sugeriu para mim enquanto dançava com Lorde Lorre?

—Vindo dela, qualquer coisa —disse Eli divertida.

—Que os homens não te veem como uma futura esposa, mas como amante —disse ela sem hesitar.

—E é isso que uma mulher que esteve em um relacionamento secreto por décadas com um administrador de fama suspeita disse? --

Trovejou Elizabeth, ofendida.

—Se ela pensa assim, o resto do mundo também. Ela só quer nos informar o que acontecerá se não reagir em breve.

Quando ela se virou para pegar o casaco que um mordomo finalmente oferecia, seu corpo endureceu como uma tábua. Ele a seguiu. Aquele homem a estava seguindo. Por que ele fez isso? Que interesse tinha em relação a ela?

—Ouça uma coisa, Anne Moore —disse Eli, apontando o dedo para ela. —Nem pense em contar aos nossos pais tanta tolice. Não procuro ser amante de ninguém, mas a esposa de alguém. Talvez tenha desistido quando seus dois pretendentes morreram, talvez a tolice daquela maldição de nossa bisavó a tenha assustado, mas não a mim. Não quero me tornar uma solteirona e pretendo me aproveitar do físico que tenho para encontrar um homem para casar.

—O físico não é importante... —Anne murmurou assombrada.

—Para se tornar a esposa de um aristocrata, sim —disse ela antes

de se virar e sair da residência com o queixo tão alto quanto uma duquesa.

Anne, antes de dar um passo à frente e correr atrás de Elizabeth, virou-se para o lugar onde ela tinha visto o homem e descobriu que ele ainda estava lá, encostado na parede, naquele impecável terno preto, mostrando uma aura de mistério e olhando para ela sem piscar. Atordoada, pela forma tão ousada de observá-la, se virou e correu em direção à saída. Uma vez que entrou na carruagem e está partiu, seus olhos perfuraram involuntariamente a entrada da residência do Marquês e, quando observou a figura encostada no batente da porta, seu sangue cigano começou a ferver queimando a pele.

II


Quando Randall chegou à sua casa, depois de falar com o visconde de Devon, foi diretamente para o corredor norte, onde ele e sua esposa costumavam tomar o café da manhã com tranquilidade antes de suas filhas acordarem. Ao entrar, Sophia, como eles combinaram antes de ele partir, estava esperando sentada em frente ao calor da lareira. Ela havia soltado os cabelos e aquela esteira de fios negros e lisos chegava à cintura. Lentamente Randall foi em sua direção, colocou-se atrás dela e lhe deu um beijo carinhoso na cabeça.

—Ele se recusou a levá-la, certo? —Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

—Sim, recusou, apesar de ter lhe dado o envelope --

respondeu. Se virou gentilmente e sentou-se ao lado de sua esposa. —Nem o olhou... —ele acrescentou depois de respirar. —Não posso culpá-lo, Sophia. Porque o culpado de tudo sou eu... —continuou aflito.

—Não tem nada a ver com esse rechaço. As coisas acontecem por uma razão e estava previsto que ele não aceitaria essa proposta, mesmo que tenha lhe oferecido um milhão de libras —assegurou.

—Não sei se estava ou não —disse ele, descansando a cabeça no ombro dela. —A questão é que ele se recusou completamente depois de falar

sobre a maldição de nossa filha.

—E, porque contou a ele sobre isso? —Sophia retrucou, pulando para cima. Ela olhou para ele e, vendo a tristeza naquele rosto que ela amava, relaxou.

—Não sei... —Randall disse esfregando o rosto em desespero. --

As palavras saíram da minha boca sem que pudesse controlá-las e quando eu quis parar, já era tarde demais.

—O que disse... exatamente? -- Ela exigiu saber enquanto se colocava na frente dele. Se ajoelhou, colocou as mãos nos joelhos de Randall e olhou para ele com muito carinho.

—Quando ele se recusou a navegar com uma mulher em seu navio, pensei que, explicando o seu passado, mudaria de ideia.

—E? —Sophia insistiu.

—Eu confessei sua verdadeira origem, o que sua avó fez, o sonho que teve no nascimento de Anne e a morte de seus pretendentes —disse ele sem olhar para ela.

—E? —Ela continuou insistindo.

—E, claro, ele se recusou ainda mais. Que capitão de navio levaria uma mulher amaldiçoada entre sua tripulação?

—Essa foi a razão pela qual ele rejeitou? Essas mesmas palavras saíram da sua boca? —Ela insistiu novamente.

—Não. O visconde não se referiu à maldição, mas à ideia maluca de tirar nossa filha de nós.

—O que aconteceu quando contou sobre a morte dos pretendentes de nossa filha?

—Pensei que me chutaria para fora de sua casa —ele disse com pesar. —Primeiro ele ficou pálido, como se não acreditasse em minhas palavras, então, quando expliquei que nenhum homem se aproximava dela e que ele pode confirmar isso na festa, me culpou pela infelicidade de nossa filha. Segundo o visconde, foram nossas escolhas equivocadas que provocaram essa catástrofe.

—Nós não temos nada a ver com a aceitação de Anne para o Sr.

Hendall. Ela mesma decidiu o que queria com seus atos inapropriados --

Sophia o lembrou.

—Verdade, e se aquele canalha não tivesse confessado que Anne perdera sua virtude com ele, não o teria aceitado. Mas também testemunhou como ele usou a honestidade de nossa filha para alcançar seu propósito.

—E o destino puniu seu trabalho maligno com a morte —disse Sophia, levantando-se. Ela se virou devagar e sentou-se ao lado do marido.

—Sorte dela... —ele meditou em voz alta. —Ainda estou me perguntando como Anne não foi capaz de descobrir quem esse homem realmente era e o que ele pretendia com esse casamento —disse Randall,

colocando as mãos nos joelhos, como se para apaziguar a frieza que sentia após a retirada de sua esposa. —A cidade inteira conhecia a má reputação de Hendall e, apesar disso, Anne deixou-se seduzir sem se importar com o motivo pelo qual se aproximava.

—Uma mulher apaixonada é incapaz de ver além dos olhos de seu amado. Mesmo que ela ouvisse rumores sobre os casos de amor de Hendall e as pretensões que tinha de se casar, ela negaria cegamente --

assinalou Sophia, colocando as mãos na de seu marido. -- Acredita, realmente, que nossa filha poderia admitir que seu noivo deixou um clube em estado semelhante de embriaguez e depois de ter relações sexuais com prostitutas? Ou que a razão pela qual ele queria se casar com ela era conseguir o prestígio que seu bom nome ofereceria à sua companhia?

—Não.

—Bem, tem a resposta, Randall. Nenhuma mulher seria capaz de sobreviver a tal humilhação. Nem mesmo seu dom para pintar a teria libertado daquela amargura.

—E o filho do conde? Alguém achou que ele estava tão perturbado que se mataria com sua própria arma? —Perguntou o médico, virando-se para Sophia.

—Nós dois sabíamos que o jovem não estava bem quando não conseguiu se aproximar para pedir a mão da nossa filha. Além disso,

recriminou o velho conde pela decisão de escolher Anne porque era uma mulher saudável e poderia usá-la como parideira... —ela refletiu acariciando as palmas das mãos do marido com os dedos.

—Não sei o que fazer ou o que pensar. A única opção que ponderei até agora desapareceu quando o visconde se recusou a levá-la em seu navio. Talvez Anne devesse assumir que seu destino é ficar aqui conosco e deixar passar o tempo até que todos esqueçam o que aconteceu. O único inconveniente que vejo nisso é que ela não vai aceitar facilmente. Viu sua insistência em partir, em se tornar uma mulher diferente e, infelizmente, a depressão que passou voltará quando lhe explicar o que aconteceu -- Randall disse com pesar.

—Tem toda a razão. Anne não vai ficar de pé com os braços cruzados quando souber que o visconde se recusou a levá-la embora e irá procurar outro jeito de conseguir. Além disso, não faz isso apenas por ela, mas também por suas irmãs. Não percebeu como está triste depois da mudança de atitude de Elizabeth? Ela se sente culpada pelo desespero de sua irmã e acha que Eli será a jovem que era quando ela for embora —explicou, voltando o olhar para o fogo.

—A única coisa que eu entendo é que, por causa da nossa má escolha...

—Pela maldição —interrompeu Sophia.

—Sabe que não acredito nesse absurdo! Não há estudo científico que explique tal coisa, querida. São apenas conjecturas de uma crença... --

Randall ficou em silêncio enquanto observava as feições de sua esposa endurecerem. Doía falar sobre seu povo, sua cultura e tudo em que ela acreditava desde criança. Mas ele não aceitava essa ideologia. Sua filha não era amaldiçoada. Sua primogênita sofria apenas das más decisões de seus pais, como o visconde dissera, e a recriminação de uma sociedade frívola e injusta. Quanto ele teve que lutar para pular todos os obstáculos que colocaram em seu caminho? Muito! Mas ao longo dos anos e com sua tenacidade manteve a reputação que merecia. Nem a aristocracia poderia ofusca-lo! Então... por que a filha dele não poderia lutar como ele? A resposta que apareceu em sua cabeça lhe causou muita dor, tanto que sentiu suas entranhas se abrissem. Mulher. Só porque Anne era uma mulher, tinha que sofrer essa agonia miserável.

—Por que está tão quieto? —Ela perguntou depois de beijá-lo na bochecha.

—Penso sobre a injustiça, sobre a sociedade tão miserável em que nossas filhas vivem. Estamos prestes a terminar um século e não vejo nenhuma evolução.

—Sobre que?

—Sobre nossas filhas, sobre o fato de que elas são mulheres e o

futuro que terão... —confessou Randall depois de respirar fundo.

—Não deveria se preocupar tanto porque Morgana vai cuidar delas e transformá-las em mulheres abençoadas —disse ela, virando-se para ele.

—Não está pensando sobre a visão de Madeleine novamente, está? —Ele disse, apertando seus velhos olhos.

—Ela não teria dito nada sobre esse assunto se não acreditasse. --

Ela a defendeu com firmeza.

—Madeleine ama sua irmã mais velha e estaria disposta a fazer qualquer coisa por ela, até mesmo mentir, embora, como bem sabe, toda vez o faz aparece, uma erupção aparece em seu rosto.

—Se me lembro bem, não tinha nada em seu rostinho quando disse isso —ela a defendeu novamente. Embora Randall não admitisse suas crenças de sangue, ela o fazia e tinha certeza de que o que Madeleine vira no sonho de que falava se tornaria real.

—Não parou de comer?

—Não.

—Não teve uma erupção cutânea em qualquer parte do corpo? --

Randall continuou dando um pequeno sorriso.

—Não -- Sophia negou novamente.

—Então... acha mesmo que vamos encontrar um marido para a

nossa Mary? —Ele disse zombeteiramente.

—O que Madeleine disse sobre isso? —Ela perguntou timidamente, levantando-se.

—Mas... realmente não duvida dela?

—Não.

—Tem muita fé... —ele sussurrou olhando para o fogo.

—Mary descobrirá aquele marido que venerará sua inteligência e aplacará sua língua.

—Aham —Randall continuou, seus olhos nunca deixando o fogo.

—Josephine...

—Josephine? ?Ele perguntou, virando o olhar para sua amada esposa e erguendo as sobrancelhas. —Se Mary é um tema complicado, Josephine é duas vezes mais— acrescentou sarcasticamente.

—Se não encorajasse sua atitude de guerreira, se não tivesse comprado àquela arma infeliz, Shira teria tomado o cuidado de vesti-la como uma menina e ela não usaria aquelas benditas calças. Sabe como as vendedoras olham para mim quando peço roupas masculinas que uma mulher possa usar? —Ela retrucou com raiva.

—Josephine tem uma alma guerreira e tem que admitir que nenhum homem tem a habilidade que ela tem para a luta. Não tenho dúvidas de que ela seria o soldado mais valente de um exército.

—Não é um homem, Randall! Ela é uma mulher! Não percebeu que começam a brotar certas protuberâncias em seu peito? De acordo com o termo médico são seios, certo?

—Como eu gosto quando fala assim! —Ele exclamou, levantando-se, mas quando foi abraçar sua esposa, ela o rejeitou.

—Mary encontrará um marido, Josephine o seu, Elizabeth... ela vai se apaixonar pelo homem que Morgana escolheu, embora ele não seja aristocrata e Madeleine terá que abandonar esse medo para enfrentar o seu próprio.

—Esqueceu Anne... Se casará com um cigano?

—Sim —ela disse sem hesitar por um único segundo. —O fará.

—Como? Não pensa em levá-la a um acampamento cigano, certo?

—Não, eu não farei tal tolice. Amanhã falarei com ela e contarei o que aconteceu com o visconde. Entre nós duas, vamos procurar uma solução. Talvez possamos encontrar um cliente que more fora de Londres e, desse modo, poderá sair daqui, mesmo que não seja Paris. Certamente que esse cigano aparecerá a qualquer momento...

—E enquanto isso, o que fazemos com Elizabeth? Não podemos permitir que ela continue agindo de maneira tão pouco descente —ele perguntou, estendendo a mão para Sophia.

—Se for necessário trancá-la em seu quarto até que mude seu comportamento, o farei —Sophia disse com firmeza, aceitando a mão do marido.

—Espero que Anne não fique muito chateada quando disser a ela que seu pai contou que era amaldiçoada —disse o médico enquanto os dois caminhavam em direção à saída.

—Ele realmente o olhou como se estivesse louco?

—Não pode imaginar... quando disse a ele que teria que tê-la notado porque nenhum homem se aproximava dela, seus olhos quase saltaram fora. E isso que não contei sobre esse vestido laranja infeliz! Como permitiu que ela fosse vestida assim? Se o que ela tentou foi passar despercebida, não teve sucesso. Até mesmo um cego a teria visto! —Ele exclamou divertido.

—Eu juro que quando a vi descendo as escadas com essa cor quase a fiz voltar para seu quarto para mudar, mas algo dentro de mim gritou que não fizesse isso —disse Sophia, inclinando a cabeça no ombro esquerdo do marido.

—É, de todas as nossas filhas, a que mais se parece com você. Tem tanto sangue cigano correndo em suas veias que ela não pode controlá-lo. Só faltaram as joias que Elizabeth falou para ir gritando quem realmente é.

—É por isso mesmo está amaldiçoada e por isso se entregou àquele canalha. Se ela fosse mais sensata e menos apaixonada, teria analisado sobre a perda de sua honra —murmurou Sophia.

—Não fique zangada com algo que não podemos mais remediar. Anne tem quase vinte e cinco anos e pode fazer o que quiser. Além disso, já conhece o caráter boêmio que os artistas têm... —ele continuou falando em tom de brincadeira.

—Se Madeleine estiver certa, o sangue cigano logo evocará a pessoa que está destinada a ela e esse homem acalmará a paixão que surge nela.

—Acredita? —Randall questionou duvidosamente.

—Eu não fiz isso com você?

—De verdade? Pensei que tinha ido à sua aldeia para curar um homem doente, não para procurar uma esposa —disse o médico, em pé na frente da escada que os levaria ao segundo andar.

—Meu querido Randall, é a pessoa mais gentil que eu já conheci. Ainda pensa, depois de saber o que nossa raça é capaz de fazer, que meu pai adoeceu sozinho? Que não fiz um feitiço para fazê-lo aparecer antes que eles me obrigassem a uma união arranjada?

—Fez isso? —Ele perguntou, levantando as sobrancelhas.

—Não, claro que não —ela disse antes de soltar uma risada e

subir os primeiros degraus. Quando ela viu que Randall não a estava seguindo, se virou para ele. -- Vai ficar aí a noite toda?

—Fez isso? —Ele repetiu novamente.

—Randall Moore —ela começou descendo os dois degraus que os separavam —eu faria qualquer coisa para encontrá-lo.

—Até envenenar seu pai?

—Até envenenar meu pai —ela repetiu antes de beijá-lo nos lábios. —E agora vamos para a cama. Nós temos que descansar. Espero que amanhã seja um dia muito especial para todos nós.

—Especial? —Ele exigiu, apertando os olhos.

-- Sim —disse Sophia antes de encorajar Randall a subir para o quarto. —Muito especial…

-- Outra clarividência? —Ele perguntou ao se colocar ao seu lado e abraça-la.

—Um pressentimento cigano —disse ela.

III


Anne se inclinou contra o tronco ao lado dela e manteve os olhos fixos na frente. A música, a que a puxou para fora da cama e a atraiu para aquele lugar desconhecido, tornou-se mais intensa a cada passo que dava. A escuridão da noite a impedia de ver além do que encontrava quando se movia para a frente, mas isso não lhe causava pavor; ao contrário, nesse momento sentia tanta força e segurança que esqueceu o significado da palavra medo. Ela retirou a mão do tronco em que estava segurando, deu outro passo e ouviu um ruído acima de sua cabeça. Lentamente, ela levantou o rosto e encontrou o maior corvo que já vira. Este último, depois de bater as asas, grasnou e foi para o lugar onde a melodia estava ficando mais alta. Encantada pela música, ela esqueceu o pássaro e entrou na floresta frondosa. Sem se perguntar por que estava indo em direção àquela voz cantando, cruzou o caminho íngreme até chegar a uma pequena clareira no meio daquela floresta. Com espanto deduziu, vendo uma grande fogueira no centro daquele lugar amplo, que não estava sozinha e que talvez a pessoa que acendeu o fogo fosse a mesma que cantava. Parando, sem ao menos mexer os dedos dos pés descalços, olhou em volta, procurando a figura humana que deveria estar em algum lugar. No entanto, não encontrou ninguém. Ela estava sozinha na frente do fogo que a convidava, com seu

calor e luz, a se aproximar e se sentir protegida sob suas chamas.

Quanto mais perto ela chegava da grande fogueira, mais confiante ela estava, apesar do tecido de sua camisola queimar tanto que ardia sua pele. Mas era incapaz de parar no meio do caminho, ela precisava, sem saber por quê, tocar aquelas chamas tão atraentes e seguras.

Deu um passo, depois outro, enquanto seus ouvidos captavam com mais clareza as frases daquela canção: Aproxime-se do fogo, sinta-o em sua pele, em sua alma, em seu peito. Ele te livrará da sua dor, da sua tristeza e te conduzirá ao que almeja.

Como poderia entender essas frases se as ouvia em outra língua? Por que eram tão familiares? O que havia de especial naquela música para deixá-la sem o poder da decisão? Sua mente procurava as possíveis respostas quando estendeu a mão para o fogo. Não se queimou, nem sentiu dor. Por mais estranho que parecesse, não percebeu nada além de tranquilidade, como quando chegava em casa depois de um dia intenso de trabalho. Com os olhos fixos naquele vai e vem amarelo e laranja e com aquela música que repetia várias vezes que encontraria o que procurava, respirou fundo. O que havia desejado durante seus anos de vida? Como se livraria da dor? O que tinha de especial naquele fogo? Teria que atravessá

lo para descobrir as respostas?

Fechou os olhos, abriu as mãos e, determinada a conhecer todos

os enigmas que surgiram em sua mente, colocou os pés sobre as brasas ardentes. Mas estas também não queimavam. Sua camisola ainda estava intacta e ela ainda estava... viva.

—O que quer? —Se atreveu a dizer no meio da fogueira. —O que encontrarei? Por que me trouxe aqui? —Mas tudo ficou em silêncio. Até a voz cantada, que a acompanhara no caminho, cessou no momento em que entrou no fogo. —O que quer? —Repetiu abrindo os olhos.

Depois de passar alguns segundos esperando a resposta, decidiu sair e voltar para aquela cama fria que havia deixado. No entanto, quando saiu do fogo, ouviu o vento agitar as copas das árvores.

—Eu te amo e só tem que me encontrar -- disse a voz de um homem atrás dela.

Assustada, ela se virou e descobriu que o fogo tinha desaparecido. Em seu lugar havia uma figura masculina, que reconheceu rapidamente. Aterrorizada, colocou as mãos no peito e gritou.

—Leve-me porque eu sou seu, assim como é minha —ele continuou falando.

Ela tentou andar para trás, longe daquele homem que estendia as mãos para ela, mas seu corpo se recusava a fazê-lo. Sentia uma atração tão imensa por ele que podia sentir sua pele se separando dela e voando para aquele estranho.

—Não lute, não precisa fazer isso. É minha e eu sou seu —ele continuou falando com ela enquanto cortava a distância entre os dois.

Ela fechou os olhos, não queria ver mais nada. Queria voltar para a cama que não deveria ter deixado, para sua casa, para sua vida horrível, para a solidão..., entretanto, quando o homem a abraçou para consolar aquela inquietação agonizante, tudo ao seu redor deixou de existir e uma liberdade apareceu em seu interior.

Sede, tinha sede e calor. Tanto calor que poderia derreter a qualquer momento. E essa sede não era humana, mas espiritual. Como se ao permanecerem unidos, seu corpo não tivesse sangue e precisasse dele.

—Olhe para mim... —ele disse, levantando o queixo com um dedo. Olhe para mim e descubra em meus olhos tudo o que questiona.

Muito lentamente, ela fez o que lhe foi dito e, aqueles olhos azuis como o mar, lhe ofereceram visões tão claras que pareciam reais. Ela se viu na festa, escondendo-se atrás da parede, mas ele a seguia, a procurava.

Também assistiu à cena de sua partida e percebeu a angústia que sentiu ao sair. Então uma casa apareceu, grande e sólida como um castelo. Ela corria rindo, divertida, enquanto pegava suas saias para não cair no chão. Sua risada misturada com outras, as dele. Outra cena apareceu, não estava mais no meio de um prado, mas em uma sala. Ela estava nua, gemendo, aceitando os beijos que ele lhe oferecia. Se retirou, empurrou-a para a cama, ela bateu

no colchão e sorriu. Então ele se colocou em seus quadris, guardando em seu interior aquele sexo masculino. Ele continuou ofegando, movendo-se, enquanto tocava seus seios, levava sua boca para a dela e sugava todos os seus gemidos. Seus cabelos castanhos dançando ao ritmo daquele ato apaixonado, daquele encaixe, daquela união...

—Não! —Ela exclamou desesperadamente quando se viu daquela maneira luxuriosa. —Não! —Ela gritou apoiando as mãos naquele duro tronco nu e empurrando-o para longe dela.

Anne sentou-se na cama, puxou bruscamente as cobertas e pôs as mãos no rosto. Suas bochechas queimavam e alguns fios de cabelo estavam presos a elas por causa do suor produzido pelo sonho. Atordoada, ela puxou o cabelo úmido para trás, olhou para frente e suspirou angustiada. Como tinha sido capaz de sonhar com algo tão proibido com um homem que não conhecia? Por que sua mente lhe oferecia imagens tão descaradas? Espantada e ao mesmo tempo com medo, moveu-se lentamente pelo colchão, pôs os pés no chão e tentou apaziguar esse estado de excitação. Mas ela achou impossível relaxar. Mesmo que já estivesse acordada e ciente de onde estava, as imagens daquela fantasia ainda estavam em sua cabeça como se fossem reais. Fechou os olhos, pressionou as mãos no rosto e soluçou. Ela não podia permitir que sua mente lhe mostrasse algo tão imoral, tão pecaminoso ou tão real, porque isso a levaria à loucura. Ela não era... ela não podia... ela era

amaldiçoada.

Depois de respirar fundo, se levantou, caminhou até o pé da sua cama, se agarrou ao dossel de madeira e descansou a testa. Não podia chamar o que viveu de um sonho, mas de um pesadelo. Um em que ela se deixava levar pela paixão de um homem que só vira uma vez e que, possivelmente, não encontraria novamente. Então, por que sua mente gritava que ela seria dele? «É minha e eu sou seu», ouviu de novo como se estivesse ao seu lado. Sem se afastar do dossel, tentou eliminar o que aconteceu, mas não conseguiu. Se viu novamente em um lugar que ela não conhecia e a música retornou. O que esse sonho significava? Ela estaria enlouquecendo? Tão encantada ficou ao vê-lo? Não podia negar que, desde que o viu, uma atração inconfessável nasceu nela. Qualquer mulher teria tido ao vê-lo! Era, entre os cavalheiros que estavam na festa, o homem mais viril, sedutor e enigmático. Sua aura perigosa exalava tanto magnetismo que nenhuma mulher podia desviar o olhar de tal pessoa. No entanto, isso não poderia servir como uma desculpa para tê-lo em seus sonhos, para sentir seu toque em sua pele e ouvir novamente seus próprios suspiros ao possuí-la... com os olhos ainda fechados, Anne agarrou o dossel com as duas mãos e choramingou novamente. Nem mesmo seu amado Dick fizera amor com ela daquele jeito tão apaixonado, tão selvagem e.... antinatural. Aquele estranho a levara a um estado de frenesi tão grande que ela tomara as rédeas daquele

encontro e fora ela que o atacara. Ela! Desde quando uma mulher evitava a modéstia e se comportava de maneira tão desavergonhada? Nua! Totalmente nua e desinibida! E ele a tocava... E a beijava... E....

E as bochechas queimaram novamente ...

Irritada com essa reação, se afastou da cama e foi até a sala de banho. Devia encontrar alguma sanidade e bom senso. Não era uma mulher que se deixasse levar por emoções ardentes, não mais. Tinha feito quando conheceu Dick, mas depois de sua morte, seu coração e alma foram aprisionados em uma urna de gelo.

—Anne? O que aconteceu?

A voz de sua mãe a tirou daquele transe. Ela estava tão absorta em si mesma que não a ouviu entrar no quarto ou se aproximar dela.

—Mãe? —Ela perguntou confusa. -- O que faz aqui?

—O que há de errado, Anne? Por que está tremendo? Porque está chorando? Os ataques de pânico retornaram? —Perguntou se aproximando da filha. A última vez que a viu naquele estado foi após a morte do filho do conde.

Anne olhou para ela um tanto confusa. Deveria ser sincera? Era apropriado confessar que ela tinha visto um homem, a quem havia encontrado na noite passada, sair do fogo e viu em seus olhos cenas pecaminosas? Não, claro que não.

—Foi apenas um pesadelo -- disse ela por fim.

—Um pesadelo? Que pesadelo? O que viu? —Ela insistiu em saber. Até agora, Anne herdara um dom, o da pintura. Poderia ser possível que também fosse clarividente?

—Estava em uma floresta, sozinha, sem nada ao meu redor. De repente, um corvo apareceu e começou a me perseguir. Por mais que eu corresse, ele ainda estava ao meu lado porque queria me machucar.

—Um corvo? —Perguntou Sophia erguendo as sobrancelhas. --

Se assustou com um corvo?

—Era enorme. O maior que eu já vi na minha vida —acrescentou.

-- Não viu mais nada? Um fogo? Ouviu uma música?

Naquele momento, Anne esqueceu de respirar. Como sua mãe sabia disso? Teve um sonho parecido? O sangue que compartilhavam era tão semelhante que ambas sonhavam o mesmo? Esperava que isso não fosse verdade porque não conseguiria nem olhar para a sua cara...

—Não —ela disse devagar, segurando a camisola com força. Ela não teria bolhas como Madeleine quando estava mentindo, mas seu rosto estava tão corado que ninguém duvidaria de sua mentira.

—Bem, então, só se assustou com um corvo... —pensou Sophia sem desviar o olhar.

Se sua intuição não se confundia, Anne acabara de sonhar com

seu homem, embora não quisesse confessar. Isso significava que ele entrara em sua vida e que seu sangue cigano o evocava. Mas... onde o viu? Na cerimônia da Sra. Lawford? Quem seria?

—Só um corvo... —admitiu Anne, incapaz de levantar os olhos do chão.

—E.... te bicou? Te machucou? -- Perseverou Sophia audaciosa.

-- Quando sonhei com um corvo, juro que me machucou tanto...

—O que queria, mãe? —A interrompeu bruscamente.

—Vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem. --

Sophia deixou Anne mudar de assunto. Se ela tivesse sonhado com o que ela supunha, teria que assimilar muitas coisas.

—Quer que saia agora, enquanto minhas irmãs ainda dormem? --

Ela falou desesperada para sair de lá.

—Falaremos sobre isso quando se aprontar —disse a mãe, caminhando até a porta. —E, exceto Mary, estão todas acordadas. Ela olhou para a segunda de suas filhas, de quem só se via os tubos de metal que Shira colocava em seu cabelo antes de dormir. —Outra vez esteve lendo até o amanhecer?

—Ela começou um novo livro —Anne esclareceu.

—Vou queimar todos eles! —Sophia rosnou. —Farei a maior fogueira de Londres quando jogá-los no fogo.

E naquele exato momento, Anne colocou as mãos no peito e sua mãe sorriu, quando descobriu que, na verdade, o homem que Morgana escolhera para sua filha tinha finalmente aparecido.


***


Quando Sophia fechou a porta, Anne foi a sala de banho, mas não antes de olhar para Mary. Estava tão calma, dormia tão docemente que ansiava ser ela por alguns momentos. Como ela disse ontem à noite, seu sangue Moore era tão poderoso que a salvava de pensar coisas tão imprudente como ela fez aquela noite.

Ligou a torneira de água quente, se despiu e esperou que o sabão espumasse. Pelo menos estava sozinha para refletir sobre o que tinha acontecido. Graças à tenacidade do pai e à aceitação de certas inovações, não precisava da ajuda de uma criada para ter um pouco de água quente. O que menos desejava naquele momento tão urgente era ter Shira ao seu lado perguntando-lhe mil vezes por que sua pele estava tão vermelha quanto uma flor.

A diferença entre Mary e ela reapareceu. Ali, onde aceitara de bom grado as reformas da sala de banho, Mary gritou aos céus e chamou as novas banheiras de engenhocas demoníacas. Como pensou em chamá-las

dessa maneira? Ela! Uma mulher que não acreditava em anjos, deuses, demônios ou qualquer coisa sobrenatural. Se quando sua mãe falava sobre as visões que teve no passado, perguntava quanto ópio tinha tomado! Anne levou as mãos à boca para acalmar a risada que queria soltar, recordando os castigos que Mary sofrera por expressar tais comentários. Mas ela nunca mudara de ideia. Era tão forte, tão segura de si mesma e tão...

especial. Embora sua mãe a repreendesse, embora estivesse muito zangada com ela quando o pai lhe contava sobre outra discussão em uma reunião de médicos, na qual sua filha havia destroçado o orgulho de algum outro cavalheiro, Mary não mudava sua atitude e isso fazia dela a mais poderosa das cinco filhas.

Ela colocou os pés na água e moveu os dedos impregnados com espuma branca. A água há relaxara um pouco. O suficiente para refletir sobre esse sonho. Não tinha nada a temer. Aquele homem não apareceria novamente em sua vida, e se houvesse algo do qual deveria ter medo, era que a caldeira explodisse e saltasse para a outra extremidade da sala de banho, como Mary disse quando a viu pela primeira vez. Recordando aquele momento, aquela risada reprimida fluiu suavemente. Só a ela poderia ocorrer esse tipo de coisa! Não havia dúvida de que Mary tinha mais sangue Moore do que Arany.

—Realmente quer que nós confiemos nisso? —Ela perguntou a

seu pai quando as reformas tinham terminado.

—Nada acontecerá. Há muitos nobres que as usam e todos elogiam o conforto de ter água quente imediatamente —respondeu Randall.

—Quer se livrar de nós... —Mary resmungou.

—Sophia! —Ele gritou chamando sua esposa. Cada vez que eles discutiam, pedia a ela para interceder na conversa. Talvez porque ele e Mary fossem tão parecidos que, depois de um debate angustiante, estariam empatados. —Vem por favor! Pode explicar à sua querida filha Mary que não quero me livrar dela e que não está em perigo se entrar na nova banheira?

—O que acontece desta vez? —Sophia perguntou com resignação.

—O pai me garante que nada acontecerá comigo enquanto tomo banho, porém, percebo que ele não se lembra do artigo que os jornais publicaram há alguns anos atrás.

—O que dizia o artigo, Mary? —Disse a mãe com uma voz cansada.

—Que o aquecedor a gás de Lorde Fhautun quebrou e explodiu a banheira e o próprio lorde que estava dentro dela. Ambos estavam do lado oposto da sala! —Ela exclamou desesperadamente.

—Isso é verdade, Randall? —Ela se virou para o seu marido,

que não parava de rir ao se lembrar daquele dia, porque ele teve que atender o pobre barão.

-- Sim, mas em defesa dessa criação inovadora, tenho que explicar que isso aconteceu há alguns anos e que eles a aperfeiçoaram para que ninguém saia disparado como a bala de um canhão.

—Não deixarei nenhuma das minhas filhas voarem pela casa como pássaros, Randall Moore! —Sophia exclamou horrorizada. —Que Shira e outra donzela continuem a aquecer a água na cozinha. Este método é mais seguro para elas —declarou solenemente.

E enquanto o médico acompanhava a esposa até o quarto e lhe oferecia uma série de razões pelas quais ela não deveria ter medo de usar as novas torneiras, Mary observava do corredor enquanto uma de suas criadas levantava baldes de água quente e os derramava dentro da banheira novinha em folha.

No entanto, tudo mudou quando as gêmeas adoeceram. Shira, sua mãe e as donzelas estavam tão ocupadas cuidando das pequenas que Mary decidiu aceitar a derrota. Nos primeiros meses, apesar de sua mãe ficar muito zangada, ela se banhava de camisola para o caso de voar como Lorde Fhautun. Se parecia embaraçoso sofrer tal situação, era mais se isso acontecesse com ela nua. E, apesar de ter acontecido há algo em torno de cinco anos, os banhos de Mary não duravam muito...

Alegre depois da lembrança, saiu da banheira, vestiu um robe de seda preta e caminhou até o quarto. Ela precisava se preparar o mais rápido possível para conversar com a mãe. O que diria? Informaria sobre a decisão do capitão? Ele teria aceitado a proposta de seu pai? Esperava que fosse isso e que pudesse finalmente sair de Londres. Talvez, afastando-se da cidade, nunca mais sonhasse com aquele homem, e Elizabeth nunca mais manteria uma atitude tão descarada com outro Lorde. Lembrando o que aconteceu na tarde anterior, a agonia que o sonho produziu desapareceu de repente e a dura realidade retornou. Que palavras sua mãe usou para informar que ela queria falar com ela?

«Eu vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem». Mas ontem à tarde várias coisas aconteceram e entre elas...

—Oh, meu Deus! —Exclamou, abrindo bem os olhos. —A baronesa lhe contou o que Elizabeth fez com lorde Lorre!

IV


Sophia olhava seu jardim pela janela. Nele, apenas Josephine permanecia com aquela arma horrível em suas mãos. Estava apontando para outro alvo. Ela se aproximou um pouco mais do vidro e exalou todo o ar em seus pulmões quando viu outro jarro de porcelana branca da louça que guardava na despensa. Teria que falar muito seriamente com a quarta de suas filhas. Ela não podia usar os poucos pertences que Randall herdara de seus pais como alvos para seus tiros, porque quando terminasse com eles, qual seria o próximo? Apoiando-se na moldura da janela, viu Elizabeth emergir da estufa para gritar com Josephine. Isso só poderia indicar que a bala havia atravessado um vidro na estufa.

—Pelo amor de Morgana! —Exclamou horrorizada, levando as mãos ao peito.

Os problemas cresciam e não sabia como eliminá-los. Precisava colocar ordem em todo esse caos familiar e a primeira coisa séria ordenar que Randall desaparecesse com o rifle. Talvez se dissesse a ele que o jardim era pequeno demais e que algumas de suas filhas ou criados pudesse se machucar, ambos reconsiderariam. «Bobagem! —Pensou —Algum deles ouviria? Ouviriam suas explicações? " Não, claro que não. Randall continuaria aplaudindo a habilidade de sua filha e, em vez de obrigá-la a

guardar a arma, a levaria para o campo, onde o perigo de matar alguém seria minimizado.

Se virou para o sofá, onde passara muitas horas costurando, e olhou para sua caixa de costura. A bobina laranja chamou sua atenção. Como ocorreu a Anne usar um vestido tão pouco discreto? Quando o comprou e por que não disse nada sobre isso? Sempre mostrou a ela tudo o que adquiria e nunca escondia nada. Então, o que mudou? O que estava acontecendo?

Sophia se sentou na cadeira de balanço, colocou as mãos no colo e apertou-as. A única pessoa que conhecera em sua vida e que se vestira de maneira tão pouco discreta era sua avó Jovenka. Todos os dias ela usava algo de cor laranja. Senão era um vestido, era um lenço ou um casaco, porém nunca faltava em seu traje aquele tom tão cigano. Ela suspirou profundamente quando se lembrou da avó e da horrível obsessão de não contaminar o sangue. Se Randall não tivesse aparecido naquela noite... O que teria acontecido com ela? Mas, embora tenha se afastado, mesmo que tenha parecido que ela os havia deixado viver em paz, não foi assim. Ela ficou, embora o acampamento tenha decidido sair de Londres. Viveu resguardada na floresta, perseguindo-os em silêncio até cumprir sua palavra...

Uma noite, que ao longo do tempo descobriram ser a mesma em que geraram Anne, decidiram deixar a janela aberta para que a luz da lua ambientasse aquele momento tão romântico e apaixonado. Corria uma leve

brisa e as cortinas se moviam suavemente, como se fossem dançarinas elegantes e delicadas. Ambos se entregaram como haviam feito tantas vezes. No entanto, desta vez foi especial porque quando Randall terminou, depositando sua semente dentro dela, o silêncio do lado de fora desapareceu ao ser interrompido por um trovão horrível. O marido, vendo-a tremer de medo, se levantou, fechou a janela e voltou para a cama para acalmar seu medo. Mas o que ele encontrou quando chegou a ela o deixou aturdido. Em questão de segundos, aqueles que demorara em voltar para o lado dela, a temperatura do seu corpo subiu tanto que ela se agitava pelos tremores de febre. Como ele fizera desde que a viu naquela carroça, ajudara-a o tempo todo. Toda vez que colocava um pano de água fria nela, as mãos dele avermelhavam com o calor que transpirava do tecido. Assustado, ele chamou um dos empregados para pegar a carruagem e trazer o máximo de blocos de gelo possíveis. A colocaram em uma banheira cheia de gelo, mesmo assim, a febre não diminuiu até o amanhecer chegar. Como se fosse apenas um sonho terrível, essas convulsões e o calor desapareceram antes na chegada dos primeiros raios de sol. Claro, Randall nunca admitira que o sol a tivesse curado, mas que o gelo, as emersões e seus panos a aliviavam.

Depois de passar uma noite tão agitada, decidiram ficar descansando pelo resto do dia. Mas seu marido teve que sair porque alguém apareceu na residência solicitando seus serviços. Quatro horas depois de sua

partida, ele retornou e informou-a de que o assunto que o levara de casa fora sua avó. Um homem, que caminhava pelo campo, descobriu um corpo caído, pensando que havia desmaiado, correu até ela, mas quando descobriu que tinha uma adaga presa no abdome e que era cigana, pediu ajuda à polícia e estes a dele, porque nenhum outro médico iria atendê-los.

Depois de contar o que aconteceu, ela chorou, não de tristeza, mas de alegria, prazer e entusiasmo, porque acreditava, estupidamente, que a morte os salvara da maldição. Mas estava errada, tinha acabado de começar...

Dois meses depois, ela soube que estava grávida. Estava tão animada para ser mãe, que não conseguia pensar em nada além do bebê que estava chegando e que sua avó não estava mais viva para machucá-la.

Não foi assim….

Quando Anne nasceu, quando a segurou nos braços e olhou para aquele rosto, aquele cabelo e aqueles olhos castanhos, teve tanto medo ao ver que era tão parecida com Jovenka que ficou inconsciente. Durante aquele desmaio, ela viu sua avó na sacada, na noite em que conceberam Anne. Então a observou se afastar de casa para onde a encontraram morta. Ela mesma cravou a adaga assim que o trovão soou. Estava com ela durante o desmaio e mostrou-lhe o nascimento de suas outras quatro filhas enquanto gritava várias e várias vezes que o sangue contaminado as destruiria. Quando acordou, estava com tanto medo que nem queria olhar para sua pequena recém

nascida. Anne estava chorando no berço porque precisava se alimentar da mãe que lhe dera a vida, mas ela recusou seu contato. Graças à ajuda de Randall, sua ternura, sua compreensão e aquela grande paciência, ela finalmente admitiu que fora apenas um pesadelo gerado pelo cansaço do parto e, quando se acalmou, ele ofereceu seu bebê. Com os olhos fechados, amamentou-a. Mas os abriu ao sentir o calor daquele pequeno corpo e a sensação de suas pequenas mãos na pele. Naquele momento concluiu que a única coisa que Anne tinha de sua avó era o físico que Randall afirmara ser algo que ele chamara de coincidência genética. No entanto, o tempo indicara que havia se enganado novamente. Anne era tão ardente e apaixonada quanto Jovenka. Ela até herdou seu dom para pintar! Quantos rostos masculinos sua avó pintou com o carvão das fogueiras? Todos os que passavam por sua carruagem. Nenhum foi deixado sem retratar. Era seu triunfo, seu destino, sua vida e, infelizmente, esse espírito diabólico voltava muito mais jovem e mais forte do que antes. Ela só esperava que o desejo de gerar não aparecesse em Anne, porque quinze filhos bastardos nasceram do ventre de sua avó. Alguns pararam de respirar em seu ventre, outros foram abandonados nas portas das igrejas das aldeias em que se instalaram e outros... outros não tiveram nem uma sorte nem outra e tornaram-se servos de seu povo. Escravos sem opção de vida, exceto a servidão a que ela os sujeitou. O único filho de sangue puro era seu pai, então ansiava que sua neta continuasse seu legado de pureza

casando-a com outro cigano. Mas ela não queria morar no povoado ou seguir as regras de sua avó porque, desde que Randall apareceu em seus sonhos, ela o amara.

Sophia se balançou devagar enquanto recordava o que acontecera vinte e cinco anos antes. Seus olhos, até então fixos em suas mãos, foram pregados na porta por onde Anne iria entrar. Não deveria apenas se concentrar em comentar a resposta do visconde, mas tentaria extrair algo sobre o sonho que ela tivera durante a noite. Quem ela conheceu? Quem, de todas as pessoas em Londres, teria sangue cigano? Onde o viu? Em que momento? Se falaram? Se conheceram?

—Morgana —disse ela em voz alta, —se minha filha encontrou esse homem, se finalmente permitiu que encontre a pessoa que irá salvá-la da maldição, que esqueça a ideia de partir, dê a ela forças para tomar seu destino e eliminar seu passado. Afaste o espírito que a atormenta de uma vez por todas, liberte-a da pressão, da prisão, da minha avó...

Fechou os olhos, segurou as mãos e começou a cantar para essa mãe que criara sua raça, a única que poderia escutá-la. Mas esse canto foi interrompido quando ouviu uma batida no vidro da janela em que havia permanecido. Assustada e preocupada, deu um pulo, caminhou até a sala e soltou um grito.

—Josephine Moore! Está de castigo! —Trovejou ao ver um

buraco e vidros no chão.

—Eu prometo, eu juro que... —a jovem tentou dizer. —Foi culpa da Elizabeth! Ela me jogou uma pedra!

—Elizabeth Moore! Está... ?mas não terminou a imposição daquela segunda punição. A terceira de suas filhas se virou para a estufa sem ouvi-la.

Anne estava certa. O comportamento da jovem mudou desde que seu segundo pretendente morreu. Pensou que, depois da visão de Madeleine, ela deixaria de agir dessa maneira horrível, mas estava errada. A única coisa que a revelação da menina causou foi uma pequena trégua familiar. No entanto, a incerteza havia retornado... quando aconteceria tudo o que Madeleine previu? Levaria muito tempo para chegar? Morgana silenciosamente esperava pela destruição de suas filhas para agir? Afligida, ela voltou para a cadeira de balanço, ouvindo Shira repreendendo Josephine.

Sentou-se muito devagar, como se em vez de 45 anos tivesse noventa, fechou os olhos e lembrou-se da tarde em que Madeleine confessou o que vira em seus sonhos para descobrir se, em algum momento, ela havia apontado uma data exata.

—Mas que bobagem! —Mary exclamou levantando. -- Realmente quer se afastar de nós por causa dessa irracionalidade?

—É a coisa mais sensata —disse Anne, depois da explicação de

sair de Londres e viajar para Paris. Aqui não terei a vida que mereço como artista e vocês não encontrarão um bom futuro por causa da maldição.

—Eu

lutarei

contra

essa

maldição

até

o

fim!

--

Josephine comentou, levantando a mão direita como se estivesse carregando uma espada. —Uma Moore não desiste tão facilmente!

—A maldição só afeta ela, certo? —Elizabeth perguntou depois de ouvir Anne. Não lamentava pelo desejo da irmã de deixar a família, mas por ela. Desde que o filho do conde morrera, ninguém os convidou para nenhuma festa, nenhum homem olhou para elas... O tempo passava e ela não conseguia encontrar seu aristocrata.

—Sim —respondeu Sophia. —Mas como podem ver, todas estão envolvidas porque, até agora, ninguém veio aqui pedir um compromisso com nenhuma de vocês.

-- Bendita maldição! —Mary exclamou eufórica. -- Agora sim acredito nela! Por favor, Anne, continue a se comprometer com todos os ousados que a desejam como esposa, para ver se ficam tão assustados que saem do nosso caminho e deixem as ruas de Londres livres para andarmos em paz. Além disso, posso preparar uma lista de nomes dos presunçosos para que possa aniquilar. Se quiser, amanhã começamos com A.

—Mary! —Sophia repreendeu-a. Que não deseje encontrar um marido não significa que suas irmãs pensem o mesmo.

—Alguma de vocês quer viver sob o domínio de um homem, exceto Elizabeth? —Ela perguntou olhando para o rosto da mencionada. Ao ver que se mantinha em silêncio, sentou-se abruptamente e cruzou os braços.

--

Eu

também

não

quero

me

casar! -- Josephine interveio novamente.

—Claro que não quer fazer isso agora, querida, é jovem demais para pensar nisso —disse Sophia com ternura. ?Mas futuramente não quer se tornar uma solteirona, certo?

—Um soldado não pode se comprometer com nada além de amor ao seu país -- declarou solenemente enquanto colocava as mãos no cós da calça.

—Soldado? —Randall perguntou a sua esposa um pouco confuso.

—Desde que comprou aquela bendita arma e ela dispara em todos os vasos que colocou no jardim, decidiu que quando tiver idade suficiente para se alistar no exército, cortará aquele lindo cabelo loiro, enfaixará seu peito e lutará contra qualquer inimigo que Londres possua --

resmungou Sophia, olhando para o marido como se quisesse derrubá-lo ali mesmo.

—Bem... não é uma opção muito descabida. Como não tem a esperança de encontrar um marido que seja mais habilidoso do que ela em esgrima ou caça, é uma alternativa a considerar. Além disso, não acredito

que haja um homem no mundo que possa descansar ao lado de nossa Josephine sem pensar que, a qualquer momento, ele vai cortar seu pescoço

—explicou o pai com algum divertimento.

—Randall Moore! Como pode proclamar algo tão horrível sobre Josephine? Ela é uma jovem corajosa, não uma criminosa! —Ela o repreendeu.

Como sempre, a educação que o marido dava à quarta filha era motivo de discussão. Ela insistia em esclarecer que não era uma criança, mas uma pequena mulher que logo teria que participar de festas e que todos falariam sobre o comportamento masculino de Josephine. Prosseguiu esse debate com a atitude inadequada de Elizabeth. Seu marido declarou em voz alta que preferia uma filha que pudesse se defender da audácia de um homem do que os movimentos sedutores de Elizabeth. Então, assim que o tom da conversa começou a exceder o limite correto, uma voz suave e terna os deixou sem palavras.

—O que disse? -- Sophia perguntou Madeleine, a gêmea de Josephine, ao não a ouvir claramente.

—Anne não terá que sair porque o homem que vai resgatá-la da maldição está prestes a chegar -- ela repetiu timidamente. Moveu seu corpo ligeiramente, sentada no peitoril da janela, em direção a sua família e depois de observar a expectativa nos rostos, ela continuou: -- Eu vi nos meus

sonhos. Anne se casará com um homem com sangue cigano, mas ninguém sabe que porque ele o mantém em segredo e só admitirá quando a encontrar.

—Ela apontou com o queixo para sua irmã mais velha.

Randall olhou para ela estupefato, só faltava saber que uma de suas filhas tinha alucinações para morrer naquele momento, mas quando sua esposa levantou e abaixou os ombros, tirando a importância das palavras de sua filha mais nova, respirou com facilidade. A coisa mais sensata a fazer era deduzir que a jovenzinha estava fazendo todo o possível para que sua irmã mais velha, por quem tinha grande afeição, não deixasse a família.

—O que viu? —Anne perguntou com voz aveludada, enquanto caminhava em direção a ela.

—Vejo o homem que será seu marido. Ele olhava nos seus olhos enquanto sussurrava que nada lhe aconteceria, porque a libertaria da sua maldição —ela respondeu calmamente. —E será verdade.

—O que mais viu? —Sua mãe perguntou sem sair do lado de seu marido caso ele precisasse de uma mão para não cair no chão.

-- Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente impedir os sentimentos que aquele homem causará a ela a partir do momento em que se encontrarem pela primeira vez —ela continuou com firmeza.

—Eu? Bobagens! —Bufou fazendo um gesto de desdém. —Tenho certeza de que na noite em que aparecer tomara mais suco de laranja do que

deveria e sabe que um excesso de vitamina C não é bom para a mente.

—Não dê ouvidos a ela —Sophia a consolou depois de ameaçar Mary com um olhar. —Sabe que sua irmã não gosta de ouvir que alguém vai mudar sua vida, muito menos um homem.

—Mas ela vai —disse Madeleine, olhando para sua irmã Mary fixamente.

—Viu mais alguma coisa? Sonhou comigo? Vou casar com um aristocrata? —Elizabeth perguntou impaciente.

—Não sei... -- murmurou a menor das irmãs, voltando o olhar para quem lhe fazia as perguntas. -- Só pude ver que o homem que está esperando aparecerá no caminho que conecta nossa casa com a de Bohanm. Não posso confirmar se é um familiar do casal ou parente de alguém que logo conheceremos, mas tenho certeza de que será a pessoa com quem se casará -- disse ela antes de fixar os olhos verdes na irmã gêmea. --

E Josephine...

—Serei um soldado? Vou lutar com honra? Me tornarei a mulher mais valente do meu batalhão? Me condecorarão? —A jovem perguntou sem respirar.

—Não. Se tornará a esposa de um homem mais honrado do que um soldado, mais temeroso que uma espada e mais severo que o impacto de uma bala —declarou ela.

—Isso sim que eu não esperava! —Randall exclamou olhando para sua esposa achando graça. —Vê, minha querida, no final, meus presentes inadequados servirão para protegê-la de um marido folgado! --

Ele argumentou antes de soltar uma gargalhada.

—E você? -- Anne perguntou acariciando suavemente seu cabelo enquanto ouvia o riso de seu pai.

—Eu saberei que ele é o escolhido quando se aproximar de mim para me ajudar a levantar de uma queda infeliz —disse ela, fixando seus olhos verdes na mão que ele tocaria.

—Então, tudo ficou claro —disse Mary. -- Anne não precisa ir embora e, para sua paz de espírito —disse ela à Sophia, —nos verá casadas. Embora eu só espero que meu futuro marido tenha um cérebro admirável e um corpo preguiçoso, então ele não me visitará à noite e eu poderei continuar lendo em silêncio... —ela comentou ironicamente.

—Mary Moore, não fale assim de novo na frente de suas irmãs ou eu vou queimar todos os seus livros! -- A ameaçou enquanto apontava o dedo.

«Anne não terá que sair porque o homem que irá resgatá-la da maldição está prestes a chegar» ela evocou a frase que estava procurando na memória. Bem, dois anos se passaram desde aquela conversa e o tempo estava lutando contra a família. Se Madeleine estivesse certa e Anne tivesse

tido seu primeiro sonho com fogo, isso poderia dar à família um halo de luz. Talvez, apenas talvez, aquele momento de paz estivesse prestes a aparecer. Mas... quem mantinha em segredo que o seu sangue era cigano? Porque motivo?

—Mãe? —Anne perguntou quando ela apareceu no pequeno quarto.

—Entre —ela disse sem se levantar da cadeira de balanço. --

Sente-se ao meu lado. Quero falar sobre o que aconteceu com o capitão desse navio.

Ao ouvir o tema da conversa, Anne sentiu que a forte pressão em seu peito desaparecia imediatamente. Por sorte, a baronesa lhe dera uma pequena trégua, embora não tivesse certeza de quanto tempo duraria.

—O que ele disse? Aceitou o pedido para me levar? --

Ela quis saber quando se sentou ao seu lado.

—Não.

—Não? Por quê? —Perguntou, amassando em suas mãos o vestido que escolhera para aquele dia. Que, para a tranquilidade de sua mãe, não era laranja, embora pudesse apreciar essa cor na presilha de seu cabelo.

—Porque, segundo ele, não seria apropriado navegar com uma mulher.

—E se eu prometer que não sairei da minha cabine? -- Ela propôs esperançosamente.

—Pelo que seu pai contou, até ofereceu cortar seu cabelo, mas recusou-se a completamente.

--

Ele

realmente

fez

tudo

ao

seu

alcance?

--

Perguntou desconfiada.

—Está questionando as palavras do seu pai? —Sophia soltou com raiva.

—Não, mãe, me desculpe —ela disse, abaixando a cabeça.

—Acredite em mim quando digo que ele fez tudo o que pôde, até ofereceu-lhe um envelope com....

—Um envelope? —Anne perguntou olhando-a sem piscar.

—Sim, um envelope que ainda não voltou —esclareceu ela.

—Então... talvez... —ela disse, se levantando. —Talvez eu tenha uma chance! —Exclamou eufórica.

—Eu não consideraria nenhuma esperança, Anne. Talvez hoje um criado apareça com esse envelope.

—Mãe... —ela disse, ajoelhando-se diante dela -- tudo que me resta é ter fé de que esse homem reconsidere a oferta.

—Mas...

—Não há mais, mãe. Não notou a destruição que minhas irmãs

sofrem por minha causa? -- Soluçou.

—Vi que apenas Elizabeth mudou sua atitude, as outras ainda são as mesmas de sempre —disse ela, acariciando o cabelo de sua filha para tranquilizá-la.

—Eu preciso sair daqui... quero esquecer o meu passado... —ela riu.

—Eu sei, Anne. Eu sei ..., entretanto, algo me diz que deve esperar um pouco mais.

—Teve outra visão? —Perguntou levantando o rosto.

—Não, é um ligeiro palpite. Talvez, se me disser o que sonhou e porque esse corvo a assustou tanto... —ela insistiu.

Anne sentou-se devagar, caminhou até a janela, que tinha um buraco e suspirou. Seria conveniente dizer-lhe a verdade? O que pensaria dela quando revelasse o que viu? Por muito tempo a olhou com ódio, com receio depois de confessar que perdera a virgindade com Dick. Ele cometeu um erro, e pagou com acréscimo. Agora era hora de libertar sua dor, seu pesar e fazer com que sua mãe a observasse com respeito.

—Anne... —disse Sophia se levantando. Caminhou até ela, pôs a mão no seu ombro e apertou com ternura. Eu prometo que não vou julgá

la. Sei que está pensando sobre o que aconteceu entre nós no passado. Eu sinto isso aqui, no meu coração. Mas não é mais uma jovenzinha, mas uma

mulher inteira, e eu juro, pelo sangue que ambas temos, que não irei mais julgá-la, mas sim ajudá-la em tudo que puder.

—Tem certeza? —Perguntou sem olhar para ela.

—Totalmente.

—Ontem conheci um homem —disse ela depois de respirar. --

Tentei desviar o olhar, para não o notar, mas não consegui controlar algo tão básico quanto meus olhos. Talvez eu não devesse ter olhado tanto para ele...

possivelmente ele não teria me descoberto se.... -- Ela suspirou tristemente.

—E?

—E sonhei com ele. Uma música me tirou de uma cama que não era minha, andei em uma estrada desconhecida, vi aquele corvo e ele me levou para um prado. Havia uma fogueira... não queimava... eu toquei, entrei e....

—Ele saiu do fogo? Mostrou em seus olhos imagens do seu futuro? —Perseverou, virando-a para ela.

-- Não sei se era meu futuro, mas sei que tudo me assustou --

confessou.

—Oh, querida! —Sophia exclamou segurando-a com força. --

Chegou! Ele chegou!

V


—Bem, aqui me tem. O que diabos quer? -- Philip disse quando abriu a porta do escritório de Logan sem esperar ser anunciado.

—Boa tarde, obrigado por vir tão rápido. Desta vez, apenas quinze horas se passaram desde que lhe pedi para vir à minha residência --

disse estendendo a mão para seu amigo.

—Sou um homem muito ocupado, lorde Bennett —disse sarcasticamente enquanto apertava a mão forte e o abraçava com um irmão. ?Ou se não, pergunte a amante que deixei para vê-lo.

—Uma nova? ?Logan perguntou quando se sentou.

—Não me lembro do nome dela, mas sim, é nova. Essa vida sedentária me aborrece demais para ficar sempre com a mesma mulher... --

 

disse desabotoando os botões da jaqueta marrom.

—O dia que encontrar sua futura esposa, certamente que terá que suportar uma vida estável e virtuosa...

—Antes prefiro comer um rato vivo! —Exclamou Philip horrorizado. —O que aconteceria comigo sem o prazer do sexo? Ah, nem quero pensar nisso! —Exclamou divertido. Se recostou na cadeira, moveu as costas da direita para a esquerda para caber em um encosto tão pequeno e olhou para Logan. —Qual é a sua preocupação?

—Como sabe...? —Ele tentou dizer.

—Porque me chamou com urgência e porque seu rosto tem tantas sombras que parece um espírito errante. O que ocorre? Tem problemas na vida idílica de Riderland? Ou sua amante o expulsou do quarto dela?

—Terminei meu relacionamento com ela há algumas semanas atrás —ele disse enquanto pegava a caixa de charutos.

—Porque motivo? Não era mais tão carinhosa? Ela mostrou sua verdadeira personalidade? —Persistiu zombeteiramente.

—Queria consolidar o relacionamento e não aceitei. Ela sempre foi...

—Uma amante —disse Philip. —Muito poucas reconhecem a posição dada a elas. É por isso que nunca durmo com a mesma mulher duas vezes.

—Por acaso dorme uma? —Perguntou estreitando os olhos.

—Certo! —Giesler exclamou divertido. Uma vez que parou de sorrir, pegou um dos charutos que Logan oferecia, acendeu e soltou a fumaça calmamente. —O que há de errado? —Repetiu.

—Três dias atrás, depois da festa que meu irmão Roger fez em sua residência...

—Uma loucura, segundo ouvi -- interveio Philip.

—Foi convidado.

—Não pude ir.

—Porque não quis.

—Porque eu tinha outro arranjo mais interessante —explicou Giesler, soltando outra nuvem de fumaça.

—Continuo ou irá me explicar que arranjo foi esse?

—Mulheres e sim, pode continuar.

—Quando voltei da festa, o Sr. Moore veio aqui.

—O médico? Está doente? Por que não me contou? O que diagnosticou? —Philip gritou, arregalando os olhos e inclinando-se para a frente.

—Não estou doente, então pode ficar tranquilo —Logan assegurou-lhe esboçando um grande sorriso.

—Menos mal... —comentou com alívio. Só faltava ficar doente e ter sua irmã Valeria o dia todo ao seu lado falando sobre dever, lealdade e o futuro que o aguardaria sendo o barão.

—A razão pela qual o médico apareceu foi implorar para que eu levasse a primogênita de suas filhas com a tripulação em nossa próxima viagem.

—Por que pediu tamanha loucura? —Falou, erguendo as sobrancelhas loiras.

—Porque, de acordo com ele, uma maldição recai sobre ela que

afeta toda a família —explicou com uma voz cansada.

—Santo céu! Eu pensei que tinha ouvido todas as besteiras do mundo! —Exclamou Philip brincalhão. —Esse homem é realmente um dos melhores médicos de Londres? Porque, depois disso, começo a duvidar de seu grande julgamento... —acrescentou ao trocar o charuto de mão.

—Bem, acredite ou não, aquele pobre homem parecia muito convencido de suas palavras —disse Logan ao pegar o envelope que o Dr.

Moore lhe dera antes de sair. Fechou-o de má vontade e jogou-o na mesa. --

Me pagou adiantado —resmungou —e me deu uma foto da moça.

—Viu a foto? Sua imagem não está enfeitiçada? —Ele perguntou divertido.

—Não diga bobagem! Isso é muito sério... -- ele avisou. -- O Sr.

Moore quer se livrar da jovem o mais rápido possível.

—Mas... o que aconteceu para aquele pobre coitado alegar tal absurdo? Por acaso não pensou que usando a palavra maldição, a rejeitaria antes que terminasse a frase? —Ele retrucou, pegando o envelope. Olhou-o de maneira esquiva e observou que havia cerca de quinhentas libras dentro. Muito dinheiro para um médico. Isso só avisava que estava muito desesperado.

—Deduziu tanta loucura —enfatizou —porque os dois noivos de sua filha morreram.

-- Augen des Teufels[1]! -- Trovejou Philip engasgando com a fumaça do charuto e largando o envelope sobre a mesa como se estivesse queimando. —Os dois? Mortos? —Retrucou perplexo. -- E quer que nos acompanhe na próxima viagem? Se estivesse no seu lugar, teria chamado uma sacerdotisa para limpar a aura da minha casa... não percebeu que somos jovens demais para morrer? O que aconteceria se viajássemos com ela? Um polvo gigante nos atacaria? Ah, pobre Valeria! Quão triste seria quando seu irmão morresse entre os tentáculos de um polvo sem ter aceitado o baronato!

?Ele ironizou, incapaz de parar de rir.

—Quer levar o assunto com um pouco de seriedade? —Logan trovejou. -- Estamos falando sobre a reputação de uma mulher e daquela que assumido durante esse tempo.

—Eu levo, meu amigo, eu levo —continuou ironicamente.

—Não entendo como pode estar tão desesperado para acreditar que isso mudaria minha decisão -- disse se levantando. Colocou as mãos nas costas e começou a andar. -- Entendo que ele não pensou, nem por um momento, no problema que sua filha causaria no navio. Quando os homens estivessem em alto mar por um pouco mais de duas semanas... —Logan apertou os lábios. Não queria pensar sobre o que aconteceria se ocorresse uma fatalidade, ou o que ele poderia fazer naquele momento. Era melhor deixar sua mente em branco do que imaginar que um homem pudesse tocá

la... cortaria sua garganta no ato!

—Sim, não tenho dúvida de que eles se matariam pelo prazer daquela mulher —continuou zombeteiramente. —Acho que até eu participaria dessa briga. Sabe que eu não posso ficar muito tempo sem uma amante na minha cama...

—Feche essa boca agora mesmo! —Ele ordenou. —Ninguém irá tocá-la! Entendido?

Philip afastou a fumaça do charuto com a mão para poder observar melhor o amigo. Aqueles olhos azulados tinham mudado para uma cor tão escura que até uma noite tempestuosa no meio do oceano não poderia assustá-lo tanto. Meditou calmamente as palavras que iria dizer, mas, como não encontrara algo sensato ou sério, permaneceu em silêncio.

—Vou devolver esse maldito pagamento e deixar claro que não irei levá-la no meu navio —disse Logan depois de recuperar a atitude serena.

—Acho que é uma decisão muito sábia. Dessa forma, continua a manter a educação e a dignidade de um cavalheiro de sua linhagem e protege suas costas dessa maldição, no caso do médico não estar errado ...

—Não faço por isso! -- Ele gritou novamente.

—Então... por que está fazendo isso, meu amigo? —Insistiu. --

Existe algo que não me contou? Essa talvez seja a razão pela qual me fez sair do meu quarto sem dizer adeus à mulher com quem descansei esta noite?

—Antes de lhe dizer por que o fiz vir, gostaria de explicar o que John descobriu sobre essas mortes —disse Bennett, voltando para a cadeira, recostando-se e olhando para o amigo sem piscar.

—John? Ótimo! Isso está ficando cada vez mais interessante! --

Disse Philip, apagando o charuto no cinzeiro de vidro que Logan tinha em sua mesa. Estendeu a mão e encheu um copo de conhaque. Era muito cedo para beber, mas algo lhe dizia que precisaria se embriagar novamente para aceitar a conversa que manteria em seguida. —Por que diabos pediu ajuda àquele índio? Dúvida das minhas capacidades? Lembre-se que, antes de vigiar as suas costas, trabalhei com Borsohn na Scotland Yard. Ele poderia ter me informado o que aconteceu sem ter que pedir favores ao cão fiel de seu irmão.

—Não fique com raiva, Giesler, mas sabe que John é o melhor rastreador que já conheci e, além disso, não recebi um sinal de vida seu desde que desembarcamos. O assunto tinha prioridade absoluta —declarou rapidamente. O maior defeito que seu amigo poderia ter era o orgulho e, se ele não queria que sua amizade estivesse em perigo, teria que escolher suas palavras muito bem, de modo que uma questão tão pessoal não afetasse o relacionamento deles.

—Como bem sabe, tenho uma irmã muito irritante, e se eu não tivesse aparecido em casa assim que colocasse meus lindos pezinhos em

Londres, ela teria aparecido na minha residência gritando como um vendedor de peixe -- ele resmungou.

—Certo. É por isso que não queria incomodá-lo. Além disso, sei que Martin fica ansioso para vê-lo quando voltamos e também estou ciente de que a Sra. Reform poderia me mandar para a forca, se eu tirasse seus dias de folga —esclareceu Logan, finalmente esboçando um enorme sorriso. É claro que ele conhecia o caráter da Sra. Reform e não havia dúvida de que o sangue espanhol, que vagava em suas veias, era mais perigoso do que dez homens habilidosos no arremesso de facas. —É por isso que escolhi o John.

—E o que descobriu? —Disse Philip, aceitando a derrota.

A explicação foi tão convincente que não se sentiu magoado. Era verdade que seu irmão Martin esperava por ele toda vez que desembarcava. Por mais improvável que parecesse, durante os dias em que morava em Londres, ele deixava a universidade, onde lecionava aulas de matemática avançada, e conversava durante horas sobre o que acontecera durante sua ausência. Logicamente, para Martin descobrir uma nova fórmula com a qual encontrar o mesmo resultado era algo fascinante, tanto que seus olhos brilhavam. Já seus olhos só brilhavam desse modo quando uma nova amante se despia em seu quarto. Mas é claro, Martin Giesler não herdara o dom de seduzir mulheres, mas a capacidade de matá-las de tédio por que...

quem queria ouvir essas palestras sobre questões aritméticas quando

poderiam se esconder em um canto e satisfazer uma paixão repentina? E, por outro lado, havia Valeria... ela poderia esquecer o tema do baronato e da procura de uma esposa? Nunca! Sua irmã tinha esses dois temas gravados em sua mente e mal o cumprimentava, com sua efusividade usual, já perguntava... «Visitou nosso avô? Encontrou uma mulher? " «Não e não», respondia antes de ouvir os gritos ensurdecedores de Valeria e os conselhos amorosos que seu marido Trevor lhe oferecia.

—Seu primeiro pretendente foi o senhor Hendall —começou a explicar. ?Morreu depois de cair de um garanhão. De acordo com John, ele visitou um dos clubes de Hondherton antes de tentar retornar à sua residência.

—Bem, a única coisa que ouvi sobre Hendall foi que a sua empresa não prosperava como desejava e que a principal razão para essa destruição era seu amor pelo jogo, bebida e as companhias inapropriadas todas as noites —disse Philip depois de tocar sua barba loira incipiente.

—Sim, isso mesmo. John conversou com o Dr. Flatman e com um dos ex-funcionários de Hendall e ambos concluíram que ele ingerira muito Bourbon para controlar o cavalo que montava —Logan disse calmamente.

—Isso é chamado de imprudência ou estupidez da parte do estimado Sr. Hendall, então não tem nada a ver com a maldição que Moore fala. Pode me dizer quem foi o segundo pretendente? Estou ansioso para

conhecer a versão que o índio lhe deu —disse Philip com um tom inquisitivo.

Descansou as costas ligeiramente no respaldo da cadeira e cruzou as pernas compridas pelos tornozelos.

—Era o filho dos Condes de Hoostun —disse depois de respirar. —E toda Londres sabia que ele não nasceu com uma mente sensata, por isso seus pais o mantiveram escondido na residência. Embora o conde desesperado como era, vendo que seu fim estava próximo, temia por seu famoso título, caso não tivesse descendentes, e decidiu encontrar uma mulher saudável para ajudá-lo com seu propósito.

—Em suma, esse pretendente era um tanto demente e o conde exasperado pensava que o casando com a filha de um médico, não só ele fixaria a cabeça de sua prole, mas também poderia dar a ele uma prole normal

—resumiu Giesler. —Bom raciocínio, sim senhor. O que o matou?

—Infelizmente, depois que o noivado foi divulgado, ele decidiu limpar a arma e levou um tiro —disse Logan, irritado. —Embora tenha receio de que a versão correta tenha sido a de que ele não aguentou a pressão do casamento e decidiu encerrá-la ele mesmo.

—Uma vez que um acordo é feito, apenas a morte pode livra-lo dele —disse Philip antes de deixar escapar uma risada.

—Não é engraçado! —Logan gritou, se levantando e colocando as palmas das mãos sobre a mesa. —Ela acha que é a culpada por essas

mortes!

—Me desculpe excelência. Não queria zombar do sofrimento daquela jovem desventurada —disse Giesler com uma mistura de espanto e sarcasmo. —Foi uma impertinência de minha parte alegar tamanha insensatez. Imploro seu perdão.

Logan olhou para ele com raiva. Apesar dessas palavras, seu rosto não mostrava nenhum sinal de arrependimento. Em vez disso, ele expressava escárnio, o mesmo que queria fazer desaparecer com um bom soco de direita. No entanto, não o havia chamado para discutir, nem para se envolver em uma briga, mas porque precisava, mais do que nunca, da sua ajuda.

—Sinto muito... —disse depois de se acalmar. —Este tema me incomoda muito. Mas odeio a injustiça e me parece muito cruel que uma jovem carregue a morte de dois homens nas suas costas —acrescentou ele, sentando-se novamente.

—Aceito suas desculpas e espero que aceite as minhas —ele disse calmamente.

Logan assentiu levemente, admitindo o pedido de desculpas, enquanto Philip, sem deixar de olha-lo, tomava outro gole da bebida.

—Quero que me acompanhe até a residência dos Moore --

pediu. -- É por isso que o chamei com tanta urgência.

E naquele momento, o licor que Philip escondia dentro de sua

boca, saltou como se fosse água de uma das fontes que sua irmã tinha no jardim.

—O que disse? —Perguntou, enxugando os lábios na manga. --

Está sugerindo que o acompanhe até aquela casa onde o próprio Moore declara que há uma maldição? —Não disse que não quero morrer ainda? O

que pretende?

—Não há maldição —ele murmurou. —Nós dois deduzimos que foram incidentes infelizes. E a única coisa que pretendo é devolver esse bendito pagamento. —Ele indicou com o queixo o lugar onde estava o envelope.

—Não pode enviar Kilby? Certamente estará muito mais seguro do que nós —explicou como uma alternativa.

—Quero ir pessoalmente, Philip. Para mostrar a ele que não há maldição naquela casa.

—Kilby também pode enviar uma nota explicando que é um homem ocupado e....

—Não! Não farei isso! Pensaria que tenho medo dela!

—Ela? Quem? A viúva negra? Certamente já tem assumido...

—Vai me acompanhar? —Logan gritou com raiva.

—Então a razão pela qual me chamou foi, única e exclusivamente, continuar protegendo suas costas... —ele refletiu, tocando

sua barba novamente.

—De certo modo…

—O que está me escondendo, Logan Bennett? —Giesler perguntou, apertando os olhos. —Se não acredita nessa maldição, por que precisa da minha presença?

—Porque não seria apropriado aparecer desacompanhado em uma casa onde há cinco jovens casadoiras —disse por fim.

—Cinco! —Exclamou, arregalando os olhos. —Esse pobre homem tem que casar cinco mulheres? Essa é a maldição, amigo! Como pode ter tantas filhas?

—Sua irmã tem quatro —disse ele.

—Sim, e mais dois homens. Mas ela não terá nenhum problema em encontrar um marido. Reform será o problema porque não achará apropriado nenhum homem que tente se casar com elas. No entanto, estamos falando do Sr. Moore e da maldição. Embora já tenha me explicado que todas as mortes ocorreram de maneira racional, começo a duvidar... O que acontecerá se entrarmos nesse castelo mortal? Nós vamos morrer quando sairmos? Uma carruagem vai nos atropelar? Um raio nos atingirá, apesar de não ver uma única nuvem no céu? Ou pior ainda... —continuou falando enquanto se levantava e se dirigia para a porta, como se dentro do escritório de seu amigo não houvesse oxigênio suficiente para respirar. —Não pensou

que alguém poderia nos ver entrar naquela casa e espalhar o boato de que pretendemos cortejar uma dessas cinco mulheres?

—Vai expor mil desculpas para não ir? Me forçará a pedir ajuda a John? Quer que o informe que se recusou a me proteger porque tem medo de cinco meninas? —Rosnou. Philip Giesler era tão orgulhoso que não consentiria em ser substituído pelo índio em outra missão.

-- Amaldiçoo o índio, seu senso de honra e a miserável maldição! —Exclamou, abrindo a porta bruscamente.

—Isso é um sim?

—Que diabos está esperando? —Grunhiu, pegando a maçaneta como se quisesse arrancá-la. —Não tenho o dia todo.

—Obrigado —Logan disse depois de pegar o envelope e caminhar em direção ao seu amigo.

—Não me agradeça até eu voltar para casa vivo —disse ele antes de bufar como um dragão. —Espero não encontrar uma bruxa naquela casa ou terá que me levantar do chão.

—John me disse que são jovens adoráveis... cinco adoráveis mulheres que não são capazes de ferir nem uma pequena flor —disse sorrindo como uma criança travessa.

—Sim, amáveis e amaldiçoadas —Philip acrescentou antes de fechar a porta do escritório com um grande estrondo.

VI


Anne saiu da cama com o cabelo molhado. Três noites... O sonho não a deixava em paz e se repetia toda vez que adormecia. Fizera todo o possível para fazê-lo desaparecer. Até leu um dos livros de Mary! Mas nem mesmo enchendo a cabeça com dados clínicos e doenças mortais o manteve fora de sua mente. Pelo contrário, estava se tornando mais real e o sentia com tanta intensidade que acordava banhada em suor pela paixão que vivia nele. Não via mais nos olhos do homem o que aconteceria, segundo sua mãe, no futuro. Desde a segunda noite, ambos acabavam nus no chão daquele pequeno prado e se entregavam a um desejo sem precedentes.

Perturbada, esfregou o rosto, se levantou e foi a sala de banho. Não podia perder muito tempo, sua mãe apareceria a qualquer momento para perguntar se o corvo a visitara novamente. Como não queria mentir, responderia sim e ela sairia com um sorriso de orelha a orelha. No entanto, a felicidade de sua mãe lhe causava uma dor terrível, porque não tinha sido capaz de explicar que o homem que aparecia naquele sonho era um parente do Marquês de Riderland. Como um aristocrata poderia ter sangue cigano? Um primo, sobrinho ou o que quer que o relacionasse com o marquês, não teria sangue vermelho nas veias, mas azul. Ainda admitiria que a maldição estava prestes a terminar se ela descobrisse quem ele era?

Possivelmente não. A ilusão que a mãe mostrara durante o dia se transformaria em agonia e Elizabeth sairia de casa procurando o pretendente ideal. As únicas que pareciam impassíveis a essa esperança eram suas outras irmãs, que continuavam com suas vidas rotineiras após a feliz reunião de família.

Ela abriu a torneira, tirou a camisola e deixou o corpo relaxar em um banho quente de espuma. Algo que uma vez pareceu maravilhoso para ela, já não dava prazer. Não estava contente com nada e era esmagador não encontrar alguma paz onde antes havia encontrado. Ensaboou o cabelo e enxaguou sem confirmar se estava brilhante. Retirou-se da banheira, vestiu o robe de seda preta e, quando saiu da sala de banho, encontrou Sophia debruçada sobre Mary.

—Ela ainda está dormindo como um tronco -- disse com raiva. ?Cobri o nariz dela para ver se acordava, mas começou a respirar pela boca.

—Ontem leu outro livro até... -- ela tentou dizer.

—Tanto faz! —Interrompeu. —Não vou deixar que passe seus anos vivendo desse jeito! —Exclamou com raiva. —A partir de hoje, Shira removerá as cortinas da janela —apontou com o dedo para o lugar onde a janela estava —de modo que alguma luz entre no quarto. Vamos ver se, dessa forma, ela entende que não pode dormir até a hora do almoço —acrescentou,

enquanto caminhava em direção a ela. —Mas não vim aqui para ficar com raiva... —suavizou seu tom de voz. -- Queria saber se sonhou com ele hoje.

—Sim, mãe. O corvo também apareceu essa noite —respondeu, fixando os olhos no chão, para não mostrar o constrangimento causado por falar de algo tão íntimo com sua mãe.

—Maravilhoso! —Exclamou dando-lhe um beijo na bochecha. --

Isso significa que aparecerá em breve e que nossas tristezas estão prestes a terminar —continuou em uma voz satisfeita.

—Se diz... —ela murmurou.

—Não confia em minhas palavras? Duvida de mim? —Como sua filha não levantou o rosto, ela colocou um dedo sob o queixo e o levantou. --

Anne, se lembra de onde eu venho? Está ciente do sangue que eu tenho?

—Sim —ela disse, olhando-a nos olhos. Nunca, em seus quase vinte e cinco anos de vida, havia visto tanto brilho naquele olhar verde.

—Querida, esta noite, antes de ir para a cama eu orei a Morgana e pedi a ela que me levasse para o seu sonho.

—O que disse? —Perguntou se afastando dela e arregalando os olhos.

—Mas ela não me presenteou esse momento —disse, sorrindo de orelha a orelha. —A criadora nunca interrompe a intimidade de um casal.

E Anne pôde respirar com tranquilidade.

—O que mostrou?

—Morgana me ofereceu uma bela foto da família, a mesma que Madeleine comentou naquela tarde. Pela primeira vez em vinte e cinco anos, não havia escuridão sobre nós, mas luz.

—Tem certeza? Realmente acha que o homem que vejo dormindo vai nos livrar de tudo isso?

—Por que desconfia? Está escondendo algo importante de mim? —Perguntou, apertando os olhos.

—Não, mãe.

—Então, com o que está preocupada? Pensa que estou tão desesperada que sou capaz de provocar essas visões?

—Não! Nunca faria uma coisa dessas! —Disse rapidamente.

—Por favor... —Mary disse em uma voz sonolenta. —Meu cérebro precisa de descanso...

—Seu

cérebro

precisa

de

umas

palmadas!

--

Sophia trovejou virando-se para a segunda filha. —Levante-se de uma vez! Não se lembra que esta manhã nós temos que sair?

—Vai me comprar mais livros? —Perguntou sem tirar os lençóis do rosto.

—Claro que não! —Exclamou a mãe para a cama, na qual ela só podia ver uma colcha rosa e os tubos metálicos que Mary havia enrolado em

seus cabelos negros.

—Então... me deixe dormir!

—Mary Moore, quero que afaste essas cobertas agora mesmo! --

Sophia ordenou como se ela fosse do alto escalão do exército.

—Mãe, reconsidere sua decisão —Anne pediu quando a viu se aproximar dela. ?Acho que seria mais apropriado não nos acompanhar nessa saída familiar. Esqueceu o que aconteceu da última vez que a forçou a se juntar a nós?

Sophia olhou para a primeira filha, depois para a segunda e franziu a testa. Claro que ela se lembrava! Não só ela, mas qualquer habitante de Londres! Como poderia esquecer que ela bateu na carruagem do filho de um lorde com os punhos, porque, depois de uma conversa acalorada sobre uma descoberta médica, ele disse a ela que deveria se concentrar em manter a boca fechada? Nem mesmo as quatro xícaras de tília que tomou quando retornaram acalmaram o constrangimento que ela e o resto de suas filhas sofreram.

—Tudo bem, —disse. —Até que sua situação seja esclarecida, é melhor ficar longe de nós.

—Obrigada. Fez o correto.

—Se diz... —murmurou. -- Vou esperar na sala de costura. Preciso verificar certas coisas antes de sair.

—Minhas irmãs estarão lá? —Queria saber enquanto seguia em direção ao guarda-roupa.

—Não, Elizabeth está na estufa, ela me disse que precisava plantar algumas sementes que o seu pai trouxe ontem à noite. Madeleine ajuda a cozinheira com uma nova sobremesa e Josephine disse algo sobre tentar limpar o cano de um instrumento —explicou sem tirar os olhos de Mary.

—Não demorarei a descer —assegurou Anne, apertando os lábios para não rir quando ouviu a palavra instrumento. Sua mãe não percebia que o instrumento era outra arma? Apesar da reprimenda que recebeu depois de ter perfurado o vidro da sala de descanso, ela ainda estava determinada a colocar em suas mãos o que era proibido.

—Antes de descer preciso que faça duas coisas.

—Que deseja? —Perguntou se virando para ela.

—Quero que hoje use o vestido esmeralda —a informou.

—Não é muito elegante? Lembre-se que compramos para uma ocasião especial. —Tentou dissuadi-la.

—Se aquele homem está prestes a chegar, quero que note sua beleza e não os decotes que Elizabeth exibe.

—Mas...

—Não há discussão possível sobre esse assunto! Entendido? --

Assegurou.

—Sim mãe, o vestido esmeralda. Qual é a segunda coisa que quer me pedir? -- Perguntou Anne com resignação.

—Antes de sair, lembre à sua querida irmã que, mesmo que não estejamos em casa, ela tem que descer arrumada. Se ousar deixar esse quarto de camisola... será punida para sempre! -- Sophia apontou antes de sair do quarto.

?Nem pense em repetir, ?disse Mary, virando-se no colchão. Já ouvi isso. Eu e qualquer um que esteja a cinco quilômetros de distância.

—Mas ela está certa Mary. Não é apropriado que saia de camisola. Se tiver dificuldade em se vestir antes de tomar o café da manhã, peça a Shira para subir com ele.

—Acho que é uma boa ideia... irei deixar o quarto de camisola e gritar para ela do alto da escada para trazê-lo.

—Mary...

—Faça-me um favor, Anne. Vista-se em outro quarto. Minha cabeça dói depois de ouvir tanto absurdo.

—Acha que a mamãe vai esquecê-la? Realmente acredita que poderá evitá-la para o resto da sua vida?

—No momento, só quero evitá-la hoje... amanhã, amanhã me preocuparei em continuar lutando contra ela.

Anne olhou para ela sem piscar, maravilhada com a atitude desafiadora de Mary. Não entendia como era capaz de continuar dormindo depois de ouvir as ordens de sua mãe. Até o mais feroz soldado tremeria! No entanto, ela não parecia se importar com nada além de seus livros. Depois de suspirar profundamente e rezar para que um dia mudasse de comportamento, virou-se para o guarda-roupa, pegou o vestido que a mãe indicara, um lenço laranja e foi na ponta dos pés até a porta.

—Se encontrar Shira, diga a ela que estou doente, assim não abrirá as cortinas —ela pediu, se virando de novo na cama.

Sem responder a esse pedido, Anne saiu do quarto, fechou a porta e, quando estava caminhando em direção ao quarto das gêmeas, encontrou Shira.

—Senhorita! —Exclamou horrorizada ao ver que levava nas mãos as roupas escolhidas para sair. -- Por que não esperou por mim?

—Bom dia, Shira. Mary está doente e não quero incomodá-la.

—Doente? O que tem dessa vez? —Retrucou, colocando as mãos na cintura.

—Febre, eu acho...

—Bem, a senhora ordenou que abrisse as cortinas e sabe que nunca desobedecerei a sua mãe.

—Pode esperar, por favor, até nós estarmos fora de casa? Não

quero ouvir mais gritos por hoje —pediu.

—Sua mãe indicou que o faça depois de ajudá-la a se vestir, então...

—Entendo —disse, entregando suas roupas para Shira.

Uma vez que chegaram ao quarto das pequenas, a donzela fez um grande esforço para deixá-la como sua mãe havia indicado. Apertou tanto o espartilho que seus seios pareciam tão grandes quanto os melões que comprava no mercado. O que ela queria? Que lutasse contra a beleza de Elizabeth? Então, era uma batalha perdida. Onde a terceira das Moore tinha uma altura ideal para ser mulher, ela superava uma cabeça. Seus olhos eram castanhos e seu cabelo era tão escuro como a noite. Elizabeth herdara os olhos azuis e os cabelos dourados como ouro. Além disso, quando andava mal movia o tecido da saia, Eli parecia uma dançarina de balé. Compará-la?

Superá-la? Não, poderia se comparar a ela ou superá-la. A única coisa em que ela se destacava era aquela paixão selvagem com a qual nasceu. Elizabeth, ao contrário, se comportava descaradamente, mas no momento da verdade valorizava sua virgindade acima de tudo.

—Como sua mãe previu, esse vestido se encaixa perfeitamente --

recuou Shira quando terminou de arrumá-la.

—Ainda não estou satisfeita, mas é verdade que é tão bonito que não notarão a minha altura, mas o brilho de seda —disse, olhando para si

mesma no espelho.

—Se subestima, senhorita, é uma mulher muito bonita, tudo o que precisa fazer é confiar em si mesma.

—Obrigada Shira —agradeceu dando-lhe um beijo enorme na bochecha.

—Desça o mais cedo possível, sua mãe está esperando e tenho que deixar a luz entrar em seu quarto. Espero que sua irmã não decida me jogar o último livro que tem debaixo do colchão.

—Se o fizer, feche a porta, porque é enorme! —Exclamou entre risadas.

Depois de relaxar, caminhou na ponta dos pés, para que Mary não a ouvisse antes que Shira abrisse a porta, parou no topo da escada e olhou para baixo. De repente, alcançou o corrimão e o agarrou. O que acontecia com ela? Por que ao olhar para a porta seu coração começou a bater tão rápido? Por que seus joelhos queriam tocar o chão? Sufocada e assustada com essa mudança repentina, ela desceu lentamente as escadas sem largar o corrimão. No entanto, quanto mais perto chegava da entrada, mais sua fraqueza aumentava e seu batimento cardíaco ecoava em seus ouvidos como as balas das armas de Josephine.

—Morgana... —se dirigiu pela primeira vez à mãe sobre quem Sophia falava —o que acontece comigo? O que quer me dizer?

Depois de descer o último degrau, emaranhou o lenço laranja nas mãos e respirou com dificuldade. Queimava. Aquela peça de roupa que no andar de cima estava fria pela temperatura ambiente, na frente da porta, ardia.

Desenrolou-o de suas mãos, pegou-o com as pontas dos dedos e o arejou. As quatro borlas costuradas nos quatro cantos se moveram quando o sacudia e, de repente, um halo de luz cruzou aquele lenço. Assustada, mais do que nunca, o agarrou com força e, sem diminuir o passo, foi a sala de descanso. Quanto mais cedo se apresentasse à mãe, mais cedo tudo o que estava acontecendo desapareceria.

—Está ótima! ?Sophia exclamou ao vê-la. —Mas não quero que use isso —acrescentou, apontando para o lenço laranja que sua filha estava segurando firmemente em sua mão direita. —Não vê que não é apropriado?

—Gosto dele... —sussurrou. Como havia imaginado, assim que entrou na sala, seu corpo recuperou a normalidade e o lenço parou de queimar.

—É horrível! -- Insistiu sua mãe. -- Não gosto da cor, nem do tecido nem das borlas. Onde comprou? Ultimamente faz coisas sem me consultar...

—Comprei no mesmo dia em que Elizabeth comprou aquele chapéu de flores —explicou, caminhando em direção a ela.

—No estabelecimento da Sra. Jancks? Ela não mostrou outros

menos... laranja?

—Oh sim! Mas nenhum me agradou tanto quanto este... —ela comentou enquanto o colocava em seus ombros.

—Nem pense em sair com isso, Anne Moore! Ou deixa na cadeira ou...!

Não conseguiu terminar a frase de aviso porque alguém bateu na porta. Sophia olhou para a entrada da sala, depois para a filha e respondeu.

—Entre.

—Senhora, me perdoe por te interromper —disse Shira, mostrando duas bochechas vermelhas no rosto —mas tem uma visita.

—Uma visita? —Perguntou Sophia levantando as sobrancelhas.

—Para nós?

—Não Senhora. Dois cavalheiros vieram procurando pelo Senhor. No entanto, quando os informei que não estava em casa e não chegaria até o final da tarde, um deles insistiu...

—Em que? —Sophia exigiu saber.

—Em conversar com a senhora —afirmou sufocada.

—Comigo? —A sra. Moore perguntou perplexa.

Por que queria falar com ela? O que poderia ser tão urgente para não esperar pela chegada do marido? Quem seriam esses cavalheiros? Sophia respirou fundo, empurrando as perguntas e a inquietação que causavam a ela.

Teria que adotar o comportamento da esposa de Randall, o médico mais admirado de Londres, e receber aquelas visitas inesperadas como ditava o protocolo. Caminhou lentamente até o meio da sala, espalmou no vestido de seda bege, levantou o queixo e disse para sua governanta:

—Faça-os entrar. Irei recebê-los —disse com determinação.

—Tem certeza? —Shira perguntou, de olhos arregalados. --

Posso dar uma desculpa razoável. Uma senhora com suas filhas, sem a companhia do marido...

—Estou —disse Sophia, lançando um olhar furtivo para a mais velha de suas filhas para que ela pudesse ficar ao seu lado e adotar a postura adequada para receber os visitantes.

—Quem serão? —Anne perguntou olhando para a porta. —Por que insistem em falar com a senhora e não retornam quando o papai estiver?

—Assim que eles aparecerem por aquela porta, descobriremos --

declarou Sophia solenemente.


***


Shira, depois de confirmar que mãe e filha haviam se colocado no lugar certo e adotado a postura perfeita, afastou-se da entrada, voltou ao salão e informou ao homem insistente que a sra. Moore os atenderia naquele

momento.

—Me acompanha? —Logan perguntou para Philip, que tinha dado um único passo em frente e não tinha a intenção de dar nem um mais.

—É seu problema, não meu. Além disso, em nosso acordo não há referência sobre protegê-lo de uma dama amaldiçoada —disse Giesler.

—Vai me deixar sozinho? Não quer descobrir como é a mãe dessas cinco filhas? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas.

—Não quero saber nada sobre nada. Tudo o que estou tentando fazer é salvar minha pele enquanto devolve esse bendito envelope. Além disso, se me encontrar em perigo, esta área da casa é o local ideal para sair sem olhar para trás —declarou Philip depois de estudar com precisão o interior da casa dos Moore.

Enquanto seguiam para a residência, pensou em como seria a casa e seu entorno. Para sua paz de espírito, não encontrou nada de estranho. A residência era bastante espaçosa e iluminada. Aquela escuridão que tinha visto em sua mente não era real. A luz do dia entrava pelas janelas do primeiro andar e alcançava os vasos cheios de flores colocados em ambos os lados da escada que se comunicava com o segundo andar. A construção desse segundo andar era muito parecida com a sua. Um amplo patamar, uma escadaria de cerca de quarenta degraus de mármore claro, uma grade de madeira escura e, atrás daquele amplo patamar, havia duas galerias; uma

levava para a ala direita e a outra levava para a esquerda. Também havia percebido que do lado de fora, no grande jardim, uma pequena estufa de vidro fora construída. Tudo isso lhe dizia que a família Moore, apesar dessa maldição que supostamente caía sobre eles, era uma família razoavelmente rica; do contrário, não teriam um lar tão semelhante ao de um aristocrata.

—Está bem. Se algo assustá-lo, grite e virei em seu auxílio --

Logan disse, achando graça antes de começar o caminho que a criada apontava para ele.

Giesler o observou até que estava na frente da porta e recuperou o fôlego quando o viu endireitar o casaco, adotar uma postura rígida e confirmar que o envelope ainda permanecia no bolso direito. Naquele momento, não o invejava. A única coisa que sentia por seu amigo era misericórdia. O pobre tolo foi para a sala onde estava a mãe das meninas amaldiçoadas. Só esperava que ele saísse de lá inteiro e.... vivo.

Logan respirou fundo, pegou a maçaneta, a girou e, quando deu um passo à frente, congelou. Tinha pensado nisso. O pensamento cruzara sua mente mil vezes enquanto se dirigiam para a residência Moore, mas uma coisa era a atitude que adotara durante aquela imagem mental, na qual controlara perfeitamente seu estranho desejo por ela, e outra bem diferente era encontrá-la de uma maneira real. Se na festa, naquele vestido laranja, ela já parecia a mulher mais bonita de Londres, vê-la ali, no meio da sala,

esperando sua chegada com aquele vestido esmeralda o deixara tão impressionado que teve que chamar sua razão para poder dar mais um passo em frente.

—Bom dia, Sra. Moore. —Ele olhou para a esposa do médico, fazendo um grande esforço para parar de observar a jovem, que, ao vê-lo, empalidecera. —Sou o visconde de Devon e pretendia falar...

Logan não terminou a frase porque nesse momento correu em direção a Anne. A jovem, depois de dar o segundo passo, começou a vacilar.

—Anne! —Sophia exclamou quando viu como sua filha estendia uma mão para ela, para evitar uma queda. —Anne! O que há de errado? --

Gritou desesperada.

E, justamente quando Anne estava no meio desse colapso para cair, quando o seu corpo ia bater no chão, Logan chegou a tempo de pegá-la e erguê-la em seus braços.

—Pelo amor de Deus! —Sophia gritou, imitando as palavras que o marido usava quando alguma coisa o deixava perplexo.

Não sabia o que a chocava mais, se o desmaio inesperado Anne ou como o homem a segurava. Suas mãos grandes e poderosas se agarraram ao vestido de Anne de um jeito tão possessivo, tão rude, que as pontas daqueles dedos perfurariam a roupa da filha e acabariam criando marcas em sua pele.

—Madame... —Logan começou a dizer colocando a cabeça da jovem em seu tórax, sentindo o hálito de sua respiração acariciando seu peito e como seu coração respondia àquelas respirações. —Onde posso…?

—Lá! —Apontou o sofá que o marido utilizava para cochilar enquanto ela costurava.

Com um passo firme, Bennett foi até o lugar que a Sra. Moore indicara e, com muita gentileza, colocou Anne no sofá.

—Shira! —Gritou Sophia enquanto corria para a porta. --

Shira! Repetia desesperada.

—Senhora? —Perguntou, aparecendo quando Sophia ia sair da sala.

—Pegue os sais! —Ordenou. —Anne sofreu um desmaio.

E naquele momento, um grito veio da entrada.

VII


Ele sabia amaldiçoar em muitos idiomas, todos aqueles que aprendera desde que começou a ler.

Quando notou que seu rosto estava aquecido pela luz que entrava pela janela, Mary cobriu os olhos com o antebraço direito e gritou horrorizada. Por que as cortinas estavam abertas? Anne não explicou à Shira que ela não deveria fazer isso porque estava doente? Não acreditou nela? Sua mãe continuava a impor seus desejos? Ninguém na casa entendia que ela deveria descansar depois de passar uma noite enchendo seu cérebro com uma sabedoria exaustiva?

-- Für alle Übel der Welt[2] ! —Gritou depois de puxar o lençol de seu corpo como se em vez de ser feito de algodão ele estivesse cheio de cardos espinhosos. —No dia em que tiver minha própria casa, ordenarei que deixem o quarto no escuro até eu acordar -- disse, emburrada, enquanto colocava os pés no chão. -- E miserável de quem ousar desobedecer a minha ordem!

Levantou-se e, como de costume, caminhou até a porta descalça, de camisola e com aqueles rolos nos cabelos que Shira a forçava a usar antes de dormir. Quando a mão dela tocou a maçaneta, sorriu de orelha a orelha, olhou em direção a janela, para confirmar que o desafio que faria era uma

resposta para a batalha que sua mãe começou ao puxar as cortinas, e abriu a porta. Com uma atitude confiante e corajosa, porque imaginara que todos haviam ido às compras, caminhou pelo corredor sem se preocupar e bocejando. Um café. Ela precisava de um café antes de aguentar a árdua tarefa de se lavar, vestir e pentear o cabelo.

Com os olhos fechando e abrindo, pois, a sonolência não desapareceria até que tomasse o primeiro gole de café, pensava sobre a diferença entre as cinco irmãs ao acordar. Anne pulava da cama, entrava na banheira e desfrutava de um longo banho de espuma. Elizabeth não saia do quarto sem estar asseada, vestida e, claro, perfeitamente penteada. Se a curvatura do lado esquerdo não se ajustasse às dimensões e ao laço exato, de modo que a ponta do cabelo tocasse levemente a pele de seu enorme decote, voltava para o quarto e não saía até conseguir. Josephine tinha que fazer seus exercícios matinais. Claro, esses exercícios não eram usuais em uma mulher. A quarta filha jogava facas em uma pintura que ela escondia debaixo do colchão, no mesmo lugar em que mantinha aquela meia dúzia de punhais com os quais ela praticava. Se verificasse que sua pontaria não tinha melhorado desde a noite anterior, se asseava, vestia as roupas que sua mãe odiava, descia, tomava café da manhã e saia para o jardim com a nova arma em suas mãos. Madeleine... a pequena era de outro mundo. Toda vez que se levantava, ela mostrava um enorme sorriso no rosto. Tudo a fazia feliz, nada

a incomodava e ela se sentia muito à vontade... em casa. Seu rosto angelical desaparecia quando tinha que sair de casa. E por outro lado, estava ela, que precisava de uma boa xícara de café para entrar na banheira porque, enquanto suas irmãs desfrutavam de um banho quente, ela ficava em alerta no caso de, em algum momento, a caldeira a gás emitir ruídos estranhos, como aconteceu com Lorde Fhautun antes de ele sair disparado junto com a banheira.

Em suma ... cinco filhas, cinco personalidades.

Antes de virar à esquerda para se colocar no patamar do segundo andar, ela coçou a bunda por cima da camisola e um enorme bocejo fez com que fechasse os olhos e abrisse tanta boca que parecia a mandíbula de uma baleia. Com os olhos ainda fechados, ela estendeu a mão que havia tocado sua nádega ao corrimão e começou a descer as escadas até ouvir algo parecido com um grunhido. Surpresa, ela juntou os lábios, abriu os olhos e....

gritou com toda a sua força.

—O que está fazendo aí parado? Quem o deixou entrar?

?Perguntou, quando terminou de gritar, para o homem que estava parado na porta, olhando para ela com uma expressão de medo e se aproximando da porta, como se precisasse confirmar que ainda estava perto da saída.

-- Eine Hexe! -- Philip exclamou, incapaz de tirar os olhos daquela imagem aterrorizante. O que era aquilo que via? Um fantasma? Um diabo? Que criatura da natureza seria? O que quer que fosse, tinha que sair

dali o mais rápido possível, porque, pelo que tinha na cabeça, deduzia que era parente da deusa Medusa e poderia transformá-lo em pedra a qualquer momento.

—Me chamou de bruxa? —Mary explodiu irritada ao ouvir como ele a chamara em alemão. —A mim? —Naquele ataque de raiva ela colocou as mãos no cabelo, rapidamente desfez os rolos de metal que tocava lançando-os com toda a força que sua raiva lhe dava. —Não sou uma bruxa pedaço de asno! —Continuou gritando irritada, jogando os bobes nele como se fossem dardos.

—O que diabos está jogando em mim, bruxa? —Philip perguntou, movendo-se da direita para a esquerda, para que o que ela estivesse jogando não o atingisse. —Quer me transformar em pedra?

—Em pedra? -- Agora sim que não podia ficar com mais raiva. Ele a estava comparando a Medusa, a deusa que, através dos seus olhos, transformava as pessoas em pedra? Dando um puxão forte em seus cabelos, ela conseguiu tirar mais de cinco rolos de metal de uma só vez e atirou todos contra aquele ingrato. -- Vai saber o que significa se tornar uma pedra, titã desgraçado! Arsch! Dumm[3]!

—Mary Moore! —Exclamou Sophia, vendo o que a segunda de suas filhas estava fazendo. —Chega!

—Não! Nunca vou parar porque esse asno me chamou de bruxa!

A mim! Na minha própria casa! —Gritou com tanta raiva que as veias de seu pescoço pareciam as cordas que eles usavam na Idade Média para enforcar os ladrões.

E naquele momento Josephine veio em socorro, segurando com força a última espingarda que seu pai lhe dera. Se colocou entre sua irmã e o estranho, levantou o cano e apontou para o peito grande.

—Saia desta casa se quiser continuar vivo porque, mesmo sendo uma mulher, posso puxar o gatilho e ter uma bala atravessada no seu coração

—avisou.

—Josephine Moore, abaixe essa arma agora mesmo! —Sophia gritou sufocada, aturdida e prestes a se tornar a bruxa que nomeara Mary.

E como não há dois e sim três, Madeleine correu da cozinha quando ouviu tantas vozes. Mas quando viu um homem de tal tamanho na porta, sua irmã Josephine apontando a arma para ele, Mary na escada de camisola, puxando os bobes, e sua mãe tentando colocar a paz na situação, ela parou a corrida, se virou e abriu a porta da sala de descanso, o lugar ideal para se esconder. No entanto, também havia pessoas na sala. Madeleine arregalou os olhos, levou a mão direita à boca e gritou ao ver que um homem, que beijava Anne até que o interrompeu, virou a cabeça para ela e a olhou sem piscar.

—Já... está! Veio...! Maldição! Ele... —Ela voltou para a cozinha,

gritando entre soluços.

Sophia ficou a cinco passos da sala e a sete de onde estava aquele cavalheiro loiro. Olhou para a esquerda e bufou enquanto observava Madeleine correndo e gritando palavras sem sentido. Então ela voltou os olhos para Josephine. Ela ainda não havia cumprido sua ordem e continuava a apontar para o peito daquele cavalheiro hercúleo cujo rosto estava mais branco do que o da menina assustada. Por que Morgana lhe oferecia uma situação tão absurda? Deveria passar por esse calvário para encontrar a paz? Não era normal o que acontecera em menos de dois minutos: Anne desmaiara ao entrar aquele cavalheiro que não pôde nem se apresentar, Madeleine tinha visto algo naquela sala que a desequilibrara, Josephine ainda com a arma nas mãos, apontando o peito do homem que não conseguia afastar os olhos de Mary. Se alguma vez pensou que os espetáculos que sua segunda filha oferecia nas reuniões médicas eram bastante humilhantes para ela, estava errada. Aquilo superava tudo o que tinha visto em sua vida!

—Josephine Moore, eu disse, abaixe a arma! —Ela repetiu com mais energia e desespero.

—Mãe, eu prometo que vou fazer isso assim que esse homem afastar o olhar de Mary. Caso continue a observá-la dessa maneira, descobrirá que sob a camisola ela está nua —Josephine exclamou.

E naquele momento Mary gritou novamente. Josephine continuou

apontando para Philip e, apesar de ouvir o aviso de quem segurava a arma, não desviou o olhar da mulher, a quem chamaram de Mary, tentando descobrir que figura feminina teria a diabólica Medusa.

—Vá agora para o seu quarto, Mary Moore! Espero que isso a ensine a não descer sem se arrumar —explodiu Sophia. —Eugine! --

Chamou a cozinheira.

Mas Mary não subiu, ela ficou lá, petrificada pelo constrangimento, contemplando furiosa como o atrevido estava procurando o ângulo perfeito para descobrir o que estava escondido sob a longa camisola.

—Sim senhora? —Disse rapidamente a criada, que, antes do burburinho que se formara em um piscar de olhos na casa pacífica, abandonou suas tarefas para ir até a entrada.

—Faça para Madeleine um chá calmante e que não saia da cozinha até que tudo isso esteja sob controle —disse sem tirar os olhos de Josephine.

—Sim, senhora —disse antes de se virar e procurar a filha mais nova.

—Shira! —Chamou a governanta.

—Estou aqui, senhora —respondeu às costas de Sophia.

—Dirija-se à sala de estar e deixe que Anne inspire os sais para ver se ela acorda imediatamente. Não saia de lá até eu limpar toda essa

bagunça porque o cavalheiro que queria falar comigo, continua sozinho com ela —disse seriamente.

—Agora mesmo —Shira respondeu, dando passos rápidos para a sala.

—Se não abaixar a arma, Josephine, prometo que não terá uma enquanto estiver respirando. Juro pelo meu sangue que as aulas de esgrima e as escapadas para o campo com o seu pai irão acabar —ameaçou sua quarta filha.

—Mãe... —ela disse, abaixando a arma. —Esse homem…

—Senhor! —Sophia a corrigiu. —Ele é um homem que apareceu em nossa casa para procurar seu pai e.... como o trataram? —Ela gritou, olhando para Mary e depois para Josephine. —Que imagem minhas filhas ofereceram? É assim que expressam a educação que com tanto esmero demos às duas? -- Persistiu em voz alta.

Josephine, descobrindo a extensão da raiva materna e assustada com as repercussões que teria, decidiu pedir desculpas antes que sua mãe pegasse todas as suas espadas, facas, rifles e os entregasse ao primeiro ferreiro que passasse pelos arredores de sua casa. Ela deu dois passos em direção a Philip, abaixou a arma e estendeu a mão.

—Desculpe por apontar a arma e por querer atirar no senhor. Mas, como entenderá, não foi correto olhar para a minha irmã desse

jeito —ela esclareceu com orgulho. —Só fiz o que qualquer homem faria no meu lugar.

—Desculpas aceitas, senhorita Moore e acredite em mim eu a entendo perfeitamente. —Aceitou uma saudação tão masculina. --

Certamente eu teria reagido como a senhorita se um estranho entrasse em minha casa e olhasse com atrevimento o corpo seminu da minha irmã --

acrescentou, ainda incapaz de afastar os olhos de Mary Moore e lhe dar um sorriso leve e sedutor.

Depois que ele a perdoou, Josephine se virou, olhou para a mãe, assentiu, colocou a arma no ombro direito e voltou para o lugar de onde havia saído com um passo militar.

—Mary... —avisou sua mãe quando viu que ainda estava no alto da escada e tinha mais alguns cilindros de metal na mão.

—Nunca me desculparei com um sujeito rude! —Gritou, se virando para subir as escadas.

Mas justo quando chegou ao patamar, quando apenas devia sair pelo corredor da esquerda para ir ao seu quarto, olhou de lado para o homem e seu corpo se encheu de raiva. Ele estava olhando seu traseiro? Aquele grosseiro, mal-educado e desbocado tinha os olhos fixos na sua bunda? Respirou fundo, lançou um olhar assassino e, depois de jogar outro daqueles rolos metálicos que segurava na mão direita, correu para seu quarto.

Assim que a calma reinou no local, Sophia respirou fundo, esboçou um largo sorriso, caminhou em direção ao cavalheiro que suportara estoicamente aquela situação desastrosa, estendeu a mão e disse:

—Bom dia senhor…

—Giesler —disse Philip, escondendo na palma da mão esquerda o último rolo que a bruxa morena de olhos azuis jogara nele, depois de descobrir que ele não desviou o olhar do seu traseiro.

Aceitou a mão dela e deu-lhe um beijo casto nas juntas.

—Bom dia, Sr. Giesler. Sinto esse alvoroço, espero que possa esquecer facilmente. Minhas filhas são meninas muito calmas e sensatas --

ressaltou.

—É claro, Sra. Moore. Testemunhei o bom senso do qual fala e devo parabenizar a senhora e seu marido pela educação erudita que elas estão mostrando.

—Sarcasmo, Sr. Giesler? —Sophia disparou, erguendo a sobrancelha.

—Completamente, senhora —disse com um sorriso que cruzou seu rosto.

—Quer me acompanhar até a sala? Exceto pelo desmaio da minha primogênita, certamente será um lugar menos perigoso.

—Obrigado pelo convite, mas, se não se importar, continuarei no

corredor, perto da saída, para o caso de suas queridas filhas quererem me mostrar de novo aquelas atitudes tão tranquilas e delicadas que ensinou —ele disse tentando não olhar para cima, onde a bruxa dos rolos de metal tinha saído.

—Como quiser —Sophia disse, estreitando os olhos para descobrir para onde os do Sr. Giesler estavam se dirigindo. «Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente combater os sentimentos que esse homem despertará nela a partir do momento em que se encontrem pela primeira vez», lembrou. Se virou, olhou para cima, confirmando que Mary não estava, endireitou as costas, adotando a atitude mais digna que poderia ter naquele momento e retornou à saleta. Ainda tinha que resolver a questão mais importante, quem era aquele homem e o que queria.


***


Uma vez que a deitou no sofá que a Sra. Moore apontara, Logan se forçou a manter as mãos longe da jovem. Por que agia assim? Por que todo o seu ser o incitava a não se afastar da jovem e a guardá-la como se nada no mundo importasse a não ser ela? Atordoado por aquele súbito desejo de proteção, mesmo acima de sua própria vida, ele deu um passo para trás.

—Pegue os sais! —Ele ouviu a ordem da esposa do médico

quando se afastou deles. —Anne sofreu um desmaio.

Mas naquele exato momento um grito foi ouvido na casa. Logan se virou para a porta e deu um passo à frente. Aquele grito de terror só poderia ser de Philip. Foi isso que lhe disse antes de deixá-lo na porta, que se algo terrível acontecesse, ele gritasse e deixariam a casa dos Moore sem olhar para trás. No entanto, o desejo de descobrir o que aconteceu com seu amigo desapareceu quando percebeu que a própria Sra. Moore estava correndo em direção ao salão e deixando-o sozinho com a jovem a quem ela chamara de Anne. O médico lhe contou o nome de sua filha? Naquele momento, não se lembrava bem de ter feito isso, a única coisa que podia especificar era o estado de ansiedade que o pai mantivera durante sua breve visita.

Sem pensar se era conveniente estar sozinho com ela, ele se virou e a olhou por algum tempo. Como poderia se sentir tão atraído por uma mulher que não conhecia? Por que seu sangue atingiu uma temperatura sem precedentes? O que havia de especial nela? Ainda pensando em como seu corpo reagia ao estar tão perto da jovem, ele recuou do passo que havia dado e se colocou tão perto dela que seus joelhos tocaram o vestido. De onde estava, podia ver aquele grande e volumoso seio subindo e descendo no ritmo da respiração lenta. Ela parecia tão relaxada, tão longe de onde estava, que notou como essa paz que ela sentia se apoderava dele também. Aquele rosto, apesar

de

pálido

devido

ao

desmaio,

mostrava

uma

beleza

incomparável. Seus lábios, ligeiramente separados, convidaram-no a beijá-los com ternura e discrição. Logan se recusou a fazer o que sua mente estava gritando com desespero, apenas um vilão se aproveitaria de tal ocasião.

Ele preferia beijar mulheres acordadas e ver nos olhos delas o brilho que oferecia a paixão de seus lábios. No entanto, ela era tão especial, tão diferente de todas as que conhecia... ela não tinha a beleza de sua última amante, Rose, nem a força de Barbara, a mulher africana com quem ela vivera durante sua viagem à África. A senhorita Moore era única, diferente e especial. Logan a olhou de cima a baixo, concentrando-se no lenço laranja que ainda segurava na mão esquerda. Ela não percebia que aquela tonalidade era imprópria a uma mulher em sua posição? Só precisava levar algumas joias em suas mãos e orelhas para expressar a todos quem ela realmente era. «Minha esposa é cigana —recordou a conversa com o médico, —mas mantivemos segredo para o bem das nossas filhas». Pois a primogênita do casamento, não arrastava apenas a maldição da qual ele falou, mas suas entranhas gritavam que seu sangue era diferente do resto de Londres.

«Ela não esconde o que é», disse a si mesmo enquanto se ajoelhava. «Você, ao contrário, foge da realidade, da sua natureza, da sua verdadeira origem», continuou pensando enquanto sentia como o sangue que ele chamava de contaminado assumia o controle quanto mais tempo passava com ela.

Parecia estranho, não só por causa do que estava acontecendo com ele ao lado de Anne, mas por causa dos sentimentos que vinham de dentro dele. Tentou raciocinar, como costumava fazer aquela parte Bennett que aparecia nele toda vez que estava em apuros. No entanto, a parte que ele odiava, seu lado cigano, atacou com força dentro dele, sua cabeça se encheu de ideias absurdas. Como ele apagaria de sua vida o que aconteceu depois de seu nascimento? A humilhação a que foi submetido, a desordem que sofreu até aquela piedosa mulher levá-lo até seu irmão e, depois de implorar piedade por um filho bastardo que tinha que viver com dignidade, permaneceu sob sua proteção. Não podia esquecer sua origem, nem como todos gritavam que ele era o filho do diabo, nem se davam conta de que a pessoa que finalmente lhe dava seu sobrenome tinha sido um vilão apenas para uma mulher que ele mal conhecia.

Olhou para os lábios dela novamente, aumentando a preciosa visão de seu desejo de beijá-la. Anne tinha uma boca tão tentadora, tão sedutora que queria descobrir como eram aqueles lábios vermelhos. Se inclinou sobre ela, respirou com dificuldade, como se precisasse inspirar o perfume da jovem para sobreviver, levou sua boca à dela, fechou os olhos, beijou-a e, naquele instante, algo ainda mais estranho aconteceu.

De repente, tudo ao seu redor ficou escuro como se alguém tivesse apagado a luz do sol. O silêncio que permanecia no quarto foi

interrompido por uma música suave. Ele estreitou os olhos, esperando poder visualizar algo naquela escuridão e o encontrou. Uma luz laranja e rosada apareceu na sua frente. Atônito, estupefato e inquieto, ele estendeu as mãos para frente, procurando pelo corpo de Anne, mas ela não estava ali, desaparecera como uma névoa matinal. O que era aquilo? Onde estava? Logan sentiu os pelos em seu corpo eriçarem, como a temperatura do corpo começou a subir tanto que sobravam todas as roupas que tinha. De repente, um estranho sufocar tomou posse de sua garganta. Oprimido, levou as mãos à gravata e puxou para se livrar do nó. Quando conseguiu que seus pulmões tivessem um pouco de oxigênio, levantou-se lentamente, incapaz de desviar o olhar daquela luz na sua frente. Suas mãos adquiriram vida própria e se espalharam novamente, como se buscassem um ponto para se segurar.

Inexplicavelmente, apesar da escuridão, apesar de não distinguir nada ao redor, exceto aquela luz, seus dedos atingiram algo suave, delicado.

—O que quer de mim? -- Perguntou. -- Onde estou?

Ninguém respondeu. A única coisa que continuava ouvindo era a música que dizia para ele atravessar o fogo, para andar sobre ele, porque entre as chamas estaria à verdade. Respirou fundo, olhou para aquela luz inquieta e, quando pretendia seguir em frente, Anne chamou sua mãe e tudo desapareceu...

Logan piscou várias vezes, tentando acostumar seus olhos àquela

súbita mudança de luz. Ele havia voltado para a casa dos Moore, estava ao lado da jovem e ela o fizera voltar, com um simples sussurro, de onde havia estado. Muito lentamente, se ajoelhou novamente diante de Anne, estendeu a mão direita sobre seu rosto e o acariciou devagar.

—Quem é você Anne Moore? O que me aconteceu ao beijá

la? -- Perguntou com um leve murmúrio.

Enquanto seus dedos acariciavam aquele rosto com cuidado, percebeu uma ligeira mudança de cor vermelha onde quer que ele a tocasse. Era como se ele pudesse reacender a pele que tocava. O dom da vida, o dom da eternidade... sem tirar os dedos de sua bochecha lisa, Logan se inclinou em direção a ela para respirar o ar que expelia de sua boca. Aqueles lábios, que uma vez sussurraram uma palavra que o tirou daquela alucinação, novamente lhe pediam um beijo. Sem se separar de Anne, tomando cada respiração de seu ar, tentou assimilar o que estava acontecendo com ele. Havia beijado mais de cem mulheres desde que começara a masculinidade, tinha beijado apaixonado, suave, insuportável, ruim, prejudicial e até louco, mas nenhum como o que tivera com Anne. Apenas um toque, um toque leve e casto o transportara para um mundo sombrio e distante. Essa seria sua maldição? Ao tocar seus lábios já estaria predestinado a morrer? Aquela escuridão que tinha visto era a última coisa que seus pretendentes viram? Então, quando terminou de se fazer essa pergunta,

balançou a cabeça lentamente. Não, pelo menos um deles não tinha visto isso: o filho do conde. De acordo com John, eles nem se conheciam para que pudessem se beijar, apenas o Sr. Hendall teve tal privilégio. E de repente, um sentimento de posse tomou conta dele outra vez. Queria pegar Anne em seus braços novamente e deixar aquela casa com ela enredada debaixo de seu corpo.

—Maldita seja! -- Exclamou sentado em seus próprios calcanhares. Acariciou seus cabelos, oprimido por esses pensamentos, pela ansiedade de beijá-la, tirá-la de lá, afastá-la do mundo e ficar com ela... para sempre. -- O que fez comigo, cigana? —Perguntou baixinho. —Me enfeitiçou? —Continuou enquanto os dedos de sua mão se moviam lentamente pelo queixo e pelo pescoço, passando devagar pelo generoso decote. —Porque se assim for, me tem ajoelhado, prostrado aos seus pés.

Como continuava sem responder, sem acordar, Logan afastou os dedos daquele busto feminino e baixou lentamente para pegar sua mão. Estendeu os dedos, longos e finos, próprios de uma mulher tão magra quanto ela e prestou atenção a uma pequena mancha entre eles. Tinta. Ela havia sido manchada com tinta branca. Detalhe que não o surpreendeu porque John também contara sobre sua fama como retratista. Aproximou seus lábios para aquela área e, com um movimento suave, fez aquela mão negligente acariciá-lo. Aquele contato, aquele leve toque de uma mão

delicada em sua barba, causou uma alteração sem precedentes nele: sua masculinidade saiu de controle, seu corpo se alargou tanto que as roupas estavam muito apertadas e ele estava sem fôlego. Surpreendido ainda mais por essas reações, abaixou a mão lentamente, colocando-a no lugar em que estivera e, quando estava debruçado, quando deveria se afastar para não tentar a sorte duas vezes, ele a beijou. Embora desta vez não se contentasse com um toque suave. Seus lábios prenderam o lábio inferior de Anne, capturando o gosto de sua boca, a suavidade daquele lábio feminino. Fechou os olhos, para aproveitar por mais tempo aquele prazer simples e requintado, e foi quando a porta se abriu. Logan tentou se afastar para que a pessoa que acabara de aparecer não deduzisse o que havia acontecido ali. Mas tudo o que pôde fazer foi virar lentamente seu rosto para a jovem de cabelos ruivos e olhos azuis que, ao tentar explicar que só queria confirmar que estava respirando, se virou e começou a gritar desesperada. Irritado por não conseguir se controlar, caminhou até a porta. Precisava sair dali e tentar explicar o que havia acontecido. No entanto, naquele momento a Sra. Moore ordenava que uma criada fosse para onde ele estava. Se virou para o centro da sala, mantendo uma distância considerável de Anne, enquanto a donzela entrava.

—Milorde, com sua permissão... —ela disse, mostrando o pote de sais.

—Claro —respondeu, sem desviar o olhar da moça.

Rapidamente, a criada, a quem a Sra. Moore chamara de Shira, se ajoelhou ao lado dela, colocou o braço esquerdo sob a cabeça de Anne e a fez inalar esses sais para despertá-la.

—Shira... —a jovem murmurou quando abriu os olhos. —Oh, Shira! —Ela exclamou, descobrindo que, exceto por ela, não havia mais ninguém ao seu redor. Finalmente o pesadelo acabou. O homem não estava...

No entanto, quando Logan se aproximou para perguntar se estava bem, ela o olhou e desmaiou novamente.

—Acho que é melhor deixá-las sozinhas porque, como posso ver, a minha presença não causa nenhuma melhoria para a senhorita Moore --

Logan comentou, um tanto confuso.

Por que desmaiava ao vê-lo? Por que não podia ficar acordada? O

que acontecia com ela? Tinha ouvido alguma conversa sobre ele? Teriam dito que era um libertino, que andava com mulheres de reputação discutível? Ou, talvez, pensava que ele queria propor casamento a ela e, depois das mortes de seus pretendentes anteriores, não queria assumir mais uma morte?

«Maldição», essa foi a palavra que seu pai usou para confirmar seu desejo de tirá-la de Londres. Mas depois do que aconteceu, ele precisava descobrir muito mais sobre ela.

—Obrigado, milorde —disse a criada, tirando-o de seus

pensamentos.

Com solenidade, com o andar próprio de um Bennett, Logan seguiu para a saída com a firme ideia de esclarecer o que acontecera. No entanto, quando estava prestes a chegar à porta, a Sra. Moore apareceu. Seu rosto ainda mostrava confusão e um leve tom de vermelho persistia em suas bochechas, provocado, talvez, pelo que acontecera do lado de fora da sala.

—Milorde —ela não comentou nada, mas o viu.

—Ela ainda está inconsciente —explicou Logan.

Sophia se aproximou da filha, acariciou suas bochechas e apertou sua mão com força, a mesma que Logan havia beijado momentos antes.

—Seria melhor se nos retirássemos —ela pediu, olhando para ele com preocupação. —Posso atendê-lo no escritório do meu marido, se ainda quiser falar comigo.

—Sim, claro. Vim para resolver um assunto e não irei embora sem fazê-lo —respondeu Logan com firmeza.

—Então, se fizer a gentileza de me acompanhar —disse Sophia, andando na frente do visconde.

VIII


Silenciosamente, Logan deixou a sala atrás da esposa do médico e a seguiu até a sala ao lado. Antes de virar para a esquerda, para onde a anfitriã se encaminhava, olhou para Philip. Ele nem sequer notou sua presença porque não tirava os olhos do andar de cima. O observava como se, a qualquer momento, a própria rainha fosse aparecer. O que teria acontecido e por que ele não conseguia tirar os olhos daquela parte da casa? Ele parecia até mais alto do que já era, com seu corpo estando tão rígido! Se não se acalmasse, as costuras de seu terno cor de vinho estourariam. Logan ficou ainda mais desconfortável quando observou o rosto de seu amigo. Ele tinha um desespero semelhante ao que expressava depois de navegar por três meses em alto mar sem uma amante para aquecer sua cama. Quem ele conheceu para deixá-lo tão desnorteado? Estaria com medo ou talvez ansioso? O que quer que fosse, uma vez que os dois se afastassem da residência, falariam sobre isso, porque, se ele estava confuso depois de beijar Anne, Philip revelava um caos ainda maior na dureza de sua expressão.

Com uma caminhada serena, ele avançou pelo escritório do Sr.

Moore. Uma grande estante cheia de tomos negros estava atrás de uma mesa de mogno escuro. Sobre ela encontrou uma centena de papéis, dando-lhe a entender que o bom doutor passava várias horas naquele lugar e que a

desordem era um dos seus grandes defeitos, além de achar que Anne estava amaldiçoada.

—Peço desculpas pelo comportamento que minhas filhas demonstraram, milorde —começou a dizer Sophia, enquanto caminhava em volta da mesa. —Meu marido geralmente não recebe visitantes em nossa casa. Todos aqueles que desejam falar com ele aparecem na clínica que fica localizado na Baker Street —esclareceu. —Aceita um café, talvez chá?

—Não, obrigado -- Logan respondeu enquanto esperava que a anfitriã lhe oferecesse um lugar para sentar. —Peço-lhe que me perdoe por ser a causa de tal situação, mas a razão pela qual estou em sua casa é da maior importância e não tem nada a ver com a ocupação de seu marido.

—Estou ouvindo, milorde —disse Sophia, apontando para uma das duas cadeiras que Randall tinha diante de sua mesa.

—Primeiro de tudo —Logan começou tirando algo do bolso esquerdo. —Gostaria de lhe oferecer meu cartão de visita. Não fui capaz de entregá-lo a sua criada porque ela ficou nervosa e saiu correndo, nem tampouco pude me apresentar adequadamente quando entrei na sala.

—Meu marido sempre me advertiu que minhas filhas precisam fazer o desjejum antes que se possa manter uma conversar com elas --

explicou, aceitando o cartão e observando o visconde abrir os botões de seu paletó verde-escuro antes de se sentar. ?Mas hoje pulei essa regra e, como

pôde ver, tiveram as consequências que meu amado marido me advertira --

acrescentou como meio de desculpa para o desmaio de Anne. Não era conveniente explicar que a sua presença a havia perturbado de um modo sobre humano e que estava ansiosa em terminar essa conversa para descobrir a verdadeira razão pela qual sua filha desmaiou quando o viu.

Depois de falar, Sophia leu o nome que havia escrito no cartão de visitas e se esqueceu de respirar. Esse homem era o irmão do marquês de Riderland e da melhor amiga de Elizabeth? Seu marido não havia dito que a pessoa a quem ele pedia o favor era o visconde de Devon? Ele não percebeu que era um parente direto do marquês e de Natalie Lawford? «É tão inteligente para as suas coisas e tão desleixado para outras... " ela pensou.

Sophia respirou fundo, fazendo com que seu peito se sentisse pressionado pelo espartilho, devolveu o cartão de visitas e adotou a postura que deveria oferecer a esposa de Randall Moore, um excelente médico, mas um distraído sem esperança.

—Sei quem é, milorde —ela explicou sem rodeios. —Meu marido me contou sobre a visita que ele fez há algumas noites atrás e também me informou que se recusou a aceitar sua proposta.

—Esse foi o motivo para me apresentar em sua casa neste momento tão inapropriado —disse ele, pegando o envelope do bolso direito. —Não irei aceitar a sua oferta —acrescentou ele, depositando-o sobre

a mesa.

—Não parece quantidade suficiente? —Sophia insistiu, olhando dentro do envelope, procurando a foto de Anne. Randall não dissera que lhe dera um retrato para que ele soubesse quem era? Então... onde estava? Teria sido perdido?

—Não é sobre isso, senhora. A quantia é muito adequada, no entanto, rejeito essa proposta por razões morais —ele respondeu seriamente.

Logan ficou perplexo ao ver como a esposa do médico olhou para o envelope. Duvidava dele? Desconfiava de sua honra apesar de se apresentar em sua casa? Porque não faltava nada no envelope, a não ser a foto que, depois de pegá-la do chão, estava guardada no bolso esquerdo do colete que ele usava.

—Motivos morais? —Ela disse, deixando o envelope sobre a mesa. —O que quer dizer, milorde?

—Seu marido apareceu em minha residência me pedindo para levar sua primogênita entre minha tripulação. Quando me recusei a fazê-lo, ele disse algo sobre uma maldição —disse Logan com um pouco mais de calma, observando que a Sra. Moore não notara que a foto da filha estava faltando. —Pelo que entendi, acreditam que Anne é amaldiçoada e que é a causa da morte de seus dois noivos. Estou certo?

—Não acredita em maldições, milorde? —Disse Sophia direta,

suportando a satisfação de ouvir como o visconde se referia à sua filha pelo seu primeiro nome.

—Não quero dizer que elas não existam, mas no caso de sua filha não existe —afirmou com integridade.

—Como pode ter tanta certeza? —Sophia perguntou, apertando as mãos e mantendo as costas completamente rígidas.

—Depois da visita do seu marido, pedi a um dos meus homens mais leais que falasse com o Dr. Flatman sobre as verdadeiras causas das duas mortes. O primeiro, embora fosse um cavaleiro experiente, bebeu mais de duas garrafas de Bourbon antes de montar um garanhão. Deduzindo que seu estado de embriaguez não permitisse que ele controlasse o feroz animal em que galopava.

—Continue —disse Sophia, surpresa e confusa ao ouvir que ele se dera ao trabalho de investigar os pretendentes de Anne.

Como deveria se sentir? O mais sensato era com raiva, mas não estava. Ela estava muito relaxada, demasiado para estar na frente de um aristocrata tão famoso pelo berço em que nasceu. No entanto, a forma como a olhava, o modo como falava com ela e até mesmo a expressão em seu rosto não eram comuns a um homem de sua classe social. O visconde tinha algo que era muito familiar para ela, mas... o que era?

—O segundo pretendente de sua filha, não era um homem

pleno. O conde o manteve preso em sua casa desde que nasceu porque, como descobri, ele sofria episódios de delírios e depressões.

—Delírios e depressões? Interessante... —Sophia murmurou, movendo o pé esquerdo rapidamente sob a mesa. Sinal inequívoco de que aquele homem lhe transmitia tranquilidade. Até agora, toda vez que ela tinha que falar com um aristocrata, se mantinha rígida como uma tábua e controlava cada movimento, no entanto, com ele tudo parecia diferente. Elizabeth não havia dito em alguma ocasião que os Bennetts eram uma família peculiar? Bem, talvez ela estivesse certa...

—Então, temo que não suportou a pressão que o conde exercia sobre ele —assegurou com firmeza.

—Então, de acordo com seu julgamento, não há maldição, estou certa? —Ela falou, apertando os olhos.

—De fato, não existe. E parece injusto que faça sua filha acreditar nesse tipo de tolice —disse ele com relutância.

—Suponho que tenha perguntado sobre esses terríveis acontecimentos porque queria confirmar que a maldição não era real e que sua exposição seria irrefutável. —Logan afirmou com um aceno suave. --

Sendo esse o caso, por que se recusa a levá-la em seu navio? A que se referiu quando disse razões morais, milorde?

—Não é apropriado para uma mulher viajar em um barco cheio

de homens —disse Logan.

—Conheço muitas mulheres que viajaram de barco para a Europa e nada lhes aconteceu porque o capitão observou pessoalmente a sua segurança. Não é um desses, milorde? Se recusaria a protegê-la? —Disse mordaz.

—A trataria com o respeito e a proteção que eu ofereceria à minha própria irmã, a senhora Moore —disse solenemente ao sentir como sua virilidade estava sendo questionada.

—E se fosse sua irmã, como disse, e não pudesse levá-la, a quem confiaria sua segurança? —Ela reiterou com calma.

—Insiste em afastá-la de Londres? —Explodiu, levantando-se e colocando as palmas das mãos naqueles papéis desordenados.

—Ela quer ir embora, milorde —disse, olhando para ele sem piscar.

Toda Londres conhecia a natureza dos Bennetts: apaixonada, corajosa, orgulhosa, teimosa, trabalhadora, inteligente, respeitosa, sincera, confiável e.... libertina. Mas o que Sophia nunca pensou foi que ela pudesse acrescentar àquela interminável lista de características a falta de respeito. Por que ele perdia o controle tão facilmente? Por que o incomodava tanto que Anne partisse para Paris?

—Por que quer fazer isso? Não é capaz de encontrar um lugar

nesta maldita cidade? —Perguntou fora de si.

—Minha filha, visconde —começou, sua voz terrivelmente suave quando se levantou —nasceu com um dom, o da pintura. Graças a ele, foi capaz de se recuperar da depressão que sofreu após a morte de seu segundo pretendente, mas não a salvará do próximo. —Ela andou até se colocar ao seu lado esquerdo e olhou-o com tanta força que poderia derrubá-lo. —E peço sinceramente que não levante a voz em minha própria casa. Não sou uma mulher comum, milorde. Lembre-se que minha família me ensinou a não me basear nos absurdos protocolos sociais nos quais nasceu. Se não se acalmar, deixará minha casa e não voltará até que meu marido possa atendê-lo, entendeu? —Disse com o mesmo tom que minutos antes repreendera suas filhas.

—Peço mil desculpas —disse Logan, abaixando a cabeça. —Fui impulsivo. —Como havia perdido a compostura tão rapidamente? Por que motivo tratou a Sra. Moore dessa maneira? «Raiva», ele pensou. Sim, a raiva o cegara de tal maneira que não conseguiu raciocinar. Apenas imaginar que Anne iria se afastar de Londres em outro navio, que ela pudesse estar ao lado de outro homem ou que se ela se sentisse em perigo em algum momento e ele não estivesse lá para salvá-la, o irritou. ?Como sabe, venho de uma família que precisa estar unida para ter uma vida plena e tenho dificuldade em acreditar que outras pessoas não mantenham o mesmo apego —disse

calmamente.

—Desculpas aceitas milorde e nossa família é muito parecida com a sua. Tenho que explicar que meu marido agiu com desespero e agonia a pedido de Anne. Nós não queremos que ela saia, pelo contrário, queremos que fique aqui, mas, como eu disse antes, se ela sofrer outra depressão, nada e ninguém poderia salvá-la.

—Porque diz isso? Ela está doente? —Logan perguntou depois de respirar fundo e sentar-se novamente.

—Não agora, mas estará em breve -- disse Sophia com um suspiro. Caminhou até onde o visconde estava e sentou ao seu lado. —Se investigou essas mortes, imagino que também descobriu ao que minha filha se dedica, certo?

—Sim —respondeu sem hesitar.

—E o que acha disso?

—Não entendi sua pergunta —respondeu, virando-se para ela.

-- O que disseram sobre o seu trabalho? —Sophia esclareceu.

—Que tem um grande talento, mas até agora só foi usado por mulheres, embora não tenha havido uma única queixa sobre ela —confessou.

—Sim, de fato —disse se movendo na cadeira até que estivesse olhando para as prateleiras em frente a eles. ?Mas toda essa fama mudaria se alguém descobrisse quem eu realmente sou.

—Se refere a sua origem cigana?

—Exato. Por enquanto, minhas filhas foram respeitadas porque seu pai se casou com uma burguesa, mas... o que aconteceria se tudo viesse à tona? Tenha em mente, milorde, que a vida para nós não é tão fácil quanto é para o senhor. A sua sociedade —disse corajosamente —as rejeitaria e nenhuma delas teria um futuro adequado.

—Acho que é um assunto bem ridículo. Se tem um dom, deve ser elogiado por isso, independentemente de sua procedência ou origem —disse Logan se levantando. Colocou as mãos nas costas, apenas em torno da cintura e começou a andar pelo escritório. —Mas está certa em argumentar que essa questão não beneficiaria suas filhas. Erroneamente ainda se repara no berço em que nasce.

—Isso mesmo —disse Sophia.

—No entanto, ainda não entendo o que tem a ver a maldição que seu marido me contou sobre todo esse assunto —disse ele, virando-se para ela.

—É muito fácil de entender, milorde. —Falou olhando em seus olhos, confirmando não apenas que o jovem havia herdado a cor azul do pai, mas também encontrou certa inquietude em seu rosto. Se preocupa com o assunto? Porque motivo? —Se minha filha Anne partir, não só ela conseguirá se tornar a mulher que deseja ser, mas os cavalheiros desta cidade esquecerão

a miséria que sofremos com seus noivos e cortejarão minhas outras filhas.

Com o tempo, todas encontrarão um marido para protegê-las e ninguém se perguntará se a primogênita realmente matou seus pretendentes.

—Mas ela não os matou! —Ele exclamou um pouco irritado. —A morte chegou a eles por causa de seus maus atos!

—Qualquer pessoa sensata entenderia dessa maneira, mas nem todo mundo esconde uma mente erudita dentro de uma linda cabeça --

argumentou Sophia.

—Seu marido não tentou esclarecer as razões pelas quais eles morreram? —Ele perguntou, diminuindo seus passos abruptamente e virando para a Sra. Moore. —Ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico com sua fama.

—De fato, o senhor mesmo disse; ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico, mas de um pai —esclareceu.

—Entendo... —disse Logan novamente caminhando pensativo.

—Por mais que o tempo passe, o estigma social que Anne possui não poderá ser eliminado a menos que ela saia daqui.

—Não há outra maneira de fazê-lo desaparecer? —Bennett disse.

—Não. Como disse, até agora, minha filha só retratou mulheres porque os homens se recusam a ficar com ela. Não sei se a viu na festa da sua irmã, milorde. Se assim for, tornou-se uma testemunha desse comportamento

indescritível.

—Talvez com o passar dos anos tudo seja esquecido e ela consiga a reputação que merece —sugeriu Logan.

—Talvez, mas... o que aconteceria se, durante esse tempo, minha origem fosse descoberta? Tenho mais quatro filhas e duas delas já são maiores de idade para encontrar um marido. Se houvesse um cavalheiro na cidade que estivesse interessado em alguma delas, tenho certeza de que se perguntaria o motivo pelo qual ainda não encontraram um marido para cuidar delas. Que futuro elas terão caso se revele que sua mãe é filha de ciganos e que os pretendentes da primogênita morreram? Pensarão que foram enfeitiçados, amaldiçoados por meus ancestrais.

—Não acredito que sejam razões suficientes para um homem eliminar seus sentimentos em relação a uma de suas filhas... —disse calmamente. —Quando um homem se apaixona, ele luta contra o mundo para conseguir a mulher que ama.

—Palavras preciosas para um homem que ainda não se comprometeu —Sophia apontou maliciosamente. —Mas acredite em mim quando digo que minhas filhas têm uma marca oculta nas costas e que nenhuma teria um futuro digno se descobrissem que sua mãe é uma cigana miserável.

—Ninguém deve julgar o sangue dos outros —Logan murmurou.

—Não deveriam, mas fazem. Não pode nem imaginar o que sofrerão porque não nascera com sangue azul. Os de sua classe —apontou sarcasticamente -- não são capazes de enxergar além da linhagem das pessoas e, embora meu marido tenha uma fortuna ainda maior que a de alguns aristocratas, nunca o tratarão com a dignidade que merece. —Ela apontou sem reduzir sua raiva.

Logan franziu a testa e se rendeu ao debate porque a Sra. Moore estava certa. Se descobrissem quem realmente era, a sociedade os separaria como se tivessem a peste. Ele mesmo participou da rejeição de outros e de si mesmo. Quantas vezes negou ser a pessoa que realmente era? Talvez desde que soube a verdade sobre o seu nascimento. Mas em sua história o sangue negado era o do Marquês, por violar sua mãe até que ela ficasse grávida. No entanto, graças a Roger, havia seguido em frente e também havia esquecido que, no fundo, não era nada mais que um simples bastardo.

—Quem sabe sua origem? —Perguntou depois de ponderar sobre a parte de sua vida que o machucava.

—Acha mesmo que poderíamos divulgar um segredo de tal índole? Não me escutou atentamente quando expliquei que minhas filhas não teriam um futuro decente se alguém descobrisse que sua mãe é uma simples romani? —Ela disse com tanta raiva que suas bochechas ficaram vermelhas novamente.

—Posso assegurar que muitos daqueles que afirmam ser cavalheiros com sangue azul não são —disse Logan calmamente. —Mas respeito sua preocupação e a de seu marido, mesmo que não entenda isso --

disse ele caminhando em direção a ela.

Sophia bufou de resignação, o mesmo que Mary fazia quando retornava de uma reunião médica na qual um nobre tentava discutir uma nova descoberta científica.

—Por essa razão, gostaria de propor um acordo —começou a dizer depois de concluir que, se havia alcançado a felicidade graças ao apoio de Roger, a jovem teria a sua chance de se livrar desse resquício social.

—Um acordo? —Sophia apontou intrigada. —Qual e por que quer oferecê-lo para mim?

—Entendo sua posição como mãe de cinco filhas e até começo a entender o desespero que seu marido me mostrou algumas noites atrás, mas continuo insistindo em que não deveriam desistir de sua primogênita para que as outras irmãs possam alcançar o futuro que desejam para elas.

—Não queremos nos separar de uma de nossas filhas, milorde --

repetiu Sophia. —Mas temos a certeza de que é a melhor opção para todos.

—Minha proposta é a seguinte: se dentro de um mês, a data em que pretendo partir novamente, não conseguir que sua filha mais velha seja aceita na sociedade e alcance a reputação que merece, irei pessoalmente levá

la para Paris.

—O que irá receber em troca, milorde? —Disse sem aceitar esse compromisso ainda.

—Faça seu marido entender que não há nenhuma maldição e que o sangue que corre em suas veias não é um impedimento para suas filhas serem felizes —disse se aproximando dela e estendendo a mão direita.

—Terá muitos problemas... —ela disse duvidosamente. —Talvez não devesse se envolver nessa questão porquê...

—Haverá acordo, Sra. Moore? -- Logan insistiu, movendo levemente a mão que ainda estava estendida para ela.

—Um mês? —Repetiu, se levantando.

—Sim.

—E mudará a vida da minha filha? Isso a fará feliz?

—Prometo, Sra. Moore -- disse ele sem vacilar.

—Aceito sua proposta, milorde. Só espero que não saia prejudicado —disse finalmente.

—Acha que, diante da sociedade que nomeou, as loucuras de um futuro marquês serão levadas em conta?

Com essa pergunta, Sophia sorriu amplamente, colocou-se na frente do visconde e aceitou a mão que ele oferecia. No entanto, quando as palmas das mãos tocaram para selar esse acordo, a Sra. Moore sentiu uma

inexplicável descarga elétrica percorrer seu corpo. Por que notou que esse homem era especial? Por que estava tão confortável? O que estava escondendo? Por que Morgana o colocou na vida de sua filha? Um leve arrepio percorreu sua figura esbelta, trazendo uma satisfação e bem-estar que poucas pessoas forneceram ao toca-la. Quem era esse homem? Por que era tão familiar?

—Sra. Moore? —Perguntou Logan ao ver como seu rosto empalidecia.

—Eu... eu sinto muito...—Sophia se desculpou, recuando o suficiente para respirar. —Entenda que tudo isso me desconcertou. Talvez meu marido esteja certo em insistir que devemos tomar café antes de ter uma conversa exaustiva e racional.

—Bem, deveria ouvir o conselho de um dos melhores médicos da cidade —disse Logan, feliz por ter um acordo com a mãe de Anne.

—Eu vou —Sophia respondeu com um longo suspiro.

—Não quero tomar mais do seu tempo, Sra. Moore. —Ele apontou para ela, tomando a mão com a qual havia selado a aliança para dar um beijo casto. —Foi um prazer conhecê-la e descobrir que o Sr. Moore escolheu uma esposa digna e respeitável.

—O prazer é meu, milorde —respondeu Sophia, desconcertada com esse estranho bem-estar.

—Prometo que terá notícias minhas em breve -- argumentou Logan, dando um passo à direita para que a Sra. Moore se movesse em direção à saída.

—Estaremos esperando, milorde. Mas lembre-se de que, se em algum momento hesitar em seu acordo, não o levarei em conta.

—Não hesitarei senhora, meu juramento é sagrado —disse solenemente.

Em silêncio, acompanhou-o até a entrada onde seu acompanhante o esperava.

—Sr. Giesler —disse estendendo a mão para ele —foi um prazer conhecê-lo. Espero que da próxima vez que nos encontremos, minhas filhas saibam como se comportar.

—Certamente o farão —disse divertido.

—Espero que sim... —Sophia suspirou olhando para o segundo andar.

—Vamos? —Logan perguntou a Philip.

—Claro —disse depois de suspirar e desviar o olhar do andar de cima. Não havia descido. Desde que aquela Medusa raivosa tinha desaparecido, depois de jogar o último tubo de metal, não tinha decidido descer e isso, embora não devesse alterá-lo, o fez e muito. —Tenha um bom dia, Sra. Moore —disse enquanto fazia um leve gesto com a cabeça.

—Obrigado pela visita, Sr. Giesler —respondeu, dando um passo em direção a eles.

—Madame... —Logan disse beijando sua mão novamente.

—Milorde... —respondeu com uma ligeira genuflexão.

—Nós veremos em breve.

—Quando puder —ela respondeu antes de os dois cavalheiros se virarem para a porta, abrirem e saírem.

Sophia esperou que os dois se afastassem de sua propriedade, fechou a porta lentamente, recostou-se nela e suspirou. O que planejava o visconde? Por que assumia tantos problemas? Não entendia o motivo que o levou a se preocupar com sua filha se eles não se conheciam e só haviam estado juntos...

—Madeleine! —Gritou, cortando a respiração e andando rapidamente em direção à cozinha.


***


—Vai me dizer o que aconteceu enquanto permaneci retido no salão —disse Logan depois de colocar o chapéu e dar o primeiro passo que os levou para os arredores da residência. —A Sra. Moore enfatizou que suas filhas não tomaram café da manhã e que, por essa razão, elas se comportaram

como pequenas feras.

—Pequenas

feras?

Bela

maneira

de

mascarar

esses

comportamentos selvagens! Uma dessas donzelas apontou com um rifle para o meu peito, outra foi gritando de um lugar para outro como se o próprio diabo a tivesse possuído e outra...

—E outra? —Logan perguntou enquanto estendia o manto sobre os ombros.

—Tudo o que posso pedir é que, da próxima vez que quiser voltar, chame o índio —murmurou.

—John? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas. —Isso não prejudicará seu grande orgulho?

—O que destruiria meu orgulho é que essa terceira filha me lançasse de novo mais objetos demoníacos como este. —Philip pegou o tubo que tinha no bolso e mostrou para ele.

—O que é isso? Bala?

—Não acho que são balas porque essa bruxa os usava enrolados em seu cabelo —disse guardando-o novamente.

—E? Porque os pegou? —Perguntou Logan curioso. —Não acha que essa mulher vai descobrir que levou um? Talvez o chamem de ladrão...

—ele disse divertido.

—É uma prova! —Choramingou.

—Uma prova? Para que? —Insistiu Bennett.

—Não se lembra de que eu era um agente? Se Borsohn me ensinou alguma coisa, foi estudar a evidência de um caso e está —ele colocou sua grande mão direita no bolso da calça e apertou-o com força -- é a única coisa que precisará se, nos próximos dias, eu me transformar em pedra.

E depois dessa abordagem tão surreal, Logan soltou uma gargalhada.

IX


Felizmente para Sophia, Madeleine ainda estava entrincheirada na cozinha. Eugine fez o melhor que pôde para que tomasse um chá, mas se recusara completamente a beber um misero gole. Devia ter ficado tão atordoada com a algazarra que foi montada na casa que nem uma gota entrava em seu estômago. Isso costumava acontecer toda vez que ela sofria um episódio de terror. Até se recuperar, era incapaz de provar algo. Sophia a observou da porta e refletiu novamente sobre a conversa que teria com ela. Se não abordasse o assunto com cuidado, deixaria de comer e toda a família indagaria o motivo dessa atitude. Sua pequena Madeleine era uma criança muito frágil e retraída. Sua aparência física, apesar de muito bonita, lhe acarretava certa inferioridade em relação às irmãs e isso agravava seu comportamento reservado. Passou muito tempo observando-as e enumerando as diferenças entre elas. Sempre quis ter cabelos escuros, como Anne ou Mary, e olhos verdes, como os de Josephine. No entanto, aquela juba cor de fogo, aquelas sardas no rosto e as pupilas azuis davam-lhe uma aparência mais bonita do que imaginava. Se, em vez de ser tão tímida e assustada, ela fosse tão descarada quanto Elizabeth, teria cem pretendentes na porta de sua casa esperando serem atendidos por Randall. Mas a vida não era justa para nenhuma de suas filhas e reafirmara sua crença depois do que aconteceu

momentos antes: Anne desmaiou quando viu o visconde, assunto do qual falariam assim que recuperasse a consciência, Mary jogou aqueles rolos metálicos, que Shira a forçava usar, o cavalheiro que permaneceu atordoado na entrada, Josephine apontava para ele com a arma e Madeleine gritava como uma menina selvagem. O que mais teria para ver? Que novo espetáculo suas meninas ofereceriam se voltassem a ter uma visita? A melhor maneira de manter uma ordem adequada em sua casa era dizer a Shira que não admitiriam mais presenças masculinas, desta forma, salvaguardaria o verdadeiro comportamento de suas filhas queridas e não revelariam que tinham um caráter bastante peculiar.

Depois de ter certeza de que a melhor maneira de proteger a família era conversar com Madeleine para tranquilizá-la enquanto pensava em como devia abordar o problema com seu marido, deu vários passos para a cozinha, olhou para Eugine, que estava ao lado de sua filha, e disse-lhe:

—Deixe-nos a sós, Eugine. Vá para a sala de estar com Shira e confirme se Anne despertou do desmaio. Assim que Madeleine tomar o chá, irei verificar como ela está.

—Sim, senhora —respondeu antes de obedecer a sua ordem.

Sophia se colocou na frente de sua quinta filha e ficou olhando sem piscar. A coitada ainda tremia de medo e seu cabelo, que costumava prender num simples rabo de cavalo, estava revolto, como se tivesse sido

acariciado com desespero. Ela pegou a xícara que ainda emitia fumaça, aproximou-se e disse:

—Beba um pouco, Madeleine. Isso irá acalmá-la.

—Mãe... eu juro que eu... eu não queria gritar assim diante de estranhos ?balbuciou pensando que iria repreendê-la.

Lágrimas apareceram em seus olhos e percorreram seu rosto alvo.

Sophia estendeu os braços e a jovem, percebendo que não tinha ido para repreendê-la, mas para acalmá-la, se levantou, deu a volta na mesa e pulou em direção à mãe.

—Calma, pequena. Tudo bem... eles já se foram —falou acariciando o cabelo vermelho emaranhado. ?Eles não queriam nos machucar, só queriam falar com o seu pai, mas como ele não se encontrava, o visconde resolveu falar comigo porque o assunto que o trouxe até aqui era bastante urgente —explicou em voz baixa e relaxada.

—Mary... Mary... —ela riu. ?Mary jogou alguma coisa no cavalheiro que estava na porta. Josephine estava apontando a arma para ele, pensei que ela dispararia, e a senhora... e então Anne e aquele homem... a beijou —ela revelou finalmente.

—O que acabou de me dizer? —Perguntou segurando-a gentilmente pelos ombros e empurrando-a alguns passos longe dela.

—Esse homem a beijou e.... e eu entrei e.... descobri ... E, quando

ele olhou para mim.... Ah, é ele! —Ela exclamou depois de esconder o rosto no peito de sua mãe. —É ele! —Ela repetiu. -- É o homem que vi no meu sonho, aquele que nos libertará da maldição! —Ela exclamou.

—Tem certeza? —Ela insistiu, porque não podia imaginar que o visconde, o filho de um marquês e com uma linhagem tão azul quanto a cor de um dos vestidos que ela guardava em seus armários, pudesse ajudá-los a se livrar daquele feitiço cigano. Sua avó não lhe disse que o sangue seria puro novamente? Bem, sendo assim, a pequena Madeleine estava confusa.

—Sim, mãe —respondeu afastando o rosto do seu seio. —Não confia em mim? Acha que estou mentindo?

—Não, querida. Sei que não faz isso e confio muito em você --

declarou acariciando suas bochechas para afastar suas lágrimas. —Mas não seria prudente falar sobre esse assunto sem corroborar certos aspectos. Tudo o que sabemos é que o visconde é o irmão do Marquês de Riderland e que veio até aqui para se recusar a levar Anne em seu navio.

—Mas... na minha visão... eu... além disso, o vi beijando-a.... --

Ela gaguejou.

—Ele realmente a beijou? Viu exatamente como seus lábios se uniram aos de Anne? —Ela insistiu.

—Não, porque ele levantou o rosto quando eu apareci —ela explicou.

—Então, não podemos afirmar algo que só suspeitamos, não acha? —Madeleine arregalou os olhos e apertou os lábios contra a boca para parar de falar. —O melhor para todas é mantermos silencio, querida. Não quero que suas irmãs fiquem loucas com a ideia dessa liberdade e seu pai...

—Ela suspirou. —Sabe como é. Seria capaz de procurar por um alfinete no palheiro.

—Então, como quer que eu aja? —Ela insistiu, se afastando de Sophia e voltando a sua cadeira. —Quer que eu minta? Que apague da minha memória o que eu vi?

—Realmente a beijou? —Sophia repetiu, em pé na frente de sua filha.

—Eu juro que foi isso que vi —disse ela.

—Madeleine lembra que a maldição só vai desaparecer com um homem que tem sangue cigano e esse lorde só tem...

—Lembre-se que eu disse que ele manteve essa parte de sua vida escondida e só revelaria quando visse sua relação com Anne em perigo --

disse ela com a mesma firmeza que Mary ao falar sobre as causas da febre.

Sophia colocou as palmas das mãos na mesa e observou a filha sem piscar. Em seu rosto não havia dúvida alguma, e mais, só mostrava segurança, uma que não tivera até agora. Mas... e se estivesse errada? E se estivesse confusa? Era verdade que ela mesma sentira uma ligação estranha

com o visconde, mas ainda não sabia como nomear. O que devia fazer? Um mês. O visconde lhe pedira um mês para... fazê-la feliz e jurara por sua honra. Poderia Madeleine suportar um segredo durante um mês?

—Tem certeza da sua visão, certo? —Insistiu.

—Sim —afirmou novamente.

—Bem, sendo assim, vou te pedir um favor.

—Qual? —Perguntou, erguendo a sobrancelha direita.

—Vamos manter tudo isso em segredo até que a própria Anne descubra que o visconde é o homem que Morgana escolheu para ela —disse Sophia.

—Não quer que minha irmã saiba que ele será seu marido? O que nos libertará da maldição? —Perguntou desesperada. —Ela ficaria muito feliz em saber, então pararia de pensar em partir e se prepararia para conquistar esse homem.

—Do que gosta mais, Madeleine, que lhe digam o que está dentro de um presente antes de abri-lo ou descobrir por si mesma o que se esconde dentro?

—Descobrir por mim mesma, o que tem dentro —ela respondeu rapidamente.

E nisso sua mãe estava certa. Toda vez que seu pai lhe dava alguma coisa, Josephine se aproximava e dizia o que era antes de poder

desembrulhá-lo. Por essa razão, no último Natal, antes que alguém revelasse o que escondia seu presente, pegou-o e correu para o seu quarto.

—Bem, esta situação é muito parecida para a sua irmã. Ela não deve saber que este homem será seu marido, porque então não será uma surpresa para ela —disse com determinação.

—E se uma das minhas irmãs me perguntar por que gritei quando o vi? Eu sei que Josephine e Mary me viram entrar na sala e logo correr para cá —ela esclareceu depois de suspirar.

—Bem, dirá que ficou com medo quando viu dois estranhos em casa —disse se aproximando de Madeleine novamente para abraçá-la com força. —De acordo? —Insistiu.

—Se acha que Anne conseguirá ser feliz, farei —comentou, não sabendo muito bem se sua mãe estava agindo corretamente.

—Obrigada, querida —disse Sophia antes de beijá-la na cabeça. ?Agora, tome aquele chá antes que fique frio e vamos ver se suas irmãs estão mais calmas.

E no exato momento em que Madeleine se separou de sua mãe para tomar o chá, a porta da cozinha abriu com um estrondo, causando outro grande susto.

—O que aconteceu mãe? —Elizabeth perguntou nervosa. --

Josephine me disse que Madeleine estava gritando e que Mary estava em

perigo porque um cavalheiro não parava de olhar para ela de camisola.

—Plantou suas sementes? Colheu mais flores? Deveria encher os vasos na entrada porque as rosas estão um pouco murchas —Sophia disse tentando não responder às perguntas no caso de Madeleine ainda não ser capaz de manter a boca fechada.

—Peço-lhe que não mude de assunto. Quem veio? Quem eram esses homens? Que motivo eles alegaram para se apresentar a essa hora? Por que não me avisaram? —Ela disse, irritada, imaginando que era algum pretendente perguntando por ela e sua mãe recusou a sua presença.

—O senhor Giesler e o visconde de Devon foram os cavalheiros que nos visitaram —Sophia finalmente respondeu quando viu Madeleine pegar a xícara com as duas mãos e olhar dentro dela.

—Logan? —Ela disse, erguendo as sobrancelhas.

—Logan? —Retrucou a mãe, franzindo a testa ao ouvir como a terceira de suas filhas falava com tamanha familiaridade do visconde.

—Me desculpe mãe, queria dizer o visconde. O que sua Excelência queria? —Se corrigiu rapidamente. —Queria me informar que Natalie voltou da viagem que tinha planejado?

—Não —sua mãe negou enfaticamente. —A intenção do visconde era deixar claro que não levaria Anne em sua próxima viagem.

—O papai pediu que ele a levasse para Paris? Esse era o homem

com quem ele falaria? —Ela gritou de olhos arregalados, assombrada com a loucura que seu pai fizera.

—De fato, há algum problema nisso, Elizabeth? —Sua mãe exigia saber depois de ver a filha tão perplexa.

—Mãe, todo mundo sabe que o visconde não pode viajar com mulheres em seu navio.

—E, por que não pode viajar com mulheres? —Sophia insistiu.

—Porque é o maior libertino de Londres desde que o atual Marquês de Riderland e seus amigos decidiram se casar. Nenhum pai sensato ofereceria a proteção de sua filha nem a ele ou a seu primeiro a bordo, o Sr.

Giesler —disse Elizabeth.

Então Madeleine soltou um grito e, quando as duas olharam para ela para descobrir o que estava acontecendo, ela disse:

—Queimei meus lábios com chá.


***


Não queria abrir os olhos. Embora escutasse as vozes de Shira e Eugine, não queria abri-los para o caso de encontrá-lo novamente. Se sentia tão idiota, tão infantil, que a vergonha não permitia que movesse um só dedo das mãos. O que o visconde teria pensado ao observar como desmaiara

quando o viu entrar? Que opinião concebeu sobre ela? Só de pensar nisso, sentia como suas bochechas queimavam e seu corpo tremia. Foi o pior momento de sua vida e, infelizmente, tivera alguns depois da morte de seus noivos.

Sem prestar atenção à conversa que as duas servas mantinham sobre o homem que foi agredido em frente à entrada da casa por suas irmãs, Anne só foi capaz de lembrar o momento em que seus olhos estavam fixos nele e na maneira como ele a observava. Ele parecia satisfeito em vê-la e tão surpreso quanto ela. Mas isso era real ou tinha sonhado? Não tinha mais certeza de nada...

Respirou fundo para se acalmar. Precisava ganhar algum controle sobre si mesma novamente e colocar seus sonhos equivocados fora de sua cabeça. Embora fosse incapaz de fazê-lo. Como poderia apagar de sua mente essa aparência magnífica? Ele a deixou tão impressionada que perdeu suas forças. Sem mencionar que, quando ele entrou pela porta, quando deu aquele passo para a sala de estar, sua mente, sua mente perversa e odiosa, o imaginou naquele prado, nu, beijando-a e tocando-a por toda parte. Como se deixara levar pela luxúria tão facilmente? Por acaso perdera seu raciocínio? «Morgana - pensou - por que o conduziu para mim? Por que me faz sofrer? Não tive o suficiente? Deveria morrer para aplacar este sofrimento? "

—Senhorita, está se sentindo melhor? —Shira perguntou.

Diante da pergunta e do fato de que ela se movera inquieta, lembrando-se dele ao seu lado daquele jeito tão lascivo, Anne abriu os olhos, abriu as mãos e se deixou ajudar.

—Está bem? Precisa de mim para lhe trazer um chá? —Eugine interrompeu.

—Não, obrigada. Estou muito melhor. Sabe onde minha mãe está? —Ela perguntou enquanto tocava o cabelo que havia caído do coque.

De repente, aquela mão direita começou a queimar. Assustada, olhou para ela e sentiu uma estranha vermelhidão nela. Mas quando a levou aos olhos para confirmar a formação daquele círculo vermelho, seus lábios também arderam.

O que acontecia? Por que sentia que sua boca e aquela mão não pertenciam mais a ela? O que acontecera durante o seu desmaio?

—Já acordou? —Ela ouviu a voz de sua mãe na entrada da sala.

—Mãe? —Falou olhando para ela.

—Estou aqui —respondeu. Caminhou rapidamente até Anne e sentou-se ao lado dela. —Se recuperou?

—Mãe! Que vergonha! —Exclamou, se jogando em seus braços. —Como eu pude... —E não terminou a frase porque observou como as servas olhavam-na ansiosas por informações.

—Eugine, prepare o salão matinal. Nós temos que tomar o

desjejum antes de seguir com o plano combinado. Shira suba até o quarto de Mary e não saia até que esteja bem arrumada. Informe a ela que, já que atrasamos a hora da partida, virá conosco —disse com autoridade.

—Sim, senhora —responderam em uníssono antes de saírem da sala e deixarem-nas sozinhas.

As duas ficaram em silêncio até a porta se fechar. Foi então que Sophia se afastou da filha, foi até a janela e pensou no assunto que iriam discutir. Não seria fácil perguntar sem rodeios se o visconde de Devon era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Foi horrível —Anne começou enquanto tentava se levantar. --

Mas garanto que nem eu mesma esperava a reação que tive. Aquele cavalheiro terá pensado que...

—É o visconde de Devon —ela corrigiu. —O irmão de Natalie Lawford.

—Seu irmão? —Perguntou, sentando-se de repente no sofá.

Ela suspeitava que fosse parente do marquês, mas nunca imaginou que fosse um irmão. Agora, como essas informações afetariam seus sonhos? Voltaria a vê-lo durante as noites depois de confirmar que era um homem inatingível? Como poderia tira-lo da cabeça? Só conseguiria partindo, por esse motivo, seu desejo de fugir de Londres aumentou.

—O conheceu? —Sophia retrucou, caminhando até ela.

—Não pessoalmente —respondeu enquanto descansava os pés no chão novamente. —Eu o vi discutindo com o Marquês de Riderland na outra noite. Mas até este dia, não sabia que existia.

—Bem, ele existe e, conforme constatei, sua irmã Elizabeth o conhece bem o suficiente —disse mordazmente.

—Em que sentido? —Perguntou, arregalando os olhos e notando como seu coração estava batendo rápido.

—Em um sentido fraternal —esclareceu. —Segundo ela, o visconde é um homem leal à sua família e amigos.

—Se ela diz isso... —murmurou um pouco ciumenta. Olhou para os pés, moveu-os devagar enquanto pensava se era adequada a pergunta que rondava sua cabeça, mas a curiosidade era tanta que a fez sem pensar: —O

que o trouxe para a nossa casa?

—Se lembra de que seu pai, depois de ter aceitado a decisão de manda-la para Paris, procurou um navio que partisse nas próximas semanas de Londres?

—Sim —respondeu sem tirar os olhos dos sapatos brancos.

—Bem, pediu a ele —disse atenta à reação que sua filha mostraria.

—Lorde Bennett? —Perguntou, arregalando os olhos e dirigindo-os para a mãe com espanto.

—O mesmo —assegurou com um leve aceno de cabeça.

—Não existem mais homens em Londres? Como o nosso pai pode ter o dom do absurdo? Não há mais capitães, mais barcos, mais pessoas nesta cidade a quem recorrer? -- Gritou desesperada.

—Mas... —interrompeu Sophia, levantando o dedo indicador da mão direita para silenciá-la.

—Mas? —Anne perguntou com expectativa.

—Ele se recusou a fazê-lo.

—Graças a Deus! —Disse Anne com um longo suspiro. —Não seria capaz de ficar ao lado desse homem por um único segundo.

—Por quê? —Sophia perguntou, aproximando-se dela. —Pelo que vi, é um homem honesto.

—Por que... desmaiei quando ele apareceu? O que pensará de mim? —Soltou horrorizada.

—Nada.

—Nada? —Anne repetiu dando um pulo. —Perdi a consciência ao vê-lo!

—Não será a primeira nem a última a fazê-lo —ela disse mordazmente. —Pelo que diz sua irmã, ele é um homem que levanta paixões onde quer que apareça.

—Perfeito! E meu pai volta a fazer das suas me enviando às

garras de um homem libertino! —Exclamou desesperada.

—Anne, por que desmaiou quando o viu? —Ela rapidamente mudou de assunto.

 

—Como? —Perguntou se virando para ela com tanta força que a saia do vestido rodou entre as suas pernas.

—Responda.... Por que agira de maneira tão inadequada? --

Persistiu sem afastar os olhos da filha.

—E as vertigens têm sempre uma explicação lógica? —Se defendeu.

—Bem, eu disse ao visconde que não tinha feito o desjejum e que, devido a isso, sofreu um leve atordoamento, mas temo que não seja o motivo correto, estou certa? —Continuou obstinada.

—E ele acreditou?

—Claro! —Disse com firmeza. —Por que duvidaria das minhas palavras?

—Menos mal... —sussurrou para si mesma. Colocou as mãos no estômago, como se a desculpa de sua mãe também servisse para que não precisasse lhe contar a verdade, abaixou a cabeça e declarou: —Com certeza foi isso. Não tomei o chá antes de falar com a senhora.

—Acha que eu sou tola, Anne Moore? —Soltou a mãe zangada. —Diga-me o que aconteceu de uma vez! E nem pense em mentir

para mim, por muito que seja uma mulher adulta irei castigá-la —disse.

—O que quer que eu diga mãe? —Perguntou levantando o rosto para olhá-la.

—A verdade —disse Sophia. —Preciso que seja honesta comigo porque eu e o visconde selamos um acordo antes dele sair.

—Um acordo? —Retrucou, arregalando tanto os olhos que poderiam sair de suas órbitas.

—Sim. Ele veio aqui para devolver o envelope que seu pai lhe ofereceu. Em meio a sua negativa categórica, perguntei se ele conhecia outra pessoa honesta que pudesse levá-la a Paris e sabe como ele agiu?

—Não —murmurou.

—Ficou furioso. E não sei que diabos está acontecendo entre vocês e nem quero perguntar! —Gritou. -- Mas deve esclarecer o motivo pelo qual o visconde me pediu um mês para fazê-la feliz.

—Ele pediu isso? Por quê? O que quer? —Perguntou sem fôlego.

—Não sei, embora tenha medo de que você saiba a resposta --

assegurou-a com firmeza.

Anne continuou com as mãos no estômago. Ele começou a rosnar, como se quisesse eliminar o pouco que abrigava nele. Caminhou lentamente até o sofá, onde alguém a havia deitado, pegou o lenço laranja como se lhe desse a força necessária para confessar e respirou.

—Anne, seja o que for, estou aqui para ajudá-la —disse depois de sentar ao seu lado e segurar o lenço nas mãos. —Juntas lutaremos contra todos os perigos que apareçam em sua vida.

—Contra todos? —Disse virando o rosto, permitindo que sua mãe observasse as lágrimas que vinham de seus olhos.

—Contra todos —Sophia repetiu solenemente.

—E como podemos lutar contra o homem que aparece nos meus sonhos?

—Com paciência e com muito amor —assegurou antes de abraçá

la.

X


Uma vez que ambos estavam em frente ao portão de Whespert, olhou de relance para Philip. Seu amigo estava absorvido em algum pensamento irritante que o fazia franzir a testa e apresentar uma cara azeda. Supôs que ainda estava pensando sobre o que aconteceu na casa dos Moore. No entanto, não achou um episódio desagradável, mas exatamente o oposto. A conversa que tiveram durante a caminhada foi tão engraçada que sua mente esqueceu do beijo que roubou da primogênita do médico e da alucinação que teve quando o fez. Mas uma vez que se viu em frente à sua residência e Giesler não tinha mais nada para contar, a realidade retornou, assim como a memória do acordo que fez com a esposa do médico. Por que havia oferecido tal loucura? Um mês? Como poderia, em tão pouco tempo, colocar a jovem no lugar que havia prometido? Por que agira tão impulsivamente? Talvez o desespero da mãe, depois de confessar o que aconteceria se sua verdadeira procedência fosse revelada, o fez reagir de maneira tão impetuosa.

Na verdade, a Sra. Moore não estava errada. Se alguém descobrisse que o famoso médico casou com uma cigana e não com a filha de outro burguês, não só a reputação do médico estaria em risco, como suas filhas sofreriam uma rejeição social que acabaria arruinando a família. Assim,

a única razão pela qual se ofereceu para ajudá-los não era outra senão empatia, e isso não abrangia nenhum sentimento estranho por Anne.

Ele mesmo, por muitos anos, temeu que as pessoas de seu convívio murmurassem sobre a possibilidade de ele não ser um filho legítimo dos marqueses. Infelizmente, a falecida marquesa ameaçou Roger a revelar a verdade e interromper tudo o que ele havia construído com tanto esforço. No entanto, uma vez que ela morreu, seu irmão confirmou que a mulher traiçoeira havia levado o segredo ao túmulo e que a partir daquele momento ele deveria esquecer seu passado e se concentrar no presente. Ainda assim, todos os dias se colocava em frente ao espelho e contemplava o reflexo de quem ele realmente era: um bastardo, filho de uma mocinha que não superou o parto e morreu ao dar à luz.

—O que pretende fazer agora?

A pergunta de Philip tirou-o de suas reflexões. Olhou para ele sem piscar, como se não reconhecesse a pessoa ao seu lado.

—Tenho que pensar no acordo que propus à senhora Moore --

respondeu. —Quanto mais cedo descobrir como oferecer à jovem o reconhecimento que merece, mais cedo poderei voltar à minha antiga vida --

disse pensativo.

—Se eu estivesse em seu lugar, recusaria a todo custo me encontrar novamente com uma filha daquele casal. Mesmo que não acredite

na maldição, eu testemunhei isso. Essas moças são amaldiçoadas —disse ele, colocando a mão no bolso, onde guardara o tubo de metal e apertando-o com tanta força que quase o dobrou ao meio.

—Não seja teimoso. Sabe tão bem quanto eu que o que aconteceu na casa dos Moore não tem nada a ver com essas bobagens que está falando. Admita de uma vez por todas que nossa presença provocou uma tremenda algazarra —resmungou antes de avançar pelo caminho de seu grande jardim. E já que quer se colocar no meu lugar, me colocarei no seu para cuidar da sua língua quando falar sobre elas. Acredito que elas sofreram muito com a miséria que a morte desses homens trouxe, para continuar a adicionar mais tristeza em suas vidas. Além disso, lembre-se de que o único interesse que esses pais têm é casar suas filhas e, à medida que mais testemunhos falsos forem divulgados, eles nunca conseguirão fazê-lo.

Claro, guardou para si o que aconteceu com a mais velha das irmãs depois de beijá-la. Sua mãe havia proclamado que ela tinha o dom de pintar, mas ele tinha vivido em sua própria carne outro muito diferente. Como poderia tê-lo feito projetar essa visão mesmo quando estava inconsciente? Ela teria mais habilidades do que a mãe confessou? Poderia se encontrar em um lugar onde apenas ciganas feiticeiras haviam nascido?

—Cinco! —Philip exclamou revirando os olhos. —Tem que casar as cinco! —Acrescentou com a mesma ênfase. —E uma delas é tão malvada

quanto a terrível Medusa. Quem poderá se casar com essa mulher? Só um louco terá a coragem de se ajoelhar na frente dela e pedir que se torne sua esposa! -- Gritou fora de si.

—Deduzo, velho amigo, que para apaziguar o trauma que sofremos, ambos precisamos de uma bebida. Não é todo dia que mulheres lhe jogam tubos de metal, apontam para o seu peito ou gritam por quão desinteressante é —Logan disse sarcasticamente quando Kilby, atento como sempre, abriu a entrada principal.

—Aquela menininha não gritou por minha causa! —Philip se defendeu. Que seu amigo tenha atacado sua atração masculina doeu mais que um chute na canela. Não passou muito tempo treinando e exercitando um corpo tão grande para ser ridicularizado. —Se bem me lembro, aquela bruxa ruiva gritou quando abriu a porta do salão em que você estava. —Indicou, apertando os olhos na hora em que estava tirando o paletó para oferecê-lo ao mordomo. -- O que estava fazendo? Não me disse que a mulher estava inconsciente? Levitou? —Diante dessa pergunta, ele arregalou os olhos. --

Aquela mulher podia sair do chão voando?

—Sim, claro! E não a viu passando pelo corredor montada em uma vassoura? —Murmurou. —Não diga bobagem, Philip. As irmãs Moore não são amaldiçoadas, nem lançam tubos envenenados, nem serão vistas no meio do jardim fazendo poções malignas. —Virou-se para Kilby para que o

ajudasse com o manto, colocou-o no antebraço e virou-se para Giesler para pegar a jaqueta. —Só precisam de uma pessoa que acredite nelas e que as ajude.

—Bem, nesses momentos, o que preciso é que meu bom amigo abra a porta da adega e me deixe escolher o melhor licor. —Colocou a mão no ombro de Logan e caminhou com ele até a biblioteca, o lugar onde eles ficariam bêbados até que nenhum deles se lembrasse do que tinha acontecido naquela manhã.

—Se está com tanta sede, pode ir ao clube —Logan ofereceu divertido. -- Não quero ter que embarcar em alguns dias porque minhas reservas de vinho do Porto acabaram prematuramente.

—Eles me negaram a entrada no clube por seis meses —disse Philip, puxando o amigo contra ele em um abraço camarada.

—Bentinck? —Exclamou Logan levantando a sobrancelha direita. Não poderia ser outra pessoa. Implicava com Philip desde que jogou cartas pela primeira vez, quando tinha apenas quinze anos de idade, e o acusou de trapacear na frente de todos os convidados do Reform.

—O mesmo —respondeu, desenhando um enorme sorriso depois de recuar e bater no peito como se fosse um gorila celebrando o triunfo de uma disputa.

—Pode esvaziar a adega de uma das suas amantes —ofereceu

enquanto abria a porta da biblioteca e permitia que ele entrasse.

—Mais mulheres? Não obrigado. Com a visita de hoje, tive o suficiente por alguns dias. Além disso, tenho que confirmar se essa aspirante a Medusa não me envenenou —resmungou, dando um passo para dentro.

—Não ficará doente exceto por....

—Milorde...

Kilby tentara informar que o marquês de Riderland estava em casa, mas não ousou interromper a conversa, a não ser quando os viu ir à biblioteca. Uma vez que eles fechassem aquela porta, pediriam uma caixa do melhor uísque e não poderiam ficar de pé por alguns dias.

—Qual é o problema, Kilby? —Logan perguntou se virando para o mordomo.

—Quero te informar que sua Excelência o está esperando no ginásio. Chegou antes das onze e, por mais que tenha insistido que não poderia recebê-lo hoje, porque tinha saído para cuidar de um assunto importante, ele não foi embora.

—Está sozinho? —Exigiu saber enquanto seus olhos estavam ampliados pela excitação de descobrir que seu irmão não havia esquecido o encontro de toda quinta-feira.

—Não, milorde. Vossa Excelência pediu ao jovem jardineiro que se apresentasse diante dele enquanto esperava seu regresso —esclareceu,

expressando certo temor em suas palavras.

Logan deu um grande sorriso quando ouviu que Roger começara a treinar com um de seus criados. Talvez, quando aparecesse na frente dele, uma hora depois de sua chegada, estaria tão exausto pela luta que poderia vencê-lo.

Quando comprou Whespert, a primeira coisa que fez foi construir aquele ginásio localizado na parte de trás da residência. Lá ele ensinava esgrima, treinava no ringue que tinha do lado direito e continuava praticando seu passatempo favorito: lançamento de facas. Olhou de soslaio para Philip que sorria da mesma maneira que ele. O brilho que seus olhos consagravam só podia indicar uma coisa: diversão.

—Sente vontade de dar uma boa surra naquele velho? —Sugeriu a seu amigo, sabendo a resposta.

—Pensei que nunca me perguntaria! —Exclamou, agitando os cílios como se fosse uma mulher tentando seduzir um amante.

Com passos longos e rápidos, os dois homens foram em direção ao salão de vidro, que chamavam de ginásio. Enquanto caminhavam em direção àquele lugar, os dois tiraram suas roupas: jaquetas, gravatas, coletes e até camisas caíram no corredor limpo e brilhante. Como sempre, não ficaram muito tempo nos ladrilhos de cor marfim, porque as donzelas, sufocadas ao ver como dois homens tão grandes e esbeltos se comportavam como crianças,

as apanhavam antes de se sujarem.

—O que diabos fez para não lembrar que hoje é quinta-feira? --

Gritou assim que viu seu irmão aparecer na porta.

Roger tinha o corpo do jardineiro contra o dele. Seus braços tinham rodeado o pescoço do moço e ele tentava afastá-los apertando os antebraços do marquês com as mãos.

—Bom dia irmão. Saí para atender a um assunto urgente. —E

logo depois de falar, caminhou em direção ao marquês com os punhos erguidos.

Roger, prevendo suas intenções, jogou seu oponente para a direita, libertando-o daquela amarração abrupta e se defendendo contra o ataque de Logan. Quando o punho do visconde ia tocar seu rosto, ele se virou e aproveitou a confusão para dar um soco no torso nu.

—Um assunto urgente? —Respondeu no mesmo instante em que pulava para trás, exibindo o brilho do suor que a parte superior de seu corpo mostrava pelo treinamento e fazendo seu cabelo loiro, molhado do esforço, se mover como um leque. —Que urgência poderia fazê-lo esquecer nossa reunião semanal? —Adicionou outro golpe quando Logan tentou atacá-lo por trás.

Imediatamente, o rapaz espancado se dobrou ao meio e olhou suplicante para o amigo. Levou a mão esquerda para a mecha de cabelos

negros que se soltou do rabo de cavalo e observou os movimentos do titã Giesler.

—Mulheres —Philip acrescentou, levantando os punhos para enfrentar o marquês, enquanto Logan se recuperava daqueles golpes duros.

—Lady Rose voltou a sua vida? —Perseverou, respondendo ao convite de Philip, colocando-se em guarda.

—Não, acredito que Lady Rose tenha deixado de existir para o seu irmão, Excelência —disse Giesler antes de acertar a mão direita no Marquês.

Colocou o antebraço esquerdo como escudo e, quando o terceiro impacto de Philip atingiu aquela parte de seu corpo, Roger sorriu e deu um forte golpe no queixo do titã loiro. Embora, para seu pesar, não o tenha movido do chão. A única coisa que Giesler fez, depois do impacto, foi levar a mão direita até o queixo e movê-lo da direita para a esquerda.

—Vejo que meu irmão ouve meus conselhos... —o marquês comentou dando vários passos para trás. Olhou para o alemão de cima e para baixo e sorriu. De fato, Logan escolheu a pessoa mais qualificada para cobrir suas costas. O peito do gigante era duas vezes maior do que o dele e havia montanhas de músculos em seus bíceps.

—Estou ciente disso —Logan comentou sobre o assunto de Philip atacando seu irmão pelas costas.

—Sou mais velho, mas ainda estou em forma—comentou brincando quando viu que, depois de fazer uma pequena pausa, seu irmão colidiu com o alemão. Evelyn cuida de mim corretamente.

—Vou pedir à minha amada cunhada que deixe Londres por algumas semanas —disse Logan, virando-se para encarar seu irmão novamente.

—Minha esposa não vai a lugar nenhum sem mim. —Roger se afastou um pouco, pegou-o pelos punhos e jogou-o no chão, fazendo as costas de Logan estalarem ao tocarem o piso frio.

—O que foi isso? —Disse Philip diante da manobra que o marquês fez.

—Isso se chama w u shù[4] —disse Roger com orgulho. -- Yeng vem praticando esse tipo de luta com Evah desde que ela voltou de seu país e eu também queria aprender.

—Permite

que

sua

filha

aprenda

a

lutar?

--

Philip perguntou incrédulo.

As mulheres estavam mudando, elas não eram as donzelas que precisavam ser salvas. Naquela época, elas lutavam com os punhos e com o que usavam para enrolar seus cabelos.

—Minha filha, Giesler, está sempre em perigo porque é uma Bennett e precisa se defender contra as ameaças que a perseguem —afirmou

Roger, estendendo a mão para o irmão.

—É verdade —disse Logan, aceitando a ajuda para se sentar. --

E, por essa razão, minha querida sobrinha foi instruída pelos dois melhores lutadores que conhecemos: o índio e o chinês. Agora, Evah poderia matar um homem, com apenas um dedo, se ele quisesse beijá-la sem a autorização de seu reverenciado pai.

—Ninguém ousará fazer uma coisa dessas se quiser continuar respirando —disse Roger soberbo.

Um sorriso arrogante cruzou o rosto do pai orgulhoso. Sua amada filha havia herdado a beleza de Evelyn, mas a natureza provocativa era inteiramente sua e esse era o maior perigo que ela poderia enfrentar.

Logan olhou para ele por um curto período de tempo, imaginando se seria a melhor hora para expor que sua amada Evah, sua tenra e inocente filha, era tão apaixonada quanto todos os que tinham sangue de Bennett e que durante a festa de Natalie ouviu como ela beijava Terry, o primogênito de seu sócio Leopold.

—Que mulher aquece sua cama agora? —Perguntou o marquês para Logan enquanto voltava os punhos para ele de novo.

—Não há nenhuma mulher —disse oferecendo-lhe outro golpe que, por sorte, foi certeiro.

—Cinco! —Philip disse depois de aplaudir Logan por aquele

impacto de sorte.

—Cinco? Rompeu seu relacionamento com Lady Rose porque decidiu manter cinco novas amantes? —Roger perguntou ao tentar devolver o reverso. —Não pode se contentar com uma?

—Elas são irmãs... —Logan argumentou, esquivando-se daquele ataque.

—Quer manter um idílio com cinco irmãs ao mesmo tempo? --

Disse o Marques confuso. Naquele momento, ele se esquivou de um novo desafio, levantou as palmas das mãos e parou a luta no ato. —Explique-se agora mesmo! —Berrou colocando as mãos em cada lado da cintura, brilhando de suor.

—Não podia ficar de boca fechada? —Gritou para Philip, que tinha os braços cruzados defensivamente. —O que está querendo? Que meu irmão me faça mudar de ideia?

—O

que

está

acontecendo,

Logan

Bennett?

--

Roger rosnou adotando na mesma posição que Giesler. —Dê-me uma explicação razoável antes de me ver obrigado a dizer a Evelyn que meu amado irmão não levou a amante, com quem viveu por dois anos, porque decidiu —enfatizou —jazer sob a horrível repugnância da poligamia.

—Está equivocado... —o visconde resmungou. Virou as costas para eles, caminhou em direção a uma das cestas da sala e pegou várias

toalhas.

—Bem... vá em frente, vamos conversar! —Roger pediu um tanto irritado. —Preciso de uma resposta coerente imediatamente! —Exigiu, adotando a atitude de pai.

—Nosso estimado lorde decidiu visitar a educada e gentil família Moore esta manhã —começou Philip, sarcasticamente. ?E esse casal respeitável tem cinco filhas adoráveis —esclareceu com aborrecimento.

—Por que apareceu na casa dos Moore? Está doente? --

Perguntou o Marquês enquanto estendia a mão para a toalha que Logan atirou nele.

—O Sr. Moore veio me ver várias noites atrás. Desejava que, na próxima viagem, eu levasse sua primogênita no meu barco —começou a explicar enquanto caminhava na direção deles.

—Está falando sobre a jovem retratista? Por que quer tirá-la de Londres? Não tem clientes suficientes? Deixaram de contratá-la? —Roger perguntou enquanto limpava o suor do rosto e do peito.

—Segundo parece, a mulher é amaldiçoada e o bom pai quer se livrar dela porque o impede de encontrar um marido para as outras... —Philip não terminou sua exposição porque a toalha que Logan jogou o atingiu com força no rosto.

—Ela não é amaldiçoada e não é a causa de nada —resmungou o

jovem Bennett. —A moça, como disse, é uma excelente pintora e eles acham que, se ela deixar Londres, poderá ter a fama e o prestígio que merece.

—Eu não entendo... —murmurou Roger, olhando de um e para o outro. —Ela está amaldiçoada ou anseia por um futuro melhor?

—Não consigo entender depois do que aconteceu com aqueles cavalheiros —disse Philip, jogando a toalha encharcada de suor no cesto de vime que tinha as suas costas. Ele jogou os braços para trás, como se precisasse de mais espaço em suas costelas para respirar depois de lembrar da jovem Medusa e seus rolos novamente. Por que diabos não conseguia tirá-la da cabeça? Ficou inebriado ao pensar que ela não estava usando nada sob aquela camisola? Ou talvez ele se mantinha em estado de alerta no caso de ficar doente logo? O que quer que fosse, a senhorita Mary Moore estava dentro de sua mente e não podia eliminá-la como fazia com qualquer amante.

—Primeiro de tudo, investiguei as mortes dos seus noivos e....

—Seus pretendentes morreram? —Soltou Roger, abrindo bem os olhos e interrompendo seu irmão.

—Dois, Excelência. Morreram os dois únicos homens que ousaram desafiar essa... —Philip ficou em silêncio de novo porque Logan, traiçoeiramente, o atingiu de lado.

—Nenhuma maldição! —O visconde exclamou com raiva. --

Aqueles cavalheiros procuraram a própria morte! -- Continuou com raiva

?Ela é uma vítima do desempenho de dois homens absurdos!

Queria bater em Giesler de novo, mas este evitou o golpe, agarrou-o com força e virou-o para o marquês.

—Deixando essa suposição de lado —Roger começou calmamente. ?O Sr. Moore não foi cauteloso o suficiente para procurar outro dono de um navio?

—Por que deveria fazer isso? —Disse Logan se esforçando para se afastar de Philip. —Não acredita que eu poderia protegê-la até que desembarcasse no país ao qual desejam enviá-la? —Deu um passo à frente, depois de atingir seu objetivo, virou-se para o amigo e olhou-o como se quisesse arrancar seu coração.

—Os homens iriam se revoltar se houvesse uma mulher em um navio! E essa maldição seria cumprida em alto mar! Nós nos tornaríamos um navio fantasma, cercados por cadáveres e seríamos devorados por essa mulher e sua infeliz irmã do diabo! —Exclamou Giesler dando um passo para trás. Se sua experiência não o enganasse, como ele não fechava a boca, o que não faria para salvar seu companheiro, este tentaria acertá-lo novamente.

—Use esse tom de novo para falar sobre ela e ficará sem dentes

—alertou Logan, levantando os punhos.

—Chega! —Roger interveio que, espantado com o olhar que seu irmão oferecia ao seu melhor amigo, resolveu colocar a paz entre os dois e

esclarecer, de uma vez por todas, o que tinha acontecido. —O que diabos aconteceu naquela casa para manter esse comportamento tão desprezível?

—Quer que eu explique, Excelência? —Disse Philip sarcasticamente.

—O avisei! ?Logan gritou antes de pular na direção do amigo.

Como duas crianças, eles começaram a se socar. Roger, a princípio, permitiu essa atitude infantil por alguns minutos, mas quando descobriu que havia sangue em ambas as bocas, se colocou ao lado deles e os removeu bruscamente.

—Ele fez um acordo com a Sra. Moore —disse Philip enquanto afastava o sangue de um dos lábios para longe com as costas da mão.

—Um acordo? —Roger perguntou ao irmão, que fez o mesmo que Giesler. —Que acordo fez com essa família, Logan?

—Quero mostrar a esse pai que não há nenhuma maldição. Que tudo aconteceu de uma forma acidental e que a jovem pode encontrar um marido quando e onde ela quiser —disse sem qualquer preocupação.

—É melhor comprar um colarinho de alho ou dizer ao seu irmão onde quer ser enterrado se for se aproximar dela de novo —disse Giesler, desesperado.

—Não teve o suficiente? —Retrucou Logan dando um passo em direção ao amigo, mas os dedos de Roger pressionaram seu braço esquerdo,

impedindo-o de começar outra briga.

—O que pretende fazer? Como vai conseguir o que prometeu? --

Quis saber o marquês sem soltá-lo.

—Se o que eles querem é que a moça consiga o prestígio que ela merece, eu darei a ela —começou a dizer mais calmo. -- Não tenho dúvidas de que, se conquistar a fama que deseja, a senhorita Moore terá milhares de pretendentes na porta de sua casa —disse muito seguro de si mesmo.

—E o dono do coche funerário esfregará as mãos quando esses imbecis estiverem à sua porta! —Philip gritou com raiva.

—Giesler, silêncio! —Roger repreendeu-o como a uma criança pequena.

—Excelência —disse Philip em uma voz mais calma. —Seu irmão, meu amigo, que usou meu corpo como escudo em muitas ocasiões --

enfatizou —não pensa com clareza. Não só a primogênita está amaldiçoada, mas o resto das irmãs também. Sofri, na minha própria carne, a ira de uma bruxa —disse sem respirar.

—Neste momento, vamos nos concentrar na filha mais velha e teremos tempo para as outras —disse Roger, adotando a atitude do marquês que era. Se virou para Logan, que ainda estava segurando seus punhos tão apertados que suas juntas ficaram brancas. —Como conseguirá que uma pintora consiga a fama que deseja nesta maldita cidade? -- Insistia em

descobrir.

Roger sabia que ela poderia ser a melhor artista de Londres, que poderia ter nascido com uma habilidade sem precedentes, mas temia que mesmo a sociedade de Londres não estivesse preparada para que uma mulher ocupasse uma posição superior à de um homem, a menos que fosse a cortesã mais experiente de um bordel de prestígio.

—Não sei... —Logan murmurou girando em seus calcanhares e parado em frente à porta. —Estou pensando nisso...

—Poderia pedir a ela para retratá-lo —disse Philip sarcasticamente. —Não me disse que só pintava rostos de mulheres ou crianças? Bem, se aceitar um contrato de trabalho seu, poderia ser o precursor de outros cavalheiros. Não só as mulheres devem exibir seus belos rostos na entrada das casas —acrescentou com violência. -- Assim, todas as casas terão um retrato dos homens que vivem nelas e.... —deu um sorriso largo --

e se não estão, os amantes dessas tristes viúvas poderão ver o rosto daquele que construiu a casa em que se deitará com sua antiga esposa.

—Ou pode pintar minha querida Evelyn —explicou Roger como uma alternativa. —Certamente ela ficará encantada e, desta forma, os viciados em fofocas sociais permanecerão de boca fechada.

—Que quer dizer? —Logan perguntou se virando para eles.

—É um Bennett e sabe para o que nossos ancestrais masculinos

se dedicaram. Se fizer essa menina ficar em sua casa mais do que estipulado como correto, seu prestígio seria arruinado, assim como sua honra.

—Verdade... —Philip refletiu, relaxando com o julgamento razoável do marquês. —Não posso nem imaginar os prós e contras que ofereceriam sobre a pintora e o visconde. Seriam semanas, meses e até anos para debater sobre quando, como e por que essa mulher conseguiu o que as outras não conseguiram. Sem mencionar como sua última amante aceitaria a notícia. Tenho certeza de que Rose perguntaria sobre ela e arrancaria seus olhos assim que a tivesse na sua frente. Embora também... —disse enquanto tocava o queixo coberto por um arbusto de barba loira —essa moça possa ser protegida pela discípula de Medusa. Certamente Rose virará pedra quando notar o estranho penteado que usa sobre sua cabeça. —E depois dessa afirmação, soltou uma gargalhada enorme.

—Deve pensar sobre este assunto com calma e não agir com pressa —disse Roger, colocando a mão esquerda no ombro do irmão. —Não quer se ver na obrigação de casar com ela por esse absurdo, certo?

—Casar? Que estupidez! Logan não pode se casar! Certamente ele prefere ter varíola a viver com aquela moça pelo resto de sua vida! --

Philip exclamou enquanto se afastava do ginásio.

Mas o marquês não escutou as frases dolorosas de Giesler. Não conseguia desviar o olhar do irmão e, se não estava enganado, parecia que a

ideia de ficar mais tempo com essa mulher misteriosa não era tão desagradável quanto o amigo pensava.


***


—Que

Deus

tenha

piedade

de

nós!

—Exclamou

Randall sem parar de andar de um lado para outro, enquanto acariciava seu velho rosto de maneira desesperada. —Tenha piedade desta família! --

Acrescentou exasperado.

Sophia o observava sentada no sofá, esperando pacientemente que ele se acalmasse. Sabia que depois daquele episódio de ansiedade refletiria sobre o assunto. Mas parecia que o tempo de espera ia ser maior do que em ocasiões anteriores, porque seu rosto estava completamente vermelho, apenas respirava calmamente e acariciava seu cabelo como se quisesse arrancá-lo de sua cabeça.

De repente, Randall ficou na frente dela, levou as mãos à gravata e tentou retirá-la, como se a peça de roupa estivesse sufocando-o.

—Randall, querido, respire devagar —sugeriu, levantando-se e pegando a peça de roupa da qual ele não podia se desvencilhar. —Como lhe disse, selamos um acordo e não duvido da sua palavra.

—Um acordo? Realmente acredita que um aristocrata agirá de

acordo com suas palavras? Desde quando confia tanto nesse tipo de gente? --

Soltou com mais raiva do que nunca.

Com aquela expressão de fúria, Sophia deu vários passos para trás. Não estava com medo, mas confusa. Até então, o marido nunca estivera tão zangado. Ela errou no acordo? Seu marido não concordava que o visconde deveria tentar ajudar sua filha? Não tinha ido até ele para pedir ajuda? Pois, ele havia vindo, mas não com a opção que havia pedido. No entanto, ela sentia que a nova decisão era a melhor alternativa para todos desde que Anne confessara que o visconde era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Sinto muito —ele se desculpou enquanto observava sua esposa recuar. ?Lamento oferecer-lhe este horrível espetáculo —disse inclinando a cabeça, arrependido por uma atitude tão desagradável.

Nesse momento, Sophia voltou para o seu lado e o abraçou confortando-o.

—Ele me deu sua palavra e, quando nossas mãos se uniram para selar esse acordo, notei em seus olhos que estava dizendo a verdade. Esse homem é diferente dos outros.

—Tem certeza? Quantos aristocratas são confiáveis? Quantos escrevemos no caderno negro, querida? Você, melhor do que ninguém, sabe o quanto são cruéis e os danos que podem nos causar —disse com mais

calma.

—Reflita um pouco, Randall. Ele apareceu em nossa casa, trouxe o envelope que lhe ofereceu e, depois de ouvir uma das razões pelas quais Anne deve sair de Londres, ficou tão interessado que decidiu colocá-la no lugar a que a corresponde. Logicamente, todo o resto deve permanecer em segredo.

—Mas esquece que nossa filha diz ser amaldiçoada —murmurou, colocando o queixo no cabelo preto de sua esposa -- e suas irmãs, especialmente Elizabeth, acham que é verdade. Talvez, como Anne diz, deveria partir para alcançar um futuro favorável longe desta cidade.

E depois de expor essas palavras, Sophia deu vários passos para trás. Agora era ela quem estava com raiva e rezou a sua mãe criadora para que não estivesse escutado bem.

—Quer que ela vá embora? —Gritou. É tão obtuso que ainda acha que Anne deveria se afastar de nós? Não é você quem está sempre dizendo que prefere suas filhas por perto?

—Não me entenda mal... —disse abaixando a voz. —Anne pode fazer o que quiser e se conseguir ficar aqui, ela me faria o pai mais feliz do mundo.

—Então? —Perguntou colocando as mãos na cintura. -- Não gostou que eu interferisse neste assunto? Não me vê capaz de ajudar a

família?

—Ah não, não, não! —Exclamou o médico mexendo as mãos da direita para a esquerda. -- Tenho certeza de que suas intenções estão corretas. A única coisa que questiono é a posição do visconde. Lembre-se de que é um Bennett? Sabe o que aconteceu com os antigos marqueses?

—Sim, claro que sei! E você também sabia quando foi pedir a ele para levá-la em seu navio! —Disse.

—Mas não é o mesmo... -- murmurou.

—Por que não é o mesmo? —Esbravejou. -- Por acaso sua palavra é superior à minha? Explique-se agora mesmo, Randall Moore, ou dormirá naquele sofá pelo resto dos seus anos! —Ameaçou.

—Sophia, querida, entende que a vida nesta cidade é diferente...

—O que? -- Interrompeu-o.

—Se o visconde, com essa reputação que o precede, passear com a nossa filha ou ela espera em sua casa mais tempo do que é devido, o que vai acontecer?

—Pelo menos eu prevejo que não acabará enterrado abaixo da terra -- declarou ela solenemente.

—Não se importa com a reputação da sua filha? —A repreendeu.

—Acaso não sabe a reputação que tem? —Contra-atacou.

—Por favor... não discutam por minha causa —disse Anne, que

entrou na sala sem que seus pais a ouvissem.

—Não é uma discussão, querida -- disse Randall, caminhando para ela. Ele a abraçou com força, beijou-a na testa, colocou as mãos em seus antebraços e lentamente retirou. Sua mãe fez um acordo com o visconde e não me pareceu apropriado.

—Por quê? —Anne queria saber.

—Porque eu não sei o que pretenderá. —Explicou —Esse homem é um Bennett. Sabe que fama tem todos àqueles que levaram esse nome?

—Não confiou a ele a tarefa de me levar em seu navio? --

Soltou Anne, defendendo o homem que aparecia em seus sonhos.

Randall ficou pálido, engoliu em seco, virou-se para Sophia e disse:

—Toda sua. Tenho certeza que no final...

O médico não pôde terminar a frase porque alguém bateu na porta. Os três se viraram e olharam para ela, esperando pelo aparecimento de outra das filhas que teriam ido até lá pelas vozes. No entanto, a pessoa que apareceu na entrada foi Shira.

—Senhorita... Senhorita... —ela tentou dizer, mas as palavras não saíram. A única coisa que podia fazer era estender o envelope que tinha nas mãos para a deles.

—Shira? —Perguntou Sophia ao vê-la tão inquieta. —O que

ocorre? Por que está tão nervosa?

—Um... um servo acaba de me dar essa missiva e está endereçada a senhorita Anne -- informou.

—Quem mandou? —Randall exigiu saber caminhando em direção à criada.

—Tem o selo do visconde de Devon —esclareceu Shira.

E nesse momento Anne notou que a sala começou a girar em torno dela. O visconde estava se dirigindo a ela? Por quê? O que queria? Falaria sobre o acordo que fez com sua mãe? Teria pensado melhor e rejeitado?

Com as mãos trêmulas, ela avançou em direção a Shira antecipando seu pai, pegou o envelope, aproximou-se de um dos assentos e, sem que seus pais pudessem se separar dela nem um único passo, abriu-o: Cara senhorita Moore:

Estou lhe escrevendo pessoalmente para indicar que, depois do que foi acordado com sua mãe, encontrei a melhor maneira de obter nosso acordo. Peço-lhe que apareça amanhã em minha casa às doze horas. Espero que apareça com uma acompanhante. Não quero difamar seu bom nome. Prometo que comentarei, com mais detalhes, o plano que elaborei.

Uma cordial saudação

Logan Bennett, visconde de Devon.


Anne leu a carta várias vezes e depois deu aos seus pais para que eles pudessem descobrir o que ele havia escrito sem ter que sentir a respiração deles na nuca. Seu coração batia tão rápido que, novamente, queria sair do peito. Agarrou a saia do vestido com força, impedindo-os de descobrir o tremor de seus dedos. Em pessoa. Ele exigia sua presença. Falariam sobre o acordo, sobre o plano. Mas... seria capaz de ouvi-lo antes de desmaiar? Teria a coragem de se manter de pé sem perder sua força?

—Deve comparecer —disse Sophia, devolvendo a carta. --

Amanhã se apresentará em sua casa acompanhada por Mary.

—Acha que é conveniente? —Perguntou levantando o rosto, que empalideceu depois de descobrir o que estava escondido na missiva.

—Sim —disse Sophia sem hesitação.

—O que acha pai? -- Em seus olhos mostrava uma súplica. Até agora, toda vez que olhava para Randall dessa maneira, sentia pena dela e dava outra alternativa. No entanto, o brilho de seus olhos castanhos lhe disse que ambos concordaram que deveria fazer essa loucura.

—Deve ir —Randall disse sem pensar por um único segundo.

—Claro que ela deve ir! -- Sophia repetiu com autoridade. —Ele deu sua palavra e eu dei a minha —acrescentou.

—Nesse caso... se os dois concordarem, eu vou —disse Anne, dobrando a carta em porções tão pequenas que poderia escondê-la dentro de sua palma.

—Espero que seja um bom acordo —interveio Randall.

—Posso negar se o que me oferecer não me convier? --

Soltou Anne, levantando-se bruscamente.

—Claro! —Sophia respondeu rapidamente. -- Se o que sugerir não for do seu agrado, pode rejeitá-lo imediatamente.

—Obrigada! —Agradeceu.

—Agora, avise as suas irmãs que vamos jantar antes das cinco. Vamos conversar sobre o que elas fizeram com o pobre Sr. Giesler, com o seu pai e o que acontecerá amanhã. Além disso, devemos escolher as palavras certas para informar Mary que amanhã irá acompanhá-la —Sophia comentou calmamente.

—Poderia acompanhá-la Josephine com sua arma —disse Randall. -- Desta forma, a honra de nossa filha não... —Ele ficou em silêncio, pensando no nome que sua mulher dissera, virou-se para ela, com os olhos arregalados e soltou: -- Disse Sr. Giesler?

—Sim, querido, eu disse isso -- falou caminhando para ele.

—Disse que algo aconteceu com o Sr. Giesler e nossas filhas? --

Perseverou.

—Algo... Sim. Algo aconteceu... —disse evasiva.

—E.... o que é esse algo, Sophia? Sabe que ele não é um homem comum, certo?

-- Não? —Perguntou inocentemente.

—Não, ele é um futuro barão alemão —o médico determinou muito seriamente.

—Isso explica a cor do seu cabelo, seus olhos e sua pele... --

continuou misteriosamente.

—Mas... o que aconteceu na minha ausência? —Randall perguntou espantado.

—Anne, por favor, procure suas irmãs e informe-as do que vamos fazer enquanto eu explico ao seu pai o que aconteceu com.... lorde Giesler? —Retrucou, agarrando o braço dele.

—Sim, mãe -- respondeu Anne.

—Por favor... não me deixe em suspense, Sophia. Sabe que posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento —disse Randall enquanto sua filha se afastava deles.

Anne caminhou em direção à saída tentando controlar o tremor de seu corpo. No dia seguinte, ela apareceria na casa do visconde. Eles ficariam sozinhos, falariam... O que ele teria pensado em fazer com ela? Como ele tinha idealizado um plano tão rapidamente? Depois de fechar a porta, apoiou

as costas sobre ela, olhou para o papel dobrado e suspirou. Seria uma loucura e sabia disso. A ideia de ficar com aquele homem era uma insensatez porque não conseguia parar de pensar no que os dois faziam em seus sonhos. Ela não seria capaz de respirar ao seu lado, ou ficar sã, ou... nada. Levou a mão esquerda aos lábios e acariciou-os. Ainda sentia um toque imaginário, um beijo inexistente, uma sensação e um calor sonhado. Porque tudo era irreal, como o que via à noite...

—O que aconteceu lá? —Perguntou Elizabeth quando a viu daquela maneira tão estranha.

—Vamos! —Disse, pegando sua mão e puxando-a para as escadas que levavam para o quarto.

—O que há de errado, Anne? O que está acontecendo? --

Insistiu Eli intrigada.

—Quero que me conte tudo o que sabe sobre o irmão de Natalie.

—Sobre o Marquês?

—Não, sobre o visconde de Devon —esclareceu quando se viraram para o corredor da esquerda.

—Oh, meu Deus! —Elizabeth exclamou apavorada. —Esse homem não é adequado! É um libertino! Um homem que não é capaz de amar qualquer mulher porque não tem coração!

XI


Que pudesse conciliar o sono facilmente estava descartado...

Uma vez que Mary apagou a lamparina na mesa, depois das três horas da manhã, Anne esperou silenciosamente que caísse no sono. Não queria que a irmã descobrisse que ainda estava acordada porque se sentaria na cama e tentaria falar sobre todos os pontos negativos que a reunião teria, e não estava disposta a ouvir outro sermão sobre a sensibilidade feminina. Tudo o que queria era se acalmar e assimilar as repercussões que teria após a convocação inesperada.

Quando ouviu os roncos singulares de Mary, se levantou e foi até a janela. Ao afastar a cortina, observou a luz da lua iluminar os arredores da sua casa, dando-lhe uma aparência bastante serena. Colocou a mão direita no vidro, sentindo o frio do lado de fora na pele. Sem esperar que a palma voltasse a temperatura do resto de seu corpo, colocou-a na camisola, logo acima do peito, para aplacar a batida do coração, mas não conseguiu. Pelo contrário, ia contra a sua dona e, como vingança, vibrava com mais força. Desconcertada por essa reação incomum, Anne pressionou a testa contra a janela e suspirou. A incerteza de descobrir o que o visconde queria dela tornou-se mais angustiante e seu pesar aumentava à medida que percebia que no dia seguinte estariam juntos... de novo.

Seu corpo, pensando sobre essa reaproximação, estava cheio de tanta energia que poderia sair do quarto e passar por todas as ruas da cidade sem se cansar. Era como se, das profundezas de seu ser, aparecesse uma força estranha que tentava viver ou sentir tudo o que nunca havia vivido ou sentido. Mas devia controlar essa emoção tão explosiva. Não podia se deixar levar de novo por sentimentos impulsivos. Cometeu um erro no passado, aprendeu com ele e agora se tornara uma mulher muito diferente.

Olhou para fora, fixando os olhos na copa da árvore mais alta do jardim. Balançava de maneira semelhante àquela que via em seus sonhos. Foi assim que tudo começou, com a chegada de um pequeno sopro de ar que fazia as folhas das árvores e as chamas da fogueira se moverem. Então tudo se apagava e até mesmo o canto parava para dar lugar à figura masculina mais perfeita que já conhecera. Desviou o olhar do lado de fora e focou em suas mãos. Elas a pinicavam e o mantinham inquieta, como sempre acontecia quando se colocava diante de uma tela em branco. O que estavam tentando lhe dizer? Queriam pintá-lo? Mas... como poderia capturar o poder e o fascínio que ele mostrava em uma pintura? Com um leve movimento, sentou-se no peitoril da janela, colocou a carta dobrada sobre a camisola branca e agarrou-se aos joelhos para continuar apaziguando o tremor das mãos segurando-as em si mesma. Mesmo assim, continuavam se movendo, inquietas, agitadas, pedindo, com tremores leves, que abandonasse o quarto,

se trancasse na sala de pintura e não desperdiçasse mais tempo.

Respirou fundo, olhou para fora e focou na imagem do homem que despertara nela um instinto tão selvagem. Não podia fazer tal loucura. Não podia pintar o rosto daquele homem. Mas sua mente lançava uma batalha contra essa persistência. Ela gritava que deveria se render ao desejo e não se opor mais. Mas... qual seria a primeira coisa que pintaria sobre ele? Seus ombros? Os braços fortes? Não, isso não era tão importante. Depois de pegar um carvão e escolher a tela certa, daria forma àqueles olhos puros, àquele olhar sincero. Marcaria as sobrancelhas e os cílios escuros e deixaria os círculos de sua íris em branco, para dar-lhe o tom de céu azul quando terminasse com o rosto. Enfatizaria a forma de coração que seus lábios apresentavam, marcaria o queixo masculino, iria embelezá-lo com aquela espessa barba negra e, assim que a mandíbula mostrasse sua masculinidade, continuaria com o cabelo. Como gostava mais? Com o cabelo solto, movendo-se com o ritmo daquele vento que aparecia em seu sonho, ou como o usava nas duas ocasiões em que o viu; amarrado em um laço? Anne pressionou a testa no vidro novamente e uma cerca de névoa quente, devido a sua respiração, foi refletida nele. Ergueu a mão direita sem estar consciente, colocou a ponta do dedo indicador na direção daquela leve marca de vida e desenhou o contorno dos olhos em que pensava. Ela se afastou um pouco, apenas o suficiente para admirar o que tinha feito e, de repente, algo nela

mudou. Poderia chamá-lo de entusiasmo? Ou melhor, se tratava de uma loucura? Anne não podia definir essa nova atitude que tomou conta dela, porque nunca havia sentido nada parecido. Sem pensar, se colocou de pé no parapeito da janela, sem lembrar que tinha sobre os joelhos a carta do visconde, e que terminou descuidadamente no chão e começou a expelir todo o vapor que podia pela boca para continuar desenhando. Durante pouco mais de uma hora, aquela janela se tornou a tela mais apropriada para ela. De cima para baixo, da direita para a esquerda, sua respiração se tornou a tinta de cor que usava para o trabalho, seu dedo o pincel e os pulsos, as borrachas para apagar o que não era preciso. Quando terminou, quando não havia sequer um pequeno detalhe para pintar naquele rosto, colocou os pés no chão, caminhou para trás e admirou seu trabalho. A lua brilhava tanto que parecia um farol na janela. Seus raios atingiram o vidro, cruzando apenas as áreas que ela não havia desenhado. Os olhos, as sobrancelhas, o nariz, os lábios, a barba e os cabelos que finalmente pintou livres e agitados pelo vento, se apresentava com tal realismo que parecia respirar e observá-la em silêncio. Sem ser capaz de desviar o olhar daquelas linhas perfeitas, ela colocou as mãos no peito e sentiu como ele batia sem controle.

—Me parece tão... vivo, tão ... meu, que agora tremo de medo --

ela sussurrou. Mas não posso...

Um ronco mais alto do que o habitual fez os lábios de Anne

apertarem e se virou para Mary. Aqueles encrespadores na cabeça não permitiam que ela respirasse corretamente e, toda vez que se movia, bufava alto. Depois de confirmar que ela não tinha acordado, se virou para aquela imagem que parecia persegui-la e olhou para ela por um longo tempo. O que ele iria querer dela? O que pensava dizer a ela? Por que ele aparecia em seus sonhos? Por que seu corpo reagia estranhamente desde que apareceu em sua vida? Seria a maldição ou o medo de que ele tivesse o mesmo futuro que seus dois pretendentes? Enquanto tentava encontrar respostas para todas as suas perguntas, se abaixou, pegou a missiva, voltou para a cama, cobriu-se com a colcha e adormeceu olhando para aquele rosto.


***


—Vamos! Hoje não é um bom dia para descansar! —Sophia exclamou depois de abrir a porta e encontrar suas filhas dormindo pacificamente. —Há muitas coisas para fazer antes de visitarem o visconde

—acrescentou enquanto caminhava até a janela.

Anne abriu os olhos muito devagar, com certa preguiça. Era a primeira vez, em muito tempo, que havia descansado dessa maneira. E nem sonhara com o visconde! Essa ideia a perturbou tanto que se sentou rapidamente na cama. O que diria a sua mãe quando perguntasse sobre o

sonho? Devia mentir para ou contar a verdade? Mas sua ansiedade mudou de direção quando descobriu que ela estava indo em direção à janela onde tinha pintado seu rosto. O veria através da luz do dia? Como pode ser tão descuidada que não a limpou antes de ir dormir?

—Nem pense em descer sem se arrumar —disse Sophia a Mary depois de puxar a cortina da janela da esquerda, sem perceber por que a outra não estava em seu lugar. Se virou para a segunda de suas filhas e continuou:

?Viu o que aconteceu ontem e não estou disposta que suas irmãs fiquem alteradas novamente por sua causa. Hoje é um dia especial para a família e nada deve nos preocupar, exceto a reunião de Anne com o visconde.

Ao ouvir essa afirmação, Anne notou como seu estômago apertava e como seu coração batia tão rápido que os ecos dessas palpitações retumbavam em sua cabeça.

—Está preocupada, querida? -- Perguntou depois de afastar bruscamente os lençóis de Mary. Não fique. Sabe que seu pai e eu iremos apoiá-la em qualquer decisão que tome.

O rosto de Sophia, apesar dessas palavras, mostrava desapontamento. Não duvidava da sabedoria de sua filha, mas tinha certeza de que o visconde se dispusera a oferecer-lhe algo que não podia ser negado.

—Levante-se imediatamente! —Gritou para Mary quando, ao sentir o frio em seu corpo, alcançou o pé da cama e se cobriu novamente.

—Cinco minutos a mais... —pediu depois de colocar o travesseiro naquele ninho de bobes de metal.

—Eu disse a Foderhy para trazer uma xícara de café bem forte --

explicou Sophia, tirando os lençóis novamente. —Espero que seja o suficiente para que se mova.

—Nem pense mãe —Mary começou a dizer enquanto se espreguiçava. -- Se me fizer beber mais café do que o habitual, meu corpo reagirá de maneira contrária a que quer.

—Sabe o que está tentando me dizer? —Perguntou a Anne enquanto arregalava os olhos.

—Não —disse a primogênita, colocando os pés no chão. -- Mas certamente a resposta estará no livro que ela guarda debaixo da cama.

Quando Mary ouviu essa declaração, se ergueu rapidamente do colchão e foi à sala de banho. Não seria apropriado, pelo menos dessa vez, que sua mãe lesse o título do livro que estava escondendo. O que pensaria dela quando descobrisse que pegara um dos romances de Elizabeth? Que ficara louca! E talvez estivesse certa, porque nem ela sabia por que, depois do confronto com aquele maldito cavalheiro, queria encher a cabeça com bobagens.

—Não demore —Anne disse antes que sua irmã fechasse a porta.

—Não se preocupe, só quero esvaziar minha bexiga para que

possa enchê-la novamente com o que nossa mãe determinou que eu preciso.

—Mary Moore! —Sophia disse, colocando as mãos na cintura. Está zombando da mulher que lhe deu vida? Que a levou em sua barriga durante uns agonizantes nove meses e meio?

—Nove meses e meio? —Ela perguntou, levantando as sobrancelhas. —Posso confirmar que sou inteligente desde então. Sabia que o mundo era tolo o suficiente para uma mulher tão instruída quanto eu nascer nele ? hesitou antes de fechar a porta.

—Não sei o que fazei com ela! —Exclamou Sophia com raiva. --

Ninguém pode parar essa língua tão insolente!

—Não se aflija, mãe. Quando o homem de quem Madeleine falou aparecer, usará sua língua para outra coisa —disse Anne divertida.

-- Não diga bobagem, Anne Moore! Sua irmã não é como você!

E nesse momento se sentiu a mulher mais estúpida do mundo.

—Dessa vez será Shira quem a vestirá. Disse a ela que vestido deverá usar.

—Como? -- Perguntou atordoada. -- Não confia na minha escolha?

—Claro que não. Ultimamente mostra uma imagem bastante inapropriada. Então, a partir desse momento, aviso que, se levar uma peça de roupa sequer da cor laranja, abrirei seu armário enquanto estiver fora e

queimarei tudo o que me causar repulsa —disse severamente.

—Senhora... —a criada falou justamente quando Anne estava planejando dizer que não deveria ameaçá-la ou projetar nela a fúria que Mary criou.

—Vá em frente —disse a Sra. Moore.

Sophia foi até a porta quando Shira começou a procurar o vestido no armário, olhou para a filha, depois para a donzela e apontou:

—Que ela não arrume o cabelo sozinha. Eu quero que a penteie e não faça aquele coque absurdo que insiste em usar. Deixe alguns fios em seus ombros, mas não esconda seu rosto.

—Sim, senhora —Shira confirmou, pegando o vestido escolhido e caminhando para a moça.

Anne, quando descobriu o vestido que deveria usar, olhou de lado para a mãe, que estava imóvel na porta, e apertou os lábios para não responder. Por que tinha decidido arrumá-la como se estivesse indo para uma festa? Não estava ciente de que ia mostrar ao visconde uma imagem errônea? Não pretendia seduzi-lo com o decote oferecido por aquele vestido rosa pastel, nem que se distraísse observando alguns cachos tocavam a pele de seus ombros levemente. Ela precisava que ele falasse sobre o acordo, ponderar se estava interessada ou não e sair de lá o mais rápido possível.

—Mary Moore! Saia do banho de uma vez ou queimarei seus

livros na lareira da sala! —Sophia gritou ao perceber que estava demorando mais do que prometera.

—Como pode expressar tal heresia? —Respondeu a jovem, abrindo a porta rapidamente.

—Porque sabe que farei —respondeu com firmeza.

—Pelo amor daquele Deus que constantemente evoca! —Mary exclamou, enquanto levava as mãos para os rolos. Hoje não consigo nem urinar tranquila?

-- Urin... o que? —Shira perguntou, olhando para a segunda das irmãs duramente enquanto observava como tirava os rolos metálicos de forma inadequada.

-- Urinar —Mary repetiu, caminhando até o armário. —A função que alguns seres vivos realizam para esvaziar o que nós contemos em nossa bexiga —ela acrescentou. —As mulheres têm um...

—Nem pense mais em falar sobre esse assunto! —Sophia esbravejou horrorizada. —Não é hora de falar sobre um assunto tão efêmero.

—Disse efêmero? —Mary retrucou, virando-se para a mãe com um sorriso de orelha a orelha. —Oh! O que meus ouvidos captaram? Posso concluir que tudo ainda não está perdido nesta família? —Continuou zombando.

—Mary Moore —Sophia começou a dizer, caminhando

lentamente até a sua segunda filha. —Realmente acredita que a inteligência que possui vem do seu pai?

—De quem mais? —Ela respondeu arrogantemente.

—Pois está errada...

—Não tenho tanta certeza. De acordo com alguns estudos que tenho...

Ela ficou em silêncio quando sua mãe levantou um dedo da mão direita.

—Elimine tudo o que tem nessa cabeça teimosa e seja, por uma vez, uma mulher respeitável. Quero que se comporte corretamente na casa do visconde hoje. Se Anne me informar que causou uma briga, usarei todos os meus encantos de mulher para seu pai concordar em excluí-la de suas próximas reuniões médicas —garantiu, colocando as mãos na cintura.

—O papai não aceitará isso —desafiou, apertando os olhos. --

Ele, melhor do que ninguém, ama minhas réplicas e não vai querer perder como sua filha erudita destrói qualquer abordagem masculina irracional.

—Acho que não teria tanta certeza. Porque, uma vez que feche a porta do nosso quarto, ele fará tudo o que eu pedir —disse mordazmente.

—Por favor! —Mary disse, revirando os olhos. —Joga com vantagem!

-- E? —Sophia insistiu sem reduzir seu tom de voz cruel.

—Não vou demorar mais um minuto! —Afirmou caminhando até Foderhy, a donzela encarregada de atendê-la e que esperava do lado de fora do quarto até que a discussão entre mãe e filha tivesse terminado.

Enquanto Shira ajustava o vestido para Anne, Mary não parou de reclamar sobre como a vida era injusta para ela. Murmurava sobre sua felicidade e sobre a única coisa que precisava para alcançá-la: viver cercada de livros sem que ninguém a interrompesse. Mas Anne mal a ouvia. Estava profundamente envolvida em seus próprios pensamentos. Ficou se perguntando por que sua mãe tentou dar a ela um visual tão elegante e tão diferente do que queria ter. Por que proibiu a cor laranja se sabia que ela amava? Se existia uma tonalidade que pudesse defini-la com exatidão era essa. Não só expressava um caráter alegre, mas também mostrava ao mundo que ela não se importava com a opinião que tinham sobre ela. Ou não era assim?

—Prenda a respiração —Shira pediu a Anne enquanto ajustava os laços nas costas.

-- Se achar melhor, pare de respirar por alguns minutos para ver o que acontece —Mary comentou mordaz quando ouviu as palavras da donzela.

—Não preste atenção nela —Anne interveio. —É que ela ainda não tomou o café que nossa mãe lhe prometeu.

—Oh, desculpe-me! —Foderhy disse, afastando as mãos do vestido de Mary e levando-as à boca. —Deixei no aparador do corredor.

—Frio! —Disse Mary, caminhando pelo quarto. —Terei que tomar frio!

—Eu... eu... sinto muito, senhorita Moore —disse a donzela angustiada.

—Não se preocupe, vai tomá-lo de qualquer maneira —disse Anne depois de caminhar até o banquinho em frente à penteadeira.

Agora era a vez do penteado. Shira obedeceria a ordem de sua mãe sem questionar. Então, quando terminasse com ela, estaria pronta para participar para uma festa em vez de ir a uma reunião com o visconde.

—Nós continuamos com a batalha? —Mary perguntou quando ela apareceu no quarto.

Uma hora depois, as duas irmãs saíram do quarto, caminharam lentamente pelo corredor, ainda olhando uma para a outra e, assim que chegaram à escada, mostraram o melhor sorriso quando viram Sophia esperando na porta.

—Nós parecemos adequadas? —Perguntou Mary com certa animosidade: —Ou quer que voltemos para mudar?

—Só precisam de uma coisa —respondeu a mãe, ignorando o comentário mordaz de sua filha: —Esta manhã está bastante fria —disse

Sophia depois de abrir a porta e sentir uma leve brisa vinda de fora. --

Coloquem seus casacos e peguem seus regalos.

—As luvas vão manter minhas mãos aquecidas —Mary comentou enquanto Shira a ajudava a vestir o casaco. —Se colocar o regalo, vão suar como se estivéssemos no meio do verão.

—Anne? —Sophia perguntou, levantando a sobrancelha esquerda.

—Acho o mesmo que Mary -- respondeu.

—Não demorem muito quando saírem da residência do visconde. Como podem imaginar, todos estaremos sem viver até que saibamos o que quer —disse Sophia, afastando-se um pouco da porta.

—Sim, mãe —responderam em uníssono.

Depois que as duas beijaram Sophia na bochecha, foram para fora, onde o cocheiro estava esperando por elas. A primeira a entrar foi Anne e Mary a seguiu depois de um rápido olhar para a entrada da casa e confirmar que a mãe ainda se agarrava à maçaneta da porta, olhando para elas.

—Espero que a reunião seja curta —disse Mary quando o cocheiro atiçou os cavalos. —Porque estou na melhor parte do livro.

—O que está lendo agora, Mary? —Anne perguntou depois de estender o vestido no banco.

—É.... se trata... —Ela hesitou por alguns segundos. -- É um

artigo sobre os procedimentos antissépticos que o Dr. Semmleweis explicou

—mentiu.

Era melhor do que contar a verdade. O que Anne pensaria se ela confessasse que estava lendo Orgulho e Preconceito? Talvez seu coração tenha finalmente despertado daquela letargia a qual o submetera e começasse um discurso sobre o tratamento adequado de um cavalheiro. Então, para não ouvir um assunto tão absurdo, decidiu continuar oferecendo a imagem de uma mulher racional. Nenhuma de suas irmãs deveria suspeitar que, depois de descobrir a reação absurda do cavalheiro loiro de olhos azuis, ela decidiu investigar, cientificamente, sobre a mente dos homens. No entanto, uma vez que foi até a biblioteca e revisou livro por livro todos os acordos científicos sobre o cérebro humano, visitou a seção de livros de Elizabeth e escolheu o que aparentemente, descrevia muito bem seu caráter e atitude do titã alemão.

—E, por que está tão intrigada com esse médico? —Anne insistiu, inclinando-se levemente.

—Porque se estiver certo, muitas doenças que aparecem após o parto podem ser evitadas com um simples ato de limpeza antes de serem atendidas. Segundo sua teoria, há microrganismos em nossas mãos —tirou as luvas e as mostrou para Anne —que podem ser transmitidos, até mesmo por um leve carinho, e se tornarem mortais. Com isso, recomendo que nunca tire suas luvas. Alguém poderia alisar sua mão e envenená-la sem estar

consciente —disse sarcasticamente enquanto as cobria novamente.

—Pelo amor de Deus, Mary! Se tiver razão, todos deveríamos cobrir o corpo com uma luva gigante —exclamou Anne, lamentando por perguntar.

—Seria suficiente que as costureiras fizessem peças de roupas que cobrissem nossas cabeças e, como uma dica, elas deveriam rasgar o tecido ao redor dos olhos. Desta forma, poderíamos ver o que temos diante de nós e evitar nos infectar de doenças que...

—Chega! Não continue! Prefiro me infectar com mil insetos desses que diz a cobrir meu corpo com esse tipo de roupa —resmungou antes de desviar o olhar de sua irmã para fixá-lo na janela.

Sua mãe realmente havia escolhido bem ao elegê-la como acompanhante? Bem, estava errada! O que Mary faria depois de ler algo tão absurdo? Rejeitaria a saudação do visconde quando pensasse que seus lábios poderiam transmitir algum tipo de doença? Começaria uma conversa sobre todos os prós e contras que envolveria uma saudação cortês? Anne fechou os olhos e bufou. Sem dúvida, o desastre estava do seu lado. Ela apenas rezou para que o visconde falasse sobre o que pensara antes de expulsá-las de sua residência.

Quando a carruagem parou, ela abriu os olhos e focou em Mary. Esta continuava com o olhar perdido, pensando em algo que a fez

relembrar porque apresentava uma cara muito azeda. Sem querer descobrir o que estava causando aquela amargura, ela agarrou o vestido e desceu quando o cocheiro abriu a porta para ela. Então, Mary desceu, e, como ela deduziu, não aceitou a mão do criado porque não usava luvas.

—Por Cristo! —Mary exclamou ao olhar para a casa do visconde. —É linda!

—Como todas as que possuem os aristocratas -- disse Anne com desdém.

—Bem, eu passaria muito tempo nessa área do jardim —disse ela, apontando com o queixo para uma gangorra branca colocada ao lado de uma fonte redonda de mármore escuro.

—Com um livro? —Disse a mais velha sarcasticamente.

—Com centenas! —Mary respondeu depois de esfregar as mãos.

Durante a curta caminhada que fizeram da entrada até a porta da frente, ambas permaneceram em silêncio, observando atentamente a residência do visconde. Mas quando elas subiram as escadas e Anne estava prestes a bater para que abrisse, ela se virou para a irmã e disse:

—Se comporte adequadamente.

—Prometi

mil

vezes

que

eu

vou

—comentou

desesperadamente. —O que aconteceu ontem não teve nada a ver com lorde Bennett, mas com aquele arrogante e rude Sr. Giesler. Oh, não me perdoe,

soube que ele é um barão... bem, lorde imbecil Giesler!

—Só agiu como qualquer pessoa faria em seu lugar ao vê-la daquela forma —disse Anne, repreendendo-a.

—Se lembra que ele me chamou de bruxa? —Mary murmurou, franzindo a testa e cerrando os punhos. -- Ele vai engolir suas palavras! Algum dia ele vai engolir essas malditas palavras! —Sentenciou.

—Mary, pelo amor de Deus! -- Anne exclamou, revirando os olhos.

—Se Deus existisse, o que eu me recuso a acreditar, me dará a oportunidade de encontrá-lo novamente e farei com que ele pague por toda palavra desdenhosa que me ofereceu -- declarou ela solenemente. O único arrependimento que sinto é que não tinha pedras em vez de alguns bobes miseráveis. Eu o teria apedrejado naquele momento.

—O papai a trancará no quarto se tentar assustá-lo de novo.

—Aceitarei de bom grado essa punição, se me permitir encher o quarto com livros que vão apaziguar a minha solidão —disse ela, sorrindo maliciosamente.

—Talvez devesse recusar ler por várias semanas, então aprenderá a se comportar -- Anne a repreendeu enquanto pegava a aldrava para chamar.

—Se por acaso sugerir essa opção, vou dizer ao papai que

finalmente acredito na ideia absurda da maldição e que a melhor coisa para todos nós é matar dez galos e banhá-la com seu sangue —ameaçou.

—Não se atreveria? -- Perguntou, arregalando os olhos.

—Me teste —disse severamente.

—Boa tarde, senhoras. Que desejam? —Kilby as cumprimentou depois de abrir a porta. Primeiro olhou para uma e depois para a outra. As duas mulheres eram muito parecidas, embora uma delas, a que tinha olhos castanhos, mostrasse um semblante mais amável. No entanto, a outra, que tinha belos olhos azuis, exibia uma dureza no rosto mais parecida com um burro do que com uma dama.

—Boa tarde, somos as senhoritas Moore. O visconde nos espera

—disse depois de respirar e encontrar alguma calma.

—Entrem, por favor —respondeu o mordomo, afastando-se da entrada. -- Se forem amáveis em me dar seus casacos.

—Claro —respondeu Anne, desfazendo os botões.

—Uma manhã fresca, certo? —Kilby perguntou gentilmente às duas mulheres.

—Não tão fresca quanto poderíamos ter se vivêssemos no Polo Norte, mas sim, é um pouco frio para os corpos fracos da aristocracia de Londres —respondeu Mary, incapaz de desviar o olhar da residência do visconde.

—Desculpe minha irmã —disse Anne rapidamente. —Ela odeia o frio e, como pode ver, não senta bem a sua cabeça.

Com esse comentário, Kilby suavizou o rosto e olhou com compaixão para a mais velha das duas irmãs. No entanto, quando Mary ofereceu-lhe o casaco, ele o segurou como se tivesse piolho.

—Se forem gentis em me seguir, o visconde as espera na biblioteca.

E então Mary sentiu mil borboletas se agitarem em seu estômago.

Seus olhos brilhavam de emoção e um sorriso cruzou seu rosto. Como seria a biblioteca do visconde? Ele seria um homem culto? Teria lido todos os livros que guardava nas prateleiras? Permitiria que ela lesse enquanto os dois falavam sobre esse acordo? Ela esfregou as mãos, como uma menininha prestes a abrir um presente, olhou para Anne e fez seu sorriso crescer ainda mais.

—Esse visconde parece agradável —murmurou.

—Como pode declarar isso, se ainda não conheceu? —Anne respondeu, estreitando os olhos.

—Apenas ter citado a biblioteca, tem minha absoluta aprovação.

—Mas não disse que odeia homens? Que todos se parecem com jumentos com orelhas curtas? —Murmurou.

—Bem, mas esse parece diferente. Além disso, não procuro um

marido para humilhar por causa do meu grande intelecto. Tudo o que quero é uma boa biblioteca para passar o tempo e, se o visconde a possui, estarei encantada em oferecer-lhe a sua mão —sussurrou.

—Mary! —Exclamou indignada em voz baixa. —Isso não posso esconder de nossa mãe!

—Lembre-se dos galos... —lembrou antes de esticar as costas e caminhar serenamente para o lugar mais idílico para ela.


CONTINUA

Londres, 14 de outubro de 1882, residência Moore.
Anne se olhou no espelho e suspirou.
Ela não queria, nem deveria participar de uma festa depois do que aconteceu, mas seus pais prometeram que seria a última vez que a obrigariam a fazer algo parecido. Desde que soube, fez tudo em seu poder para que Mary ocupasse seu lugar. Até fingira um tornozelo torcido! Mas foi inútil. Seus pais descobriram a mentira rapidamente e novamente rejeitaram a ideia de sua segunda filha acompanhando a terceira porque eles não queriam que ela se tornasse, novamente, o centro de qualquer conversa social. E eles não estavam errados... se alguém ousasse contradizê-la em alguma conversa sobre medicina, Mary se tornaria uma loba e acabaria chamando a todos aqueles que a contrariaram: bando de corpos sem cérebro. Apesar da explicação, ainda achava que estavam errados. Era preferível que Elizabeth sofresse um choque momentâneo pela reação de Mary, a ser constantemente humilhada pela sua presença. Porque a culpa pela transformação de Elizabeth ela dera, apenas dela e da maldição que padecia.
Desde que todos finalmente aceitaram sua existência, Elizabeth deixou de ser uma menina doce e terna para se tornar uma mulher frívola, descarada e ousada. Essa mudança se devia à falta de pretendentes. De fato, enquanto suas outras irmãs não estavam procurando um homem para casar, porque no caso das gêmeas eram muito jovens e Mary por ser fria como um bloco de gelo, Elizabeth usava sua maravilhosa beleza e audácia para encontrá-lo prontamente. No entanto, ela não conseguia o resultado desejado porque, depois do que aconteceu aos dois noivos de Anne, nenhum cavalheiro se atrevia a cortejar uma irmã Moore por medo de morrer...

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_MALDI_O_DE_ANNE.jpg

 

Anne continuou a se olhar no espelho enquanto se lembrava de seus anos de infância. Fora muito feliz naquela época. Como qualquer criança, ela só se concentrava em atender a professora contratada pelos pais, cumprir as regras da casa e pintar. Sim, seu único dom, porque era muito desajeitada em todo o resto, era pintar. Portanto passava dias e dias apreciando a paz que seu jardim oferecia em dias de sol, enquanto pintava milhares de paisagens imaginárias em suas telas. Tudo estava indo bem até a puberdade chegar. Qualquer mulher a dominaria com integridade e bom senso, mas ela era incapaz de fazê-lo. Como deduziu, aquele sangue cigano que corria em suas veias era a causa de tudo. Ele queimava. Sim, a queimava tanto que houve momentos em que a dor era tão insuportável que ela se jogava no chão chorando. Por que sua natureza cigana era tão cruel? Por que era incapaz de controlá-la? Com o passar do tempo, aceitou e assimilou essas

mudanças nela. Mas nessa nova vida, Anne Moore deixou de ser uma menina para se tornar uma mulher com apenas um desejo: sedução. Ela se sentia tão adulta, tão radiante, tão sensual que, toda vez que andava por Londres e observava homens admirando-a, sua sexualidade brotava de dentro como uma flor abrindo suas pétalas. Por causa disso, uma tarde, enquanto suas irmãs apreciavam um piquenique, sua mãe a arrastou para a sala e decidiu confessar o que mantivera em segredo durante os dezessete anos de casamento.

—Seu avô, meu pai, adoeceu -- Sophia começou a dizer quando as duas se sentaram no sofá perto da lareira, -- e nenhum médico queria comparecer, exceto o bondoso Dr. Randall Moore. Eu sei que, desde que ele entrou na carruagem, não conseguia tirar os olhos de mim, como nem eu dele. Muitas vezes me pergunto como ele foi capaz de descobrir sobre a doença, se não prestou atenção -- ela continuou sorrindo. A atração que tivemos foi instantânea. Ele olhou para mim, eu olhei para ele e o amor nasceu.

—Realmente? Foi tão fácil? -- Ela perguntou com espanto.

—Já disse que as mulheres da nossa raça têm o dom de sonhar com o homem da nossa vida? -- Anne negou com um movimento suave da cabeça. —Bem, eu o vi por muitas noites no mesmo sonho: Ele aparecia entre as chamas de um fogo, o que para nós significa amor e paixão,

estendia a mão e.... bem, o resto pode imaginar -- explicou, desenhando um enorme sorriso.

-- Ainda não entendo o que isso tem a ver com a maldição que fala -- disse ela enquanto esfregava as mãos.

-- Desde aquela noite, seu pai e eu nos encontrávamos escondidos. Nem meu pai nem minha avó aceitaram a presença de um gajo, exceto para serem curados quando a feiticeira de nossa aldeia não era capaz de curá-los. Na primeira noite em que me entreguei de corpo e alma a seu pai, ele me pediu para fugir com ele, casar e ser a Sra. Randall para sempre. Durante vários dias pensei nessa proposta... -- Ela suspirou. Então aconteceu algo que me fez tomar uma decisão mais cedo do que eu esperava.

—O que aconteceu? -- Anne perguntou com expectativa.

—Minha avó paterna, Jovenka, arranjou um casamento para mim. Ela queria que me casasse com o filho de outra família cigana para que, segundo ela, o sangue não fosse contaminado.

—Ela sabia que estava se encontrando com o papai, certo?

—Sim, receio que nos descobriu... -- disse tristemente. -- Por essa razão, na noite seguinte, aceitei sem hesitação a proposta de Randall.

—Foi ela quem a amaldiçoou? Os procurou? Como fez? -- Ela perguntou sem respirar.

—Nós ficamos fora de Londres por um mês. Seu pai tinha

economizado o suficiente para alugar uma pequena casa e ficamos lá por algum tempo. Mas seu trabalho exigiu e tivemos que voltar. Quando me apresentou à sociedade, porque todo mundo estranhara que ele finalmente encontrasse uma esposa...

—Como estranharemos se Mary encontrar um homem que a aceite? -- Interveio Anne alegre.

—Implorei para que não revelasse minhas origens.

—Por que fez uma coisa dessas? -- Disse, se levantando. --

Rejeita seu sangue?

—Não! Jamais rejeitaria! ?Defendeu-se, se levantando também. -- Mas não era sensato, na época, declarar que um homem como Randall, com a reputação que estava sendo forjada depois de tantas dificuldades, acrescentasse que sua esposa era cigana. Parecia mais apropriado dizer que era filha de um burguês.

—O que aconteceu depois? -- Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

?Uma noite, nos preparávamos para uma reunião com outros médicos. Sabe, aquelas que Mary tanto ama e eu não suporto nem dez minutos. Estava de pé na porta, esperando pelo seu pai que tinha ido pegar seus óculos. Senti um forte vento ao meu lado, mas ignorei até que, momentos depois, percebi uma presença. Muito lentamente me virei para o

jardim e.... lá estava minha avó Jovenka. Ela olhou para mim com tanta raiva que notei como sua fúria perfurava meu corpo.

—O que ela disse? -- Anne insistiu, olhando para a mãe.

—Sem falar, me pegou pela mão e puxou com força. Queria me afastar da vida que escolhi. Mas naquele momento seu pai apareceu e me tirou de suas mãos. «Ela fica comigo! " -- Ele gritou.

—O que Jovenka fez? ?Insistiu.

—Sorriu com tanta maldade que me deixou congelada --

recordou, acariciando os braços como se o frio tivesse voltado para ela. --

Ela fechou os olhos e começou a evocar as almas ruins. Depois daquele cântico infernal, cuspiu no primeiro degrau da escada, curvou-se, fez vários círculos com sua saliva e disse: «Eu a amaldiçoo, Sophia. A amaldiçoo por rejeitar quem é, por negar o sangue que corre em seu corpo e por se tornar a mulher de um gajo. E para que a dor seja mais duradoura e cruel, não sofrerá essa maldição, mas sim a mais velha de suas filhas. Ela, se quiser lutar contra a vida que a espera, terá que se casar com um cigano, desta forma assumirá que a única verdade que existe no mundo é o poder da raça e do nosso sangue» -- relatou.

—Como? O que é isso de que devo casar com um

...? -- Anne apertou os lábios para não mostrar à mãe a negação que sentia em relação àquela palavra. Em nenhum momento de sua vida pensou que seu

futuro seria em um acampamento cigano. Nem muito menos se imaginava vivendo em uma carroça daquela maneira e de se tornando a esposa de um nômade. -- O que o papai fez?

—Sabe como é.... -- Disse com um leve sorriso. —Ele não acreditou nem acreditará nesse tipo de rituais ou feitiços, por isso me fez prometer que nunca diria o que aconteceu naquela noite. No entanto, aqui me tem, quebrando uma promessa.

—Por que faz isso, mãe? Por que confessa isso para mim agora?

—Porque tem meu sangue, Anne -- ela disse, voltando para o sofá, -- e eu vejo como ele a altera cada dia que passa.

E isso era verdade. De uns tempos para cá, ela sentia com muita força certa necessidade que não entendia. Se sentia como um campo cheio de orquídeas na primavera ao notar os primeiros raios do sol da manhã. Suas emoções, seus sentimentos sobre o mundo ao seu redor haviam se tornado, em pouco tempo, irracionais e incorretos. Quantas vezes olhou para um homem com indiscrição? Por que quando se contemplava no espelho, queria exaltar seu erotismo?

—Somos e seremos selvagens -- esclareceu Sophia ao ver sua filha franzir a testa. —Nascemos da Mãe Natureza e, como tal, só buscamos a liberdade de amar. Mas quero avisá-la, antes que algum cavalheiro ocupe seu coração, que não será fácil lutar contra essa maldição. Não sei o que

acontecerá, juro, mas não tenho dúvidas de que sofrerei quando a ver sofrer.

—Realmente acredita que estou amaldiçoada e que terei que casar com um cigano para fazer essa maldição desaparecer? Não seriam, como o papai disse, palavras sem sentido e que apenas expressaram semelhante estupidez para proporcionar medo? -- Ela falou enquanto se sentava ao lado da mãe.

—Não, Anne. Minha avó nunca evocaria almas ruins para me assustar -- disse, acariciando seu rosto jovem. -- Acredito nessa maldição, a única coisa que tento descobrir é como se livrará dela sem ter que se casar com um cigano.

Como ela poderia se apaixonar por um cigano? Como poderia abandonar uma vida confortável para transformá-la no oposto? Jamais rejeitaria a mistura de seu sangue, mas nunca aceitaria viver como eles. Por essa razão, decidiu que a única maneira de lutar contra essa parte selvagem era se trancar em casa e deixar que os anos passassem. No entanto, seu problema cresceu e cresceu a ponto de atingir uma loucura sem precedentes. Aos 22 anos ela decidiu enfrentar essa possível maldição. Começou a sair, aparecer nas festas em que era convidada e aproveitar tudo aquilo que não tinha aproveitado por ter se submetido ao isolamento. Durante essas celebrações, sua atitude era muito parecida com a de Elizabeth: ela conversava com os convidados sem se importar com a

classe social a qual pertencia, aceitava danças até mesmo dos homens menos apropriados e não evitava os olhares daqueles que a observavam. Só deixava as festas quando seus pés doíam tanto que não suportaria uma dança mais. Naquela época, ela conheceu Dick Hendall, um burguês bonito com quem se encontrou em muitas ocasiões. Primeiro, houve alguns olhares discretos, depois algumas conversas e acabaram ficando nas áreas mais escuras dos jardins. Dick era um verdadeiro sedutor e a transformou em uma mulher apaixonada e desinibida. Cada vez que estavam sozinhos, ela se apaixonava não apenas pelas palavras bonitas, mas também pelos beijos e carícias que a deixavam tremendo. Nunca imaginou que o cortejo de um homem em relação a uma mulher era tão enganador e assim acabou cedendo àquela paixão que ambos mantinham em segredo. Depois de vários encontros de amor, Dick propôs casamento argumentando que não tinha uma mulher no mundo que pudesse amar tanto. Naquele momento e prisioneira da felicidade, Anne aceitou sua proposta, esquecendo, novamente, a maldição que sua mãe havia comentado.

Na tarde em que seu belo Sr. Hendall apareceu na residência dos Moore para formalizar a proposta de casamento, ela estava tão nervosa que mal conseguia ficar sentada por mais de três segundos. Andou pelo corredor esfregando as mãos enquanto esperava que um dos pais saísse do escritório e reivindicasse a presença dela. Nesse ir e vir ao redor da casa, rezava para que

sua mãe, porque seu pai não acreditava em maldições ou feitiços, esquecesse a ideia daquele encantamento familiar. Desperdiçou quase sete anos de sua vida acreditando nessa insensatez e esperava que todos aceitassem, de uma vez por todas, que não havia maldição. Uma hora depois da chegada de Hendall, sua mãe abriu a porta e chamou por ela. Quando entrou, pôde ver a emoção nos olhos de Dick. Seus pais aceitaram o compromisso e, a partir daquele momento, ela se tornou noiva do sr. Hendall.

Nada poderia deixá-la mais feliz ou mais orgulhosa de si mesma. Não só se casaria com o homem por quem estava apaixonada, mas, com essa atitude, tinha abolido a estupidez de que estivesse amaldiçoada.

Foram dias muito felizes para a família. Suas irmãs se uniram nessa alegria, ajudando-a a procurar um vestido de noiva e a elaborar a lista de convidados. Até seu pai se unia, toda vez que seu trabalho permitia, àquelas divertidas reuniões de mulheres. A única pessoa que não compartilhava esse estado de euforia coletiva era sua mãe. Desde que Dick saíra de sua casa, ela permaneceu em silêncio, esquiva e misteriosa. Anne, furiosa com tal atitude inadequada, teve a audácia de censurá-la por ter passado toda a sua juventude assustada por uma mentira e que demonstraria, com o seu casamento, que estava errada e que não precisaria se casar com um cigano para ser feliz. Sophia relutantemente concordou que tudo o que pensara sobre seus ancestrais era uma mentira e que nenhum de seus parentes

tinha a habilidade de amaldiçoar.

Os dias passaram e, pela primeira vez em muito tempo, a palavra maldição foi banida de sua mente. Mas tudo isso mudou na noite em que um criado de Dick apareceu para informá-los da trágica notícia...

Depois de ouvi-lo, ela teve que sentar no primeiro degrau da escada do corredor para não cair no chão. Lágrimas lutavam para brotar, enquanto ela se recusava a assumir o que havia acontecido. Foi seu pai quem decidiu descobrir o que havia acontecido e, depois de ouvir várias vezes a versão do criado, pegou o casaco e saiu com ele. Aturdida e petrificada, Anne sentiu os soluços de suas irmãs como se estivessem a vários quilômetros de distância dela. Tudo ao seu redor havia desaparecido; ela deixou de ser Anne Moore, a noiva de Hendall, para se tornar um fantasma sem nome ou destino. Esse estado de choque a manteve longe da realidade por três dias, o tempo que os pais de Dick definiram para velar seu corpo inerte. Mesmo assim, embora se encontrasse durante aqueles dias ao lado de um caixão, só reagiu quando duas pessoas vestidas de rigoroso luto colocaram o caixão no mausoléu da família. Então ela teve que aceitar a verdade: seu noivo havia morrido. Um cavaleiro experiente, que competira em cem corridas, caiu de um garanhão ao galopar em direção à sua casa.

Após o cortejo fúnebre, ela se trancou em seu quarto e não saiu até que vários dias depois seu pai entrou e lhe disse a versão do Dr. Flatman:

que a morte de Dick poderia ter sido evitada se ele não estivesse andando em um cavalo não castrado depois de ter ingerido tanto álcool como para embebedar a tripulação do maior navio de Londres. Apesar dessa descoberta, embora Randall tentasse convencê-la de que ela não tivera nada a ver com isso, Anne não deu ouvidos as razões. Durante um ano e meio manteve um luto severo pelo noivo morto e o pensamento de que estava amaldiçoada voltou à sua mente.

Uma vez que o período de luto passou, a mesa de seu pai foi novamente preenchida com convites. Nessa ocasião, não convocavam apenas a ela, mas também Mary, que completara vinte anos, e Elizabeth, que tinha dezenove. A resposta de Mary foi sempre negativa, no entanto, Elizabeth não estava disposta a deixar passar o tempo sem aproveitar os benefícios de ser a filha do famoso Dr. Randall Moore. Embora a garotinha sempre tentara chamar a atenção dos presentes, dificilmente conversava porque era jovem demais. Para a angústia de Anne, os olhares se voltavam novamente para ela. Ninguém estava falando sobre a noiva infeliz que, faltando um mês para o casamento, seu pretendente morreu, nem ouviu rumores sobre uma possível maldição. Até aquele momento, o segredo ainda estava protegido. Mas isso mudou depois da morte de Lorde Hoostun, o único filho do conde de Hoostun...

Ela não sabia nada sobre o menino, talvez porque nunca tivesse

saído da residência onde vivera desde que nascera. O único que conhecia era o conde viúvo. O velho a observava com atrevimento quando coincidiram em algum

evento

e

tentava,

por

meio

de

conhecidos,

iniciar

conversas. Logicamente, ela recusou essas abordagens, mas a fixação do viúvo por Anne tornou-se cada vez mais exaustiva.

Na noite em que o velho conde apareceu em sua casa para pedir um compromisso entre ela e seu filho, Anne gritou aos céus. Repetiu para seus pais até que estivessem cansados de que deveriam se lembrar da maldição à qual ela foi submetida e que se eles aceitassem a proposta matariam outra pessoa. Randall refutou todas as suas alegações lembrando-a de que a morte de Hendall aconteceu por ele mesmo ser um tolo e não devia se tornar egoísta porque suas irmãs sofreriam um futuro incerto por causa dela. Anne implorou a sua mãe, a única que ainda pensava sobre a existência dessa maldição, mas ela não a ouviu. Talvez porque, depois de confessar que perdera a virtude com Dick, achasse que era a última chance que a vida lhe ofereceria para encontrar um marido que não a rejeitasse por não ir inocente para o casamento. Como o viúvo esclareceu, nem ele nem seu filho se importavam com o que Anne fizera no passado, mas com o que lhe ofereceria no futuro próximo: a descendência de que tanto precisavam para que o título não voltasse à coroa. Apesar de seus gritos e pedidos, Randall concordou com o compromisso. Dois dias depois que os jornais anunciaram que estavam

noivos, o jovem Hoostun, a quem ela ainda não havia encontrado pessoalmente, morreu. Nesta ocasião, foi o próprio Dr. Flatman que a visitou para falar sobre o que aconteceu. Por mais que ele insistisse que fora algo fortuito, porque ninguém previu que a arma dispararia durante a limpeza, Anne se sentiu tão culpada que mergulhou em uma terrível depressão. Embora não tenha saído de casa por meses, rumores sobre a aura maligna que a cercava chegaram aos seus ouvidos. Eles a nomearam de tantas maneiras diferentes que não podia contar com os dedos das mãos. Até mesmo uma cartunista, que trabalhava para um jornal semanal, fez uma caricatura explicando que, se quisessem fazer com que um libertino que estivesse atrás de uma dama honesta desaparecesse, a melhor maneira de se livrar dele seria promete-lo a filha mais velha do Dr. Moore. Logicamente, os convites para eventos sociais desapareceram. A mesa de seu pai estava vazia e isso causou uma controvérsia familiar muito perigosa. Por um lado, Mary ainda não queria um marido, Josephine aperfeiçoava a habilidade militar com a qual nascera e Madeleine manteria sua excessiva timidez em segurança. Por outro lado, Elizabeth não queria adotar essa posição. Cada vez que o tema aparecia nas poucas reuniões de família em que participava, a repreendia que, por culpa dela, nunca alcançaria seu sonho: casar com um aristocrata. Anne, desesperada, decidiu se afastar, inclusive, da própria família. Se trancou em uma sala e passou muitas horas praticando aquilo que a fazia feliz quando

criança: a pintura.

Lentamente, se levantou do banquinho, alisou o vestido e caminhou até a porta. Antes de sair, olhou para Mary, que, como de costume, já estava na cama e lendo um novo livro sobre medicina.

—Não faça essa cara -- comentou ao descobri-la olhando para ela sem piscar. -- Certamente apreciará a bela cerimônia.

—Se tem tanta certeza, por que não vai? -- Ela a repreendeu com um pouco de raiva.

—Porque tenho um compromisso que não posso adiar --

comentou, levantando o livro que ela tinha em suas mãos. -- E parece mais apropriado me informar de como enfrentaremos doenças futuras do que evitar os olhares de desaprovação dos cavalheiros que irão a essa bendita festa. --

Além disso, não estou tão desesperada quanto Elizabeth. Não estou procurando por um homem para arruinar a minha vida.

—De

acordo

com

Madeleine,

acabará

casada

--

comentou Anne, mordaz.

—As visões de nossa irmã mais nova não me causam nenhuma preocupação. Só as aceitei para que você não saísse de Londres depois da morte do seu segundo pretendente. Embora eu já tenha ouvido que continua com essa ideia e que o papai vai se encontrar hoje à noite com a pessoa que irá levá-la para a sua amada Paris -- explicou ela enquanto se sentava na

cama.

—Não

posso

ficar

mais

aqui,

a

machucarei

--

disse Anne tristemente.

—Não penso o mesmo. Estamos todos muito felizes, exceto você.

—Não está ciente da atitude que nossa irmã tomou? Não vê o que eu vejo? Enquanto continuar assim, terminará mal e nunca encontrará um marido.

-- O que Elizabeth faz com a vida dela é problema dela, não meu. Ela deve estar ciente de que é burguesa e que não realizará o sonho de se comprometer com um aristocrata. O que acho insuportável é que se culpe por isso. Se ela usasse alguma outra coisa em seu cérebro, em vez de se olhar tanto no espelho, perceberia que tem um dom tão precioso que qualquer homem, seja ou não um aristocrata, cairia a seus pés. Mas, felizmente para ela do que para você, é mais fácil culpar os outros pela imprudência que ela faz diariamente.

—E a maldição? -- Anne perguntou, se aproximando da cama da irmã.

—Isso é estupida! Pelo amor de Deus, realmente acredita nela?

—Depois das mortes de...

—Eles eram ineptos! Hendall era tolo por andar bêbado em um garanhão, o pobre Hoostun não tinha cérebro e seu pai acreditava que,

casando-o com uma mulher saudável, ele resolveria o problema. Além disso, você mesma testemunhou a impaciência do conde. Qualquer homem honesto teria gritado aos céus quando nossa mãe confessou que não guardou sua virtude e o que ele disse?

—Que ele não se importava com o que fizera no passado, que a única coisa que lhe interessava era que seu filho tivesse filhos logo --

comentou Anne, corando com a frieza com que sua irmã expunha o fato de que ela entregara o tesouro de sua virgindade para Dick.

—Exatamente! —Disse Mary, ajoelhada na cama. -- Aquele homem só queria netos saudáveis para mostrar seu título nobre, mas ele se esqueceu da insanidade de seus próprios filhos. Talvez se ele a tivesse reclamado como sua esposa, teria tido uma chance.

—Ou ele teria morrido -- disse Anne um pouco com raiva.

—Bem, certamente seu coração não teria suportado uma noite ao seu lado. Se o sangue cigano, que nossa mãe diz que a enlouqueceu a ponto de não ter consciência do que fez com Dick, ainda está em suas veias, o velho teria morrido só de vê-la nua. —E depois dessa declaração, ela soltou uma risada.

—E você? Não tem sangue cigano? Porque sua mãe é a mesma que a minha -- ela recriminou.

—Como já ouvi, o sangue cigano nos incita a viver paixões e

desejos para com os homens e eu, por enquanto, não quero deitar nos braços de ninguém. Então, felizmente para mim, eu não deveria ter uma única gota. É mais provável que o Moore predomine, então só preciso encher minha mente com sabedoria e não ter sonhos absurdos. A castidade, minha querida irmã, deve ser o segredo de eu ser mais inteligente que você —disse ela com orgulho.

—Espero que encontre o homem que Madeleine viu e se torne mais luxuriosa do que eu fui! —Anne gritou enquanto caminhava em direção à saída.

—Outra maldição? —Rosnou Mary com sarcasmo.

—Se isso a fizer uma mulher menos instruída, sim, é outra maldição —declarou antes de fechar a porta.

Não suportava à frivolidade que Mary expressava quando falava sobre o problema que tinham com Elizabeth, ou como podia zombar dela por se entregar ao homem que amava, ou como ria daquela maldição. Ela era culpada por tudo o que aconteceu! Só ela! Mas logo o problema seria resolvido... naquela mesma noite, o pai conversaria com o homem que a levaria para longe de Londres e da sua família. Uma vez que a filha amaldiçoada deixasse de existir para a sociedade, suas irmãs recuperariam o que haviam perdido por sua causa e finalmente encontrariam a paz.

Quando apareceu no topo da escada, notou que Elizabeth estava

esperando por ela na entrada ao lado de seus pais. Sua irmã havia escolhido um vestido azul claro para a ocasião e, como sempre, sua escolha foi muito sábia. O tom do tecido não apenas destacava a cor dos seus olhos, mas também enfatizava dourado do cabelo. Anne sentia pena dela. Ela era linda demais para adotar esse comportamento tão inadequado. Se ela se tornasse uma mulher respeitável e deixasse seu dom ser conhecido, como Mary explicou, os homens cairiam loucamente a seus pés.

—Finalmente! —Exclamou ao vê-la. -- Por que escolheu esse vestido horrível? Não percebe que essa cor não a favorece? Se usar algumas joias de estanho, vai parecer uma verdadeira cigana e estarão lhe pedindo o tempo todo para que leia o futuro —disse antes de soltar uma risada.

—Elizabeth... —advertiu sua mãe. -- Deveria estar agradecida por sua irmã ter decidido acompanhá-la até a cerimônia, em vez de zombar dela.

—Anne, agradeço por me acompanhar, —Eli resmungou. —Mas preferiria a Mary.

—Elizabeth! —Seu pai gritou. -- Como pode ser tão pérfida?

—Não sou pérfida, pai -- ela disse, suavizando o tom. -- Sou realista e a única coisa real que vejo neste acompanhamento, é que ninguém se aproximará de mim porque estarei sob a proteção de uma amaldiçoada que também usa um vestido horrível.

—Elizabeth Moore! Está de castigo! -- Gritou Sophia, com raiva.

—Não vai me deixar ir? O que minha amiga pensará quando não me ver? Que boato os convidados vão espalhar quando não houver representação dos Moore no evento mais importante do ano? —Ela perguntou com rancor.

—Não se preocupe, mãe. Cuidarei dela —Anne apaziguou.

—Se observar algo inapropriado, se o comportamento de Elizabeth se tornar insuportável, não hesite em arrastá-la até aqui --

pediu Sophia, apertando os olhos. —Então me ocuparei para que mude sua atitude quando ela passar pela porta.

—Lembre-se, mãe, que o sangue cigano corre pelas minhas veias e, como a senhora fez na época, eu também procuro por um homem que me faça feliz —expos Elizabeth enquanto Shira a ajudava vestir o casaco.

—Meu sangue cigano me avisa que sofrerá por um longo tempo

—Sophia murmurou. —Enquanto a tristeza cobrira esse coração sombrio, não encontrará a luz.

—Por favor... —Anne interveio. —Não é hora de começar outra discussão. Certamente nada acontecerá e Elizabeth se comportará corretamente.

—Espero que sim —Randall sussurrou antes de pegar a mão de sua esposa e beijá-la para tranquilizá-la.

Depois que saíram de casa, Elizabeth subiu primeiro na carruagem, sentou-se no banco e olhou para Anne com os olhos apertados.

—Espero que não me envergonhe novamente.

—Eu? —Anne perguntou atordoada. —Se alguma coisa a envergonha, é o seu comportamento. Parece uma prostituta.

—Se não tivesse enterrado dois pretendentes, não teria que mostrar o decote para encontrar um marido.

—Madeleine disse que iria encontrá-lo —Anne lembrou.

—Sim, ela também disse que apareceria no caminho entre a nossa casa e a do Bohanm, e você viu um cavaleiro rondando aquela área?

—Deveria ter paciência e....

—Não tenho tempo! —Ela exclamou em voz alta. —Não percebe que estou prestes a completar vinte e dois? Estou muito velha!

—Mas...

—Não há mais, Anne. Os dias passam cada vez mais rápido, minha beleza desaparecerá, e se não encontrar um marido antes do final do ano, me tornarei uma solteirona amarga como você —ela disse antes de virar o rosto para a janela da carruagem finalizando a conversa.

Anne a observou em silêncio. Ela estava tão desesperada para alcançar seu propósito que, como Mary dissera, qualquer coisa poderia acontecer com ela, da qual se arrependeria pelo resto de sua vida. Mas,

felizmente, ela permaneceria ao seu lado naquela noite para não cometer nenhum disparate e, quando voltassem para casa, seus pais cuidariam dela. Só esperava que o capitão do navio aceitasse a proposta de seu pai e que partissem o mais rápido possível...

Depois

de

suspirar

profundamente,

colocou

as

mãos

involuntariamente no peito. Não entendia por que estava tão inquieta ultimamente. Talvez fosse devido à angústia que sentia por Elizabeth ou à ansiedade de descobrir de uma vez quando iria embora. Independentemente da razão disso, o latejar aumentou durante a viagem e seu sangue cigano, que congelara após a morte de Dick, recuperou a vida, como se indicasse que seu destino mudaria para sempre naquele dia....


I


Como já temia, a cerimônia nupcial não apenas consistia em acompanhar o futuro casal na igreja, mas depois tiveram que assistir à celebração que o Marquês de Riderland havia preparado em sua residência em Londres. Anne, cansada depois de muitas horas sem poder se sentar, decidiu se esconder e se apoiar atrás de um dos pilares que cercavam a sala. Aquele lugar isolado permitiria que ela continuasse observando sua irmã enquanto apaziguava a dor insuportável em seus pés. Incapaz de piscar, para não perder um único movimento de Elizabeth, notou que ela e sua amiga Natalie, agora Sra. Lawford, olhavam com desconfiança para o local da sala destinado para jovens solteiros. Anne silenciosamente amaldiçoou ao descobrir quem eram os possíveis protagonistas da conversa. Como Elizabeth poderia agir dessa maneira? Ela não tinha nem um pouco de dignidade? Os dois rapazes aos quais observavam não eram apenas mais jovens do que ela, mas também eram os filhos de dois importantes aristocratas londrinos. Isso confirmava que o problema de sua irmã era maior do que pensava. Quando as duas amigas olharam para outro lado, Anne contemplou silenciosamente aqueles dois jovens. O primeiro, exceto pela cor dos olhos, era uma réplica idêntica ao duque de Rutland. Até se assemelhava à retidão de sua grande corpulência. Como suas clientes comentavam, a quem ela retratava diante de

uma bela paisagem e com vestidos que nunca compraria por sua exagerada extravagancia, o belo adolescente tornara-se um dos solteirões mais cobiçados da cidade. Sendo o primogênito do duque, e o único homem, herdaria um legado que muitas jovens casadoiras estavam ansiosas por conseguir, embora, felizmente para ele, ainda não estivesse interessado em encontrar uma esposa com quem compartilhar essa herança, mas em terminar os estudos que acabara de começar. O segundo menino que Elizabeth observou por um momento foi Eric Cooper, o filho do barão de Sheiton. Um jovem alto, com olhos de safira e uma cor de cabelo incomum, já que naquele cabelo avermelhado, umas mechas loiras brilhavam como ouro. Outro candidato a marido, pelo qual não apenas as jovens suspiravam, mas também as mães delas. Porque, se o filho do duque tinha uma aura de respeito, seriedade e honestidade que intimidava qualquer um que se aproximasse dele, lorde Cooper assustava ainda mais com seu comportamento nobre. Ninguém se atrevia a espalhar um boato falso sobre ele. Sua honestidade excedia em muito a do homem mais honesto do mundo e, de acordo com as declarações das jovens que se fascinavam por serem retratadas, o futuro barão de Sheiton recusou, sem rodeios, mostrar uma vida de devassidão. Que mulher em sã consciência não sonharia em ter um marido dedicado apenas para agradar a sua esposa? Esse comportamento incomum entre os aristocratas de Londres se confirmava em qualquer evento social. Um dos exemplos mais

significativos dessa atitude fria e distante poderia ser notado no momento das danças. Ele nunca levava uma mulher para dançar, exceto a esposa de seu pai, sua irmã Hope, a filha do marquês de Riderland ou as do duque de Rutland.

Devido a essa atitude distante, cada vez que o jovem caminhava ao lado de um grupo de jovens casadoiras, os suspiros se tornavam tão profundos quanto os gemidos de tristeza.

Depois de refletir sobre os dois jovens, ela decidiu deixar a área onde estava e ir para os lugares que eram destinados para as senhoras idosas, que se cansavam durante a noite, ou para aquelas jovens que esperavam um generoso cavalheiro que as levasse para dançar. Ela estava na primeira opção, embora não tivesse chegado aos vinte e cinco. Mas não conseguiria ficar de pé por nem mais um segundo. Enquanto caminhava pelo amplo corredor formado pelas colunas e a parede, observava os convidados. Todos bebiam, sorriam, dançavam e falavam sem prestar atenção à sua presença, como se ela não existisse. Isso, de certa forma, a agradava. Dessa forma, não teria que oferecer desculpas absurdas sobre o comportamento esquivo que mantinha ou ouvir de novo a triste história da morte de seus noivos. A sociedade, em vez de falar sobre a habilidade que adquirira com a pintura e o que era considerado entre as damas da alta sociedade por seus trabalhos, preferia se alegrar nos piores momentos de sua vida. Embora isso não importasse depois dessa noite. Quando a pessoa que seu pai visitaria concordasse em levá-la em

seu barco, ela partiria. Desta forma, esqueceria quem era e iria se concentrar em quem queria ser: Anne Moore, a pintora.

Fora Dick quem lhe contara sobre a viagem a Paris durante os encontros românticos que tiveram. Ela sempre dizia que estava cansada de morar em Londres porque, por mais que tentasse, não conseguia encontrar seu lugar em uma cidade tão esquiva e orgulhosa. Claro, nunca disse a ele que uma parte dela, seu lado cigano, insistia para que viajasse de um lugar para outro e descobrisse novos mundos como se fosse uma nômade. No final, ficou evidente que seu sangue cigano era maior que o Moore...

Após a morte do filho do conde, relembrou todas as histórias que Dick contara sobre a cidade e acabou obcecada com um ponto: a sociedade parisiense era muito diferente da inglesa. Ninguém perguntava sobre o passado das pessoas. A única coisa que os interessava era a pessoa que havia chegado e jamais perguntariam o que aconteceu para que saísse de sua cidade. Essa nova visão da vida seria fabulosa porque, uma vez que pisasse em Paris, esqueceria a tragédia que vivera em Londres e se apresentaria como uma jovem artista que procurava ter sucesso na arte da pintura.

?Uma jovem artista ... ?suspirou para si mesma.

Ela não era mais tão jovem, mas uma grande pintora nasceu dentro dela e tudo se devia à morte de seu segundo pretendente. Algo bom despontou desse passado horrível!

Durante a depressão que sofreu após o episódio, ela se concentrou em pintar e desenvolver sua técnica. A única coisa que a fazia sair de casa, era visitar uma livraria onde comprava livros que explicavam como evoluir no dom que possuía desde criança. No início, representava apenas paisagens sombrias e tenebrosas, no entanto, com o passar do tempo, começou a ver luz e beleza nelas. Sua mãe, como recompensa por essa nova perspectiva, colocou as telas que ela chamava de belas na entrada da casa, permitindo que todos que as visitassem pudessem admirá-las. Uma dessas visitas foi o casal Flatman. O parceiro de seu pai queria descobrir como estava após o segundo transe. Mas não falaram sobre a enfermidade mental que sofreu porque a esposa do médico concentrou todas as conversas em sua maravilhosa habilidade. Durante o jantar, a Sra. Flatman decidiu pedir-lhe para retratar suas filhas porque, segundo ela, ambas tinham uma beleza semelhante à das deusas gregas. Ela aceitou o trabalho rapidamente, esperando que essa alternativa fosse benéfica para ela. E assim foi. Antes de terminar o segundo retrato das filhas do médico, havia confirmado uma série de outros pedidos. Quase todas as senhoras, que podiam pagar seu preço, exigiam seus serviços. Embora só pintasse mulheres, porque os cavalheiros não se atreviam a olhar para ela, no caso de envenená-los com os olhos, gostava daquele novo rumo que a vida lhe dera. No entanto, com o passar do tempo começou a se cansar de ir de um lugar para outro com o cavalete, das

conversas que as jovens lhe ofereciam e de retratar mulheres bonitas que escondiam uma maldade parecida com a de sua bisavó Jovenka.

Essa era a segunda razão pela qual queria se afastar de sua família. Além de libertá-los da maldição, poderia se dar uma oportunidade.

Não queria se tornar uma testemunha silenciosa das projeções maravilhosas que as moças que ela retratava apresentavam, ela queria ser a protagonista dessas experiências. Já havia assumido que seu sangue materno era mais poderoso que o do pai, que dentro dela havia uma mulher apaixonada que queria amar e ser amada e que, a cada dia que passava trancada, seus anos de vida eram reduzidos. O que sua mãe disse? Que deveria casar com um cigano para que a maldição desaparecesse, mas em nenhum momento explicou que não poderia manter relações com os homens. Logicamente, devido à reputação de seu pai, não pretendia encontrar amantes em Londres, mas os encontraria em Paris. Talvez... até... sim, poderia até se tornar mãe. Anne fechou os olhos e suspirou. Se conseguisse ter um filho em seu ventre, se conseguisse gerá-lo, ela o amaria e cuidaria dele até o fim de seus dias. Nunca diria ao pai sobre a existência daquele filho, de modo que ele não insistisse em se casar e se tornasse a terceira vítima da maldição. Nunca pensou nisso enquanto mantinha relações amorosas com Dick. Talvez porque era muito jovem ou talvez porque ele prometera que, até que eles se casassem, não deixaria sua semente dentro dela. Independente do motivo, não

se imaginou com uma criança em seus braços até que decidiu deixar a cidade que odiava. Só Paris poderia oferecer-lhe o que sonhava e desejava!

Quando estava prestes a chegar na área da sala a qual se dirigia, escutou vozes masculinas muito próximas a ela. Por causa do tom que usavam, não pareciam estar tendo uma conversa cordial, muito pelo contrário. Embora devesse ser discreta, Anne olhou para aquelas duas figuras masculinas que afastadas dos convidados. Um, sem dúvida, era o marquês de Riderland. Mesmo que estivesse de costas, o cabelo loiro e a altura eram seus traços mais característicos. No entanto, os olhos castanhos de Anne se fixaram no cavalheiro desconhecido. Suas costas eram tão largas quanto às do Marquês e diferiam pouco em altura. Suas pernas longas e torneadas estavam perfeitamente moldadas pelas calças. Eles pareciam duas figuras exatas, no entanto, o estranho usava um longo cabelo escuro preso em uma fita preta, de acordo com o tom do terno que usava. Anne, percebendo que ele começava a mover seu lindo corpo virando para o lado dela, começou a andar em direção às cadeiras, tirando rapidamente os olhos daquele lugar. Se repreendia Elizabeth por seu comportamento descarado, não poderia fazer exatamente o que estava recriminando. Mas a curiosidade em descobrir quem irritou o marquês em um dia tão importante para a família, fez com que ela lentamente virasse o rosto para eles. No momento em que viu as feições do estranho, estendeu a mão para o encosto da cadeira mais próxima e se

agarrou a ela com força. Eles eram da família, disso não havia dúvidas. Somente os Riderland poderiam ter aquela cor de olhos tão especial e rara. Como Elizabeth dissera, era uma característica muito típica dos Bennett. Mas Anne não fixou apenas os olhos no homem, mas continuou a observá-lo com ousadia. Sua mandíbula, forte e máscula, ostentava uma barba bastante espessa e comprida. Parecia que ele havia demitido seu valete anos atrás. Lentamente, e sem conseguir parar de olhá-lo, contemplou seu nariz aquilino, as rugas em sua testa e aquela forma de coração que mostravam seus lábios vermelhos como o carmim. Atordoada por esse comportamento tão atrevido, se colocou na frente da cadeira que estava segurando e se sentou. No entanto, seus olhos pareciam não ter percebido aquele constrangimento que percorria seu corpo e permaneceram presos no estranho, reunindo todos os detalhes daquele corpo tão másculo e magnético. Conseguiu rapidamente a resposta a uma das perguntas que se fez mentalmente; ele era um legítimo Bennett, apesar de ser moreno. Talvez fosse um sobrinho, um primo ou um tio jovem do marquês. Mas sem dúvida, um Bennett.

Estava tão encantada com ele, tão atraída por aquele corpo musculoso e sensual, que não percebeu que o observara por tanto tempo que acabaram cruzando seus olhares. No momento em que aquele estranho ergueu a sobrancelha direita, perguntando em silêncio para o que estava

olhando, Anne, ainda mais envergonhada, abaixou a cabeça. No entanto, percebeu que ele não tirara os olhos dela. Sentia como a olhava, como contemplava cada centímetro dela, e naquele exato momento queria que uma cortina de fumaça, como a usada pelos ilusionistas que atuavam no teatro, a cercassem para que pudesse escapar. Mas aquela névoa espessa não apareceu e

continuou

percebendo

o

escrutínio

daquele

homem

sobre

ela. Mereceu. Causara aquele constrangimento por ser tola. Como se atrevera a olhar para um homem assim? Não estava zangada porque Elizabeth fizera o mesmo com os dois jovens aristocratas? Bem, agora... quem ficaria chateado por sua atitude inadequada? Ela. Ela mesma ficou irritada com sua indiscrição e com a repercussão que sua atitude inconveniente havia causado.

Ela colocou as mãos no vestido, eliminou as poucas rugas que havia e respirou fundo para se acalmar. Como era a única culpada dessa indecência era, colocaria um fim nela. Muito lentamente, foi se levantando, precisava voltar para o lugar onde passara às últimas duas horas. Ninguém iria vê-la ali e esse homem pararia de olhá-la. Mas quando ergueu o rosto, quando seus olhos se dirigiram de maneira involuntária para o lugar em que ele estava, descobriu aterrorizada que continuava a observá-la. Suas pernas começaram a tremer, suas mãos estavam tão suadas que podia ver as manchas de suor em suas luvas e seu coração, que tinha parado de bater quando Dick morreu, começara a palpitar com tanta força que a obrigou a se balançar ao

ritmo dessas batidas. O que diabos estava acontecendo com ela? Por que estava tão paralisada? E.... por que sua temperatura subira? Desesperada, porque não havia palavra melhor para defini-la, virou-se, desviou os olhos daquele estranho e, ao dar o primeiro passo, esbarrou com uma mulher que conhecia há mais de vinte anos.

—Senhorita Moore, está bem?

—Milady —disse Anne, fazendo uma leve reverência. —Sim, muito bem, obrigada.

—Já vai? —A baronesa perguntou.

—Não, acabei de chegar. Estava prestes a sentar -- mentiu.

Estendeu a mão para a idosa e ajudou-a a ficar em pé na frente da cadeira ao lado da que ela havia permanecido.

—Então me acompanhe, se não tiver nada melhor para fazer --

pediu à filha mais velha de seu bom amigo Randall.

—Será uma honra —Anne respondeu, se acomodando novamente.

—Está aqui há muito tempo? Não a vi antes.

—Desde o início da tarde, milady. Como sabe, Elizabeth é a melhor amiga da atual esposa do Sr. Lawford e não poderíamos perder um dia tão especial —explicou lentamente.

—Então o fato de não ter ouvido falar a seu respeito até agora é

porque passou esse tempo cuidando da integridade de sua irmã em vez de aproveitar a festa, estou errada? —Vianey perguntou com grande confiança.

—É muito astuta, baronesa —disse Anne, esboçando um leve sorriso.

—Bem, tenho que informá-la que não serve como dama de companhia -- ela disse de forma repreensiva. —Caso não tenha notado, Elizabeth decidiu dançar com Lorde Lorre e posso assegurar-lhe que esta companhia não é muito apropriada.

Anne, diante do comentário da baronesa, olhou para a pista de dança e confirmou suas palavras. Elizabeth dançava e sorria para seu acompanhante. Como aceitou dançar com ele sem pedir permissão? Estava tão desesperada para ignorar os protocolos sociais? E o que ela fez para impedir isso?

—É só uma dança...—Anne murmurou para a baronesa. —Tenho certeza de que quando eles terminarem, ela virá até mim e tudo será resolvido.

—Sua irmã, querida, não deixará nada resolvido. Não sei se seus pais são conscientes da atitude inadequada que a terceira de suas filhas tem adotado, mas o resto da sociedade sim -- disse ela severamente. -- Seria uma lástima se, após o tempo que o seu pai levou para se posicionar onde está, a má reputação de uma de suas filhas o destrua.

—Milady, com todo o respeito, devo dizer que está dramatizando uma atitude afável. Minha irmã não adota uma...

—Como definiria o comportamento de uma jovem que, desesperadamente, tenta se casar com um aristocrata, Anne?

O fato de que aquela mulher a chamava pelo primeiro nome a deixou aturdida. Era verdade que seus pais e a baronesa de Swatton tinham um relacionamento muito íntimo depois que seu pai salvara seu amante, o administrador Arthur Lawford, de uma terrível doença. Mas nunca se dirigiu a ela com tanta familiaridade. Isso só poderia indicar que estava muito preocupada com a fama que Elizabeth poderia adquirir e o drama que acarretaria à sua família.

—Irá passar... -- Anne admitiu depois de respirar fundo.

—Acredita mesmo que depois que sair da cidade a sua irmã irá mudar? —Ela retrucou, olhando-a sem piscar.

—Como sabe...? —Tentou dizer.

—Sua mãe e eu, como bem sabe, somos muito boas amigas e me contou que decidiu ir para Paris pelo bem de suas irmãs —confessou.

—Não só por isso, milady, mas também pelo desejo de evoluir como artista. Não posso passar o resto da minha vida retratando damas, isso vai me destruir de novo e, como bem sabe, depois do que aconteceu no passado, só fui capaz de sair daquele estado horrendo através da pintura.

—Então... nenhum cavalheiro tentou se tornar seu terceiro pretendente, certo? ?Vianey estava interessada.

—Não. Nenhum e também não quero que o façam. Cheguei à conclusão de que quero ficar sozinha. Não quero um homem ao meu lado que esteja continuamente verificando o que farei durante o dia. Preciso de liberdade para fazer o que me agrada -- disse ela com as mesmas palavras que Mary usou quando sua mãe insistiu, três semanas atrás, que levantasse os olhos dos livros e os colocasse em algum homem.

—Entendo... -- a baronesa murmurou, desviando o olhar de Anne e o prendendo no outro extremo da sala. Para sua surpresa, descobriu que o irmão do marquês, o visconde de Devon, continuava observando o lugar onde estavam. Muito a contragosto, tinha certeza de que aquele belo cavalheiro não a contemplava, mas sim a sua companheira. Rapidamente voltou seus olhos para a filha mais velha de Randall e fez uma expressão de aborrecimento com a cor daquele vestido. —Paris não me agrada. Lá os cônjuges são infiéis.

—Os desta cidade não? —Anne perguntou, levantando as sobrancelhas castanhas.

—Os daqui também, mas menos do que os dessa cidade --

continuou em seu discurso. ?Além disso, nem tudo está perdido. Talvez apareça um cavalheiro que não tenha medo de enfrentar a morte e queira

descobrir o que está escondendo sob este horrível vestido laranja. Sua mãe não a proibiu quando a viu? Porque se fosse minha filha, teria feito isso em pedaços.

—Minha mãe, como bem sabe, respeita as decisões de suas filhas. Por essa razão, me permitiu usar este lindo vestido de seda laranja e me apoia na decisão de partir para Paris —disse sarcasticamente.

—Bem, sendo esse o caso, devo avisá-la para se concentrar, durante o tempo que permanecer aqui, na atitude de sua irmã, não acho que minha querida Sophia deseje ouvir conversas sobre a posição que sua terceira filha ocupará se desejar manter um relacionamento com o senhor Lorre.

—A qual posição está se referindo? —Ela perguntou, se virando para a baronesa.

—Não ouviu os últimos rumores sociais, certo?

—Como deve compreender, não estou disposta a prestar atenção a diálogos absurdos sobre o que a aristocracia faz ou não —disse seriamente.

—Nesse caso, farei um resumo. Aparentemente, os barões de Pherguin, os pais de Lorde Lorre, fizeram tudo ao seu alcance para trazê-lo de volta da Espanha. O muito ingrato dilapidou mais de dois terços da herança familiar e foram obrigados a concordar com um futuro casamento com a filha do casal Bakalyan, os donos da segunda mais poderosa empresa de ferro. Assim que o acordo se tornar público, o único lugar que o ilustre

Lorde Lorre poderá oferecer é o de uma amante. Sua linda irmã quer se tornar amante de tal homem? Sophia também respeitará essa alternativa para sua filha? —Disse de má vontade.

—Tenho certeza de que Elizabeth não sabe do que aconteceu, milady. Caso contrário, ela teria se recusado a conceder aquela dança —murmurou enquanto observava o casal sorridente. —Mas não se preocupe, assim que a peça terminar, falaremos sobre isso e verá como tudo foi um grande engano.

—Espero que a coloque em seu lugar —disse a baronesa, levantando-se depois de descobrir que Arthur estava indo em sua direção. --

Seria horrível que tal comportamento selvagem que resolveu ter, a levasse a se perder. Testemunhei catástrofes irreparáveis sobre a honra de uma mulher.

—Como eu disse, tenho certeza que foi um engano —disse Anne, se levantando também.

—Bem, confio em seu bom senso, Anne. Não gostaria de testemunhar a terrível humilhação que seus queridos pais suportariam —ela insistiu.

—Não seria a primeira vez... —murmurou para si mesmo, mas a baronesa ouviu.

—Que seus noivos tenham morrido não é tão importante quanto ver arruinada a honra de sua irmã. E agora, se me der licença, tenho que me

encontrar com Arthur. Estará cansado e quererá ir embora.

—Boa noite, milady —disse Anne, com uma leve reverência.

—Boa noite, Anne e lembre-se de uma coisa, a esperança é a última coisa que se perde.

—Se está se referindo a Elizabeth, não se preocupe, tenho certeza que tudo terminará em breve.

—Não me refiro a essa harpia disfarçada de menina, mas a você. Não perca a esperança de viver aqui o que sonhou, porque prevejo que sua vida mudará muito mais cedo do que imagina —disse ela antes de caminhar lentamente para o local onde o administrador a estava esperando.

Enquanto tentava se acalmar, observou a baronesa caminhando em direção ao amante sem se importar com a fofoca dos outros. Era ilógico que uma mulher como ela, que mantinha um caso com o tio do marido de Natalie há cinco décadas, notasse o comportamento infantil de Elizabeth. Mas isso só fortaleceu o que já havia concluído: que a aristocracia estaria sempre acima do resto do mundo. Incapaz de aplacar a raiva que sentia, Anne franziu o cenho e silenciosamente amaldiçoou que seus pais não tivessem escolhido Mary para ocupar seu lugar. Certamente, depois de ouvir as palavras da baronesa, ela teria se levantado, ido até os dois e, depois de esbofetear aquele rosto masculino bem-cuidado, teria agarrado Elizabeth pelo braço para arrastá-la para fora da residência do marquês. No entanto, ela, estava

paralisada olhando para as expressões coquetes de Elizabeth e rezando para que as cordas de todos os violinos arrebentassem e o baile acabasse de fato.

«Mais alguns minutos...", pensou enquanto começava a caminhar para aquela área onde queria se esconder até que a música terminasse. Se já era penitência suficiente suportar que todos a evitassem e sua irmã não se comportasse adequadamente, não queria acrescentar, a essa lista, que os convidados percebessem que ela estava zangada, muito zangada. Certamente sairiam correndo gritando que a bruxa queria matar outra pessoa. Mas quando ia se colocar atrás daquela grande coluna que a protegeria até que pudesse pegar sua irmã e fazê-la voltar para casa, tornou a sentir uns olhos fixos nela. Com medo, porque estava ciente de quem era a única pessoa que teria a coragem de fazê-lo, levantou o queixo lentamente e teve a confirmação. Lá estava ele, aquele estranho de olhos azuis, a observando. Sem tirar os olhos dela, levou o copo que tinha na mão até a boca, bebeu devagar e, depois de tomar aquele gole, lambeu lentamente os lábios. Aquele ato tão descarado causou um ardor tão imenso em Anne que ela quase se ajoelhou. Seu coração batia descontroladamente de novo, suas mãos suavam novamente e uma dor estranha apareceu em seu abdômen. O que diabos estava errado com ela? Seu sangue cigano tinha ressurgido das cinzas ao vê-lo? O que havia de especial naquele homem? Por que estava tão alterada? Anne respirou fundo e, embora suas pernas não respondessem como desejava, se escondeu atrás do pilar, mas

a saia de seu vestido laranja, uma cor bonita, mas não muito discreta, derramava de ambos os lados como se vestisse aquele pilar de mármore. «Se existe, me ajude a sair daqui», ela pediu fechando os olhos.

—Mais uma vez se escondendo? —Elizabeth perguntou.

—Elizabeth! —Exclamou surpresa.

—O que? —Ela retrucou, olhando-a com espanto. —O que aconteceu? Alguém riu do seu vestido horrível? —Ela zombou.

—Temos que ir. Temos que sair daqui... agora! —E, como havia pensado, agarrou o braço dela e arrastou-a para o corredor.

—Tenho que me despedir de Natalie! -- Ela disse uma e outra vez.

—Amanhã envie uma missiva para ela, se desculpe dizendo que não queria que ela perdesse mais tempo e que partiu porque já era muito tarde

—ela indicou sem olhar para ela.

Seu casaco. Tudo o que ela precisava para sair de lá era o casaco. Mas se o mordomo demorasse muito para oferecê-lo, sairia sem ele.

E enviaria Shira para buscá-lo no dia seguinte.

—Mas Anne! —Insistia Elizabeth. —Não. Não está correto agir...!

—Está depois do que fez! Sabe o que a Baronesa de Swatton sugeriu para mim enquanto dançava com Lorde Lorre?

—Vindo dela, qualquer coisa —disse Eli divertida.

—Que os homens não te veem como uma futura esposa, mas como amante —disse ela sem hesitar.

—E é isso que uma mulher que esteve em um relacionamento secreto por décadas com um administrador de fama suspeita disse? --

Trovejou Elizabeth, ofendida.

—Se ela pensa assim, o resto do mundo também. Ela só quer nos informar o que acontecerá se não reagir em breve.

Quando ela se virou para pegar o casaco que um mordomo finalmente oferecia, seu corpo endureceu como uma tábua. Ele a seguiu. Aquele homem a estava seguindo. Por que ele fez isso? Que interesse tinha em relação a ela?

—Ouça uma coisa, Anne Moore —disse Eli, apontando o dedo para ela. —Nem pense em contar aos nossos pais tanta tolice. Não procuro ser amante de ninguém, mas a esposa de alguém. Talvez tenha desistido quando seus dois pretendentes morreram, talvez a tolice daquela maldição de nossa bisavó a tenha assustado, mas não a mim. Não quero me tornar uma solteirona e pretendo me aproveitar do físico que tenho para encontrar um homem para casar.

—O físico não é importante... —Anne murmurou assombrada.

—Para se tornar a esposa de um aristocrata, sim —disse ela antes

de se virar e sair da residência com o queixo tão alto quanto uma duquesa.

Anne, antes de dar um passo à frente e correr atrás de Elizabeth, virou-se para o lugar onde ela tinha visto o homem e descobriu que ele ainda estava lá, encostado na parede, naquele impecável terno preto, mostrando uma aura de mistério e olhando para ela sem piscar. Atordoada, pela forma tão ousada de observá-la, se virou e correu em direção à saída. Uma vez que entrou na carruagem e está partiu, seus olhos perfuraram involuntariamente a entrada da residência do Marquês e, quando observou a figura encostada no batente da porta, seu sangue cigano começou a ferver queimando a pele.

II


Quando Randall chegou à sua casa, depois de falar com o visconde de Devon, foi diretamente para o corredor norte, onde ele e sua esposa costumavam tomar o café da manhã com tranquilidade antes de suas filhas acordarem. Ao entrar, Sophia, como eles combinaram antes de ele partir, estava esperando sentada em frente ao calor da lareira. Ela havia soltado os cabelos e aquela esteira de fios negros e lisos chegava à cintura. Lentamente Randall foi em sua direção, colocou-se atrás dela e lhe deu um beijo carinhoso na cabeça.

—Ele se recusou a levá-la, certo? —Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

—Sim, recusou, apesar de ter lhe dado o envelope --

respondeu. Se virou gentilmente e sentou-se ao lado de sua esposa. —Nem o olhou... —ele acrescentou depois de respirar. —Não posso culpá-lo, Sophia. Porque o culpado de tudo sou eu... —continuou aflito.

—Não tem nada a ver com esse rechaço. As coisas acontecem por uma razão e estava previsto que ele não aceitaria essa proposta, mesmo que tenha lhe oferecido um milhão de libras —assegurou.

—Não sei se estava ou não —disse ele, descansando a cabeça no ombro dela. —A questão é que ele se recusou completamente depois de falar

sobre a maldição de nossa filha.

—E, porque contou a ele sobre isso? —Sophia retrucou, pulando para cima. Ela olhou para ele e, vendo a tristeza naquele rosto que ela amava, relaxou.

—Não sei... —Randall disse esfregando o rosto em desespero. --

As palavras saíram da minha boca sem que pudesse controlá-las e quando eu quis parar, já era tarde demais.

—O que disse... exatamente? -- Ela exigiu saber enquanto se colocava na frente dele. Se ajoelhou, colocou as mãos nos joelhos de Randall e olhou para ele com muito carinho.

—Quando ele se recusou a navegar com uma mulher em seu navio, pensei que, explicando o seu passado, mudaria de ideia.

—E? —Sophia insistiu.

—Eu confessei sua verdadeira origem, o que sua avó fez, o sonho que teve no nascimento de Anne e a morte de seus pretendentes —disse ele sem olhar para ela.

—E? —Ela continuou insistindo.

—E, claro, ele se recusou ainda mais. Que capitão de navio levaria uma mulher amaldiçoada entre sua tripulação?

—Essa foi a razão pela qual ele rejeitou? Essas mesmas palavras saíram da sua boca? —Ela insistiu novamente.

—Não. O visconde não se referiu à maldição, mas à ideia maluca de tirar nossa filha de nós.

—O que aconteceu quando contou sobre a morte dos pretendentes de nossa filha?

—Pensei que me chutaria para fora de sua casa —ele disse com pesar. —Primeiro ele ficou pálido, como se não acreditasse em minhas palavras, então, quando expliquei que nenhum homem se aproximava dela e que ele pode confirmar isso na festa, me culpou pela infelicidade de nossa filha. Segundo o visconde, foram nossas escolhas equivocadas que provocaram essa catástrofe.

—Nós não temos nada a ver com a aceitação de Anne para o Sr.

Hendall. Ela mesma decidiu o que queria com seus atos inapropriados --

Sophia o lembrou.

—Verdade, e se aquele canalha não tivesse confessado que Anne perdera sua virtude com ele, não o teria aceitado. Mas também testemunhou como ele usou a honestidade de nossa filha para alcançar seu propósito.

—E o destino puniu seu trabalho maligno com a morte —disse Sophia, levantando-se. Ela se virou devagar e sentou-se ao lado do marido.

—Sorte dela... —ele meditou em voz alta. —Ainda estou me perguntando como Anne não foi capaz de descobrir quem esse homem realmente era e o que ele pretendia com esse casamento —disse Randall,

colocando as mãos nos joelhos, como se para apaziguar a frieza que sentia após a retirada de sua esposa. —A cidade inteira conhecia a má reputação de Hendall e, apesar disso, Anne deixou-se seduzir sem se importar com o motivo pelo qual se aproximava.

—Uma mulher apaixonada é incapaz de ver além dos olhos de seu amado. Mesmo que ela ouvisse rumores sobre os casos de amor de Hendall e as pretensões que tinha de se casar, ela negaria cegamente --

assinalou Sophia, colocando as mãos na de seu marido. -- Acredita, realmente, que nossa filha poderia admitir que seu noivo deixou um clube em estado semelhante de embriaguez e depois de ter relações sexuais com prostitutas? Ou que a razão pela qual ele queria se casar com ela era conseguir o prestígio que seu bom nome ofereceria à sua companhia?

—Não.

—Bem, tem a resposta, Randall. Nenhuma mulher seria capaz de sobreviver a tal humilhação. Nem mesmo seu dom para pintar a teria libertado daquela amargura.

—E o filho do conde? Alguém achou que ele estava tão perturbado que se mataria com sua própria arma? —Perguntou o médico, virando-se para Sophia.

—Nós dois sabíamos que o jovem não estava bem quando não conseguiu se aproximar para pedir a mão da nossa filha. Além disso,

recriminou o velho conde pela decisão de escolher Anne porque era uma mulher saudável e poderia usá-la como parideira... —ela refletiu acariciando as palmas das mãos do marido com os dedos.

—Não sei o que fazer ou o que pensar. A única opção que ponderei até agora desapareceu quando o visconde se recusou a levá-la em seu navio. Talvez Anne devesse assumir que seu destino é ficar aqui conosco e deixar passar o tempo até que todos esqueçam o que aconteceu. O único inconveniente que vejo nisso é que ela não vai aceitar facilmente. Viu sua insistência em partir, em se tornar uma mulher diferente e, infelizmente, a depressão que passou voltará quando lhe explicar o que aconteceu -- Randall disse com pesar.

—Tem toda a razão. Anne não vai ficar de pé com os braços cruzados quando souber que o visconde se recusou a levá-la embora e irá procurar outro jeito de conseguir. Além disso, não faz isso apenas por ela, mas também por suas irmãs. Não percebeu como está triste depois da mudança de atitude de Elizabeth? Ela se sente culpada pelo desespero de sua irmã e acha que Eli será a jovem que era quando ela for embora —explicou, voltando o olhar para o fogo.

—A única coisa que eu entendo é que, por causa da nossa má escolha...

—Pela maldição —interrompeu Sophia.

—Sabe que não acredito nesse absurdo! Não há estudo científico que explique tal coisa, querida. São apenas conjecturas de uma crença... --

Randall ficou em silêncio enquanto observava as feições de sua esposa endurecerem. Doía falar sobre seu povo, sua cultura e tudo em que ela acreditava desde criança. Mas ele não aceitava essa ideologia. Sua filha não era amaldiçoada. Sua primogênita sofria apenas das más decisões de seus pais, como o visconde dissera, e a recriminação de uma sociedade frívola e injusta. Quanto ele teve que lutar para pular todos os obstáculos que colocaram em seu caminho? Muito! Mas ao longo dos anos e com sua tenacidade manteve a reputação que merecia. Nem a aristocracia poderia ofusca-lo! Então... por que a filha dele não poderia lutar como ele? A resposta que apareceu em sua cabeça lhe causou muita dor, tanto que sentiu suas entranhas se abrissem. Mulher. Só porque Anne era uma mulher, tinha que sofrer essa agonia miserável.

—Por que está tão quieto? —Ela perguntou depois de beijá-lo na bochecha.

—Penso sobre a injustiça, sobre a sociedade tão miserável em que nossas filhas vivem. Estamos prestes a terminar um século e não vejo nenhuma evolução.

—Sobre que?

—Sobre nossas filhas, sobre o fato de que elas são mulheres e o

futuro que terão... —confessou Randall depois de respirar fundo.

—Não deveria se preocupar tanto porque Morgana vai cuidar delas e transformá-las em mulheres abençoadas —disse ela, virando-se para ele.

—Não está pensando sobre a visão de Madeleine novamente, está? —Ele disse, apertando seus velhos olhos.

—Ela não teria dito nada sobre esse assunto se não acreditasse. --

Ela a defendeu com firmeza.

—Madeleine ama sua irmã mais velha e estaria disposta a fazer qualquer coisa por ela, até mesmo mentir, embora, como bem sabe, toda vez o faz aparece, uma erupção aparece em seu rosto.

—Se me lembro bem, não tinha nada em seu rostinho quando disse isso —ela a defendeu novamente. Embora Randall não admitisse suas crenças de sangue, ela o fazia e tinha certeza de que o que Madeleine vira no sonho de que falava se tornaria real.

—Não parou de comer?

—Não.

—Não teve uma erupção cutânea em qualquer parte do corpo? --

Randall continuou dando um pequeno sorriso.

—Não -- Sophia negou novamente.

—Então... acha mesmo que vamos encontrar um marido para a

nossa Mary? —Ele disse zombeteiramente.

—O que Madeleine disse sobre isso? —Ela perguntou timidamente, levantando-se.

—Mas... realmente não duvida dela?

—Não.

—Tem muita fé... —ele sussurrou olhando para o fogo.

—Mary descobrirá aquele marido que venerará sua inteligência e aplacará sua língua.

—Aham —Randall continuou, seus olhos nunca deixando o fogo.

—Josephine...

—Josephine? ?Ele perguntou, virando o olhar para sua amada esposa e erguendo as sobrancelhas. —Se Mary é um tema complicado, Josephine é duas vezes mais— acrescentou sarcasticamente.

—Se não encorajasse sua atitude de guerreira, se não tivesse comprado àquela arma infeliz, Shira teria tomado o cuidado de vesti-la como uma menina e ela não usaria aquelas benditas calças. Sabe como as vendedoras olham para mim quando peço roupas masculinas que uma mulher possa usar? —Ela retrucou com raiva.

—Josephine tem uma alma guerreira e tem que admitir que nenhum homem tem a habilidade que ela tem para a luta. Não tenho dúvidas de que ela seria o soldado mais valente de um exército.

—Não é um homem, Randall! Ela é uma mulher! Não percebeu que começam a brotar certas protuberâncias em seu peito? De acordo com o termo médico são seios, certo?

—Como eu gosto quando fala assim! —Ele exclamou, levantando-se, mas quando foi abraçar sua esposa, ela o rejeitou.

—Mary encontrará um marido, Josephine o seu, Elizabeth... ela vai se apaixonar pelo homem que Morgana escolheu, embora ele não seja aristocrata e Madeleine terá que abandonar esse medo para enfrentar o seu próprio.

—Esqueceu Anne... Se casará com um cigano?

—Sim —ela disse sem hesitar por um único segundo. —O fará.

—Como? Não pensa em levá-la a um acampamento cigano, certo?

—Não, eu não farei tal tolice. Amanhã falarei com ela e contarei o que aconteceu com o visconde. Entre nós duas, vamos procurar uma solução. Talvez possamos encontrar um cliente que more fora de Londres e, desse modo, poderá sair daqui, mesmo que não seja Paris. Certamente que esse cigano aparecerá a qualquer momento...

—E enquanto isso, o que fazemos com Elizabeth? Não podemos permitir que ela continue agindo de maneira tão pouco descente —ele perguntou, estendendo a mão para Sophia.

—Se for necessário trancá-la em seu quarto até que mude seu comportamento, o farei —Sophia disse com firmeza, aceitando a mão do marido.

—Espero que Anne não fique muito chateada quando disser a ela que seu pai contou que era amaldiçoada —disse o médico enquanto os dois caminhavam em direção à saída.

—Ele realmente o olhou como se estivesse louco?

—Não pode imaginar... quando disse a ele que teria que tê-la notado porque nenhum homem se aproximava dela, seus olhos quase saltaram fora. E isso que não contei sobre esse vestido laranja infeliz! Como permitiu que ela fosse vestida assim? Se o que ela tentou foi passar despercebida, não teve sucesso. Até mesmo um cego a teria visto! —Ele exclamou divertido.

—Eu juro que quando a vi descendo as escadas com essa cor quase a fiz voltar para seu quarto para mudar, mas algo dentro de mim gritou que não fizesse isso —disse Sophia, inclinando a cabeça no ombro esquerdo do marido.

—É, de todas as nossas filhas, a que mais se parece com você. Tem tanto sangue cigano correndo em suas veias que ela não pode controlá-lo. Só faltaram as joias que Elizabeth falou para ir gritando quem realmente é.

—É por isso mesmo está amaldiçoada e por isso se entregou àquele canalha. Se ela fosse mais sensata e menos apaixonada, teria analisado sobre a perda de sua honra —murmurou Sophia.

—Não fique zangada com algo que não podemos mais remediar. Anne tem quase vinte e cinco anos e pode fazer o que quiser. Além disso, já conhece o caráter boêmio que os artistas têm... —ele continuou falando em tom de brincadeira.

—Se Madeleine estiver certa, o sangue cigano logo evocará a pessoa que está destinada a ela e esse homem acalmará a paixão que surge nela.

—Acredita? —Randall questionou duvidosamente.

—Eu não fiz isso com você?

—De verdade? Pensei que tinha ido à sua aldeia para curar um homem doente, não para procurar uma esposa —disse o médico, em pé na frente da escada que os levaria ao segundo andar.

—Meu querido Randall, é a pessoa mais gentil que eu já conheci. Ainda pensa, depois de saber o que nossa raça é capaz de fazer, que meu pai adoeceu sozinho? Que não fiz um feitiço para fazê-lo aparecer antes que eles me obrigassem a uma união arranjada?

—Fez isso? —Ele perguntou, levantando as sobrancelhas.

—Não, claro que não —ela disse antes de soltar uma risada e

subir os primeiros degraus. Quando ela viu que Randall não a estava seguindo, se virou para ele. -- Vai ficar aí a noite toda?

—Fez isso? —Ele repetiu novamente.

—Randall Moore —ela começou descendo os dois degraus que os separavam —eu faria qualquer coisa para encontrá-lo.

—Até envenenar seu pai?

—Até envenenar meu pai —ela repetiu antes de beijá-lo nos lábios. —E agora vamos para a cama. Nós temos que descansar. Espero que amanhã seja um dia muito especial para todos nós.

—Especial? —Ele exigiu, apertando os olhos.

-- Sim —disse Sophia antes de encorajar Randall a subir para o quarto. —Muito especial…

-- Outra clarividência? —Ele perguntou ao se colocar ao seu lado e abraça-la.

—Um pressentimento cigano —disse ela.

III


Anne se inclinou contra o tronco ao lado dela e manteve os olhos fixos na frente. A música, a que a puxou para fora da cama e a atraiu para aquele lugar desconhecido, tornou-se mais intensa a cada passo que dava. A escuridão da noite a impedia de ver além do que encontrava quando se movia para a frente, mas isso não lhe causava pavor; ao contrário, nesse momento sentia tanta força e segurança que esqueceu o significado da palavra medo. Ela retirou a mão do tronco em que estava segurando, deu outro passo e ouviu um ruído acima de sua cabeça. Lentamente, ela levantou o rosto e encontrou o maior corvo que já vira. Este último, depois de bater as asas, grasnou e foi para o lugar onde a melodia estava ficando mais alta. Encantada pela música, ela esqueceu o pássaro e entrou na floresta frondosa. Sem se perguntar por que estava indo em direção àquela voz cantando, cruzou o caminho íngreme até chegar a uma pequena clareira no meio daquela floresta. Com espanto deduziu, vendo uma grande fogueira no centro daquele lugar amplo, que não estava sozinha e que talvez a pessoa que acendeu o fogo fosse a mesma que cantava. Parando, sem ao menos mexer os dedos dos pés descalços, olhou em volta, procurando a figura humana que deveria estar em algum lugar. No entanto, não encontrou ninguém. Ela estava sozinha na frente do fogo que a convidava, com seu

calor e luz, a se aproximar e se sentir protegida sob suas chamas.

Quanto mais perto ela chegava da grande fogueira, mais confiante ela estava, apesar do tecido de sua camisola queimar tanto que ardia sua pele. Mas era incapaz de parar no meio do caminho, ela precisava, sem saber por quê, tocar aquelas chamas tão atraentes e seguras.

Deu um passo, depois outro, enquanto seus ouvidos captavam com mais clareza as frases daquela canção: Aproxime-se do fogo, sinta-o em sua pele, em sua alma, em seu peito. Ele te livrará da sua dor, da sua tristeza e te conduzirá ao que almeja.

Como poderia entender essas frases se as ouvia em outra língua? Por que eram tão familiares? O que havia de especial naquela música para deixá-la sem o poder da decisão? Sua mente procurava as possíveis respostas quando estendeu a mão para o fogo. Não se queimou, nem sentiu dor. Por mais estranho que parecesse, não percebeu nada além de tranquilidade, como quando chegava em casa depois de um dia intenso de trabalho. Com os olhos fixos naquele vai e vem amarelo e laranja e com aquela música que repetia várias vezes que encontraria o que procurava, respirou fundo. O que havia desejado durante seus anos de vida? Como se livraria da dor? O que tinha de especial naquele fogo? Teria que atravessá

lo para descobrir as respostas?

Fechou os olhos, abriu as mãos e, determinada a conhecer todos

os enigmas que surgiram em sua mente, colocou os pés sobre as brasas ardentes. Mas estas também não queimavam. Sua camisola ainda estava intacta e ela ainda estava... viva.

—O que quer? —Se atreveu a dizer no meio da fogueira. —O que encontrarei? Por que me trouxe aqui? —Mas tudo ficou em silêncio. Até a voz cantada, que a acompanhara no caminho, cessou no momento em que entrou no fogo. —O que quer? —Repetiu abrindo os olhos.

Depois de passar alguns segundos esperando a resposta, decidiu sair e voltar para aquela cama fria que havia deixado. No entanto, quando saiu do fogo, ouviu o vento agitar as copas das árvores.

—Eu te amo e só tem que me encontrar -- disse a voz de um homem atrás dela.

Assustada, ela se virou e descobriu que o fogo tinha desaparecido. Em seu lugar havia uma figura masculina, que reconheceu rapidamente. Aterrorizada, colocou as mãos no peito e gritou.

—Leve-me porque eu sou seu, assim como é minha —ele continuou falando.

Ela tentou andar para trás, longe daquele homem que estendia as mãos para ela, mas seu corpo se recusava a fazê-lo. Sentia uma atração tão imensa por ele que podia sentir sua pele se separando dela e voando para aquele estranho.

—Não lute, não precisa fazer isso. É minha e eu sou seu —ele continuou falando com ela enquanto cortava a distância entre os dois.

Ela fechou os olhos, não queria ver mais nada. Queria voltar para a cama que não deveria ter deixado, para sua casa, para sua vida horrível, para a solidão..., entretanto, quando o homem a abraçou para consolar aquela inquietação agonizante, tudo ao seu redor deixou de existir e uma liberdade apareceu em seu interior.

Sede, tinha sede e calor. Tanto calor que poderia derreter a qualquer momento. E essa sede não era humana, mas espiritual. Como se ao permanecerem unidos, seu corpo não tivesse sangue e precisasse dele.

—Olhe para mim... —ele disse, levantando o queixo com um dedo. Olhe para mim e descubra em meus olhos tudo o que questiona.

Muito lentamente, ela fez o que lhe foi dito e, aqueles olhos azuis como o mar, lhe ofereceram visões tão claras que pareciam reais. Ela se viu na festa, escondendo-se atrás da parede, mas ele a seguia, a procurava.

Também assistiu à cena de sua partida e percebeu a angústia que sentiu ao sair. Então uma casa apareceu, grande e sólida como um castelo. Ela corria rindo, divertida, enquanto pegava suas saias para não cair no chão. Sua risada misturada com outras, as dele. Outra cena apareceu, não estava mais no meio de um prado, mas em uma sala. Ela estava nua, gemendo, aceitando os beijos que ele lhe oferecia. Se retirou, empurrou-a para a cama, ela bateu

no colchão e sorriu. Então ele se colocou em seus quadris, guardando em seu interior aquele sexo masculino. Ele continuou ofegando, movendo-se, enquanto tocava seus seios, levava sua boca para a dela e sugava todos os seus gemidos. Seus cabelos castanhos dançando ao ritmo daquele ato apaixonado, daquele encaixe, daquela união...

—Não! —Ela exclamou desesperadamente quando se viu daquela maneira luxuriosa. —Não! —Ela gritou apoiando as mãos naquele duro tronco nu e empurrando-o para longe dela.

Anne sentou-se na cama, puxou bruscamente as cobertas e pôs as mãos no rosto. Suas bochechas queimavam e alguns fios de cabelo estavam presos a elas por causa do suor produzido pelo sonho. Atordoada, ela puxou o cabelo úmido para trás, olhou para frente e suspirou angustiada. Como tinha sido capaz de sonhar com algo tão proibido com um homem que não conhecia? Por que sua mente lhe oferecia imagens tão descaradas? Espantada e ao mesmo tempo com medo, moveu-se lentamente pelo colchão, pôs os pés no chão e tentou apaziguar esse estado de excitação. Mas ela achou impossível relaxar. Mesmo que já estivesse acordada e ciente de onde estava, as imagens daquela fantasia ainda estavam em sua cabeça como se fossem reais. Fechou os olhos, pressionou as mãos no rosto e soluçou. Ela não podia permitir que sua mente lhe mostrasse algo tão imoral, tão pecaminoso ou tão real, porque isso a levaria à loucura. Ela não era... ela não podia... ela era

amaldiçoada.

Depois de respirar fundo, se levantou, caminhou até o pé da sua cama, se agarrou ao dossel de madeira e descansou a testa. Não podia chamar o que viveu de um sonho, mas de um pesadelo. Um em que ela se deixava levar pela paixão de um homem que só vira uma vez e que, possivelmente, não encontraria novamente. Então, por que sua mente gritava que ela seria dele? «É minha e eu sou seu», ouviu de novo como se estivesse ao seu lado. Sem se afastar do dossel, tentou eliminar o que aconteceu, mas não conseguiu. Se viu novamente em um lugar que ela não conhecia e a música retornou. O que esse sonho significava? Ela estaria enlouquecendo? Tão encantada ficou ao vê-lo? Não podia negar que, desde que o viu, uma atração inconfessável nasceu nela. Qualquer mulher teria tido ao vê-lo! Era, entre os cavalheiros que estavam na festa, o homem mais viril, sedutor e enigmático. Sua aura perigosa exalava tanto magnetismo que nenhuma mulher podia desviar o olhar de tal pessoa. No entanto, isso não poderia servir como uma desculpa para tê-lo em seus sonhos, para sentir seu toque em sua pele e ouvir novamente seus próprios suspiros ao possuí-la... com os olhos ainda fechados, Anne agarrou o dossel com as duas mãos e choramingou novamente. Nem mesmo seu amado Dick fizera amor com ela daquele jeito tão apaixonado, tão selvagem e.... antinatural. Aquele estranho a levara a um estado de frenesi tão grande que ela tomara as rédeas daquele

encontro e fora ela que o atacara. Ela! Desde quando uma mulher evitava a modéstia e se comportava de maneira tão desavergonhada? Nua! Totalmente nua e desinibida! E ele a tocava... E a beijava... E....

E as bochechas queimaram novamente ...

Irritada com essa reação, se afastou da cama e foi até a sala de banho. Devia encontrar alguma sanidade e bom senso. Não era uma mulher que se deixasse levar por emoções ardentes, não mais. Tinha feito quando conheceu Dick, mas depois de sua morte, seu coração e alma foram aprisionados em uma urna de gelo.

—Anne? O que aconteceu?

A voz de sua mãe a tirou daquele transe. Ela estava tão absorta em si mesma que não a ouviu entrar no quarto ou se aproximar dela.

—Mãe? —Ela perguntou confusa. -- O que faz aqui?

—O que há de errado, Anne? Por que está tremendo? Porque está chorando? Os ataques de pânico retornaram? —Perguntou se aproximando da filha. A última vez que a viu naquele estado foi após a morte do filho do conde.

Anne olhou para ela um tanto confusa. Deveria ser sincera? Era apropriado confessar que ela tinha visto um homem, a quem havia encontrado na noite passada, sair do fogo e viu em seus olhos cenas pecaminosas? Não, claro que não.

—Foi apenas um pesadelo -- disse ela por fim.

—Um pesadelo? Que pesadelo? O que viu? —Ela insistiu em saber. Até agora, Anne herdara um dom, o da pintura. Poderia ser possível que também fosse clarividente?

—Estava em uma floresta, sozinha, sem nada ao meu redor. De repente, um corvo apareceu e começou a me perseguir. Por mais que eu corresse, ele ainda estava ao meu lado porque queria me machucar.

—Um corvo? —Perguntou Sophia erguendo as sobrancelhas. --

Se assustou com um corvo?

—Era enorme. O maior que eu já vi na minha vida —acrescentou.

-- Não viu mais nada? Um fogo? Ouviu uma música?

Naquele momento, Anne esqueceu de respirar. Como sua mãe sabia disso? Teve um sonho parecido? O sangue que compartilhavam era tão semelhante que ambas sonhavam o mesmo? Esperava que isso não fosse verdade porque não conseguiria nem olhar para a sua cara...

—Não —ela disse devagar, segurando a camisola com força. Ela não teria bolhas como Madeleine quando estava mentindo, mas seu rosto estava tão corado que ninguém duvidaria de sua mentira.

—Bem, então, só se assustou com um corvo... —pensou Sophia sem desviar o olhar.

Se sua intuição não se confundia, Anne acabara de sonhar com

seu homem, embora não quisesse confessar. Isso significava que ele entrara em sua vida e que seu sangue cigano o evocava. Mas... onde o viu? Na cerimônia da Sra. Lawford? Quem seria?

—Só um corvo... —admitiu Anne, incapaz de levantar os olhos do chão.

—E.... te bicou? Te machucou? -- Perseverou Sophia audaciosa.

-- Quando sonhei com um corvo, juro que me machucou tanto...

—O que queria, mãe? —A interrompeu bruscamente.

—Vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem. --

Sophia deixou Anne mudar de assunto. Se ela tivesse sonhado com o que ela supunha, teria que assimilar muitas coisas.

—Quer que saia agora, enquanto minhas irmãs ainda dormem? --

Ela falou desesperada para sair de lá.

—Falaremos sobre isso quando se aprontar —disse a mãe, caminhando até a porta. —E, exceto Mary, estão todas acordadas. Ela olhou para a segunda de suas filhas, de quem só se via os tubos de metal que Shira colocava em seu cabelo antes de dormir. —Outra vez esteve lendo até o amanhecer?

—Ela começou um novo livro —Anne esclareceu.

—Vou queimar todos eles! —Sophia rosnou. —Farei a maior fogueira de Londres quando jogá-los no fogo.

E naquele exato momento, Anne colocou as mãos no peito e sua mãe sorriu, quando descobriu que, na verdade, o homem que Morgana escolhera para sua filha tinha finalmente aparecido.


***


Quando Sophia fechou a porta, Anne foi a sala de banho, mas não antes de olhar para Mary. Estava tão calma, dormia tão docemente que ansiava ser ela por alguns momentos. Como ela disse ontem à noite, seu sangue Moore era tão poderoso que a salvava de pensar coisas tão imprudente como ela fez aquela noite.

Ligou a torneira de água quente, se despiu e esperou que o sabão espumasse. Pelo menos estava sozinha para refletir sobre o que tinha acontecido. Graças à tenacidade do pai e à aceitação de certas inovações, não precisava da ajuda de uma criada para ter um pouco de água quente. O que menos desejava naquele momento tão urgente era ter Shira ao seu lado perguntando-lhe mil vezes por que sua pele estava tão vermelha quanto uma flor.

A diferença entre Mary e ela reapareceu. Ali, onde aceitara de bom grado as reformas da sala de banho, Mary gritou aos céus e chamou as novas banheiras de engenhocas demoníacas. Como pensou em chamá-las

dessa maneira? Ela! Uma mulher que não acreditava em anjos, deuses, demônios ou qualquer coisa sobrenatural. Se quando sua mãe falava sobre as visões que teve no passado, perguntava quanto ópio tinha tomado! Anne levou as mãos à boca para acalmar a risada que queria soltar, recordando os castigos que Mary sofrera por expressar tais comentários. Mas ela nunca mudara de ideia. Era tão forte, tão segura de si mesma e tão...

especial. Embora sua mãe a repreendesse, embora estivesse muito zangada com ela quando o pai lhe contava sobre outra discussão em uma reunião de médicos, na qual sua filha havia destroçado o orgulho de algum outro cavalheiro, Mary não mudava sua atitude e isso fazia dela a mais poderosa das cinco filhas.

Ela colocou os pés na água e moveu os dedos impregnados com espuma branca. A água há relaxara um pouco. O suficiente para refletir sobre esse sonho. Não tinha nada a temer. Aquele homem não apareceria novamente em sua vida, e se houvesse algo do qual deveria ter medo, era que a caldeira explodisse e saltasse para a outra extremidade da sala de banho, como Mary disse quando a viu pela primeira vez. Recordando aquele momento, aquela risada reprimida fluiu suavemente. Só a ela poderia ocorrer esse tipo de coisa! Não havia dúvida de que Mary tinha mais sangue Moore do que Arany.

—Realmente quer que nós confiemos nisso? —Ela perguntou a

seu pai quando as reformas tinham terminado.

—Nada acontecerá. Há muitos nobres que as usam e todos elogiam o conforto de ter água quente imediatamente —respondeu Randall.

—Quer se livrar de nós... —Mary resmungou.

—Sophia! —Ele gritou chamando sua esposa. Cada vez que eles discutiam, pedia a ela para interceder na conversa. Talvez porque ele e Mary fossem tão parecidos que, depois de um debate angustiante, estariam empatados. —Vem por favor! Pode explicar à sua querida filha Mary que não quero me livrar dela e que não está em perigo se entrar na nova banheira?

—O que acontece desta vez? —Sophia perguntou com resignação.

—O pai me garante que nada acontecerá comigo enquanto tomo banho, porém, percebo que ele não se lembra do artigo que os jornais publicaram há alguns anos atrás.

—O que dizia o artigo, Mary? —Disse a mãe com uma voz cansada.

—Que o aquecedor a gás de Lorde Fhautun quebrou e explodiu a banheira e o próprio lorde que estava dentro dela. Ambos estavam do lado oposto da sala! —Ela exclamou desesperadamente.

—Isso é verdade, Randall? —Ela se virou para o seu marido,

que não parava de rir ao se lembrar daquele dia, porque ele teve que atender o pobre barão.

-- Sim, mas em defesa dessa criação inovadora, tenho que explicar que isso aconteceu há alguns anos e que eles a aperfeiçoaram para que ninguém saia disparado como a bala de um canhão.

—Não deixarei nenhuma das minhas filhas voarem pela casa como pássaros, Randall Moore! —Sophia exclamou horrorizada. —Que Shira e outra donzela continuem a aquecer a água na cozinha. Este método é mais seguro para elas —declarou solenemente.

E enquanto o médico acompanhava a esposa até o quarto e lhe oferecia uma série de razões pelas quais ela não deveria ter medo de usar as novas torneiras, Mary observava do corredor enquanto uma de suas criadas levantava baldes de água quente e os derramava dentro da banheira novinha em folha.

No entanto, tudo mudou quando as gêmeas adoeceram. Shira, sua mãe e as donzelas estavam tão ocupadas cuidando das pequenas que Mary decidiu aceitar a derrota. Nos primeiros meses, apesar de sua mãe ficar muito zangada, ela se banhava de camisola para o caso de voar como Lorde Fhautun. Se parecia embaraçoso sofrer tal situação, era mais se isso acontecesse com ela nua. E, apesar de ter acontecido há algo em torno de cinco anos, os banhos de Mary não duravam muito...

Alegre depois da lembrança, saiu da banheira, vestiu um robe de seda preta e caminhou até o quarto. Ela precisava se preparar o mais rápido possível para conversar com a mãe. O que diria? Informaria sobre a decisão do capitão? Ele teria aceitado a proposta de seu pai? Esperava que fosse isso e que pudesse finalmente sair de Londres. Talvez, afastando-se da cidade, nunca mais sonhasse com aquele homem, e Elizabeth nunca mais manteria uma atitude tão descarada com outro Lorde. Lembrando o que aconteceu na tarde anterior, a agonia que o sonho produziu desapareceu de repente e a dura realidade retornou. Que palavras sua mãe usou para informar que ela queria falar com ela?

«Eu vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem». Mas ontem à tarde várias coisas aconteceram e entre elas...

—Oh, meu Deus! —Exclamou, abrindo bem os olhos. —A baronesa lhe contou o que Elizabeth fez com lorde Lorre!

IV


Sophia olhava seu jardim pela janela. Nele, apenas Josephine permanecia com aquela arma horrível em suas mãos. Estava apontando para outro alvo. Ela se aproximou um pouco mais do vidro e exalou todo o ar em seus pulmões quando viu outro jarro de porcelana branca da louça que guardava na despensa. Teria que falar muito seriamente com a quarta de suas filhas. Ela não podia usar os poucos pertences que Randall herdara de seus pais como alvos para seus tiros, porque quando terminasse com eles, qual seria o próximo? Apoiando-se na moldura da janela, viu Elizabeth emergir da estufa para gritar com Josephine. Isso só poderia indicar que a bala havia atravessado um vidro na estufa.

—Pelo amor de Morgana! —Exclamou horrorizada, levando as mãos ao peito.

Os problemas cresciam e não sabia como eliminá-los. Precisava colocar ordem em todo esse caos familiar e a primeira coisa séria ordenar que Randall desaparecesse com o rifle. Talvez se dissesse a ele que o jardim era pequeno demais e que algumas de suas filhas ou criados pudesse se machucar, ambos reconsiderariam. «Bobagem! —Pensou —Algum deles ouviria? Ouviriam suas explicações? " Não, claro que não. Randall continuaria aplaudindo a habilidade de sua filha e, em vez de obrigá-la a

guardar a arma, a levaria para o campo, onde o perigo de matar alguém seria minimizado.

Se virou para o sofá, onde passara muitas horas costurando, e olhou para sua caixa de costura. A bobina laranja chamou sua atenção. Como ocorreu a Anne usar um vestido tão pouco discreto? Quando o comprou e por que não disse nada sobre isso? Sempre mostrou a ela tudo o que adquiria e nunca escondia nada. Então, o que mudou? O que estava acontecendo?

Sophia se sentou na cadeira de balanço, colocou as mãos no colo e apertou-as. A única pessoa que conhecera em sua vida e que se vestira de maneira tão pouco discreta era sua avó Jovenka. Todos os dias ela usava algo de cor laranja. Senão era um vestido, era um lenço ou um casaco, porém nunca faltava em seu traje aquele tom tão cigano. Ela suspirou profundamente quando se lembrou da avó e da horrível obsessão de não contaminar o sangue. Se Randall não tivesse aparecido naquela noite... O que teria acontecido com ela? Mas, embora tenha se afastado, mesmo que tenha parecido que ela os havia deixado viver em paz, não foi assim. Ela ficou, embora o acampamento tenha decidido sair de Londres. Viveu resguardada na floresta, perseguindo-os em silêncio até cumprir sua palavra...

Uma noite, que ao longo do tempo descobriram ser a mesma em que geraram Anne, decidiram deixar a janela aberta para que a luz da lua ambientasse aquele momento tão romântico e apaixonado. Corria uma leve

brisa e as cortinas se moviam suavemente, como se fossem dançarinas elegantes e delicadas. Ambos se entregaram como haviam feito tantas vezes. No entanto, desta vez foi especial porque quando Randall terminou, depositando sua semente dentro dela, o silêncio do lado de fora desapareceu ao ser interrompido por um trovão horrível. O marido, vendo-a tremer de medo, se levantou, fechou a janela e voltou para a cama para acalmar seu medo. Mas o que ele encontrou quando chegou a ela o deixou aturdido. Em questão de segundos, aqueles que demorara em voltar para o lado dela, a temperatura do seu corpo subiu tanto que ela se agitava pelos tremores de febre. Como ele fizera desde que a viu naquela carroça, ajudara-a o tempo todo. Toda vez que colocava um pano de água fria nela, as mãos dele avermelhavam com o calor que transpirava do tecido. Assustado, ele chamou um dos empregados para pegar a carruagem e trazer o máximo de blocos de gelo possíveis. A colocaram em uma banheira cheia de gelo, mesmo assim, a febre não diminuiu até o amanhecer chegar. Como se fosse apenas um sonho terrível, essas convulsões e o calor desapareceram antes na chegada dos primeiros raios de sol. Claro, Randall nunca admitira que o sol a tivesse curado, mas que o gelo, as emersões e seus panos a aliviavam.

Depois de passar uma noite tão agitada, decidiram ficar descansando pelo resto do dia. Mas seu marido teve que sair porque alguém apareceu na residência solicitando seus serviços. Quatro horas depois de sua

partida, ele retornou e informou-a de que o assunto que o levara de casa fora sua avó. Um homem, que caminhava pelo campo, descobriu um corpo caído, pensando que havia desmaiado, correu até ela, mas quando descobriu que tinha uma adaga presa no abdome e que era cigana, pediu ajuda à polícia e estes a dele, porque nenhum outro médico iria atendê-los.

Depois de contar o que aconteceu, ela chorou, não de tristeza, mas de alegria, prazer e entusiasmo, porque acreditava, estupidamente, que a morte os salvara da maldição. Mas estava errada, tinha acabado de começar...

Dois meses depois, ela soube que estava grávida. Estava tão animada para ser mãe, que não conseguia pensar em nada além do bebê que estava chegando e que sua avó não estava mais viva para machucá-la.

Não foi assim….

Quando Anne nasceu, quando a segurou nos braços e olhou para aquele rosto, aquele cabelo e aqueles olhos castanhos, teve tanto medo ao ver que era tão parecida com Jovenka que ficou inconsciente. Durante aquele desmaio, ela viu sua avó na sacada, na noite em que conceberam Anne. Então a observou se afastar de casa para onde a encontraram morta. Ela mesma cravou a adaga assim que o trovão soou. Estava com ela durante o desmaio e mostrou-lhe o nascimento de suas outras quatro filhas enquanto gritava várias e várias vezes que o sangue contaminado as destruiria. Quando acordou, estava com tanto medo que nem queria olhar para sua pequena recém

nascida. Anne estava chorando no berço porque precisava se alimentar da mãe que lhe dera a vida, mas ela recusou seu contato. Graças à ajuda de Randall, sua ternura, sua compreensão e aquela grande paciência, ela finalmente admitiu que fora apenas um pesadelo gerado pelo cansaço do parto e, quando se acalmou, ele ofereceu seu bebê. Com os olhos fechados, amamentou-a. Mas os abriu ao sentir o calor daquele pequeno corpo e a sensação de suas pequenas mãos na pele. Naquele momento concluiu que a única coisa que Anne tinha de sua avó era o físico que Randall afirmara ser algo que ele chamara de coincidência genética. No entanto, o tempo indicara que havia se enganado novamente. Anne era tão ardente e apaixonada quanto Jovenka. Ela até herdou seu dom para pintar! Quantos rostos masculinos sua avó pintou com o carvão das fogueiras? Todos os que passavam por sua carruagem. Nenhum foi deixado sem retratar. Era seu triunfo, seu destino, sua vida e, infelizmente, esse espírito diabólico voltava muito mais jovem e mais forte do que antes. Ela só esperava que o desejo de gerar não aparecesse em Anne, porque quinze filhos bastardos nasceram do ventre de sua avó. Alguns pararam de respirar em seu ventre, outros foram abandonados nas portas das igrejas das aldeias em que se instalaram e outros... outros não tiveram nem uma sorte nem outra e tornaram-se servos de seu povo. Escravos sem opção de vida, exceto a servidão a que ela os sujeitou. O único filho de sangue puro era seu pai, então ansiava que sua neta continuasse seu legado de pureza

casando-a com outro cigano. Mas ela não queria morar no povoado ou seguir as regras de sua avó porque, desde que Randall apareceu em seus sonhos, ela o amara.

Sophia se balançou devagar enquanto recordava o que acontecera vinte e cinco anos antes. Seus olhos, até então fixos em suas mãos, foram pregados na porta por onde Anne iria entrar. Não deveria apenas se concentrar em comentar a resposta do visconde, mas tentaria extrair algo sobre o sonho que ela tivera durante a noite. Quem ela conheceu? Quem, de todas as pessoas em Londres, teria sangue cigano? Onde o viu? Em que momento? Se falaram? Se conheceram?

—Morgana —disse ela em voz alta, —se minha filha encontrou esse homem, se finalmente permitiu que encontre a pessoa que irá salvá-la da maldição, que esqueça a ideia de partir, dê a ela forças para tomar seu destino e eliminar seu passado. Afaste o espírito que a atormenta de uma vez por todas, liberte-a da pressão, da prisão, da minha avó...

Fechou os olhos, segurou as mãos e começou a cantar para essa mãe que criara sua raça, a única que poderia escutá-la. Mas esse canto foi interrompido quando ouviu uma batida no vidro da janela em que havia permanecido. Assustada e preocupada, deu um pulo, caminhou até a sala e soltou um grito.

—Josephine Moore! Está de castigo! —Trovejou ao ver um

buraco e vidros no chão.

—Eu prometo, eu juro que... —a jovem tentou dizer. —Foi culpa da Elizabeth! Ela me jogou uma pedra!

—Elizabeth Moore! Está... ?mas não terminou a imposição daquela segunda punição. A terceira de suas filhas se virou para a estufa sem ouvi-la.

Anne estava certa. O comportamento da jovem mudou desde que seu segundo pretendente morreu. Pensou que, depois da visão de Madeleine, ela deixaria de agir dessa maneira horrível, mas estava errada. A única coisa que a revelação da menina causou foi uma pequena trégua familiar. No entanto, a incerteza havia retornado... quando aconteceria tudo o que Madeleine previu? Levaria muito tempo para chegar? Morgana silenciosamente esperava pela destruição de suas filhas para agir? Afligida, ela voltou para a cadeira de balanço, ouvindo Shira repreendendo Josephine.

Sentou-se muito devagar, como se em vez de 45 anos tivesse noventa, fechou os olhos e lembrou-se da tarde em que Madeleine confessou o que vira em seus sonhos para descobrir se, em algum momento, ela havia apontado uma data exata.

—Mas que bobagem! —Mary exclamou levantando. -- Realmente quer se afastar de nós por causa dessa irracionalidade?

—É a coisa mais sensata —disse Anne, depois da explicação de

sair de Londres e viajar para Paris. Aqui não terei a vida que mereço como artista e vocês não encontrarão um bom futuro por causa da maldição.

—Eu

lutarei

contra

essa

maldição

até

o

fim!

--

Josephine comentou, levantando a mão direita como se estivesse carregando uma espada. —Uma Moore não desiste tão facilmente!

—A maldição só afeta ela, certo? —Elizabeth perguntou depois de ouvir Anne. Não lamentava pelo desejo da irmã de deixar a família, mas por ela. Desde que o filho do conde morrera, ninguém os convidou para nenhuma festa, nenhum homem olhou para elas... O tempo passava e ela não conseguia encontrar seu aristocrata.

—Sim —respondeu Sophia. —Mas como podem ver, todas estão envolvidas porque, até agora, ninguém veio aqui pedir um compromisso com nenhuma de vocês.

-- Bendita maldição! —Mary exclamou eufórica. -- Agora sim acredito nela! Por favor, Anne, continue a se comprometer com todos os ousados que a desejam como esposa, para ver se ficam tão assustados que saem do nosso caminho e deixem as ruas de Londres livres para andarmos em paz. Além disso, posso preparar uma lista de nomes dos presunçosos para que possa aniquilar. Se quiser, amanhã começamos com A.

—Mary! —Sophia repreendeu-a. Que não deseje encontrar um marido não significa que suas irmãs pensem o mesmo.

—Alguma de vocês quer viver sob o domínio de um homem, exceto Elizabeth? —Ela perguntou olhando para o rosto da mencionada. Ao ver que se mantinha em silêncio, sentou-se abruptamente e cruzou os braços.

--

Eu

também

não

quero

me

casar! -- Josephine interveio novamente.

—Claro que não quer fazer isso agora, querida, é jovem demais para pensar nisso —disse Sophia com ternura. ?Mas futuramente não quer se tornar uma solteirona, certo?

—Um soldado não pode se comprometer com nada além de amor ao seu país -- declarou solenemente enquanto colocava as mãos no cós da calça.

—Soldado? —Randall perguntou a sua esposa um pouco confuso.

—Desde que comprou aquela bendita arma e ela dispara em todos os vasos que colocou no jardim, decidiu que quando tiver idade suficiente para se alistar no exército, cortará aquele lindo cabelo loiro, enfaixará seu peito e lutará contra qualquer inimigo que Londres possua --

resmungou Sophia, olhando para o marido como se quisesse derrubá-lo ali mesmo.

—Bem... não é uma opção muito descabida. Como não tem a esperança de encontrar um marido que seja mais habilidoso do que ela em esgrima ou caça, é uma alternativa a considerar. Além disso, não acredito

que haja um homem no mundo que possa descansar ao lado de nossa Josephine sem pensar que, a qualquer momento, ele vai cortar seu pescoço

—explicou o pai com algum divertimento.

—Randall Moore! Como pode proclamar algo tão horrível sobre Josephine? Ela é uma jovem corajosa, não uma criminosa! —Ela o repreendeu.

Como sempre, a educação que o marido dava à quarta filha era motivo de discussão. Ela insistia em esclarecer que não era uma criança, mas uma pequena mulher que logo teria que participar de festas e que todos falariam sobre o comportamento masculino de Josephine. Prosseguiu esse debate com a atitude inadequada de Elizabeth. Seu marido declarou em voz alta que preferia uma filha que pudesse se defender da audácia de um homem do que os movimentos sedutores de Elizabeth. Então, assim que o tom da conversa começou a exceder o limite correto, uma voz suave e terna os deixou sem palavras.

—O que disse? -- Sophia perguntou Madeleine, a gêmea de Josephine, ao não a ouvir claramente.

—Anne não terá que sair porque o homem que vai resgatá-la da maldição está prestes a chegar -- ela repetiu timidamente. Moveu seu corpo ligeiramente, sentada no peitoril da janela, em direção a sua família e depois de observar a expectativa nos rostos, ela continuou: -- Eu vi nos meus

sonhos. Anne se casará com um homem com sangue cigano, mas ninguém sabe que porque ele o mantém em segredo e só admitirá quando a encontrar.

—Ela apontou com o queixo para sua irmã mais velha.

Randall olhou para ela estupefato, só faltava saber que uma de suas filhas tinha alucinações para morrer naquele momento, mas quando sua esposa levantou e abaixou os ombros, tirando a importância das palavras de sua filha mais nova, respirou com facilidade. A coisa mais sensata a fazer era deduzir que a jovenzinha estava fazendo todo o possível para que sua irmã mais velha, por quem tinha grande afeição, não deixasse a família.

—O que viu? —Anne perguntou com voz aveludada, enquanto caminhava em direção a ela.

—Vejo o homem que será seu marido. Ele olhava nos seus olhos enquanto sussurrava que nada lhe aconteceria, porque a libertaria da sua maldição —ela respondeu calmamente. —E será verdade.

—O que mais viu? —Sua mãe perguntou sem sair do lado de seu marido caso ele precisasse de uma mão para não cair no chão.

-- Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente impedir os sentimentos que aquele homem causará a ela a partir do momento em que se encontrarem pela primeira vez —ela continuou com firmeza.

—Eu? Bobagens! —Bufou fazendo um gesto de desdém. —Tenho certeza de que na noite em que aparecer tomara mais suco de laranja do que

deveria e sabe que um excesso de vitamina C não é bom para a mente.

—Não dê ouvidos a ela —Sophia a consolou depois de ameaçar Mary com um olhar. —Sabe que sua irmã não gosta de ouvir que alguém vai mudar sua vida, muito menos um homem.

—Mas ela vai —disse Madeleine, olhando para sua irmã Mary fixamente.

—Viu mais alguma coisa? Sonhou comigo? Vou casar com um aristocrata? —Elizabeth perguntou impaciente.

—Não sei... -- murmurou a menor das irmãs, voltando o olhar para quem lhe fazia as perguntas. -- Só pude ver que o homem que está esperando aparecerá no caminho que conecta nossa casa com a de Bohanm. Não posso confirmar se é um familiar do casal ou parente de alguém que logo conheceremos, mas tenho certeza de que será a pessoa com quem se casará -- disse ela antes de fixar os olhos verdes na irmã gêmea. --

E Josephine...

—Serei um soldado? Vou lutar com honra? Me tornarei a mulher mais valente do meu batalhão? Me condecorarão? —A jovem perguntou sem respirar.

—Não. Se tornará a esposa de um homem mais honrado do que um soldado, mais temeroso que uma espada e mais severo que o impacto de uma bala —declarou ela.

—Isso sim que eu não esperava! —Randall exclamou olhando para sua esposa achando graça. —Vê, minha querida, no final, meus presentes inadequados servirão para protegê-la de um marido folgado! --

Ele argumentou antes de soltar uma gargalhada.

—E você? -- Anne perguntou acariciando suavemente seu cabelo enquanto ouvia o riso de seu pai.

—Eu saberei que ele é o escolhido quando se aproximar de mim para me ajudar a levantar de uma queda infeliz —disse ela, fixando seus olhos verdes na mão que ele tocaria.

—Então, tudo ficou claro —disse Mary. -- Anne não precisa ir embora e, para sua paz de espírito —disse ela à Sophia, —nos verá casadas. Embora eu só espero que meu futuro marido tenha um cérebro admirável e um corpo preguiçoso, então ele não me visitará à noite e eu poderei continuar lendo em silêncio... —ela comentou ironicamente.

—Mary Moore, não fale assim de novo na frente de suas irmãs ou eu vou queimar todos os seus livros! -- A ameaçou enquanto apontava o dedo.

«Anne não terá que sair porque o homem que irá resgatá-la da maldição está prestes a chegar» ela evocou a frase que estava procurando na memória. Bem, dois anos se passaram desde aquela conversa e o tempo estava lutando contra a família. Se Madeleine estivesse certa e Anne tivesse

tido seu primeiro sonho com fogo, isso poderia dar à família um halo de luz. Talvez, apenas talvez, aquele momento de paz estivesse prestes a aparecer. Mas... quem mantinha em segredo que o seu sangue era cigano? Porque motivo?

—Mãe? —Anne perguntou quando ela apareceu no pequeno quarto.

—Entre —ela disse sem se levantar da cadeira de balanço. --

Sente-se ao meu lado. Quero falar sobre o que aconteceu com o capitão desse navio.

Ao ouvir o tema da conversa, Anne sentiu que a forte pressão em seu peito desaparecia imediatamente. Por sorte, a baronesa lhe dera uma pequena trégua, embora não tivesse certeza de quanto tempo duraria.

—O que ele disse? Aceitou o pedido para me levar? --

Ela quis saber quando se sentou ao seu lado.

—Não.

—Não? Por quê? —Perguntou, amassando em suas mãos o vestido que escolhera para aquele dia. Que, para a tranquilidade de sua mãe, não era laranja, embora pudesse apreciar essa cor na presilha de seu cabelo.

—Porque, segundo ele, não seria apropriado navegar com uma mulher.

—E se eu prometer que não sairei da minha cabine? -- Ela propôs esperançosamente.

—Pelo que seu pai contou, até ofereceu cortar seu cabelo, mas recusou-se a completamente.

--

Ele

realmente

fez

tudo

ao

seu

alcance?

--

Perguntou desconfiada.

—Está questionando as palavras do seu pai? —Sophia soltou com raiva.

—Não, mãe, me desculpe —ela disse, abaixando a cabeça.

—Acredite em mim quando digo que ele fez tudo o que pôde, até ofereceu-lhe um envelope com....

—Um envelope? —Anne perguntou olhando-a sem piscar.

—Sim, um envelope que ainda não voltou —esclareceu ela.

—Então... talvez... —ela disse, se levantando. —Talvez eu tenha uma chance! —Exclamou eufórica.

—Eu não consideraria nenhuma esperança, Anne. Talvez hoje um criado apareça com esse envelope.

—Mãe... —ela disse, ajoelhando-se diante dela -- tudo que me resta é ter fé de que esse homem reconsidere a oferta.

—Mas...

—Não há mais, mãe. Não notou a destruição que minhas irmãs

sofrem por minha causa? -- Soluçou.

—Vi que apenas Elizabeth mudou sua atitude, as outras ainda são as mesmas de sempre —disse ela, acariciando o cabelo de sua filha para tranquilizá-la.

—Eu preciso sair daqui... quero esquecer o meu passado... —ela riu.

—Eu sei, Anne. Eu sei ..., entretanto, algo me diz que deve esperar um pouco mais.

—Teve outra visão? —Perguntou levantando o rosto.

—Não, é um ligeiro palpite. Talvez, se me disser o que sonhou e porque esse corvo a assustou tanto... —ela insistiu.

Anne sentou-se devagar, caminhou até a janela, que tinha um buraco e suspirou. Seria conveniente dizer-lhe a verdade? O que pensaria dela quando revelasse o que viu? Por muito tempo a olhou com ódio, com receio depois de confessar que perdera a virgindade com Dick. Ele cometeu um erro, e pagou com acréscimo. Agora era hora de libertar sua dor, seu pesar e fazer com que sua mãe a observasse com respeito.

—Anne... —disse Sophia se levantando. Caminhou até ela, pôs a mão no seu ombro e apertou com ternura. Eu prometo que não vou julgá

la. Sei que está pensando sobre o que aconteceu entre nós no passado. Eu sinto isso aqui, no meu coração. Mas não é mais uma jovenzinha, mas uma

mulher inteira, e eu juro, pelo sangue que ambas temos, que não irei mais julgá-la, mas sim ajudá-la em tudo que puder.

—Tem certeza? —Perguntou sem olhar para ela.

—Totalmente.

—Ontem conheci um homem —disse ela depois de respirar. --

Tentei desviar o olhar, para não o notar, mas não consegui controlar algo tão básico quanto meus olhos. Talvez eu não devesse ter olhado tanto para ele...

possivelmente ele não teria me descoberto se.... -- Ela suspirou tristemente.

—E?

—E sonhei com ele. Uma música me tirou de uma cama que não era minha, andei em uma estrada desconhecida, vi aquele corvo e ele me levou para um prado. Havia uma fogueira... não queimava... eu toquei, entrei e....

—Ele saiu do fogo? Mostrou em seus olhos imagens do seu futuro? —Perseverou, virando-a para ela.

-- Não sei se era meu futuro, mas sei que tudo me assustou --

confessou.

—Oh, querida! —Sophia exclamou segurando-a com força. --

Chegou! Ele chegou!

V


—Bem, aqui me tem. O que diabos quer? -- Philip disse quando abriu a porta do escritório de Logan sem esperar ser anunciado.

—Boa tarde, obrigado por vir tão rápido. Desta vez, apenas quinze horas se passaram desde que lhe pedi para vir à minha residência --

disse estendendo a mão para seu amigo.

—Sou um homem muito ocupado, lorde Bennett —disse sarcasticamente enquanto apertava a mão forte e o abraçava com um irmão. ?Ou se não, pergunte a amante que deixei para vê-lo.

—Uma nova? ?Logan perguntou quando se sentou.

—Não me lembro do nome dela, mas sim, é nova. Essa vida sedentária me aborrece demais para ficar sempre com a mesma mulher... --

 

disse desabotoando os botões da jaqueta marrom.

—O dia que encontrar sua futura esposa, certamente que terá que suportar uma vida estável e virtuosa...

—Antes prefiro comer um rato vivo! —Exclamou Philip horrorizado. —O que aconteceria comigo sem o prazer do sexo? Ah, nem quero pensar nisso! —Exclamou divertido. Se recostou na cadeira, moveu as costas da direita para a esquerda para caber em um encosto tão pequeno e olhou para Logan. —Qual é a sua preocupação?

—Como sabe...? —Ele tentou dizer.

—Porque me chamou com urgência e porque seu rosto tem tantas sombras que parece um espírito errante. O que ocorre? Tem problemas na vida idílica de Riderland? Ou sua amante o expulsou do quarto dela?

—Terminei meu relacionamento com ela há algumas semanas atrás —ele disse enquanto pegava a caixa de charutos.

—Porque motivo? Não era mais tão carinhosa? Ela mostrou sua verdadeira personalidade? —Persistiu zombeteiramente.

—Queria consolidar o relacionamento e não aceitei. Ela sempre foi...

—Uma amante —disse Philip. —Muito poucas reconhecem a posição dada a elas. É por isso que nunca durmo com a mesma mulher duas vezes.

—Por acaso dorme uma? —Perguntou estreitando os olhos.

—Certo! —Giesler exclamou divertido. Uma vez que parou de sorrir, pegou um dos charutos que Logan oferecia, acendeu e soltou a fumaça calmamente. —O que há de errado? —Repetiu.

—Três dias atrás, depois da festa que meu irmão Roger fez em sua residência...

—Uma loucura, segundo ouvi -- interveio Philip.

—Foi convidado.

—Não pude ir.

—Porque não quis.

—Porque eu tinha outro arranjo mais interessante —explicou Giesler, soltando outra nuvem de fumaça.

—Continuo ou irá me explicar que arranjo foi esse?

—Mulheres e sim, pode continuar.

—Quando voltei da festa, o Sr. Moore veio aqui.

—O médico? Está doente? Por que não me contou? O que diagnosticou? —Philip gritou, arregalando os olhos e inclinando-se para a frente.

—Não estou doente, então pode ficar tranquilo —Logan assegurou-lhe esboçando um grande sorriso.

—Menos mal... —comentou com alívio. Só faltava ficar doente e ter sua irmã Valeria o dia todo ao seu lado falando sobre dever, lealdade e o futuro que o aguardaria sendo o barão.

—A razão pela qual o médico apareceu foi implorar para que eu levasse a primogênita de suas filhas com a tripulação em nossa próxima viagem.

—Por que pediu tamanha loucura? —Falou, erguendo as sobrancelhas loiras.

—Porque, de acordo com ele, uma maldição recai sobre ela que

afeta toda a família —explicou com uma voz cansada.

—Santo céu! Eu pensei que tinha ouvido todas as besteiras do mundo! —Exclamou Philip brincalhão. —Esse homem é realmente um dos melhores médicos de Londres? Porque, depois disso, começo a duvidar de seu grande julgamento... —acrescentou ao trocar o charuto de mão.

—Bem, acredite ou não, aquele pobre homem parecia muito convencido de suas palavras —disse Logan ao pegar o envelope que o Dr.

Moore lhe dera antes de sair. Fechou-o de má vontade e jogou-o na mesa. --

Me pagou adiantado —resmungou —e me deu uma foto da moça.

—Viu a foto? Sua imagem não está enfeitiçada? —Ele perguntou divertido.

—Não diga bobagem! Isso é muito sério... -- ele avisou. -- O Sr.

Moore quer se livrar da jovem o mais rápido possível.

—Mas... o que aconteceu para aquele pobre coitado alegar tal absurdo? Por acaso não pensou que usando a palavra maldição, a rejeitaria antes que terminasse a frase? —Ele retrucou, pegando o envelope. Olhou-o de maneira esquiva e observou que havia cerca de quinhentas libras dentro. Muito dinheiro para um médico. Isso só avisava que estava muito desesperado.

—Deduziu tanta loucura —enfatizou —porque os dois noivos de sua filha morreram.

-- Augen des Teufels[1]! -- Trovejou Philip engasgando com a fumaça do charuto e largando o envelope sobre a mesa como se estivesse queimando. —Os dois? Mortos? —Retrucou perplexo. -- E quer que nos acompanhe na próxima viagem? Se estivesse no seu lugar, teria chamado uma sacerdotisa para limpar a aura da minha casa... não percebeu que somos jovens demais para morrer? O que aconteceria se viajássemos com ela? Um polvo gigante nos atacaria? Ah, pobre Valeria! Quão triste seria quando seu irmão morresse entre os tentáculos de um polvo sem ter aceitado o baronato!

?Ele ironizou, incapaz de parar de rir.

—Quer levar o assunto com um pouco de seriedade? —Logan trovejou. -- Estamos falando sobre a reputação de uma mulher e daquela que assumido durante esse tempo.

—Eu levo, meu amigo, eu levo —continuou ironicamente.

—Não entendo como pode estar tão desesperado para acreditar que isso mudaria minha decisão -- disse se levantando. Colocou as mãos nas costas e começou a andar. -- Entendo que ele não pensou, nem por um momento, no problema que sua filha causaria no navio. Quando os homens estivessem em alto mar por um pouco mais de duas semanas... —Logan apertou os lábios. Não queria pensar sobre o que aconteceria se ocorresse uma fatalidade, ou o que ele poderia fazer naquele momento. Era melhor deixar sua mente em branco do que imaginar que um homem pudesse tocá

la... cortaria sua garganta no ato!

—Sim, não tenho dúvida de que eles se matariam pelo prazer daquela mulher —continuou zombeteiramente. —Acho que até eu participaria dessa briga. Sabe que eu não posso ficar muito tempo sem uma amante na minha cama...

—Feche essa boca agora mesmo! —Ele ordenou. —Ninguém irá tocá-la! Entendido?

Philip afastou a fumaça do charuto com a mão para poder observar melhor o amigo. Aqueles olhos azulados tinham mudado para uma cor tão escura que até uma noite tempestuosa no meio do oceano não poderia assustá-lo tanto. Meditou calmamente as palavras que iria dizer, mas, como não encontrara algo sensato ou sério, permaneceu em silêncio.

—Vou devolver esse maldito pagamento e deixar claro que não irei levá-la no meu navio —disse Logan depois de recuperar a atitude serena.

—Acho que é uma decisão muito sábia. Dessa forma, continua a manter a educação e a dignidade de um cavalheiro de sua linhagem e protege suas costas dessa maldição, no caso do médico não estar errado ...

—Não faço por isso! -- Ele gritou novamente.

—Então... por que está fazendo isso, meu amigo? —Insistiu. --

Existe algo que não me contou? Essa talvez seja a razão pela qual me fez sair do meu quarto sem dizer adeus à mulher com quem descansei esta noite?

—Antes de lhe dizer por que o fiz vir, gostaria de explicar o que John descobriu sobre essas mortes —disse Bennett, voltando para a cadeira, recostando-se e olhando para o amigo sem piscar.

—John? Ótimo! Isso está ficando cada vez mais interessante! --

Disse Philip, apagando o charuto no cinzeiro de vidro que Logan tinha em sua mesa. Estendeu a mão e encheu um copo de conhaque. Era muito cedo para beber, mas algo lhe dizia que precisaria se embriagar novamente para aceitar a conversa que manteria em seguida. —Por que diabos pediu ajuda àquele índio? Dúvida das minhas capacidades? Lembre-se que, antes de vigiar as suas costas, trabalhei com Borsohn na Scotland Yard. Ele poderia ter me informado o que aconteceu sem ter que pedir favores ao cão fiel de seu irmão.

—Não fique com raiva, Giesler, mas sabe que John é o melhor rastreador que já conheci e, além disso, não recebi um sinal de vida seu desde que desembarcamos. O assunto tinha prioridade absoluta —declarou rapidamente. O maior defeito que seu amigo poderia ter era o orgulho e, se ele não queria que sua amizade estivesse em perigo, teria que escolher suas palavras muito bem, de modo que uma questão tão pessoal não afetasse o relacionamento deles.

—Como bem sabe, tenho uma irmã muito irritante, e se eu não tivesse aparecido em casa assim que colocasse meus lindos pezinhos em

Londres, ela teria aparecido na minha residência gritando como um vendedor de peixe -- ele resmungou.

—Certo. É por isso que não queria incomodá-lo. Além disso, sei que Martin fica ansioso para vê-lo quando voltamos e também estou ciente de que a Sra. Reform poderia me mandar para a forca, se eu tirasse seus dias de folga —esclareceu Logan, finalmente esboçando um enorme sorriso. É claro que ele conhecia o caráter da Sra. Reform e não havia dúvida de que o sangue espanhol, que vagava em suas veias, era mais perigoso do que dez homens habilidosos no arremesso de facas. —É por isso que escolhi o John.

—E o que descobriu? —Disse Philip, aceitando a derrota.

A explicação foi tão convincente que não se sentiu magoado. Era verdade que seu irmão Martin esperava por ele toda vez que desembarcava. Por mais improvável que parecesse, durante os dias em que morava em Londres, ele deixava a universidade, onde lecionava aulas de matemática avançada, e conversava durante horas sobre o que acontecera durante sua ausência. Logicamente, para Martin descobrir uma nova fórmula com a qual encontrar o mesmo resultado era algo fascinante, tanto que seus olhos brilhavam. Já seus olhos só brilhavam desse modo quando uma nova amante se despia em seu quarto. Mas é claro, Martin Giesler não herdara o dom de seduzir mulheres, mas a capacidade de matá-las de tédio por que...

quem queria ouvir essas palestras sobre questões aritméticas quando

poderiam se esconder em um canto e satisfazer uma paixão repentina? E, por outro lado, havia Valeria... ela poderia esquecer o tema do baronato e da procura de uma esposa? Nunca! Sua irmã tinha esses dois temas gravados em sua mente e mal o cumprimentava, com sua efusividade usual, já perguntava... «Visitou nosso avô? Encontrou uma mulher? " «Não e não», respondia antes de ouvir os gritos ensurdecedores de Valeria e os conselhos amorosos que seu marido Trevor lhe oferecia.

—Seu primeiro pretendente foi o senhor Hendall —começou a explicar. ?Morreu depois de cair de um garanhão. De acordo com John, ele visitou um dos clubes de Hondherton antes de tentar retornar à sua residência.

—Bem, a única coisa que ouvi sobre Hendall foi que a sua empresa não prosperava como desejava e que a principal razão para essa destruição era seu amor pelo jogo, bebida e as companhias inapropriadas todas as noites —disse Philip depois de tocar sua barba loira incipiente.

—Sim, isso mesmo. John conversou com o Dr. Flatman e com um dos ex-funcionários de Hendall e ambos concluíram que ele ingerira muito Bourbon para controlar o cavalo que montava —Logan disse calmamente.

—Isso é chamado de imprudência ou estupidez da parte do estimado Sr. Hendall, então não tem nada a ver com a maldição que Moore fala. Pode me dizer quem foi o segundo pretendente? Estou ansioso para

conhecer a versão que o índio lhe deu —disse Philip com um tom inquisitivo.

Descansou as costas ligeiramente no respaldo da cadeira e cruzou as pernas compridas pelos tornozelos.

—Era o filho dos Condes de Hoostun —disse depois de respirar. —E toda Londres sabia que ele não nasceu com uma mente sensata, por isso seus pais o mantiveram escondido na residência. Embora o conde desesperado como era, vendo que seu fim estava próximo, temia por seu famoso título, caso não tivesse descendentes, e decidiu encontrar uma mulher saudável para ajudá-lo com seu propósito.

—Em suma, esse pretendente era um tanto demente e o conde exasperado pensava que o casando com a filha de um médico, não só ele fixaria a cabeça de sua prole, mas também poderia dar a ele uma prole normal

—resumiu Giesler. —Bom raciocínio, sim senhor. O que o matou?

—Infelizmente, depois que o noivado foi divulgado, ele decidiu limpar a arma e levou um tiro —disse Logan, irritado. —Embora tenha receio de que a versão correta tenha sido a de que ele não aguentou a pressão do casamento e decidiu encerrá-la ele mesmo.

—Uma vez que um acordo é feito, apenas a morte pode livra-lo dele —disse Philip antes de deixar escapar uma risada.

—Não é engraçado! —Logan gritou, se levantando e colocando as palmas das mãos sobre a mesa. —Ela acha que é a culpada por essas

mortes!

—Me desculpe excelência. Não queria zombar do sofrimento daquela jovem desventurada —disse Giesler com uma mistura de espanto e sarcasmo. —Foi uma impertinência de minha parte alegar tamanha insensatez. Imploro seu perdão.

Logan olhou para ele com raiva. Apesar dessas palavras, seu rosto não mostrava nenhum sinal de arrependimento. Em vez disso, ele expressava escárnio, o mesmo que queria fazer desaparecer com um bom soco de direita. No entanto, não o havia chamado para discutir, nem para se envolver em uma briga, mas porque precisava, mais do que nunca, da sua ajuda.

—Sinto muito... —disse depois de se acalmar. —Este tema me incomoda muito. Mas odeio a injustiça e me parece muito cruel que uma jovem carregue a morte de dois homens nas suas costas —acrescentou ele, sentando-se novamente.

—Aceito suas desculpas e espero que aceite as minhas —ele disse calmamente.

Logan assentiu levemente, admitindo o pedido de desculpas, enquanto Philip, sem deixar de olha-lo, tomava outro gole da bebida.

—Quero que me acompanhe até a residência dos Moore --

pediu. -- É por isso que o chamei com tanta urgência.

E naquele momento, o licor que Philip escondia dentro de sua

boca, saltou como se fosse água de uma das fontes que sua irmã tinha no jardim.

—O que disse? —Perguntou, enxugando os lábios na manga. --

Está sugerindo que o acompanhe até aquela casa onde o próprio Moore declara que há uma maldição? —Não disse que não quero morrer ainda? O

que pretende?

—Não há maldição —ele murmurou. —Nós dois deduzimos que foram incidentes infelizes. E a única coisa que pretendo é devolver esse bendito pagamento. —Ele indicou com o queixo o lugar onde estava o envelope.

—Não pode enviar Kilby? Certamente estará muito mais seguro do que nós —explicou como uma alternativa.

—Quero ir pessoalmente, Philip. Para mostrar a ele que não há maldição naquela casa.

—Kilby também pode enviar uma nota explicando que é um homem ocupado e....

—Não! Não farei isso! Pensaria que tenho medo dela!

—Ela? Quem? A viúva negra? Certamente já tem assumido...

—Vai me acompanhar? —Logan gritou com raiva.

—Então a razão pela qual me chamou foi, única e exclusivamente, continuar protegendo suas costas... —ele refletiu, tocando

sua barba novamente.

—De certo modo…

—O que está me escondendo, Logan Bennett? —Giesler perguntou, apertando os olhos. —Se não acredita nessa maldição, por que precisa da minha presença?

—Porque não seria apropriado aparecer desacompanhado em uma casa onde há cinco jovens casadoiras —disse por fim.

—Cinco! —Exclamou, arregalando os olhos. —Esse pobre homem tem que casar cinco mulheres? Essa é a maldição, amigo! Como pode ter tantas filhas?

—Sua irmã tem quatro —disse ele.

—Sim, e mais dois homens. Mas ela não terá nenhum problema em encontrar um marido. Reform será o problema porque não achará apropriado nenhum homem que tente se casar com elas. No entanto, estamos falando do Sr. Moore e da maldição. Embora já tenha me explicado que todas as mortes ocorreram de maneira racional, começo a duvidar... O que acontecerá se entrarmos nesse castelo mortal? Nós vamos morrer quando sairmos? Uma carruagem vai nos atropelar? Um raio nos atingirá, apesar de não ver uma única nuvem no céu? Ou pior ainda... —continuou falando enquanto se levantava e se dirigia para a porta, como se dentro do escritório de seu amigo não houvesse oxigênio suficiente para respirar. —Não pensou

que alguém poderia nos ver entrar naquela casa e espalhar o boato de que pretendemos cortejar uma dessas cinco mulheres?

—Vai expor mil desculpas para não ir? Me forçará a pedir ajuda a John? Quer que o informe que se recusou a me proteger porque tem medo de cinco meninas? —Rosnou. Philip Giesler era tão orgulhoso que não consentiria em ser substituído pelo índio em outra missão.

-- Amaldiçoo o índio, seu senso de honra e a miserável maldição! —Exclamou, abrindo a porta bruscamente.

—Isso é um sim?

—Que diabos está esperando? —Grunhiu, pegando a maçaneta como se quisesse arrancá-la. —Não tenho o dia todo.

—Obrigado —Logan disse depois de pegar o envelope e caminhar em direção ao seu amigo.

—Não me agradeça até eu voltar para casa vivo —disse ele antes de bufar como um dragão. —Espero não encontrar uma bruxa naquela casa ou terá que me levantar do chão.

—John me disse que são jovens adoráveis... cinco adoráveis mulheres que não são capazes de ferir nem uma pequena flor —disse sorrindo como uma criança travessa.

—Sim, amáveis e amaldiçoadas —Philip acrescentou antes de fechar a porta do escritório com um grande estrondo.

VI


Anne saiu da cama com o cabelo molhado. Três noites... O sonho não a deixava em paz e se repetia toda vez que adormecia. Fizera todo o possível para fazê-lo desaparecer. Até leu um dos livros de Mary! Mas nem mesmo enchendo a cabeça com dados clínicos e doenças mortais o manteve fora de sua mente. Pelo contrário, estava se tornando mais real e o sentia com tanta intensidade que acordava banhada em suor pela paixão que vivia nele. Não via mais nos olhos do homem o que aconteceria, segundo sua mãe, no futuro. Desde a segunda noite, ambos acabavam nus no chão daquele pequeno prado e se entregavam a um desejo sem precedentes.

Perturbada, esfregou o rosto, se levantou e foi a sala de banho. Não podia perder muito tempo, sua mãe apareceria a qualquer momento para perguntar se o corvo a visitara novamente. Como não queria mentir, responderia sim e ela sairia com um sorriso de orelha a orelha. No entanto, a felicidade de sua mãe lhe causava uma dor terrível, porque não tinha sido capaz de explicar que o homem que aparecia naquele sonho era um parente do Marquês de Riderland. Como um aristocrata poderia ter sangue cigano? Um primo, sobrinho ou o que quer que o relacionasse com o marquês, não teria sangue vermelho nas veias, mas azul. Ainda admitiria que a maldição estava prestes a terminar se ela descobrisse quem ele era?

Possivelmente não. A ilusão que a mãe mostrara durante o dia se transformaria em agonia e Elizabeth sairia de casa procurando o pretendente ideal. As únicas que pareciam impassíveis a essa esperança eram suas outras irmãs, que continuavam com suas vidas rotineiras após a feliz reunião de família.

Ela abriu a torneira, tirou a camisola e deixou o corpo relaxar em um banho quente de espuma. Algo que uma vez pareceu maravilhoso para ela, já não dava prazer. Não estava contente com nada e era esmagador não encontrar alguma paz onde antes havia encontrado. Ensaboou o cabelo e enxaguou sem confirmar se estava brilhante. Retirou-se da banheira, vestiu o robe de seda preta e, quando saiu da sala de banho, encontrou Sophia debruçada sobre Mary.

—Ela ainda está dormindo como um tronco -- disse com raiva. ?Cobri o nariz dela para ver se acordava, mas começou a respirar pela boca.

—Ontem leu outro livro até... -- ela tentou dizer.

—Tanto faz! —Interrompeu. —Não vou deixar que passe seus anos vivendo desse jeito! —Exclamou com raiva. —A partir de hoje, Shira removerá as cortinas da janela —apontou com o dedo para o lugar onde a janela estava —de modo que alguma luz entre no quarto. Vamos ver se, dessa forma, ela entende que não pode dormir até a hora do almoço —acrescentou,

enquanto caminhava em direção a ela. —Mas não vim aqui para ficar com raiva... —suavizou seu tom de voz. -- Queria saber se sonhou com ele hoje.

—Sim, mãe. O corvo também apareceu essa noite —respondeu, fixando os olhos no chão, para não mostrar o constrangimento causado por falar de algo tão íntimo com sua mãe.

—Maravilhoso! —Exclamou dando-lhe um beijo na bochecha. --

Isso significa que aparecerá em breve e que nossas tristezas estão prestes a terminar —continuou em uma voz satisfeita.

—Se diz... —ela murmurou.

—Não confia em minhas palavras? Duvida de mim? —Como sua filha não levantou o rosto, ela colocou um dedo sob o queixo e o levantou. --

Anne, se lembra de onde eu venho? Está ciente do sangue que eu tenho?

—Sim —ela disse, olhando-a nos olhos. Nunca, em seus quase vinte e cinco anos de vida, havia visto tanto brilho naquele olhar verde.

—Querida, esta noite, antes de ir para a cama eu orei a Morgana e pedi a ela que me levasse para o seu sonho.

—O que disse? —Perguntou se afastando dela e arregalando os olhos.

—Mas ela não me presenteou esse momento —disse, sorrindo de orelha a orelha. —A criadora nunca interrompe a intimidade de um casal.

E Anne pôde respirar com tranquilidade.

—O que mostrou?

—Morgana me ofereceu uma bela foto da família, a mesma que Madeleine comentou naquela tarde. Pela primeira vez em vinte e cinco anos, não havia escuridão sobre nós, mas luz.

—Tem certeza? Realmente acha que o homem que vejo dormindo vai nos livrar de tudo isso?

—Por que desconfia? Está escondendo algo importante de mim? —Perguntou, apertando os olhos.

—Não, mãe.

—Então, com o que está preocupada? Pensa que estou tão desesperada que sou capaz de provocar essas visões?

—Não! Nunca faria uma coisa dessas! —Disse rapidamente.

—Por favor... —Mary disse em uma voz sonolenta. —Meu cérebro precisa de descanso...

—Seu

cérebro

precisa

de

umas

palmadas!

--

Sophia trovejou virando-se para a segunda filha. —Levante-se de uma vez! Não se lembra que esta manhã nós temos que sair?

—Vai me comprar mais livros? —Perguntou sem tirar os lençóis do rosto.

—Claro que não! —Exclamou a mãe para a cama, na qual ela só podia ver uma colcha rosa e os tubos metálicos que Mary havia enrolado em

seus cabelos negros.

—Então... me deixe dormir!

—Mary Moore, quero que afaste essas cobertas agora mesmo! --

Sophia ordenou como se ela fosse do alto escalão do exército.

—Mãe, reconsidere sua decisão —Anne pediu quando a viu se aproximar dela. ?Acho que seria mais apropriado não nos acompanhar nessa saída familiar. Esqueceu o que aconteceu da última vez que a forçou a se juntar a nós?

Sophia olhou para a primeira filha, depois para a segunda e franziu a testa. Claro que ela se lembrava! Não só ela, mas qualquer habitante de Londres! Como poderia esquecer que ela bateu na carruagem do filho de um lorde com os punhos, porque, depois de uma conversa acalorada sobre uma descoberta médica, ele disse a ela que deveria se concentrar em manter a boca fechada? Nem mesmo as quatro xícaras de tília que tomou quando retornaram acalmaram o constrangimento que ela e o resto de suas filhas sofreram.

—Tudo bem, —disse. —Até que sua situação seja esclarecida, é melhor ficar longe de nós.

—Obrigada. Fez o correto.

—Se diz... —murmurou. -- Vou esperar na sala de costura. Preciso verificar certas coisas antes de sair.

—Minhas irmãs estarão lá? —Queria saber enquanto seguia em direção ao guarda-roupa.

—Não, Elizabeth está na estufa, ela me disse que precisava plantar algumas sementes que o seu pai trouxe ontem à noite. Madeleine ajuda a cozinheira com uma nova sobremesa e Josephine disse algo sobre tentar limpar o cano de um instrumento —explicou sem tirar os olhos de Mary.

—Não demorarei a descer —assegurou Anne, apertando os lábios para não rir quando ouviu a palavra instrumento. Sua mãe não percebia que o instrumento era outra arma? Apesar da reprimenda que recebeu depois de ter perfurado o vidro da sala de descanso, ela ainda estava determinada a colocar em suas mãos o que era proibido.

—Antes de descer preciso que faça duas coisas.

—Que deseja? —Perguntou se virando para ela.

—Quero que hoje use o vestido esmeralda —a informou.

—Não é muito elegante? Lembre-se que compramos para uma ocasião especial. —Tentou dissuadi-la.

—Se aquele homem está prestes a chegar, quero que note sua beleza e não os decotes que Elizabeth exibe.

—Mas...

—Não há discussão possível sobre esse assunto! Entendido? --

Assegurou.

—Sim mãe, o vestido esmeralda. Qual é a segunda coisa que quer me pedir? -- Perguntou Anne com resignação.

—Antes de sair, lembre à sua querida irmã que, mesmo que não estejamos em casa, ela tem que descer arrumada. Se ousar deixar esse quarto de camisola... será punida para sempre! -- Sophia apontou antes de sair do quarto.

?Nem pense em repetir, ?disse Mary, virando-se no colchão. Já ouvi isso. Eu e qualquer um que esteja a cinco quilômetros de distância.

—Mas ela está certa Mary. Não é apropriado que saia de camisola. Se tiver dificuldade em se vestir antes de tomar o café da manhã, peça a Shira para subir com ele.

—Acho que é uma boa ideia... irei deixar o quarto de camisola e gritar para ela do alto da escada para trazê-lo.

—Mary...

—Faça-me um favor, Anne. Vista-se em outro quarto. Minha cabeça dói depois de ouvir tanto absurdo.

—Acha que a mamãe vai esquecê-la? Realmente acredita que poderá evitá-la para o resto da sua vida?

—No momento, só quero evitá-la hoje... amanhã, amanhã me preocuparei em continuar lutando contra ela.

Anne olhou para ela sem piscar, maravilhada com a atitude desafiadora de Mary. Não entendia como era capaz de continuar dormindo depois de ouvir as ordens de sua mãe. Até o mais feroz soldado tremeria! No entanto, ela não parecia se importar com nada além de seus livros. Depois de suspirar profundamente e rezar para que um dia mudasse de comportamento, virou-se para o guarda-roupa, pegou o vestido que a mãe indicara, um lenço laranja e foi na ponta dos pés até a porta.

—Se encontrar Shira, diga a ela que estou doente, assim não abrirá as cortinas —ela pediu, se virando de novo na cama.

Sem responder a esse pedido, Anne saiu do quarto, fechou a porta e, quando estava caminhando em direção ao quarto das gêmeas, encontrou Shira.

—Senhorita! —Exclamou horrorizada ao ver que levava nas mãos as roupas escolhidas para sair. -- Por que não esperou por mim?

—Bom dia, Shira. Mary está doente e não quero incomodá-la.

—Doente? O que tem dessa vez? —Retrucou, colocando as mãos na cintura.

—Febre, eu acho...

—Bem, a senhora ordenou que abrisse as cortinas e sabe que nunca desobedecerei a sua mãe.

—Pode esperar, por favor, até nós estarmos fora de casa? Não

quero ouvir mais gritos por hoje —pediu.

—Sua mãe indicou que o faça depois de ajudá-la a se vestir, então...

—Entendo —disse, entregando suas roupas para Shira.

Uma vez que chegaram ao quarto das pequenas, a donzela fez um grande esforço para deixá-la como sua mãe havia indicado. Apertou tanto o espartilho que seus seios pareciam tão grandes quanto os melões que comprava no mercado. O que ela queria? Que lutasse contra a beleza de Elizabeth? Então, era uma batalha perdida. Onde a terceira das Moore tinha uma altura ideal para ser mulher, ela superava uma cabeça. Seus olhos eram castanhos e seu cabelo era tão escuro como a noite. Elizabeth herdara os olhos azuis e os cabelos dourados como ouro. Além disso, quando andava mal movia o tecido da saia, Eli parecia uma dançarina de balé. Compará-la?

Superá-la? Não, poderia se comparar a ela ou superá-la. A única coisa em que ela se destacava era aquela paixão selvagem com a qual nasceu. Elizabeth, ao contrário, se comportava descaradamente, mas no momento da verdade valorizava sua virgindade acima de tudo.

—Como sua mãe previu, esse vestido se encaixa perfeitamente --

recuou Shira quando terminou de arrumá-la.

—Ainda não estou satisfeita, mas é verdade que é tão bonito que não notarão a minha altura, mas o brilho de seda —disse, olhando para si

mesma no espelho.

—Se subestima, senhorita, é uma mulher muito bonita, tudo o que precisa fazer é confiar em si mesma.

—Obrigada Shira —agradeceu dando-lhe um beijo enorme na bochecha.

—Desça o mais cedo possível, sua mãe está esperando e tenho que deixar a luz entrar em seu quarto. Espero que sua irmã não decida me jogar o último livro que tem debaixo do colchão.

—Se o fizer, feche a porta, porque é enorme! —Exclamou entre risadas.

Depois de relaxar, caminhou na ponta dos pés, para que Mary não a ouvisse antes que Shira abrisse a porta, parou no topo da escada e olhou para baixo. De repente, alcançou o corrimão e o agarrou. O que acontecia com ela? Por que ao olhar para a porta seu coração começou a bater tão rápido? Por que seus joelhos queriam tocar o chão? Sufocada e assustada com essa mudança repentina, ela desceu lentamente as escadas sem largar o corrimão. No entanto, quanto mais perto chegava da entrada, mais sua fraqueza aumentava e seu batimento cardíaco ecoava em seus ouvidos como as balas das armas de Josephine.

—Morgana... —se dirigiu pela primeira vez à mãe sobre quem Sophia falava —o que acontece comigo? O que quer me dizer?

Depois de descer o último degrau, emaranhou o lenço laranja nas mãos e respirou com dificuldade. Queimava. Aquela peça de roupa que no andar de cima estava fria pela temperatura ambiente, na frente da porta, ardia.

Desenrolou-o de suas mãos, pegou-o com as pontas dos dedos e o arejou. As quatro borlas costuradas nos quatro cantos se moveram quando o sacudia e, de repente, um halo de luz cruzou aquele lenço. Assustada, mais do que nunca, o agarrou com força e, sem diminuir o passo, foi a sala de descanso. Quanto mais cedo se apresentasse à mãe, mais cedo tudo o que estava acontecendo desapareceria.

—Está ótima! ?Sophia exclamou ao vê-la. —Mas não quero que use isso —acrescentou, apontando para o lenço laranja que sua filha estava segurando firmemente em sua mão direita. —Não vê que não é apropriado?

—Gosto dele... —sussurrou. Como havia imaginado, assim que entrou na sala, seu corpo recuperou a normalidade e o lenço parou de queimar.

—É horrível! -- Insistiu sua mãe. -- Não gosto da cor, nem do tecido nem das borlas. Onde comprou? Ultimamente faz coisas sem me consultar...

—Comprei no mesmo dia em que Elizabeth comprou aquele chapéu de flores —explicou, caminhando em direção a ela.

—No estabelecimento da Sra. Jancks? Ela não mostrou outros

menos... laranja?

—Oh sim! Mas nenhum me agradou tanto quanto este... —ela comentou enquanto o colocava em seus ombros.

—Nem pense em sair com isso, Anne Moore! Ou deixa na cadeira ou...!

Não conseguiu terminar a frase de aviso porque alguém bateu na porta. Sophia olhou para a entrada da sala, depois para a filha e respondeu.

—Entre.

—Senhora, me perdoe por te interromper —disse Shira, mostrando duas bochechas vermelhas no rosto —mas tem uma visita.

—Uma visita? —Perguntou Sophia levantando as sobrancelhas.

—Para nós?

—Não Senhora. Dois cavalheiros vieram procurando pelo Senhor. No entanto, quando os informei que não estava em casa e não chegaria até o final da tarde, um deles insistiu...

—Em que? —Sophia exigiu saber.

—Em conversar com a senhora —afirmou sufocada.

—Comigo? —A sra. Moore perguntou perplexa.

Por que queria falar com ela? O que poderia ser tão urgente para não esperar pela chegada do marido? Quem seriam esses cavalheiros? Sophia respirou fundo, empurrando as perguntas e a inquietação que causavam a ela.

Teria que adotar o comportamento da esposa de Randall, o médico mais admirado de Londres, e receber aquelas visitas inesperadas como ditava o protocolo. Caminhou lentamente até o meio da sala, espalmou no vestido de seda bege, levantou o queixo e disse para sua governanta:

—Faça-os entrar. Irei recebê-los —disse com determinação.

—Tem certeza? —Shira perguntou, de olhos arregalados. --

Posso dar uma desculpa razoável. Uma senhora com suas filhas, sem a companhia do marido...

—Estou —disse Sophia, lançando um olhar furtivo para a mais velha de suas filhas para que ela pudesse ficar ao seu lado e adotar a postura adequada para receber os visitantes.

—Quem serão? —Anne perguntou olhando para a porta. —Por que insistem em falar com a senhora e não retornam quando o papai estiver?

—Assim que eles aparecerem por aquela porta, descobriremos --

declarou Sophia solenemente.


***


Shira, depois de confirmar que mãe e filha haviam se colocado no lugar certo e adotado a postura perfeita, afastou-se da entrada, voltou ao salão e informou ao homem insistente que a sra. Moore os atenderia naquele

momento.

—Me acompanha? —Logan perguntou para Philip, que tinha dado um único passo em frente e não tinha a intenção de dar nem um mais.

—É seu problema, não meu. Além disso, em nosso acordo não há referência sobre protegê-lo de uma dama amaldiçoada —disse Giesler.

—Vai me deixar sozinho? Não quer descobrir como é a mãe dessas cinco filhas? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas.

—Não quero saber nada sobre nada. Tudo o que estou tentando fazer é salvar minha pele enquanto devolve esse bendito envelope. Além disso, se me encontrar em perigo, esta área da casa é o local ideal para sair sem olhar para trás —declarou Philip depois de estudar com precisão o interior da casa dos Moore.

Enquanto seguiam para a residência, pensou em como seria a casa e seu entorno. Para sua paz de espírito, não encontrou nada de estranho. A residência era bastante espaçosa e iluminada. Aquela escuridão que tinha visto em sua mente não era real. A luz do dia entrava pelas janelas do primeiro andar e alcançava os vasos cheios de flores colocados em ambos os lados da escada que se comunicava com o segundo andar. A construção desse segundo andar era muito parecida com a sua. Um amplo patamar, uma escadaria de cerca de quarenta degraus de mármore claro, uma grade de madeira escura e, atrás daquele amplo patamar, havia duas galerias; uma

levava para a ala direita e a outra levava para a esquerda. Também havia percebido que do lado de fora, no grande jardim, uma pequena estufa de vidro fora construída. Tudo isso lhe dizia que a família Moore, apesar dessa maldição que supostamente caía sobre eles, era uma família razoavelmente rica; do contrário, não teriam um lar tão semelhante ao de um aristocrata.

—Está bem. Se algo assustá-lo, grite e virei em seu auxílio --

Logan disse, achando graça antes de começar o caminho que a criada apontava para ele.

Giesler o observou até que estava na frente da porta e recuperou o fôlego quando o viu endireitar o casaco, adotar uma postura rígida e confirmar que o envelope ainda permanecia no bolso direito. Naquele momento, não o invejava. A única coisa que sentia por seu amigo era misericórdia. O pobre tolo foi para a sala onde estava a mãe das meninas amaldiçoadas. Só esperava que ele saísse de lá inteiro e.... vivo.

Logan respirou fundo, pegou a maçaneta, a girou e, quando deu um passo à frente, congelou. Tinha pensado nisso. O pensamento cruzara sua mente mil vezes enquanto se dirigiam para a residência Moore, mas uma coisa era a atitude que adotara durante aquela imagem mental, na qual controlara perfeitamente seu estranho desejo por ela, e outra bem diferente era encontrá-la de uma maneira real. Se na festa, naquele vestido laranja, ela já parecia a mulher mais bonita de Londres, vê-la ali, no meio da sala,

esperando sua chegada com aquele vestido esmeralda o deixara tão impressionado que teve que chamar sua razão para poder dar mais um passo em frente.

—Bom dia, Sra. Moore. —Ele olhou para a esposa do médico, fazendo um grande esforço para parar de observar a jovem, que, ao vê-lo, empalidecera. —Sou o visconde de Devon e pretendia falar...

Logan não terminou a frase porque nesse momento correu em direção a Anne. A jovem, depois de dar o segundo passo, começou a vacilar.

—Anne! —Sophia exclamou quando viu como sua filha estendia uma mão para ela, para evitar uma queda. —Anne! O que há de errado? --

Gritou desesperada.

E, justamente quando Anne estava no meio desse colapso para cair, quando o seu corpo ia bater no chão, Logan chegou a tempo de pegá-la e erguê-la em seus braços.

—Pelo amor de Deus! —Sophia gritou, imitando as palavras que o marido usava quando alguma coisa o deixava perplexo.

Não sabia o que a chocava mais, se o desmaio inesperado Anne ou como o homem a segurava. Suas mãos grandes e poderosas se agarraram ao vestido de Anne de um jeito tão possessivo, tão rude, que as pontas daqueles dedos perfurariam a roupa da filha e acabariam criando marcas em sua pele.

—Madame... —Logan começou a dizer colocando a cabeça da jovem em seu tórax, sentindo o hálito de sua respiração acariciando seu peito e como seu coração respondia àquelas respirações. —Onde posso…?

—Lá! —Apontou o sofá que o marido utilizava para cochilar enquanto ela costurava.

Com um passo firme, Bennett foi até o lugar que a Sra. Moore indicara e, com muita gentileza, colocou Anne no sofá.

—Shira! —Gritou Sophia enquanto corria para a porta. --

Shira! Repetia desesperada.

—Senhora? —Perguntou, aparecendo quando Sophia ia sair da sala.

—Pegue os sais! —Ordenou. —Anne sofreu um desmaio.

E naquele momento, um grito veio da entrada.

VII


Ele sabia amaldiçoar em muitos idiomas, todos aqueles que aprendera desde que começou a ler.

Quando notou que seu rosto estava aquecido pela luz que entrava pela janela, Mary cobriu os olhos com o antebraço direito e gritou horrorizada. Por que as cortinas estavam abertas? Anne não explicou à Shira que ela não deveria fazer isso porque estava doente? Não acreditou nela? Sua mãe continuava a impor seus desejos? Ninguém na casa entendia que ela deveria descansar depois de passar uma noite enchendo seu cérebro com uma sabedoria exaustiva?

-- Für alle Übel der Welt[2] ! —Gritou depois de puxar o lençol de seu corpo como se em vez de ser feito de algodão ele estivesse cheio de cardos espinhosos. —No dia em que tiver minha própria casa, ordenarei que deixem o quarto no escuro até eu acordar -- disse, emburrada, enquanto colocava os pés no chão. -- E miserável de quem ousar desobedecer a minha ordem!

Levantou-se e, como de costume, caminhou até a porta descalça, de camisola e com aqueles rolos nos cabelos que Shira a forçava a usar antes de dormir. Quando a mão dela tocou a maçaneta, sorriu de orelha a orelha, olhou em direção a janela, para confirmar que o desafio que faria era uma

resposta para a batalha que sua mãe começou ao puxar as cortinas, e abriu a porta. Com uma atitude confiante e corajosa, porque imaginara que todos haviam ido às compras, caminhou pelo corredor sem se preocupar e bocejando. Um café. Ela precisava de um café antes de aguentar a árdua tarefa de se lavar, vestir e pentear o cabelo.

Com os olhos fechando e abrindo, pois, a sonolência não desapareceria até que tomasse o primeiro gole de café, pensava sobre a diferença entre as cinco irmãs ao acordar. Anne pulava da cama, entrava na banheira e desfrutava de um longo banho de espuma. Elizabeth não saia do quarto sem estar asseada, vestida e, claro, perfeitamente penteada. Se a curvatura do lado esquerdo não se ajustasse às dimensões e ao laço exato, de modo que a ponta do cabelo tocasse levemente a pele de seu enorme decote, voltava para o quarto e não saía até conseguir. Josephine tinha que fazer seus exercícios matinais. Claro, esses exercícios não eram usuais em uma mulher. A quarta filha jogava facas em uma pintura que ela escondia debaixo do colchão, no mesmo lugar em que mantinha aquela meia dúzia de punhais com os quais ela praticava. Se verificasse que sua pontaria não tinha melhorado desde a noite anterior, se asseava, vestia as roupas que sua mãe odiava, descia, tomava café da manhã e saia para o jardim com a nova arma em suas mãos. Madeleine... a pequena era de outro mundo. Toda vez que se levantava, ela mostrava um enorme sorriso no rosto. Tudo a fazia feliz, nada

a incomodava e ela se sentia muito à vontade... em casa. Seu rosto angelical desaparecia quando tinha que sair de casa. E por outro lado, estava ela, que precisava de uma boa xícara de café para entrar na banheira porque, enquanto suas irmãs desfrutavam de um banho quente, ela ficava em alerta no caso de, em algum momento, a caldeira a gás emitir ruídos estranhos, como aconteceu com Lorde Fhautun antes de ele sair disparado junto com a banheira.

Em suma ... cinco filhas, cinco personalidades.

Antes de virar à esquerda para se colocar no patamar do segundo andar, ela coçou a bunda por cima da camisola e um enorme bocejo fez com que fechasse os olhos e abrisse tanta boca que parecia a mandíbula de uma baleia. Com os olhos ainda fechados, ela estendeu a mão que havia tocado sua nádega ao corrimão e começou a descer as escadas até ouvir algo parecido com um grunhido. Surpresa, ela juntou os lábios, abriu os olhos e....

gritou com toda a sua força.

—O que está fazendo aí parado? Quem o deixou entrar?

?Perguntou, quando terminou de gritar, para o homem que estava parado na porta, olhando para ela com uma expressão de medo e se aproximando da porta, como se precisasse confirmar que ainda estava perto da saída.

-- Eine Hexe! -- Philip exclamou, incapaz de tirar os olhos daquela imagem aterrorizante. O que era aquilo que via? Um fantasma? Um diabo? Que criatura da natureza seria? O que quer que fosse, tinha que sair

dali o mais rápido possível, porque, pelo que tinha na cabeça, deduzia que era parente da deusa Medusa e poderia transformá-lo em pedra a qualquer momento.

—Me chamou de bruxa? —Mary explodiu irritada ao ouvir como ele a chamara em alemão. —A mim? —Naquele ataque de raiva ela colocou as mãos no cabelo, rapidamente desfez os rolos de metal que tocava lançando-os com toda a força que sua raiva lhe dava. —Não sou uma bruxa pedaço de asno! —Continuou gritando irritada, jogando os bobes nele como se fossem dardos.

—O que diabos está jogando em mim, bruxa? —Philip perguntou, movendo-se da direita para a esquerda, para que o que ela estivesse jogando não o atingisse. —Quer me transformar em pedra?

—Em pedra? -- Agora sim que não podia ficar com mais raiva. Ele a estava comparando a Medusa, a deusa que, através dos seus olhos, transformava as pessoas em pedra? Dando um puxão forte em seus cabelos, ela conseguiu tirar mais de cinco rolos de metal de uma só vez e atirou todos contra aquele ingrato. -- Vai saber o que significa se tornar uma pedra, titã desgraçado! Arsch! Dumm[3]!

—Mary Moore! —Exclamou Sophia, vendo o que a segunda de suas filhas estava fazendo. —Chega!

—Não! Nunca vou parar porque esse asno me chamou de bruxa!

A mim! Na minha própria casa! —Gritou com tanta raiva que as veias de seu pescoço pareciam as cordas que eles usavam na Idade Média para enforcar os ladrões.

E naquele momento Josephine veio em socorro, segurando com força a última espingarda que seu pai lhe dera. Se colocou entre sua irmã e o estranho, levantou o cano e apontou para o peito grande.

—Saia desta casa se quiser continuar vivo porque, mesmo sendo uma mulher, posso puxar o gatilho e ter uma bala atravessada no seu coração

—avisou.

—Josephine Moore, abaixe essa arma agora mesmo! —Sophia gritou sufocada, aturdida e prestes a se tornar a bruxa que nomeara Mary.

E como não há dois e sim três, Madeleine correu da cozinha quando ouviu tantas vozes. Mas quando viu um homem de tal tamanho na porta, sua irmã Josephine apontando a arma para ele, Mary na escada de camisola, puxando os bobes, e sua mãe tentando colocar a paz na situação, ela parou a corrida, se virou e abriu a porta da sala de descanso, o lugar ideal para se esconder. No entanto, também havia pessoas na sala. Madeleine arregalou os olhos, levou a mão direita à boca e gritou ao ver que um homem, que beijava Anne até que o interrompeu, virou a cabeça para ela e a olhou sem piscar.

—Já... está! Veio...! Maldição! Ele... —Ela voltou para a cozinha,

gritando entre soluços.

Sophia ficou a cinco passos da sala e a sete de onde estava aquele cavalheiro loiro. Olhou para a esquerda e bufou enquanto observava Madeleine correndo e gritando palavras sem sentido. Então ela voltou os olhos para Josephine. Ela ainda não havia cumprido sua ordem e continuava a apontar para o peito daquele cavalheiro hercúleo cujo rosto estava mais branco do que o da menina assustada. Por que Morgana lhe oferecia uma situação tão absurda? Deveria passar por esse calvário para encontrar a paz? Não era normal o que acontecera em menos de dois minutos: Anne desmaiara ao entrar aquele cavalheiro que não pôde nem se apresentar, Madeleine tinha visto algo naquela sala que a desequilibrara, Josephine ainda com a arma nas mãos, apontando o peito do homem que não conseguia afastar os olhos de Mary. Se alguma vez pensou que os espetáculos que sua segunda filha oferecia nas reuniões médicas eram bastante humilhantes para ela, estava errada. Aquilo superava tudo o que tinha visto em sua vida!

—Josephine Moore, eu disse, abaixe a arma! —Ela repetiu com mais energia e desespero.

—Mãe, eu prometo que vou fazer isso assim que esse homem afastar o olhar de Mary. Caso continue a observá-la dessa maneira, descobrirá que sob a camisola ela está nua —Josephine exclamou.

E naquele momento Mary gritou novamente. Josephine continuou

apontando para Philip e, apesar de ouvir o aviso de quem segurava a arma, não desviou o olhar da mulher, a quem chamaram de Mary, tentando descobrir que figura feminina teria a diabólica Medusa.

—Vá agora para o seu quarto, Mary Moore! Espero que isso a ensine a não descer sem se arrumar —explodiu Sophia. —Eugine! --

Chamou a cozinheira.

Mas Mary não subiu, ela ficou lá, petrificada pelo constrangimento, contemplando furiosa como o atrevido estava procurando o ângulo perfeito para descobrir o que estava escondido sob a longa camisola.

—Sim senhora? —Disse rapidamente a criada, que, antes do burburinho que se formara em um piscar de olhos na casa pacífica, abandonou suas tarefas para ir até a entrada.

—Faça para Madeleine um chá calmante e que não saia da cozinha até que tudo isso esteja sob controle —disse sem tirar os olhos de Josephine.

—Sim, senhora —disse antes de se virar e procurar a filha mais nova.

—Shira! —Chamou a governanta.

—Estou aqui, senhora —respondeu às costas de Sophia.

—Dirija-se à sala de estar e deixe que Anne inspire os sais para ver se ela acorda imediatamente. Não saia de lá até eu limpar toda essa

bagunça porque o cavalheiro que queria falar comigo, continua sozinho com ela —disse seriamente.

—Agora mesmo —Shira respondeu, dando passos rápidos para a sala.

—Se não abaixar a arma, Josephine, prometo que não terá uma enquanto estiver respirando. Juro pelo meu sangue que as aulas de esgrima e as escapadas para o campo com o seu pai irão acabar —ameaçou sua quarta filha.

—Mãe... —ela disse, abaixando a arma. —Esse homem…

—Senhor! —Sophia a corrigiu. —Ele é um homem que apareceu em nossa casa para procurar seu pai e.... como o trataram? —Ela gritou, olhando para Mary e depois para Josephine. —Que imagem minhas filhas ofereceram? É assim que expressam a educação que com tanto esmero demos às duas? -- Persistiu em voz alta.

Josephine, descobrindo a extensão da raiva materna e assustada com as repercussões que teria, decidiu pedir desculpas antes que sua mãe pegasse todas as suas espadas, facas, rifles e os entregasse ao primeiro ferreiro que passasse pelos arredores de sua casa. Ela deu dois passos em direção a Philip, abaixou a arma e estendeu a mão.

—Desculpe por apontar a arma e por querer atirar no senhor. Mas, como entenderá, não foi correto olhar para a minha irmã desse

jeito —ela esclareceu com orgulho. —Só fiz o que qualquer homem faria no meu lugar.

—Desculpas aceitas, senhorita Moore e acredite em mim eu a entendo perfeitamente. —Aceitou uma saudação tão masculina. --

Certamente eu teria reagido como a senhorita se um estranho entrasse em minha casa e olhasse com atrevimento o corpo seminu da minha irmã --

acrescentou, ainda incapaz de afastar os olhos de Mary Moore e lhe dar um sorriso leve e sedutor.

Depois que ele a perdoou, Josephine se virou, olhou para a mãe, assentiu, colocou a arma no ombro direito e voltou para o lugar de onde havia saído com um passo militar.

—Mary... —avisou sua mãe quando viu que ainda estava no alto da escada e tinha mais alguns cilindros de metal na mão.

—Nunca me desculparei com um sujeito rude! —Gritou, se virando para subir as escadas.

Mas justo quando chegou ao patamar, quando apenas devia sair pelo corredor da esquerda para ir ao seu quarto, olhou de lado para o homem e seu corpo se encheu de raiva. Ele estava olhando seu traseiro? Aquele grosseiro, mal-educado e desbocado tinha os olhos fixos na sua bunda? Respirou fundo, lançou um olhar assassino e, depois de jogar outro daqueles rolos metálicos que segurava na mão direita, correu para seu quarto.

Assim que a calma reinou no local, Sophia respirou fundo, esboçou um largo sorriso, caminhou em direção ao cavalheiro que suportara estoicamente aquela situação desastrosa, estendeu a mão e disse:

—Bom dia senhor…

—Giesler —disse Philip, escondendo na palma da mão esquerda o último rolo que a bruxa morena de olhos azuis jogara nele, depois de descobrir que ele não desviou o olhar do seu traseiro.

Aceitou a mão dela e deu-lhe um beijo casto nas juntas.

—Bom dia, Sr. Giesler. Sinto esse alvoroço, espero que possa esquecer facilmente. Minhas filhas são meninas muito calmas e sensatas --

ressaltou.

—É claro, Sra. Moore. Testemunhei o bom senso do qual fala e devo parabenizar a senhora e seu marido pela educação erudita que elas estão mostrando.

—Sarcasmo, Sr. Giesler? —Sophia disparou, erguendo a sobrancelha.

—Completamente, senhora —disse com um sorriso que cruzou seu rosto.

—Quer me acompanhar até a sala? Exceto pelo desmaio da minha primogênita, certamente será um lugar menos perigoso.

—Obrigado pelo convite, mas, se não se importar, continuarei no

corredor, perto da saída, para o caso de suas queridas filhas quererem me mostrar de novo aquelas atitudes tão tranquilas e delicadas que ensinou —ele disse tentando não olhar para cima, onde a bruxa dos rolos de metal tinha saído.

—Como quiser —Sophia disse, estreitando os olhos para descobrir para onde os do Sr. Giesler estavam se dirigindo. «Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente combater os sentimentos que esse homem despertará nela a partir do momento em que se encontrem pela primeira vez», lembrou. Se virou, olhou para cima, confirmando que Mary não estava, endireitou as costas, adotando a atitude mais digna que poderia ter naquele momento e retornou à saleta. Ainda tinha que resolver a questão mais importante, quem era aquele homem e o que queria.


***


Uma vez que a deitou no sofá que a Sra. Moore apontara, Logan se forçou a manter as mãos longe da jovem. Por que agia assim? Por que todo o seu ser o incitava a não se afastar da jovem e a guardá-la como se nada no mundo importasse a não ser ela? Atordoado por aquele súbito desejo de proteção, mesmo acima de sua própria vida, ele deu um passo para trás.

—Pegue os sais! —Ele ouviu a ordem da esposa do médico

quando se afastou deles. —Anne sofreu um desmaio.

Mas naquele exato momento um grito foi ouvido na casa. Logan se virou para a porta e deu um passo à frente. Aquele grito de terror só poderia ser de Philip. Foi isso que lhe disse antes de deixá-lo na porta, que se algo terrível acontecesse, ele gritasse e deixariam a casa dos Moore sem olhar para trás. No entanto, o desejo de descobrir o que aconteceu com seu amigo desapareceu quando percebeu que a própria Sra. Moore estava correndo em direção ao salão e deixando-o sozinho com a jovem a quem ela chamara de Anne. O médico lhe contou o nome de sua filha? Naquele momento, não se lembrava bem de ter feito isso, a única coisa que podia especificar era o estado de ansiedade que o pai mantivera durante sua breve visita.

Sem pensar se era conveniente estar sozinho com ela, ele se virou e a olhou por algum tempo. Como poderia se sentir tão atraído por uma mulher que não conhecia? Por que seu sangue atingiu uma temperatura sem precedentes? O que havia de especial nela? Ainda pensando em como seu corpo reagia ao estar tão perto da jovem, ele recuou do passo que havia dado e se colocou tão perto dela que seus joelhos tocaram o vestido. De onde estava, podia ver aquele grande e volumoso seio subindo e descendo no ritmo da respiração lenta. Ela parecia tão relaxada, tão longe de onde estava, que notou como essa paz que ela sentia se apoderava dele também. Aquele rosto, apesar

de

pálido

devido

ao

desmaio,

mostrava

uma

beleza

incomparável. Seus lábios, ligeiramente separados, convidaram-no a beijá-los com ternura e discrição. Logan se recusou a fazer o que sua mente estava gritando com desespero, apenas um vilão se aproveitaria de tal ocasião.

Ele preferia beijar mulheres acordadas e ver nos olhos delas o brilho que oferecia a paixão de seus lábios. No entanto, ela era tão especial, tão diferente de todas as que conhecia... ela não tinha a beleza de sua última amante, Rose, nem a força de Barbara, a mulher africana com quem ela vivera durante sua viagem à África. A senhorita Moore era única, diferente e especial. Logan a olhou de cima a baixo, concentrando-se no lenço laranja que ainda segurava na mão esquerda. Ela não percebia que aquela tonalidade era imprópria a uma mulher em sua posição? Só precisava levar algumas joias em suas mãos e orelhas para expressar a todos quem ela realmente era. «Minha esposa é cigana —recordou a conversa com o médico, —mas mantivemos segredo para o bem das nossas filhas». Pois a primogênita do casamento, não arrastava apenas a maldição da qual ele falou, mas suas entranhas gritavam que seu sangue era diferente do resto de Londres.

«Ela não esconde o que é», disse a si mesmo enquanto se ajoelhava. «Você, ao contrário, foge da realidade, da sua natureza, da sua verdadeira origem», continuou pensando enquanto sentia como o sangue que ele chamava de contaminado assumia o controle quanto mais tempo passava com ela.

Parecia estranho, não só por causa do que estava acontecendo com ele ao lado de Anne, mas por causa dos sentimentos que vinham de dentro dele. Tentou raciocinar, como costumava fazer aquela parte Bennett que aparecia nele toda vez que estava em apuros. No entanto, a parte que ele odiava, seu lado cigano, atacou com força dentro dele, sua cabeça se encheu de ideias absurdas. Como ele apagaria de sua vida o que aconteceu depois de seu nascimento? A humilhação a que foi submetido, a desordem que sofreu até aquela piedosa mulher levá-lo até seu irmão e, depois de implorar piedade por um filho bastardo que tinha que viver com dignidade, permaneceu sob sua proteção. Não podia esquecer sua origem, nem como todos gritavam que ele era o filho do diabo, nem se davam conta de que a pessoa que finalmente lhe dava seu sobrenome tinha sido um vilão apenas para uma mulher que ele mal conhecia.

Olhou para os lábios dela novamente, aumentando a preciosa visão de seu desejo de beijá-la. Anne tinha uma boca tão tentadora, tão sedutora que queria descobrir como eram aqueles lábios vermelhos. Se inclinou sobre ela, respirou com dificuldade, como se precisasse inspirar o perfume da jovem para sobreviver, levou sua boca à dela, fechou os olhos, beijou-a e, naquele instante, algo ainda mais estranho aconteceu.

De repente, tudo ao seu redor ficou escuro como se alguém tivesse apagado a luz do sol. O silêncio que permanecia no quarto foi

interrompido por uma música suave. Ele estreitou os olhos, esperando poder visualizar algo naquela escuridão e o encontrou. Uma luz laranja e rosada apareceu na sua frente. Atônito, estupefato e inquieto, ele estendeu as mãos para frente, procurando pelo corpo de Anne, mas ela não estava ali, desaparecera como uma névoa matinal. O que era aquilo? Onde estava? Logan sentiu os pelos em seu corpo eriçarem, como a temperatura do corpo começou a subir tanto que sobravam todas as roupas que tinha. De repente, um estranho sufocar tomou posse de sua garganta. Oprimido, levou as mãos à gravata e puxou para se livrar do nó. Quando conseguiu que seus pulmões tivessem um pouco de oxigênio, levantou-se lentamente, incapaz de desviar o olhar daquela luz na sua frente. Suas mãos adquiriram vida própria e se espalharam novamente, como se buscassem um ponto para se segurar.

Inexplicavelmente, apesar da escuridão, apesar de não distinguir nada ao redor, exceto aquela luz, seus dedos atingiram algo suave, delicado.

—O que quer de mim? -- Perguntou. -- Onde estou?

Ninguém respondeu. A única coisa que continuava ouvindo era a música que dizia para ele atravessar o fogo, para andar sobre ele, porque entre as chamas estaria à verdade. Respirou fundo, olhou para aquela luz inquieta e, quando pretendia seguir em frente, Anne chamou sua mãe e tudo desapareceu...

Logan piscou várias vezes, tentando acostumar seus olhos àquela

súbita mudança de luz. Ele havia voltado para a casa dos Moore, estava ao lado da jovem e ela o fizera voltar, com um simples sussurro, de onde havia estado. Muito lentamente, se ajoelhou novamente diante de Anne, estendeu a mão direita sobre seu rosto e o acariciou devagar.

—Quem é você Anne Moore? O que me aconteceu ao beijá

la? -- Perguntou com um leve murmúrio.

Enquanto seus dedos acariciavam aquele rosto com cuidado, percebeu uma ligeira mudança de cor vermelha onde quer que ele a tocasse. Era como se ele pudesse reacender a pele que tocava. O dom da vida, o dom da eternidade... sem tirar os dedos de sua bochecha lisa, Logan se inclinou em direção a ela para respirar o ar que expelia de sua boca. Aqueles lábios, que uma vez sussurraram uma palavra que o tirou daquela alucinação, novamente lhe pediam um beijo. Sem se separar de Anne, tomando cada respiração de seu ar, tentou assimilar o que estava acontecendo com ele. Havia beijado mais de cem mulheres desde que começara a masculinidade, tinha beijado apaixonado, suave, insuportável, ruim, prejudicial e até louco, mas nenhum como o que tivera com Anne. Apenas um toque, um toque leve e casto o transportara para um mundo sombrio e distante. Essa seria sua maldição? Ao tocar seus lábios já estaria predestinado a morrer? Aquela escuridão que tinha visto era a última coisa que seus pretendentes viram? Então, quando terminou de se fazer essa pergunta,

balançou a cabeça lentamente. Não, pelo menos um deles não tinha visto isso: o filho do conde. De acordo com John, eles nem se conheciam para que pudessem se beijar, apenas o Sr. Hendall teve tal privilégio. E de repente, um sentimento de posse tomou conta dele outra vez. Queria pegar Anne em seus braços novamente e deixar aquela casa com ela enredada debaixo de seu corpo.

—Maldita seja! -- Exclamou sentado em seus próprios calcanhares. Acariciou seus cabelos, oprimido por esses pensamentos, pela ansiedade de beijá-la, tirá-la de lá, afastá-la do mundo e ficar com ela... para sempre. -- O que fez comigo, cigana? —Perguntou baixinho. —Me enfeitiçou? —Continuou enquanto os dedos de sua mão se moviam lentamente pelo queixo e pelo pescoço, passando devagar pelo generoso decote. —Porque se assim for, me tem ajoelhado, prostrado aos seus pés.

Como continuava sem responder, sem acordar, Logan afastou os dedos daquele busto feminino e baixou lentamente para pegar sua mão. Estendeu os dedos, longos e finos, próprios de uma mulher tão magra quanto ela e prestou atenção a uma pequena mancha entre eles. Tinta. Ela havia sido manchada com tinta branca. Detalhe que não o surpreendeu porque John também contara sobre sua fama como retratista. Aproximou seus lábios para aquela área e, com um movimento suave, fez aquela mão negligente acariciá-lo. Aquele contato, aquele leve toque de uma mão

delicada em sua barba, causou uma alteração sem precedentes nele: sua masculinidade saiu de controle, seu corpo se alargou tanto que as roupas estavam muito apertadas e ele estava sem fôlego. Surpreendido ainda mais por essas reações, abaixou a mão lentamente, colocando-a no lugar em que estivera e, quando estava debruçado, quando deveria se afastar para não tentar a sorte duas vezes, ele a beijou. Embora desta vez não se contentasse com um toque suave. Seus lábios prenderam o lábio inferior de Anne, capturando o gosto de sua boca, a suavidade daquele lábio feminino. Fechou os olhos, para aproveitar por mais tempo aquele prazer simples e requintado, e foi quando a porta se abriu. Logan tentou se afastar para que a pessoa que acabara de aparecer não deduzisse o que havia acontecido ali. Mas tudo o que pôde fazer foi virar lentamente seu rosto para a jovem de cabelos ruivos e olhos azuis que, ao tentar explicar que só queria confirmar que estava respirando, se virou e começou a gritar desesperada. Irritado por não conseguir se controlar, caminhou até a porta. Precisava sair dali e tentar explicar o que havia acontecido. No entanto, naquele momento a Sra. Moore ordenava que uma criada fosse para onde ele estava. Se virou para o centro da sala, mantendo uma distância considerável de Anne, enquanto a donzela entrava.

—Milorde, com sua permissão... —ela disse, mostrando o pote de sais.

—Claro —respondeu, sem desviar o olhar da moça.

Rapidamente, a criada, a quem a Sra. Moore chamara de Shira, se ajoelhou ao lado dela, colocou o braço esquerdo sob a cabeça de Anne e a fez inalar esses sais para despertá-la.

—Shira... —a jovem murmurou quando abriu os olhos. —Oh, Shira! —Ela exclamou, descobrindo que, exceto por ela, não havia mais ninguém ao seu redor. Finalmente o pesadelo acabou. O homem não estava...

No entanto, quando Logan se aproximou para perguntar se estava bem, ela o olhou e desmaiou novamente.

—Acho que é melhor deixá-las sozinhas porque, como posso ver, a minha presença não causa nenhuma melhoria para a senhorita Moore --

Logan comentou, um tanto confuso.

Por que desmaiava ao vê-lo? Por que não podia ficar acordada? O

que acontecia com ela? Tinha ouvido alguma conversa sobre ele? Teriam dito que era um libertino, que andava com mulheres de reputação discutível? Ou, talvez, pensava que ele queria propor casamento a ela e, depois das mortes de seus pretendentes anteriores, não queria assumir mais uma morte?

«Maldição», essa foi a palavra que seu pai usou para confirmar seu desejo de tirá-la de Londres. Mas depois do que aconteceu, ele precisava descobrir muito mais sobre ela.

—Obrigado, milorde —disse a criada, tirando-o de seus

pensamentos.

Com solenidade, com o andar próprio de um Bennett, Logan seguiu para a saída com a firme ideia de esclarecer o que acontecera. No entanto, quando estava prestes a chegar à porta, a Sra. Moore apareceu. Seu rosto ainda mostrava confusão e um leve tom de vermelho persistia em suas bochechas, provocado, talvez, pelo que acontecera do lado de fora da sala.

—Milorde —ela não comentou nada, mas o viu.

—Ela ainda está inconsciente —explicou Logan.

Sophia se aproximou da filha, acariciou suas bochechas e apertou sua mão com força, a mesma que Logan havia beijado momentos antes.

—Seria melhor se nos retirássemos —ela pediu, olhando para ele com preocupação. —Posso atendê-lo no escritório do meu marido, se ainda quiser falar comigo.

—Sim, claro. Vim para resolver um assunto e não irei embora sem fazê-lo —respondeu Logan com firmeza.

—Então, se fizer a gentileza de me acompanhar —disse Sophia, andando na frente do visconde.

VIII


Silenciosamente, Logan deixou a sala atrás da esposa do médico e a seguiu até a sala ao lado. Antes de virar para a esquerda, para onde a anfitriã se encaminhava, olhou para Philip. Ele nem sequer notou sua presença porque não tirava os olhos do andar de cima. O observava como se, a qualquer momento, a própria rainha fosse aparecer. O que teria acontecido e por que ele não conseguia tirar os olhos daquela parte da casa? Ele parecia até mais alto do que já era, com seu corpo estando tão rígido! Se não se acalmasse, as costuras de seu terno cor de vinho estourariam. Logan ficou ainda mais desconfortável quando observou o rosto de seu amigo. Ele tinha um desespero semelhante ao que expressava depois de navegar por três meses em alto mar sem uma amante para aquecer sua cama. Quem ele conheceu para deixá-lo tão desnorteado? Estaria com medo ou talvez ansioso? O que quer que fosse, uma vez que os dois se afastassem da residência, falariam sobre isso, porque, se ele estava confuso depois de beijar Anne, Philip revelava um caos ainda maior na dureza de sua expressão.

Com uma caminhada serena, ele avançou pelo escritório do Sr.

Moore. Uma grande estante cheia de tomos negros estava atrás de uma mesa de mogno escuro. Sobre ela encontrou uma centena de papéis, dando-lhe a entender que o bom doutor passava várias horas naquele lugar e que a

desordem era um dos seus grandes defeitos, além de achar que Anne estava amaldiçoada.

—Peço desculpas pelo comportamento que minhas filhas demonstraram, milorde —começou a dizer Sophia, enquanto caminhava em volta da mesa. —Meu marido geralmente não recebe visitantes em nossa casa. Todos aqueles que desejam falar com ele aparecem na clínica que fica localizado na Baker Street —esclareceu. —Aceita um café, talvez chá?

—Não, obrigado -- Logan respondeu enquanto esperava que a anfitriã lhe oferecesse um lugar para sentar. —Peço-lhe que me perdoe por ser a causa de tal situação, mas a razão pela qual estou em sua casa é da maior importância e não tem nada a ver com a ocupação de seu marido.

—Estou ouvindo, milorde —disse Sophia, apontando para uma das duas cadeiras que Randall tinha diante de sua mesa.

—Primeiro de tudo —Logan começou tirando algo do bolso esquerdo. —Gostaria de lhe oferecer meu cartão de visita. Não fui capaz de entregá-lo a sua criada porque ela ficou nervosa e saiu correndo, nem tampouco pude me apresentar adequadamente quando entrei na sala.

—Meu marido sempre me advertiu que minhas filhas precisam fazer o desjejum antes que se possa manter uma conversar com elas --

explicou, aceitando o cartão e observando o visconde abrir os botões de seu paletó verde-escuro antes de se sentar. ?Mas hoje pulei essa regra e, como

pôde ver, tiveram as consequências que meu amado marido me advertira --

acrescentou como meio de desculpa para o desmaio de Anne. Não era conveniente explicar que a sua presença a havia perturbado de um modo sobre humano e que estava ansiosa em terminar essa conversa para descobrir a verdadeira razão pela qual sua filha desmaiou quando o viu.

Depois de falar, Sophia leu o nome que havia escrito no cartão de visitas e se esqueceu de respirar. Esse homem era o irmão do marquês de Riderland e da melhor amiga de Elizabeth? Seu marido não havia dito que a pessoa a quem ele pedia o favor era o visconde de Devon? Ele não percebeu que era um parente direto do marquês e de Natalie Lawford? «É tão inteligente para as suas coisas e tão desleixado para outras... " ela pensou.

Sophia respirou fundo, fazendo com que seu peito se sentisse pressionado pelo espartilho, devolveu o cartão de visitas e adotou a postura que deveria oferecer a esposa de Randall Moore, um excelente médico, mas um distraído sem esperança.

—Sei quem é, milorde —ela explicou sem rodeios. —Meu marido me contou sobre a visita que ele fez há algumas noites atrás e também me informou que se recusou a aceitar sua proposta.

—Esse foi o motivo para me apresentar em sua casa neste momento tão inapropriado —disse ele, pegando o envelope do bolso direito. —Não irei aceitar a sua oferta —acrescentou ele, depositando-o sobre

a mesa.

—Não parece quantidade suficiente? —Sophia insistiu, olhando dentro do envelope, procurando a foto de Anne. Randall não dissera que lhe dera um retrato para que ele soubesse quem era? Então... onde estava? Teria sido perdido?

—Não é sobre isso, senhora. A quantia é muito adequada, no entanto, rejeito essa proposta por razões morais —ele respondeu seriamente.

Logan ficou perplexo ao ver como a esposa do médico olhou para o envelope. Duvidava dele? Desconfiava de sua honra apesar de se apresentar em sua casa? Porque não faltava nada no envelope, a não ser a foto que, depois de pegá-la do chão, estava guardada no bolso esquerdo do colete que ele usava.

—Motivos morais? —Ela disse, deixando o envelope sobre a mesa. —O que quer dizer, milorde?

—Seu marido apareceu em minha residência me pedindo para levar sua primogênita entre minha tripulação. Quando me recusei a fazê-lo, ele disse algo sobre uma maldição —disse Logan com um pouco mais de calma, observando que a Sra. Moore não notara que a foto da filha estava faltando. —Pelo que entendi, acreditam que Anne é amaldiçoada e que é a causa da morte de seus dois noivos. Estou certo?

—Não acredita em maldições, milorde? —Disse Sophia direta,

suportando a satisfação de ouvir como o visconde se referia à sua filha pelo seu primeiro nome.

—Não quero dizer que elas não existam, mas no caso de sua filha não existe —afirmou com integridade.

—Como pode ter tanta certeza? —Sophia perguntou, apertando as mãos e mantendo as costas completamente rígidas.

—Depois da visita do seu marido, pedi a um dos meus homens mais leais que falasse com o Dr. Flatman sobre as verdadeiras causas das duas mortes. O primeiro, embora fosse um cavaleiro experiente, bebeu mais de duas garrafas de Bourbon antes de montar um garanhão. Deduzindo que seu estado de embriaguez não permitisse que ele controlasse o feroz animal em que galopava.

—Continue —disse Sophia, surpresa e confusa ao ouvir que ele se dera ao trabalho de investigar os pretendentes de Anne.

Como deveria se sentir? O mais sensato era com raiva, mas não estava. Ela estava muito relaxada, demasiado para estar na frente de um aristocrata tão famoso pelo berço em que nasceu. No entanto, a forma como a olhava, o modo como falava com ela e até mesmo a expressão em seu rosto não eram comuns a um homem de sua classe social. O visconde tinha algo que era muito familiar para ela, mas... o que era?

—O segundo pretendente de sua filha, não era um homem

pleno. O conde o manteve preso em sua casa desde que nasceu porque, como descobri, ele sofria episódios de delírios e depressões.

—Delírios e depressões? Interessante... —Sophia murmurou, movendo o pé esquerdo rapidamente sob a mesa. Sinal inequívoco de que aquele homem lhe transmitia tranquilidade. Até agora, toda vez que ela tinha que falar com um aristocrata, se mantinha rígida como uma tábua e controlava cada movimento, no entanto, com ele tudo parecia diferente. Elizabeth não havia dito em alguma ocasião que os Bennetts eram uma família peculiar? Bem, talvez ela estivesse certa...

—Então, temo que não suportou a pressão que o conde exercia sobre ele —assegurou com firmeza.

—Então, de acordo com seu julgamento, não há maldição, estou certa? —Ela falou, apertando os olhos.

—De fato, não existe. E parece injusto que faça sua filha acreditar nesse tipo de tolice —disse ele com relutância.

—Suponho que tenha perguntado sobre esses terríveis acontecimentos porque queria confirmar que a maldição não era real e que sua exposição seria irrefutável. —Logan afirmou com um aceno suave. --

Sendo esse o caso, por que se recusa a levá-la em seu navio? A que se referiu quando disse razões morais, milorde?

—Não é apropriado para uma mulher viajar em um barco cheio

de homens —disse Logan.

—Conheço muitas mulheres que viajaram de barco para a Europa e nada lhes aconteceu porque o capitão observou pessoalmente a sua segurança. Não é um desses, milorde? Se recusaria a protegê-la? —Disse mordaz.

—A trataria com o respeito e a proteção que eu ofereceria à minha própria irmã, a senhora Moore —disse solenemente ao sentir como sua virilidade estava sendo questionada.

—E se fosse sua irmã, como disse, e não pudesse levá-la, a quem confiaria sua segurança? —Ela reiterou com calma.

—Insiste em afastá-la de Londres? —Explodiu, levantando-se e colocando as palmas das mãos naqueles papéis desordenados.

—Ela quer ir embora, milorde —disse, olhando para ele sem piscar.

Toda Londres conhecia a natureza dos Bennetts: apaixonada, corajosa, orgulhosa, teimosa, trabalhadora, inteligente, respeitosa, sincera, confiável e.... libertina. Mas o que Sophia nunca pensou foi que ela pudesse acrescentar àquela interminável lista de características a falta de respeito. Por que ele perdia o controle tão facilmente? Por que o incomodava tanto que Anne partisse para Paris?

—Por que quer fazer isso? Não é capaz de encontrar um lugar

nesta maldita cidade? —Perguntou fora de si.

—Minha filha, visconde —começou, sua voz terrivelmente suave quando se levantou —nasceu com um dom, o da pintura. Graças a ele, foi capaz de se recuperar da depressão que sofreu após a morte de seu segundo pretendente, mas não a salvará do próximo. —Ela andou até se colocar ao seu lado esquerdo e olhou-o com tanta força que poderia derrubá-lo. —E peço sinceramente que não levante a voz em minha própria casa. Não sou uma mulher comum, milorde. Lembre-se que minha família me ensinou a não me basear nos absurdos protocolos sociais nos quais nasceu. Se não se acalmar, deixará minha casa e não voltará até que meu marido possa atendê-lo, entendeu? —Disse com o mesmo tom que minutos antes repreendera suas filhas.

—Peço mil desculpas —disse Logan, abaixando a cabeça. —Fui impulsivo. —Como havia perdido a compostura tão rapidamente? Por que motivo tratou a Sra. Moore dessa maneira? «Raiva», ele pensou. Sim, a raiva o cegara de tal maneira que não conseguiu raciocinar. Apenas imaginar que Anne iria se afastar de Londres em outro navio, que ela pudesse estar ao lado de outro homem ou que se ela se sentisse em perigo em algum momento e ele não estivesse lá para salvá-la, o irritou. ?Como sabe, venho de uma família que precisa estar unida para ter uma vida plena e tenho dificuldade em acreditar que outras pessoas não mantenham o mesmo apego —disse

calmamente.

—Desculpas aceitas milorde e nossa família é muito parecida com a sua. Tenho que explicar que meu marido agiu com desespero e agonia a pedido de Anne. Nós não queremos que ela saia, pelo contrário, queremos que fique aqui, mas, como eu disse antes, se ela sofrer outra depressão, nada e ninguém poderia salvá-la.

—Porque diz isso? Ela está doente? —Logan perguntou depois de respirar fundo e sentar-se novamente.

—Não agora, mas estará em breve -- disse Sophia com um suspiro. Caminhou até onde o visconde estava e sentou ao seu lado. —Se investigou essas mortes, imagino que também descobriu ao que minha filha se dedica, certo?

—Sim —respondeu sem hesitar.

—E o que acha disso?

—Não entendi sua pergunta —respondeu, virando-se para ela.

-- O que disseram sobre o seu trabalho? —Sophia esclareceu.

—Que tem um grande talento, mas até agora só foi usado por mulheres, embora não tenha havido uma única queixa sobre ela —confessou.

—Sim, de fato —disse se movendo na cadeira até que estivesse olhando para as prateleiras em frente a eles. ?Mas toda essa fama mudaria se alguém descobrisse quem eu realmente sou.

—Se refere a sua origem cigana?

—Exato. Por enquanto, minhas filhas foram respeitadas porque seu pai se casou com uma burguesa, mas... o que aconteceria se tudo viesse à tona? Tenha em mente, milorde, que a vida para nós não é tão fácil quanto é para o senhor. A sua sociedade —disse corajosamente —as rejeitaria e nenhuma delas teria um futuro adequado.

—Acho que é um assunto bem ridículo. Se tem um dom, deve ser elogiado por isso, independentemente de sua procedência ou origem —disse Logan se levantando. Colocou as mãos nas costas, apenas em torno da cintura e começou a andar pelo escritório. —Mas está certa em argumentar que essa questão não beneficiaria suas filhas. Erroneamente ainda se repara no berço em que nasce.

—Isso mesmo —disse Sophia.

—No entanto, ainda não entendo o que tem a ver a maldição que seu marido me contou sobre todo esse assunto —disse ele, virando-se para ela.

—É muito fácil de entender, milorde. —Falou olhando em seus olhos, confirmando não apenas que o jovem havia herdado a cor azul do pai, mas também encontrou certa inquietude em seu rosto. Se preocupa com o assunto? Porque motivo? —Se minha filha Anne partir, não só ela conseguirá se tornar a mulher que deseja ser, mas os cavalheiros desta cidade esquecerão

a miséria que sofremos com seus noivos e cortejarão minhas outras filhas.

Com o tempo, todas encontrarão um marido para protegê-las e ninguém se perguntará se a primogênita realmente matou seus pretendentes.

—Mas ela não os matou! —Ele exclamou um pouco irritado. —A morte chegou a eles por causa de seus maus atos!

—Qualquer pessoa sensata entenderia dessa maneira, mas nem todo mundo esconde uma mente erudita dentro de uma linda cabeça --

argumentou Sophia.

—Seu marido não tentou esclarecer as razões pelas quais eles morreram? —Ele perguntou, diminuindo seus passos abruptamente e virando para a Sra. Moore. —Ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico com sua fama.

—De fato, o senhor mesmo disse; ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico, mas de um pai —esclareceu.

—Entendo... —disse Logan novamente caminhando pensativo.

—Por mais que o tempo passe, o estigma social que Anne possui não poderá ser eliminado a menos que ela saia daqui.

—Não há outra maneira de fazê-lo desaparecer? —Bennett disse.

—Não. Como disse, até agora, minha filha só retratou mulheres porque os homens se recusam a ficar com ela. Não sei se a viu na festa da sua irmã, milorde. Se assim for, tornou-se uma testemunha desse comportamento

indescritível.

—Talvez com o passar dos anos tudo seja esquecido e ela consiga a reputação que merece —sugeriu Logan.

—Talvez, mas... o que aconteceria se, durante esse tempo, minha origem fosse descoberta? Tenho mais quatro filhas e duas delas já são maiores de idade para encontrar um marido. Se houvesse um cavalheiro na cidade que estivesse interessado em alguma delas, tenho certeza de que se perguntaria o motivo pelo qual ainda não encontraram um marido para cuidar delas. Que futuro elas terão caso se revele que sua mãe é filha de ciganos e que os pretendentes da primogênita morreram? Pensarão que foram enfeitiçados, amaldiçoados por meus ancestrais.

—Não acredito que sejam razões suficientes para um homem eliminar seus sentimentos em relação a uma de suas filhas... —disse calmamente. —Quando um homem se apaixona, ele luta contra o mundo para conseguir a mulher que ama.

—Palavras preciosas para um homem que ainda não se comprometeu —Sophia apontou maliciosamente. —Mas acredite em mim quando digo que minhas filhas têm uma marca oculta nas costas e que nenhuma teria um futuro digno se descobrissem que sua mãe é uma cigana miserável.

—Ninguém deve julgar o sangue dos outros —Logan murmurou.

—Não deveriam, mas fazem. Não pode nem imaginar o que sofrerão porque não nascera com sangue azul. Os de sua classe —apontou sarcasticamente -- não são capazes de enxergar além da linhagem das pessoas e, embora meu marido tenha uma fortuna ainda maior que a de alguns aristocratas, nunca o tratarão com a dignidade que merece. —Ela apontou sem reduzir sua raiva.

Logan franziu a testa e se rendeu ao debate porque a Sra. Moore estava certa. Se descobrissem quem realmente era, a sociedade os separaria como se tivessem a peste. Ele mesmo participou da rejeição de outros e de si mesmo. Quantas vezes negou ser a pessoa que realmente era? Talvez desde que soube a verdade sobre o seu nascimento. Mas em sua história o sangue negado era o do Marquês, por violar sua mãe até que ela ficasse grávida. No entanto, graças a Roger, havia seguido em frente e também havia esquecido que, no fundo, não era nada mais que um simples bastardo.

—Quem sabe sua origem? —Perguntou depois de ponderar sobre a parte de sua vida que o machucava.

—Acha mesmo que poderíamos divulgar um segredo de tal índole? Não me escutou atentamente quando expliquei que minhas filhas não teriam um futuro decente se alguém descobrisse que sua mãe é uma simples romani? —Ela disse com tanta raiva que suas bochechas ficaram vermelhas novamente.

—Posso assegurar que muitos daqueles que afirmam ser cavalheiros com sangue azul não são —disse Logan calmamente. —Mas respeito sua preocupação e a de seu marido, mesmo que não entenda isso --

disse ele caminhando em direção a ela.

Sophia bufou de resignação, o mesmo que Mary fazia quando retornava de uma reunião médica na qual um nobre tentava discutir uma nova descoberta científica.

—Por essa razão, gostaria de propor um acordo —começou a dizer depois de concluir que, se havia alcançado a felicidade graças ao apoio de Roger, a jovem teria a sua chance de se livrar desse resquício social.

—Um acordo? —Sophia apontou intrigada. —Qual e por que quer oferecê-lo para mim?

—Entendo sua posição como mãe de cinco filhas e até começo a entender o desespero que seu marido me mostrou algumas noites atrás, mas continuo insistindo em que não deveriam desistir de sua primogênita para que as outras irmãs possam alcançar o futuro que desejam para elas.

—Não queremos nos separar de uma de nossas filhas, milorde --

repetiu Sophia. —Mas temos a certeza de que é a melhor opção para todos.

—Minha proposta é a seguinte: se dentro de um mês, a data em que pretendo partir novamente, não conseguir que sua filha mais velha seja aceita na sociedade e alcance a reputação que merece, irei pessoalmente levá

la para Paris.

—O que irá receber em troca, milorde? —Disse sem aceitar esse compromisso ainda.

—Faça seu marido entender que não há nenhuma maldição e que o sangue que corre em suas veias não é um impedimento para suas filhas serem felizes —disse se aproximando dela e estendendo a mão direita.

—Terá muitos problemas... —ela disse duvidosamente. —Talvez não devesse se envolver nessa questão porquê...

—Haverá acordo, Sra. Moore? -- Logan insistiu, movendo levemente a mão que ainda estava estendida para ela.

—Um mês? —Repetiu, se levantando.

—Sim.

—E mudará a vida da minha filha? Isso a fará feliz?

—Prometo, Sra. Moore -- disse ele sem vacilar.

—Aceito sua proposta, milorde. Só espero que não saia prejudicado —disse finalmente.

—Acha que, diante da sociedade que nomeou, as loucuras de um futuro marquês serão levadas em conta?

Com essa pergunta, Sophia sorriu amplamente, colocou-se na frente do visconde e aceitou a mão que ele oferecia. No entanto, quando as palmas das mãos tocaram para selar esse acordo, a Sra. Moore sentiu uma

inexplicável descarga elétrica percorrer seu corpo. Por que notou que esse homem era especial? Por que estava tão confortável? O que estava escondendo? Por que Morgana o colocou na vida de sua filha? Um leve arrepio percorreu sua figura esbelta, trazendo uma satisfação e bem-estar que poucas pessoas forneceram ao toca-la. Quem era esse homem? Por que era tão familiar?

—Sra. Moore? —Perguntou Logan ao ver como seu rosto empalidecia.

—Eu... eu sinto muito...—Sophia se desculpou, recuando o suficiente para respirar. —Entenda que tudo isso me desconcertou. Talvez meu marido esteja certo em insistir que devemos tomar café antes de ter uma conversa exaustiva e racional.

—Bem, deveria ouvir o conselho de um dos melhores médicos da cidade —disse Logan, feliz por ter um acordo com a mãe de Anne.

—Eu vou —Sophia respondeu com um longo suspiro.

—Não quero tomar mais do seu tempo, Sra. Moore. —Ele apontou para ela, tomando a mão com a qual havia selado a aliança para dar um beijo casto. —Foi um prazer conhecê-la e descobrir que o Sr. Moore escolheu uma esposa digna e respeitável.

—O prazer é meu, milorde —respondeu Sophia, desconcertada com esse estranho bem-estar.

—Prometo que terá notícias minhas em breve -- argumentou Logan, dando um passo à direita para que a Sra. Moore se movesse em direção à saída.

—Estaremos esperando, milorde. Mas lembre-se de que, se em algum momento hesitar em seu acordo, não o levarei em conta.

—Não hesitarei senhora, meu juramento é sagrado —disse solenemente.

Em silêncio, acompanhou-o até a entrada onde seu acompanhante o esperava.

—Sr. Giesler —disse estendendo a mão para ele —foi um prazer conhecê-lo. Espero que da próxima vez que nos encontremos, minhas filhas saibam como se comportar.

—Certamente o farão —disse divertido.

—Espero que sim... —Sophia suspirou olhando para o segundo andar.

—Vamos? —Logan perguntou a Philip.

—Claro —disse depois de suspirar e desviar o olhar do andar de cima. Não havia descido. Desde que aquela Medusa raivosa tinha desaparecido, depois de jogar o último tubo de metal, não tinha decidido descer e isso, embora não devesse alterá-lo, o fez e muito. —Tenha um bom dia, Sra. Moore —disse enquanto fazia um leve gesto com a cabeça.

—Obrigado pela visita, Sr. Giesler —respondeu, dando um passo em direção a eles.

—Madame... —Logan disse beijando sua mão novamente.

—Milorde... —respondeu com uma ligeira genuflexão.

—Nós veremos em breve.

—Quando puder —ela respondeu antes de os dois cavalheiros se virarem para a porta, abrirem e saírem.

Sophia esperou que os dois se afastassem de sua propriedade, fechou a porta lentamente, recostou-se nela e suspirou. O que planejava o visconde? Por que assumia tantos problemas? Não entendia o motivo que o levou a se preocupar com sua filha se eles não se conheciam e só haviam estado juntos...

—Madeleine! —Gritou, cortando a respiração e andando rapidamente em direção à cozinha.


***


—Vai me dizer o que aconteceu enquanto permaneci retido no salão —disse Logan depois de colocar o chapéu e dar o primeiro passo que os levou para os arredores da residência. —A Sra. Moore enfatizou que suas filhas não tomaram café da manhã e que, por essa razão, elas se comportaram

como pequenas feras.

—Pequenas

feras?

Bela

maneira

de

mascarar

esses

comportamentos selvagens! Uma dessas donzelas apontou com um rifle para o meu peito, outra foi gritando de um lugar para outro como se o próprio diabo a tivesse possuído e outra...

—E outra? —Logan perguntou enquanto estendia o manto sobre os ombros.

—Tudo o que posso pedir é que, da próxima vez que quiser voltar, chame o índio —murmurou.

—John? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas. —Isso não prejudicará seu grande orgulho?

—O que destruiria meu orgulho é que essa terceira filha me lançasse de novo mais objetos demoníacos como este. —Philip pegou o tubo que tinha no bolso e mostrou para ele.

—O que é isso? Bala?

—Não acho que são balas porque essa bruxa os usava enrolados em seu cabelo —disse guardando-o novamente.

—E? Porque os pegou? —Perguntou Logan curioso. —Não acha que essa mulher vai descobrir que levou um? Talvez o chamem de ladrão...

—ele disse divertido.

—É uma prova! —Choramingou.

—Uma prova? Para que? —Insistiu Bennett.

—Não se lembra de que eu era um agente? Se Borsohn me ensinou alguma coisa, foi estudar a evidência de um caso e está —ele colocou sua grande mão direita no bolso da calça e apertou-o com força -- é a única coisa que precisará se, nos próximos dias, eu me transformar em pedra.

E depois dessa abordagem tão surreal, Logan soltou uma gargalhada.

IX


Felizmente para Sophia, Madeleine ainda estava entrincheirada na cozinha. Eugine fez o melhor que pôde para que tomasse um chá, mas se recusara completamente a beber um misero gole. Devia ter ficado tão atordoada com a algazarra que foi montada na casa que nem uma gota entrava em seu estômago. Isso costumava acontecer toda vez que ela sofria um episódio de terror. Até se recuperar, era incapaz de provar algo. Sophia a observou da porta e refletiu novamente sobre a conversa que teria com ela. Se não abordasse o assunto com cuidado, deixaria de comer e toda a família indagaria o motivo dessa atitude. Sua pequena Madeleine era uma criança muito frágil e retraída. Sua aparência física, apesar de muito bonita, lhe acarretava certa inferioridade em relação às irmãs e isso agravava seu comportamento reservado. Passou muito tempo observando-as e enumerando as diferenças entre elas. Sempre quis ter cabelos escuros, como Anne ou Mary, e olhos verdes, como os de Josephine. No entanto, aquela juba cor de fogo, aquelas sardas no rosto e as pupilas azuis davam-lhe uma aparência mais bonita do que imaginava. Se, em vez de ser tão tímida e assustada, ela fosse tão descarada quanto Elizabeth, teria cem pretendentes na porta de sua casa esperando serem atendidos por Randall. Mas a vida não era justa para nenhuma de suas filhas e reafirmara sua crença depois do que aconteceu

momentos antes: Anne desmaiou quando viu o visconde, assunto do qual falariam assim que recuperasse a consciência, Mary jogou aqueles rolos metálicos, que Shira a forçava usar, o cavalheiro que permaneceu atordoado na entrada, Josephine apontava para ele com a arma e Madeleine gritava como uma menina selvagem. O que mais teria para ver? Que novo espetáculo suas meninas ofereceriam se voltassem a ter uma visita? A melhor maneira de manter uma ordem adequada em sua casa era dizer a Shira que não admitiriam mais presenças masculinas, desta forma, salvaguardaria o verdadeiro comportamento de suas filhas queridas e não revelariam que tinham um caráter bastante peculiar.

Depois de ter certeza de que a melhor maneira de proteger a família era conversar com Madeleine para tranquilizá-la enquanto pensava em como devia abordar o problema com seu marido, deu vários passos para a cozinha, olhou para Eugine, que estava ao lado de sua filha, e disse-lhe:

—Deixe-nos a sós, Eugine. Vá para a sala de estar com Shira e confirme se Anne despertou do desmaio. Assim que Madeleine tomar o chá, irei verificar como ela está.

—Sim, senhora —respondeu antes de obedecer a sua ordem.

Sophia se colocou na frente de sua quinta filha e ficou olhando sem piscar. A coitada ainda tremia de medo e seu cabelo, que costumava prender num simples rabo de cavalo, estava revolto, como se tivesse sido

acariciado com desespero. Ela pegou a xícara que ainda emitia fumaça, aproximou-se e disse:

—Beba um pouco, Madeleine. Isso irá acalmá-la.

—Mãe... eu juro que eu... eu não queria gritar assim diante de estranhos ?balbuciou pensando que iria repreendê-la.

Lágrimas apareceram em seus olhos e percorreram seu rosto alvo.

Sophia estendeu os braços e a jovem, percebendo que não tinha ido para repreendê-la, mas para acalmá-la, se levantou, deu a volta na mesa e pulou em direção à mãe.

—Calma, pequena. Tudo bem... eles já se foram —falou acariciando o cabelo vermelho emaranhado. ?Eles não queriam nos machucar, só queriam falar com o seu pai, mas como ele não se encontrava, o visconde resolveu falar comigo porque o assunto que o trouxe até aqui era bastante urgente —explicou em voz baixa e relaxada.

—Mary... Mary... —ela riu. ?Mary jogou alguma coisa no cavalheiro que estava na porta. Josephine estava apontando a arma para ele, pensei que ela dispararia, e a senhora... e então Anne e aquele homem... a beijou —ela revelou finalmente.

—O que acabou de me dizer? —Perguntou segurando-a gentilmente pelos ombros e empurrando-a alguns passos longe dela.

—Esse homem a beijou e.... e eu entrei e.... descobri ... E, quando

ele olhou para mim.... Ah, é ele! —Ela exclamou depois de esconder o rosto no peito de sua mãe. —É ele! —Ela repetiu. -- É o homem que vi no meu sonho, aquele que nos libertará da maldição! —Ela exclamou.

—Tem certeza? —Ela insistiu, porque não podia imaginar que o visconde, o filho de um marquês e com uma linhagem tão azul quanto a cor de um dos vestidos que ela guardava em seus armários, pudesse ajudá-los a se livrar daquele feitiço cigano. Sua avó não lhe disse que o sangue seria puro novamente? Bem, sendo assim, a pequena Madeleine estava confusa.

—Sim, mãe —respondeu afastando o rosto do seu seio. —Não confia em mim? Acha que estou mentindo?

—Não, querida. Sei que não faz isso e confio muito em você --

declarou acariciando suas bochechas para afastar suas lágrimas. —Mas não seria prudente falar sobre esse assunto sem corroborar certos aspectos. Tudo o que sabemos é que o visconde é o irmão do Marquês de Riderland e que veio até aqui para se recusar a levar Anne em seu navio.

—Mas... na minha visão... eu... além disso, o vi beijando-a.... --

Ela gaguejou.

—Ele realmente a beijou? Viu exatamente como seus lábios se uniram aos de Anne? —Ela insistiu.

—Não, porque ele levantou o rosto quando eu apareci —ela explicou.

—Então, não podemos afirmar algo que só suspeitamos, não acha? —Madeleine arregalou os olhos e apertou os lábios contra a boca para parar de falar. —O melhor para todas é mantermos silencio, querida. Não quero que suas irmãs fiquem loucas com a ideia dessa liberdade e seu pai...

—Ela suspirou. —Sabe como é. Seria capaz de procurar por um alfinete no palheiro.

—Então, como quer que eu aja? —Ela insistiu, se afastando de Sophia e voltando a sua cadeira. —Quer que eu minta? Que apague da minha memória o que eu vi?

—Realmente a beijou? —Sophia repetiu, em pé na frente de sua filha.

—Eu juro que foi isso que vi —disse ela.

—Madeleine lembra que a maldição só vai desaparecer com um homem que tem sangue cigano e esse lorde só tem...

—Lembre-se que eu disse que ele manteve essa parte de sua vida escondida e só revelaria quando visse sua relação com Anne em perigo --

disse ela com a mesma firmeza que Mary ao falar sobre as causas da febre.

Sophia colocou as palmas das mãos na mesa e observou a filha sem piscar. Em seu rosto não havia dúvida alguma, e mais, só mostrava segurança, uma que não tivera até agora. Mas... e se estivesse errada? E se estivesse confusa? Era verdade que ela mesma sentira uma ligação estranha

com o visconde, mas ainda não sabia como nomear. O que devia fazer? Um mês. O visconde lhe pedira um mês para... fazê-la feliz e jurara por sua honra. Poderia Madeleine suportar um segredo durante um mês?

—Tem certeza da sua visão, certo? —Insistiu.

—Sim —afirmou novamente.

—Bem, sendo assim, vou te pedir um favor.

—Qual? —Perguntou, erguendo a sobrancelha direita.

—Vamos manter tudo isso em segredo até que a própria Anne descubra que o visconde é o homem que Morgana escolheu para ela —disse Sophia.

—Não quer que minha irmã saiba que ele será seu marido? O que nos libertará da maldição? —Perguntou desesperada. —Ela ficaria muito feliz em saber, então pararia de pensar em partir e se prepararia para conquistar esse homem.

—Do que gosta mais, Madeleine, que lhe digam o que está dentro de um presente antes de abri-lo ou descobrir por si mesma o que se esconde dentro?

—Descobrir por mim mesma, o que tem dentro —ela respondeu rapidamente.

E nisso sua mãe estava certa. Toda vez que seu pai lhe dava alguma coisa, Josephine se aproximava e dizia o que era antes de poder

desembrulhá-lo. Por essa razão, no último Natal, antes que alguém revelasse o que escondia seu presente, pegou-o e correu para o seu quarto.

—Bem, esta situação é muito parecida para a sua irmã. Ela não deve saber que este homem será seu marido, porque então não será uma surpresa para ela —disse com determinação.

—E se uma das minhas irmãs me perguntar por que gritei quando o vi? Eu sei que Josephine e Mary me viram entrar na sala e logo correr para cá —ela esclareceu depois de suspirar.

—Bem, dirá que ficou com medo quando viu dois estranhos em casa —disse se aproximando de Madeleine novamente para abraçá-la com força. —De acordo? —Insistiu.

—Se acha que Anne conseguirá ser feliz, farei —comentou, não sabendo muito bem se sua mãe estava agindo corretamente.

—Obrigada, querida —disse Sophia antes de beijá-la na cabeça. ?Agora, tome aquele chá antes que fique frio e vamos ver se suas irmãs estão mais calmas.

E no exato momento em que Madeleine se separou de sua mãe para tomar o chá, a porta da cozinha abriu com um estrondo, causando outro grande susto.

—O que aconteceu mãe? —Elizabeth perguntou nervosa. --

Josephine me disse que Madeleine estava gritando e que Mary estava em

perigo porque um cavalheiro não parava de olhar para ela de camisola.

—Plantou suas sementes? Colheu mais flores? Deveria encher os vasos na entrada porque as rosas estão um pouco murchas —Sophia disse tentando não responder às perguntas no caso de Madeleine ainda não ser capaz de manter a boca fechada.

—Peço-lhe que não mude de assunto. Quem veio? Quem eram esses homens? Que motivo eles alegaram para se apresentar a essa hora? Por que não me avisaram? —Ela disse, irritada, imaginando que era algum pretendente perguntando por ela e sua mãe recusou a sua presença.

—O senhor Giesler e o visconde de Devon foram os cavalheiros que nos visitaram —Sophia finalmente respondeu quando viu Madeleine pegar a xícara com as duas mãos e olhar dentro dela.

—Logan? —Ela disse, erguendo as sobrancelhas.

—Logan? —Retrucou a mãe, franzindo a testa ao ouvir como a terceira de suas filhas falava com tamanha familiaridade do visconde.

—Me desculpe mãe, queria dizer o visconde. O que sua Excelência queria? —Se corrigiu rapidamente. —Queria me informar que Natalie voltou da viagem que tinha planejado?

—Não —sua mãe negou enfaticamente. —A intenção do visconde era deixar claro que não levaria Anne em sua próxima viagem.

—O papai pediu que ele a levasse para Paris? Esse era o homem

com quem ele falaria? —Ela gritou de olhos arregalados, assombrada com a loucura que seu pai fizera.

—De fato, há algum problema nisso, Elizabeth? —Sua mãe exigia saber depois de ver a filha tão perplexa.

—Mãe, todo mundo sabe que o visconde não pode viajar com mulheres em seu navio.

—E, por que não pode viajar com mulheres? —Sophia insistiu.

—Porque é o maior libertino de Londres desde que o atual Marquês de Riderland e seus amigos decidiram se casar. Nenhum pai sensato ofereceria a proteção de sua filha nem a ele ou a seu primeiro a bordo, o Sr.

Giesler —disse Elizabeth.

Então Madeleine soltou um grito e, quando as duas olharam para ela para descobrir o que estava acontecendo, ela disse:

—Queimei meus lábios com chá.


***


Não queria abrir os olhos. Embora escutasse as vozes de Shira e Eugine, não queria abri-los para o caso de encontrá-lo novamente. Se sentia tão idiota, tão infantil, que a vergonha não permitia que movesse um só dedo das mãos. O que o visconde teria pensado ao observar como desmaiara

quando o viu entrar? Que opinião concebeu sobre ela? Só de pensar nisso, sentia como suas bochechas queimavam e seu corpo tremia. Foi o pior momento de sua vida e, infelizmente, tivera alguns depois da morte de seus noivos.

Sem prestar atenção à conversa que as duas servas mantinham sobre o homem que foi agredido em frente à entrada da casa por suas irmãs, Anne só foi capaz de lembrar o momento em que seus olhos estavam fixos nele e na maneira como ele a observava. Ele parecia satisfeito em vê-la e tão surpreso quanto ela. Mas isso era real ou tinha sonhado? Não tinha mais certeza de nada...

Respirou fundo para se acalmar. Precisava ganhar algum controle sobre si mesma novamente e colocar seus sonhos equivocados fora de sua cabeça. Embora fosse incapaz de fazê-lo. Como poderia apagar de sua mente essa aparência magnífica? Ele a deixou tão impressionada que perdeu suas forças. Sem mencionar que, quando ele entrou pela porta, quando deu aquele passo para a sala de estar, sua mente, sua mente perversa e odiosa, o imaginou naquele prado, nu, beijando-a e tocando-a por toda parte. Como se deixara levar pela luxúria tão facilmente? Por acaso perdera seu raciocínio? «Morgana - pensou - por que o conduziu para mim? Por que me faz sofrer? Não tive o suficiente? Deveria morrer para aplacar este sofrimento? "

—Senhorita, está se sentindo melhor? —Shira perguntou.

Diante da pergunta e do fato de que ela se movera inquieta, lembrando-se dele ao seu lado daquele jeito tão lascivo, Anne abriu os olhos, abriu as mãos e se deixou ajudar.

—Está bem? Precisa de mim para lhe trazer um chá? —Eugine interrompeu.

—Não, obrigada. Estou muito melhor. Sabe onde minha mãe está? —Ela perguntou enquanto tocava o cabelo que havia caído do coque.

De repente, aquela mão direita começou a queimar. Assustada, olhou para ela e sentiu uma estranha vermelhidão nela. Mas quando a levou aos olhos para confirmar a formação daquele círculo vermelho, seus lábios também arderam.

O que acontecia? Por que sentia que sua boca e aquela mão não pertenciam mais a ela? O que acontecera durante o seu desmaio?

—Já acordou? —Ela ouviu a voz de sua mãe na entrada da sala.

—Mãe? —Falou olhando para ela.

—Estou aqui —respondeu. Caminhou rapidamente até Anne e sentou-se ao lado dela. —Se recuperou?

—Mãe! Que vergonha! —Exclamou, se jogando em seus braços. —Como eu pude... —E não terminou a frase porque observou como as servas olhavam-na ansiosas por informações.

—Eugine, prepare o salão matinal. Nós temos que tomar o

desjejum antes de seguir com o plano combinado. Shira suba até o quarto de Mary e não saia até que esteja bem arrumada. Informe a ela que, já que atrasamos a hora da partida, virá conosco —disse com autoridade.

—Sim, senhora —responderam em uníssono antes de saírem da sala e deixarem-nas sozinhas.

As duas ficaram em silêncio até a porta se fechar. Foi então que Sophia se afastou da filha, foi até a janela e pensou no assunto que iriam discutir. Não seria fácil perguntar sem rodeios se o visconde de Devon era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Foi horrível —Anne começou enquanto tentava se levantar. --

Mas garanto que nem eu mesma esperava a reação que tive. Aquele cavalheiro terá pensado que...

—É o visconde de Devon —ela corrigiu. —O irmão de Natalie Lawford.

—Seu irmão? —Perguntou, sentando-se de repente no sofá.

Ela suspeitava que fosse parente do marquês, mas nunca imaginou que fosse um irmão. Agora, como essas informações afetariam seus sonhos? Voltaria a vê-lo durante as noites depois de confirmar que era um homem inatingível? Como poderia tira-lo da cabeça? Só conseguiria partindo, por esse motivo, seu desejo de fugir de Londres aumentou.

—O conheceu? —Sophia retrucou, caminhando até ela.

—Não pessoalmente —respondeu enquanto descansava os pés no chão novamente. —Eu o vi discutindo com o Marquês de Riderland na outra noite. Mas até este dia, não sabia que existia.

—Bem, ele existe e, conforme constatei, sua irmã Elizabeth o conhece bem o suficiente —disse mordazmente.

—Em que sentido? —Perguntou, arregalando os olhos e notando como seu coração estava batendo rápido.

—Em um sentido fraternal —esclareceu. —Segundo ela, o visconde é um homem leal à sua família e amigos.

—Se ela diz isso... —murmurou um pouco ciumenta. Olhou para os pés, moveu-os devagar enquanto pensava se era adequada a pergunta que rondava sua cabeça, mas a curiosidade era tanta que a fez sem pensar: —O

que o trouxe para a nossa casa?

—Se lembra de que seu pai, depois de ter aceitado a decisão de manda-la para Paris, procurou um navio que partisse nas próximas semanas de Londres?

—Sim —respondeu sem tirar os olhos dos sapatos brancos.

—Bem, pediu a ele —disse atenta à reação que sua filha mostraria.

—Lorde Bennett? —Perguntou, arregalando os olhos e dirigindo-os para a mãe com espanto.

—O mesmo —assegurou com um leve aceno de cabeça.

—Não existem mais homens em Londres? Como o nosso pai pode ter o dom do absurdo? Não há mais capitães, mais barcos, mais pessoas nesta cidade a quem recorrer? -- Gritou desesperada.

—Mas... —interrompeu Sophia, levantando o dedo indicador da mão direita para silenciá-la.

—Mas? —Anne perguntou com expectativa.

—Ele se recusou a fazê-lo.

—Graças a Deus! —Disse Anne com um longo suspiro. —Não seria capaz de ficar ao lado desse homem por um único segundo.

—Por quê? —Sophia perguntou, aproximando-se dela. —Pelo que vi, é um homem honesto.

—Por que... desmaiei quando ele apareceu? O que pensará de mim? —Soltou horrorizada.

—Nada.

—Nada? —Anne repetiu dando um pulo. —Perdi a consciência ao vê-lo!

—Não será a primeira nem a última a fazê-lo —ela disse mordazmente. —Pelo que diz sua irmã, ele é um homem que levanta paixões onde quer que apareça.

—Perfeito! E meu pai volta a fazer das suas me enviando às

garras de um homem libertino! —Exclamou desesperada.

—Anne, por que desmaiou quando o viu? —Ela rapidamente mudou de assunto.

 

—Como? —Perguntou se virando para ela com tanta força que a saia do vestido rodou entre as suas pernas.

—Responda.... Por que agira de maneira tão inadequada? --

Persistiu sem afastar os olhos da filha.

—E as vertigens têm sempre uma explicação lógica? —Se defendeu.

—Bem, eu disse ao visconde que não tinha feito o desjejum e que, devido a isso, sofreu um leve atordoamento, mas temo que não seja o motivo correto, estou certa? —Continuou obstinada.

—E ele acreditou?

—Claro! —Disse com firmeza. —Por que duvidaria das minhas palavras?

—Menos mal... —sussurrou para si mesma. Colocou as mãos no estômago, como se a desculpa de sua mãe também servisse para que não precisasse lhe contar a verdade, abaixou a cabeça e declarou: —Com certeza foi isso. Não tomei o chá antes de falar com a senhora.

—Acha que eu sou tola, Anne Moore? —Soltou a mãe zangada. —Diga-me o que aconteceu de uma vez! E nem pense em mentir

para mim, por muito que seja uma mulher adulta irei castigá-la —disse.

—O que quer que eu diga mãe? —Perguntou levantando o rosto para olhá-la.

—A verdade —disse Sophia. —Preciso que seja honesta comigo porque eu e o visconde selamos um acordo antes dele sair.

—Um acordo? —Retrucou, arregalando tanto os olhos que poderiam sair de suas órbitas.

—Sim. Ele veio aqui para devolver o envelope que seu pai lhe ofereceu. Em meio a sua negativa categórica, perguntei se ele conhecia outra pessoa honesta que pudesse levá-la a Paris e sabe como ele agiu?

—Não —murmurou.

—Ficou furioso. E não sei que diabos está acontecendo entre vocês e nem quero perguntar! —Gritou. -- Mas deve esclarecer o motivo pelo qual o visconde me pediu um mês para fazê-la feliz.

—Ele pediu isso? Por quê? O que quer? —Perguntou sem fôlego.

—Não sei, embora tenha medo de que você saiba a resposta --

assegurou-a com firmeza.

Anne continuou com as mãos no estômago. Ele começou a rosnar, como se quisesse eliminar o pouco que abrigava nele. Caminhou lentamente até o sofá, onde alguém a havia deitado, pegou o lenço laranja como se lhe desse a força necessária para confessar e respirou.

—Anne, seja o que for, estou aqui para ajudá-la —disse depois de sentar ao seu lado e segurar o lenço nas mãos. —Juntas lutaremos contra todos os perigos que apareçam em sua vida.

—Contra todos? —Disse virando o rosto, permitindo que sua mãe observasse as lágrimas que vinham de seus olhos.

—Contra todos —Sophia repetiu solenemente.

—E como podemos lutar contra o homem que aparece nos meus sonhos?

—Com paciência e com muito amor —assegurou antes de abraçá

la.

X


Uma vez que ambos estavam em frente ao portão de Whespert, olhou de relance para Philip. Seu amigo estava absorvido em algum pensamento irritante que o fazia franzir a testa e apresentar uma cara azeda. Supôs que ainda estava pensando sobre o que aconteceu na casa dos Moore. No entanto, não achou um episódio desagradável, mas exatamente o oposto. A conversa que tiveram durante a caminhada foi tão engraçada que sua mente esqueceu do beijo que roubou da primogênita do médico e da alucinação que teve quando o fez. Mas uma vez que se viu em frente à sua residência e Giesler não tinha mais nada para contar, a realidade retornou, assim como a memória do acordo que fez com a esposa do médico. Por que havia oferecido tal loucura? Um mês? Como poderia, em tão pouco tempo, colocar a jovem no lugar que havia prometido? Por que agira tão impulsivamente? Talvez o desespero da mãe, depois de confessar o que aconteceria se sua verdadeira procedência fosse revelada, o fez reagir de maneira tão impetuosa.

Na verdade, a Sra. Moore não estava errada. Se alguém descobrisse que o famoso médico casou com uma cigana e não com a filha de outro burguês, não só a reputação do médico estaria em risco, como suas filhas sofreriam uma rejeição social que acabaria arruinando a família. Assim,

a única razão pela qual se ofereceu para ajudá-los não era outra senão empatia, e isso não abrangia nenhum sentimento estranho por Anne.

Ele mesmo, por muitos anos, temeu que as pessoas de seu convívio murmurassem sobre a possibilidade de ele não ser um filho legítimo dos marqueses. Infelizmente, a falecida marquesa ameaçou Roger a revelar a verdade e interromper tudo o que ele havia construído com tanto esforço. No entanto, uma vez que ela morreu, seu irmão confirmou que a mulher traiçoeira havia levado o segredo ao túmulo e que a partir daquele momento ele deveria esquecer seu passado e se concentrar no presente. Ainda assim, todos os dias se colocava em frente ao espelho e contemplava o reflexo de quem ele realmente era: um bastardo, filho de uma mocinha que não superou o parto e morreu ao dar à luz.

—O que pretende fazer agora?

A pergunta de Philip tirou-o de suas reflexões. Olhou para ele sem piscar, como se não reconhecesse a pessoa ao seu lado.

—Tenho que pensar no acordo que propus à senhora Moore --

respondeu. —Quanto mais cedo descobrir como oferecer à jovem o reconhecimento que merece, mais cedo poderei voltar à minha antiga vida --

disse pensativo.

—Se eu estivesse em seu lugar, recusaria a todo custo me encontrar novamente com uma filha daquele casal. Mesmo que não acredite

na maldição, eu testemunhei isso. Essas moças são amaldiçoadas —disse ele, colocando a mão no bolso, onde guardara o tubo de metal e apertando-o com tanta força que quase o dobrou ao meio.

—Não seja teimoso. Sabe tão bem quanto eu que o que aconteceu na casa dos Moore não tem nada a ver com essas bobagens que está falando. Admita de uma vez por todas que nossa presença provocou uma tremenda algazarra —resmungou antes de avançar pelo caminho de seu grande jardim. E já que quer se colocar no meu lugar, me colocarei no seu para cuidar da sua língua quando falar sobre elas. Acredito que elas sofreram muito com a miséria que a morte desses homens trouxe, para continuar a adicionar mais tristeza em suas vidas. Além disso, lembre-se de que o único interesse que esses pais têm é casar suas filhas e, à medida que mais testemunhos falsos forem divulgados, eles nunca conseguirão fazê-lo.

Claro, guardou para si o que aconteceu com a mais velha das irmãs depois de beijá-la. Sua mãe havia proclamado que ela tinha o dom de pintar, mas ele tinha vivido em sua própria carne outro muito diferente. Como poderia tê-lo feito projetar essa visão mesmo quando estava inconsciente? Ela teria mais habilidades do que a mãe confessou? Poderia se encontrar em um lugar onde apenas ciganas feiticeiras haviam nascido?

—Cinco! —Philip exclamou revirando os olhos. —Tem que casar as cinco! —Acrescentou com a mesma ênfase. —E uma delas é tão malvada

quanto a terrível Medusa. Quem poderá se casar com essa mulher? Só um louco terá a coragem de se ajoelhar na frente dela e pedir que se torne sua esposa! -- Gritou fora de si.

—Deduzo, velho amigo, que para apaziguar o trauma que sofremos, ambos precisamos de uma bebida. Não é todo dia que mulheres lhe jogam tubos de metal, apontam para o seu peito ou gritam por quão desinteressante é —Logan disse sarcasticamente quando Kilby, atento como sempre, abriu a entrada principal.

—Aquela menininha não gritou por minha causa! —Philip se defendeu. Que seu amigo tenha atacado sua atração masculina doeu mais que um chute na canela. Não passou muito tempo treinando e exercitando um corpo tão grande para ser ridicularizado. —Se bem me lembro, aquela bruxa ruiva gritou quando abriu a porta do salão em que você estava. —Indicou, apertando os olhos na hora em que estava tirando o paletó para oferecê-lo ao mordomo. -- O que estava fazendo? Não me disse que a mulher estava inconsciente? Levitou? —Diante dessa pergunta, ele arregalou os olhos. --

Aquela mulher podia sair do chão voando?

—Sim, claro! E não a viu passando pelo corredor montada em uma vassoura? —Murmurou. —Não diga bobagem, Philip. As irmãs Moore não são amaldiçoadas, nem lançam tubos envenenados, nem serão vistas no meio do jardim fazendo poções malignas. —Virou-se para Kilby para que o

ajudasse com o manto, colocou-o no antebraço e virou-se para Giesler para pegar a jaqueta. —Só precisam de uma pessoa que acredite nelas e que as ajude.

—Bem, nesses momentos, o que preciso é que meu bom amigo abra a porta da adega e me deixe escolher o melhor licor. —Colocou a mão no ombro de Logan e caminhou com ele até a biblioteca, o lugar onde eles ficariam bêbados até que nenhum deles se lembrasse do que tinha acontecido naquela manhã.

—Se está com tanta sede, pode ir ao clube —Logan ofereceu divertido. -- Não quero ter que embarcar em alguns dias porque minhas reservas de vinho do Porto acabaram prematuramente.

—Eles me negaram a entrada no clube por seis meses —disse Philip, puxando o amigo contra ele em um abraço camarada.

—Bentinck? —Exclamou Logan levantando a sobrancelha direita. Não poderia ser outra pessoa. Implicava com Philip desde que jogou cartas pela primeira vez, quando tinha apenas quinze anos de idade, e o acusou de trapacear na frente de todos os convidados do Reform.

—O mesmo —respondeu, desenhando um enorme sorriso depois de recuar e bater no peito como se fosse um gorila celebrando o triunfo de uma disputa.

—Pode esvaziar a adega de uma das suas amantes —ofereceu

enquanto abria a porta da biblioteca e permitia que ele entrasse.

—Mais mulheres? Não obrigado. Com a visita de hoje, tive o suficiente por alguns dias. Além disso, tenho que confirmar se essa aspirante a Medusa não me envenenou —resmungou, dando um passo para dentro.

—Não ficará doente exceto por....

—Milorde...

Kilby tentara informar que o marquês de Riderland estava em casa, mas não ousou interromper a conversa, a não ser quando os viu ir à biblioteca. Uma vez que eles fechassem aquela porta, pediriam uma caixa do melhor uísque e não poderiam ficar de pé por alguns dias.

—Qual é o problema, Kilby? —Logan perguntou se virando para o mordomo.

—Quero te informar que sua Excelência o está esperando no ginásio. Chegou antes das onze e, por mais que tenha insistido que não poderia recebê-lo hoje, porque tinha saído para cuidar de um assunto importante, ele não foi embora.

—Está sozinho? —Exigiu saber enquanto seus olhos estavam ampliados pela excitação de descobrir que seu irmão não havia esquecido o encontro de toda quinta-feira.

—Não, milorde. Vossa Excelência pediu ao jovem jardineiro que se apresentasse diante dele enquanto esperava seu regresso —esclareceu,

expressando certo temor em suas palavras.

Logan deu um grande sorriso quando ouviu que Roger começara a treinar com um de seus criados. Talvez, quando aparecesse na frente dele, uma hora depois de sua chegada, estaria tão exausto pela luta que poderia vencê-lo.

Quando comprou Whespert, a primeira coisa que fez foi construir aquele ginásio localizado na parte de trás da residência. Lá ele ensinava esgrima, treinava no ringue que tinha do lado direito e continuava praticando seu passatempo favorito: lançamento de facas. Olhou de soslaio para Philip que sorria da mesma maneira que ele. O brilho que seus olhos consagravam só podia indicar uma coisa: diversão.

—Sente vontade de dar uma boa surra naquele velho? —Sugeriu a seu amigo, sabendo a resposta.

—Pensei que nunca me perguntaria! —Exclamou, agitando os cílios como se fosse uma mulher tentando seduzir um amante.

Com passos longos e rápidos, os dois homens foram em direção ao salão de vidro, que chamavam de ginásio. Enquanto caminhavam em direção àquele lugar, os dois tiraram suas roupas: jaquetas, gravatas, coletes e até camisas caíram no corredor limpo e brilhante. Como sempre, não ficaram muito tempo nos ladrilhos de cor marfim, porque as donzelas, sufocadas ao ver como dois homens tão grandes e esbeltos se comportavam como crianças,

as apanhavam antes de se sujarem.

—O que diabos fez para não lembrar que hoje é quinta-feira? --

Gritou assim que viu seu irmão aparecer na porta.

Roger tinha o corpo do jardineiro contra o dele. Seus braços tinham rodeado o pescoço do moço e ele tentava afastá-los apertando os antebraços do marquês com as mãos.

—Bom dia irmão. Saí para atender a um assunto urgente. —E

logo depois de falar, caminhou em direção ao marquês com os punhos erguidos.

Roger, prevendo suas intenções, jogou seu oponente para a direita, libertando-o daquela amarração abrupta e se defendendo contra o ataque de Logan. Quando o punho do visconde ia tocar seu rosto, ele se virou e aproveitou a confusão para dar um soco no torso nu.

—Um assunto urgente? —Respondeu no mesmo instante em que pulava para trás, exibindo o brilho do suor que a parte superior de seu corpo mostrava pelo treinamento e fazendo seu cabelo loiro, molhado do esforço, se mover como um leque. —Que urgência poderia fazê-lo esquecer nossa reunião semanal? —Adicionou outro golpe quando Logan tentou atacá-lo por trás.

Imediatamente, o rapaz espancado se dobrou ao meio e olhou suplicante para o amigo. Levou a mão esquerda para a mecha de cabelos

negros que se soltou do rabo de cavalo e observou os movimentos do titã Giesler.

—Mulheres —Philip acrescentou, levantando os punhos para enfrentar o marquês, enquanto Logan se recuperava daqueles golpes duros.

—Lady Rose voltou a sua vida? —Perseverou, respondendo ao convite de Philip, colocando-se em guarda.

—Não, acredito que Lady Rose tenha deixado de existir para o seu irmão, Excelência —disse Giesler antes de acertar a mão direita no Marquês.

Colocou o antebraço esquerdo como escudo e, quando o terceiro impacto de Philip atingiu aquela parte de seu corpo, Roger sorriu e deu um forte golpe no queixo do titã loiro. Embora, para seu pesar, não o tenha movido do chão. A única coisa que Giesler fez, depois do impacto, foi levar a mão direita até o queixo e movê-lo da direita para a esquerda.

—Vejo que meu irmão ouve meus conselhos... —o marquês comentou dando vários passos para trás. Olhou para o alemão de cima e para baixo e sorriu. De fato, Logan escolheu a pessoa mais qualificada para cobrir suas costas. O peito do gigante era duas vezes maior do que o dele e havia montanhas de músculos em seus bíceps.

—Estou ciente disso —Logan comentou sobre o assunto de Philip atacando seu irmão pelas costas.

—Sou mais velho, mas ainda estou em forma—comentou brincando quando viu que, depois de fazer uma pequena pausa, seu irmão colidiu com o alemão. Evelyn cuida de mim corretamente.

—Vou pedir à minha amada cunhada que deixe Londres por algumas semanas —disse Logan, virando-se para encarar seu irmão novamente.

—Minha esposa não vai a lugar nenhum sem mim. —Roger se afastou um pouco, pegou-o pelos punhos e jogou-o no chão, fazendo as costas de Logan estalarem ao tocarem o piso frio.

—O que foi isso? —Disse Philip diante da manobra que o marquês fez.

—Isso se chama w u shù[4] —disse Roger com orgulho. -- Yeng vem praticando esse tipo de luta com Evah desde que ela voltou de seu país e eu também queria aprender.

—Permite

que

sua

filha

aprenda

a

lutar?

--

Philip perguntou incrédulo.

As mulheres estavam mudando, elas não eram as donzelas que precisavam ser salvas. Naquela época, elas lutavam com os punhos e com o que usavam para enrolar seus cabelos.

—Minha filha, Giesler, está sempre em perigo porque é uma Bennett e precisa se defender contra as ameaças que a perseguem —afirmou

Roger, estendendo a mão para o irmão.

—É verdade —disse Logan, aceitando a ajuda para se sentar. --

E, por essa razão, minha querida sobrinha foi instruída pelos dois melhores lutadores que conhecemos: o índio e o chinês. Agora, Evah poderia matar um homem, com apenas um dedo, se ele quisesse beijá-la sem a autorização de seu reverenciado pai.

—Ninguém ousará fazer uma coisa dessas se quiser continuar respirando —disse Roger soberbo.

Um sorriso arrogante cruzou o rosto do pai orgulhoso. Sua amada filha havia herdado a beleza de Evelyn, mas a natureza provocativa era inteiramente sua e esse era o maior perigo que ela poderia enfrentar.

Logan olhou para ele por um curto período de tempo, imaginando se seria a melhor hora para expor que sua amada Evah, sua tenra e inocente filha, era tão apaixonada quanto todos os que tinham sangue de Bennett e que durante a festa de Natalie ouviu como ela beijava Terry, o primogênito de seu sócio Leopold.

—Que mulher aquece sua cama agora? —Perguntou o marquês para Logan enquanto voltava os punhos para ele de novo.

—Não há nenhuma mulher —disse oferecendo-lhe outro golpe que, por sorte, foi certeiro.

—Cinco! —Philip disse depois de aplaudir Logan por aquele

impacto de sorte.

—Cinco? Rompeu seu relacionamento com Lady Rose porque decidiu manter cinco novas amantes? —Roger perguntou ao tentar devolver o reverso. —Não pode se contentar com uma?

—Elas são irmãs... —Logan argumentou, esquivando-se daquele ataque.

—Quer manter um idílio com cinco irmãs ao mesmo tempo? --

Disse o Marques confuso. Naquele momento, ele se esquivou de um novo desafio, levantou as palmas das mãos e parou a luta no ato. —Explique-se agora mesmo! —Berrou colocando as mãos em cada lado da cintura, brilhando de suor.

—Não podia ficar de boca fechada? —Gritou para Philip, que tinha os braços cruzados defensivamente. —O que está querendo? Que meu irmão me faça mudar de ideia?

—O

que

está

acontecendo,

Logan

Bennett?

--

Roger rosnou adotando na mesma posição que Giesler. —Dê-me uma explicação razoável antes de me ver obrigado a dizer a Evelyn que meu amado irmão não levou a amante, com quem viveu por dois anos, porque decidiu —enfatizou —jazer sob a horrível repugnância da poligamia.

—Está equivocado... —o visconde resmungou. Virou as costas para eles, caminhou em direção a uma das cestas da sala e pegou várias

toalhas.

—Bem... vá em frente, vamos conversar! —Roger pediu um tanto irritado. —Preciso de uma resposta coerente imediatamente! —Exigiu, adotando a atitude de pai.

—Nosso estimado lorde decidiu visitar a educada e gentil família Moore esta manhã —começou Philip, sarcasticamente. ?E esse casal respeitável tem cinco filhas adoráveis —esclareceu com aborrecimento.

—Por que apareceu na casa dos Moore? Está doente? --

Perguntou o Marquês enquanto estendia a mão para a toalha que Logan atirou nele.

—O Sr. Moore veio me ver várias noites atrás. Desejava que, na próxima viagem, eu levasse sua primogênita no meu barco —começou a explicar enquanto caminhava na direção deles.

—Está falando sobre a jovem retratista? Por que quer tirá-la de Londres? Não tem clientes suficientes? Deixaram de contratá-la? —Roger perguntou enquanto limpava o suor do rosto e do peito.

—Segundo parece, a mulher é amaldiçoada e o bom pai quer se livrar dela porque o impede de encontrar um marido para as outras... —Philip não terminou sua exposição porque a toalha que Logan jogou o atingiu com força no rosto.

—Ela não é amaldiçoada e não é a causa de nada —resmungou o

jovem Bennett. —A moça, como disse, é uma excelente pintora e eles acham que, se ela deixar Londres, poderá ter a fama e o prestígio que merece.

—Eu não entendo... —murmurou Roger, olhando de um e para o outro. —Ela está amaldiçoada ou anseia por um futuro melhor?

—Não consigo entender depois do que aconteceu com aqueles cavalheiros —disse Philip, jogando a toalha encharcada de suor no cesto de vime que tinha as suas costas. Ele jogou os braços para trás, como se precisasse de mais espaço em suas costelas para respirar depois de lembrar da jovem Medusa e seus rolos novamente. Por que diabos não conseguia tirá-la da cabeça? Ficou inebriado ao pensar que ela não estava usando nada sob aquela camisola? Ou talvez ele se mantinha em estado de alerta no caso de ficar doente logo? O que quer que fosse, a senhorita Mary Moore estava dentro de sua mente e não podia eliminá-la como fazia com qualquer amante.

—Primeiro de tudo, investiguei as mortes dos seus noivos e....

—Seus pretendentes morreram? —Soltou Roger, abrindo bem os olhos e interrompendo seu irmão.

—Dois, Excelência. Morreram os dois únicos homens que ousaram desafiar essa... —Philip ficou em silêncio de novo porque Logan, traiçoeiramente, o atingiu de lado.

—Nenhuma maldição! —O visconde exclamou com raiva. --

Aqueles cavalheiros procuraram a própria morte! -- Continuou com raiva

?Ela é uma vítima do desempenho de dois homens absurdos!

Queria bater em Giesler de novo, mas este evitou o golpe, agarrou-o com força e virou-o para o marquês.

—Deixando essa suposição de lado —Roger começou calmamente. ?O Sr. Moore não foi cauteloso o suficiente para procurar outro dono de um navio?

—Por que deveria fazer isso? —Disse Logan se esforçando para se afastar de Philip. —Não acredita que eu poderia protegê-la até que desembarcasse no país ao qual desejam enviá-la? —Deu um passo à frente, depois de atingir seu objetivo, virou-se para o amigo e olhou-o como se quisesse arrancar seu coração.

—Os homens iriam se revoltar se houvesse uma mulher em um navio! E essa maldição seria cumprida em alto mar! Nós nos tornaríamos um navio fantasma, cercados por cadáveres e seríamos devorados por essa mulher e sua infeliz irmã do diabo! —Exclamou Giesler dando um passo para trás. Se sua experiência não o enganasse, como ele não fechava a boca, o que não faria para salvar seu companheiro, este tentaria acertá-lo novamente.

—Use esse tom de novo para falar sobre ela e ficará sem dentes

—alertou Logan, levantando os punhos.

—Chega! —Roger interveio que, espantado com o olhar que seu irmão oferecia ao seu melhor amigo, resolveu colocar a paz entre os dois e

esclarecer, de uma vez por todas, o que tinha acontecido. —O que diabos aconteceu naquela casa para manter esse comportamento tão desprezível?

—Quer que eu explique, Excelência? —Disse Philip sarcasticamente.

—O avisei! ?Logan gritou antes de pular na direção do amigo.

Como duas crianças, eles começaram a se socar. Roger, a princípio, permitiu essa atitude infantil por alguns minutos, mas quando descobriu que havia sangue em ambas as bocas, se colocou ao lado deles e os removeu bruscamente.

—Ele fez um acordo com a Sra. Moore —disse Philip enquanto afastava o sangue de um dos lábios para longe com as costas da mão.

—Um acordo? —Roger perguntou ao irmão, que fez o mesmo que Giesler. —Que acordo fez com essa família, Logan?

—Quero mostrar a esse pai que não há nenhuma maldição. Que tudo aconteceu de uma forma acidental e que a jovem pode encontrar um marido quando e onde ela quiser —disse sem qualquer preocupação.

—É melhor comprar um colarinho de alho ou dizer ao seu irmão onde quer ser enterrado se for se aproximar dela de novo —disse Giesler, desesperado.

—Não teve o suficiente? —Retrucou Logan dando um passo em direção ao amigo, mas os dedos de Roger pressionaram seu braço esquerdo,

impedindo-o de começar outra briga.

—O que pretende fazer? Como vai conseguir o que prometeu? --

Quis saber o marquês sem soltá-lo.

—Se o que eles querem é que a moça consiga o prestígio que ela merece, eu darei a ela —começou a dizer mais calmo. -- Não tenho dúvidas de que, se conquistar a fama que deseja, a senhorita Moore terá milhares de pretendentes na porta de sua casa —disse muito seguro de si mesmo.

—E o dono do coche funerário esfregará as mãos quando esses imbecis estiverem à sua porta! —Philip gritou com raiva.

—Giesler, silêncio! —Roger repreendeu-o como a uma criança pequena.

—Excelência —disse Philip em uma voz mais calma. —Seu irmão, meu amigo, que usou meu corpo como escudo em muitas ocasiões --

enfatizou —não pensa com clareza. Não só a primogênita está amaldiçoada, mas o resto das irmãs também. Sofri, na minha própria carne, a ira de uma bruxa —disse sem respirar.

—Neste momento, vamos nos concentrar na filha mais velha e teremos tempo para as outras —disse Roger, adotando a atitude do marquês que era. Se virou para Logan, que ainda estava segurando seus punhos tão apertados que suas juntas ficaram brancas. —Como conseguirá que uma pintora consiga a fama que deseja nesta maldita cidade? -- Insistia em

descobrir.

Roger sabia que ela poderia ser a melhor artista de Londres, que poderia ter nascido com uma habilidade sem precedentes, mas temia que mesmo a sociedade de Londres não estivesse preparada para que uma mulher ocupasse uma posição superior à de um homem, a menos que fosse a cortesã mais experiente de um bordel de prestígio.

—Não sei... —Logan murmurou girando em seus calcanhares e parado em frente à porta. —Estou pensando nisso...

—Poderia pedir a ela para retratá-lo —disse Philip sarcasticamente. —Não me disse que só pintava rostos de mulheres ou crianças? Bem, se aceitar um contrato de trabalho seu, poderia ser o precursor de outros cavalheiros. Não só as mulheres devem exibir seus belos rostos na entrada das casas —acrescentou com violência. -- Assim, todas as casas terão um retrato dos homens que vivem nelas e.... —deu um sorriso largo --

e se não estão, os amantes dessas tristes viúvas poderão ver o rosto daquele que construiu a casa em que se deitará com sua antiga esposa.

—Ou pode pintar minha querida Evelyn —explicou Roger como uma alternativa. —Certamente ela ficará encantada e, desta forma, os viciados em fofocas sociais permanecerão de boca fechada.

—Que quer dizer? —Logan perguntou se virando para eles.

—É um Bennett e sabe para o que nossos ancestrais masculinos

se dedicaram. Se fizer essa menina ficar em sua casa mais do que estipulado como correto, seu prestígio seria arruinado, assim como sua honra.

—Verdade... —Philip refletiu, relaxando com o julgamento razoável do marquês. —Não posso nem imaginar os prós e contras que ofereceriam sobre a pintora e o visconde. Seriam semanas, meses e até anos para debater sobre quando, como e por que essa mulher conseguiu o que as outras não conseguiram. Sem mencionar como sua última amante aceitaria a notícia. Tenho certeza de que Rose perguntaria sobre ela e arrancaria seus olhos assim que a tivesse na sua frente. Embora também... —disse enquanto tocava o queixo coberto por um arbusto de barba loira —essa moça possa ser protegida pela discípula de Medusa. Certamente Rose virará pedra quando notar o estranho penteado que usa sobre sua cabeça. —E depois dessa afirmação, soltou uma gargalhada enorme.

—Deve pensar sobre este assunto com calma e não agir com pressa —disse Roger, colocando a mão esquerda no ombro do irmão. —Não quer se ver na obrigação de casar com ela por esse absurdo, certo?

—Casar? Que estupidez! Logan não pode se casar! Certamente ele prefere ter varíola a viver com aquela moça pelo resto de sua vida! --

Philip exclamou enquanto se afastava do ginásio.

Mas o marquês não escutou as frases dolorosas de Giesler. Não conseguia desviar o olhar do irmão e, se não estava enganado, parecia que a

ideia de ficar mais tempo com essa mulher misteriosa não era tão desagradável quanto o amigo pensava.


***


—Que

Deus

tenha

piedade

de

nós!

—Exclamou

Randall sem parar de andar de um lado para outro, enquanto acariciava seu velho rosto de maneira desesperada. —Tenha piedade desta família! --

Acrescentou exasperado.

Sophia o observava sentada no sofá, esperando pacientemente que ele se acalmasse. Sabia que depois daquele episódio de ansiedade refletiria sobre o assunto. Mas parecia que o tempo de espera ia ser maior do que em ocasiões anteriores, porque seu rosto estava completamente vermelho, apenas respirava calmamente e acariciava seu cabelo como se quisesse arrancá-lo de sua cabeça.

De repente, Randall ficou na frente dela, levou as mãos à gravata e tentou retirá-la, como se a peça de roupa estivesse sufocando-o.

—Randall, querido, respire devagar —sugeriu, levantando-se e pegando a peça de roupa da qual ele não podia se desvencilhar. —Como lhe disse, selamos um acordo e não duvido da sua palavra.

—Um acordo? Realmente acredita que um aristocrata agirá de

acordo com suas palavras? Desde quando confia tanto nesse tipo de gente? --

Soltou com mais raiva do que nunca.

Com aquela expressão de fúria, Sophia deu vários passos para trás. Não estava com medo, mas confusa. Até então, o marido nunca estivera tão zangado. Ela errou no acordo? Seu marido não concordava que o visconde deveria tentar ajudar sua filha? Não tinha ido até ele para pedir ajuda? Pois, ele havia vindo, mas não com a opção que havia pedido. No entanto, ela sentia que a nova decisão era a melhor alternativa para todos desde que Anne confessara que o visconde era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Sinto muito —ele se desculpou enquanto observava sua esposa recuar. ?Lamento oferecer-lhe este horrível espetáculo —disse inclinando a cabeça, arrependido por uma atitude tão desagradável.

Nesse momento, Sophia voltou para o seu lado e o abraçou confortando-o.

—Ele me deu sua palavra e, quando nossas mãos se uniram para selar esse acordo, notei em seus olhos que estava dizendo a verdade. Esse homem é diferente dos outros.

—Tem certeza? Quantos aristocratas são confiáveis? Quantos escrevemos no caderno negro, querida? Você, melhor do que ninguém, sabe o quanto são cruéis e os danos que podem nos causar —disse com mais

calma.

—Reflita um pouco, Randall. Ele apareceu em nossa casa, trouxe o envelope que lhe ofereceu e, depois de ouvir uma das razões pelas quais Anne deve sair de Londres, ficou tão interessado que decidiu colocá-la no lugar a que a corresponde. Logicamente, todo o resto deve permanecer em segredo.

—Mas esquece que nossa filha diz ser amaldiçoada —murmurou, colocando o queixo no cabelo preto de sua esposa -- e suas irmãs, especialmente Elizabeth, acham que é verdade. Talvez, como Anne diz, deveria partir para alcançar um futuro favorável longe desta cidade.

E depois de expor essas palavras, Sophia deu vários passos para trás. Agora era ela quem estava com raiva e rezou a sua mãe criadora para que não estivesse escutado bem.

—Quer que ela vá embora? —Gritou. É tão obtuso que ainda acha que Anne deveria se afastar de nós? Não é você quem está sempre dizendo que prefere suas filhas por perto?

—Não me entenda mal... —disse abaixando a voz. —Anne pode fazer o que quiser e se conseguir ficar aqui, ela me faria o pai mais feliz do mundo.

—Então? —Perguntou colocando as mãos na cintura. -- Não gostou que eu interferisse neste assunto? Não me vê capaz de ajudar a

família?

—Ah não, não, não! —Exclamou o médico mexendo as mãos da direita para a esquerda. -- Tenho certeza de que suas intenções estão corretas. A única coisa que questiono é a posição do visconde. Lembre-se de que é um Bennett? Sabe o que aconteceu com os antigos marqueses?

—Sim, claro que sei! E você também sabia quando foi pedir a ele para levá-la em seu navio! —Disse.

—Mas não é o mesmo... -- murmurou.

—Por que não é o mesmo? —Esbravejou. -- Por acaso sua palavra é superior à minha? Explique-se agora mesmo, Randall Moore, ou dormirá naquele sofá pelo resto dos seus anos! —Ameaçou.

—Sophia, querida, entende que a vida nesta cidade é diferente...

—O que? -- Interrompeu-o.

—Se o visconde, com essa reputação que o precede, passear com a nossa filha ou ela espera em sua casa mais tempo do que é devido, o que vai acontecer?

—Pelo menos eu prevejo que não acabará enterrado abaixo da terra -- declarou ela solenemente.

—Não se importa com a reputação da sua filha? —A repreendeu.

—Acaso não sabe a reputação que tem? —Contra-atacou.

—Por favor... não discutam por minha causa —disse Anne, que

entrou na sala sem que seus pais a ouvissem.

—Não é uma discussão, querida -- disse Randall, caminhando para ela. Ele a abraçou com força, beijou-a na testa, colocou as mãos em seus antebraços e lentamente retirou. Sua mãe fez um acordo com o visconde e não me pareceu apropriado.

—Por quê? —Anne queria saber.

—Porque eu não sei o que pretenderá. —Explicou —Esse homem é um Bennett. Sabe que fama tem todos àqueles que levaram esse nome?

—Não confiou a ele a tarefa de me levar em seu navio? --

Soltou Anne, defendendo o homem que aparecia em seus sonhos.

Randall ficou pálido, engoliu em seco, virou-se para Sophia e disse:

—Toda sua. Tenho certeza que no final...

O médico não pôde terminar a frase porque alguém bateu na porta. Os três se viraram e olharam para ela, esperando pelo aparecimento de outra das filhas que teriam ido até lá pelas vozes. No entanto, a pessoa que apareceu na entrada foi Shira.

—Senhorita... Senhorita... —ela tentou dizer, mas as palavras não saíram. A única coisa que podia fazer era estender o envelope que tinha nas mãos para a deles.

—Shira? —Perguntou Sophia ao vê-la tão inquieta. —O que

ocorre? Por que está tão nervosa?

—Um... um servo acaba de me dar essa missiva e está endereçada a senhorita Anne -- informou.

—Quem mandou? —Randall exigiu saber caminhando em direção à criada.

—Tem o selo do visconde de Devon —esclareceu Shira.

E nesse momento Anne notou que a sala começou a girar em torno dela. O visconde estava se dirigindo a ela? Por quê? O que queria? Falaria sobre o acordo que fez com sua mãe? Teria pensado melhor e rejeitado?

Com as mãos trêmulas, ela avançou em direção a Shira antecipando seu pai, pegou o envelope, aproximou-se de um dos assentos e, sem que seus pais pudessem se separar dela nem um único passo, abriu-o: Cara senhorita Moore:

Estou lhe escrevendo pessoalmente para indicar que, depois do que foi acordado com sua mãe, encontrei a melhor maneira de obter nosso acordo. Peço-lhe que apareça amanhã em minha casa às doze horas. Espero que apareça com uma acompanhante. Não quero difamar seu bom nome. Prometo que comentarei, com mais detalhes, o plano que elaborei.

Uma cordial saudação

Logan Bennett, visconde de Devon.


Anne leu a carta várias vezes e depois deu aos seus pais para que eles pudessem descobrir o que ele havia escrito sem ter que sentir a respiração deles na nuca. Seu coração batia tão rápido que, novamente, queria sair do peito. Agarrou a saia do vestido com força, impedindo-os de descobrir o tremor de seus dedos. Em pessoa. Ele exigia sua presença. Falariam sobre o acordo, sobre o plano. Mas... seria capaz de ouvi-lo antes de desmaiar? Teria a coragem de se manter de pé sem perder sua força?

—Deve comparecer —disse Sophia, devolvendo a carta. --

Amanhã se apresentará em sua casa acompanhada por Mary.

—Acha que é conveniente? —Perguntou levantando o rosto, que empalideceu depois de descobrir o que estava escondido na missiva.

—Sim —disse Sophia sem hesitação.

—O que acha pai? -- Em seus olhos mostrava uma súplica. Até agora, toda vez que olhava para Randall dessa maneira, sentia pena dela e dava outra alternativa. No entanto, o brilho de seus olhos castanhos lhe disse que ambos concordaram que deveria fazer essa loucura.

—Deve ir —Randall disse sem pensar por um único segundo.

—Claro que ela deve ir! -- Sophia repetiu com autoridade. —Ele deu sua palavra e eu dei a minha —acrescentou.

—Nesse caso... se os dois concordarem, eu vou —disse Anne, dobrando a carta em porções tão pequenas que poderia escondê-la dentro de sua palma.

—Espero que seja um bom acordo —interveio Randall.

—Posso negar se o que me oferecer não me convier? --

Soltou Anne, levantando-se bruscamente.

—Claro! —Sophia respondeu rapidamente. -- Se o que sugerir não for do seu agrado, pode rejeitá-lo imediatamente.

—Obrigada! —Agradeceu.

—Agora, avise as suas irmãs que vamos jantar antes das cinco. Vamos conversar sobre o que elas fizeram com o pobre Sr. Giesler, com o seu pai e o que acontecerá amanhã. Além disso, devemos escolher as palavras certas para informar Mary que amanhã irá acompanhá-la —Sophia comentou calmamente.

—Poderia acompanhá-la Josephine com sua arma —disse Randall. -- Desta forma, a honra de nossa filha não... —Ele ficou em silêncio, pensando no nome que sua mulher dissera, virou-se para ela, com os olhos arregalados e soltou: -- Disse Sr. Giesler?

—Sim, querido, eu disse isso -- falou caminhando para ele.

—Disse que algo aconteceu com o Sr. Giesler e nossas filhas? --

Perseverou.

—Algo... Sim. Algo aconteceu... —disse evasiva.

—E.... o que é esse algo, Sophia? Sabe que ele não é um homem comum, certo?

-- Não? —Perguntou inocentemente.

—Não, ele é um futuro barão alemão —o médico determinou muito seriamente.

—Isso explica a cor do seu cabelo, seus olhos e sua pele... --

continuou misteriosamente.

—Mas... o que aconteceu na minha ausência? —Randall perguntou espantado.

—Anne, por favor, procure suas irmãs e informe-as do que vamos fazer enquanto eu explico ao seu pai o que aconteceu com.... lorde Giesler? —Retrucou, agarrando o braço dele.

—Sim, mãe -- respondeu Anne.

—Por favor... não me deixe em suspense, Sophia. Sabe que posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento —disse Randall enquanto sua filha se afastava deles.

Anne caminhou em direção à saída tentando controlar o tremor de seu corpo. No dia seguinte, ela apareceria na casa do visconde. Eles ficariam sozinhos, falariam... O que ele teria pensado em fazer com ela? Como ele tinha idealizado um plano tão rapidamente? Depois de fechar a porta, apoiou

as costas sobre ela, olhou para o papel dobrado e suspirou. Seria uma loucura e sabia disso. A ideia de ficar com aquele homem era uma insensatez porque não conseguia parar de pensar no que os dois faziam em seus sonhos. Ela não seria capaz de respirar ao seu lado, ou ficar sã, ou... nada. Levou a mão esquerda aos lábios e acariciou-os. Ainda sentia um toque imaginário, um beijo inexistente, uma sensação e um calor sonhado. Porque tudo era irreal, como o que via à noite...

—O que aconteceu lá? —Perguntou Elizabeth quando a viu daquela maneira tão estranha.

—Vamos! —Disse, pegando sua mão e puxando-a para as escadas que levavam para o quarto.

—O que há de errado, Anne? O que está acontecendo? --

Insistiu Eli intrigada.

—Quero que me conte tudo o que sabe sobre o irmão de Natalie.

—Sobre o Marquês?

—Não, sobre o visconde de Devon —esclareceu quando se viraram para o corredor da esquerda.

—Oh, meu Deus! —Elizabeth exclamou apavorada. —Esse homem não é adequado! É um libertino! Um homem que não é capaz de amar qualquer mulher porque não tem coração!

XI


Que pudesse conciliar o sono facilmente estava descartado...

Uma vez que Mary apagou a lamparina na mesa, depois das três horas da manhã, Anne esperou silenciosamente que caísse no sono. Não queria que a irmã descobrisse que ainda estava acordada porque se sentaria na cama e tentaria falar sobre todos os pontos negativos que a reunião teria, e não estava disposta a ouvir outro sermão sobre a sensibilidade feminina. Tudo o que queria era se acalmar e assimilar as repercussões que teria após a convocação inesperada.

Quando ouviu os roncos singulares de Mary, se levantou e foi até a janela. Ao afastar a cortina, observou a luz da lua iluminar os arredores da sua casa, dando-lhe uma aparência bastante serena. Colocou a mão direita no vidro, sentindo o frio do lado de fora na pele. Sem esperar que a palma voltasse a temperatura do resto de seu corpo, colocou-a na camisola, logo acima do peito, para aplacar a batida do coração, mas não conseguiu. Pelo contrário, ia contra a sua dona e, como vingança, vibrava com mais força. Desconcertada por essa reação incomum, Anne pressionou a testa contra a janela e suspirou. A incerteza de descobrir o que o visconde queria dela tornou-se mais angustiante e seu pesar aumentava à medida que percebia que no dia seguinte estariam juntos... de novo.

Seu corpo, pensando sobre essa reaproximação, estava cheio de tanta energia que poderia sair do quarto e passar por todas as ruas da cidade sem se cansar. Era como se, das profundezas de seu ser, aparecesse uma força estranha que tentava viver ou sentir tudo o que nunca havia vivido ou sentido. Mas devia controlar essa emoção tão explosiva. Não podia se deixar levar de novo por sentimentos impulsivos. Cometeu um erro no passado, aprendeu com ele e agora se tornara uma mulher muito diferente.

Olhou para fora, fixando os olhos na copa da árvore mais alta do jardim. Balançava de maneira semelhante àquela que via em seus sonhos. Foi assim que tudo começou, com a chegada de um pequeno sopro de ar que fazia as folhas das árvores e as chamas da fogueira se moverem. Então tudo se apagava e até mesmo o canto parava para dar lugar à figura masculina mais perfeita que já conhecera. Desviou o olhar do lado de fora e focou em suas mãos. Elas a pinicavam e o mantinham inquieta, como sempre acontecia quando se colocava diante de uma tela em branco. O que estavam tentando lhe dizer? Queriam pintá-lo? Mas... como poderia capturar o poder e o fascínio que ele mostrava em uma pintura? Com um leve movimento, sentou-se no peitoril da janela, colocou a carta dobrada sobre a camisola branca e agarrou-se aos joelhos para continuar apaziguando o tremor das mãos segurando-as em si mesma. Mesmo assim, continuavam se movendo, inquietas, agitadas, pedindo, com tremores leves, que abandonasse o quarto,

se trancasse na sala de pintura e não desperdiçasse mais tempo.

Respirou fundo, olhou para fora e focou na imagem do homem que despertara nela um instinto tão selvagem. Não podia fazer tal loucura. Não podia pintar o rosto daquele homem. Mas sua mente lançava uma batalha contra essa persistência. Ela gritava que deveria se render ao desejo e não se opor mais. Mas... qual seria a primeira coisa que pintaria sobre ele? Seus ombros? Os braços fortes? Não, isso não era tão importante. Depois de pegar um carvão e escolher a tela certa, daria forma àqueles olhos puros, àquele olhar sincero. Marcaria as sobrancelhas e os cílios escuros e deixaria os círculos de sua íris em branco, para dar-lhe o tom de céu azul quando terminasse com o rosto. Enfatizaria a forma de coração que seus lábios apresentavam, marcaria o queixo masculino, iria embelezá-lo com aquela espessa barba negra e, assim que a mandíbula mostrasse sua masculinidade, continuaria com o cabelo. Como gostava mais? Com o cabelo solto, movendo-se com o ritmo daquele vento que aparecia em seu sonho, ou como o usava nas duas ocasiões em que o viu; amarrado em um laço? Anne pressionou a testa no vidro novamente e uma cerca de névoa quente, devido a sua respiração, foi refletida nele. Ergueu a mão direita sem estar consciente, colocou a ponta do dedo indicador na direção daquela leve marca de vida e desenhou o contorno dos olhos em que pensava. Ela se afastou um pouco, apenas o suficiente para admirar o que tinha feito e, de repente, algo nela

mudou. Poderia chamá-lo de entusiasmo? Ou melhor, se tratava de uma loucura? Anne não podia definir essa nova atitude que tomou conta dela, porque nunca havia sentido nada parecido. Sem pensar, se colocou de pé no parapeito da janela, sem lembrar que tinha sobre os joelhos a carta do visconde, e que terminou descuidadamente no chão e começou a expelir todo o vapor que podia pela boca para continuar desenhando. Durante pouco mais de uma hora, aquela janela se tornou a tela mais apropriada para ela. De cima para baixo, da direita para a esquerda, sua respiração se tornou a tinta de cor que usava para o trabalho, seu dedo o pincel e os pulsos, as borrachas para apagar o que não era preciso. Quando terminou, quando não havia sequer um pequeno detalhe para pintar naquele rosto, colocou os pés no chão, caminhou para trás e admirou seu trabalho. A lua brilhava tanto que parecia um farol na janela. Seus raios atingiram o vidro, cruzando apenas as áreas que ela não havia desenhado. Os olhos, as sobrancelhas, o nariz, os lábios, a barba e os cabelos que finalmente pintou livres e agitados pelo vento, se apresentava com tal realismo que parecia respirar e observá-la em silêncio. Sem ser capaz de desviar o olhar daquelas linhas perfeitas, ela colocou as mãos no peito e sentiu como ele batia sem controle.

—Me parece tão... vivo, tão ... meu, que agora tremo de medo --

ela sussurrou. Mas não posso...

Um ronco mais alto do que o habitual fez os lábios de Anne

apertarem e se virou para Mary. Aqueles encrespadores na cabeça não permitiam que ela respirasse corretamente e, toda vez que se movia, bufava alto. Depois de confirmar que ela não tinha acordado, se virou para aquela imagem que parecia persegui-la e olhou para ela por um longo tempo. O que ele iria querer dela? O que pensava dizer a ela? Por que ele aparecia em seus sonhos? Por que seu corpo reagia estranhamente desde que apareceu em sua vida? Seria a maldição ou o medo de que ele tivesse o mesmo futuro que seus dois pretendentes? Enquanto tentava encontrar respostas para todas as suas perguntas, se abaixou, pegou a missiva, voltou para a cama, cobriu-se com a colcha e adormeceu olhando para aquele rosto.


***


—Vamos! Hoje não é um bom dia para descansar! —Sophia exclamou depois de abrir a porta e encontrar suas filhas dormindo pacificamente. —Há muitas coisas para fazer antes de visitarem o visconde

—acrescentou enquanto caminhava até a janela.

Anne abriu os olhos muito devagar, com certa preguiça. Era a primeira vez, em muito tempo, que havia descansado dessa maneira. E nem sonhara com o visconde! Essa ideia a perturbou tanto que se sentou rapidamente na cama. O que diria a sua mãe quando perguntasse sobre o

sonho? Devia mentir para ou contar a verdade? Mas sua ansiedade mudou de direção quando descobriu que ela estava indo em direção à janela onde tinha pintado seu rosto. O veria através da luz do dia? Como pode ser tão descuidada que não a limpou antes de ir dormir?

—Nem pense em descer sem se arrumar —disse Sophia a Mary depois de puxar a cortina da janela da esquerda, sem perceber por que a outra não estava em seu lugar. Se virou para a segunda de suas filhas e continuou:

?Viu o que aconteceu ontem e não estou disposta que suas irmãs fiquem alteradas novamente por sua causa. Hoje é um dia especial para a família e nada deve nos preocupar, exceto a reunião de Anne com o visconde.

Ao ouvir essa afirmação, Anne notou como seu estômago apertava e como seu coração batia tão rápido que os ecos dessas palpitações retumbavam em sua cabeça.

—Está preocupada, querida? -- Perguntou depois de afastar bruscamente os lençóis de Mary. Não fique. Sabe que seu pai e eu iremos apoiá-la em qualquer decisão que tome.

O rosto de Sophia, apesar dessas palavras, mostrava desapontamento. Não duvidava da sabedoria de sua filha, mas tinha certeza de que o visconde se dispusera a oferecer-lhe algo que não podia ser negado.

—Levante-se imediatamente! —Gritou para Mary quando, ao sentir o frio em seu corpo, alcançou o pé da cama e se cobriu novamente.

—Cinco minutos a mais... —pediu depois de colocar o travesseiro naquele ninho de bobes de metal.

—Eu disse a Foderhy para trazer uma xícara de café bem forte --

explicou Sophia, tirando os lençóis novamente. —Espero que seja o suficiente para que se mova.

—Nem pense mãe —Mary começou a dizer enquanto se espreguiçava. -- Se me fizer beber mais café do que o habitual, meu corpo reagirá de maneira contrária a que quer.

—Sabe o que está tentando me dizer? —Perguntou a Anne enquanto arregalava os olhos.

—Não —disse a primogênita, colocando os pés no chão. -- Mas certamente a resposta estará no livro que ela guarda debaixo da cama.

Quando Mary ouviu essa declaração, se ergueu rapidamente do colchão e foi à sala de banho. Não seria apropriado, pelo menos dessa vez, que sua mãe lesse o título do livro que estava escondendo. O que pensaria dela quando descobrisse que pegara um dos romances de Elizabeth? Que ficara louca! E talvez estivesse certa, porque nem ela sabia por que, depois do confronto com aquele maldito cavalheiro, queria encher a cabeça com bobagens.

—Não demore —Anne disse antes que sua irmã fechasse a porta.

—Não se preocupe, só quero esvaziar minha bexiga para que

possa enchê-la novamente com o que nossa mãe determinou que eu preciso.

—Mary Moore! —Sophia disse, colocando as mãos na cintura. Está zombando da mulher que lhe deu vida? Que a levou em sua barriga durante uns agonizantes nove meses e meio?

—Nove meses e meio? —Ela perguntou, levantando as sobrancelhas. —Posso confirmar que sou inteligente desde então. Sabia que o mundo era tolo o suficiente para uma mulher tão instruída quanto eu nascer nele ? hesitou antes de fechar a porta.

—Não sei o que fazei com ela! —Exclamou Sophia com raiva. --

Ninguém pode parar essa língua tão insolente!

—Não se aflija, mãe. Quando o homem de quem Madeleine falou aparecer, usará sua língua para outra coisa —disse Anne divertida.

-- Não diga bobagem, Anne Moore! Sua irmã não é como você!

E nesse momento se sentiu a mulher mais estúpida do mundo.

—Dessa vez será Shira quem a vestirá. Disse a ela que vestido deverá usar.

—Como? -- Perguntou atordoada. -- Não confia na minha escolha?

—Claro que não. Ultimamente mostra uma imagem bastante inapropriada. Então, a partir desse momento, aviso que, se levar uma peça de roupa sequer da cor laranja, abrirei seu armário enquanto estiver fora e

queimarei tudo o que me causar repulsa —disse severamente.

—Senhora... —a criada falou justamente quando Anne estava planejando dizer que não deveria ameaçá-la ou projetar nela a fúria que Mary criou.

—Vá em frente —disse a Sra. Moore.

Sophia foi até a porta quando Shira começou a procurar o vestido no armário, olhou para a filha, depois para a donzela e apontou:

—Que ela não arrume o cabelo sozinha. Eu quero que a penteie e não faça aquele coque absurdo que insiste em usar. Deixe alguns fios em seus ombros, mas não esconda seu rosto.

—Sim, senhora —Shira confirmou, pegando o vestido escolhido e caminhando para a moça.

Anne, quando descobriu o vestido que deveria usar, olhou de lado para a mãe, que estava imóvel na porta, e apertou os lábios para não responder. Por que tinha decidido arrumá-la como se estivesse indo para uma festa? Não estava ciente de que ia mostrar ao visconde uma imagem errônea? Não pretendia seduzi-lo com o decote oferecido por aquele vestido rosa pastel, nem que se distraísse observando alguns cachos tocavam a pele de seus ombros levemente. Ela precisava que ele falasse sobre o acordo, ponderar se estava interessada ou não e sair de lá o mais rápido possível.

—Mary Moore! Saia do banho de uma vez ou queimarei seus

livros na lareira da sala! —Sophia gritou ao perceber que estava demorando mais do que prometera.

—Como pode expressar tal heresia? —Respondeu a jovem, abrindo a porta rapidamente.

—Porque sabe que farei —respondeu com firmeza.

—Pelo amor daquele Deus que constantemente evoca! —Mary exclamou, enquanto levava as mãos para os rolos. Hoje não consigo nem urinar tranquila?

-- Urin... o que? —Shira perguntou, olhando para a segunda das irmãs duramente enquanto observava como tirava os rolos metálicos de forma inadequada.

-- Urinar —Mary repetiu, caminhando até o armário. —A função que alguns seres vivos realizam para esvaziar o que nós contemos em nossa bexiga —ela acrescentou. —As mulheres têm um...

—Nem pense mais em falar sobre esse assunto! —Sophia esbravejou horrorizada. —Não é hora de falar sobre um assunto tão efêmero.

—Disse efêmero? —Mary retrucou, virando-se para a mãe com um sorriso de orelha a orelha. —Oh! O que meus ouvidos captaram? Posso concluir que tudo ainda não está perdido nesta família? —Continuou zombando.

—Mary Moore —Sophia começou a dizer, caminhando

lentamente até a sua segunda filha. —Realmente acredita que a inteligência que possui vem do seu pai?

—De quem mais? —Ela respondeu arrogantemente.

—Pois está errada...

—Não tenho tanta certeza. De acordo com alguns estudos que tenho...

Ela ficou em silêncio quando sua mãe levantou um dedo da mão direita.

—Elimine tudo o que tem nessa cabeça teimosa e seja, por uma vez, uma mulher respeitável. Quero que se comporte corretamente na casa do visconde hoje. Se Anne me informar que causou uma briga, usarei todos os meus encantos de mulher para seu pai concordar em excluí-la de suas próximas reuniões médicas —garantiu, colocando as mãos na cintura.

—O papai não aceitará isso —desafiou, apertando os olhos. --

Ele, melhor do que ninguém, ama minhas réplicas e não vai querer perder como sua filha erudita destrói qualquer abordagem masculina irracional.

—Acho que não teria tanta certeza. Porque, uma vez que feche a porta do nosso quarto, ele fará tudo o que eu pedir —disse mordazmente.

—Por favor! —Mary disse, revirando os olhos. —Joga com vantagem!

-- E? —Sophia insistiu sem reduzir seu tom de voz cruel.

—Não vou demorar mais um minuto! —Afirmou caminhando até Foderhy, a donzela encarregada de atendê-la e que esperava do lado de fora do quarto até que a discussão entre mãe e filha tivesse terminado.

Enquanto Shira ajustava o vestido para Anne, Mary não parou de reclamar sobre como a vida era injusta para ela. Murmurava sobre sua felicidade e sobre a única coisa que precisava para alcançá-la: viver cercada de livros sem que ninguém a interrompesse. Mas Anne mal a ouvia. Estava profundamente envolvida em seus próprios pensamentos. Ficou se perguntando por que sua mãe tentou dar a ela um visual tão elegante e tão diferente do que queria ter. Por que proibiu a cor laranja se sabia que ela amava? Se existia uma tonalidade que pudesse defini-la com exatidão era essa. Não só expressava um caráter alegre, mas também mostrava ao mundo que ela não se importava com a opinião que tinham sobre ela. Ou não era assim?

—Prenda a respiração —Shira pediu a Anne enquanto ajustava os laços nas costas.

-- Se achar melhor, pare de respirar por alguns minutos para ver o que acontece —Mary comentou mordaz quando ouviu as palavras da donzela.

—Não preste atenção nela —Anne interveio. —É que ela ainda não tomou o café que nossa mãe lhe prometeu.

—Oh, desculpe-me! —Foderhy disse, afastando as mãos do vestido de Mary e levando-as à boca. —Deixei no aparador do corredor.

—Frio! —Disse Mary, caminhando pelo quarto. —Terei que tomar frio!

—Eu... eu... sinto muito, senhorita Moore —disse a donzela angustiada.

—Não se preocupe, vai tomá-lo de qualquer maneira —disse Anne depois de caminhar até o banquinho em frente à penteadeira.

Agora era a vez do penteado. Shira obedeceria a ordem de sua mãe sem questionar. Então, quando terminasse com ela, estaria pronta para participar para uma festa em vez de ir a uma reunião com o visconde.

—Nós continuamos com a batalha? —Mary perguntou quando ela apareceu no quarto.

Uma hora depois, as duas irmãs saíram do quarto, caminharam lentamente pelo corredor, ainda olhando uma para a outra e, assim que chegaram à escada, mostraram o melhor sorriso quando viram Sophia esperando na porta.

—Nós parecemos adequadas? —Perguntou Mary com certa animosidade: —Ou quer que voltemos para mudar?

—Só precisam de uma coisa —respondeu a mãe, ignorando o comentário mordaz de sua filha: —Esta manhã está bastante fria —disse

Sophia depois de abrir a porta e sentir uma leve brisa vinda de fora. --

Coloquem seus casacos e peguem seus regalos.

—As luvas vão manter minhas mãos aquecidas —Mary comentou enquanto Shira a ajudava a vestir o casaco. —Se colocar o regalo, vão suar como se estivéssemos no meio do verão.

—Anne? —Sophia perguntou, levantando a sobrancelha esquerda.

—Acho o mesmo que Mary -- respondeu.

—Não demorem muito quando saírem da residência do visconde. Como podem imaginar, todos estaremos sem viver até que saibamos o que quer —disse Sophia, afastando-se um pouco da porta.

—Sim, mãe —responderam em uníssono.

Depois que as duas beijaram Sophia na bochecha, foram para fora, onde o cocheiro estava esperando por elas. A primeira a entrar foi Anne e Mary a seguiu depois de um rápido olhar para a entrada da casa e confirmar que a mãe ainda se agarrava à maçaneta da porta, olhando para elas.

—Espero que a reunião seja curta —disse Mary quando o cocheiro atiçou os cavalos. —Porque estou na melhor parte do livro.

—O que está lendo agora, Mary? —Anne perguntou depois de estender o vestido no banco.

—É.... se trata... —Ela hesitou por alguns segundos. -- É um

artigo sobre os procedimentos antissépticos que o Dr. Semmleweis explicou

—mentiu.

Era melhor do que contar a verdade. O que Anne pensaria se ela confessasse que estava lendo Orgulho e Preconceito? Talvez seu coração tenha finalmente despertado daquela letargia a qual o submetera e começasse um discurso sobre o tratamento adequado de um cavalheiro. Então, para não ouvir um assunto tão absurdo, decidiu continuar oferecendo a imagem de uma mulher racional. Nenhuma de suas irmãs deveria suspeitar que, depois de descobrir a reação absurda do cavalheiro loiro de olhos azuis, ela decidiu investigar, cientificamente, sobre a mente dos homens. No entanto, uma vez que foi até a biblioteca e revisou livro por livro todos os acordos científicos sobre o cérebro humano, visitou a seção de livros de Elizabeth e escolheu o que aparentemente, descrevia muito bem seu caráter e atitude do titã alemão.

—E, por que está tão intrigada com esse médico? —Anne insistiu, inclinando-se levemente.

—Porque se estiver certo, muitas doenças que aparecem após o parto podem ser evitadas com um simples ato de limpeza antes de serem atendidas. Segundo sua teoria, há microrganismos em nossas mãos —tirou as luvas e as mostrou para Anne —que podem ser transmitidos, até mesmo por um leve carinho, e se tornarem mortais. Com isso, recomendo que nunca tire suas luvas. Alguém poderia alisar sua mão e envenená-la sem estar

consciente —disse sarcasticamente enquanto as cobria novamente.

—Pelo amor de Deus, Mary! Se tiver razão, todos deveríamos cobrir o corpo com uma luva gigante —exclamou Anne, lamentando por perguntar.

—Seria suficiente que as costureiras fizessem peças de roupas que cobrissem nossas cabeças e, como uma dica, elas deveriam rasgar o tecido ao redor dos olhos. Desta forma, poderíamos ver o que temos diante de nós e evitar nos infectar de doenças que...

—Chega! Não continue! Prefiro me infectar com mil insetos desses que diz a cobrir meu corpo com esse tipo de roupa —resmungou antes de desviar o olhar de sua irmã para fixá-lo na janela.

Sua mãe realmente havia escolhido bem ao elegê-la como acompanhante? Bem, estava errada! O que Mary faria depois de ler algo tão absurdo? Rejeitaria a saudação do visconde quando pensasse que seus lábios poderiam transmitir algum tipo de doença? Começaria uma conversa sobre todos os prós e contras que envolveria uma saudação cortês? Anne fechou os olhos e bufou. Sem dúvida, o desastre estava do seu lado. Ela apenas rezou para que o visconde falasse sobre o que pensara antes de expulsá-las de sua residência.

Quando a carruagem parou, ela abriu os olhos e focou em Mary. Esta continuava com o olhar perdido, pensando em algo que a fez

relembrar porque apresentava uma cara muito azeda. Sem querer descobrir o que estava causando aquela amargura, ela agarrou o vestido e desceu quando o cocheiro abriu a porta para ela. Então, Mary desceu, e, como ela deduziu, não aceitou a mão do criado porque não usava luvas.

—Por Cristo! —Mary exclamou ao olhar para a casa do visconde. —É linda!

—Como todas as que possuem os aristocratas -- disse Anne com desdém.

—Bem, eu passaria muito tempo nessa área do jardim —disse ela, apontando com o queixo para uma gangorra branca colocada ao lado de uma fonte redonda de mármore escuro.

—Com um livro? —Disse a mais velha sarcasticamente.

—Com centenas! —Mary respondeu depois de esfregar as mãos.

Durante a curta caminhada que fizeram da entrada até a porta da frente, ambas permaneceram em silêncio, observando atentamente a residência do visconde. Mas quando elas subiram as escadas e Anne estava prestes a bater para que abrisse, ela se virou para a irmã e disse:

—Se comporte adequadamente.

—Prometi

mil

vezes

que

eu

vou

—comentou

desesperadamente. —O que aconteceu ontem não teve nada a ver com lorde Bennett, mas com aquele arrogante e rude Sr. Giesler. Oh, não me perdoe,

soube que ele é um barão... bem, lorde imbecil Giesler!

—Só agiu como qualquer pessoa faria em seu lugar ao vê-la daquela forma —disse Anne, repreendendo-a.

—Se lembra que ele me chamou de bruxa? —Mary murmurou, franzindo a testa e cerrando os punhos. -- Ele vai engolir suas palavras! Algum dia ele vai engolir essas malditas palavras! —Sentenciou.

—Mary, pelo amor de Deus! -- Anne exclamou, revirando os olhos.

—Se Deus existisse, o que eu me recuso a acreditar, me dará a oportunidade de encontrá-lo novamente e farei com que ele pague por toda palavra desdenhosa que me ofereceu -- declarou ela solenemente. O único arrependimento que sinto é que não tinha pedras em vez de alguns bobes miseráveis. Eu o teria apedrejado naquele momento.

—O papai a trancará no quarto se tentar assustá-lo de novo.

—Aceitarei de bom grado essa punição, se me permitir encher o quarto com livros que vão apaziguar a minha solidão —disse ela, sorrindo maliciosamente.

—Talvez devesse recusar ler por várias semanas, então aprenderá a se comportar -- Anne a repreendeu enquanto pegava a aldrava para chamar.

—Se por acaso sugerir essa opção, vou dizer ao papai que

finalmente acredito na ideia absurda da maldição e que a melhor coisa para todos nós é matar dez galos e banhá-la com seu sangue —ameaçou.

—Não se atreveria? -- Perguntou, arregalando os olhos.

—Me teste —disse severamente.

—Boa tarde, senhoras. Que desejam? —Kilby as cumprimentou depois de abrir a porta. Primeiro olhou para uma e depois para a outra. As duas mulheres eram muito parecidas, embora uma delas, a que tinha olhos castanhos, mostrasse um semblante mais amável. No entanto, a outra, que tinha belos olhos azuis, exibia uma dureza no rosto mais parecida com um burro do que com uma dama.

—Boa tarde, somos as senhoritas Moore. O visconde nos espera

—disse depois de respirar e encontrar alguma calma.

—Entrem, por favor —respondeu o mordomo, afastando-se da entrada. -- Se forem amáveis em me dar seus casacos.

—Claro —respondeu Anne, desfazendo os botões.

—Uma manhã fresca, certo? —Kilby perguntou gentilmente às duas mulheres.

—Não tão fresca quanto poderíamos ter se vivêssemos no Polo Norte, mas sim, é um pouco frio para os corpos fracos da aristocracia de Londres —respondeu Mary, incapaz de desviar o olhar da residência do visconde.

—Desculpe minha irmã —disse Anne rapidamente. —Ela odeia o frio e, como pode ver, não senta bem a sua cabeça.

Com esse comentário, Kilby suavizou o rosto e olhou com compaixão para a mais velha das duas irmãs. No entanto, quando Mary ofereceu-lhe o casaco, ele o segurou como se tivesse piolho.

—Se forem gentis em me seguir, o visconde as espera na biblioteca.

E então Mary sentiu mil borboletas se agitarem em seu estômago.

Seus olhos brilhavam de emoção e um sorriso cruzou seu rosto. Como seria a biblioteca do visconde? Ele seria um homem culto? Teria lido todos os livros que guardava nas prateleiras? Permitiria que ela lesse enquanto os dois falavam sobre esse acordo? Ela esfregou as mãos, como uma menininha prestes a abrir um presente, olhou para Anne e fez seu sorriso crescer ainda mais.

—Esse visconde parece agradável —murmurou.

—Como pode declarar isso, se ainda não conheceu? —Anne respondeu, estreitando os olhos.

—Apenas ter citado a biblioteca, tem minha absoluta aprovação.

—Mas não disse que odeia homens? Que todos se parecem com jumentos com orelhas curtas? —Murmurou.

—Bem, mas esse parece diferente. Além disso, não procuro um

marido para humilhar por causa do meu grande intelecto. Tudo o que quero é uma boa biblioteca para passar o tempo e, se o visconde a possui, estarei encantada em oferecer-lhe a sua mão —sussurrou.

—Mary! —Exclamou indignada em voz baixa. —Isso não posso esconder de nossa mãe!

—Lembre-se dos galos... —lembrou antes de esticar as costas e caminhar serenamente para o lugar mais idílico para ela.


CONTINUA

Londres, 14 de outubro de 1882, residência Moore.
Anne se olhou no espelho e suspirou.
Ela não queria, nem deveria participar de uma festa depois do que aconteceu, mas seus pais prometeram que seria a última vez que a obrigariam a fazer algo parecido. Desde que soube, fez tudo em seu poder para que Mary ocupasse seu lugar. Até fingira um tornozelo torcido! Mas foi inútil. Seus pais descobriram a mentira rapidamente e novamente rejeitaram a ideia de sua segunda filha acompanhando a terceira porque eles não queriam que ela se tornasse, novamente, o centro de qualquer conversa social. E eles não estavam errados... se alguém ousasse contradizê-la em alguma conversa sobre medicina, Mary se tornaria uma loba e acabaria chamando a todos aqueles que a contrariaram: bando de corpos sem cérebro. Apesar da explicação, ainda achava que estavam errados. Era preferível que Elizabeth sofresse um choque momentâneo pela reação de Mary, a ser constantemente humilhada pela sua presença. Porque a culpa pela transformação de Elizabeth ela dera, apenas dela e da maldição que padecia.
Desde que todos finalmente aceitaram sua existência, Elizabeth deixou de ser uma menina doce e terna para se tornar uma mulher frívola, descarada e ousada. Essa mudança se devia à falta de pretendentes. De fato, enquanto suas outras irmãs não estavam procurando um homem para casar, porque no caso das gêmeas eram muito jovens e Mary por ser fria como um bloco de gelo, Elizabeth usava sua maravilhosa beleza e audácia para encontrá-lo prontamente. No entanto, ela não conseguia o resultado desejado porque, depois do que aconteceu aos dois noivos de Anne, nenhum cavalheiro se atrevia a cortejar uma irmã Moore por medo de morrer...

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_MALDI_O_DE_ANNE.jpg

 

Anne continuou a se olhar no espelho enquanto se lembrava de seus anos de infância. Fora muito feliz naquela época. Como qualquer criança, ela só se concentrava em atender a professora contratada pelos pais, cumprir as regras da casa e pintar. Sim, seu único dom, porque era muito desajeitada em todo o resto, era pintar. Portanto passava dias e dias apreciando a paz que seu jardim oferecia em dias de sol, enquanto pintava milhares de paisagens imaginárias em suas telas. Tudo estava indo bem até a puberdade chegar. Qualquer mulher a dominaria com integridade e bom senso, mas ela era incapaz de fazê-lo. Como deduziu, aquele sangue cigano que corria em suas veias era a causa de tudo. Ele queimava. Sim, a queimava tanto que houve momentos em que a dor era tão insuportável que ela se jogava no chão chorando. Por que sua natureza cigana era tão cruel? Por que era incapaz de controlá-la? Com o passar do tempo, aceitou e assimilou essas

mudanças nela. Mas nessa nova vida, Anne Moore deixou de ser uma menina para se tornar uma mulher com apenas um desejo: sedução. Ela se sentia tão adulta, tão radiante, tão sensual que, toda vez que andava por Londres e observava homens admirando-a, sua sexualidade brotava de dentro como uma flor abrindo suas pétalas. Por causa disso, uma tarde, enquanto suas irmãs apreciavam um piquenique, sua mãe a arrastou para a sala e decidiu confessar o que mantivera em segredo durante os dezessete anos de casamento.

—Seu avô, meu pai, adoeceu -- Sophia começou a dizer quando as duas se sentaram no sofá perto da lareira, -- e nenhum médico queria comparecer, exceto o bondoso Dr. Randall Moore. Eu sei que, desde que ele entrou na carruagem, não conseguia tirar os olhos de mim, como nem eu dele. Muitas vezes me pergunto como ele foi capaz de descobrir sobre a doença, se não prestou atenção -- ela continuou sorrindo. A atração que tivemos foi instantânea. Ele olhou para mim, eu olhei para ele e o amor nasceu.

—Realmente? Foi tão fácil? -- Ela perguntou com espanto.

—Já disse que as mulheres da nossa raça têm o dom de sonhar com o homem da nossa vida? -- Anne negou com um movimento suave da cabeça. —Bem, eu o vi por muitas noites no mesmo sonho: Ele aparecia entre as chamas de um fogo, o que para nós significa amor e paixão,

estendia a mão e.... bem, o resto pode imaginar -- explicou, desenhando um enorme sorriso.

-- Ainda não entendo o que isso tem a ver com a maldição que fala -- disse ela enquanto esfregava as mãos.

-- Desde aquela noite, seu pai e eu nos encontrávamos escondidos. Nem meu pai nem minha avó aceitaram a presença de um gajo, exceto para serem curados quando a feiticeira de nossa aldeia não era capaz de curá-los. Na primeira noite em que me entreguei de corpo e alma a seu pai, ele me pediu para fugir com ele, casar e ser a Sra. Randall para sempre. Durante vários dias pensei nessa proposta... -- Ela suspirou. Então aconteceu algo que me fez tomar uma decisão mais cedo do que eu esperava.

—O que aconteceu? -- Anne perguntou com expectativa.

—Minha avó paterna, Jovenka, arranjou um casamento para mim. Ela queria que me casasse com o filho de outra família cigana para que, segundo ela, o sangue não fosse contaminado.

—Ela sabia que estava se encontrando com o papai, certo?

—Sim, receio que nos descobriu... -- disse tristemente. -- Por essa razão, na noite seguinte, aceitei sem hesitação a proposta de Randall.

—Foi ela quem a amaldiçoou? Os procurou? Como fez? -- Ela perguntou sem respirar.

—Nós ficamos fora de Londres por um mês. Seu pai tinha

economizado o suficiente para alugar uma pequena casa e ficamos lá por algum tempo. Mas seu trabalho exigiu e tivemos que voltar. Quando me apresentou à sociedade, porque todo mundo estranhara que ele finalmente encontrasse uma esposa...

—Como estranharemos se Mary encontrar um homem que a aceite? -- Interveio Anne alegre.

—Implorei para que não revelasse minhas origens.

—Por que fez uma coisa dessas? -- Disse, se levantando. --

Rejeita seu sangue?

—Não! Jamais rejeitaria! ?Defendeu-se, se levantando também. -- Mas não era sensato, na época, declarar que um homem como Randall, com a reputação que estava sendo forjada depois de tantas dificuldades, acrescentasse que sua esposa era cigana. Parecia mais apropriado dizer que era filha de um burguês.

—O que aconteceu depois? -- Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

?Uma noite, nos preparávamos para uma reunião com outros médicos. Sabe, aquelas que Mary tanto ama e eu não suporto nem dez minutos. Estava de pé na porta, esperando pelo seu pai que tinha ido pegar seus óculos. Senti um forte vento ao meu lado, mas ignorei até que, momentos depois, percebi uma presença. Muito lentamente me virei para o

jardim e.... lá estava minha avó Jovenka. Ela olhou para mim com tanta raiva que notei como sua fúria perfurava meu corpo.

—O que ela disse? -- Anne insistiu, olhando para a mãe.

—Sem falar, me pegou pela mão e puxou com força. Queria me afastar da vida que escolhi. Mas naquele momento seu pai apareceu e me tirou de suas mãos. «Ela fica comigo! " -- Ele gritou.

—O que Jovenka fez? ?Insistiu.

—Sorriu com tanta maldade que me deixou congelada --

recordou, acariciando os braços como se o frio tivesse voltado para ela. --

Ela fechou os olhos e começou a evocar as almas ruins. Depois daquele cântico infernal, cuspiu no primeiro degrau da escada, curvou-se, fez vários círculos com sua saliva e disse: «Eu a amaldiçoo, Sophia. A amaldiçoo por rejeitar quem é, por negar o sangue que corre em seu corpo e por se tornar a mulher de um gajo. E para que a dor seja mais duradoura e cruel, não sofrerá essa maldição, mas sim a mais velha de suas filhas. Ela, se quiser lutar contra a vida que a espera, terá que se casar com um cigano, desta forma assumirá que a única verdade que existe no mundo é o poder da raça e do nosso sangue» -- relatou.

—Como? O que é isso de que devo casar com um

...? -- Anne apertou os lábios para não mostrar à mãe a negação que sentia em relação àquela palavra. Em nenhum momento de sua vida pensou que seu

futuro seria em um acampamento cigano. Nem muito menos se imaginava vivendo em uma carroça daquela maneira e de se tornando a esposa de um nômade. -- O que o papai fez?

—Sabe como é.... -- Disse com um leve sorriso. —Ele não acreditou nem acreditará nesse tipo de rituais ou feitiços, por isso me fez prometer que nunca diria o que aconteceu naquela noite. No entanto, aqui me tem, quebrando uma promessa.

—Por que faz isso, mãe? Por que confessa isso para mim agora?

—Porque tem meu sangue, Anne -- ela disse, voltando para o sofá, -- e eu vejo como ele a altera cada dia que passa.

E isso era verdade. De uns tempos para cá, ela sentia com muita força certa necessidade que não entendia. Se sentia como um campo cheio de orquídeas na primavera ao notar os primeiros raios do sol da manhã. Suas emoções, seus sentimentos sobre o mundo ao seu redor haviam se tornado, em pouco tempo, irracionais e incorretos. Quantas vezes olhou para um homem com indiscrição? Por que quando se contemplava no espelho, queria exaltar seu erotismo?

—Somos e seremos selvagens -- esclareceu Sophia ao ver sua filha franzir a testa. —Nascemos da Mãe Natureza e, como tal, só buscamos a liberdade de amar. Mas quero avisá-la, antes que algum cavalheiro ocupe seu coração, que não será fácil lutar contra essa maldição. Não sei o que

acontecerá, juro, mas não tenho dúvidas de que sofrerei quando a ver sofrer.

—Realmente acredita que estou amaldiçoada e que terei que casar com um cigano para fazer essa maldição desaparecer? Não seriam, como o papai disse, palavras sem sentido e que apenas expressaram semelhante estupidez para proporcionar medo? -- Ela falou enquanto se sentava ao lado da mãe.

—Não, Anne. Minha avó nunca evocaria almas ruins para me assustar -- disse, acariciando seu rosto jovem. -- Acredito nessa maldição, a única coisa que tento descobrir é como se livrará dela sem ter que se casar com um cigano.

Como ela poderia se apaixonar por um cigano? Como poderia abandonar uma vida confortável para transformá-la no oposto? Jamais rejeitaria a mistura de seu sangue, mas nunca aceitaria viver como eles. Por essa razão, decidiu que a única maneira de lutar contra essa parte selvagem era se trancar em casa e deixar que os anos passassem. No entanto, seu problema cresceu e cresceu a ponto de atingir uma loucura sem precedentes. Aos 22 anos ela decidiu enfrentar essa possível maldição. Começou a sair, aparecer nas festas em que era convidada e aproveitar tudo aquilo que não tinha aproveitado por ter se submetido ao isolamento. Durante essas celebrações, sua atitude era muito parecida com a de Elizabeth: ela conversava com os convidados sem se importar com a

classe social a qual pertencia, aceitava danças até mesmo dos homens menos apropriados e não evitava os olhares daqueles que a observavam. Só deixava as festas quando seus pés doíam tanto que não suportaria uma dança mais. Naquela época, ela conheceu Dick Hendall, um burguês bonito com quem se encontrou em muitas ocasiões. Primeiro, houve alguns olhares discretos, depois algumas conversas e acabaram ficando nas áreas mais escuras dos jardins. Dick era um verdadeiro sedutor e a transformou em uma mulher apaixonada e desinibida. Cada vez que estavam sozinhos, ela se apaixonava não apenas pelas palavras bonitas, mas também pelos beijos e carícias que a deixavam tremendo. Nunca imaginou que o cortejo de um homem em relação a uma mulher era tão enganador e assim acabou cedendo àquela paixão que ambos mantinham em segredo. Depois de vários encontros de amor, Dick propôs casamento argumentando que não tinha uma mulher no mundo que pudesse amar tanto. Naquele momento e prisioneira da felicidade, Anne aceitou sua proposta, esquecendo, novamente, a maldição que sua mãe havia comentado.

Na tarde em que seu belo Sr. Hendall apareceu na residência dos Moore para formalizar a proposta de casamento, ela estava tão nervosa que mal conseguia ficar sentada por mais de três segundos. Andou pelo corredor esfregando as mãos enquanto esperava que um dos pais saísse do escritório e reivindicasse a presença dela. Nesse ir e vir ao redor da casa, rezava para que

sua mãe, porque seu pai não acreditava em maldições ou feitiços, esquecesse a ideia daquele encantamento familiar. Desperdiçou quase sete anos de sua vida acreditando nessa insensatez e esperava que todos aceitassem, de uma vez por todas, que não havia maldição. Uma hora depois da chegada de Hendall, sua mãe abriu a porta e chamou por ela. Quando entrou, pôde ver a emoção nos olhos de Dick. Seus pais aceitaram o compromisso e, a partir daquele momento, ela se tornou noiva do sr. Hendall.

Nada poderia deixá-la mais feliz ou mais orgulhosa de si mesma. Não só se casaria com o homem por quem estava apaixonada, mas, com essa atitude, tinha abolido a estupidez de que estivesse amaldiçoada.

Foram dias muito felizes para a família. Suas irmãs se uniram nessa alegria, ajudando-a a procurar um vestido de noiva e a elaborar a lista de convidados. Até seu pai se unia, toda vez que seu trabalho permitia, àquelas divertidas reuniões de mulheres. A única pessoa que não compartilhava esse estado de euforia coletiva era sua mãe. Desde que Dick saíra de sua casa, ela permaneceu em silêncio, esquiva e misteriosa. Anne, furiosa com tal atitude inadequada, teve a audácia de censurá-la por ter passado toda a sua juventude assustada por uma mentira e que demonstraria, com o seu casamento, que estava errada e que não precisaria se casar com um cigano para ser feliz. Sophia relutantemente concordou que tudo o que pensara sobre seus ancestrais era uma mentira e que nenhum de seus parentes

tinha a habilidade de amaldiçoar.

Os dias passaram e, pela primeira vez em muito tempo, a palavra maldição foi banida de sua mente. Mas tudo isso mudou na noite em que um criado de Dick apareceu para informá-los da trágica notícia...

Depois de ouvi-lo, ela teve que sentar no primeiro degrau da escada do corredor para não cair no chão. Lágrimas lutavam para brotar, enquanto ela se recusava a assumir o que havia acontecido. Foi seu pai quem decidiu descobrir o que havia acontecido e, depois de ouvir várias vezes a versão do criado, pegou o casaco e saiu com ele. Aturdida e petrificada, Anne sentiu os soluços de suas irmãs como se estivessem a vários quilômetros de distância dela. Tudo ao seu redor havia desaparecido; ela deixou de ser Anne Moore, a noiva de Hendall, para se tornar um fantasma sem nome ou destino. Esse estado de choque a manteve longe da realidade por três dias, o tempo que os pais de Dick definiram para velar seu corpo inerte. Mesmo assim, embora se encontrasse durante aqueles dias ao lado de um caixão, só reagiu quando duas pessoas vestidas de rigoroso luto colocaram o caixão no mausoléu da família. Então ela teve que aceitar a verdade: seu noivo havia morrido. Um cavaleiro experiente, que competira em cem corridas, caiu de um garanhão ao galopar em direção à sua casa.

Após o cortejo fúnebre, ela se trancou em seu quarto e não saiu até que vários dias depois seu pai entrou e lhe disse a versão do Dr. Flatman:

que a morte de Dick poderia ter sido evitada se ele não estivesse andando em um cavalo não castrado depois de ter ingerido tanto álcool como para embebedar a tripulação do maior navio de Londres. Apesar dessa descoberta, embora Randall tentasse convencê-la de que ela não tivera nada a ver com isso, Anne não deu ouvidos as razões. Durante um ano e meio manteve um luto severo pelo noivo morto e o pensamento de que estava amaldiçoada voltou à sua mente.

Uma vez que o período de luto passou, a mesa de seu pai foi novamente preenchida com convites. Nessa ocasião, não convocavam apenas a ela, mas também Mary, que completara vinte anos, e Elizabeth, que tinha dezenove. A resposta de Mary foi sempre negativa, no entanto, Elizabeth não estava disposta a deixar passar o tempo sem aproveitar os benefícios de ser a filha do famoso Dr. Randall Moore. Embora a garotinha sempre tentara chamar a atenção dos presentes, dificilmente conversava porque era jovem demais. Para a angústia de Anne, os olhares se voltavam novamente para ela. Ninguém estava falando sobre a noiva infeliz que, faltando um mês para o casamento, seu pretendente morreu, nem ouviu rumores sobre uma possível maldição. Até aquele momento, o segredo ainda estava protegido. Mas isso mudou depois da morte de Lorde Hoostun, o único filho do conde de Hoostun...

Ela não sabia nada sobre o menino, talvez porque nunca tivesse

saído da residência onde vivera desde que nascera. O único que conhecia era o conde viúvo. O velho a observava com atrevimento quando coincidiram em algum

evento

e

tentava,

por

meio

de

conhecidos,

iniciar

conversas. Logicamente, ela recusou essas abordagens, mas a fixação do viúvo por Anne tornou-se cada vez mais exaustiva.

Na noite em que o velho conde apareceu em sua casa para pedir um compromisso entre ela e seu filho, Anne gritou aos céus. Repetiu para seus pais até que estivessem cansados de que deveriam se lembrar da maldição à qual ela foi submetida e que se eles aceitassem a proposta matariam outra pessoa. Randall refutou todas as suas alegações lembrando-a de que a morte de Hendall aconteceu por ele mesmo ser um tolo e não devia se tornar egoísta porque suas irmãs sofreriam um futuro incerto por causa dela. Anne implorou a sua mãe, a única que ainda pensava sobre a existência dessa maldição, mas ela não a ouviu. Talvez porque, depois de confessar que perdera a virtude com Dick, achasse que era a última chance que a vida lhe ofereceria para encontrar um marido que não a rejeitasse por não ir inocente para o casamento. Como o viúvo esclareceu, nem ele nem seu filho se importavam com o que Anne fizera no passado, mas com o que lhe ofereceria no futuro próximo: a descendência de que tanto precisavam para que o título não voltasse à coroa. Apesar de seus gritos e pedidos, Randall concordou com o compromisso. Dois dias depois que os jornais anunciaram que estavam

noivos, o jovem Hoostun, a quem ela ainda não havia encontrado pessoalmente, morreu. Nesta ocasião, foi o próprio Dr. Flatman que a visitou para falar sobre o que aconteceu. Por mais que ele insistisse que fora algo fortuito, porque ninguém previu que a arma dispararia durante a limpeza, Anne se sentiu tão culpada que mergulhou em uma terrível depressão. Embora não tenha saído de casa por meses, rumores sobre a aura maligna que a cercava chegaram aos seus ouvidos. Eles a nomearam de tantas maneiras diferentes que não podia contar com os dedos das mãos. Até mesmo uma cartunista, que trabalhava para um jornal semanal, fez uma caricatura explicando que, se quisessem fazer com que um libertino que estivesse atrás de uma dama honesta desaparecesse, a melhor maneira de se livrar dele seria promete-lo a filha mais velha do Dr. Moore. Logicamente, os convites para eventos sociais desapareceram. A mesa de seu pai estava vazia e isso causou uma controvérsia familiar muito perigosa. Por um lado, Mary ainda não queria um marido, Josephine aperfeiçoava a habilidade militar com a qual nascera e Madeleine manteria sua excessiva timidez em segurança. Por outro lado, Elizabeth não queria adotar essa posição. Cada vez que o tema aparecia nas poucas reuniões de família em que participava, a repreendia que, por culpa dela, nunca alcançaria seu sonho: casar com um aristocrata. Anne, desesperada, decidiu se afastar, inclusive, da própria família. Se trancou em uma sala e passou muitas horas praticando aquilo que a fazia feliz quando

criança: a pintura.

Lentamente, se levantou do banquinho, alisou o vestido e caminhou até a porta. Antes de sair, olhou para Mary, que, como de costume, já estava na cama e lendo um novo livro sobre medicina.

—Não faça essa cara -- comentou ao descobri-la olhando para ela sem piscar. -- Certamente apreciará a bela cerimônia.

—Se tem tanta certeza, por que não vai? -- Ela a repreendeu com um pouco de raiva.

—Porque tenho um compromisso que não posso adiar --

comentou, levantando o livro que ela tinha em suas mãos. -- E parece mais apropriado me informar de como enfrentaremos doenças futuras do que evitar os olhares de desaprovação dos cavalheiros que irão a essa bendita festa. --

Além disso, não estou tão desesperada quanto Elizabeth. Não estou procurando por um homem para arruinar a minha vida.

—De

acordo

com

Madeleine,

acabará

casada

--

comentou Anne, mordaz.

—As visões de nossa irmã mais nova não me causam nenhuma preocupação. Só as aceitei para que você não saísse de Londres depois da morte do seu segundo pretendente. Embora eu já tenha ouvido que continua com essa ideia e que o papai vai se encontrar hoje à noite com a pessoa que irá levá-la para a sua amada Paris -- explicou ela enquanto se sentava na

cama.

—Não

posso

ficar

mais

aqui,

a

machucarei

--

disse Anne tristemente.

—Não penso o mesmo. Estamos todos muito felizes, exceto você.

—Não está ciente da atitude que nossa irmã tomou? Não vê o que eu vejo? Enquanto continuar assim, terminará mal e nunca encontrará um marido.

-- O que Elizabeth faz com a vida dela é problema dela, não meu. Ela deve estar ciente de que é burguesa e que não realizará o sonho de se comprometer com um aristocrata. O que acho insuportável é que se culpe por isso. Se ela usasse alguma outra coisa em seu cérebro, em vez de se olhar tanto no espelho, perceberia que tem um dom tão precioso que qualquer homem, seja ou não um aristocrata, cairia a seus pés. Mas, felizmente para ela do que para você, é mais fácil culpar os outros pela imprudência que ela faz diariamente.

—E a maldição? -- Anne perguntou, se aproximando da cama da irmã.

—Isso é estupida! Pelo amor de Deus, realmente acredita nela?

—Depois das mortes de...

—Eles eram ineptos! Hendall era tolo por andar bêbado em um garanhão, o pobre Hoostun não tinha cérebro e seu pai acreditava que,

casando-o com uma mulher saudável, ele resolveria o problema. Além disso, você mesma testemunhou a impaciência do conde. Qualquer homem honesto teria gritado aos céus quando nossa mãe confessou que não guardou sua virtude e o que ele disse?

—Que ele não se importava com o que fizera no passado, que a única coisa que lhe interessava era que seu filho tivesse filhos logo --

comentou Anne, corando com a frieza com que sua irmã expunha o fato de que ela entregara o tesouro de sua virgindade para Dick.

—Exatamente! —Disse Mary, ajoelhada na cama. -- Aquele homem só queria netos saudáveis para mostrar seu título nobre, mas ele se esqueceu da insanidade de seus próprios filhos. Talvez se ele a tivesse reclamado como sua esposa, teria tido uma chance.

—Ou ele teria morrido -- disse Anne um pouco com raiva.

—Bem, certamente seu coração não teria suportado uma noite ao seu lado. Se o sangue cigano, que nossa mãe diz que a enlouqueceu a ponto de não ter consciência do que fez com Dick, ainda está em suas veias, o velho teria morrido só de vê-la nua. —E depois dessa declaração, ela soltou uma risada.

—E você? Não tem sangue cigano? Porque sua mãe é a mesma que a minha -- ela recriminou.

—Como já ouvi, o sangue cigano nos incita a viver paixões e

desejos para com os homens e eu, por enquanto, não quero deitar nos braços de ninguém. Então, felizmente para mim, eu não deveria ter uma única gota. É mais provável que o Moore predomine, então só preciso encher minha mente com sabedoria e não ter sonhos absurdos. A castidade, minha querida irmã, deve ser o segredo de eu ser mais inteligente que você —disse ela com orgulho.

—Espero que encontre o homem que Madeleine viu e se torne mais luxuriosa do que eu fui! —Anne gritou enquanto caminhava em direção à saída.

—Outra maldição? —Rosnou Mary com sarcasmo.

—Se isso a fizer uma mulher menos instruída, sim, é outra maldição —declarou antes de fechar a porta.

Não suportava à frivolidade que Mary expressava quando falava sobre o problema que tinham com Elizabeth, ou como podia zombar dela por se entregar ao homem que amava, ou como ria daquela maldição. Ela era culpada por tudo o que aconteceu! Só ela! Mas logo o problema seria resolvido... naquela mesma noite, o pai conversaria com o homem que a levaria para longe de Londres e da sua família. Uma vez que a filha amaldiçoada deixasse de existir para a sociedade, suas irmãs recuperariam o que haviam perdido por sua causa e finalmente encontrariam a paz.

Quando apareceu no topo da escada, notou que Elizabeth estava

esperando por ela na entrada ao lado de seus pais. Sua irmã havia escolhido um vestido azul claro para a ocasião e, como sempre, sua escolha foi muito sábia. O tom do tecido não apenas destacava a cor dos seus olhos, mas também enfatizava dourado do cabelo. Anne sentia pena dela. Ela era linda demais para adotar esse comportamento tão inadequado. Se ela se tornasse uma mulher respeitável e deixasse seu dom ser conhecido, como Mary explicou, os homens cairiam loucamente a seus pés.

—Finalmente! —Exclamou ao vê-la. -- Por que escolheu esse vestido horrível? Não percebe que essa cor não a favorece? Se usar algumas joias de estanho, vai parecer uma verdadeira cigana e estarão lhe pedindo o tempo todo para que leia o futuro —disse antes de soltar uma risada.

—Elizabeth... —advertiu sua mãe. -- Deveria estar agradecida por sua irmã ter decidido acompanhá-la até a cerimônia, em vez de zombar dela.

—Anne, agradeço por me acompanhar, —Eli resmungou. —Mas preferiria a Mary.

—Elizabeth! —Seu pai gritou. -- Como pode ser tão pérfida?

—Não sou pérfida, pai -- ela disse, suavizando o tom. -- Sou realista e a única coisa real que vejo neste acompanhamento, é que ninguém se aproximará de mim porque estarei sob a proteção de uma amaldiçoada que também usa um vestido horrível.

—Elizabeth Moore! Está de castigo! -- Gritou Sophia, com raiva.

—Não vai me deixar ir? O que minha amiga pensará quando não me ver? Que boato os convidados vão espalhar quando não houver representação dos Moore no evento mais importante do ano? —Ela perguntou com rancor.

—Não se preocupe, mãe. Cuidarei dela —Anne apaziguou.

—Se observar algo inapropriado, se o comportamento de Elizabeth se tornar insuportável, não hesite em arrastá-la até aqui --

pediu Sophia, apertando os olhos. —Então me ocuparei para que mude sua atitude quando ela passar pela porta.

—Lembre-se, mãe, que o sangue cigano corre pelas minhas veias e, como a senhora fez na época, eu também procuro por um homem que me faça feliz —expos Elizabeth enquanto Shira a ajudava vestir o casaco.

—Meu sangue cigano me avisa que sofrerá por um longo tempo

—Sophia murmurou. —Enquanto a tristeza cobrira esse coração sombrio, não encontrará a luz.

—Por favor... —Anne interveio. —Não é hora de começar outra discussão. Certamente nada acontecerá e Elizabeth se comportará corretamente.

—Espero que sim —Randall sussurrou antes de pegar a mão de sua esposa e beijá-la para tranquilizá-la.

Depois que saíram de casa, Elizabeth subiu primeiro na carruagem, sentou-se no banco e olhou para Anne com os olhos apertados.

—Espero que não me envergonhe novamente.

—Eu? —Anne perguntou atordoada. —Se alguma coisa a envergonha, é o seu comportamento. Parece uma prostituta.

—Se não tivesse enterrado dois pretendentes, não teria que mostrar o decote para encontrar um marido.

—Madeleine disse que iria encontrá-lo —Anne lembrou.

—Sim, ela também disse que apareceria no caminho entre a nossa casa e a do Bohanm, e você viu um cavaleiro rondando aquela área?

—Deveria ter paciência e....

—Não tenho tempo! —Ela exclamou em voz alta. —Não percebe que estou prestes a completar vinte e dois? Estou muito velha!

—Mas...

—Não há mais, Anne. Os dias passam cada vez mais rápido, minha beleza desaparecerá, e se não encontrar um marido antes do final do ano, me tornarei uma solteirona amarga como você —ela disse antes de virar o rosto para a janela da carruagem finalizando a conversa.

Anne a observou em silêncio. Ela estava tão desesperada para alcançar seu propósito que, como Mary dissera, qualquer coisa poderia acontecer com ela, da qual se arrependeria pelo resto de sua vida. Mas,

felizmente, ela permaneceria ao seu lado naquela noite para não cometer nenhum disparate e, quando voltassem para casa, seus pais cuidariam dela. Só esperava que o capitão do navio aceitasse a proposta de seu pai e que partissem o mais rápido possível...

Depois

de

suspirar

profundamente,

colocou

as

mãos

involuntariamente no peito. Não entendia por que estava tão inquieta ultimamente. Talvez fosse devido à angústia que sentia por Elizabeth ou à ansiedade de descobrir de uma vez quando iria embora. Independentemente da razão disso, o latejar aumentou durante a viagem e seu sangue cigano, que congelara após a morte de Dick, recuperou a vida, como se indicasse que seu destino mudaria para sempre naquele dia....


I


Como já temia, a cerimônia nupcial não apenas consistia em acompanhar o futuro casal na igreja, mas depois tiveram que assistir à celebração que o Marquês de Riderland havia preparado em sua residência em Londres. Anne, cansada depois de muitas horas sem poder se sentar, decidiu se esconder e se apoiar atrás de um dos pilares que cercavam a sala. Aquele lugar isolado permitiria que ela continuasse observando sua irmã enquanto apaziguava a dor insuportável em seus pés. Incapaz de piscar, para não perder um único movimento de Elizabeth, notou que ela e sua amiga Natalie, agora Sra. Lawford, olhavam com desconfiança para o local da sala destinado para jovens solteiros. Anne silenciosamente amaldiçoou ao descobrir quem eram os possíveis protagonistas da conversa. Como Elizabeth poderia agir dessa maneira? Ela não tinha nem um pouco de dignidade? Os dois rapazes aos quais observavam não eram apenas mais jovens do que ela, mas também eram os filhos de dois importantes aristocratas londrinos. Isso confirmava que o problema de sua irmã era maior do que pensava. Quando as duas amigas olharam para outro lado, Anne contemplou silenciosamente aqueles dois jovens. O primeiro, exceto pela cor dos olhos, era uma réplica idêntica ao duque de Rutland. Até se assemelhava à retidão de sua grande corpulência. Como suas clientes comentavam, a quem ela retratava diante de

uma bela paisagem e com vestidos que nunca compraria por sua exagerada extravagancia, o belo adolescente tornara-se um dos solteirões mais cobiçados da cidade. Sendo o primogênito do duque, e o único homem, herdaria um legado que muitas jovens casadoiras estavam ansiosas por conseguir, embora, felizmente para ele, ainda não estivesse interessado em encontrar uma esposa com quem compartilhar essa herança, mas em terminar os estudos que acabara de começar. O segundo menino que Elizabeth observou por um momento foi Eric Cooper, o filho do barão de Sheiton. Um jovem alto, com olhos de safira e uma cor de cabelo incomum, já que naquele cabelo avermelhado, umas mechas loiras brilhavam como ouro. Outro candidato a marido, pelo qual não apenas as jovens suspiravam, mas também as mães delas. Porque, se o filho do duque tinha uma aura de respeito, seriedade e honestidade que intimidava qualquer um que se aproximasse dele, lorde Cooper assustava ainda mais com seu comportamento nobre. Ninguém se atrevia a espalhar um boato falso sobre ele. Sua honestidade excedia em muito a do homem mais honesto do mundo e, de acordo com as declarações das jovens que se fascinavam por serem retratadas, o futuro barão de Sheiton recusou, sem rodeios, mostrar uma vida de devassidão. Que mulher em sã consciência não sonharia em ter um marido dedicado apenas para agradar a sua esposa? Esse comportamento incomum entre os aristocratas de Londres se confirmava em qualquer evento social. Um dos exemplos mais

significativos dessa atitude fria e distante poderia ser notado no momento das danças. Ele nunca levava uma mulher para dançar, exceto a esposa de seu pai, sua irmã Hope, a filha do marquês de Riderland ou as do duque de Rutland.

Devido a essa atitude distante, cada vez que o jovem caminhava ao lado de um grupo de jovens casadoiras, os suspiros se tornavam tão profundos quanto os gemidos de tristeza.

Depois de refletir sobre os dois jovens, ela decidiu deixar a área onde estava e ir para os lugares que eram destinados para as senhoras idosas, que se cansavam durante a noite, ou para aquelas jovens que esperavam um generoso cavalheiro que as levasse para dançar. Ela estava na primeira opção, embora não tivesse chegado aos vinte e cinco. Mas não conseguiria ficar de pé por nem mais um segundo. Enquanto caminhava pelo amplo corredor formado pelas colunas e a parede, observava os convidados. Todos bebiam, sorriam, dançavam e falavam sem prestar atenção à sua presença, como se ela não existisse. Isso, de certa forma, a agradava. Dessa forma, não teria que oferecer desculpas absurdas sobre o comportamento esquivo que mantinha ou ouvir de novo a triste história da morte de seus noivos. A sociedade, em vez de falar sobre a habilidade que adquirira com a pintura e o que era considerado entre as damas da alta sociedade por seus trabalhos, preferia se alegrar nos piores momentos de sua vida. Embora isso não importasse depois dessa noite. Quando a pessoa que seu pai visitaria concordasse em levá-la em

seu barco, ela partiria. Desta forma, esqueceria quem era e iria se concentrar em quem queria ser: Anne Moore, a pintora.

Fora Dick quem lhe contara sobre a viagem a Paris durante os encontros românticos que tiveram. Ela sempre dizia que estava cansada de morar em Londres porque, por mais que tentasse, não conseguia encontrar seu lugar em uma cidade tão esquiva e orgulhosa. Claro, nunca disse a ele que uma parte dela, seu lado cigano, insistia para que viajasse de um lugar para outro e descobrisse novos mundos como se fosse uma nômade. No final, ficou evidente que seu sangue cigano era maior que o Moore...

Após a morte do filho do conde, relembrou todas as histórias que Dick contara sobre a cidade e acabou obcecada com um ponto: a sociedade parisiense era muito diferente da inglesa. Ninguém perguntava sobre o passado das pessoas. A única coisa que os interessava era a pessoa que havia chegado e jamais perguntariam o que aconteceu para que saísse de sua cidade. Essa nova visão da vida seria fabulosa porque, uma vez que pisasse em Paris, esqueceria a tragédia que vivera em Londres e se apresentaria como uma jovem artista que procurava ter sucesso na arte da pintura.

?Uma jovem artista ... ?suspirou para si mesma.

Ela não era mais tão jovem, mas uma grande pintora nasceu dentro dela e tudo se devia à morte de seu segundo pretendente. Algo bom despontou desse passado horrível!

Durante a depressão que sofreu após o episódio, ela se concentrou em pintar e desenvolver sua técnica. A única coisa que a fazia sair de casa, era visitar uma livraria onde comprava livros que explicavam como evoluir no dom que possuía desde criança. No início, representava apenas paisagens sombrias e tenebrosas, no entanto, com o passar do tempo, começou a ver luz e beleza nelas. Sua mãe, como recompensa por essa nova perspectiva, colocou as telas que ela chamava de belas na entrada da casa, permitindo que todos que as visitassem pudessem admirá-las. Uma dessas visitas foi o casal Flatman. O parceiro de seu pai queria descobrir como estava após o segundo transe. Mas não falaram sobre a enfermidade mental que sofreu porque a esposa do médico concentrou todas as conversas em sua maravilhosa habilidade. Durante o jantar, a Sra. Flatman decidiu pedir-lhe para retratar suas filhas porque, segundo ela, ambas tinham uma beleza semelhante à das deusas gregas. Ela aceitou o trabalho rapidamente, esperando que essa alternativa fosse benéfica para ela. E assim foi. Antes de terminar o segundo retrato das filhas do médico, havia confirmado uma série de outros pedidos. Quase todas as senhoras, que podiam pagar seu preço, exigiam seus serviços. Embora só pintasse mulheres, porque os cavalheiros não se atreviam a olhar para ela, no caso de envenená-los com os olhos, gostava daquele novo rumo que a vida lhe dera. No entanto, com o passar do tempo começou a se cansar de ir de um lugar para outro com o cavalete, das

conversas que as jovens lhe ofereciam e de retratar mulheres bonitas que escondiam uma maldade parecida com a de sua bisavó Jovenka.

Essa era a segunda razão pela qual queria se afastar de sua família. Além de libertá-los da maldição, poderia se dar uma oportunidade.

Não queria se tornar uma testemunha silenciosa das projeções maravilhosas que as moças que ela retratava apresentavam, ela queria ser a protagonista dessas experiências. Já havia assumido que seu sangue materno era mais poderoso que o do pai, que dentro dela havia uma mulher apaixonada que queria amar e ser amada e que, a cada dia que passava trancada, seus anos de vida eram reduzidos. O que sua mãe disse? Que deveria casar com um cigano para que a maldição desaparecesse, mas em nenhum momento explicou que não poderia manter relações com os homens. Logicamente, devido à reputação de seu pai, não pretendia encontrar amantes em Londres, mas os encontraria em Paris. Talvez... até... sim, poderia até se tornar mãe. Anne fechou os olhos e suspirou. Se conseguisse ter um filho em seu ventre, se conseguisse gerá-lo, ela o amaria e cuidaria dele até o fim de seus dias. Nunca diria ao pai sobre a existência daquele filho, de modo que ele não insistisse em se casar e se tornasse a terceira vítima da maldição. Nunca pensou nisso enquanto mantinha relações amorosas com Dick. Talvez porque era muito jovem ou talvez porque ele prometera que, até que eles se casassem, não deixaria sua semente dentro dela. Independente do motivo, não

se imaginou com uma criança em seus braços até que decidiu deixar a cidade que odiava. Só Paris poderia oferecer-lhe o que sonhava e desejava!

Quando estava prestes a chegar na área da sala a qual se dirigia, escutou vozes masculinas muito próximas a ela. Por causa do tom que usavam, não pareciam estar tendo uma conversa cordial, muito pelo contrário. Embora devesse ser discreta, Anne olhou para aquelas duas figuras masculinas que afastadas dos convidados. Um, sem dúvida, era o marquês de Riderland. Mesmo que estivesse de costas, o cabelo loiro e a altura eram seus traços mais característicos. No entanto, os olhos castanhos de Anne se fixaram no cavalheiro desconhecido. Suas costas eram tão largas quanto às do Marquês e diferiam pouco em altura. Suas pernas longas e torneadas estavam perfeitamente moldadas pelas calças. Eles pareciam duas figuras exatas, no entanto, o estranho usava um longo cabelo escuro preso em uma fita preta, de acordo com o tom do terno que usava. Anne, percebendo que ele começava a mover seu lindo corpo virando para o lado dela, começou a andar em direção às cadeiras, tirando rapidamente os olhos daquele lugar. Se repreendia Elizabeth por seu comportamento descarado, não poderia fazer exatamente o que estava recriminando. Mas a curiosidade em descobrir quem irritou o marquês em um dia tão importante para a família, fez com que ela lentamente virasse o rosto para eles. No momento em que viu as feições do estranho, estendeu a mão para o encosto da cadeira mais próxima e se

agarrou a ela com força. Eles eram da família, disso não havia dúvidas. Somente os Riderland poderiam ter aquela cor de olhos tão especial e rara. Como Elizabeth dissera, era uma característica muito típica dos Bennett. Mas Anne não fixou apenas os olhos no homem, mas continuou a observá-lo com ousadia. Sua mandíbula, forte e máscula, ostentava uma barba bastante espessa e comprida. Parecia que ele havia demitido seu valete anos atrás. Lentamente, e sem conseguir parar de olhá-lo, contemplou seu nariz aquilino, as rugas em sua testa e aquela forma de coração que mostravam seus lábios vermelhos como o carmim. Atordoada por esse comportamento tão atrevido, se colocou na frente da cadeira que estava segurando e se sentou. No entanto, seus olhos pareciam não ter percebido aquele constrangimento que percorria seu corpo e permaneceram presos no estranho, reunindo todos os detalhes daquele corpo tão másculo e magnético. Conseguiu rapidamente a resposta a uma das perguntas que se fez mentalmente; ele era um legítimo Bennett, apesar de ser moreno. Talvez fosse um sobrinho, um primo ou um tio jovem do marquês. Mas sem dúvida, um Bennett.

Estava tão encantada com ele, tão atraída por aquele corpo musculoso e sensual, que não percebeu que o observara por tanto tempo que acabaram cruzando seus olhares. No momento em que aquele estranho ergueu a sobrancelha direita, perguntando em silêncio para o que estava

olhando, Anne, ainda mais envergonhada, abaixou a cabeça. No entanto, percebeu que ele não tirara os olhos dela. Sentia como a olhava, como contemplava cada centímetro dela, e naquele exato momento queria que uma cortina de fumaça, como a usada pelos ilusionistas que atuavam no teatro, a cercassem para que pudesse escapar. Mas aquela névoa espessa não apareceu e

continuou

percebendo

o

escrutínio

daquele

homem

sobre

ela. Mereceu. Causara aquele constrangimento por ser tola. Como se atrevera a olhar para um homem assim? Não estava zangada porque Elizabeth fizera o mesmo com os dois jovens aristocratas? Bem, agora... quem ficaria chateado por sua atitude inadequada? Ela. Ela mesma ficou irritada com sua indiscrição e com a repercussão que sua atitude inconveniente havia causado.

Ela colocou as mãos no vestido, eliminou as poucas rugas que havia e respirou fundo para se acalmar. Como era a única culpada dessa indecência era, colocaria um fim nela. Muito lentamente, foi se levantando, precisava voltar para o lugar onde passara às últimas duas horas. Ninguém iria vê-la ali e esse homem pararia de olhá-la. Mas quando ergueu o rosto, quando seus olhos se dirigiram de maneira involuntária para o lugar em que ele estava, descobriu aterrorizada que continuava a observá-la. Suas pernas começaram a tremer, suas mãos estavam tão suadas que podia ver as manchas de suor em suas luvas e seu coração, que tinha parado de bater quando Dick morreu, começara a palpitar com tanta força que a obrigou a se balançar ao

ritmo dessas batidas. O que diabos estava acontecendo com ela? Por que estava tão paralisada? E.... por que sua temperatura subira? Desesperada, porque não havia palavra melhor para defini-la, virou-se, desviou os olhos daquele estranho e, ao dar o primeiro passo, esbarrou com uma mulher que conhecia há mais de vinte anos.

—Senhorita Moore, está bem?

—Milady —disse Anne, fazendo uma leve reverência. —Sim, muito bem, obrigada.

—Já vai? —A baronesa perguntou.

—Não, acabei de chegar. Estava prestes a sentar -- mentiu.

Estendeu a mão para a idosa e ajudou-a a ficar em pé na frente da cadeira ao lado da que ela havia permanecido.

—Então me acompanhe, se não tiver nada melhor para fazer --

pediu à filha mais velha de seu bom amigo Randall.

—Será uma honra —Anne respondeu, se acomodando novamente.

—Está aqui há muito tempo? Não a vi antes.

—Desde o início da tarde, milady. Como sabe, Elizabeth é a melhor amiga da atual esposa do Sr. Lawford e não poderíamos perder um dia tão especial —explicou lentamente.

—Então o fato de não ter ouvido falar a seu respeito até agora é

porque passou esse tempo cuidando da integridade de sua irmã em vez de aproveitar a festa, estou errada? —Vianey perguntou com grande confiança.

—É muito astuta, baronesa —disse Anne, esboçando um leve sorriso.

—Bem, tenho que informá-la que não serve como dama de companhia -- ela disse de forma repreensiva. —Caso não tenha notado, Elizabeth decidiu dançar com Lorde Lorre e posso assegurar-lhe que esta companhia não é muito apropriada.

Anne, diante do comentário da baronesa, olhou para a pista de dança e confirmou suas palavras. Elizabeth dançava e sorria para seu acompanhante. Como aceitou dançar com ele sem pedir permissão? Estava tão desesperada para ignorar os protocolos sociais? E o que ela fez para impedir isso?

—É só uma dança...—Anne murmurou para a baronesa. —Tenho certeza de que quando eles terminarem, ela virá até mim e tudo será resolvido.

—Sua irmã, querida, não deixará nada resolvido. Não sei se seus pais são conscientes da atitude inadequada que a terceira de suas filhas tem adotado, mas o resto da sociedade sim -- disse ela severamente. -- Seria uma lástima se, após o tempo que o seu pai levou para se posicionar onde está, a má reputação de uma de suas filhas o destrua.

—Milady, com todo o respeito, devo dizer que está dramatizando uma atitude afável. Minha irmã não adota uma...

—Como definiria o comportamento de uma jovem que, desesperadamente, tenta se casar com um aristocrata, Anne?

O fato de que aquela mulher a chamava pelo primeiro nome a deixou aturdida. Era verdade que seus pais e a baronesa de Swatton tinham um relacionamento muito íntimo depois que seu pai salvara seu amante, o administrador Arthur Lawford, de uma terrível doença. Mas nunca se dirigiu a ela com tanta familiaridade. Isso só poderia indicar que estava muito preocupada com a fama que Elizabeth poderia adquirir e o drama que acarretaria à sua família.

—Irá passar... -- Anne admitiu depois de respirar fundo.

—Acredita mesmo que depois que sair da cidade a sua irmã irá mudar? —Ela retrucou, olhando-a sem piscar.

—Como sabe...? —Tentou dizer.

—Sua mãe e eu, como bem sabe, somos muito boas amigas e me contou que decidiu ir para Paris pelo bem de suas irmãs —confessou.

—Não só por isso, milady, mas também pelo desejo de evoluir como artista. Não posso passar o resto da minha vida retratando damas, isso vai me destruir de novo e, como bem sabe, depois do que aconteceu no passado, só fui capaz de sair daquele estado horrendo através da pintura.

—Então... nenhum cavalheiro tentou se tornar seu terceiro pretendente, certo? ?Vianey estava interessada.

—Não. Nenhum e também não quero que o façam. Cheguei à conclusão de que quero ficar sozinha. Não quero um homem ao meu lado que esteja continuamente verificando o que farei durante o dia. Preciso de liberdade para fazer o que me agrada -- disse ela com as mesmas palavras que Mary usou quando sua mãe insistiu, três semanas atrás, que levantasse os olhos dos livros e os colocasse em algum homem.

—Entendo... -- a baronesa murmurou, desviando o olhar de Anne e o prendendo no outro extremo da sala. Para sua surpresa, descobriu que o irmão do marquês, o visconde de Devon, continuava observando o lugar onde estavam. Muito a contragosto, tinha certeza de que aquele belo cavalheiro não a contemplava, mas sim a sua companheira. Rapidamente voltou seus olhos para a filha mais velha de Randall e fez uma expressão de aborrecimento com a cor daquele vestido. —Paris não me agrada. Lá os cônjuges são infiéis.

—Os desta cidade não? —Anne perguntou, levantando as sobrancelhas castanhas.

—Os daqui também, mas menos do que os dessa cidade --

continuou em seu discurso. ?Além disso, nem tudo está perdido. Talvez apareça um cavalheiro que não tenha medo de enfrentar a morte e queira

descobrir o que está escondendo sob este horrível vestido laranja. Sua mãe não a proibiu quando a viu? Porque se fosse minha filha, teria feito isso em pedaços.

—Minha mãe, como bem sabe, respeita as decisões de suas filhas. Por essa razão, me permitiu usar este lindo vestido de seda laranja e me apoia na decisão de partir para Paris —disse sarcasticamente.

—Bem, sendo esse o caso, devo avisá-la para se concentrar, durante o tempo que permanecer aqui, na atitude de sua irmã, não acho que minha querida Sophia deseje ouvir conversas sobre a posição que sua terceira filha ocupará se desejar manter um relacionamento com o senhor Lorre.

—A qual posição está se referindo? —Ela perguntou, se virando para a baronesa.

—Não ouviu os últimos rumores sociais, certo?

—Como deve compreender, não estou disposta a prestar atenção a diálogos absurdos sobre o que a aristocracia faz ou não —disse seriamente.

—Nesse caso, farei um resumo. Aparentemente, os barões de Pherguin, os pais de Lorde Lorre, fizeram tudo ao seu alcance para trazê-lo de volta da Espanha. O muito ingrato dilapidou mais de dois terços da herança familiar e foram obrigados a concordar com um futuro casamento com a filha do casal Bakalyan, os donos da segunda mais poderosa empresa de ferro. Assim que o acordo se tornar público, o único lugar que o ilustre

Lorde Lorre poderá oferecer é o de uma amante. Sua linda irmã quer se tornar amante de tal homem? Sophia também respeitará essa alternativa para sua filha? —Disse de má vontade.

—Tenho certeza de que Elizabeth não sabe do que aconteceu, milady. Caso contrário, ela teria se recusado a conceder aquela dança —murmurou enquanto observava o casal sorridente. —Mas não se preocupe, assim que a peça terminar, falaremos sobre isso e verá como tudo foi um grande engano.

—Espero que a coloque em seu lugar —disse a baronesa, levantando-se depois de descobrir que Arthur estava indo em sua direção. --

Seria horrível que tal comportamento selvagem que resolveu ter, a levasse a se perder. Testemunhei catástrofes irreparáveis sobre a honra de uma mulher.

—Como eu disse, tenho certeza que foi um engano —disse Anne, se levantando também.

—Bem, confio em seu bom senso, Anne. Não gostaria de testemunhar a terrível humilhação que seus queridos pais suportariam —ela insistiu.

—Não seria a primeira vez... —murmurou para si mesmo, mas a baronesa ouviu.

—Que seus noivos tenham morrido não é tão importante quanto ver arruinada a honra de sua irmã. E agora, se me der licença, tenho que me

encontrar com Arthur. Estará cansado e quererá ir embora.

—Boa noite, milady —disse Anne, com uma leve reverência.

—Boa noite, Anne e lembre-se de uma coisa, a esperança é a última coisa que se perde.

—Se está se referindo a Elizabeth, não se preocupe, tenho certeza que tudo terminará em breve.

—Não me refiro a essa harpia disfarçada de menina, mas a você. Não perca a esperança de viver aqui o que sonhou, porque prevejo que sua vida mudará muito mais cedo do que imagina —disse ela antes de caminhar lentamente para o local onde o administrador a estava esperando.

Enquanto tentava se acalmar, observou a baronesa caminhando em direção ao amante sem se importar com a fofoca dos outros. Era ilógico que uma mulher como ela, que mantinha um caso com o tio do marido de Natalie há cinco décadas, notasse o comportamento infantil de Elizabeth. Mas isso só fortaleceu o que já havia concluído: que a aristocracia estaria sempre acima do resto do mundo. Incapaz de aplacar a raiva que sentia, Anne franziu o cenho e silenciosamente amaldiçoou que seus pais não tivessem escolhido Mary para ocupar seu lugar. Certamente, depois de ouvir as palavras da baronesa, ela teria se levantado, ido até os dois e, depois de esbofetear aquele rosto masculino bem-cuidado, teria agarrado Elizabeth pelo braço para arrastá-la para fora da residência do marquês. No entanto, ela, estava

paralisada olhando para as expressões coquetes de Elizabeth e rezando para que as cordas de todos os violinos arrebentassem e o baile acabasse de fato.

«Mais alguns minutos...", pensou enquanto começava a caminhar para aquela área onde queria se esconder até que a música terminasse. Se já era penitência suficiente suportar que todos a evitassem e sua irmã não se comportasse adequadamente, não queria acrescentar, a essa lista, que os convidados percebessem que ela estava zangada, muito zangada. Certamente sairiam correndo gritando que a bruxa queria matar outra pessoa. Mas quando ia se colocar atrás daquela grande coluna que a protegeria até que pudesse pegar sua irmã e fazê-la voltar para casa, tornou a sentir uns olhos fixos nela. Com medo, porque estava ciente de quem era a única pessoa que teria a coragem de fazê-lo, levantou o queixo lentamente e teve a confirmação. Lá estava ele, aquele estranho de olhos azuis, a observando. Sem tirar os olhos dela, levou o copo que tinha na mão até a boca, bebeu devagar e, depois de tomar aquele gole, lambeu lentamente os lábios. Aquele ato tão descarado causou um ardor tão imenso em Anne que ela quase se ajoelhou. Seu coração batia descontroladamente de novo, suas mãos suavam novamente e uma dor estranha apareceu em seu abdômen. O que diabos estava errado com ela? Seu sangue cigano tinha ressurgido das cinzas ao vê-lo? O que havia de especial naquele homem? Por que estava tão alterada? Anne respirou fundo e, embora suas pernas não respondessem como desejava, se escondeu atrás do pilar, mas

a saia de seu vestido laranja, uma cor bonita, mas não muito discreta, derramava de ambos os lados como se vestisse aquele pilar de mármore. «Se existe, me ajude a sair daqui», ela pediu fechando os olhos.

—Mais uma vez se escondendo? —Elizabeth perguntou.

—Elizabeth! —Exclamou surpresa.

—O que? —Ela retrucou, olhando-a com espanto. —O que aconteceu? Alguém riu do seu vestido horrível? —Ela zombou.

—Temos que ir. Temos que sair daqui... agora! —E, como havia pensado, agarrou o braço dela e arrastou-a para o corredor.

—Tenho que me despedir de Natalie! -- Ela disse uma e outra vez.

—Amanhã envie uma missiva para ela, se desculpe dizendo que não queria que ela perdesse mais tempo e que partiu porque já era muito tarde

—ela indicou sem olhar para ela.

Seu casaco. Tudo o que ela precisava para sair de lá era o casaco. Mas se o mordomo demorasse muito para oferecê-lo, sairia sem ele.

E enviaria Shira para buscá-lo no dia seguinte.

—Mas Anne! —Insistia Elizabeth. —Não. Não está correto agir...!

—Está depois do que fez! Sabe o que a Baronesa de Swatton sugeriu para mim enquanto dançava com Lorde Lorre?

—Vindo dela, qualquer coisa —disse Eli divertida.

—Que os homens não te veem como uma futura esposa, mas como amante —disse ela sem hesitar.

—E é isso que uma mulher que esteve em um relacionamento secreto por décadas com um administrador de fama suspeita disse? --

Trovejou Elizabeth, ofendida.

—Se ela pensa assim, o resto do mundo também. Ela só quer nos informar o que acontecerá se não reagir em breve.

Quando ela se virou para pegar o casaco que um mordomo finalmente oferecia, seu corpo endureceu como uma tábua. Ele a seguiu. Aquele homem a estava seguindo. Por que ele fez isso? Que interesse tinha em relação a ela?

—Ouça uma coisa, Anne Moore —disse Eli, apontando o dedo para ela. —Nem pense em contar aos nossos pais tanta tolice. Não procuro ser amante de ninguém, mas a esposa de alguém. Talvez tenha desistido quando seus dois pretendentes morreram, talvez a tolice daquela maldição de nossa bisavó a tenha assustado, mas não a mim. Não quero me tornar uma solteirona e pretendo me aproveitar do físico que tenho para encontrar um homem para casar.

—O físico não é importante... —Anne murmurou assombrada.

—Para se tornar a esposa de um aristocrata, sim —disse ela antes

de se virar e sair da residência com o queixo tão alto quanto uma duquesa.

Anne, antes de dar um passo à frente e correr atrás de Elizabeth, virou-se para o lugar onde ela tinha visto o homem e descobriu que ele ainda estava lá, encostado na parede, naquele impecável terno preto, mostrando uma aura de mistério e olhando para ela sem piscar. Atordoada, pela forma tão ousada de observá-la, se virou e correu em direção à saída. Uma vez que entrou na carruagem e está partiu, seus olhos perfuraram involuntariamente a entrada da residência do Marquês e, quando observou a figura encostada no batente da porta, seu sangue cigano começou a ferver queimando a pele.

II


Quando Randall chegou à sua casa, depois de falar com o visconde de Devon, foi diretamente para o corredor norte, onde ele e sua esposa costumavam tomar o café da manhã com tranquilidade antes de suas filhas acordarem. Ao entrar, Sophia, como eles combinaram antes de ele partir, estava esperando sentada em frente ao calor da lareira. Ela havia soltado os cabelos e aquela esteira de fios negros e lisos chegava à cintura. Lentamente Randall foi em sua direção, colocou-se atrás dela e lhe deu um beijo carinhoso na cabeça.

—Ele se recusou a levá-la, certo? —Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

—Sim, recusou, apesar de ter lhe dado o envelope --

respondeu. Se virou gentilmente e sentou-se ao lado de sua esposa. —Nem o olhou... —ele acrescentou depois de respirar. —Não posso culpá-lo, Sophia. Porque o culpado de tudo sou eu... —continuou aflito.

—Não tem nada a ver com esse rechaço. As coisas acontecem por uma razão e estava previsto que ele não aceitaria essa proposta, mesmo que tenha lhe oferecido um milhão de libras —assegurou.

—Não sei se estava ou não —disse ele, descansando a cabeça no ombro dela. —A questão é que ele se recusou completamente depois de falar

sobre a maldição de nossa filha.

—E, porque contou a ele sobre isso? —Sophia retrucou, pulando para cima. Ela olhou para ele e, vendo a tristeza naquele rosto que ela amava, relaxou.

—Não sei... —Randall disse esfregando o rosto em desespero. --

As palavras saíram da minha boca sem que pudesse controlá-las e quando eu quis parar, já era tarde demais.

—O que disse... exatamente? -- Ela exigiu saber enquanto se colocava na frente dele. Se ajoelhou, colocou as mãos nos joelhos de Randall e olhou para ele com muito carinho.

—Quando ele se recusou a navegar com uma mulher em seu navio, pensei que, explicando o seu passado, mudaria de ideia.

—E? —Sophia insistiu.

—Eu confessei sua verdadeira origem, o que sua avó fez, o sonho que teve no nascimento de Anne e a morte de seus pretendentes —disse ele sem olhar para ela.

—E? —Ela continuou insistindo.

—E, claro, ele se recusou ainda mais. Que capitão de navio levaria uma mulher amaldiçoada entre sua tripulação?

—Essa foi a razão pela qual ele rejeitou? Essas mesmas palavras saíram da sua boca? —Ela insistiu novamente.

—Não. O visconde não se referiu à maldição, mas à ideia maluca de tirar nossa filha de nós.

—O que aconteceu quando contou sobre a morte dos pretendentes de nossa filha?

—Pensei que me chutaria para fora de sua casa —ele disse com pesar. —Primeiro ele ficou pálido, como se não acreditasse em minhas palavras, então, quando expliquei que nenhum homem se aproximava dela e que ele pode confirmar isso na festa, me culpou pela infelicidade de nossa filha. Segundo o visconde, foram nossas escolhas equivocadas que provocaram essa catástrofe.

—Nós não temos nada a ver com a aceitação de Anne para o Sr.

Hendall. Ela mesma decidiu o que queria com seus atos inapropriados --

Sophia o lembrou.

—Verdade, e se aquele canalha não tivesse confessado que Anne perdera sua virtude com ele, não o teria aceitado. Mas também testemunhou como ele usou a honestidade de nossa filha para alcançar seu propósito.

—E o destino puniu seu trabalho maligno com a morte —disse Sophia, levantando-se. Ela se virou devagar e sentou-se ao lado do marido.

—Sorte dela... —ele meditou em voz alta. —Ainda estou me perguntando como Anne não foi capaz de descobrir quem esse homem realmente era e o que ele pretendia com esse casamento —disse Randall,

colocando as mãos nos joelhos, como se para apaziguar a frieza que sentia após a retirada de sua esposa. —A cidade inteira conhecia a má reputação de Hendall e, apesar disso, Anne deixou-se seduzir sem se importar com o motivo pelo qual se aproximava.

—Uma mulher apaixonada é incapaz de ver além dos olhos de seu amado. Mesmo que ela ouvisse rumores sobre os casos de amor de Hendall e as pretensões que tinha de se casar, ela negaria cegamente --

assinalou Sophia, colocando as mãos na de seu marido. -- Acredita, realmente, que nossa filha poderia admitir que seu noivo deixou um clube em estado semelhante de embriaguez e depois de ter relações sexuais com prostitutas? Ou que a razão pela qual ele queria se casar com ela era conseguir o prestígio que seu bom nome ofereceria à sua companhia?

—Não.

—Bem, tem a resposta, Randall. Nenhuma mulher seria capaz de sobreviver a tal humilhação. Nem mesmo seu dom para pintar a teria libertado daquela amargura.

—E o filho do conde? Alguém achou que ele estava tão perturbado que se mataria com sua própria arma? —Perguntou o médico, virando-se para Sophia.

—Nós dois sabíamos que o jovem não estava bem quando não conseguiu se aproximar para pedir a mão da nossa filha. Além disso,

recriminou o velho conde pela decisão de escolher Anne porque era uma mulher saudável e poderia usá-la como parideira... —ela refletiu acariciando as palmas das mãos do marido com os dedos.

—Não sei o que fazer ou o que pensar. A única opção que ponderei até agora desapareceu quando o visconde se recusou a levá-la em seu navio. Talvez Anne devesse assumir que seu destino é ficar aqui conosco e deixar passar o tempo até que todos esqueçam o que aconteceu. O único inconveniente que vejo nisso é que ela não vai aceitar facilmente. Viu sua insistência em partir, em se tornar uma mulher diferente e, infelizmente, a depressão que passou voltará quando lhe explicar o que aconteceu -- Randall disse com pesar.

—Tem toda a razão. Anne não vai ficar de pé com os braços cruzados quando souber que o visconde se recusou a levá-la embora e irá procurar outro jeito de conseguir. Além disso, não faz isso apenas por ela, mas também por suas irmãs. Não percebeu como está triste depois da mudança de atitude de Elizabeth? Ela se sente culpada pelo desespero de sua irmã e acha que Eli será a jovem que era quando ela for embora —explicou, voltando o olhar para o fogo.

—A única coisa que eu entendo é que, por causa da nossa má escolha...

—Pela maldição —interrompeu Sophia.

—Sabe que não acredito nesse absurdo! Não há estudo científico que explique tal coisa, querida. São apenas conjecturas de uma crença... --

Randall ficou em silêncio enquanto observava as feições de sua esposa endurecerem. Doía falar sobre seu povo, sua cultura e tudo em que ela acreditava desde criança. Mas ele não aceitava essa ideologia. Sua filha não era amaldiçoada. Sua primogênita sofria apenas das más decisões de seus pais, como o visconde dissera, e a recriminação de uma sociedade frívola e injusta. Quanto ele teve que lutar para pular todos os obstáculos que colocaram em seu caminho? Muito! Mas ao longo dos anos e com sua tenacidade manteve a reputação que merecia. Nem a aristocracia poderia ofusca-lo! Então... por que a filha dele não poderia lutar como ele? A resposta que apareceu em sua cabeça lhe causou muita dor, tanto que sentiu suas entranhas se abrissem. Mulher. Só porque Anne era uma mulher, tinha que sofrer essa agonia miserável.

—Por que está tão quieto? —Ela perguntou depois de beijá-lo na bochecha.

—Penso sobre a injustiça, sobre a sociedade tão miserável em que nossas filhas vivem. Estamos prestes a terminar um século e não vejo nenhuma evolução.

—Sobre que?

—Sobre nossas filhas, sobre o fato de que elas são mulheres e o

futuro que terão... —confessou Randall depois de respirar fundo.

—Não deveria se preocupar tanto porque Morgana vai cuidar delas e transformá-las em mulheres abençoadas —disse ela, virando-se para ele.

—Não está pensando sobre a visão de Madeleine novamente, está? —Ele disse, apertando seus velhos olhos.

—Ela não teria dito nada sobre esse assunto se não acreditasse. --

Ela a defendeu com firmeza.

—Madeleine ama sua irmã mais velha e estaria disposta a fazer qualquer coisa por ela, até mesmo mentir, embora, como bem sabe, toda vez o faz aparece, uma erupção aparece em seu rosto.

—Se me lembro bem, não tinha nada em seu rostinho quando disse isso —ela a defendeu novamente. Embora Randall não admitisse suas crenças de sangue, ela o fazia e tinha certeza de que o que Madeleine vira no sonho de que falava se tornaria real.

—Não parou de comer?

—Não.

—Não teve uma erupção cutânea em qualquer parte do corpo? --

Randall continuou dando um pequeno sorriso.

—Não -- Sophia negou novamente.

—Então... acha mesmo que vamos encontrar um marido para a

nossa Mary? —Ele disse zombeteiramente.

—O que Madeleine disse sobre isso? —Ela perguntou timidamente, levantando-se.

—Mas... realmente não duvida dela?

—Não.

—Tem muita fé... —ele sussurrou olhando para o fogo.

—Mary descobrirá aquele marido que venerará sua inteligência e aplacará sua língua.

—Aham —Randall continuou, seus olhos nunca deixando o fogo.

—Josephine...

—Josephine? ?Ele perguntou, virando o olhar para sua amada esposa e erguendo as sobrancelhas. —Se Mary é um tema complicado, Josephine é duas vezes mais— acrescentou sarcasticamente.

—Se não encorajasse sua atitude de guerreira, se não tivesse comprado àquela arma infeliz, Shira teria tomado o cuidado de vesti-la como uma menina e ela não usaria aquelas benditas calças. Sabe como as vendedoras olham para mim quando peço roupas masculinas que uma mulher possa usar? —Ela retrucou com raiva.

—Josephine tem uma alma guerreira e tem que admitir que nenhum homem tem a habilidade que ela tem para a luta. Não tenho dúvidas de que ela seria o soldado mais valente de um exército.

—Não é um homem, Randall! Ela é uma mulher! Não percebeu que começam a brotar certas protuberâncias em seu peito? De acordo com o termo médico são seios, certo?

—Como eu gosto quando fala assim! —Ele exclamou, levantando-se, mas quando foi abraçar sua esposa, ela o rejeitou.

—Mary encontrará um marido, Josephine o seu, Elizabeth... ela vai se apaixonar pelo homem que Morgana escolheu, embora ele não seja aristocrata e Madeleine terá que abandonar esse medo para enfrentar o seu próprio.

—Esqueceu Anne... Se casará com um cigano?

—Sim —ela disse sem hesitar por um único segundo. —O fará.

—Como? Não pensa em levá-la a um acampamento cigano, certo?

—Não, eu não farei tal tolice. Amanhã falarei com ela e contarei o que aconteceu com o visconde. Entre nós duas, vamos procurar uma solução. Talvez possamos encontrar um cliente que more fora de Londres e, desse modo, poderá sair daqui, mesmo que não seja Paris. Certamente que esse cigano aparecerá a qualquer momento...

—E enquanto isso, o que fazemos com Elizabeth? Não podemos permitir que ela continue agindo de maneira tão pouco descente —ele perguntou, estendendo a mão para Sophia.

—Se for necessário trancá-la em seu quarto até que mude seu comportamento, o farei —Sophia disse com firmeza, aceitando a mão do marido.

—Espero que Anne não fique muito chateada quando disser a ela que seu pai contou que era amaldiçoada —disse o médico enquanto os dois caminhavam em direção à saída.

—Ele realmente o olhou como se estivesse louco?

—Não pode imaginar... quando disse a ele que teria que tê-la notado porque nenhum homem se aproximava dela, seus olhos quase saltaram fora. E isso que não contei sobre esse vestido laranja infeliz! Como permitiu que ela fosse vestida assim? Se o que ela tentou foi passar despercebida, não teve sucesso. Até mesmo um cego a teria visto! —Ele exclamou divertido.

—Eu juro que quando a vi descendo as escadas com essa cor quase a fiz voltar para seu quarto para mudar, mas algo dentro de mim gritou que não fizesse isso —disse Sophia, inclinando a cabeça no ombro esquerdo do marido.

—É, de todas as nossas filhas, a que mais se parece com você. Tem tanto sangue cigano correndo em suas veias que ela não pode controlá-lo. Só faltaram as joias que Elizabeth falou para ir gritando quem realmente é.

—É por isso mesmo está amaldiçoada e por isso se entregou àquele canalha. Se ela fosse mais sensata e menos apaixonada, teria analisado sobre a perda de sua honra —murmurou Sophia.

—Não fique zangada com algo que não podemos mais remediar. Anne tem quase vinte e cinco anos e pode fazer o que quiser. Além disso, já conhece o caráter boêmio que os artistas têm... —ele continuou falando em tom de brincadeira.

—Se Madeleine estiver certa, o sangue cigano logo evocará a pessoa que está destinada a ela e esse homem acalmará a paixão que surge nela.

—Acredita? —Randall questionou duvidosamente.

—Eu não fiz isso com você?

—De verdade? Pensei que tinha ido à sua aldeia para curar um homem doente, não para procurar uma esposa —disse o médico, em pé na frente da escada que os levaria ao segundo andar.

—Meu querido Randall, é a pessoa mais gentil que eu já conheci. Ainda pensa, depois de saber o que nossa raça é capaz de fazer, que meu pai adoeceu sozinho? Que não fiz um feitiço para fazê-lo aparecer antes que eles me obrigassem a uma união arranjada?

—Fez isso? —Ele perguntou, levantando as sobrancelhas.

—Não, claro que não —ela disse antes de soltar uma risada e

subir os primeiros degraus. Quando ela viu que Randall não a estava seguindo, se virou para ele. -- Vai ficar aí a noite toda?

—Fez isso? —Ele repetiu novamente.

—Randall Moore —ela começou descendo os dois degraus que os separavam —eu faria qualquer coisa para encontrá-lo.

—Até envenenar seu pai?

—Até envenenar meu pai —ela repetiu antes de beijá-lo nos lábios. —E agora vamos para a cama. Nós temos que descansar. Espero que amanhã seja um dia muito especial para todos nós.

—Especial? —Ele exigiu, apertando os olhos.

-- Sim —disse Sophia antes de encorajar Randall a subir para o quarto. —Muito especial…

-- Outra clarividência? —Ele perguntou ao se colocar ao seu lado e abraça-la.

—Um pressentimento cigano —disse ela.

III


Anne se inclinou contra o tronco ao lado dela e manteve os olhos fixos na frente. A música, a que a puxou para fora da cama e a atraiu para aquele lugar desconhecido, tornou-se mais intensa a cada passo que dava. A escuridão da noite a impedia de ver além do que encontrava quando se movia para a frente, mas isso não lhe causava pavor; ao contrário, nesse momento sentia tanta força e segurança que esqueceu o significado da palavra medo. Ela retirou a mão do tronco em que estava segurando, deu outro passo e ouviu um ruído acima de sua cabeça. Lentamente, ela levantou o rosto e encontrou o maior corvo que já vira. Este último, depois de bater as asas, grasnou e foi para o lugar onde a melodia estava ficando mais alta. Encantada pela música, ela esqueceu o pássaro e entrou na floresta frondosa. Sem se perguntar por que estava indo em direção àquela voz cantando, cruzou o caminho íngreme até chegar a uma pequena clareira no meio daquela floresta. Com espanto deduziu, vendo uma grande fogueira no centro daquele lugar amplo, que não estava sozinha e que talvez a pessoa que acendeu o fogo fosse a mesma que cantava. Parando, sem ao menos mexer os dedos dos pés descalços, olhou em volta, procurando a figura humana que deveria estar em algum lugar. No entanto, não encontrou ninguém. Ela estava sozinha na frente do fogo que a convidava, com seu

calor e luz, a se aproximar e se sentir protegida sob suas chamas.

Quanto mais perto ela chegava da grande fogueira, mais confiante ela estava, apesar do tecido de sua camisola queimar tanto que ardia sua pele. Mas era incapaz de parar no meio do caminho, ela precisava, sem saber por quê, tocar aquelas chamas tão atraentes e seguras.

Deu um passo, depois outro, enquanto seus ouvidos captavam com mais clareza as frases daquela canção: Aproxime-se do fogo, sinta-o em sua pele, em sua alma, em seu peito. Ele te livrará da sua dor, da sua tristeza e te conduzirá ao que almeja.

Como poderia entender essas frases se as ouvia em outra língua? Por que eram tão familiares? O que havia de especial naquela música para deixá-la sem o poder da decisão? Sua mente procurava as possíveis respostas quando estendeu a mão para o fogo. Não se queimou, nem sentiu dor. Por mais estranho que parecesse, não percebeu nada além de tranquilidade, como quando chegava em casa depois de um dia intenso de trabalho. Com os olhos fixos naquele vai e vem amarelo e laranja e com aquela música que repetia várias vezes que encontraria o que procurava, respirou fundo. O que havia desejado durante seus anos de vida? Como se livraria da dor? O que tinha de especial naquele fogo? Teria que atravessá

lo para descobrir as respostas?

Fechou os olhos, abriu as mãos e, determinada a conhecer todos

os enigmas que surgiram em sua mente, colocou os pés sobre as brasas ardentes. Mas estas também não queimavam. Sua camisola ainda estava intacta e ela ainda estava... viva.

—O que quer? —Se atreveu a dizer no meio da fogueira. —O que encontrarei? Por que me trouxe aqui? —Mas tudo ficou em silêncio. Até a voz cantada, que a acompanhara no caminho, cessou no momento em que entrou no fogo. —O que quer? —Repetiu abrindo os olhos.

Depois de passar alguns segundos esperando a resposta, decidiu sair e voltar para aquela cama fria que havia deixado. No entanto, quando saiu do fogo, ouviu o vento agitar as copas das árvores.

—Eu te amo e só tem que me encontrar -- disse a voz de um homem atrás dela.

Assustada, ela se virou e descobriu que o fogo tinha desaparecido. Em seu lugar havia uma figura masculina, que reconheceu rapidamente. Aterrorizada, colocou as mãos no peito e gritou.

—Leve-me porque eu sou seu, assim como é minha —ele continuou falando.

Ela tentou andar para trás, longe daquele homem que estendia as mãos para ela, mas seu corpo se recusava a fazê-lo. Sentia uma atração tão imensa por ele que podia sentir sua pele se separando dela e voando para aquele estranho.

—Não lute, não precisa fazer isso. É minha e eu sou seu —ele continuou falando com ela enquanto cortava a distância entre os dois.

Ela fechou os olhos, não queria ver mais nada. Queria voltar para a cama que não deveria ter deixado, para sua casa, para sua vida horrível, para a solidão..., entretanto, quando o homem a abraçou para consolar aquela inquietação agonizante, tudo ao seu redor deixou de existir e uma liberdade apareceu em seu interior.

Sede, tinha sede e calor. Tanto calor que poderia derreter a qualquer momento. E essa sede não era humana, mas espiritual. Como se ao permanecerem unidos, seu corpo não tivesse sangue e precisasse dele.

—Olhe para mim... —ele disse, levantando o queixo com um dedo. Olhe para mim e descubra em meus olhos tudo o que questiona.

Muito lentamente, ela fez o que lhe foi dito e, aqueles olhos azuis como o mar, lhe ofereceram visões tão claras que pareciam reais. Ela se viu na festa, escondendo-se atrás da parede, mas ele a seguia, a procurava.

Também assistiu à cena de sua partida e percebeu a angústia que sentiu ao sair. Então uma casa apareceu, grande e sólida como um castelo. Ela corria rindo, divertida, enquanto pegava suas saias para não cair no chão. Sua risada misturada com outras, as dele. Outra cena apareceu, não estava mais no meio de um prado, mas em uma sala. Ela estava nua, gemendo, aceitando os beijos que ele lhe oferecia. Se retirou, empurrou-a para a cama, ela bateu

no colchão e sorriu. Então ele se colocou em seus quadris, guardando em seu interior aquele sexo masculino. Ele continuou ofegando, movendo-se, enquanto tocava seus seios, levava sua boca para a dela e sugava todos os seus gemidos. Seus cabelos castanhos dançando ao ritmo daquele ato apaixonado, daquele encaixe, daquela união...

—Não! —Ela exclamou desesperadamente quando se viu daquela maneira luxuriosa. —Não! —Ela gritou apoiando as mãos naquele duro tronco nu e empurrando-o para longe dela.

Anne sentou-se na cama, puxou bruscamente as cobertas e pôs as mãos no rosto. Suas bochechas queimavam e alguns fios de cabelo estavam presos a elas por causa do suor produzido pelo sonho. Atordoada, ela puxou o cabelo úmido para trás, olhou para frente e suspirou angustiada. Como tinha sido capaz de sonhar com algo tão proibido com um homem que não conhecia? Por que sua mente lhe oferecia imagens tão descaradas? Espantada e ao mesmo tempo com medo, moveu-se lentamente pelo colchão, pôs os pés no chão e tentou apaziguar esse estado de excitação. Mas ela achou impossível relaxar. Mesmo que já estivesse acordada e ciente de onde estava, as imagens daquela fantasia ainda estavam em sua cabeça como se fossem reais. Fechou os olhos, pressionou as mãos no rosto e soluçou. Ela não podia permitir que sua mente lhe mostrasse algo tão imoral, tão pecaminoso ou tão real, porque isso a levaria à loucura. Ela não era... ela não podia... ela era

amaldiçoada.

Depois de respirar fundo, se levantou, caminhou até o pé da sua cama, se agarrou ao dossel de madeira e descansou a testa. Não podia chamar o que viveu de um sonho, mas de um pesadelo. Um em que ela se deixava levar pela paixão de um homem que só vira uma vez e que, possivelmente, não encontraria novamente. Então, por que sua mente gritava que ela seria dele? «É minha e eu sou seu», ouviu de novo como se estivesse ao seu lado. Sem se afastar do dossel, tentou eliminar o que aconteceu, mas não conseguiu. Se viu novamente em um lugar que ela não conhecia e a música retornou. O que esse sonho significava? Ela estaria enlouquecendo? Tão encantada ficou ao vê-lo? Não podia negar que, desde que o viu, uma atração inconfessável nasceu nela. Qualquer mulher teria tido ao vê-lo! Era, entre os cavalheiros que estavam na festa, o homem mais viril, sedutor e enigmático. Sua aura perigosa exalava tanto magnetismo que nenhuma mulher podia desviar o olhar de tal pessoa. No entanto, isso não poderia servir como uma desculpa para tê-lo em seus sonhos, para sentir seu toque em sua pele e ouvir novamente seus próprios suspiros ao possuí-la... com os olhos ainda fechados, Anne agarrou o dossel com as duas mãos e choramingou novamente. Nem mesmo seu amado Dick fizera amor com ela daquele jeito tão apaixonado, tão selvagem e.... antinatural. Aquele estranho a levara a um estado de frenesi tão grande que ela tomara as rédeas daquele

encontro e fora ela que o atacara. Ela! Desde quando uma mulher evitava a modéstia e se comportava de maneira tão desavergonhada? Nua! Totalmente nua e desinibida! E ele a tocava... E a beijava... E....

E as bochechas queimaram novamente ...

Irritada com essa reação, se afastou da cama e foi até a sala de banho. Devia encontrar alguma sanidade e bom senso. Não era uma mulher que se deixasse levar por emoções ardentes, não mais. Tinha feito quando conheceu Dick, mas depois de sua morte, seu coração e alma foram aprisionados em uma urna de gelo.

—Anne? O que aconteceu?

A voz de sua mãe a tirou daquele transe. Ela estava tão absorta em si mesma que não a ouviu entrar no quarto ou se aproximar dela.

—Mãe? —Ela perguntou confusa. -- O que faz aqui?

—O que há de errado, Anne? Por que está tremendo? Porque está chorando? Os ataques de pânico retornaram? —Perguntou se aproximando da filha. A última vez que a viu naquele estado foi após a morte do filho do conde.

Anne olhou para ela um tanto confusa. Deveria ser sincera? Era apropriado confessar que ela tinha visto um homem, a quem havia encontrado na noite passada, sair do fogo e viu em seus olhos cenas pecaminosas? Não, claro que não.

—Foi apenas um pesadelo -- disse ela por fim.

—Um pesadelo? Que pesadelo? O que viu? —Ela insistiu em saber. Até agora, Anne herdara um dom, o da pintura. Poderia ser possível que também fosse clarividente?

—Estava em uma floresta, sozinha, sem nada ao meu redor. De repente, um corvo apareceu e começou a me perseguir. Por mais que eu corresse, ele ainda estava ao meu lado porque queria me machucar.

—Um corvo? —Perguntou Sophia erguendo as sobrancelhas. --

Se assustou com um corvo?

—Era enorme. O maior que eu já vi na minha vida —acrescentou.

-- Não viu mais nada? Um fogo? Ouviu uma música?

Naquele momento, Anne esqueceu de respirar. Como sua mãe sabia disso? Teve um sonho parecido? O sangue que compartilhavam era tão semelhante que ambas sonhavam o mesmo? Esperava que isso não fosse verdade porque não conseguiria nem olhar para a sua cara...

—Não —ela disse devagar, segurando a camisola com força. Ela não teria bolhas como Madeleine quando estava mentindo, mas seu rosto estava tão corado que ninguém duvidaria de sua mentira.

—Bem, então, só se assustou com um corvo... —pensou Sophia sem desviar o olhar.

Se sua intuição não se confundia, Anne acabara de sonhar com

seu homem, embora não quisesse confessar. Isso significava que ele entrara em sua vida e que seu sangue cigano o evocava. Mas... onde o viu? Na cerimônia da Sra. Lawford? Quem seria?

—Só um corvo... —admitiu Anne, incapaz de levantar os olhos do chão.

—E.... te bicou? Te machucou? -- Perseverou Sophia audaciosa.

-- Quando sonhei com um corvo, juro que me machucou tanto...

—O que queria, mãe? —A interrompeu bruscamente.

—Vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem. --

Sophia deixou Anne mudar de assunto. Se ela tivesse sonhado com o que ela supunha, teria que assimilar muitas coisas.

—Quer que saia agora, enquanto minhas irmãs ainda dormem? --

Ela falou desesperada para sair de lá.

—Falaremos sobre isso quando se aprontar —disse a mãe, caminhando até a porta. —E, exceto Mary, estão todas acordadas. Ela olhou para a segunda de suas filhas, de quem só se via os tubos de metal que Shira colocava em seu cabelo antes de dormir. —Outra vez esteve lendo até o amanhecer?

—Ela começou um novo livro —Anne esclareceu.

—Vou queimar todos eles! —Sophia rosnou. —Farei a maior fogueira de Londres quando jogá-los no fogo.

E naquele exato momento, Anne colocou as mãos no peito e sua mãe sorriu, quando descobriu que, na verdade, o homem que Morgana escolhera para sua filha tinha finalmente aparecido.


***


Quando Sophia fechou a porta, Anne foi a sala de banho, mas não antes de olhar para Mary. Estava tão calma, dormia tão docemente que ansiava ser ela por alguns momentos. Como ela disse ontem à noite, seu sangue Moore era tão poderoso que a salvava de pensar coisas tão imprudente como ela fez aquela noite.

Ligou a torneira de água quente, se despiu e esperou que o sabão espumasse. Pelo menos estava sozinha para refletir sobre o que tinha acontecido. Graças à tenacidade do pai e à aceitação de certas inovações, não precisava da ajuda de uma criada para ter um pouco de água quente. O que menos desejava naquele momento tão urgente era ter Shira ao seu lado perguntando-lhe mil vezes por que sua pele estava tão vermelha quanto uma flor.

A diferença entre Mary e ela reapareceu. Ali, onde aceitara de bom grado as reformas da sala de banho, Mary gritou aos céus e chamou as novas banheiras de engenhocas demoníacas. Como pensou em chamá-las

dessa maneira? Ela! Uma mulher que não acreditava em anjos, deuses, demônios ou qualquer coisa sobrenatural. Se quando sua mãe falava sobre as visões que teve no passado, perguntava quanto ópio tinha tomado! Anne levou as mãos à boca para acalmar a risada que queria soltar, recordando os castigos que Mary sofrera por expressar tais comentários. Mas ela nunca mudara de ideia. Era tão forte, tão segura de si mesma e tão...

especial. Embora sua mãe a repreendesse, embora estivesse muito zangada com ela quando o pai lhe contava sobre outra discussão em uma reunião de médicos, na qual sua filha havia destroçado o orgulho de algum outro cavalheiro, Mary não mudava sua atitude e isso fazia dela a mais poderosa das cinco filhas.

Ela colocou os pés na água e moveu os dedos impregnados com espuma branca. A água há relaxara um pouco. O suficiente para refletir sobre esse sonho. Não tinha nada a temer. Aquele homem não apareceria novamente em sua vida, e se houvesse algo do qual deveria ter medo, era que a caldeira explodisse e saltasse para a outra extremidade da sala de banho, como Mary disse quando a viu pela primeira vez. Recordando aquele momento, aquela risada reprimida fluiu suavemente. Só a ela poderia ocorrer esse tipo de coisa! Não havia dúvida de que Mary tinha mais sangue Moore do que Arany.

—Realmente quer que nós confiemos nisso? —Ela perguntou a

seu pai quando as reformas tinham terminado.

—Nada acontecerá. Há muitos nobres que as usam e todos elogiam o conforto de ter água quente imediatamente —respondeu Randall.

—Quer se livrar de nós... —Mary resmungou.

—Sophia! —Ele gritou chamando sua esposa. Cada vez que eles discutiam, pedia a ela para interceder na conversa. Talvez porque ele e Mary fossem tão parecidos que, depois de um debate angustiante, estariam empatados. —Vem por favor! Pode explicar à sua querida filha Mary que não quero me livrar dela e que não está em perigo se entrar na nova banheira?

—O que acontece desta vez? —Sophia perguntou com resignação.

—O pai me garante que nada acontecerá comigo enquanto tomo banho, porém, percebo que ele não se lembra do artigo que os jornais publicaram há alguns anos atrás.

—O que dizia o artigo, Mary? —Disse a mãe com uma voz cansada.

—Que o aquecedor a gás de Lorde Fhautun quebrou e explodiu a banheira e o próprio lorde que estava dentro dela. Ambos estavam do lado oposto da sala! —Ela exclamou desesperadamente.

—Isso é verdade, Randall? —Ela se virou para o seu marido,

que não parava de rir ao se lembrar daquele dia, porque ele teve que atender o pobre barão.

-- Sim, mas em defesa dessa criação inovadora, tenho que explicar que isso aconteceu há alguns anos e que eles a aperfeiçoaram para que ninguém saia disparado como a bala de um canhão.

—Não deixarei nenhuma das minhas filhas voarem pela casa como pássaros, Randall Moore! —Sophia exclamou horrorizada. —Que Shira e outra donzela continuem a aquecer a água na cozinha. Este método é mais seguro para elas —declarou solenemente.

E enquanto o médico acompanhava a esposa até o quarto e lhe oferecia uma série de razões pelas quais ela não deveria ter medo de usar as novas torneiras, Mary observava do corredor enquanto uma de suas criadas levantava baldes de água quente e os derramava dentro da banheira novinha em folha.

No entanto, tudo mudou quando as gêmeas adoeceram. Shira, sua mãe e as donzelas estavam tão ocupadas cuidando das pequenas que Mary decidiu aceitar a derrota. Nos primeiros meses, apesar de sua mãe ficar muito zangada, ela se banhava de camisola para o caso de voar como Lorde Fhautun. Se parecia embaraçoso sofrer tal situação, era mais se isso acontecesse com ela nua. E, apesar de ter acontecido há algo em torno de cinco anos, os banhos de Mary não duravam muito...

Alegre depois da lembrança, saiu da banheira, vestiu um robe de seda preta e caminhou até o quarto. Ela precisava se preparar o mais rápido possível para conversar com a mãe. O que diria? Informaria sobre a decisão do capitão? Ele teria aceitado a proposta de seu pai? Esperava que fosse isso e que pudesse finalmente sair de Londres. Talvez, afastando-se da cidade, nunca mais sonhasse com aquele homem, e Elizabeth nunca mais manteria uma atitude tão descarada com outro Lorde. Lembrando o que aconteceu na tarde anterior, a agonia que o sonho produziu desapareceu de repente e a dura realidade retornou. Que palavras sua mãe usou para informar que ela queria falar com ela?

«Eu vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem». Mas ontem à tarde várias coisas aconteceram e entre elas...

—Oh, meu Deus! —Exclamou, abrindo bem os olhos. —A baronesa lhe contou o que Elizabeth fez com lorde Lorre!

IV


Sophia olhava seu jardim pela janela. Nele, apenas Josephine permanecia com aquela arma horrível em suas mãos. Estava apontando para outro alvo. Ela se aproximou um pouco mais do vidro e exalou todo o ar em seus pulmões quando viu outro jarro de porcelana branca da louça que guardava na despensa. Teria que falar muito seriamente com a quarta de suas filhas. Ela não podia usar os poucos pertences que Randall herdara de seus pais como alvos para seus tiros, porque quando terminasse com eles, qual seria o próximo? Apoiando-se na moldura da janela, viu Elizabeth emergir da estufa para gritar com Josephine. Isso só poderia indicar que a bala havia atravessado um vidro na estufa.

—Pelo amor de Morgana! —Exclamou horrorizada, levando as mãos ao peito.

Os problemas cresciam e não sabia como eliminá-los. Precisava colocar ordem em todo esse caos familiar e a primeira coisa séria ordenar que Randall desaparecesse com o rifle. Talvez se dissesse a ele que o jardim era pequeno demais e que algumas de suas filhas ou criados pudesse se machucar, ambos reconsiderariam. «Bobagem! —Pensou —Algum deles ouviria? Ouviriam suas explicações? " Não, claro que não. Randall continuaria aplaudindo a habilidade de sua filha e, em vez de obrigá-la a

guardar a arma, a levaria para o campo, onde o perigo de matar alguém seria minimizado.

Se virou para o sofá, onde passara muitas horas costurando, e olhou para sua caixa de costura. A bobina laranja chamou sua atenção. Como ocorreu a Anne usar um vestido tão pouco discreto? Quando o comprou e por que não disse nada sobre isso? Sempre mostrou a ela tudo o que adquiria e nunca escondia nada. Então, o que mudou? O que estava acontecendo?

Sophia se sentou na cadeira de balanço, colocou as mãos no colo e apertou-as. A única pessoa que conhecera em sua vida e que se vestira de maneira tão pouco discreta era sua avó Jovenka. Todos os dias ela usava algo de cor laranja. Senão era um vestido, era um lenço ou um casaco, porém nunca faltava em seu traje aquele tom tão cigano. Ela suspirou profundamente quando se lembrou da avó e da horrível obsessão de não contaminar o sangue. Se Randall não tivesse aparecido naquela noite... O que teria acontecido com ela? Mas, embora tenha se afastado, mesmo que tenha parecido que ela os havia deixado viver em paz, não foi assim. Ela ficou, embora o acampamento tenha decidido sair de Londres. Viveu resguardada na floresta, perseguindo-os em silêncio até cumprir sua palavra...

Uma noite, que ao longo do tempo descobriram ser a mesma em que geraram Anne, decidiram deixar a janela aberta para que a luz da lua ambientasse aquele momento tão romântico e apaixonado. Corria uma leve

brisa e as cortinas se moviam suavemente, como se fossem dançarinas elegantes e delicadas. Ambos se entregaram como haviam feito tantas vezes. No entanto, desta vez foi especial porque quando Randall terminou, depositando sua semente dentro dela, o silêncio do lado de fora desapareceu ao ser interrompido por um trovão horrível. O marido, vendo-a tremer de medo, se levantou, fechou a janela e voltou para a cama para acalmar seu medo. Mas o que ele encontrou quando chegou a ela o deixou aturdido. Em questão de segundos, aqueles que demorara em voltar para o lado dela, a temperatura do seu corpo subiu tanto que ela se agitava pelos tremores de febre. Como ele fizera desde que a viu naquela carroça, ajudara-a o tempo todo. Toda vez que colocava um pano de água fria nela, as mãos dele avermelhavam com o calor que transpirava do tecido. Assustado, ele chamou um dos empregados para pegar a carruagem e trazer o máximo de blocos de gelo possíveis. A colocaram em uma banheira cheia de gelo, mesmo assim, a febre não diminuiu até o amanhecer chegar. Como se fosse apenas um sonho terrível, essas convulsões e o calor desapareceram antes na chegada dos primeiros raios de sol. Claro, Randall nunca admitira que o sol a tivesse curado, mas que o gelo, as emersões e seus panos a aliviavam.

Depois de passar uma noite tão agitada, decidiram ficar descansando pelo resto do dia. Mas seu marido teve que sair porque alguém apareceu na residência solicitando seus serviços. Quatro horas depois de sua

partida, ele retornou e informou-a de que o assunto que o levara de casa fora sua avó. Um homem, que caminhava pelo campo, descobriu um corpo caído, pensando que havia desmaiado, correu até ela, mas quando descobriu que tinha uma adaga presa no abdome e que era cigana, pediu ajuda à polícia e estes a dele, porque nenhum outro médico iria atendê-los.

Depois de contar o que aconteceu, ela chorou, não de tristeza, mas de alegria, prazer e entusiasmo, porque acreditava, estupidamente, que a morte os salvara da maldição. Mas estava errada, tinha acabado de começar...

Dois meses depois, ela soube que estava grávida. Estava tão animada para ser mãe, que não conseguia pensar em nada além do bebê que estava chegando e que sua avó não estava mais viva para machucá-la.

Não foi assim….

Quando Anne nasceu, quando a segurou nos braços e olhou para aquele rosto, aquele cabelo e aqueles olhos castanhos, teve tanto medo ao ver que era tão parecida com Jovenka que ficou inconsciente. Durante aquele desmaio, ela viu sua avó na sacada, na noite em que conceberam Anne. Então a observou se afastar de casa para onde a encontraram morta. Ela mesma cravou a adaga assim que o trovão soou. Estava com ela durante o desmaio e mostrou-lhe o nascimento de suas outras quatro filhas enquanto gritava várias e várias vezes que o sangue contaminado as destruiria. Quando acordou, estava com tanto medo que nem queria olhar para sua pequena recém

nascida. Anne estava chorando no berço porque precisava se alimentar da mãe que lhe dera a vida, mas ela recusou seu contato. Graças à ajuda de Randall, sua ternura, sua compreensão e aquela grande paciência, ela finalmente admitiu que fora apenas um pesadelo gerado pelo cansaço do parto e, quando se acalmou, ele ofereceu seu bebê. Com os olhos fechados, amamentou-a. Mas os abriu ao sentir o calor daquele pequeno corpo e a sensação de suas pequenas mãos na pele. Naquele momento concluiu que a única coisa que Anne tinha de sua avó era o físico que Randall afirmara ser algo que ele chamara de coincidência genética. No entanto, o tempo indicara que havia se enganado novamente. Anne era tão ardente e apaixonada quanto Jovenka. Ela até herdou seu dom para pintar! Quantos rostos masculinos sua avó pintou com o carvão das fogueiras? Todos os que passavam por sua carruagem. Nenhum foi deixado sem retratar. Era seu triunfo, seu destino, sua vida e, infelizmente, esse espírito diabólico voltava muito mais jovem e mais forte do que antes. Ela só esperava que o desejo de gerar não aparecesse em Anne, porque quinze filhos bastardos nasceram do ventre de sua avó. Alguns pararam de respirar em seu ventre, outros foram abandonados nas portas das igrejas das aldeias em que se instalaram e outros... outros não tiveram nem uma sorte nem outra e tornaram-se servos de seu povo. Escravos sem opção de vida, exceto a servidão a que ela os sujeitou. O único filho de sangue puro era seu pai, então ansiava que sua neta continuasse seu legado de pureza

casando-a com outro cigano. Mas ela não queria morar no povoado ou seguir as regras de sua avó porque, desde que Randall apareceu em seus sonhos, ela o amara.

Sophia se balançou devagar enquanto recordava o que acontecera vinte e cinco anos antes. Seus olhos, até então fixos em suas mãos, foram pregados na porta por onde Anne iria entrar. Não deveria apenas se concentrar em comentar a resposta do visconde, mas tentaria extrair algo sobre o sonho que ela tivera durante a noite. Quem ela conheceu? Quem, de todas as pessoas em Londres, teria sangue cigano? Onde o viu? Em que momento? Se falaram? Se conheceram?

—Morgana —disse ela em voz alta, —se minha filha encontrou esse homem, se finalmente permitiu que encontre a pessoa que irá salvá-la da maldição, que esqueça a ideia de partir, dê a ela forças para tomar seu destino e eliminar seu passado. Afaste o espírito que a atormenta de uma vez por todas, liberte-a da pressão, da prisão, da minha avó...

Fechou os olhos, segurou as mãos e começou a cantar para essa mãe que criara sua raça, a única que poderia escutá-la. Mas esse canto foi interrompido quando ouviu uma batida no vidro da janela em que havia permanecido. Assustada e preocupada, deu um pulo, caminhou até a sala e soltou um grito.

—Josephine Moore! Está de castigo! —Trovejou ao ver um

buraco e vidros no chão.

—Eu prometo, eu juro que... —a jovem tentou dizer. —Foi culpa da Elizabeth! Ela me jogou uma pedra!

—Elizabeth Moore! Está... ?mas não terminou a imposição daquela segunda punição. A terceira de suas filhas se virou para a estufa sem ouvi-la.

Anne estava certa. O comportamento da jovem mudou desde que seu segundo pretendente morreu. Pensou que, depois da visão de Madeleine, ela deixaria de agir dessa maneira horrível, mas estava errada. A única coisa que a revelação da menina causou foi uma pequena trégua familiar. No entanto, a incerteza havia retornado... quando aconteceria tudo o que Madeleine previu? Levaria muito tempo para chegar? Morgana silenciosamente esperava pela destruição de suas filhas para agir? Afligida, ela voltou para a cadeira de balanço, ouvindo Shira repreendendo Josephine.

Sentou-se muito devagar, como se em vez de 45 anos tivesse noventa, fechou os olhos e lembrou-se da tarde em que Madeleine confessou o que vira em seus sonhos para descobrir se, em algum momento, ela havia apontado uma data exata.

—Mas que bobagem! —Mary exclamou levantando. -- Realmente quer se afastar de nós por causa dessa irracionalidade?

—É a coisa mais sensata —disse Anne, depois da explicação de

sair de Londres e viajar para Paris. Aqui não terei a vida que mereço como artista e vocês não encontrarão um bom futuro por causa da maldição.

—Eu

lutarei

contra

essa

maldição

até

o

fim!

--

Josephine comentou, levantando a mão direita como se estivesse carregando uma espada. —Uma Moore não desiste tão facilmente!

—A maldição só afeta ela, certo? —Elizabeth perguntou depois de ouvir Anne. Não lamentava pelo desejo da irmã de deixar a família, mas por ela. Desde que o filho do conde morrera, ninguém os convidou para nenhuma festa, nenhum homem olhou para elas... O tempo passava e ela não conseguia encontrar seu aristocrata.

—Sim —respondeu Sophia. —Mas como podem ver, todas estão envolvidas porque, até agora, ninguém veio aqui pedir um compromisso com nenhuma de vocês.

-- Bendita maldição! —Mary exclamou eufórica. -- Agora sim acredito nela! Por favor, Anne, continue a se comprometer com todos os ousados que a desejam como esposa, para ver se ficam tão assustados que saem do nosso caminho e deixem as ruas de Londres livres para andarmos em paz. Além disso, posso preparar uma lista de nomes dos presunçosos para que possa aniquilar. Se quiser, amanhã começamos com A.

—Mary! —Sophia repreendeu-a. Que não deseje encontrar um marido não significa que suas irmãs pensem o mesmo.

—Alguma de vocês quer viver sob o domínio de um homem, exceto Elizabeth? —Ela perguntou olhando para o rosto da mencionada. Ao ver que se mantinha em silêncio, sentou-se abruptamente e cruzou os braços.

--

Eu

também

não

quero

me

casar! -- Josephine interveio novamente.

—Claro que não quer fazer isso agora, querida, é jovem demais para pensar nisso —disse Sophia com ternura. ?Mas futuramente não quer se tornar uma solteirona, certo?

—Um soldado não pode se comprometer com nada além de amor ao seu país -- declarou solenemente enquanto colocava as mãos no cós da calça.

—Soldado? —Randall perguntou a sua esposa um pouco confuso.

—Desde que comprou aquela bendita arma e ela dispara em todos os vasos que colocou no jardim, decidiu que quando tiver idade suficiente para se alistar no exército, cortará aquele lindo cabelo loiro, enfaixará seu peito e lutará contra qualquer inimigo que Londres possua --

resmungou Sophia, olhando para o marido como se quisesse derrubá-lo ali mesmo.

—Bem... não é uma opção muito descabida. Como não tem a esperança de encontrar um marido que seja mais habilidoso do que ela em esgrima ou caça, é uma alternativa a considerar. Além disso, não acredito

que haja um homem no mundo que possa descansar ao lado de nossa Josephine sem pensar que, a qualquer momento, ele vai cortar seu pescoço

—explicou o pai com algum divertimento.

—Randall Moore! Como pode proclamar algo tão horrível sobre Josephine? Ela é uma jovem corajosa, não uma criminosa! —Ela o repreendeu.

Como sempre, a educação que o marido dava à quarta filha era motivo de discussão. Ela insistia em esclarecer que não era uma criança, mas uma pequena mulher que logo teria que participar de festas e que todos falariam sobre o comportamento masculino de Josephine. Prosseguiu esse debate com a atitude inadequada de Elizabeth. Seu marido declarou em voz alta que preferia uma filha que pudesse se defender da audácia de um homem do que os movimentos sedutores de Elizabeth. Então, assim que o tom da conversa começou a exceder o limite correto, uma voz suave e terna os deixou sem palavras.

—O que disse? -- Sophia perguntou Madeleine, a gêmea de Josephine, ao não a ouvir claramente.

—Anne não terá que sair porque o homem que vai resgatá-la da maldição está prestes a chegar -- ela repetiu timidamente. Moveu seu corpo ligeiramente, sentada no peitoril da janela, em direção a sua família e depois de observar a expectativa nos rostos, ela continuou: -- Eu vi nos meus

sonhos. Anne se casará com um homem com sangue cigano, mas ninguém sabe que porque ele o mantém em segredo e só admitirá quando a encontrar.

—Ela apontou com o queixo para sua irmã mais velha.

Randall olhou para ela estupefato, só faltava saber que uma de suas filhas tinha alucinações para morrer naquele momento, mas quando sua esposa levantou e abaixou os ombros, tirando a importância das palavras de sua filha mais nova, respirou com facilidade. A coisa mais sensata a fazer era deduzir que a jovenzinha estava fazendo todo o possível para que sua irmã mais velha, por quem tinha grande afeição, não deixasse a família.

—O que viu? —Anne perguntou com voz aveludada, enquanto caminhava em direção a ela.

—Vejo o homem que será seu marido. Ele olhava nos seus olhos enquanto sussurrava que nada lhe aconteceria, porque a libertaria da sua maldição —ela respondeu calmamente. —E será verdade.

—O que mais viu? —Sua mãe perguntou sem sair do lado de seu marido caso ele precisasse de uma mão para não cair no chão.

-- Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente impedir os sentimentos que aquele homem causará a ela a partir do momento em que se encontrarem pela primeira vez —ela continuou com firmeza.

—Eu? Bobagens! —Bufou fazendo um gesto de desdém. —Tenho certeza de que na noite em que aparecer tomara mais suco de laranja do que

deveria e sabe que um excesso de vitamina C não é bom para a mente.

—Não dê ouvidos a ela —Sophia a consolou depois de ameaçar Mary com um olhar. —Sabe que sua irmã não gosta de ouvir que alguém vai mudar sua vida, muito menos um homem.

—Mas ela vai —disse Madeleine, olhando para sua irmã Mary fixamente.

—Viu mais alguma coisa? Sonhou comigo? Vou casar com um aristocrata? —Elizabeth perguntou impaciente.

—Não sei... -- murmurou a menor das irmãs, voltando o olhar para quem lhe fazia as perguntas. -- Só pude ver que o homem que está esperando aparecerá no caminho que conecta nossa casa com a de Bohanm. Não posso confirmar se é um familiar do casal ou parente de alguém que logo conheceremos, mas tenho certeza de que será a pessoa com quem se casará -- disse ela antes de fixar os olhos verdes na irmã gêmea. --

E Josephine...

—Serei um soldado? Vou lutar com honra? Me tornarei a mulher mais valente do meu batalhão? Me condecorarão? —A jovem perguntou sem respirar.

—Não. Se tornará a esposa de um homem mais honrado do que um soldado, mais temeroso que uma espada e mais severo que o impacto de uma bala —declarou ela.

—Isso sim que eu não esperava! —Randall exclamou olhando para sua esposa achando graça. —Vê, minha querida, no final, meus presentes inadequados servirão para protegê-la de um marido folgado! --

Ele argumentou antes de soltar uma gargalhada.

—E você? -- Anne perguntou acariciando suavemente seu cabelo enquanto ouvia o riso de seu pai.

—Eu saberei que ele é o escolhido quando se aproximar de mim para me ajudar a levantar de uma queda infeliz —disse ela, fixando seus olhos verdes na mão que ele tocaria.

—Então, tudo ficou claro —disse Mary. -- Anne não precisa ir embora e, para sua paz de espírito —disse ela à Sophia, —nos verá casadas. Embora eu só espero que meu futuro marido tenha um cérebro admirável e um corpo preguiçoso, então ele não me visitará à noite e eu poderei continuar lendo em silêncio... —ela comentou ironicamente.

—Mary Moore, não fale assim de novo na frente de suas irmãs ou eu vou queimar todos os seus livros! -- A ameaçou enquanto apontava o dedo.

«Anne não terá que sair porque o homem que irá resgatá-la da maldição está prestes a chegar» ela evocou a frase que estava procurando na memória. Bem, dois anos se passaram desde aquela conversa e o tempo estava lutando contra a família. Se Madeleine estivesse certa e Anne tivesse

tido seu primeiro sonho com fogo, isso poderia dar à família um halo de luz. Talvez, apenas talvez, aquele momento de paz estivesse prestes a aparecer. Mas... quem mantinha em segredo que o seu sangue era cigano? Porque motivo?

—Mãe? —Anne perguntou quando ela apareceu no pequeno quarto.

—Entre —ela disse sem se levantar da cadeira de balanço. --

Sente-se ao meu lado. Quero falar sobre o que aconteceu com o capitão desse navio.

Ao ouvir o tema da conversa, Anne sentiu que a forte pressão em seu peito desaparecia imediatamente. Por sorte, a baronesa lhe dera uma pequena trégua, embora não tivesse certeza de quanto tempo duraria.

—O que ele disse? Aceitou o pedido para me levar? --

Ela quis saber quando se sentou ao seu lado.

—Não.

—Não? Por quê? —Perguntou, amassando em suas mãos o vestido que escolhera para aquele dia. Que, para a tranquilidade de sua mãe, não era laranja, embora pudesse apreciar essa cor na presilha de seu cabelo.

—Porque, segundo ele, não seria apropriado navegar com uma mulher.

—E se eu prometer que não sairei da minha cabine? -- Ela propôs esperançosamente.

—Pelo que seu pai contou, até ofereceu cortar seu cabelo, mas recusou-se a completamente.

--

Ele

realmente

fez

tudo

ao

seu

alcance?

--

Perguntou desconfiada.

—Está questionando as palavras do seu pai? —Sophia soltou com raiva.

—Não, mãe, me desculpe —ela disse, abaixando a cabeça.

—Acredite em mim quando digo que ele fez tudo o que pôde, até ofereceu-lhe um envelope com....

—Um envelope? —Anne perguntou olhando-a sem piscar.

—Sim, um envelope que ainda não voltou —esclareceu ela.

—Então... talvez... —ela disse, se levantando. —Talvez eu tenha uma chance! —Exclamou eufórica.

—Eu não consideraria nenhuma esperança, Anne. Talvez hoje um criado apareça com esse envelope.

—Mãe... —ela disse, ajoelhando-se diante dela -- tudo que me resta é ter fé de que esse homem reconsidere a oferta.

—Mas...

—Não há mais, mãe. Não notou a destruição que minhas irmãs

sofrem por minha causa? -- Soluçou.

—Vi que apenas Elizabeth mudou sua atitude, as outras ainda são as mesmas de sempre —disse ela, acariciando o cabelo de sua filha para tranquilizá-la.

—Eu preciso sair daqui... quero esquecer o meu passado... —ela riu.

—Eu sei, Anne. Eu sei ..., entretanto, algo me diz que deve esperar um pouco mais.

—Teve outra visão? —Perguntou levantando o rosto.

—Não, é um ligeiro palpite. Talvez, se me disser o que sonhou e porque esse corvo a assustou tanto... —ela insistiu.

Anne sentou-se devagar, caminhou até a janela, que tinha um buraco e suspirou. Seria conveniente dizer-lhe a verdade? O que pensaria dela quando revelasse o que viu? Por muito tempo a olhou com ódio, com receio depois de confessar que perdera a virgindade com Dick. Ele cometeu um erro, e pagou com acréscimo. Agora era hora de libertar sua dor, seu pesar e fazer com que sua mãe a observasse com respeito.

—Anne... —disse Sophia se levantando. Caminhou até ela, pôs a mão no seu ombro e apertou com ternura. Eu prometo que não vou julgá

la. Sei que está pensando sobre o que aconteceu entre nós no passado. Eu sinto isso aqui, no meu coração. Mas não é mais uma jovenzinha, mas uma

mulher inteira, e eu juro, pelo sangue que ambas temos, que não irei mais julgá-la, mas sim ajudá-la em tudo que puder.

—Tem certeza? —Perguntou sem olhar para ela.

—Totalmente.

—Ontem conheci um homem —disse ela depois de respirar. --

Tentei desviar o olhar, para não o notar, mas não consegui controlar algo tão básico quanto meus olhos. Talvez eu não devesse ter olhado tanto para ele...

possivelmente ele não teria me descoberto se.... -- Ela suspirou tristemente.

—E?

—E sonhei com ele. Uma música me tirou de uma cama que não era minha, andei em uma estrada desconhecida, vi aquele corvo e ele me levou para um prado. Havia uma fogueira... não queimava... eu toquei, entrei e....

—Ele saiu do fogo? Mostrou em seus olhos imagens do seu futuro? —Perseverou, virando-a para ela.

-- Não sei se era meu futuro, mas sei que tudo me assustou --

confessou.

—Oh, querida! —Sophia exclamou segurando-a com força. --

Chegou! Ele chegou!

V


—Bem, aqui me tem. O que diabos quer? -- Philip disse quando abriu a porta do escritório de Logan sem esperar ser anunciado.

—Boa tarde, obrigado por vir tão rápido. Desta vez, apenas quinze horas se passaram desde que lhe pedi para vir à minha residência --

disse estendendo a mão para seu amigo.

—Sou um homem muito ocupado, lorde Bennett —disse sarcasticamente enquanto apertava a mão forte e o abraçava com um irmão. ?Ou se não, pergunte a amante que deixei para vê-lo.

—Uma nova? ?Logan perguntou quando se sentou.

—Não me lembro do nome dela, mas sim, é nova. Essa vida sedentária me aborrece demais para ficar sempre com a mesma mulher... --

 

disse desabotoando os botões da jaqueta marrom.

—O dia que encontrar sua futura esposa, certamente que terá que suportar uma vida estável e virtuosa...

—Antes prefiro comer um rato vivo! —Exclamou Philip horrorizado. —O que aconteceria comigo sem o prazer do sexo? Ah, nem quero pensar nisso! —Exclamou divertido. Se recostou na cadeira, moveu as costas da direita para a esquerda para caber em um encosto tão pequeno e olhou para Logan. —Qual é a sua preocupação?

—Como sabe...? —Ele tentou dizer.

—Porque me chamou com urgência e porque seu rosto tem tantas sombras que parece um espírito errante. O que ocorre? Tem problemas na vida idílica de Riderland? Ou sua amante o expulsou do quarto dela?

—Terminei meu relacionamento com ela há algumas semanas atrás —ele disse enquanto pegava a caixa de charutos.

—Porque motivo? Não era mais tão carinhosa? Ela mostrou sua verdadeira personalidade? —Persistiu zombeteiramente.

—Queria consolidar o relacionamento e não aceitei. Ela sempre foi...

—Uma amante —disse Philip. —Muito poucas reconhecem a posição dada a elas. É por isso que nunca durmo com a mesma mulher duas vezes.

—Por acaso dorme uma? —Perguntou estreitando os olhos.

—Certo! —Giesler exclamou divertido. Uma vez que parou de sorrir, pegou um dos charutos que Logan oferecia, acendeu e soltou a fumaça calmamente. —O que há de errado? —Repetiu.

—Três dias atrás, depois da festa que meu irmão Roger fez em sua residência...

—Uma loucura, segundo ouvi -- interveio Philip.

—Foi convidado.

—Não pude ir.

—Porque não quis.

—Porque eu tinha outro arranjo mais interessante —explicou Giesler, soltando outra nuvem de fumaça.

—Continuo ou irá me explicar que arranjo foi esse?

—Mulheres e sim, pode continuar.

—Quando voltei da festa, o Sr. Moore veio aqui.

—O médico? Está doente? Por que não me contou? O que diagnosticou? —Philip gritou, arregalando os olhos e inclinando-se para a frente.

—Não estou doente, então pode ficar tranquilo —Logan assegurou-lhe esboçando um grande sorriso.

—Menos mal... —comentou com alívio. Só faltava ficar doente e ter sua irmã Valeria o dia todo ao seu lado falando sobre dever, lealdade e o futuro que o aguardaria sendo o barão.

—A razão pela qual o médico apareceu foi implorar para que eu levasse a primogênita de suas filhas com a tripulação em nossa próxima viagem.

—Por que pediu tamanha loucura? —Falou, erguendo as sobrancelhas loiras.

—Porque, de acordo com ele, uma maldição recai sobre ela que

afeta toda a família —explicou com uma voz cansada.

—Santo céu! Eu pensei que tinha ouvido todas as besteiras do mundo! —Exclamou Philip brincalhão. —Esse homem é realmente um dos melhores médicos de Londres? Porque, depois disso, começo a duvidar de seu grande julgamento... —acrescentou ao trocar o charuto de mão.

—Bem, acredite ou não, aquele pobre homem parecia muito convencido de suas palavras —disse Logan ao pegar o envelope que o Dr.

Moore lhe dera antes de sair. Fechou-o de má vontade e jogou-o na mesa. --

Me pagou adiantado —resmungou —e me deu uma foto da moça.

—Viu a foto? Sua imagem não está enfeitiçada? —Ele perguntou divertido.

—Não diga bobagem! Isso é muito sério... -- ele avisou. -- O Sr.

Moore quer se livrar da jovem o mais rápido possível.

—Mas... o que aconteceu para aquele pobre coitado alegar tal absurdo? Por acaso não pensou que usando a palavra maldição, a rejeitaria antes que terminasse a frase? —Ele retrucou, pegando o envelope. Olhou-o de maneira esquiva e observou que havia cerca de quinhentas libras dentro. Muito dinheiro para um médico. Isso só avisava que estava muito desesperado.

—Deduziu tanta loucura —enfatizou —porque os dois noivos de sua filha morreram.

-- Augen des Teufels[1]! -- Trovejou Philip engasgando com a fumaça do charuto e largando o envelope sobre a mesa como se estivesse queimando. —Os dois? Mortos? —Retrucou perplexo. -- E quer que nos acompanhe na próxima viagem? Se estivesse no seu lugar, teria chamado uma sacerdotisa para limpar a aura da minha casa... não percebeu que somos jovens demais para morrer? O que aconteceria se viajássemos com ela? Um polvo gigante nos atacaria? Ah, pobre Valeria! Quão triste seria quando seu irmão morresse entre os tentáculos de um polvo sem ter aceitado o baronato!

?Ele ironizou, incapaz de parar de rir.

—Quer levar o assunto com um pouco de seriedade? —Logan trovejou. -- Estamos falando sobre a reputação de uma mulher e daquela que assumido durante esse tempo.

—Eu levo, meu amigo, eu levo —continuou ironicamente.

—Não entendo como pode estar tão desesperado para acreditar que isso mudaria minha decisão -- disse se levantando. Colocou as mãos nas costas e começou a andar. -- Entendo que ele não pensou, nem por um momento, no problema que sua filha causaria no navio. Quando os homens estivessem em alto mar por um pouco mais de duas semanas... —Logan apertou os lábios. Não queria pensar sobre o que aconteceria se ocorresse uma fatalidade, ou o que ele poderia fazer naquele momento. Era melhor deixar sua mente em branco do que imaginar que um homem pudesse tocá

la... cortaria sua garganta no ato!

—Sim, não tenho dúvida de que eles se matariam pelo prazer daquela mulher —continuou zombeteiramente. —Acho que até eu participaria dessa briga. Sabe que eu não posso ficar muito tempo sem uma amante na minha cama...

—Feche essa boca agora mesmo! —Ele ordenou. —Ninguém irá tocá-la! Entendido?

Philip afastou a fumaça do charuto com a mão para poder observar melhor o amigo. Aqueles olhos azulados tinham mudado para uma cor tão escura que até uma noite tempestuosa no meio do oceano não poderia assustá-lo tanto. Meditou calmamente as palavras que iria dizer, mas, como não encontrara algo sensato ou sério, permaneceu em silêncio.

—Vou devolver esse maldito pagamento e deixar claro que não irei levá-la no meu navio —disse Logan depois de recuperar a atitude serena.

—Acho que é uma decisão muito sábia. Dessa forma, continua a manter a educação e a dignidade de um cavalheiro de sua linhagem e protege suas costas dessa maldição, no caso do médico não estar errado ...

—Não faço por isso! -- Ele gritou novamente.

—Então... por que está fazendo isso, meu amigo? —Insistiu. --

Existe algo que não me contou? Essa talvez seja a razão pela qual me fez sair do meu quarto sem dizer adeus à mulher com quem descansei esta noite?

—Antes de lhe dizer por que o fiz vir, gostaria de explicar o que John descobriu sobre essas mortes —disse Bennett, voltando para a cadeira, recostando-se e olhando para o amigo sem piscar.

—John? Ótimo! Isso está ficando cada vez mais interessante! --

Disse Philip, apagando o charuto no cinzeiro de vidro que Logan tinha em sua mesa. Estendeu a mão e encheu um copo de conhaque. Era muito cedo para beber, mas algo lhe dizia que precisaria se embriagar novamente para aceitar a conversa que manteria em seguida. —Por que diabos pediu ajuda àquele índio? Dúvida das minhas capacidades? Lembre-se que, antes de vigiar as suas costas, trabalhei com Borsohn na Scotland Yard. Ele poderia ter me informado o que aconteceu sem ter que pedir favores ao cão fiel de seu irmão.

—Não fique com raiva, Giesler, mas sabe que John é o melhor rastreador que já conheci e, além disso, não recebi um sinal de vida seu desde que desembarcamos. O assunto tinha prioridade absoluta —declarou rapidamente. O maior defeito que seu amigo poderia ter era o orgulho e, se ele não queria que sua amizade estivesse em perigo, teria que escolher suas palavras muito bem, de modo que uma questão tão pessoal não afetasse o relacionamento deles.

—Como bem sabe, tenho uma irmã muito irritante, e se eu não tivesse aparecido em casa assim que colocasse meus lindos pezinhos em

Londres, ela teria aparecido na minha residência gritando como um vendedor de peixe -- ele resmungou.

—Certo. É por isso que não queria incomodá-lo. Além disso, sei que Martin fica ansioso para vê-lo quando voltamos e também estou ciente de que a Sra. Reform poderia me mandar para a forca, se eu tirasse seus dias de folga —esclareceu Logan, finalmente esboçando um enorme sorriso. É claro que ele conhecia o caráter da Sra. Reform e não havia dúvida de que o sangue espanhol, que vagava em suas veias, era mais perigoso do que dez homens habilidosos no arremesso de facas. —É por isso que escolhi o John.

—E o que descobriu? —Disse Philip, aceitando a derrota.

A explicação foi tão convincente que não se sentiu magoado. Era verdade que seu irmão Martin esperava por ele toda vez que desembarcava. Por mais improvável que parecesse, durante os dias em que morava em Londres, ele deixava a universidade, onde lecionava aulas de matemática avançada, e conversava durante horas sobre o que acontecera durante sua ausência. Logicamente, para Martin descobrir uma nova fórmula com a qual encontrar o mesmo resultado era algo fascinante, tanto que seus olhos brilhavam. Já seus olhos só brilhavam desse modo quando uma nova amante se despia em seu quarto. Mas é claro, Martin Giesler não herdara o dom de seduzir mulheres, mas a capacidade de matá-las de tédio por que...

quem queria ouvir essas palestras sobre questões aritméticas quando

poderiam se esconder em um canto e satisfazer uma paixão repentina? E, por outro lado, havia Valeria... ela poderia esquecer o tema do baronato e da procura de uma esposa? Nunca! Sua irmã tinha esses dois temas gravados em sua mente e mal o cumprimentava, com sua efusividade usual, já perguntava... «Visitou nosso avô? Encontrou uma mulher? " «Não e não», respondia antes de ouvir os gritos ensurdecedores de Valeria e os conselhos amorosos que seu marido Trevor lhe oferecia.

—Seu primeiro pretendente foi o senhor Hendall —começou a explicar. ?Morreu depois de cair de um garanhão. De acordo com John, ele visitou um dos clubes de Hondherton antes de tentar retornar à sua residência.

—Bem, a única coisa que ouvi sobre Hendall foi que a sua empresa não prosperava como desejava e que a principal razão para essa destruição era seu amor pelo jogo, bebida e as companhias inapropriadas todas as noites —disse Philip depois de tocar sua barba loira incipiente.

—Sim, isso mesmo. John conversou com o Dr. Flatman e com um dos ex-funcionários de Hendall e ambos concluíram que ele ingerira muito Bourbon para controlar o cavalo que montava —Logan disse calmamente.

—Isso é chamado de imprudência ou estupidez da parte do estimado Sr. Hendall, então não tem nada a ver com a maldição que Moore fala. Pode me dizer quem foi o segundo pretendente? Estou ansioso para

conhecer a versão que o índio lhe deu —disse Philip com um tom inquisitivo.

Descansou as costas ligeiramente no respaldo da cadeira e cruzou as pernas compridas pelos tornozelos.

—Era o filho dos Condes de Hoostun —disse depois de respirar. —E toda Londres sabia que ele não nasceu com uma mente sensata, por isso seus pais o mantiveram escondido na residência. Embora o conde desesperado como era, vendo que seu fim estava próximo, temia por seu famoso título, caso não tivesse descendentes, e decidiu encontrar uma mulher saudável para ajudá-lo com seu propósito.

—Em suma, esse pretendente era um tanto demente e o conde exasperado pensava que o casando com a filha de um médico, não só ele fixaria a cabeça de sua prole, mas também poderia dar a ele uma prole normal

—resumiu Giesler. —Bom raciocínio, sim senhor. O que o matou?

—Infelizmente, depois que o noivado foi divulgado, ele decidiu limpar a arma e levou um tiro —disse Logan, irritado. —Embora tenha receio de que a versão correta tenha sido a de que ele não aguentou a pressão do casamento e decidiu encerrá-la ele mesmo.

—Uma vez que um acordo é feito, apenas a morte pode livra-lo dele —disse Philip antes de deixar escapar uma risada.

—Não é engraçado! —Logan gritou, se levantando e colocando as palmas das mãos sobre a mesa. —Ela acha que é a culpada por essas

mortes!

—Me desculpe excelência. Não queria zombar do sofrimento daquela jovem desventurada —disse Giesler com uma mistura de espanto e sarcasmo. —Foi uma impertinência de minha parte alegar tamanha insensatez. Imploro seu perdão.

Logan olhou para ele com raiva. Apesar dessas palavras, seu rosto não mostrava nenhum sinal de arrependimento. Em vez disso, ele expressava escárnio, o mesmo que queria fazer desaparecer com um bom soco de direita. No entanto, não o havia chamado para discutir, nem para se envolver em uma briga, mas porque precisava, mais do que nunca, da sua ajuda.

—Sinto muito... —disse depois de se acalmar. —Este tema me incomoda muito. Mas odeio a injustiça e me parece muito cruel que uma jovem carregue a morte de dois homens nas suas costas —acrescentou ele, sentando-se novamente.

—Aceito suas desculpas e espero que aceite as minhas —ele disse calmamente.

Logan assentiu levemente, admitindo o pedido de desculpas, enquanto Philip, sem deixar de olha-lo, tomava outro gole da bebida.

—Quero que me acompanhe até a residência dos Moore --

pediu. -- É por isso que o chamei com tanta urgência.

E naquele momento, o licor que Philip escondia dentro de sua

boca, saltou como se fosse água de uma das fontes que sua irmã tinha no jardim.

—O que disse? —Perguntou, enxugando os lábios na manga. --

Está sugerindo que o acompanhe até aquela casa onde o próprio Moore declara que há uma maldição? —Não disse que não quero morrer ainda? O

que pretende?

—Não há maldição —ele murmurou. —Nós dois deduzimos que foram incidentes infelizes. E a única coisa que pretendo é devolver esse bendito pagamento. —Ele indicou com o queixo o lugar onde estava o envelope.

—Não pode enviar Kilby? Certamente estará muito mais seguro do que nós —explicou como uma alternativa.

—Quero ir pessoalmente, Philip. Para mostrar a ele que não há maldição naquela casa.

—Kilby também pode enviar uma nota explicando que é um homem ocupado e....

—Não! Não farei isso! Pensaria que tenho medo dela!

—Ela? Quem? A viúva negra? Certamente já tem assumido...

—Vai me acompanhar? —Logan gritou com raiva.

—Então a razão pela qual me chamou foi, única e exclusivamente, continuar protegendo suas costas... —ele refletiu, tocando

sua barba novamente.

—De certo modo…

—O que está me escondendo, Logan Bennett? —Giesler perguntou, apertando os olhos. —Se não acredita nessa maldição, por que precisa da minha presença?

—Porque não seria apropriado aparecer desacompanhado em uma casa onde há cinco jovens casadoiras —disse por fim.

—Cinco! —Exclamou, arregalando os olhos. —Esse pobre homem tem que casar cinco mulheres? Essa é a maldição, amigo! Como pode ter tantas filhas?

—Sua irmã tem quatro —disse ele.

—Sim, e mais dois homens. Mas ela não terá nenhum problema em encontrar um marido. Reform será o problema porque não achará apropriado nenhum homem que tente se casar com elas. No entanto, estamos falando do Sr. Moore e da maldição. Embora já tenha me explicado que todas as mortes ocorreram de maneira racional, começo a duvidar... O que acontecerá se entrarmos nesse castelo mortal? Nós vamos morrer quando sairmos? Uma carruagem vai nos atropelar? Um raio nos atingirá, apesar de não ver uma única nuvem no céu? Ou pior ainda... —continuou falando enquanto se levantava e se dirigia para a porta, como se dentro do escritório de seu amigo não houvesse oxigênio suficiente para respirar. —Não pensou

que alguém poderia nos ver entrar naquela casa e espalhar o boato de que pretendemos cortejar uma dessas cinco mulheres?

—Vai expor mil desculpas para não ir? Me forçará a pedir ajuda a John? Quer que o informe que se recusou a me proteger porque tem medo de cinco meninas? —Rosnou. Philip Giesler era tão orgulhoso que não consentiria em ser substituído pelo índio em outra missão.

-- Amaldiçoo o índio, seu senso de honra e a miserável maldição! —Exclamou, abrindo a porta bruscamente.

—Isso é um sim?

—Que diabos está esperando? —Grunhiu, pegando a maçaneta como se quisesse arrancá-la. —Não tenho o dia todo.

—Obrigado —Logan disse depois de pegar o envelope e caminhar em direção ao seu amigo.

—Não me agradeça até eu voltar para casa vivo —disse ele antes de bufar como um dragão. —Espero não encontrar uma bruxa naquela casa ou terá que me levantar do chão.

—John me disse que são jovens adoráveis... cinco adoráveis mulheres que não são capazes de ferir nem uma pequena flor —disse sorrindo como uma criança travessa.

—Sim, amáveis e amaldiçoadas —Philip acrescentou antes de fechar a porta do escritório com um grande estrondo.

VI


Anne saiu da cama com o cabelo molhado. Três noites... O sonho não a deixava em paz e se repetia toda vez que adormecia. Fizera todo o possível para fazê-lo desaparecer. Até leu um dos livros de Mary! Mas nem mesmo enchendo a cabeça com dados clínicos e doenças mortais o manteve fora de sua mente. Pelo contrário, estava se tornando mais real e o sentia com tanta intensidade que acordava banhada em suor pela paixão que vivia nele. Não via mais nos olhos do homem o que aconteceria, segundo sua mãe, no futuro. Desde a segunda noite, ambos acabavam nus no chão daquele pequeno prado e se entregavam a um desejo sem precedentes.

Perturbada, esfregou o rosto, se levantou e foi a sala de banho. Não podia perder muito tempo, sua mãe apareceria a qualquer momento para perguntar se o corvo a visitara novamente. Como não queria mentir, responderia sim e ela sairia com um sorriso de orelha a orelha. No entanto, a felicidade de sua mãe lhe causava uma dor terrível, porque não tinha sido capaz de explicar que o homem que aparecia naquele sonho era um parente do Marquês de Riderland. Como um aristocrata poderia ter sangue cigano? Um primo, sobrinho ou o que quer que o relacionasse com o marquês, não teria sangue vermelho nas veias, mas azul. Ainda admitiria que a maldição estava prestes a terminar se ela descobrisse quem ele era?

Possivelmente não. A ilusão que a mãe mostrara durante o dia se transformaria em agonia e Elizabeth sairia de casa procurando o pretendente ideal. As únicas que pareciam impassíveis a essa esperança eram suas outras irmãs, que continuavam com suas vidas rotineiras após a feliz reunião de família.

Ela abriu a torneira, tirou a camisola e deixou o corpo relaxar em um banho quente de espuma. Algo que uma vez pareceu maravilhoso para ela, já não dava prazer. Não estava contente com nada e era esmagador não encontrar alguma paz onde antes havia encontrado. Ensaboou o cabelo e enxaguou sem confirmar se estava brilhante. Retirou-se da banheira, vestiu o robe de seda preta e, quando saiu da sala de banho, encontrou Sophia debruçada sobre Mary.

—Ela ainda está dormindo como um tronco -- disse com raiva. ?Cobri o nariz dela para ver se acordava, mas começou a respirar pela boca.

—Ontem leu outro livro até... -- ela tentou dizer.

—Tanto faz! —Interrompeu. —Não vou deixar que passe seus anos vivendo desse jeito! —Exclamou com raiva. —A partir de hoje, Shira removerá as cortinas da janela —apontou com o dedo para o lugar onde a janela estava —de modo que alguma luz entre no quarto. Vamos ver se, dessa forma, ela entende que não pode dormir até a hora do almoço —acrescentou,

enquanto caminhava em direção a ela. —Mas não vim aqui para ficar com raiva... —suavizou seu tom de voz. -- Queria saber se sonhou com ele hoje.

—Sim, mãe. O corvo também apareceu essa noite —respondeu, fixando os olhos no chão, para não mostrar o constrangimento causado por falar de algo tão íntimo com sua mãe.

—Maravilhoso! —Exclamou dando-lhe um beijo na bochecha. --

Isso significa que aparecerá em breve e que nossas tristezas estão prestes a terminar —continuou em uma voz satisfeita.

—Se diz... —ela murmurou.

—Não confia em minhas palavras? Duvida de mim? —Como sua filha não levantou o rosto, ela colocou um dedo sob o queixo e o levantou. --

Anne, se lembra de onde eu venho? Está ciente do sangue que eu tenho?

—Sim —ela disse, olhando-a nos olhos. Nunca, em seus quase vinte e cinco anos de vida, havia visto tanto brilho naquele olhar verde.

—Querida, esta noite, antes de ir para a cama eu orei a Morgana e pedi a ela que me levasse para o seu sonho.

—O que disse? —Perguntou se afastando dela e arregalando os olhos.

—Mas ela não me presenteou esse momento —disse, sorrindo de orelha a orelha. —A criadora nunca interrompe a intimidade de um casal.

E Anne pôde respirar com tranquilidade.

—O que mostrou?

—Morgana me ofereceu uma bela foto da família, a mesma que Madeleine comentou naquela tarde. Pela primeira vez em vinte e cinco anos, não havia escuridão sobre nós, mas luz.

—Tem certeza? Realmente acha que o homem que vejo dormindo vai nos livrar de tudo isso?

—Por que desconfia? Está escondendo algo importante de mim? —Perguntou, apertando os olhos.

—Não, mãe.

—Então, com o que está preocupada? Pensa que estou tão desesperada que sou capaz de provocar essas visões?

—Não! Nunca faria uma coisa dessas! —Disse rapidamente.

—Por favor... —Mary disse em uma voz sonolenta. —Meu cérebro precisa de descanso...

—Seu

cérebro

precisa

de

umas

palmadas!

--

Sophia trovejou virando-se para a segunda filha. —Levante-se de uma vez! Não se lembra que esta manhã nós temos que sair?

—Vai me comprar mais livros? —Perguntou sem tirar os lençóis do rosto.

—Claro que não! —Exclamou a mãe para a cama, na qual ela só podia ver uma colcha rosa e os tubos metálicos que Mary havia enrolado em

seus cabelos negros.

—Então... me deixe dormir!

—Mary Moore, quero que afaste essas cobertas agora mesmo! --

Sophia ordenou como se ela fosse do alto escalão do exército.

—Mãe, reconsidere sua decisão —Anne pediu quando a viu se aproximar dela. ?Acho que seria mais apropriado não nos acompanhar nessa saída familiar. Esqueceu o que aconteceu da última vez que a forçou a se juntar a nós?

Sophia olhou para a primeira filha, depois para a segunda e franziu a testa. Claro que ela se lembrava! Não só ela, mas qualquer habitante de Londres! Como poderia esquecer que ela bateu na carruagem do filho de um lorde com os punhos, porque, depois de uma conversa acalorada sobre uma descoberta médica, ele disse a ela que deveria se concentrar em manter a boca fechada? Nem mesmo as quatro xícaras de tília que tomou quando retornaram acalmaram o constrangimento que ela e o resto de suas filhas sofreram.

—Tudo bem, —disse. —Até que sua situação seja esclarecida, é melhor ficar longe de nós.

—Obrigada. Fez o correto.

—Se diz... —murmurou. -- Vou esperar na sala de costura. Preciso verificar certas coisas antes de sair.

—Minhas irmãs estarão lá? —Queria saber enquanto seguia em direção ao guarda-roupa.

—Não, Elizabeth está na estufa, ela me disse que precisava plantar algumas sementes que o seu pai trouxe ontem à noite. Madeleine ajuda a cozinheira com uma nova sobremesa e Josephine disse algo sobre tentar limpar o cano de um instrumento —explicou sem tirar os olhos de Mary.

—Não demorarei a descer —assegurou Anne, apertando os lábios para não rir quando ouviu a palavra instrumento. Sua mãe não percebia que o instrumento era outra arma? Apesar da reprimenda que recebeu depois de ter perfurado o vidro da sala de descanso, ela ainda estava determinada a colocar em suas mãos o que era proibido.

—Antes de descer preciso que faça duas coisas.

—Que deseja? —Perguntou se virando para ela.

—Quero que hoje use o vestido esmeralda —a informou.

—Não é muito elegante? Lembre-se que compramos para uma ocasião especial. —Tentou dissuadi-la.

—Se aquele homem está prestes a chegar, quero que note sua beleza e não os decotes que Elizabeth exibe.

—Mas...

—Não há discussão possível sobre esse assunto! Entendido? --

Assegurou.

—Sim mãe, o vestido esmeralda. Qual é a segunda coisa que quer me pedir? -- Perguntou Anne com resignação.

—Antes de sair, lembre à sua querida irmã que, mesmo que não estejamos em casa, ela tem que descer arrumada. Se ousar deixar esse quarto de camisola... será punida para sempre! -- Sophia apontou antes de sair do quarto.

?Nem pense em repetir, ?disse Mary, virando-se no colchão. Já ouvi isso. Eu e qualquer um que esteja a cinco quilômetros de distância.

—Mas ela está certa Mary. Não é apropriado que saia de camisola. Se tiver dificuldade em se vestir antes de tomar o café da manhã, peça a Shira para subir com ele.

—Acho que é uma boa ideia... irei deixar o quarto de camisola e gritar para ela do alto da escada para trazê-lo.

—Mary...

—Faça-me um favor, Anne. Vista-se em outro quarto. Minha cabeça dói depois de ouvir tanto absurdo.

—Acha que a mamãe vai esquecê-la? Realmente acredita que poderá evitá-la para o resto da sua vida?

—No momento, só quero evitá-la hoje... amanhã, amanhã me preocuparei em continuar lutando contra ela.

Anne olhou para ela sem piscar, maravilhada com a atitude desafiadora de Mary. Não entendia como era capaz de continuar dormindo depois de ouvir as ordens de sua mãe. Até o mais feroz soldado tremeria! No entanto, ela não parecia se importar com nada além de seus livros. Depois de suspirar profundamente e rezar para que um dia mudasse de comportamento, virou-se para o guarda-roupa, pegou o vestido que a mãe indicara, um lenço laranja e foi na ponta dos pés até a porta.

—Se encontrar Shira, diga a ela que estou doente, assim não abrirá as cortinas —ela pediu, se virando de novo na cama.

Sem responder a esse pedido, Anne saiu do quarto, fechou a porta e, quando estava caminhando em direção ao quarto das gêmeas, encontrou Shira.

—Senhorita! —Exclamou horrorizada ao ver que levava nas mãos as roupas escolhidas para sair. -- Por que não esperou por mim?

—Bom dia, Shira. Mary está doente e não quero incomodá-la.

—Doente? O que tem dessa vez? —Retrucou, colocando as mãos na cintura.

—Febre, eu acho...

—Bem, a senhora ordenou que abrisse as cortinas e sabe que nunca desobedecerei a sua mãe.

—Pode esperar, por favor, até nós estarmos fora de casa? Não

quero ouvir mais gritos por hoje —pediu.

—Sua mãe indicou que o faça depois de ajudá-la a se vestir, então...

—Entendo —disse, entregando suas roupas para Shira.

Uma vez que chegaram ao quarto das pequenas, a donzela fez um grande esforço para deixá-la como sua mãe havia indicado. Apertou tanto o espartilho que seus seios pareciam tão grandes quanto os melões que comprava no mercado. O que ela queria? Que lutasse contra a beleza de Elizabeth? Então, era uma batalha perdida. Onde a terceira das Moore tinha uma altura ideal para ser mulher, ela superava uma cabeça. Seus olhos eram castanhos e seu cabelo era tão escuro como a noite. Elizabeth herdara os olhos azuis e os cabelos dourados como ouro. Além disso, quando andava mal movia o tecido da saia, Eli parecia uma dançarina de balé. Compará-la?

Superá-la? Não, poderia se comparar a ela ou superá-la. A única coisa em que ela se destacava era aquela paixão selvagem com a qual nasceu. Elizabeth, ao contrário, se comportava descaradamente, mas no momento da verdade valorizava sua virgindade acima de tudo.

—Como sua mãe previu, esse vestido se encaixa perfeitamente --

recuou Shira quando terminou de arrumá-la.

—Ainda não estou satisfeita, mas é verdade que é tão bonito que não notarão a minha altura, mas o brilho de seda —disse, olhando para si

mesma no espelho.

—Se subestima, senhorita, é uma mulher muito bonita, tudo o que precisa fazer é confiar em si mesma.

—Obrigada Shira —agradeceu dando-lhe um beijo enorme na bochecha.

—Desça o mais cedo possível, sua mãe está esperando e tenho que deixar a luz entrar em seu quarto. Espero que sua irmã não decida me jogar o último livro que tem debaixo do colchão.

—Se o fizer, feche a porta, porque é enorme! —Exclamou entre risadas.

Depois de relaxar, caminhou na ponta dos pés, para que Mary não a ouvisse antes que Shira abrisse a porta, parou no topo da escada e olhou para baixo. De repente, alcançou o corrimão e o agarrou. O que acontecia com ela? Por que ao olhar para a porta seu coração começou a bater tão rápido? Por que seus joelhos queriam tocar o chão? Sufocada e assustada com essa mudança repentina, ela desceu lentamente as escadas sem largar o corrimão. No entanto, quanto mais perto chegava da entrada, mais sua fraqueza aumentava e seu batimento cardíaco ecoava em seus ouvidos como as balas das armas de Josephine.

—Morgana... —se dirigiu pela primeira vez à mãe sobre quem Sophia falava —o que acontece comigo? O que quer me dizer?

Depois de descer o último degrau, emaranhou o lenço laranja nas mãos e respirou com dificuldade. Queimava. Aquela peça de roupa que no andar de cima estava fria pela temperatura ambiente, na frente da porta, ardia.

Desenrolou-o de suas mãos, pegou-o com as pontas dos dedos e o arejou. As quatro borlas costuradas nos quatro cantos se moveram quando o sacudia e, de repente, um halo de luz cruzou aquele lenço. Assustada, mais do que nunca, o agarrou com força e, sem diminuir o passo, foi a sala de descanso. Quanto mais cedo se apresentasse à mãe, mais cedo tudo o que estava acontecendo desapareceria.

—Está ótima! ?Sophia exclamou ao vê-la. —Mas não quero que use isso —acrescentou, apontando para o lenço laranja que sua filha estava segurando firmemente em sua mão direita. —Não vê que não é apropriado?

—Gosto dele... —sussurrou. Como havia imaginado, assim que entrou na sala, seu corpo recuperou a normalidade e o lenço parou de queimar.

—É horrível! -- Insistiu sua mãe. -- Não gosto da cor, nem do tecido nem das borlas. Onde comprou? Ultimamente faz coisas sem me consultar...

—Comprei no mesmo dia em que Elizabeth comprou aquele chapéu de flores —explicou, caminhando em direção a ela.

—No estabelecimento da Sra. Jancks? Ela não mostrou outros

menos... laranja?

—Oh sim! Mas nenhum me agradou tanto quanto este... —ela comentou enquanto o colocava em seus ombros.

—Nem pense em sair com isso, Anne Moore! Ou deixa na cadeira ou...!

Não conseguiu terminar a frase de aviso porque alguém bateu na porta. Sophia olhou para a entrada da sala, depois para a filha e respondeu.

—Entre.

—Senhora, me perdoe por te interromper —disse Shira, mostrando duas bochechas vermelhas no rosto —mas tem uma visita.

—Uma visita? —Perguntou Sophia levantando as sobrancelhas.

—Para nós?

—Não Senhora. Dois cavalheiros vieram procurando pelo Senhor. No entanto, quando os informei que não estava em casa e não chegaria até o final da tarde, um deles insistiu...

—Em que? —Sophia exigiu saber.

—Em conversar com a senhora —afirmou sufocada.

—Comigo? —A sra. Moore perguntou perplexa.

Por que queria falar com ela? O que poderia ser tão urgente para não esperar pela chegada do marido? Quem seriam esses cavalheiros? Sophia respirou fundo, empurrando as perguntas e a inquietação que causavam a ela.

Teria que adotar o comportamento da esposa de Randall, o médico mais admirado de Londres, e receber aquelas visitas inesperadas como ditava o protocolo. Caminhou lentamente até o meio da sala, espalmou no vestido de seda bege, levantou o queixo e disse para sua governanta:

—Faça-os entrar. Irei recebê-los —disse com determinação.

—Tem certeza? —Shira perguntou, de olhos arregalados. --

Posso dar uma desculpa razoável. Uma senhora com suas filhas, sem a companhia do marido...

—Estou —disse Sophia, lançando um olhar furtivo para a mais velha de suas filhas para que ela pudesse ficar ao seu lado e adotar a postura adequada para receber os visitantes.

—Quem serão? —Anne perguntou olhando para a porta. —Por que insistem em falar com a senhora e não retornam quando o papai estiver?

—Assim que eles aparecerem por aquela porta, descobriremos --

declarou Sophia solenemente.


***


Shira, depois de confirmar que mãe e filha haviam se colocado no lugar certo e adotado a postura perfeita, afastou-se da entrada, voltou ao salão e informou ao homem insistente que a sra. Moore os atenderia naquele

momento.

—Me acompanha? —Logan perguntou para Philip, que tinha dado um único passo em frente e não tinha a intenção de dar nem um mais.

—É seu problema, não meu. Além disso, em nosso acordo não há referência sobre protegê-lo de uma dama amaldiçoada —disse Giesler.

—Vai me deixar sozinho? Não quer descobrir como é a mãe dessas cinco filhas? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas.

—Não quero saber nada sobre nada. Tudo o que estou tentando fazer é salvar minha pele enquanto devolve esse bendito envelope. Além disso, se me encontrar em perigo, esta área da casa é o local ideal para sair sem olhar para trás —declarou Philip depois de estudar com precisão o interior da casa dos Moore.

Enquanto seguiam para a residência, pensou em como seria a casa e seu entorno. Para sua paz de espírito, não encontrou nada de estranho. A residência era bastante espaçosa e iluminada. Aquela escuridão que tinha visto em sua mente não era real. A luz do dia entrava pelas janelas do primeiro andar e alcançava os vasos cheios de flores colocados em ambos os lados da escada que se comunicava com o segundo andar. A construção desse segundo andar era muito parecida com a sua. Um amplo patamar, uma escadaria de cerca de quarenta degraus de mármore claro, uma grade de madeira escura e, atrás daquele amplo patamar, havia duas galerias; uma

levava para a ala direita e a outra levava para a esquerda. Também havia percebido que do lado de fora, no grande jardim, uma pequena estufa de vidro fora construída. Tudo isso lhe dizia que a família Moore, apesar dessa maldição que supostamente caía sobre eles, era uma família razoavelmente rica; do contrário, não teriam um lar tão semelhante ao de um aristocrata.

—Está bem. Se algo assustá-lo, grite e virei em seu auxílio --

Logan disse, achando graça antes de começar o caminho que a criada apontava para ele.

Giesler o observou até que estava na frente da porta e recuperou o fôlego quando o viu endireitar o casaco, adotar uma postura rígida e confirmar que o envelope ainda permanecia no bolso direito. Naquele momento, não o invejava. A única coisa que sentia por seu amigo era misericórdia. O pobre tolo foi para a sala onde estava a mãe das meninas amaldiçoadas. Só esperava que ele saísse de lá inteiro e.... vivo.

Logan respirou fundo, pegou a maçaneta, a girou e, quando deu um passo à frente, congelou. Tinha pensado nisso. O pensamento cruzara sua mente mil vezes enquanto se dirigiam para a residência Moore, mas uma coisa era a atitude que adotara durante aquela imagem mental, na qual controlara perfeitamente seu estranho desejo por ela, e outra bem diferente era encontrá-la de uma maneira real. Se na festa, naquele vestido laranja, ela já parecia a mulher mais bonita de Londres, vê-la ali, no meio da sala,

esperando sua chegada com aquele vestido esmeralda o deixara tão impressionado que teve que chamar sua razão para poder dar mais um passo em frente.

—Bom dia, Sra. Moore. —Ele olhou para a esposa do médico, fazendo um grande esforço para parar de observar a jovem, que, ao vê-lo, empalidecera. —Sou o visconde de Devon e pretendia falar...

Logan não terminou a frase porque nesse momento correu em direção a Anne. A jovem, depois de dar o segundo passo, começou a vacilar.

—Anne! —Sophia exclamou quando viu como sua filha estendia uma mão para ela, para evitar uma queda. —Anne! O que há de errado? --

Gritou desesperada.

E, justamente quando Anne estava no meio desse colapso para cair, quando o seu corpo ia bater no chão, Logan chegou a tempo de pegá-la e erguê-la em seus braços.

—Pelo amor de Deus! —Sophia gritou, imitando as palavras que o marido usava quando alguma coisa o deixava perplexo.

Não sabia o que a chocava mais, se o desmaio inesperado Anne ou como o homem a segurava. Suas mãos grandes e poderosas se agarraram ao vestido de Anne de um jeito tão possessivo, tão rude, que as pontas daqueles dedos perfurariam a roupa da filha e acabariam criando marcas em sua pele.

—Madame... —Logan começou a dizer colocando a cabeça da jovem em seu tórax, sentindo o hálito de sua respiração acariciando seu peito e como seu coração respondia àquelas respirações. —Onde posso…?

—Lá! —Apontou o sofá que o marido utilizava para cochilar enquanto ela costurava.

Com um passo firme, Bennett foi até o lugar que a Sra. Moore indicara e, com muita gentileza, colocou Anne no sofá.

—Shira! —Gritou Sophia enquanto corria para a porta. --

Shira! Repetia desesperada.

—Senhora? —Perguntou, aparecendo quando Sophia ia sair da sala.

—Pegue os sais! —Ordenou. —Anne sofreu um desmaio.

E naquele momento, um grito veio da entrada.

VII


Ele sabia amaldiçoar em muitos idiomas, todos aqueles que aprendera desde que começou a ler.

Quando notou que seu rosto estava aquecido pela luz que entrava pela janela, Mary cobriu os olhos com o antebraço direito e gritou horrorizada. Por que as cortinas estavam abertas? Anne não explicou à Shira que ela não deveria fazer isso porque estava doente? Não acreditou nela? Sua mãe continuava a impor seus desejos? Ninguém na casa entendia que ela deveria descansar depois de passar uma noite enchendo seu cérebro com uma sabedoria exaustiva?

-- Für alle Übel der Welt[2] ! —Gritou depois de puxar o lençol de seu corpo como se em vez de ser feito de algodão ele estivesse cheio de cardos espinhosos. —No dia em que tiver minha própria casa, ordenarei que deixem o quarto no escuro até eu acordar -- disse, emburrada, enquanto colocava os pés no chão. -- E miserável de quem ousar desobedecer a minha ordem!

Levantou-se e, como de costume, caminhou até a porta descalça, de camisola e com aqueles rolos nos cabelos que Shira a forçava a usar antes de dormir. Quando a mão dela tocou a maçaneta, sorriu de orelha a orelha, olhou em direção a janela, para confirmar que o desafio que faria era uma

resposta para a batalha que sua mãe começou ao puxar as cortinas, e abriu a porta. Com uma atitude confiante e corajosa, porque imaginara que todos haviam ido às compras, caminhou pelo corredor sem se preocupar e bocejando. Um café. Ela precisava de um café antes de aguentar a árdua tarefa de se lavar, vestir e pentear o cabelo.

Com os olhos fechando e abrindo, pois, a sonolência não desapareceria até que tomasse o primeiro gole de café, pensava sobre a diferença entre as cinco irmãs ao acordar. Anne pulava da cama, entrava na banheira e desfrutava de um longo banho de espuma. Elizabeth não saia do quarto sem estar asseada, vestida e, claro, perfeitamente penteada. Se a curvatura do lado esquerdo não se ajustasse às dimensões e ao laço exato, de modo que a ponta do cabelo tocasse levemente a pele de seu enorme decote, voltava para o quarto e não saía até conseguir. Josephine tinha que fazer seus exercícios matinais. Claro, esses exercícios não eram usuais em uma mulher. A quarta filha jogava facas em uma pintura que ela escondia debaixo do colchão, no mesmo lugar em que mantinha aquela meia dúzia de punhais com os quais ela praticava. Se verificasse que sua pontaria não tinha melhorado desde a noite anterior, se asseava, vestia as roupas que sua mãe odiava, descia, tomava café da manhã e saia para o jardim com a nova arma em suas mãos. Madeleine... a pequena era de outro mundo. Toda vez que se levantava, ela mostrava um enorme sorriso no rosto. Tudo a fazia feliz, nada

a incomodava e ela se sentia muito à vontade... em casa. Seu rosto angelical desaparecia quando tinha que sair de casa. E por outro lado, estava ela, que precisava de uma boa xícara de café para entrar na banheira porque, enquanto suas irmãs desfrutavam de um banho quente, ela ficava em alerta no caso de, em algum momento, a caldeira a gás emitir ruídos estranhos, como aconteceu com Lorde Fhautun antes de ele sair disparado junto com a banheira.

Em suma ... cinco filhas, cinco personalidades.

Antes de virar à esquerda para se colocar no patamar do segundo andar, ela coçou a bunda por cima da camisola e um enorme bocejo fez com que fechasse os olhos e abrisse tanta boca que parecia a mandíbula de uma baleia. Com os olhos ainda fechados, ela estendeu a mão que havia tocado sua nádega ao corrimão e começou a descer as escadas até ouvir algo parecido com um grunhido. Surpresa, ela juntou os lábios, abriu os olhos e....

gritou com toda a sua força.

—O que está fazendo aí parado? Quem o deixou entrar?

?Perguntou, quando terminou de gritar, para o homem que estava parado na porta, olhando para ela com uma expressão de medo e se aproximando da porta, como se precisasse confirmar que ainda estava perto da saída.

-- Eine Hexe! -- Philip exclamou, incapaz de tirar os olhos daquela imagem aterrorizante. O que era aquilo que via? Um fantasma? Um diabo? Que criatura da natureza seria? O que quer que fosse, tinha que sair

dali o mais rápido possível, porque, pelo que tinha na cabeça, deduzia que era parente da deusa Medusa e poderia transformá-lo em pedra a qualquer momento.

—Me chamou de bruxa? —Mary explodiu irritada ao ouvir como ele a chamara em alemão. —A mim? —Naquele ataque de raiva ela colocou as mãos no cabelo, rapidamente desfez os rolos de metal que tocava lançando-os com toda a força que sua raiva lhe dava. —Não sou uma bruxa pedaço de asno! —Continuou gritando irritada, jogando os bobes nele como se fossem dardos.

—O que diabos está jogando em mim, bruxa? —Philip perguntou, movendo-se da direita para a esquerda, para que o que ela estivesse jogando não o atingisse. —Quer me transformar em pedra?

—Em pedra? -- Agora sim que não podia ficar com mais raiva. Ele a estava comparando a Medusa, a deusa que, através dos seus olhos, transformava as pessoas em pedra? Dando um puxão forte em seus cabelos, ela conseguiu tirar mais de cinco rolos de metal de uma só vez e atirou todos contra aquele ingrato. -- Vai saber o que significa se tornar uma pedra, titã desgraçado! Arsch! Dumm[3]!

—Mary Moore! —Exclamou Sophia, vendo o que a segunda de suas filhas estava fazendo. —Chega!

—Não! Nunca vou parar porque esse asno me chamou de bruxa!

A mim! Na minha própria casa! —Gritou com tanta raiva que as veias de seu pescoço pareciam as cordas que eles usavam na Idade Média para enforcar os ladrões.

E naquele momento Josephine veio em socorro, segurando com força a última espingarda que seu pai lhe dera. Se colocou entre sua irmã e o estranho, levantou o cano e apontou para o peito grande.

—Saia desta casa se quiser continuar vivo porque, mesmo sendo uma mulher, posso puxar o gatilho e ter uma bala atravessada no seu coração

—avisou.

—Josephine Moore, abaixe essa arma agora mesmo! —Sophia gritou sufocada, aturdida e prestes a se tornar a bruxa que nomeara Mary.

E como não há dois e sim três, Madeleine correu da cozinha quando ouviu tantas vozes. Mas quando viu um homem de tal tamanho na porta, sua irmã Josephine apontando a arma para ele, Mary na escada de camisola, puxando os bobes, e sua mãe tentando colocar a paz na situação, ela parou a corrida, se virou e abriu a porta da sala de descanso, o lugar ideal para se esconder. No entanto, também havia pessoas na sala. Madeleine arregalou os olhos, levou a mão direita à boca e gritou ao ver que um homem, que beijava Anne até que o interrompeu, virou a cabeça para ela e a olhou sem piscar.

—Já... está! Veio...! Maldição! Ele... —Ela voltou para a cozinha,

gritando entre soluços.

Sophia ficou a cinco passos da sala e a sete de onde estava aquele cavalheiro loiro. Olhou para a esquerda e bufou enquanto observava Madeleine correndo e gritando palavras sem sentido. Então ela voltou os olhos para Josephine. Ela ainda não havia cumprido sua ordem e continuava a apontar para o peito daquele cavalheiro hercúleo cujo rosto estava mais branco do que o da menina assustada. Por que Morgana lhe oferecia uma situação tão absurda? Deveria passar por esse calvário para encontrar a paz? Não era normal o que acontecera em menos de dois minutos: Anne desmaiara ao entrar aquele cavalheiro que não pôde nem se apresentar, Madeleine tinha visto algo naquela sala que a desequilibrara, Josephine ainda com a arma nas mãos, apontando o peito do homem que não conseguia afastar os olhos de Mary. Se alguma vez pensou que os espetáculos que sua segunda filha oferecia nas reuniões médicas eram bastante humilhantes para ela, estava errada. Aquilo superava tudo o que tinha visto em sua vida!

—Josephine Moore, eu disse, abaixe a arma! —Ela repetiu com mais energia e desespero.

—Mãe, eu prometo que vou fazer isso assim que esse homem afastar o olhar de Mary. Caso continue a observá-la dessa maneira, descobrirá que sob a camisola ela está nua —Josephine exclamou.

E naquele momento Mary gritou novamente. Josephine continuou

apontando para Philip e, apesar de ouvir o aviso de quem segurava a arma, não desviou o olhar da mulher, a quem chamaram de Mary, tentando descobrir que figura feminina teria a diabólica Medusa.

—Vá agora para o seu quarto, Mary Moore! Espero que isso a ensine a não descer sem se arrumar —explodiu Sophia. —Eugine! --

Chamou a cozinheira.

Mas Mary não subiu, ela ficou lá, petrificada pelo constrangimento, contemplando furiosa como o atrevido estava procurando o ângulo perfeito para descobrir o que estava escondido sob a longa camisola.

—Sim senhora? —Disse rapidamente a criada, que, antes do burburinho que se formara em um piscar de olhos na casa pacífica, abandonou suas tarefas para ir até a entrada.

—Faça para Madeleine um chá calmante e que não saia da cozinha até que tudo isso esteja sob controle —disse sem tirar os olhos de Josephine.

—Sim, senhora —disse antes de se virar e procurar a filha mais nova.

—Shira! —Chamou a governanta.

—Estou aqui, senhora —respondeu às costas de Sophia.

—Dirija-se à sala de estar e deixe que Anne inspire os sais para ver se ela acorda imediatamente. Não saia de lá até eu limpar toda essa

bagunça porque o cavalheiro que queria falar comigo, continua sozinho com ela —disse seriamente.

—Agora mesmo —Shira respondeu, dando passos rápidos para a sala.

—Se não abaixar a arma, Josephine, prometo que não terá uma enquanto estiver respirando. Juro pelo meu sangue que as aulas de esgrima e as escapadas para o campo com o seu pai irão acabar —ameaçou sua quarta filha.

—Mãe... —ela disse, abaixando a arma. —Esse homem…

—Senhor! —Sophia a corrigiu. —Ele é um homem que apareceu em nossa casa para procurar seu pai e.... como o trataram? —Ela gritou, olhando para Mary e depois para Josephine. —Que imagem minhas filhas ofereceram? É assim que expressam a educação que com tanto esmero demos às duas? -- Persistiu em voz alta.

Josephine, descobrindo a extensão da raiva materna e assustada com as repercussões que teria, decidiu pedir desculpas antes que sua mãe pegasse todas as suas espadas, facas, rifles e os entregasse ao primeiro ferreiro que passasse pelos arredores de sua casa. Ela deu dois passos em direção a Philip, abaixou a arma e estendeu a mão.

—Desculpe por apontar a arma e por querer atirar no senhor. Mas, como entenderá, não foi correto olhar para a minha irmã desse

jeito —ela esclareceu com orgulho. —Só fiz o que qualquer homem faria no meu lugar.

—Desculpas aceitas, senhorita Moore e acredite em mim eu a entendo perfeitamente. —Aceitou uma saudação tão masculina. --

Certamente eu teria reagido como a senhorita se um estranho entrasse em minha casa e olhasse com atrevimento o corpo seminu da minha irmã --

acrescentou, ainda incapaz de afastar os olhos de Mary Moore e lhe dar um sorriso leve e sedutor.

Depois que ele a perdoou, Josephine se virou, olhou para a mãe, assentiu, colocou a arma no ombro direito e voltou para o lugar de onde havia saído com um passo militar.

—Mary... —avisou sua mãe quando viu que ainda estava no alto da escada e tinha mais alguns cilindros de metal na mão.

—Nunca me desculparei com um sujeito rude! —Gritou, se virando para subir as escadas.

Mas justo quando chegou ao patamar, quando apenas devia sair pelo corredor da esquerda para ir ao seu quarto, olhou de lado para o homem e seu corpo se encheu de raiva. Ele estava olhando seu traseiro? Aquele grosseiro, mal-educado e desbocado tinha os olhos fixos na sua bunda? Respirou fundo, lançou um olhar assassino e, depois de jogar outro daqueles rolos metálicos que segurava na mão direita, correu para seu quarto.

Assim que a calma reinou no local, Sophia respirou fundo, esboçou um largo sorriso, caminhou em direção ao cavalheiro que suportara estoicamente aquela situação desastrosa, estendeu a mão e disse:

—Bom dia senhor…

—Giesler —disse Philip, escondendo na palma da mão esquerda o último rolo que a bruxa morena de olhos azuis jogara nele, depois de descobrir que ele não desviou o olhar do seu traseiro.

Aceitou a mão dela e deu-lhe um beijo casto nas juntas.

—Bom dia, Sr. Giesler. Sinto esse alvoroço, espero que possa esquecer facilmente. Minhas filhas são meninas muito calmas e sensatas --

ressaltou.

—É claro, Sra. Moore. Testemunhei o bom senso do qual fala e devo parabenizar a senhora e seu marido pela educação erudita que elas estão mostrando.

—Sarcasmo, Sr. Giesler? —Sophia disparou, erguendo a sobrancelha.

—Completamente, senhora —disse com um sorriso que cruzou seu rosto.

—Quer me acompanhar até a sala? Exceto pelo desmaio da minha primogênita, certamente será um lugar menos perigoso.

—Obrigado pelo convite, mas, se não se importar, continuarei no

corredor, perto da saída, para o caso de suas queridas filhas quererem me mostrar de novo aquelas atitudes tão tranquilas e delicadas que ensinou —ele disse tentando não olhar para cima, onde a bruxa dos rolos de metal tinha saído.

—Como quiser —Sophia disse, estreitando os olhos para descobrir para onde os do Sr. Giesler estavam se dirigindo. «Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente combater os sentimentos que esse homem despertará nela a partir do momento em que se encontrem pela primeira vez», lembrou. Se virou, olhou para cima, confirmando que Mary não estava, endireitou as costas, adotando a atitude mais digna que poderia ter naquele momento e retornou à saleta. Ainda tinha que resolver a questão mais importante, quem era aquele homem e o que queria.


***


Uma vez que a deitou no sofá que a Sra. Moore apontara, Logan se forçou a manter as mãos longe da jovem. Por que agia assim? Por que todo o seu ser o incitava a não se afastar da jovem e a guardá-la como se nada no mundo importasse a não ser ela? Atordoado por aquele súbito desejo de proteção, mesmo acima de sua própria vida, ele deu um passo para trás.

—Pegue os sais! —Ele ouviu a ordem da esposa do médico

quando se afastou deles. —Anne sofreu um desmaio.

Mas naquele exato momento um grito foi ouvido na casa. Logan se virou para a porta e deu um passo à frente. Aquele grito de terror só poderia ser de Philip. Foi isso que lhe disse antes de deixá-lo na porta, que se algo terrível acontecesse, ele gritasse e deixariam a casa dos Moore sem olhar para trás. No entanto, o desejo de descobrir o que aconteceu com seu amigo desapareceu quando percebeu que a própria Sra. Moore estava correndo em direção ao salão e deixando-o sozinho com a jovem a quem ela chamara de Anne. O médico lhe contou o nome de sua filha? Naquele momento, não se lembrava bem de ter feito isso, a única coisa que podia especificar era o estado de ansiedade que o pai mantivera durante sua breve visita.

Sem pensar se era conveniente estar sozinho com ela, ele se virou e a olhou por algum tempo. Como poderia se sentir tão atraído por uma mulher que não conhecia? Por que seu sangue atingiu uma temperatura sem precedentes? O que havia de especial nela? Ainda pensando em como seu corpo reagia ao estar tão perto da jovem, ele recuou do passo que havia dado e se colocou tão perto dela que seus joelhos tocaram o vestido. De onde estava, podia ver aquele grande e volumoso seio subindo e descendo no ritmo da respiração lenta. Ela parecia tão relaxada, tão longe de onde estava, que notou como essa paz que ela sentia se apoderava dele também. Aquele rosto, apesar

de

pálido

devido

ao

desmaio,

mostrava

uma

beleza

incomparável. Seus lábios, ligeiramente separados, convidaram-no a beijá-los com ternura e discrição. Logan se recusou a fazer o que sua mente estava gritando com desespero, apenas um vilão se aproveitaria de tal ocasião.

Ele preferia beijar mulheres acordadas e ver nos olhos delas o brilho que oferecia a paixão de seus lábios. No entanto, ela era tão especial, tão diferente de todas as que conhecia... ela não tinha a beleza de sua última amante, Rose, nem a força de Barbara, a mulher africana com quem ela vivera durante sua viagem à África. A senhorita Moore era única, diferente e especial. Logan a olhou de cima a baixo, concentrando-se no lenço laranja que ainda segurava na mão esquerda. Ela não percebia que aquela tonalidade era imprópria a uma mulher em sua posição? Só precisava levar algumas joias em suas mãos e orelhas para expressar a todos quem ela realmente era. «Minha esposa é cigana —recordou a conversa com o médico, —mas mantivemos segredo para o bem das nossas filhas». Pois a primogênita do casamento, não arrastava apenas a maldição da qual ele falou, mas suas entranhas gritavam que seu sangue era diferente do resto de Londres.

«Ela não esconde o que é», disse a si mesmo enquanto se ajoelhava. «Você, ao contrário, foge da realidade, da sua natureza, da sua verdadeira origem», continuou pensando enquanto sentia como o sangue que ele chamava de contaminado assumia o controle quanto mais tempo passava com ela.

Parecia estranho, não só por causa do que estava acontecendo com ele ao lado de Anne, mas por causa dos sentimentos que vinham de dentro dele. Tentou raciocinar, como costumava fazer aquela parte Bennett que aparecia nele toda vez que estava em apuros. No entanto, a parte que ele odiava, seu lado cigano, atacou com força dentro dele, sua cabeça se encheu de ideias absurdas. Como ele apagaria de sua vida o que aconteceu depois de seu nascimento? A humilhação a que foi submetido, a desordem que sofreu até aquela piedosa mulher levá-lo até seu irmão e, depois de implorar piedade por um filho bastardo que tinha que viver com dignidade, permaneceu sob sua proteção. Não podia esquecer sua origem, nem como todos gritavam que ele era o filho do diabo, nem se davam conta de que a pessoa que finalmente lhe dava seu sobrenome tinha sido um vilão apenas para uma mulher que ele mal conhecia.

Olhou para os lábios dela novamente, aumentando a preciosa visão de seu desejo de beijá-la. Anne tinha uma boca tão tentadora, tão sedutora que queria descobrir como eram aqueles lábios vermelhos. Se inclinou sobre ela, respirou com dificuldade, como se precisasse inspirar o perfume da jovem para sobreviver, levou sua boca à dela, fechou os olhos, beijou-a e, naquele instante, algo ainda mais estranho aconteceu.

De repente, tudo ao seu redor ficou escuro como se alguém tivesse apagado a luz do sol. O silêncio que permanecia no quarto foi

interrompido por uma música suave. Ele estreitou os olhos, esperando poder visualizar algo naquela escuridão e o encontrou. Uma luz laranja e rosada apareceu na sua frente. Atônito, estupefato e inquieto, ele estendeu as mãos para frente, procurando pelo corpo de Anne, mas ela não estava ali, desaparecera como uma névoa matinal. O que era aquilo? Onde estava? Logan sentiu os pelos em seu corpo eriçarem, como a temperatura do corpo começou a subir tanto que sobravam todas as roupas que tinha. De repente, um estranho sufocar tomou posse de sua garganta. Oprimido, levou as mãos à gravata e puxou para se livrar do nó. Quando conseguiu que seus pulmões tivessem um pouco de oxigênio, levantou-se lentamente, incapaz de desviar o olhar daquela luz na sua frente. Suas mãos adquiriram vida própria e se espalharam novamente, como se buscassem um ponto para se segurar.

Inexplicavelmente, apesar da escuridão, apesar de não distinguir nada ao redor, exceto aquela luz, seus dedos atingiram algo suave, delicado.

—O que quer de mim? -- Perguntou. -- Onde estou?

Ninguém respondeu. A única coisa que continuava ouvindo era a música que dizia para ele atravessar o fogo, para andar sobre ele, porque entre as chamas estaria à verdade. Respirou fundo, olhou para aquela luz inquieta e, quando pretendia seguir em frente, Anne chamou sua mãe e tudo desapareceu...

Logan piscou várias vezes, tentando acostumar seus olhos àquela

súbita mudança de luz. Ele havia voltado para a casa dos Moore, estava ao lado da jovem e ela o fizera voltar, com um simples sussurro, de onde havia estado. Muito lentamente, se ajoelhou novamente diante de Anne, estendeu a mão direita sobre seu rosto e o acariciou devagar.

—Quem é você Anne Moore? O que me aconteceu ao beijá

la? -- Perguntou com um leve murmúrio.

Enquanto seus dedos acariciavam aquele rosto com cuidado, percebeu uma ligeira mudança de cor vermelha onde quer que ele a tocasse. Era como se ele pudesse reacender a pele que tocava. O dom da vida, o dom da eternidade... sem tirar os dedos de sua bochecha lisa, Logan se inclinou em direção a ela para respirar o ar que expelia de sua boca. Aqueles lábios, que uma vez sussurraram uma palavra que o tirou daquela alucinação, novamente lhe pediam um beijo. Sem se separar de Anne, tomando cada respiração de seu ar, tentou assimilar o que estava acontecendo com ele. Havia beijado mais de cem mulheres desde que começara a masculinidade, tinha beijado apaixonado, suave, insuportável, ruim, prejudicial e até louco, mas nenhum como o que tivera com Anne. Apenas um toque, um toque leve e casto o transportara para um mundo sombrio e distante. Essa seria sua maldição? Ao tocar seus lábios já estaria predestinado a morrer? Aquela escuridão que tinha visto era a última coisa que seus pretendentes viram? Então, quando terminou de se fazer essa pergunta,

balançou a cabeça lentamente. Não, pelo menos um deles não tinha visto isso: o filho do conde. De acordo com John, eles nem se conheciam para que pudessem se beijar, apenas o Sr. Hendall teve tal privilégio. E de repente, um sentimento de posse tomou conta dele outra vez. Queria pegar Anne em seus braços novamente e deixar aquela casa com ela enredada debaixo de seu corpo.

—Maldita seja! -- Exclamou sentado em seus próprios calcanhares. Acariciou seus cabelos, oprimido por esses pensamentos, pela ansiedade de beijá-la, tirá-la de lá, afastá-la do mundo e ficar com ela... para sempre. -- O que fez comigo, cigana? —Perguntou baixinho. —Me enfeitiçou? —Continuou enquanto os dedos de sua mão se moviam lentamente pelo queixo e pelo pescoço, passando devagar pelo generoso decote. —Porque se assim for, me tem ajoelhado, prostrado aos seus pés.

Como continuava sem responder, sem acordar, Logan afastou os dedos daquele busto feminino e baixou lentamente para pegar sua mão. Estendeu os dedos, longos e finos, próprios de uma mulher tão magra quanto ela e prestou atenção a uma pequena mancha entre eles. Tinta. Ela havia sido manchada com tinta branca. Detalhe que não o surpreendeu porque John também contara sobre sua fama como retratista. Aproximou seus lábios para aquela área e, com um movimento suave, fez aquela mão negligente acariciá-lo. Aquele contato, aquele leve toque de uma mão

delicada em sua barba, causou uma alteração sem precedentes nele: sua masculinidade saiu de controle, seu corpo se alargou tanto que as roupas estavam muito apertadas e ele estava sem fôlego. Surpreendido ainda mais por essas reações, abaixou a mão lentamente, colocando-a no lugar em que estivera e, quando estava debruçado, quando deveria se afastar para não tentar a sorte duas vezes, ele a beijou. Embora desta vez não se contentasse com um toque suave. Seus lábios prenderam o lábio inferior de Anne, capturando o gosto de sua boca, a suavidade daquele lábio feminino. Fechou os olhos, para aproveitar por mais tempo aquele prazer simples e requintado, e foi quando a porta se abriu. Logan tentou se afastar para que a pessoa que acabara de aparecer não deduzisse o que havia acontecido ali. Mas tudo o que pôde fazer foi virar lentamente seu rosto para a jovem de cabelos ruivos e olhos azuis que, ao tentar explicar que só queria confirmar que estava respirando, se virou e começou a gritar desesperada. Irritado por não conseguir se controlar, caminhou até a porta. Precisava sair dali e tentar explicar o que havia acontecido. No entanto, naquele momento a Sra. Moore ordenava que uma criada fosse para onde ele estava. Se virou para o centro da sala, mantendo uma distância considerável de Anne, enquanto a donzela entrava.

—Milorde, com sua permissão... —ela disse, mostrando o pote de sais.

—Claro —respondeu, sem desviar o olhar da moça.

Rapidamente, a criada, a quem a Sra. Moore chamara de Shira, se ajoelhou ao lado dela, colocou o braço esquerdo sob a cabeça de Anne e a fez inalar esses sais para despertá-la.

—Shira... —a jovem murmurou quando abriu os olhos. —Oh, Shira! —Ela exclamou, descobrindo que, exceto por ela, não havia mais ninguém ao seu redor. Finalmente o pesadelo acabou. O homem não estava...

No entanto, quando Logan se aproximou para perguntar se estava bem, ela o olhou e desmaiou novamente.

—Acho que é melhor deixá-las sozinhas porque, como posso ver, a minha presença não causa nenhuma melhoria para a senhorita Moore --

Logan comentou, um tanto confuso.

Por que desmaiava ao vê-lo? Por que não podia ficar acordada? O

que acontecia com ela? Tinha ouvido alguma conversa sobre ele? Teriam dito que era um libertino, que andava com mulheres de reputação discutível? Ou, talvez, pensava que ele queria propor casamento a ela e, depois das mortes de seus pretendentes anteriores, não queria assumir mais uma morte?

«Maldição», essa foi a palavra que seu pai usou para confirmar seu desejo de tirá-la de Londres. Mas depois do que aconteceu, ele precisava descobrir muito mais sobre ela.

—Obrigado, milorde —disse a criada, tirando-o de seus

pensamentos.

Com solenidade, com o andar próprio de um Bennett, Logan seguiu para a saída com a firme ideia de esclarecer o que acontecera. No entanto, quando estava prestes a chegar à porta, a Sra. Moore apareceu. Seu rosto ainda mostrava confusão e um leve tom de vermelho persistia em suas bochechas, provocado, talvez, pelo que acontecera do lado de fora da sala.

—Milorde —ela não comentou nada, mas o viu.

—Ela ainda está inconsciente —explicou Logan.

Sophia se aproximou da filha, acariciou suas bochechas e apertou sua mão com força, a mesma que Logan havia beijado momentos antes.

—Seria melhor se nos retirássemos —ela pediu, olhando para ele com preocupação. —Posso atendê-lo no escritório do meu marido, se ainda quiser falar comigo.

—Sim, claro. Vim para resolver um assunto e não irei embora sem fazê-lo —respondeu Logan com firmeza.

—Então, se fizer a gentileza de me acompanhar —disse Sophia, andando na frente do visconde.

VIII


Silenciosamente, Logan deixou a sala atrás da esposa do médico e a seguiu até a sala ao lado. Antes de virar para a esquerda, para onde a anfitriã se encaminhava, olhou para Philip. Ele nem sequer notou sua presença porque não tirava os olhos do andar de cima. O observava como se, a qualquer momento, a própria rainha fosse aparecer. O que teria acontecido e por que ele não conseguia tirar os olhos daquela parte da casa? Ele parecia até mais alto do que já era, com seu corpo estando tão rígido! Se não se acalmasse, as costuras de seu terno cor de vinho estourariam. Logan ficou ainda mais desconfortável quando observou o rosto de seu amigo. Ele tinha um desespero semelhante ao que expressava depois de navegar por três meses em alto mar sem uma amante para aquecer sua cama. Quem ele conheceu para deixá-lo tão desnorteado? Estaria com medo ou talvez ansioso? O que quer que fosse, uma vez que os dois se afastassem da residência, falariam sobre isso, porque, se ele estava confuso depois de beijar Anne, Philip revelava um caos ainda maior na dureza de sua expressão.

Com uma caminhada serena, ele avançou pelo escritório do Sr.

Moore. Uma grande estante cheia de tomos negros estava atrás de uma mesa de mogno escuro. Sobre ela encontrou uma centena de papéis, dando-lhe a entender que o bom doutor passava várias horas naquele lugar e que a

desordem era um dos seus grandes defeitos, além de achar que Anne estava amaldiçoada.

—Peço desculpas pelo comportamento que minhas filhas demonstraram, milorde —começou a dizer Sophia, enquanto caminhava em volta da mesa. —Meu marido geralmente não recebe visitantes em nossa casa. Todos aqueles que desejam falar com ele aparecem na clínica que fica localizado na Baker Street —esclareceu. —Aceita um café, talvez chá?

—Não, obrigado -- Logan respondeu enquanto esperava que a anfitriã lhe oferecesse um lugar para sentar. —Peço-lhe que me perdoe por ser a causa de tal situação, mas a razão pela qual estou em sua casa é da maior importância e não tem nada a ver com a ocupação de seu marido.

—Estou ouvindo, milorde —disse Sophia, apontando para uma das duas cadeiras que Randall tinha diante de sua mesa.

—Primeiro de tudo —Logan começou tirando algo do bolso esquerdo. —Gostaria de lhe oferecer meu cartão de visita. Não fui capaz de entregá-lo a sua criada porque ela ficou nervosa e saiu correndo, nem tampouco pude me apresentar adequadamente quando entrei na sala.

—Meu marido sempre me advertiu que minhas filhas precisam fazer o desjejum antes que se possa manter uma conversar com elas --

explicou, aceitando o cartão e observando o visconde abrir os botões de seu paletó verde-escuro antes de se sentar. ?Mas hoje pulei essa regra e, como

pôde ver, tiveram as consequências que meu amado marido me advertira --

acrescentou como meio de desculpa para o desmaio de Anne. Não era conveniente explicar que a sua presença a havia perturbado de um modo sobre humano e que estava ansiosa em terminar essa conversa para descobrir a verdadeira razão pela qual sua filha desmaiou quando o viu.

Depois de falar, Sophia leu o nome que havia escrito no cartão de visitas e se esqueceu de respirar. Esse homem era o irmão do marquês de Riderland e da melhor amiga de Elizabeth? Seu marido não havia dito que a pessoa a quem ele pedia o favor era o visconde de Devon? Ele não percebeu que era um parente direto do marquês e de Natalie Lawford? «É tão inteligente para as suas coisas e tão desleixado para outras... " ela pensou.

Sophia respirou fundo, fazendo com que seu peito se sentisse pressionado pelo espartilho, devolveu o cartão de visitas e adotou a postura que deveria oferecer a esposa de Randall Moore, um excelente médico, mas um distraído sem esperança.

—Sei quem é, milorde —ela explicou sem rodeios. —Meu marido me contou sobre a visita que ele fez há algumas noites atrás e também me informou que se recusou a aceitar sua proposta.

—Esse foi o motivo para me apresentar em sua casa neste momento tão inapropriado —disse ele, pegando o envelope do bolso direito. —Não irei aceitar a sua oferta —acrescentou ele, depositando-o sobre

a mesa.

—Não parece quantidade suficiente? —Sophia insistiu, olhando dentro do envelope, procurando a foto de Anne. Randall não dissera que lhe dera um retrato para que ele soubesse quem era? Então... onde estava? Teria sido perdido?

—Não é sobre isso, senhora. A quantia é muito adequada, no entanto, rejeito essa proposta por razões morais —ele respondeu seriamente.

Logan ficou perplexo ao ver como a esposa do médico olhou para o envelope. Duvidava dele? Desconfiava de sua honra apesar de se apresentar em sua casa? Porque não faltava nada no envelope, a não ser a foto que, depois de pegá-la do chão, estava guardada no bolso esquerdo do colete que ele usava.

—Motivos morais? —Ela disse, deixando o envelope sobre a mesa. —O que quer dizer, milorde?

—Seu marido apareceu em minha residência me pedindo para levar sua primogênita entre minha tripulação. Quando me recusei a fazê-lo, ele disse algo sobre uma maldição —disse Logan com um pouco mais de calma, observando que a Sra. Moore não notara que a foto da filha estava faltando. —Pelo que entendi, acreditam que Anne é amaldiçoada e que é a causa da morte de seus dois noivos. Estou certo?

—Não acredita em maldições, milorde? —Disse Sophia direta,

suportando a satisfação de ouvir como o visconde se referia à sua filha pelo seu primeiro nome.

—Não quero dizer que elas não existam, mas no caso de sua filha não existe —afirmou com integridade.

—Como pode ter tanta certeza? —Sophia perguntou, apertando as mãos e mantendo as costas completamente rígidas.

—Depois da visita do seu marido, pedi a um dos meus homens mais leais que falasse com o Dr. Flatman sobre as verdadeiras causas das duas mortes. O primeiro, embora fosse um cavaleiro experiente, bebeu mais de duas garrafas de Bourbon antes de montar um garanhão. Deduzindo que seu estado de embriaguez não permitisse que ele controlasse o feroz animal em que galopava.

—Continue —disse Sophia, surpresa e confusa ao ouvir que ele se dera ao trabalho de investigar os pretendentes de Anne.

Como deveria se sentir? O mais sensato era com raiva, mas não estava. Ela estava muito relaxada, demasiado para estar na frente de um aristocrata tão famoso pelo berço em que nasceu. No entanto, a forma como a olhava, o modo como falava com ela e até mesmo a expressão em seu rosto não eram comuns a um homem de sua classe social. O visconde tinha algo que era muito familiar para ela, mas... o que era?

—O segundo pretendente de sua filha, não era um homem

pleno. O conde o manteve preso em sua casa desde que nasceu porque, como descobri, ele sofria episódios de delírios e depressões.

—Delírios e depressões? Interessante... —Sophia murmurou, movendo o pé esquerdo rapidamente sob a mesa. Sinal inequívoco de que aquele homem lhe transmitia tranquilidade. Até agora, toda vez que ela tinha que falar com um aristocrata, se mantinha rígida como uma tábua e controlava cada movimento, no entanto, com ele tudo parecia diferente. Elizabeth não havia dito em alguma ocasião que os Bennetts eram uma família peculiar? Bem, talvez ela estivesse certa...

—Então, temo que não suportou a pressão que o conde exercia sobre ele —assegurou com firmeza.

—Então, de acordo com seu julgamento, não há maldição, estou certa? —Ela falou, apertando os olhos.

—De fato, não existe. E parece injusto que faça sua filha acreditar nesse tipo de tolice —disse ele com relutância.

—Suponho que tenha perguntado sobre esses terríveis acontecimentos porque queria confirmar que a maldição não era real e que sua exposição seria irrefutável. —Logan afirmou com um aceno suave. --

Sendo esse o caso, por que se recusa a levá-la em seu navio? A que se referiu quando disse razões morais, milorde?

—Não é apropriado para uma mulher viajar em um barco cheio

de homens —disse Logan.

—Conheço muitas mulheres que viajaram de barco para a Europa e nada lhes aconteceu porque o capitão observou pessoalmente a sua segurança. Não é um desses, milorde? Se recusaria a protegê-la? —Disse mordaz.

—A trataria com o respeito e a proteção que eu ofereceria à minha própria irmã, a senhora Moore —disse solenemente ao sentir como sua virilidade estava sendo questionada.

—E se fosse sua irmã, como disse, e não pudesse levá-la, a quem confiaria sua segurança? —Ela reiterou com calma.

—Insiste em afastá-la de Londres? —Explodiu, levantando-se e colocando as palmas das mãos naqueles papéis desordenados.

—Ela quer ir embora, milorde —disse, olhando para ele sem piscar.

Toda Londres conhecia a natureza dos Bennetts: apaixonada, corajosa, orgulhosa, teimosa, trabalhadora, inteligente, respeitosa, sincera, confiável e.... libertina. Mas o que Sophia nunca pensou foi que ela pudesse acrescentar àquela interminável lista de características a falta de respeito. Por que ele perdia o controle tão facilmente? Por que o incomodava tanto que Anne partisse para Paris?

—Por que quer fazer isso? Não é capaz de encontrar um lugar

nesta maldita cidade? —Perguntou fora de si.

—Minha filha, visconde —começou, sua voz terrivelmente suave quando se levantou —nasceu com um dom, o da pintura. Graças a ele, foi capaz de se recuperar da depressão que sofreu após a morte de seu segundo pretendente, mas não a salvará do próximo. —Ela andou até se colocar ao seu lado esquerdo e olhou-o com tanta força que poderia derrubá-lo. —E peço sinceramente que não levante a voz em minha própria casa. Não sou uma mulher comum, milorde. Lembre-se que minha família me ensinou a não me basear nos absurdos protocolos sociais nos quais nasceu. Se não se acalmar, deixará minha casa e não voltará até que meu marido possa atendê-lo, entendeu? —Disse com o mesmo tom que minutos antes repreendera suas filhas.

—Peço mil desculpas —disse Logan, abaixando a cabeça. —Fui impulsivo. —Como havia perdido a compostura tão rapidamente? Por que motivo tratou a Sra. Moore dessa maneira? «Raiva», ele pensou. Sim, a raiva o cegara de tal maneira que não conseguiu raciocinar. Apenas imaginar que Anne iria se afastar de Londres em outro navio, que ela pudesse estar ao lado de outro homem ou que se ela se sentisse em perigo em algum momento e ele não estivesse lá para salvá-la, o irritou. ?Como sabe, venho de uma família que precisa estar unida para ter uma vida plena e tenho dificuldade em acreditar que outras pessoas não mantenham o mesmo apego —disse

calmamente.

—Desculpas aceitas milorde e nossa família é muito parecida com a sua. Tenho que explicar que meu marido agiu com desespero e agonia a pedido de Anne. Nós não queremos que ela saia, pelo contrário, queremos que fique aqui, mas, como eu disse antes, se ela sofrer outra depressão, nada e ninguém poderia salvá-la.

—Porque diz isso? Ela está doente? —Logan perguntou depois de respirar fundo e sentar-se novamente.

—Não agora, mas estará em breve -- disse Sophia com um suspiro. Caminhou até onde o visconde estava e sentou ao seu lado. —Se investigou essas mortes, imagino que também descobriu ao que minha filha se dedica, certo?

—Sim —respondeu sem hesitar.

—E o que acha disso?

—Não entendi sua pergunta —respondeu, virando-se para ela.

-- O que disseram sobre o seu trabalho? —Sophia esclareceu.

—Que tem um grande talento, mas até agora só foi usado por mulheres, embora não tenha havido uma única queixa sobre ela —confessou.

—Sim, de fato —disse se movendo na cadeira até que estivesse olhando para as prateleiras em frente a eles. ?Mas toda essa fama mudaria se alguém descobrisse quem eu realmente sou.

—Se refere a sua origem cigana?

—Exato. Por enquanto, minhas filhas foram respeitadas porque seu pai se casou com uma burguesa, mas... o que aconteceria se tudo viesse à tona? Tenha em mente, milorde, que a vida para nós não é tão fácil quanto é para o senhor. A sua sociedade —disse corajosamente —as rejeitaria e nenhuma delas teria um futuro adequado.

—Acho que é um assunto bem ridículo. Se tem um dom, deve ser elogiado por isso, independentemente de sua procedência ou origem —disse Logan se levantando. Colocou as mãos nas costas, apenas em torno da cintura e começou a andar pelo escritório. —Mas está certa em argumentar que essa questão não beneficiaria suas filhas. Erroneamente ainda se repara no berço em que nasce.

—Isso mesmo —disse Sophia.

—No entanto, ainda não entendo o que tem a ver a maldição que seu marido me contou sobre todo esse assunto —disse ele, virando-se para ela.

—É muito fácil de entender, milorde. —Falou olhando em seus olhos, confirmando não apenas que o jovem havia herdado a cor azul do pai, mas também encontrou certa inquietude em seu rosto. Se preocupa com o assunto? Porque motivo? —Se minha filha Anne partir, não só ela conseguirá se tornar a mulher que deseja ser, mas os cavalheiros desta cidade esquecerão

a miséria que sofremos com seus noivos e cortejarão minhas outras filhas.

Com o tempo, todas encontrarão um marido para protegê-las e ninguém se perguntará se a primogênita realmente matou seus pretendentes.

—Mas ela não os matou! —Ele exclamou um pouco irritado. —A morte chegou a eles por causa de seus maus atos!

—Qualquer pessoa sensata entenderia dessa maneira, mas nem todo mundo esconde uma mente erudita dentro de uma linda cabeça --

argumentou Sophia.

—Seu marido não tentou esclarecer as razões pelas quais eles morreram? —Ele perguntou, diminuindo seus passos abruptamente e virando para a Sra. Moore. —Ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico com sua fama.

—De fato, o senhor mesmo disse; ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico, mas de um pai —esclareceu.

—Entendo... —disse Logan novamente caminhando pensativo.

—Por mais que o tempo passe, o estigma social que Anne possui não poderá ser eliminado a menos que ela saia daqui.

—Não há outra maneira de fazê-lo desaparecer? —Bennett disse.

—Não. Como disse, até agora, minha filha só retratou mulheres porque os homens se recusam a ficar com ela. Não sei se a viu na festa da sua irmã, milorde. Se assim for, tornou-se uma testemunha desse comportamento

indescritível.

—Talvez com o passar dos anos tudo seja esquecido e ela consiga a reputação que merece —sugeriu Logan.

—Talvez, mas... o que aconteceria se, durante esse tempo, minha origem fosse descoberta? Tenho mais quatro filhas e duas delas já são maiores de idade para encontrar um marido. Se houvesse um cavalheiro na cidade que estivesse interessado em alguma delas, tenho certeza de que se perguntaria o motivo pelo qual ainda não encontraram um marido para cuidar delas. Que futuro elas terão caso se revele que sua mãe é filha de ciganos e que os pretendentes da primogênita morreram? Pensarão que foram enfeitiçados, amaldiçoados por meus ancestrais.

—Não acredito que sejam razões suficientes para um homem eliminar seus sentimentos em relação a uma de suas filhas... —disse calmamente. —Quando um homem se apaixona, ele luta contra o mundo para conseguir a mulher que ama.

—Palavras preciosas para um homem que ainda não se comprometeu —Sophia apontou maliciosamente. —Mas acredite em mim quando digo que minhas filhas têm uma marca oculta nas costas e que nenhuma teria um futuro digno se descobrissem que sua mãe é uma cigana miserável.

—Ninguém deve julgar o sangue dos outros —Logan murmurou.

—Não deveriam, mas fazem. Não pode nem imaginar o que sofrerão porque não nascera com sangue azul. Os de sua classe —apontou sarcasticamente -- não são capazes de enxergar além da linhagem das pessoas e, embora meu marido tenha uma fortuna ainda maior que a de alguns aristocratas, nunca o tratarão com a dignidade que merece. —Ela apontou sem reduzir sua raiva.

Logan franziu a testa e se rendeu ao debate porque a Sra. Moore estava certa. Se descobrissem quem realmente era, a sociedade os separaria como se tivessem a peste. Ele mesmo participou da rejeição de outros e de si mesmo. Quantas vezes negou ser a pessoa que realmente era? Talvez desde que soube a verdade sobre o seu nascimento. Mas em sua história o sangue negado era o do Marquês, por violar sua mãe até que ela ficasse grávida. No entanto, graças a Roger, havia seguido em frente e também havia esquecido que, no fundo, não era nada mais que um simples bastardo.

—Quem sabe sua origem? —Perguntou depois de ponderar sobre a parte de sua vida que o machucava.

—Acha mesmo que poderíamos divulgar um segredo de tal índole? Não me escutou atentamente quando expliquei que minhas filhas não teriam um futuro decente se alguém descobrisse que sua mãe é uma simples romani? —Ela disse com tanta raiva que suas bochechas ficaram vermelhas novamente.

—Posso assegurar que muitos daqueles que afirmam ser cavalheiros com sangue azul não são —disse Logan calmamente. —Mas respeito sua preocupação e a de seu marido, mesmo que não entenda isso --

disse ele caminhando em direção a ela.

Sophia bufou de resignação, o mesmo que Mary fazia quando retornava de uma reunião médica na qual um nobre tentava discutir uma nova descoberta científica.

—Por essa razão, gostaria de propor um acordo —começou a dizer depois de concluir que, se havia alcançado a felicidade graças ao apoio de Roger, a jovem teria a sua chance de se livrar desse resquício social.

—Um acordo? —Sophia apontou intrigada. —Qual e por que quer oferecê-lo para mim?

—Entendo sua posição como mãe de cinco filhas e até começo a entender o desespero que seu marido me mostrou algumas noites atrás, mas continuo insistindo em que não deveriam desistir de sua primogênita para que as outras irmãs possam alcançar o futuro que desejam para elas.

—Não queremos nos separar de uma de nossas filhas, milorde --

repetiu Sophia. —Mas temos a certeza de que é a melhor opção para todos.

—Minha proposta é a seguinte: se dentro de um mês, a data em que pretendo partir novamente, não conseguir que sua filha mais velha seja aceita na sociedade e alcance a reputação que merece, irei pessoalmente levá

la para Paris.

—O que irá receber em troca, milorde? —Disse sem aceitar esse compromisso ainda.

—Faça seu marido entender que não há nenhuma maldição e que o sangue que corre em suas veias não é um impedimento para suas filhas serem felizes —disse se aproximando dela e estendendo a mão direita.

—Terá muitos problemas... —ela disse duvidosamente. —Talvez não devesse se envolver nessa questão porquê...

—Haverá acordo, Sra. Moore? -- Logan insistiu, movendo levemente a mão que ainda estava estendida para ela.

—Um mês? —Repetiu, se levantando.

—Sim.

—E mudará a vida da minha filha? Isso a fará feliz?

—Prometo, Sra. Moore -- disse ele sem vacilar.

—Aceito sua proposta, milorde. Só espero que não saia prejudicado —disse finalmente.

—Acha que, diante da sociedade que nomeou, as loucuras de um futuro marquês serão levadas em conta?

Com essa pergunta, Sophia sorriu amplamente, colocou-se na frente do visconde e aceitou a mão que ele oferecia. No entanto, quando as palmas das mãos tocaram para selar esse acordo, a Sra. Moore sentiu uma

inexplicável descarga elétrica percorrer seu corpo. Por que notou que esse homem era especial? Por que estava tão confortável? O que estava escondendo? Por que Morgana o colocou na vida de sua filha? Um leve arrepio percorreu sua figura esbelta, trazendo uma satisfação e bem-estar que poucas pessoas forneceram ao toca-la. Quem era esse homem? Por que era tão familiar?

—Sra. Moore? —Perguntou Logan ao ver como seu rosto empalidecia.

—Eu... eu sinto muito...—Sophia se desculpou, recuando o suficiente para respirar. —Entenda que tudo isso me desconcertou. Talvez meu marido esteja certo em insistir que devemos tomar café antes de ter uma conversa exaustiva e racional.

—Bem, deveria ouvir o conselho de um dos melhores médicos da cidade —disse Logan, feliz por ter um acordo com a mãe de Anne.

—Eu vou —Sophia respondeu com um longo suspiro.

—Não quero tomar mais do seu tempo, Sra. Moore. —Ele apontou para ela, tomando a mão com a qual havia selado a aliança para dar um beijo casto. —Foi um prazer conhecê-la e descobrir que o Sr. Moore escolheu uma esposa digna e respeitável.

—O prazer é meu, milorde —respondeu Sophia, desconcertada com esse estranho bem-estar.

—Prometo que terá notícias minhas em breve -- argumentou Logan, dando um passo à direita para que a Sra. Moore se movesse em direção à saída.

—Estaremos esperando, milorde. Mas lembre-se de que, se em algum momento hesitar em seu acordo, não o levarei em conta.

—Não hesitarei senhora, meu juramento é sagrado —disse solenemente.

Em silêncio, acompanhou-o até a entrada onde seu acompanhante o esperava.

—Sr. Giesler —disse estendendo a mão para ele —foi um prazer conhecê-lo. Espero que da próxima vez que nos encontremos, minhas filhas saibam como se comportar.

—Certamente o farão —disse divertido.

—Espero que sim... —Sophia suspirou olhando para o segundo andar.

—Vamos? —Logan perguntou a Philip.

—Claro —disse depois de suspirar e desviar o olhar do andar de cima. Não havia descido. Desde que aquela Medusa raivosa tinha desaparecido, depois de jogar o último tubo de metal, não tinha decidido descer e isso, embora não devesse alterá-lo, o fez e muito. —Tenha um bom dia, Sra. Moore —disse enquanto fazia um leve gesto com a cabeça.

—Obrigado pela visita, Sr. Giesler —respondeu, dando um passo em direção a eles.

—Madame... —Logan disse beijando sua mão novamente.

—Milorde... —respondeu com uma ligeira genuflexão.

—Nós veremos em breve.

—Quando puder —ela respondeu antes de os dois cavalheiros se virarem para a porta, abrirem e saírem.

Sophia esperou que os dois se afastassem de sua propriedade, fechou a porta lentamente, recostou-se nela e suspirou. O que planejava o visconde? Por que assumia tantos problemas? Não entendia o motivo que o levou a se preocupar com sua filha se eles não se conheciam e só haviam estado juntos...

—Madeleine! —Gritou, cortando a respiração e andando rapidamente em direção à cozinha.


***


—Vai me dizer o que aconteceu enquanto permaneci retido no salão —disse Logan depois de colocar o chapéu e dar o primeiro passo que os levou para os arredores da residência. —A Sra. Moore enfatizou que suas filhas não tomaram café da manhã e que, por essa razão, elas se comportaram

como pequenas feras.

—Pequenas

feras?

Bela

maneira

de

mascarar

esses

comportamentos selvagens! Uma dessas donzelas apontou com um rifle para o meu peito, outra foi gritando de um lugar para outro como se o próprio diabo a tivesse possuído e outra...

—E outra? —Logan perguntou enquanto estendia o manto sobre os ombros.

—Tudo o que posso pedir é que, da próxima vez que quiser voltar, chame o índio —murmurou.

—John? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas. —Isso não prejudicará seu grande orgulho?

—O que destruiria meu orgulho é que essa terceira filha me lançasse de novo mais objetos demoníacos como este. —Philip pegou o tubo que tinha no bolso e mostrou para ele.

—O que é isso? Bala?

—Não acho que são balas porque essa bruxa os usava enrolados em seu cabelo —disse guardando-o novamente.

—E? Porque os pegou? —Perguntou Logan curioso. —Não acha que essa mulher vai descobrir que levou um? Talvez o chamem de ladrão...

—ele disse divertido.

—É uma prova! —Choramingou.

—Uma prova? Para que? —Insistiu Bennett.

—Não se lembra de que eu era um agente? Se Borsohn me ensinou alguma coisa, foi estudar a evidência de um caso e está —ele colocou sua grande mão direita no bolso da calça e apertou-o com força -- é a única coisa que precisará se, nos próximos dias, eu me transformar em pedra.

E depois dessa abordagem tão surreal, Logan soltou uma gargalhada.

IX


Felizmente para Sophia, Madeleine ainda estava entrincheirada na cozinha. Eugine fez o melhor que pôde para que tomasse um chá, mas se recusara completamente a beber um misero gole. Devia ter ficado tão atordoada com a algazarra que foi montada na casa que nem uma gota entrava em seu estômago. Isso costumava acontecer toda vez que ela sofria um episódio de terror. Até se recuperar, era incapaz de provar algo. Sophia a observou da porta e refletiu novamente sobre a conversa que teria com ela. Se não abordasse o assunto com cuidado, deixaria de comer e toda a família indagaria o motivo dessa atitude. Sua pequena Madeleine era uma criança muito frágil e retraída. Sua aparência física, apesar de muito bonita, lhe acarretava certa inferioridade em relação às irmãs e isso agravava seu comportamento reservado. Passou muito tempo observando-as e enumerando as diferenças entre elas. Sempre quis ter cabelos escuros, como Anne ou Mary, e olhos verdes, como os de Josephine. No entanto, aquela juba cor de fogo, aquelas sardas no rosto e as pupilas azuis davam-lhe uma aparência mais bonita do que imaginava. Se, em vez de ser tão tímida e assustada, ela fosse tão descarada quanto Elizabeth, teria cem pretendentes na porta de sua casa esperando serem atendidos por Randall. Mas a vida não era justa para nenhuma de suas filhas e reafirmara sua crença depois do que aconteceu

momentos antes: Anne desmaiou quando viu o visconde, assunto do qual falariam assim que recuperasse a consciência, Mary jogou aqueles rolos metálicos, que Shira a forçava usar, o cavalheiro que permaneceu atordoado na entrada, Josephine apontava para ele com a arma e Madeleine gritava como uma menina selvagem. O que mais teria para ver? Que novo espetáculo suas meninas ofereceriam se voltassem a ter uma visita? A melhor maneira de manter uma ordem adequada em sua casa era dizer a Shira que não admitiriam mais presenças masculinas, desta forma, salvaguardaria o verdadeiro comportamento de suas filhas queridas e não revelariam que tinham um caráter bastante peculiar.

Depois de ter certeza de que a melhor maneira de proteger a família era conversar com Madeleine para tranquilizá-la enquanto pensava em como devia abordar o problema com seu marido, deu vários passos para a cozinha, olhou para Eugine, que estava ao lado de sua filha, e disse-lhe:

—Deixe-nos a sós, Eugine. Vá para a sala de estar com Shira e confirme se Anne despertou do desmaio. Assim que Madeleine tomar o chá, irei verificar como ela está.

—Sim, senhora —respondeu antes de obedecer a sua ordem.

Sophia se colocou na frente de sua quinta filha e ficou olhando sem piscar. A coitada ainda tremia de medo e seu cabelo, que costumava prender num simples rabo de cavalo, estava revolto, como se tivesse sido

acariciado com desespero. Ela pegou a xícara que ainda emitia fumaça, aproximou-se e disse:

—Beba um pouco, Madeleine. Isso irá acalmá-la.

—Mãe... eu juro que eu... eu não queria gritar assim diante de estranhos ?balbuciou pensando que iria repreendê-la.

Lágrimas apareceram em seus olhos e percorreram seu rosto alvo.

Sophia estendeu os braços e a jovem, percebendo que não tinha ido para repreendê-la, mas para acalmá-la, se levantou, deu a volta na mesa e pulou em direção à mãe.

—Calma, pequena. Tudo bem... eles já se foram —falou acariciando o cabelo vermelho emaranhado. ?Eles não queriam nos machucar, só queriam falar com o seu pai, mas como ele não se encontrava, o visconde resolveu falar comigo porque o assunto que o trouxe até aqui era bastante urgente —explicou em voz baixa e relaxada.

—Mary... Mary... —ela riu. ?Mary jogou alguma coisa no cavalheiro que estava na porta. Josephine estava apontando a arma para ele, pensei que ela dispararia, e a senhora... e então Anne e aquele homem... a beijou —ela revelou finalmente.

—O que acabou de me dizer? —Perguntou segurando-a gentilmente pelos ombros e empurrando-a alguns passos longe dela.

—Esse homem a beijou e.... e eu entrei e.... descobri ... E, quando

ele olhou para mim.... Ah, é ele! —Ela exclamou depois de esconder o rosto no peito de sua mãe. —É ele! —Ela repetiu. -- É o homem que vi no meu sonho, aquele que nos libertará da maldição! —Ela exclamou.

—Tem certeza? —Ela insistiu, porque não podia imaginar que o visconde, o filho de um marquês e com uma linhagem tão azul quanto a cor de um dos vestidos que ela guardava em seus armários, pudesse ajudá-los a se livrar daquele feitiço cigano. Sua avó não lhe disse que o sangue seria puro novamente? Bem, sendo assim, a pequena Madeleine estava confusa.

—Sim, mãe —respondeu afastando o rosto do seu seio. —Não confia em mim? Acha que estou mentindo?

—Não, querida. Sei que não faz isso e confio muito em você --

declarou acariciando suas bochechas para afastar suas lágrimas. —Mas não seria prudente falar sobre esse assunto sem corroborar certos aspectos. Tudo o que sabemos é que o visconde é o irmão do Marquês de Riderland e que veio até aqui para se recusar a levar Anne em seu navio.

—Mas... na minha visão... eu... além disso, o vi beijando-a.... --

Ela gaguejou.

—Ele realmente a beijou? Viu exatamente como seus lábios se uniram aos de Anne? —Ela insistiu.

—Não, porque ele levantou o rosto quando eu apareci —ela explicou.

—Então, não podemos afirmar algo que só suspeitamos, não acha? —Madeleine arregalou os olhos e apertou os lábios contra a boca para parar de falar. —O melhor para todas é mantermos silencio, querida. Não quero que suas irmãs fiquem loucas com a ideia dessa liberdade e seu pai...

—Ela suspirou. —Sabe como é. Seria capaz de procurar por um alfinete no palheiro.

—Então, como quer que eu aja? —Ela insistiu, se afastando de Sophia e voltando a sua cadeira. —Quer que eu minta? Que apague da minha memória o que eu vi?

—Realmente a beijou? —Sophia repetiu, em pé na frente de sua filha.

—Eu juro que foi isso que vi —disse ela.

—Madeleine lembra que a maldição só vai desaparecer com um homem que tem sangue cigano e esse lorde só tem...

—Lembre-se que eu disse que ele manteve essa parte de sua vida escondida e só revelaria quando visse sua relação com Anne em perigo --

disse ela com a mesma firmeza que Mary ao falar sobre as causas da febre.

Sophia colocou as palmas das mãos na mesa e observou a filha sem piscar. Em seu rosto não havia dúvida alguma, e mais, só mostrava segurança, uma que não tivera até agora. Mas... e se estivesse errada? E se estivesse confusa? Era verdade que ela mesma sentira uma ligação estranha

com o visconde, mas ainda não sabia como nomear. O que devia fazer? Um mês. O visconde lhe pedira um mês para... fazê-la feliz e jurara por sua honra. Poderia Madeleine suportar um segredo durante um mês?

—Tem certeza da sua visão, certo? —Insistiu.

—Sim —afirmou novamente.

—Bem, sendo assim, vou te pedir um favor.

—Qual? —Perguntou, erguendo a sobrancelha direita.

—Vamos manter tudo isso em segredo até que a própria Anne descubra que o visconde é o homem que Morgana escolheu para ela —disse Sophia.

—Não quer que minha irmã saiba que ele será seu marido? O que nos libertará da maldição? —Perguntou desesperada. —Ela ficaria muito feliz em saber, então pararia de pensar em partir e se prepararia para conquistar esse homem.

—Do que gosta mais, Madeleine, que lhe digam o que está dentro de um presente antes de abri-lo ou descobrir por si mesma o que se esconde dentro?

—Descobrir por mim mesma, o que tem dentro —ela respondeu rapidamente.

E nisso sua mãe estava certa. Toda vez que seu pai lhe dava alguma coisa, Josephine se aproximava e dizia o que era antes de poder

desembrulhá-lo. Por essa razão, no último Natal, antes que alguém revelasse o que escondia seu presente, pegou-o e correu para o seu quarto.

—Bem, esta situação é muito parecida para a sua irmã. Ela não deve saber que este homem será seu marido, porque então não será uma surpresa para ela —disse com determinação.

—E se uma das minhas irmãs me perguntar por que gritei quando o vi? Eu sei que Josephine e Mary me viram entrar na sala e logo correr para cá —ela esclareceu depois de suspirar.

—Bem, dirá que ficou com medo quando viu dois estranhos em casa —disse se aproximando de Madeleine novamente para abraçá-la com força. —De acordo? —Insistiu.

—Se acha que Anne conseguirá ser feliz, farei —comentou, não sabendo muito bem se sua mãe estava agindo corretamente.

—Obrigada, querida —disse Sophia antes de beijá-la na cabeça. ?Agora, tome aquele chá antes que fique frio e vamos ver se suas irmãs estão mais calmas.

E no exato momento em que Madeleine se separou de sua mãe para tomar o chá, a porta da cozinha abriu com um estrondo, causando outro grande susto.

—O que aconteceu mãe? —Elizabeth perguntou nervosa. --

Josephine me disse que Madeleine estava gritando e que Mary estava em

perigo porque um cavalheiro não parava de olhar para ela de camisola.

—Plantou suas sementes? Colheu mais flores? Deveria encher os vasos na entrada porque as rosas estão um pouco murchas —Sophia disse tentando não responder às perguntas no caso de Madeleine ainda não ser capaz de manter a boca fechada.

—Peço-lhe que não mude de assunto. Quem veio? Quem eram esses homens? Que motivo eles alegaram para se apresentar a essa hora? Por que não me avisaram? —Ela disse, irritada, imaginando que era algum pretendente perguntando por ela e sua mãe recusou a sua presença.

—O senhor Giesler e o visconde de Devon foram os cavalheiros que nos visitaram —Sophia finalmente respondeu quando viu Madeleine pegar a xícara com as duas mãos e olhar dentro dela.

—Logan? —Ela disse, erguendo as sobrancelhas.

—Logan? —Retrucou a mãe, franzindo a testa ao ouvir como a terceira de suas filhas falava com tamanha familiaridade do visconde.

—Me desculpe mãe, queria dizer o visconde. O que sua Excelência queria? —Se corrigiu rapidamente. —Queria me informar que Natalie voltou da viagem que tinha planejado?

—Não —sua mãe negou enfaticamente. —A intenção do visconde era deixar claro que não levaria Anne em sua próxima viagem.

—O papai pediu que ele a levasse para Paris? Esse era o homem

com quem ele falaria? —Ela gritou de olhos arregalados, assombrada com a loucura que seu pai fizera.

—De fato, há algum problema nisso, Elizabeth? —Sua mãe exigia saber depois de ver a filha tão perplexa.

—Mãe, todo mundo sabe que o visconde não pode viajar com mulheres em seu navio.

—E, por que não pode viajar com mulheres? —Sophia insistiu.

—Porque é o maior libertino de Londres desde que o atual Marquês de Riderland e seus amigos decidiram se casar. Nenhum pai sensato ofereceria a proteção de sua filha nem a ele ou a seu primeiro a bordo, o Sr.

Giesler —disse Elizabeth.

Então Madeleine soltou um grito e, quando as duas olharam para ela para descobrir o que estava acontecendo, ela disse:

—Queimei meus lábios com chá.


***


Não queria abrir os olhos. Embora escutasse as vozes de Shira e Eugine, não queria abri-los para o caso de encontrá-lo novamente. Se sentia tão idiota, tão infantil, que a vergonha não permitia que movesse um só dedo das mãos. O que o visconde teria pensado ao observar como desmaiara

quando o viu entrar? Que opinião concebeu sobre ela? Só de pensar nisso, sentia como suas bochechas queimavam e seu corpo tremia. Foi o pior momento de sua vida e, infelizmente, tivera alguns depois da morte de seus noivos.

Sem prestar atenção à conversa que as duas servas mantinham sobre o homem que foi agredido em frente à entrada da casa por suas irmãs, Anne só foi capaz de lembrar o momento em que seus olhos estavam fixos nele e na maneira como ele a observava. Ele parecia satisfeito em vê-la e tão surpreso quanto ela. Mas isso era real ou tinha sonhado? Não tinha mais certeza de nada...

Respirou fundo para se acalmar. Precisava ganhar algum controle sobre si mesma novamente e colocar seus sonhos equivocados fora de sua cabeça. Embora fosse incapaz de fazê-lo. Como poderia apagar de sua mente essa aparência magnífica? Ele a deixou tão impressionada que perdeu suas forças. Sem mencionar que, quando ele entrou pela porta, quando deu aquele passo para a sala de estar, sua mente, sua mente perversa e odiosa, o imaginou naquele prado, nu, beijando-a e tocando-a por toda parte. Como se deixara levar pela luxúria tão facilmente? Por acaso perdera seu raciocínio? «Morgana - pensou - por que o conduziu para mim? Por que me faz sofrer? Não tive o suficiente? Deveria morrer para aplacar este sofrimento? "

—Senhorita, está se sentindo melhor? —Shira perguntou.

Diante da pergunta e do fato de que ela se movera inquieta, lembrando-se dele ao seu lado daquele jeito tão lascivo, Anne abriu os olhos, abriu as mãos e se deixou ajudar.

—Está bem? Precisa de mim para lhe trazer um chá? —Eugine interrompeu.

—Não, obrigada. Estou muito melhor. Sabe onde minha mãe está? —Ela perguntou enquanto tocava o cabelo que havia caído do coque.

De repente, aquela mão direita começou a queimar. Assustada, olhou para ela e sentiu uma estranha vermelhidão nela. Mas quando a levou aos olhos para confirmar a formação daquele círculo vermelho, seus lábios também arderam.

O que acontecia? Por que sentia que sua boca e aquela mão não pertenciam mais a ela? O que acontecera durante o seu desmaio?

—Já acordou? —Ela ouviu a voz de sua mãe na entrada da sala.

—Mãe? —Falou olhando para ela.

—Estou aqui —respondeu. Caminhou rapidamente até Anne e sentou-se ao lado dela. —Se recuperou?

—Mãe! Que vergonha! —Exclamou, se jogando em seus braços. —Como eu pude... —E não terminou a frase porque observou como as servas olhavam-na ansiosas por informações.

—Eugine, prepare o salão matinal. Nós temos que tomar o

desjejum antes de seguir com o plano combinado. Shira suba até o quarto de Mary e não saia até que esteja bem arrumada. Informe a ela que, já que atrasamos a hora da partida, virá conosco —disse com autoridade.

—Sim, senhora —responderam em uníssono antes de saírem da sala e deixarem-nas sozinhas.

As duas ficaram em silêncio até a porta se fechar. Foi então que Sophia se afastou da filha, foi até a janela e pensou no assunto que iriam discutir. Não seria fácil perguntar sem rodeios se o visconde de Devon era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Foi horrível —Anne começou enquanto tentava se levantar. --

Mas garanto que nem eu mesma esperava a reação que tive. Aquele cavalheiro terá pensado que...

—É o visconde de Devon —ela corrigiu. —O irmão de Natalie Lawford.

—Seu irmão? —Perguntou, sentando-se de repente no sofá.

Ela suspeitava que fosse parente do marquês, mas nunca imaginou que fosse um irmão. Agora, como essas informações afetariam seus sonhos? Voltaria a vê-lo durante as noites depois de confirmar que era um homem inatingível? Como poderia tira-lo da cabeça? Só conseguiria partindo, por esse motivo, seu desejo de fugir de Londres aumentou.

—O conheceu? —Sophia retrucou, caminhando até ela.

—Não pessoalmente —respondeu enquanto descansava os pés no chão novamente. —Eu o vi discutindo com o Marquês de Riderland na outra noite. Mas até este dia, não sabia que existia.

—Bem, ele existe e, conforme constatei, sua irmã Elizabeth o conhece bem o suficiente —disse mordazmente.

—Em que sentido? —Perguntou, arregalando os olhos e notando como seu coração estava batendo rápido.

—Em um sentido fraternal —esclareceu. —Segundo ela, o visconde é um homem leal à sua família e amigos.

—Se ela diz isso... —murmurou um pouco ciumenta. Olhou para os pés, moveu-os devagar enquanto pensava se era adequada a pergunta que rondava sua cabeça, mas a curiosidade era tanta que a fez sem pensar: —O

que o trouxe para a nossa casa?

—Se lembra de que seu pai, depois de ter aceitado a decisão de manda-la para Paris, procurou um navio que partisse nas próximas semanas de Londres?

—Sim —respondeu sem tirar os olhos dos sapatos brancos.

—Bem, pediu a ele —disse atenta à reação que sua filha mostraria.

—Lorde Bennett? —Perguntou, arregalando os olhos e dirigindo-os para a mãe com espanto.

—O mesmo —assegurou com um leve aceno de cabeça.

—Não existem mais homens em Londres? Como o nosso pai pode ter o dom do absurdo? Não há mais capitães, mais barcos, mais pessoas nesta cidade a quem recorrer? -- Gritou desesperada.

—Mas... —interrompeu Sophia, levantando o dedo indicador da mão direita para silenciá-la.

—Mas? —Anne perguntou com expectativa.

—Ele se recusou a fazê-lo.

—Graças a Deus! —Disse Anne com um longo suspiro. —Não seria capaz de ficar ao lado desse homem por um único segundo.

—Por quê? —Sophia perguntou, aproximando-se dela. —Pelo que vi, é um homem honesto.

—Por que... desmaiei quando ele apareceu? O que pensará de mim? —Soltou horrorizada.

—Nada.

—Nada? —Anne repetiu dando um pulo. —Perdi a consciência ao vê-lo!

—Não será a primeira nem a última a fazê-lo —ela disse mordazmente. —Pelo que diz sua irmã, ele é um homem que levanta paixões onde quer que apareça.

—Perfeito! E meu pai volta a fazer das suas me enviando às

garras de um homem libertino! —Exclamou desesperada.

—Anne, por que desmaiou quando o viu? —Ela rapidamente mudou de assunto.

 

—Como? —Perguntou se virando para ela com tanta força que a saia do vestido rodou entre as suas pernas.

—Responda.... Por que agira de maneira tão inadequada? --

Persistiu sem afastar os olhos da filha.

—E as vertigens têm sempre uma explicação lógica? —Se defendeu.

—Bem, eu disse ao visconde que não tinha feito o desjejum e que, devido a isso, sofreu um leve atordoamento, mas temo que não seja o motivo correto, estou certa? —Continuou obstinada.

—E ele acreditou?

—Claro! —Disse com firmeza. —Por que duvidaria das minhas palavras?

—Menos mal... —sussurrou para si mesma. Colocou as mãos no estômago, como se a desculpa de sua mãe também servisse para que não precisasse lhe contar a verdade, abaixou a cabeça e declarou: —Com certeza foi isso. Não tomei o chá antes de falar com a senhora.

—Acha que eu sou tola, Anne Moore? —Soltou a mãe zangada. —Diga-me o que aconteceu de uma vez! E nem pense em mentir

para mim, por muito que seja uma mulher adulta irei castigá-la —disse.

—O que quer que eu diga mãe? —Perguntou levantando o rosto para olhá-la.

—A verdade —disse Sophia. —Preciso que seja honesta comigo porque eu e o visconde selamos um acordo antes dele sair.

—Um acordo? —Retrucou, arregalando tanto os olhos que poderiam sair de suas órbitas.

—Sim. Ele veio aqui para devolver o envelope que seu pai lhe ofereceu. Em meio a sua negativa categórica, perguntei se ele conhecia outra pessoa honesta que pudesse levá-la a Paris e sabe como ele agiu?

—Não —murmurou.

—Ficou furioso. E não sei que diabos está acontecendo entre vocês e nem quero perguntar! —Gritou. -- Mas deve esclarecer o motivo pelo qual o visconde me pediu um mês para fazê-la feliz.

—Ele pediu isso? Por quê? O que quer? —Perguntou sem fôlego.

—Não sei, embora tenha medo de que você saiba a resposta --

assegurou-a com firmeza.

Anne continuou com as mãos no estômago. Ele começou a rosnar, como se quisesse eliminar o pouco que abrigava nele. Caminhou lentamente até o sofá, onde alguém a havia deitado, pegou o lenço laranja como se lhe desse a força necessária para confessar e respirou.

—Anne, seja o que for, estou aqui para ajudá-la —disse depois de sentar ao seu lado e segurar o lenço nas mãos. —Juntas lutaremos contra todos os perigos que apareçam em sua vida.

—Contra todos? —Disse virando o rosto, permitindo que sua mãe observasse as lágrimas que vinham de seus olhos.

—Contra todos —Sophia repetiu solenemente.

—E como podemos lutar contra o homem que aparece nos meus sonhos?

—Com paciência e com muito amor —assegurou antes de abraçá

la.

X


Uma vez que ambos estavam em frente ao portão de Whespert, olhou de relance para Philip. Seu amigo estava absorvido em algum pensamento irritante que o fazia franzir a testa e apresentar uma cara azeda. Supôs que ainda estava pensando sobre o que aconteceu na casa dos Moore. No entanto, não achou um episódio desagradável, mas exatamente o oposto. A conversa que tiveram durante a caminhada foi tão engraçada que sua mente esqueceu do beijo que roubou da primogênita do médico e da alucinação que teve quando o fez. Mas uma vez que se viu em frente à sua residência e Giesler não tinha mais nada para contar, a realidade retornou, assim como a memória do acordo que fez com a esposa do médico. Por que havia oferecido tal loucura? Um mês? Como poderia, em tão pouco tempo, colocar a jovem no lugar que havia prometido? Por que agira tão impulsivamente? Talvez o desespero da mãe, depois de confessar o que aconteceria se sua verdadeira procedência fosse revelada, o fez reagir de maneira tão impetuosa.

Na verdade, a Sra. Moore não estava errada. Se alguém descobrisse que o famoso médico casou com uma cigana e não com a filha de outro burguês, não só a reputação do médico estaria em risco, como suas filhas sofreriam uma rejeição social que acabaria arruinando a família. Assim,

a única razão pela qual se ofereceu para ajudá-los não era outra senão empatia, e isso não abrangia nenhum sentimento estranho por Anne.

Ele mesmo, por muitos anos, temeu que as pessoas de seu convívio murmurassem sobre a possibilidade de ele não ser um filho legítimo dos marqueses. Infelizmente, a falecida marquesa ameaçou Roger a revelar a verdade e interromper tudo o que ele havia construído com tanto esforço. No entanto, uma vez que ela morreu, seu irmão confirmou que a mulher traiçoeira havia levado o segredo ao túmulo e que a partir daquele momento ele deveria esquecer seu passado e se concentrar no presente. Ainda assim, todos os dias se colocava em frente ao espelho e contemplava o reflexo de quem ele realmente era: um bastardo, filho de uma mocinha que não superou o parto e morreu ao dar à luz.

—O que pretende fazer agora?

A pergunta de Philip tirou-o de suas reflexões. Olhou para ele sem piscar, como se não reconhecesse a pessoa ao seu lado.

—Tenho que pensar no acordo que propus à senhora Moore --

respondeu. —Quanto mais cedo descobrir como oferecer à jovem o reconhecimento que merece, mais cedo poderei voltar à minha antiga vida --

disse pensativo.

—Se eu estivesse em seu lugar, recusaria a todo custo me encontrar novamente com uma filha daquele casal. Mesmo que não acredite

na maldição, eu testemunhei isso. Essas moças são amaldiçoadas —disse ele, colocando a mão no bolso, onde guardara o tubo de metal e apertando-o com tanta força que quase o dobrou ao meio.

—Não seja teimoso. Sabe tão bem quanto eu que o que aconteceu na casa dos Moore não tem nada a ver com essas bobagens que está falando. Admita de uma vez por todas que nossa presença provocou uma tremenda algazarra —resmungou antes de avançar pelo caminho de seu grande jardim. E já que quer se colocar no meu lugar, me colocarei no seu para cuidar da sua língua quando falar sobre elas. Acredito que elas sofreram muito com a miséria que a morte desses homens trouxe, para continuar a adicionar mais tristeza em suas vidas. Além disso, lembre-se de que o único interesse que esses pais têm é casar suas filhas e, à medida que mais testemunhos falsos forem divulgados, eles nunca conseguirão fazê-lo.

Claro, guardou para si o que aconteceu com a mais velha das irmãs depois de beijá-la. Sua mãe havia proclamado que ela tinha o dom de pintar, mas ele tinha vivido em sua própria carne outro muito diferente. Como poderia tê-lo feito projetar essa visão mesmo quando estava inconsciente? Ela teria mais habilidades do que a mãe confessou? Poderia se encontrar em um lugar onde apenas ciganas feiticeiras haviam nascido?

—Cinco! —Philip exclamou revirando os olhos. —Tem que casar as cinco! —Acrescentou com a mesma ênfase. —E uma delas é tão malvada

quanto a terrível Medusa. Quem poderá se casar com essa mulher? Só um louco terá a coragem de se ajoelhar na frente dela e pedir que se torne sua esposa! -- Gritou fora de si.

—Deduzo, velho amigo, que para apaziguar o trauma que sofremos, ambos precisamos de uma bebida. Não é todo dia que mulheres lhe jogam tubos de metal, apontam para o seu peito ou gritam por quão desinteressante é —Logan disse sarcasticamente quando Kilby, atento como sempre, abriu a entrada principal.

—Aquela menininha não gritou por minha causa! —Philip se defendeu. Que seu amigo tenha atacado sua atração masculina doeu mais que um chute na canela. Não passou muito tempo treinando e exercitando um corpo tão grande para ser ridicularizado. —Se bem me lembro, aquela bruxa ruiva gritou quando abriu a porta do salão em que você estava. —Indicou, apertando os olhos na hora em que estava tirando o paletó para oferecê-lo ao mordomo. -- O que estava fazendo? Não me disse que a mulher estava inconsciente? Levitou? —Diante dessa pergunta, ele arregalou os olhos. --

Aquela mulher podia sair do chão voando?

—Sim, claro! E não a viu passando pelo corredor montada em uma vassoura? —Murmurou. —Não diga bobagem, Philip. As irmãs Moore não são amaldiçoadas, nem lançam tubos envenenados, nem serão vistas no meio do jardim fazendo poções malignas. —Virou-se para Kilby para que o

ajudasse com o manto, colocou-o no antebraço e virou-se para Giesler para pegar a jaqueta. —Só precisam de uma pessoa que acredite nelas e que as ajude.

—Bem, nesses momentos, o que preciso é que meu bom amigo abra a porta da adega e me deixe escolher o melhor licor. —Colocou a mão no ombro de Logan e caminhou com ele até a biblioteca, o lugar onde eles ficariam bêbados até que nenhum deles se lembrasse do que tinha acontecido naquela manhã.

—Se está com tanta sede, pode ir ao clube —Logan ofereceu divertido. -- Não quero ter que embarcar em alguns dias porque minhas reservas de vinho do Porto acabaram prematuramente.

—Eles me negaram a entrada no clube por seis meses —disse Philip, puxando o amigo contra ele em um abraço camarada.

—Bentinck? —Exclamou Logan levantando a sobrancelha direita. Não poderia ser outra pessoa. Implicava com Philip desde que jogou cartas pela primeira vez, quando tinha apenas quinze anos de idade, e o acusou de trapacear na frente de todos os convidados do Reform.

—O mesmo —respondeu, desenhando um enorme sorriso depois de recuar e bater no peito como se fosse um gorila celebrando o triunfo de uma disputa.

—Pode esvaziar a adega de uma das suas amantes —ofereceu

enquanto abria a porta da biblioteca e permitia que ele entrasse.

—Mais mulheres? Não obrigado. Com a visita de hoje, tive o suficiente por alguns dias. Além disso, tenho que confirmar se essa aspirante a Medusa não me envenenou —resmungou, dando um passo para dentro.

—Não ficará doente exceto por....

—Milorde...

Kilby tentara informar que o marquês de Riderland estava em casa, mas não ousou interromper a conversa, a não ser quando os viu ir à biblioteca. Uma vez que eles fechassem aquela porta, pediriam uma caixa do melhor uísque e não poderiam ficar de pé por alguns dias.

—Qual é o problema, Kilby? —Logan perguntou se virando para o mordomo.

—Quero te informar que sua Excelência o está esperando no ginásio. Chegou antes das onze e, por mais que tenha insistido que não poderia recebê-lo hoje, porque tinha saído para cuidar de um assunto importante, ele não foi embora.

—Está sozinho? —Exigiu saber enquanto seus olhos estavam ampliados pela excitação de descobrir que seu irmão não havia esquecido o encontro de toda quinta-feira.

—Não, milorde. Vossa Excelência pediu ao jovem jardineiro que se apresentasse diante dele enquanto esperava seu regresso —esclareceu,

expressando certo temor em suas palavras.

Logan deu um grande sorriso quando ouviu que Roger começara a treinar com um de seus criados. Talvez, quando aparecesse na frente dele, uma hora depois de sua chegada, estaria tão exausto pela luta que poderia vencê-lo.

Quando comprou Whespert, a primeira coisa que fez foi construir aquele ginásio localizado na parte de trás da residência. Lá ele ensinava esgrima, treinava no ringue que tinha do lado direito e continuava praticando seu passatempo favorito: lançamento de facas. Olhou de soslaio para Philip que sorria da mesma maneira que ele. O brilho que seus olhos consagravam só podia indicar uma coisa: diversão.

—Sente vontade de dar uma boa surra naquele velho? —Sugeriu a seu amigo, sabendo a resposta.

—Pensei que nunca me perguntaria! —Exclamou, agitando os cílios como se fosse uma mulher tentando seduzir um amante.

Com passos longos e rápidos, os dois homens foram em direção ao salão de vidro, que chamavam de ginásio. Enquanto caminhavam em direção àquele lugar, os dois tiraram suas roupas: jaquetas, gravatas, coletes e até camisas caíram no corredor limpo e brilhante. Como sempre, não ficaram muito tempo nos ladrilhos de cor marfim, porque as donzelas, sufocadas ao ver como dois homens tão grandes e esbeltos se comportavam como crianças,

as apanhavam antes de se sujarem.

—O que diabos fez para não lembrar que hoje é quinta-feira? --

Gritou assim que viu seu irmão aparecer na porta.

Roger tinha o corpo do jardineiro contra o dele. Seus braços tinham rodeado o pescoço do moço e ele tentava afastá-los apertando os antebraços do marquês com as mãos.

—Bom dia irmão. Saí para atender a um assunto urgente. —E

logo depois de falar, caminhou em direção ao marquês com os punhos erguidos.

Roger, prevendo suas intenções, jogou seu oponente para a direita, libertando-o daquela amarração abrupta e se defendendo contra o ataque de Logan. Quando o punho do visconde ia tocar seu rosto, ele se virou e aproveitou a confusão para dar um soco no torso nu.

—Um assunto urgente? —Respondeu no mesmo instante em que pulava para trás, exibindo o brilho do suor que a parte superior de seu corpo mostrava pelo treinamento e fazendo seu cabelo loiro, molhado do esforço, se mover como um leque. —Que urgência poderia fazê-lo esquecer nossa reunião semanal? —Adicionou outro golpe quando Logan tentou atacá-lo por trás.

Imediatamente, o rapaz espancado se dobrou ao meio e olhou suplicante para o amigo. Levou a mão esquerda para a mecha de cabelos

negros que se soltou do rabo de cavalo e observou os movimentos do titã Giesler.

—Mulheres —Philip acrescentou, levantando os punhos para enfrentar o marquês, enquanto Logan se recuperava daqueles golpes duros.

—Lady Rose voltou a sua vida? —Perseverou, respondendo ao convite de Philip, colocando-se em guarda.

—Não, acredito que Lady Rose tenha deixado de existir para o seu irmão, Excelência —disse Giesler antes de acertar a mão direita no Marquês.

Colocou o antebraço esquerdo como escudo e, quando o terceiro impacto de Philip atingiu aquela parte de seu corpo, Roger sorriu e deu um forte golpe no queixo do titã loiro. Embora, para seu pesar, não o tenha movido do chão. A única coisa que Giesler fez, depois do impacto, foi levar a mão direita até o queixo e movê-lo da direita para a esquerda.

—Vejo que meu irmão ouve meus conselhos... —o marquês comentou dando vários passos para trás. Olhou para o alemão de cima e para baixo e sorriu. De fato, Logan escolheu a pessoa mais qualificada para cobrir suas costas. O peito do gigante era duas vezes maior do que o dele e havia montanhas de músculos em seus bíceps.

—Estou ciente disso —Logan comentou sobre o assunto de Philip atacando seu irmão pelas costas.

—Sou mais velho, mas ainda estou em forma—comentou brincando quando viu que, depois de fazer uma pequena pausa, seu irmão colidiu com o alemão. Evelyn cuida de mim corretamente.

—Vou pedir à minha amada cunhada que deixe Londres por algumas semanas —disse Logan, virando-se para encarar seu irmão novamente.

—Minha esposa não vai a lugar nenhum sem mim. —Roger se afastou um pouco, pegou-o pelos punhos e jogou-o no chão, fazendo as costas de Logan estalarem ao tocarem o piso frio.

—O que foi isso? —Disse Philip diante da manobra que o marquês fez.

—Isso se chama w u shù[4] —disse Roger com orgulho. -- Yeng vem praticando esse tipo de luta com Evah desde que ela voltou de seu país e eu também queria aprender.

—Permite

que

sua

filha

aprenda

a

lutar?

--

Philip perguntou incrédulo.

As mulheres estavam mudando, elas não eram as donzelas que precisavam ser salvas. Naquela época, elas lutavam com os punhos e com o que usavam para enrolar seus cabelos.

—Minha filha, Giesler, está sempre em perigo porque é uma Bennett e precisa se defender contra as ameaças que a perseguem —afirmou

Roger, estendendo a mão para o irmão.

—É verdade —disse Logan, aceitando a ajuda para se sentar. --

E, por essa razão, minha querida sobrinha foi instruída pelos dois melhores lutadores que conhecemos: o índio e o chinês. Agora, Evah poderia matar um homem, com apenas um dedo, se ele quisesse beijá-la sem a autorização de seu reverenciado pai.

—Ninguém ousará fazer uma coisa dessas se quiser continuar respirando —disse Roger soberbo.

Um sorriso arrogante cruzou o rosto do pai orgulhoso. Sua amada filha havia herdado a beleza de Evelyn, mas a natureza provocativa era inteiramente sua e esse era o maior perigo que ela poderia enfrentar.

Logan olhou para ele por um curto período de tempo, imaginando se seria a melhor hora para expor que sua amada Evah, sua tenra e inocente filha, era tão apaixonada quanto todos os que tinham sangue de Bennett e que durante a festa de Natalie ouviu como ela beijava Terry, o primogênito de seu sócio Leopold.

—Que mulher aquece sua cama agora? —Perguntou o marquês para Logan enquanto voltava os punhos para ele de novo.

—Não há nenhuma mulher —disse oferecendo-lhe outro golpe que, por sorte, foi certeiro.

—Cinco! —Philip disse depois de aplaudir Logan por aquele

impacto de sorte.

—Cinco? Rompeu seu relacionamento com Lady Rose porque decidiu manter cinco novas amantes? —Roger perguntou ao tentar devolver o reverso. —Não pode se contentar com uma?

—Elas são irmãs... —Logan argumentou, esquivando-se daquele ataque.

—Quer manter um idílio com cinco irmãs ao mesmo tempo? --

Disse o Marques confuso. Naquele momento, ele se esquivou de um novo desafio, levantou as palmas das mãos e parou a luta no ato. —Explique-se agora mesmo! —Berrou colocando as mãos em cada lado da cintura, brilhando de suor.

—Não podia ficar de boca fechada? —Gritou para Philip, que tinha os braços cruzados defensivamente. —O que está querendo? Que meu irmão me faça mudar de ideia?

—O

que

está

acontecendo,

Logan

Bennett?

--

Roger rosnou adotando na mesma posição que Giesler. —Dê-me uma explicação razoável antes de me ver obrigado a dizer a Evelyn que meu amado irmão não levou a amante, com quem viveu por dois anos, porque decidiu —enfatizou —jazer sob a horrível repugnância da poligamia.

—Está equivocado... —o visconde resmungou. Virou as costas para eles, caminhou em direção a uma das cestas da sala e pegou várias

toalhas.

—Bem... vá em frente, vamos conversar! —Roger pediu um tanto irritado. —Preciso de uma resposta coerente imediatamente! —Exigiu, adotando a atitude de pai.

—Nosso estimado lorde decidiu visitar a educada e gentil família Moore esta manhã —começou Philip, sarcasticamente. ?E esse casal respeitável tem cinco filhas adoráveis —esclareceu com aborrecimento.

—Por que apareceu na casa dos Moore? Está doente? --

Perguntou o Marquês enquanto estendia a mão para a toalha que Logan atirou nele.

—O Sr. Moore veio me ver várias noites atrás. Desejava que, na próxima viagem, eu levasse sua primogênita no meu barco —começou a explicar enquanto caminhava na direção deles.

—Está falando sobre a jovem retratista? Por que quer tirá-la de Londres? Não tem clientes suficientes? Deixaram de contratá-la? —Roger perguntou enquanto limpava o suor do rosto e do peito.

—Segundo parece, a mulher é amaldiçoada e o bom pai quer se livrar dela porque o impede de encontrar um marido para as outras... —Philip não terminou sua exposição porque a toalha que Logan jogou o atingiu com força no rosto.

—Ela não é amaldiçoada e não é a causa de nada —resmungou o

jovem Bennett. —A moça, como disse, é uma excelente pintora e eles acham que, se ela deixar Londres, poderá ter a fama e o prestígio que merece.

—Eu não entendo... —murmurou Roger, olhando de um e para o outro. —Ela está amaldiçoada ou anseia por um futuro melhor?

—Não consigo entender depois do que aconteceu com aqueles cavalheiros —disse Philip, jogando a toalha encharcada de suor no cesto de vime que tinha as suas costas. Ele jogou os braços para trás, como se precisasse de mais espaço em suas costelas para respirar depois de lembrar da jovem Medusa e seus rolos novamente. Por que diabos não conseguia tirá-la da cabeça? Ficou inebriado ao pensar que ela não estava usando nada sob aquela camisola? Ou talvez ele se mantinha em estado de alerta no caso de ficar doente logo? O que quer que fosse, a senhorita Mary Moore estava dentro de sua mente e não podia eliminá-la como fazia com qualquer amante.

—Primeiro de tudo, investiguei as mortes dos seus noivos e....

—Seus pretendentes morreram? —Soltou Roger, abrindo bem os olhos e interrompendo seu irmão.

—Dois, Excelência. Morreram os dois únicos homens que ousaram desafiar essa... —Philip ficou em silêncio de novo porque Logan, traiçoeiramente, o atingiu de lado.

—Nenhuma maldição! —O visconde exclamou com raiva. --

Aqueles cavalheiros procuraram a própria morte! -- Continuou com raiva

?Ela é uma vítima do desempenho de dois homens absurdos!

Queria bater em Giesler de novo, mas este evitou o golpe, agarrou-o com força e virou-o para o marquês.

—Deixando essa suposição de lado —Roger começou calmamente. ?O Sr. Moore não foi cauteloso o suficiente para procurar outro dono de um navio?

—Por que deveria fazer isso? —Disse Logan se esforçando para se afastar de Philip. —Não acredita que eu poderia protegê-la até que desembarcasse no país ao qual desejam enviá-la? —Deu um passo à frente, depois de atingir seu objetivo, virou-se para o amigo e olhou-o como se quisesse arrancar seu coração.

—Os homens iriam se revoltar se houvesse uma mulher em um navio! E essa maldição seria cumprida em alto mar! Nós nos tornaríamos um navio fantasma, cercados por cadáveres e seríamos devorados por essa mulher e sua infeliz irmã do diabo! —Exclamou Giesler dando um passo para trás. Se sua experiência não o enganasse, como ele não fechava a boca, o que não faria para salvar seu companheiro, este tentaria acertá-lo novamente.

—Use esse tom de novo para falar sobre ela e ficará sem dentes

—alertou Logan, levantando os punhos.

—Chega! —Roger interveio que, espantado com o olhar que seu irmão oferecia ao seu melhor amigo, resolveu colocar a paz entre os dois e

esclarecer, de uma vez por todas, o que tinha acontecido. —O que diabos aconteceu naquela casa para manter esse comportamento tão desprezível?

—Quer que eu explique, Excelência? —Disse Philip sarcasticamente.

—O avisei! ?Logan gritou antes de pular na direção do amigo.

Como duas crianças, eles começaram a se socar. Roger, a princípio, permitiu essa atitude infantil por alguns minutos, mas quando descobriu que havia sangue em ambas as bocas, se colocou ao lado deles e os removeu bruscamente.

—Ele fez um acordo com a Sra. Moore —disse Philip enquanto afastava o sangue de um dos lábios para longe com as costas da mão.

—Um acordo? —Roger perguntou ao irmão, que fez o mesmo que Giesler. —Que acordo fez com essa família, Logan?

—Quero mostrar a esse pai que não há nenhuma maldição. Que tudo aconteceu de uma forma acidental e que a jovem pode encontrar um marido quando e onde ela quiser —disse sem qualquer preocupação.

—É melhor comprar um colarinho de alho ou dizer ao seu irmão onde quer ser enterrado se for se aproximar dela de novo —disse Giesler, desesperado.

—Não teve o suficiente? —Retrucou Logan dando um passo em direção ao amigo, mas os dedos de Roger pressionaram seu braço esquerdo,

impedindo-o de começar outra briga.

—O que pretende fazer? Como vai conseguir o que prometeu? --

Quis saber o marquês sem soltá-lo.

—Se o que eles querem é que a moça consiga o prestígio que ela merece, eu darei a ela —começou a dizer mais calmo. -- Não tenho dúvidas de que, se conquistar a fama que deseja, a senhorita Moore terá milhares de pretendentes na porta de sua casa —disse muito seguro de si mesmo.

—E o dono do coche funerário esfregará as mãos quando esses imbecis estiverem à sua porta! —Philip gritou com raiva.

—Giesler, silêncio! —Roger repreendeu-o como a uma criança pequena.

—Excelência —disse Philip em uma voz mais calma. —Seu irmão, meu amigo, que usou meu corpo como escudo em muitas ocasiões --

enfatizou —não pensa com clareza. Não só a primogênita está amaldiçoada, mas o resto das irmãs também. Sofri, na minha própria carne, a ira de uma bruxa —disse sem respirar.

—Neste momento, vamos nos concentrar na filha mais velha e teremos tempo para as outras —disse Roger, adotando a atitude do marquês que era. Se virou para Logan, que ainda estava segurando seus punhos tão apertados que suas juntas ficaram brancas. —Como conseguirá que uma pintora consiga a fama que deseja nesta maldita cidade? -- Insistia em

descobrir.

Roger sabia que ela poderia ser a melhor artista de Londres, que poderia ter nascido com uma habilidade sem precedentes, mas temia que mesmo a sociedade de Londres não estivesse preparada para que uma mulher ocupasse uma posição superior à de um homem, a menos que fosse a cortesã mais experiente de um bordel de prestígio.

—Não sei... —Logan murmurou girando em seus calcanhares e parado em frente à porta. —Estou pensando nisso...

—Poderia pedir a ela para retratá-lo —disse Philip sarcasticamente. —Não me disse que só pintava rostos de mulheres ou crianças? Bem, se aceitar um contrato de trabalho seu, poderia ser o precursor de outros cavalheiros. Não só as mulheres devem exibir seus belos rostos na entrada das casas —acrescentou com violência. -- Assim, todas as casas terão um retrato dos homens que vivem nelas e.... —deu um sorriso largo --

e se não estão, os amantes dessas tristes viúvas poderão ver o rosto daquele que construiu a casa em que se deitará com sua antiga esposa.

—Ou pode pintar minha querida Evelyn —explicou Roger como uma alternativa. —Certamente ela ficará encantada e, desta forma, os viciados em fofocas sociais permanecerão de boca fechada.

—Que quer dizer? —Logan perguntou se virando para eles.

—É um Bennett e sabe para o que nossos ancestrais masculinos

se dedicaram. Se fizer essa menina ficar em sua casa mais do que estipulado como correto, seu prestígio seria arruinado, assim como sua honra.

—Verdade... —Philip refletiu, relaxando com o julgamento razoável do marquês. —Não posso nem imaginar os prós e contras que ofereceriam sobre a pintora e o visconde. Seriam semanas, meses e até anos para debater sobre quando, como e por que essa mulher conseguiu o que as outras não conseguiram. Sem mencionar como sua última amante aceitaria a notícia. Tenho certeza de que Rose perguntaria sobre ela e arrancaria seus olhos assim que a tivesse na sua frente. Embora também... —disse enquanto tocava o queixo coberto por um arbusto de barba loira —essa moça possa ser protegida pela discípula de Medusa. Certamente Rose virará pedra quando notar o estranho penteado que usa sobre sua cabeça. —E depois dessa afirmação, soltou uma gargalhada enorme.

—Deve pensar sobre este assunto com calma e não agir com pressa —disse Roger, colocando a mão esquerda no ombro do irmão. —Não quer se ver na obrigação de casar com ela por esse absurdo, certo?

—Casar? Que estupidez! Logan não pode se casar! Certamente ele prefere ter varíola a viver com aquela moça pelo resto de sua vida! --

Philip exclamou enquanto se afastava do ginásio.

Mas o marquês não escutou as frases dolorosas de Giesler. Não conseguia desviar o olhar do irmão e, se não estava enganado, parecia que a

ideia de ficar mais tempo com essa mulher misteriosa não era tão desagradável quanto o amigo pensava.


***


—Que

Deus

tenha

piedade

de

nós!

—Exclamou

Randall sem parar de andar de um lado para outro, enquanto acariciava seu velho rosto de maneira desesperada. —Tenha piedade desta família! --

Acrescentou exasperado.

Sophia o observava sentada no sofá, esperando pacientemente que ele se acalmasse. Sabia que depois daquele episódio de ansiedade refletiria sobre o assunto. Mas parecia que o tempo de espera ia ser maior do que em ocasiões anteriores, porque seu rosto estava completamente vermelho, apenas respirava calmamente e acariciava seu cabelo como se quisesse arrancá-lo de sua cabeça.

De repente, Randall ficou na frente dela, levou as mãos à gravata e tentou retirá-la, como se a peça de roupa estivesse sufocando-o.

—Randall, querido, respire devagar —sugeriu, levantando-se e pegando a peça de roupa da qual ele não podia se desvencilhar. —Como lhe disse, selamos um acordo e não duvido da sua palavra.

—Um acordo? Realmente acredita que um aristocrata agirá de

acordo com suas palavras? Desde quando confia tanto nesse tipo de gente? --

Soltou com mais raiva do que nunca.

Com aquela expressão de fúria, Sophia deu vários passos para trás. Não estava com medo, mas confusa. Até então, o marido nunca estivera tão zangado. Ela errou no acordo? Seu marido não concordava que o visconde deveria tentar ajudar sua filha? Não tinha ido até ele para pedir ajuda? Pois, ele havia vindo, mas não com a opção que havia pedido. No entanto, ela sentia que a nova decisão era a melhor alternativa para todos desde que Anne confessara que o visconde era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Sinto muito —ele se desculpou enquanto observava sua esposa recuar. ?Lamento oferecer-lhe este horrível espetáculo —disse inclinando a cabeça, arrependido por uma atitude tão desagradável.

Nesse momento, Sophia voltou para o seu lado e o abraçou confortando-o.

—Ele me deu sua palavra e, quando nossas mãos se uniram para selar esse acordo, notei em seus olhos que estava dizendo a verdade. Esse homem é diferente dos outros.

—Tem certeza? Quantos aristocratas são confiáveis? Quantos escrevemos no caderno negro, querida? Você, melhor do que ninguém, sabe o quanto são cruéis e os danos que podem nos causar —disse com mais

calma.

—Reflita um pouco, Randall. Ele apareceu em nossa casa, trouxe o envelope que lhe ofereceu e, depois de ouvir uma das razões pelas quais Anne deve sair de Londres, ficou tão interessado que decidiu colocá-la no lugar a que a corresponde. Logicamente, todo o resto deve permanecer em segredo.

—Mas esquece que nossa filha diz ser amaldiçoada —murmurou, colocando o queixo no cabelo preto de sua esposa -- e suas irmãs, especialmente Elizabeth, acham que é verdade. Talvez, como Anne diz, deveria partir para alcançar um futuro favorável longe desta cidade.

E depois de expor essas palavras, Sophia deu vários passos para trás. Agora era ela quem estava com raiva e rezou a sua mãe criadora para que não estivesse escutado bem.

—Quer que ela vá embora? —Gritou. É tão obtuso que ainda acha que Anne deveria se afastar de nós? Não é você quem está sempre dizendo que prefere suas filhas por perto?

—Não me entenda mal... —disse abaixando a voz. —Anne pode fazer o que quiser e se conseguir ficar aqui, ela me faria o pai mais feliz do mundo.

—Então? —Perguntou colocando as mãos na cintura. -- Não gostou que eu interferisse neste assunto? Não me vê capaz de ajudar a

família?

—Ah não, não, não! —Exclamou o médico mexendo as mãos da direita para a esquerda. -- Tenho certeza de que suas intenções estão corretas. A única coisa que questiono é a posição do visconde. Lembre-se de que é um Bennett? Sabe o que aconteceu com os antigos marqueses?

—Sim, claro que sei! E você também sabia quando foi pedir a ele para levá-la em seu navio! —Disse.

—Mas não é o mesmo... -- murmurou.

—Por que não é o mesmo? —Esbravejou. -- Por acaso sua palavra é superior à minha? Explique-se agora mesmo, Randall Moore, ou dormirá naquele sofá pelo resto dos seus anos! —Ameaçou.

—Sophia, querida, entende que a vida nesta cidade é diferente...

—O que? -- Interrompeu-o.

—Se o visconde, com essa reputação que o precede, passear com a nossa filha ou ela espera em sua casa mais tempo do que é devido, o que vai acontecer?

—Pelo menos eu prevejo que não acabará enterrado abaixo da terra -- declarou ela solenemente.

—Não se importa com a reputação da sua filha? —A repreendeu.

—Acaso não sabe a reputação que tem? —Contra-atacou.

—Por favor... não discutam por minha causa —disse Anne, que

entrou na sala sem que seus pais a ouvissem.

—Não é uma discussão, querida -- disse Randall, caminhando para ela. Ele a abraçou com força, beijou-a na testa, colocou as mãos em seus antebraços e lentamente retirou. Sua mãe fez um acordo com o visconde e não me pareceu apropriado.

—Por quê? —Anne queria saber.

—Porque eu não sei o que pretenderá. —Explicou —Esse homem é um Bennett. Sabe que fama tem todos àqueles que levaram esse nome?

—Não confiou a ele a tarefa de me levar em seu navio? --

Soltou Anne, defendendo o homem que aparecia em seus sonhos.

Randall ficou pálido, engoliu em seco, virou-se para Sophia e disse:

—Toda sua. Tenho certeza que no final...

O médico não pôde terminar a frase porque alguém bateu na porta. Os três se viraram e olharam para ela, esperando pelo aparecimento de outra das filhas que teriam ido até lá pelas vozes. No entanto, a pessoa que apareceu na entrada foi Shira.

—Senhorita... Senhorita... —ela tentou dizer, mas as palavras não saíram. A única coisa que podia fazer era estender o envelope que tinha nas mãos para a deles.

—Shira? —Perguntou Sophia ao vê-la tão inquieta. —O que

ocorre? Por que está tão nervosa?

—Um... um servo acaba de me dar essa missiva e está endereçada a senhorita Anne -- informou.

—Quem mandou? —Randall exigiu saber caminhando em direção à criada.

—Tem o selo do visconde de Devon —esclareceu Shira.

E nesse momento Anne notou que a sala começou a girar em torno dela. O visconde estava se dirigindo a ela? Por quê? O que queria? Falaria sobre o acordo que fez com sua mãe? Teria pensado melhor e rejeitado?

Com as mãos trêmulas, ela avançou em direção a Shira antecipando seu pai, pegou o envelope, aproximou-se de um dos assentos e, sem que seus pais pudessem se separar dela nem um único passo, abriu-o: Cara senhorita Moore:

Estou lhe escrevendo pessoalmente para indicar que, depois do que foi acordado com sua mãe, encontrei a melhor maneira de obter nosso acordo. Peço-lhe que apareça amanhã em minha casa às doze horas. Espero que apareça com uma acompanhante. Não quero difamar seu bom nome. Prometo que comentarei, com mais detalhes, o plano que elaborei.

Uma cordial saudação

Logan Bennett, visconde de Devon.


Anne leu a carta várias vezes e depois deu aos seus pais para que eles pudessem descobrir o que ele havia escrito sem ter que sentir a respiração deles na nuca. Seu coração batia tão rápido que, novamente, queria sair do peito. Agarrou a saia do vestido com força, impedindo-os de descobrir o tremor de seus dedos. Em pessoa. Ele exigia sua presença. Falariam sobre o acordo, sobre o plano. Mas... seria capaz de ouvi-lo antes de desmaiar? Teria a coragem de se manter de pé sem perder sua força?

—Deve comparecer —disse Sophia, devolvendo a carta. --

Amanhã se apresentará em sua casa acompanhada por Mary.

—Acha que é conveniente? —Perguntou levantando o rosto, que empalideceu depois de descobrir o que estava escondido na missiva.

—Sim —disse Sophia sem hesitação.

—O que acha pai? -- Em seus olhos mostrava uma súplica. Até agora, toda vez que olhava para Randall dessa maneira, sentia pena dela e dava outra alternativa. No entanto, o brilho de seus olhos castanhos lhe disse que ambos concordaram que deveria fazer essa loucura.

—Deve ir —Randall disse sem pensar por um único segundo.

—Claro que ela deve ir! -- Sophia repetiu com autoridade. —Ele deu sua palavra e eu dei a minha —acrescentou.

—Nesse caso... se os dois concordarem, eu vou —disse Anne, dobrando a carta em porções tão pequenas que poderia escondê-la dentro de sua palma.

—Espero que seja um bom acordo —interveio Randall.

—Posso negar se o que me oferecer não me convier? --

Soltou Anne, levantando-se bruscamente.

—Claro! —Sophia respondeu rapidamente. -- Se o que sugerir não for do seu agrado, pode rejeitá-lo imediatamente.

—Obrigada! —Agradeceu.

—Agora, avise as suas irmãs que vamos jantar antes das cinco. Vamos conversar sobre o que elas fizeram com o pobre Sr. Giesler, com o seu pai e o que acontecerá amanhã. Além disso, devemos escolher as palavras certas para informar Mary que amanhã irá acompanhá-la —Sophia comentou calmamente.

—Poderia acompanhá-la Josephine com sua arma —disse Randall. -- Desta forma, a honra de nossa filha não... —Ele ficou em silêncio, pensando no nome que sua mulher dissera, virou-se para ela, com os olhos arregalados e soltou: -- Disse Sr. Giesler?

—Sim, querido, eu disse isso -- falou caminhando para ele.

—Disse que algo aconteceu com o Sr. Giesler e nossas filhas? --

Perseverou.

—Algo... Sim. Algo aconteceu... —disse evasiva.

—E.... o que é esse algo, Sophia? Sabe que ele não é um homem comum, certo?

-- Não? —Perguntou inocentemente.

—Não, ele é um futuro barão alemão —o médico determinou muito seriamente.

—Isso explica a cor do seu cabelo, seus olhos e sua pele... --

continuou misteriosamente.

—Mas... o que aconteceu na minha ausência? —Randall perguntou espantado.

—Anne, por favor, procure suas irmãs e informe-as do que vamos fazer enquanto eu explico ao seu pai o que aconteceu com.... lorde Giesler? —Retrucou, agarrando o braço dele.

—Sim, mãe -- respondeu Anne.

—Por favor... não me deixe em suspense, Sophia. Sabe que posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento —disse Randall enquanto sua filha se afastava deles.

Anne caminhou em direção à saída tentando controlar o tremor de seu corpo. No dia seguinte, ela apareceria na casa do visconde. Eles ficariam sozinhos, falariam... O que ele teria pensado em fazer com ela? Como ele tinha idealizado um plano tão rapidamente? Depois de fechar a porta, apoiou

as costas sobre ela, olhou para o papel dobrado e suspirou. Seria uma loucura e sabia disso. A ideia de ficar com aquele homem era uma insensatez porque não conseguia parar de pensar no que os dois faziam em seus sonhos. Ela não seria capaz de respirar ao seu lado, ou ficar sã, ou... nada. Levou a mão esquerda aos lábios e acariciou-os. Ainda sentia um toque imaginário, um beijo inexistente, uma sensação e um calor sonhado. Porque tudo era irreal, como o que via à noite...

—O que aconteceu lá? —Perguntou Elizabeth quando a viu daquela maneira tão estranha.

—Vamos! —Disse, pegando sua mão e puxando-a para as escadas que levavam para o quarto.

—O que há de errado, Anne? O que está acontecendo? --

Insistiu Eli intrigada.

—Quero que me conte tudo o que sabe sobre o irmão de Natalie.

—Sobre o Marquês?

—Não, sobre o visconde de Devon —esclareceu quando se viraram para o corredor da esquerda.

—Oh, meu Deus! —Elizabeth exclamou apavorada. —Esse homem não é adequado! É um libertino! Um homem que não é capaz de amar qualquer mulher porque não tem coração!

XI


Que pudesse conciliar o sono facilmente estava descartado...

Uma vez que Mary apagou a lamparina na mesa, depois das três horas da manhã, Anne esperou silenciosamente que caísse no sono. Não queria que a irmã descobrisse que ainda estava acordada porque se sentaria na cama e tentaria falar sobre todos os pontos negativos que a reunião teria, e não estava disposta a ouvir outro sermão sobre a sensibilidade feminina. Tudo o que queria era se acalmar e assimilar as repercussões que teria após a convocação inesperada.

Quando ouviu os roncos singulares de Mary, se levantou e foi até a janela. Ao afastar a cortina, observou a luz da lua iluminar os arredores da sua casa, dando-lhe uma aparência bastante serena. Colocou a mão direita no vidro, sentindo o frio do lado de fora na pele. Sem esperar que a palma voltasse a temperatura do resto de seu corpo, colocou-a na camisola, logo acima do peito, para aplacar a batida do coração, mas não conseguiu. Pelo contrário, ia contra a sua dona e, como vingança, vibrava com mais força. Desconcertada por essa reação incomum, Anne pressionou a testa contra a janela e suspirou. A incerteza de descobrir o que o visconde queria dela tornou-se mais angustiante e seu pesar aumentava à medida que percebia que no dia seguinte estariam juntos... de novo.

Seu corpo, pensando sobre essa reaproximação, estava cheio de tanta energia que poderia sair do quarto e passar por todas as ruas da cidade sem se cansar. Era como se, das profundezas de seu ser, aparecesse uma força estranha que tentava viver ou sentir tudo o que nunca havia vivido ou sentido. Mas devia controlar essa emoção tão explosiva. Não podia se deixar levar de novo por sentimentos impulsivos. Cometeu um erro no passado, aprendeu com ele e agora se tornara uma mulher muito diferente.

Olhou para fora, fixando os olhos na copa da árvore mais alta do jardim. Balançava de maneira semelhante àquela que via em seus sonhos. Foi assim que tudo começou, com a chegada de um pequeno sopro de ar que fazia as folhas das árvores e as chamas da fogueira se moverem. Então tudo se apagava e até mesmo o canto parava para dar lugar à figura masculina mais perfeita que já conhecera. Desviou o olhar do lado de fora e focou em suas mãos. Elas a pinicavam e o mantinham inquieta, como sempre acontecia quando se colocava diante de uma tela em branco. O que estavam tentando lhe dizer? Queriam pintá-lo? Mas... como poderia capturar o poder e o fascínio que ele mostrava em uma pintura? Com um leve movimento, sentou-se no peitoril da janela, colocou a carta dobrada sobre a camisola branca e agarrou-se aos joelhos para continuar apaziguando o tremor das mãos segurando-as em si mesma. Mesmo assim, continuavam se movendo, inquietas, agitadas, pedindo, com tremores leves, que abandonasse o quarto,

se trancasse na sala de pintura e não desperdiçasse mais tempo.

Respirou fundo, olhou para fora e focou na imagem do homem que despertara nela um instinto tão selvagem. Não podia fazer tal loucura. Não podia pintar o rosto daquele homem. Mas sua mente lançava uma batalha contra essa persistência. Ela gritava que deveria se render ao desejo e não se opor mais. Mas... qual seria a primeira coisa que pintaria sobre ele? Seus ombros? Os braços fortes? Não, isso não era tão importante. Depois de pegar um carvão e escolher a tela certa, daria forma àqueles olhos puros, àquele olhar sincero. Marcaria as sobrancelhas e os cílios escuros e deixaria os círculos de sua íris em branco, para dar-lhe o tom de céu azul quando terminasse com o rosto. Enfatizaria a forma de coração que seus lábios apresentavam, marcaria o queixo masculino, iria embelezá-lo com aquela espessa barba negra e, assim que a mandíbula mostrasse sua masculinidade, continuaria com o cabelo. Como gostava mais? Com o cabelo solto, movendo-se com o ritmo daquele vento que aparecia em seu sonho, ou como o usava nas duas ocasiões em que o viu; amarrado em um laço? Anne pressionou a testa no vidro novamente e uma cerca de névoa quente, devido a sua respiração, foi refletida nele. Ergueu a mão direita sem estar consciente, colocou a ponta do dedo indicador na direção daquela leve marca de vida e desenhou o contorno dos olhos em que pensava. Ela se afastou um pouco, apenas o suficiente para admirar o que tinha feito e, de repente, algo nela

mudou. Poderia chamá-lo de entusiasmo? Ou melhor, se tratava de uma loucura? Anne não podia definir essa nova atitude que tomou conta dela, porque nunca havia sentido nada parecido. Sem pensar, se colocou de pé no parapeito da janela, sem lembrar que tinha sobre os joelhos a carta do visconde, e que terminou descuidadamente no chão e começou a expelir todo o vapor que podia pela boca para continuar desenhando. Durante pouco mais de uma hora, aquela janela se tornou a tela mais apropriada para ela. De cima para baixo, da direita para a esquerda, sua respiração se tornou a tinta de cor que usava para o trabalho, seu dedo o pincel e os pulsos, as borrachas para apagar o que não era preciso. Quando terminou, quando não havia sequer um pequeno detalhe para pintar naquele rosto, colocou os pés no chão, caminhou para trás e admirou seu trabalho. A lua brilhava tanto que parecia um farol na janela. Seus raios atingiram o vidro, cruzando apenas as áreas que ela não havia desenhado. Os olhos, as sobrancelhas, o nariz, os lábios, a barba e os cabelos que finalmente pintou livres e agitados pelo vento, se apresentava com tal realismo que parecia respirar e observá-la em silêncio. Sem ser capaz de desviar o olhar daquelas linhas perfeitas, ela colocou as mãos no peito e sentiu como ele batia sem controle.

—Me parece tão... vivo, tão ... meu, que agora tremo de medo --

ela sussurrou. Mas não posso...

Um ronco mais alto do que o habitual fez os lábios de Anne

apertarem e se virou para Mary. Aqueles encrespadores na cabeça não permitiam que ela respirasse corretamente e, toda vez que se movia, bufava alto. Depois de confirmar que ela não tinha acordado, se virou para aquela imagem que parecia persegui-la e olhou para ela por um longo tempo. O que ele iria querer dela? O que pensava dizer a ela? Por que ele aparecia em seus sonhos? Por que seu corpo reagia estranhamente desde que apareceu em sua vida? Seria a maldição ou o medo de que ele tivesse o mesmo futuro que seus dois pretendentes? Enquanto tentava encontrar respostas para todas as suas perguntas, se abaixou, pegou a missiva, voltou para a cama, cobriu-se com a colcha e adormeceu olhando para aquele rosto.


***


—Vamos! Hoje não é um bom dia para descansar! —Sophia exclamou depois de abrir a porta e encontrar suas filhas dormindo pacificamente. —Há muitas coisas para fazer antes de visitarem o visconde

—acrescentou enquanto caminhava até a janela.

Anne abriu os olhos muito devagar, com certa preguiça. Era a primeira vez, em muito tempo, que havia descansado dessa maneira. E nem sonhara com o visconde! Essa ideia a perturbou tanto que se sentou rapidamente na cama. O que diria a sua mãe quando perguntasse sobre o

sonho? Devia mentir para ou contar a verdade? Mas sua ansiedade mudou de direção quando descobriu que ela estava indo em direção à janela onde tinha pintado seu rosto. O veria através da luz do dia? Como pode ser tão descuidada que não a limpou antes de ir dormir?

—Nem pense em descer sem se arrumar —disse Sophia a Mary depois de puxar a cortina da janela da esquerda, sem perceber por que a outra não estava em seu lugar. Se virou para a segunda de suas filhas e continuou:

?Viu o que aconteceu ontem e não estou disposta que suas irmãs fiquem alteradas novamente por sua causa. Hoje é um dia especial para a família e nada deve nos preocupar, exceto a reunião de Anne com o visconde.

Ao ouvir essa afirmação, Anne notou como seu estômago apertava e como seu coração batia tão rápido que os ecos dessas palpitações retumbavam em sua cabeça.

—Está preocupada, querida? -- Perguntou depois de afastar bruscamente os lençóis de Mary. Não fique. Sabe que seu pai e eu iremos apoiá-la em qualquer decisão que tome.

O rosto de Sophia, apesar dessas palavras, mostrava desapontamento. Não duvidava da sabedoria de sua filha, mas tinha certeza de que o visconde se dispusera a oferecer-lhe algo que não podia ser negado.

—Levante-se imediatamente! —Gritou para Mary quando, ao sentir o frio em seu corpo, alcançou o pé da cama e se cobriu novamente.

—Cinco minutos a mais... —pediu depois de colocar o travesseiro naquele ninho de bobes de metal.

—Eu disse a Foderhy para trazer uma xícara de café bem forte --

explicou Sophia, tirando os lençóis novamente. —Espero que seja o suficiente para que se mova.

—Nem pense mãe —Mary começou a dizer enquanto se espreguiçava. -- Se me fizer beber mais café do que o habitual, meu corpo reagirá de maneira contrária a que quer.

—Sabe o que está tentando me dizer? —Perguntou a Anne enquanto arregalava os olhos.

—Não —disse a primogênita, colocando os pés no chão. -- Mas certamente a resposta estará no livro que ela guarda debaixo da cama.

Quando Mary ouviu essa declaração, se ergueu rapidamente do colchão e foi à sala de banho. Não seria apropriado, pelo menos dessa vez, que sua mãe lesse o título do livro que estava escondendo. O que pensaria dela quando descobrisse que pegara um dos romances de Elizabeth? Que ficara louca! E talvez estivesse certa, porque nem ela sabia por que, depois do confronto com aquele maldito cavalheiro, queria encher a cabeça com bobagens.

—Não demore —Anne disse antes que sua irmã fechasse a porta.

—Não se preocupe, só quero esvaziar minha bexiga para que

possa enchê-la novamente com o que nossa mãe determinou que eu preciso.

—Mary Moore! —Sophia disse, colocando as mãos na cintura. Está zombando da mulher que lhe deu vida? Que a levou em sua barriga durante uns agonizantes nove meses e meio?

—Nove meses e meio? —Ela perguntou, levantando as sobrancelhas. —Posso confirmar que sou inteligente desde então. Sabia que o mundo era tolo o suficiente para uma mulher tão instruída quanto eu nascer nele ? hesitou antes de fechar a porta.

—Não sei o que fazei com ela! —Exclamou Sophia com raiva. --

Ninguém pode parar essa língua tão insolente!

—Não se aflija, mãe. Quando o homem de quem Madeleine falou aparecer, usará sua língua para outra coisa —disse Anne divertida.

-- Não diga bobagem, Anne Moore! Sua irmã não é como você!

E nesse momento se sentiu a mulher mais estúpida do mundo.

—Dessa vez será Shira quem a vestirá. Disse a ela que vestido deverá usar.

—Como? -- Perguntou atordoada. -- Não confia na minha escolha?

—Claro que não. Ultimamente mostra uma imagem bastante inapropriada. Então, a partir desse momento, aviso que, se levar uma peça de roupa sequer da cor laranja, abrirei seu armário enquanto estiver fora e

queimarei tudo o que me causar repulsa —disse severamente.

—Senhora... —a criada falou justamente quando Anne estava planejando dizer que não deveria ameaçá-la ou projetar nela a fúria que Mary criou.

—Vá em frente —disse a Sra. Moore.

Sophia foi até a porta quando Shira começou a procurar o vestido no armário, olhou para a filha, depois para a donzela e apontou:

—Que ela não arrume o cabelo sozinha. Eu quero que a penteie e não faça aquele coque absurdo que insiste em usar. Deixe alguns fios em seus ombros, mas não esconda seu rosto.

—Sim, senhora —Shira confirmou, pegando o vestido escolhido e caminhando para a moça.

Anne, quando descobriu o vestido que deveria usar, olhou de lado para a mãe, que estava imóvel na porta, e apertou os lábios para não responder. Por que tinha decidido arrumá-la como se estivesse indo para uma festa? Não estava ciente de que ia mostrar ao visconde uma imagem errônea? Não pretendia seduzi-lo com o decote oferecido por aquele vestido rosa pastel, nem que se distraísse observando alguns cachos tocavam a pele de seus ombros levemente. Ela precisava que ele falasse sobre o acordo, ponderar se estava interessada ou não e sair de lá o mais rápido possível.

—Mary Moore! Saia do banho de uma vez ou queimarei seus

livros na lareira da sala! —Sophia gritou ao perceber que estava demorando mais do que prometera.

—Como pode expressar tal heresia? —Respondeu a jovem, abrindo a porta rapidamente.

—Porque sabe que farei —respondeu com firmeza.

—Pelo amor daquele Deus que constantemente evoca! —Mary exclamou, enquanto levava as mãos para os rolos. Hoje não consigo nem urinar tranquila?

-- Urin... o que? —Shira perguntou, olhando para a segunda das irmãs duramente enquanto observava como tirava os rolos metálicos de forma inadequada.

-- Urinar —Mary repetiu, caminhando até o armário. —A função que alguns seres vivos realizam para esvaziar o que nós contemos em nossa bexiga —ela acrescentou. —As mulheres têm um...

—Nem pense mais em falar sobre esse assunto! —Sophia esbravejou horrorizada. —Não é hora de falar sobre um assunto tão efêmero.

—Disse efêmero? —Mary retrucou, virando-se para a mãe com um sorriso de orelha a orelha. —Oh! O que meus ouvidos captaram? Posso concluir que tudo ainda não está perdido nesta família? —Continuou zombando.

—Mary Moore —Sophia começou a dizer, caminhando

lentamente até a sua segunda filha. —Realmente acredita que a inteligência que possui vem do seu pai?

—De quem mais? —Ela respondeu arrogantemente.

—Pois está errada...

—Não tenho tanta certeza. De acordo com alguns estudos que tenho...

Ela ficou em silêncio quando sua mãe levantou um dedo da mão direita.

—Elimine tudo o que tem nessa cabeça teimosa e seja, por uma vez, uma mulher respeitável. Quero que se comporte corretamente na casa do visconde hoje. Se Anne me informar que causou uma briga, usarei todos os meus encantos de mulher para seu pai concordar em excluí-la de suas próximas reuniões médicas —garantiu, colocando as mãos na cintura.

—O papai não aceitará isso —desafiou, apertando os olhos. --

Ele, melhor do que ninguém, ama minhas réplicas e não vai querer perder como sua filha erudita destrói qualquer abordagem masculina irracional.

—Acho que não teria tanta certeza. Porque, uma vez que feche a porta do nosso quarto, ele fará tudo o que eu pedir —disse mordazmente.

—Por favor! —Mary disse, revirando os olhos. —Joga com vantagem!

-- E? —Sophia insistiu sem reduzir seu tom de voz cruel.

—Não vou demorar mais um minuto! —Afirmou caminhando até Foderhy, a donzela encarregada de atendê-la e que esperava do lado de fora do quarto até que a discussão entre mãe e filha tivesse terminado.

Enquanto Shira ajustava o vestido para Anne, Mary não parou de reclamar sobre como a vida era injusta para ela. Murmurava sobre sua felicidade e sobre a única coisa que precisava para alcançá-la: viver cercada de livros sem que ninguém a interrompesse. Mas Anne mal a ouvia. Estava profundamente envolvida em seus próprios pensamentos. Ficou se perguntando por que sua mãe tentou dar a ela um visual tão elegante e tão diferente do que queria ter. Por que proibiu a cor laranja se sabia que ela amava? Se existia uma tonalidade que pudesse defini-la com exatidão era essa. Não só expressava um caráter alegre, mas também mostrava ao mundo que ela não se importava com a opinião que tinham sobre ela. Ou não era assim?

—Prenda a respiração —Shira pediu a Anne enquanto ajustava os laços nas costas.

-- Se achar melhor, pare de respirar por alguns minutos para ver o que acontece —Mary comentou mordaz quando ouviu as palavras da donzela.

—Não preste atenção nela —Anne interveio. —É que ela ainda não tomou o café que nossa mãe lhe prometeu.

—Oh, desculpe-me! —Foderhy disse, afastando as mãos do vestido de Mary e levando-as à boca. —Deixei no aparador do corredor.

—Frio! —Disse Mary, caminhando pelo quarto. —Terei que tomar frio!

—Eu... eu... sinto muito, senhorita Moore —disse a donzela angustiada.

—Não se preocupe, vai tomá-lo de qualquer maneira —disse Anne depois de caminhar até o banquinho em frente à penteadeira.

Agora era a vez do penteado. Shira obedeceria a ordem de sua mãe sem questionar. Então, quando terminasse com ela, estaria pronta para participar para uma festa em vez de ir a uma reunião com o visconde.

—Nós continuamos com a batalha? —Mary perguntou quando ela apareceu no quarto.

Uma hora depois, as duas irmãs saíram do quarto, caminharam lentamente pelo corredor, ainda olhando uma para a outra e, assim que chegaram à escada, mostraram o melhor sorriso quando viram Sophia esperando na porta.

—Nós parecemos adequadas? —Perguntou Mary com certa animosidade: —Ou quer que voltemos para mudar?

—Só precisam de uma coisa —respondeu a mãe, ignorando o comentário mordaz de sua filha: —Esta manhã está bastante fria —disse

Sophia depois de abrir a porta e sentir uma leve brisa vinda de fora. --

Coloquem seus casacos e peguem seus regalos.

—As luvas vão manter minhas mãos aquecidas —Mary comentou enquanto Shira a ajudava a vestir o casaco. —Se colocar o regalo, vão suar como se estivéssemos no meio do verão.

—Anne? —Sophia perguntou, levantando a sobrancelha esquerda.

—Acho o mesmo que Mary -- respondeu.

—Não demorem muito quando saírem da residência do visconde. Como podem imaginar, todos estaremos sem viver até que saibamos o que quer —disse Sophia, afastando-se um pouco da porta.

—Sim, mãe —responderam em uníssono.

Depois que as duas beijaram Sophia na bochecha, foram para fora, onde o cocheiro estava esperando por elas. A primeira a entrar foi Anne e Mary a seguiu depois de um rápido olhar para a entrada da casa e confirmar que a mãe ainda se agarrava à maçaneta da porta, olhando para elas.

—Espero que a reunião seja curta —disse Mary quando o cocheiro atiçou os cavalos. —Porque estou na melhor parte do livro.

—O que está lendo agora, Mary? —Anne perguntou depois de estender o vestido no banco.

—É.... se trata... —Ela hesitou por alguns segundos. -- É um

artigo sobre os procedimentos antissépticos que o Dr. Semmleweis explicou

—mentiu.

Era melhor do que contar a verdade. O que Anne pensaria se ela confessasse que estava lendo Orgulho e Preconceito? Talvez seu coração tenha finalmente despertado daquela letargia a qual o submetera e começasse um discurso sobre o tratamento adequado de um cavalheiro. Então, para não ouvir um assunto tão absurdo, decidiu continuar oferecendo a imagem de uma mulher racional. Nenhuma de suas irmãs deveria suspeitar que, depois de descobrir a reação absurda do cavalheiro loiro de olhos azuis, ela decidiu investigar, cientificamente, sobre a mente dos homens. No entanto, uma vez que foi até a biblioteca e revisou livro por livro todos os acordos científicos sobre o cérebro humano, visitou a seção de livros de Elizabeth e escolheu o que aparentemente, descrevia muito bem seu caráter e atitude do titã alemão.

—E, por que está tão intrigada com esse médico? —Anne insistiu, inclinando-se levemente.

—Porque se estiver certo, muitas doenças que aparecem após o parto podem ser evitadas com um simples ato de limpeza antes de serem atendidas. Segundo sua teoria, há microrganismos em nossas mãos —tirou as luvas e as mostrou para Anne —que podem ser transmitidos, até mesmo por um leve carinho, e se tornarem mortais. Com isso, recomendo que nunca tire suas luvas. Alguém poderia alisar sua mão e envenená-la sem estar

consciente —disse sarcasticamente enquanto as cobria novamente.

—Pelo amor de Deus, Mary! Se tiver razão, todos deveríamos cobrir o corpo com uma luva gigante —exclamou Anne, lamentando por perguntar.

—Seria suficiente que as costureiras fizessem peças de roupas que cobrissem nossas cabeças e, como uma dica, elas deveriam rasgar o tecido ao redor dos olhos. Desta forma, poderíamos ver o que temos diante de nós e evitar nos infectar de doenças que...

—Chega! Não continue! Prefiro me infectar com mil insetos desses que diz a cobrir meu corpo com esse tipo de roupa —resmungou antes de desviar o olhar de sua irmã para fixá-lo na janela.

Sua mãe realmente havia escolhido bem ao elegê-la como acompanhante? Bem, estava errada! O que Mary faria depois de ler algo tão absurdo? Rejeitaria a saudação do visconde quando pensasse que seus lábios poderiam transmitir algum tipo de doença? Começaria uma conversa sobre todos os prós e contras que envolveria uma saudação cortês? Anne fechou os olhos e bufou. Sem dúvida, o desastre estava do seu lado. Ela apenas rezou para que o visconde falasse sobre o que pensara antes de expulsá-las de sua residência.

Quando a carruagem parou, ela abriu os olhos e focou em Mary. Esta continuava com o olhar perdido, pensando em algo que a fez

relembrar porque apresentava uma cara muito azeda. Sem querer descobrir o que estava causando aquela amargura, ela agarrou o vestido e desceu quando o cocheiro abriu a porta para ela. Então, Mary desceu, e, como ela deduziu, não aceitou a mão do criado porque não usava luvas.

—Por Cristo! —Mary exclamou ao olhar para a casa do visconde. —É linda!

—Como todas as que possuem os aristocratas -- disse Anne com desdém.

—Bem, eu passaria muito tempo nessa área do jardim —disse ela, apontando com o queixo para uma gangorra branca colocada ao lado de uma fonte redonda de mármore escuro.

—Com um livro? —Disse a mais velha sarcasticamente.

—Com centenas! —Mary respondeu depois de esfregar as mãos.

Durante a curta caminhada que fizeram da entrada até a porta da frente, ambas permaneceram em silêncio, observando atentamente a residência do visconde. Mas quando elas subiram as escadas e Anne estava prestes a bater para que abrisse, ela se virou para a irmã e disse:

—Se comporte adequadamente.

—Prometi

mil

vezes

que

eu

vou

—comentou

desesperadamente. —O que aconteceu ontem não teve nada a ver com lorde Bennett, mas com aquele arrogante e rude Sr. Giesler. Oh, não me perdoe,

soube que ele é um barão... bem, lorde imbecil Giesler!

—Só agiu como qualquer pessoa faria em seu lugar ao vê-la daquela forma —disse Anne, repreendendo-a.

—Se lembra que ele me chamou de bruxa? —Mary murmurou, franzindo a testa e cerrando os punhos. -- Ele vai engolir suas palavras! Algum dia ele vai engolir essas malditas palavras! —Sentenciou.

—Mary, pelo amor de Deus! -- Anne exclamou, revirando os olhos.

—Se Deus existisse, o que eu me recuso a acreditar, me dará a oportunidade de encontrá-lo novamente e farei com que ele pague por toda palavra desdenhosa que me ofereceu -- declarou ela solenemente. O único arrependimento que sinto é que não tinha pedras em vez de alguns bobes miseráveis. Eu o teria apedrejado naquele momento.

—O papai a trancará no quarto se tentar assustá-lo de novo.

—Aceitarei de bom grado essa punição, se me permitir encher o quarto com livros que vão apaziguar a minha solidão —disse ela, sorrindo maliciosamente.

—Talvez devesse recusar ler por várias semanas, então aprenderá a se comportar -- Anne a repreendeu enquanto pegava a aldrava para chamar.

—Se por acaso sugerir essa opção, vou dizer ao papai que

finalmente acredito na ideia absurda da maldição e que a melhor coisa para todos nós é matar dez galos e banhá-la com seu sangue —ameaçou.

—Não se atreveria? -- Perguntou, arregalando os olhos.

—Me teste —disse severamente.

—Boa tarde, senhoras. Que desejam? —Kilby as cumprimentou depois de abrir a porta. Primeiro olhou para uma e depois para a outra. As duas mulheres eram muito parecidas, embora uma delas, a que tinha olhos castanhos, mostrasse um semblante mais amável. No entanto, a outra, que tinha belos olhos azuis, exibia uma dureza no rosto mais parecida com um burro do que com uma dama.

—Boa tarde, somos as senhoritas Moore. O visconde nos espera

—disse depois de respirar e encontrar alguma calma.

—Entrem, por favor —respondeu o mordomo, afastando-se da entrada. -- Se forem amáveis em me dar seus casacos.

—Claro —respondeu Anne, desfazendo os botões.

—Uma manhã fresca, certo? —Kilby perguntou gentilmente às duas mulheres.

—Não tão fresca quanto poderíamos ter se vivêssemos no Polo Norte, mas sim, é um pouco frio para os corpos fracos da aristocracia de Londres —respondeu Mary, incapaz de desviar o olhar da residência do visconde.

—Desculpe minha irmã —disse Anne rapidamente. —Ela odeia o frio e, como pode ver, não senta bem a sua cabeça.

Com esse comentário, Kilby suavizou o rosto e olhou com compaixão para a mais velha das duas irmãs. No entanto, quando Mary ofereceu-lhe o casaco, ele o segurou como se tivesse piolho.

—Se forem gentis em me seguir, o visconde as espera na biblioteca.

E então Mary sentiu mil borboletas se agitarem em seu estômago.

Seus olhos brilhavam de emoção e um sorriso cruzou seu rosto. Como seria a biblioteca do visconde? Ele seria um homem culto? Teria lido todos os livros que guardava nas prateleiras? Permitiria que ela lesse enquanto os dois falavam sobre esse acordo? Ela esfregou as mãos, como uma menininha prestes a abrir um presente, olhou para Anne e fez seu sorriso crescer ainda mais.

—Esse visconde parece agradável —murmurou.

—Como pode declarar isso, se ainda não conheceu? —Anne respondeu, estreitando os olhos.

—Apenas ter citado a biblioteca, tem minha absoluta aprovação.

—Mas não disse que odeia homens? Que todos se parecem com jumentos com orelhas curtas? —Murmurou.

—Bem, mas esse parece diferente. Além disso, não procuro um

marido para humilhar por causa do meu grande intelecto. Tudo o que quero é uma boa biblioteca para passar o tempo e, se o visconde a possui, estarei encantada em oferecer-lhe a sua mão —sussurrou.

—Mary! —Exclamou indignada em voz baixa. —Isso não posso esconder de nossa mãe!

—Lembre-se dos galos... —lembrou antes de esticar as costas e caminhar serenamente para o lugar mais idílico para ela.


CONTINUA

Londres, 14 de outubro de 1882, residência Moore.
Anne se olhou no espelho e suspirou.
Ela não queria, nem deveria participar de uma festa depois do que aconteceu, mas seus pais prometeram que seria a última vez que a obrigariam a fazer algo parecido. Desde que soube, fez tudo em seu poder para que Mary ocupasse seu lugar. Até fingira um tornozelo torcido! Mas foi inútil. Seus pais descobriram a mentira rapidamente e novamente rejeitaram a ideia de sua segunda filha acompanhando a terceira porque eles não queriam que ela se tornasse, novamente, o centro de qualquer conversa social. E eles não estavam errados... se alguém ousasse contradizê-la em alguma conversa sobre medicina, Mary se tornaria uma loba e acabaria chamando a todos aqueles que a contrariaram: bando de corpos sem cérebro. Apesar da explicação, ainda achava que estavam errados. Era preferível que Elizabeth sofresse um choque momentâneo pela reação de Mary, a ser constantemente humilhada pela sua presença. Porque a culpa pela transformação de Elizabeth ela dera, apenas dela e da maldição que padecia.
Desde que todos finalmente aceitaram sua existência, Elizabeth deixou de ser uma menina doce e terna para se tornar uma mulher frívola, descarada e ousada. Essa mudança se devia à falta de pretendentes. De fato, enquanto suas outras irmãs não estavam procurando um homem para casar, porque no caso das gêmeas eram muito jovens e Mary por ser fria como um bloco de gelo, Elizabeth usava sua maravilhosa beleza e audácia para encontrá-lo prontamente. No entanto, ela não conseguia o resultado desejado porque, depois do que aconteceu aos dois noivos de Anne, nenhum cavalheiro se atrevia a cortejar uma irmã Moore por medo de morrer...

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_MALDI_O_DE_ANNE.jpg

 

Anne continuou a se olhar no espelho enquanto se lembrava de seus anos de infância. Fora muito feliz naquela época. Como qualquer criança, ela só se concentrava em atender a professora contratada pelos pais, cumprir as regras da casa e pintar. Sim, seu único dom, porque era muito desajeitada em todo o resto, era pintar. Portanto passava dias e dias apreciando a paz que seu jardim oferecia em dias de sol, enquanto pintava milhares de paisagens imaginárias em suas telas. Tudo estava indo bem até a puberdade chegar. Qualquer mulher a dominaria com integridade e bom senso, mas ela era incapaz de fazê-lo. Como deduziu, aquele sangue cigano que corria em suas veias era a causa de tudo. Ele queimava. Sim, a queimava tanto que houve momentos em que a dor era tão insuportável que ela se jogava no chão chorando. Por que sua natureza cigana era tão cruel? Por que era incapaz de controlá-la? Com o passar do tempo, aceitou e assimilou essas

mudanças nela. Mas nessa nova vida, Anne Moore deixou de ser uma menina para se tornar uma mulher com apenas um desejo: sedução. Ela se sentia tão adulta, tão radiante, tão sensual que, toda vez que andava por Londres e observava homens admirando-a, sua sexualidade brotava de dentro como uma flor abrindo suas pétalas. Por causa disso, uma tarde, enquanto suas irmãs apreciavam um piquenique, sua mãe a arrastou para a sala e decidiu confessar o que mantivera em segredo durante os dezessete anos de casamento.

—Seu avô, meu pai, adoeceu -- Sophia começou a dizer quando as duas se sentaram no sofá perto da lareira, -- e nenhum médico queria comparecer, exceto o bondoso Dr. Randall Moore. Eu sei que, desde que ele entrou na carruagem, não conseguia tirar os olhos de mim, como nem eu dele. Muitas vezes me pergunto como ele foi capaz de descobrir sobre a doença, se não prestou atenção -- ela continuou sorrindo. A atração que tivemos foi instantânea. Ele olhou para mim, eu olhei para ele e o amor nasceu.

—Realmente? Foi tão fácil? -- Ela perguntou com espanto.

—Já disse que as mulheres da nossa raça têm o dom de sonhar com o homem da nossa vida? -- Anne negou com um movimento suave da cabeça. —Bem, eu o vi por muitas noites no mesmo sonho: Ele aparecia entre as chamas de um fogo, o que para nós significa amor e paixão,

estendia a mão e.... bem, o resto pode imaginar -- explicou, desenhando um enorme sorriso.

-- Ainda não entendo o que isso tem a ver com a maldição que fala -- disse ela enquanto esfregava as mãos.

-- Desde aquela noite, seu pai e eu nos encontrávamos escondidos. Nem meu pai nem minha avó aceitaram a presença de um gajo, exceto para serem curados quando a feiticeira de nossa aldeia não era capaz de curá-los. Na primeira noite em que me entreguei de corpo e alma a seu pai, ele me pediu para fugir com ele, casar e ser a Sra. Randall para sempre. Durante vários dias pensei nessa proposta... -- Ela suspirou. Então aconteceu algo que me fez tomar uma decisão mais cedo do que eu esperava.

—O que aconteceu? -- Anne perguntou com expectativa.

—Minha avó paterna, Jovenka, arranjou um casamento para mim. Ela queria que me casasse com o filho de outra família cigana para que, segundo ela, o sangue não fosse contaminado.

—Ela sabia que estava se encontrando com o papai, certo?

—Sim, receio que nos descobriu... -- disse tristemente. -- Por essa razão, na noite seguinte, aceitei sem hesitação a proposta de Randall.

—Foi ela quem a amaldiçoou? Os procurou? Como fez? -- Ela perguntou sem respirar.

—Nós ficamos fora de Londres por um mês. Seu pai tinha

economizado o suficiente para alugar uma pequena casa e ficamos lá por algum tempo. Mas seu trabalho exigiu e tivemos que voltar. Quando me apresentou à sociedade, porque todo mundo estranhara que ele finalmente encontrasse uma esposa...

—Como estranharemos se Mary encontrar um homem que a aceite? -- Interveio Anne alegre.

—Implorei para que não revelasse minhas origens.

—Por que fez uma coisa dessas? -- Disse, se levantando. --

Rejeita seu sangue?

—Não! Jamais rejeitaria! ?Defendeu-se, se levantando também. -- Mas não era sensato, na época, declarar que um homem como Randall, com a reputação que estava sendo forjada depois de tantas dificuldades, acrescentasse que sua esposa era cigana. Parecia mais apropriado dizer que era filha de um burguês.

—O que aconteceu depois? -- Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

?Uma noite, nos preparávamos para uma reunião com outros médicos. Sabe, aquelas que Mary tanto ama e eu não suporto nem dez minutos. Estava de pé na porta, esperando pelo seu pai que tinha ido pegar seus óculos. Senti um forte vento ao meu lado, mas ignorei até que, momentos depois, percebi uma presença. Muito lentamente me virei para o

jardim e.... lá estava minha avó Jovenka. Ela olhou para mim com tanta raiva que notei como sua fúria perfurava meu corpo.

—O que ela disse? -- Anne insistiu, olhando para a mãe.

—Sem falar, me pegou pela mão e puxou com força. Queria me afastar da vida que escolhi. Mas naquele momento seu pai apareceu e me tirou de suas mãos. «Ela fica comigo! " -- Ele gritou.

—O que Jovenka fez? ?Insistiu.

—Sorriu com tanta maldade que me deixou congelada --

recordou, acariciando os braços como se o frio tivesse voltado para ela. --

Ela fechou os olhos e começou a evocar as almas ruins. Depois daquele cântico infernal, cuspiu no primeiro degrau da escada, curvou-se, fez vários círculos com sua saliva e disse: «Eu a amaldiçoo, Sophia. A amaldiçoo por rejeitar quem é, por negar o sangue que corre em seu corpo e por se tornar a mulher de um gajo. E para que a dor seja mais duradoura e cruel, não sofrerá essa maldição, mas sim a mais velha de suas filhas. Ela, se quiser lutar contra a vida que a espera, terá que se casar com um cigano, desta forma assumirá que a única verdade que existe no mundo é o poder da raça e do nosso sangue» -- relatou.

—Como? O que é isso de que devo casar com um

...? -- Anne apertou os lábios para não mostrar à mãe a negação que sentia em relação àquela palavra. Em nenhum momento de sua vida pensou que seu

futuro seria em um acampamento cigano. Nem muito menos se imaginava vivendo em uma carroça daquela maneira e de se tornando a esposa de um nômade. -- O que o papai fez?

—Sabe como é.... -- Disse com um leve sorriso. —Ele não acreditou nem acreditará nesse tipo de rituais ou feitiços, por isso me fez prometer que nunca diria o que aconteceu naquela noite. No entanto, aqui me tem, quebrando uma promessa.

—Por que faz isso, mãe? Por que confessa isso para mim agora?

—Porque tem meu sangue, Anne -- ela disse, voltando para o sofá, -- e eu vejo como ele a altera cada dia que passa.

E isso era verdade. De uns tempos para cá, ela sentia com muita força certa necessidade que não entendia. Se sentia como um campo cheio de orquídeas na primavera ao notar os primeiros raios do sol da manhã. Suas emoções, seus sentimentos sobre o mundo ao seu redor haviam se tornado, em pouco tempo, irracionais e incorretos. Quantas vezes olhou para um homem com indiscrição? Por que quando se contemplava no espelho, queria exaltar seu erotismo?

—Somos e seremos selvagens -- esclareceu Sophia ao ver sua filha franzir a testa. —Nascemos da Mãe Natureza e, como tal, só buscamos a liberdade de amar. Mas quero avisá-la, antes que algum cavalheiro ocupe seu coração, que não será fácil lutar contra essa maldição. Não sei o que

acontecerá, juro, mas não tenho dúvidas de que sofrerei quando a ver sofrer.

—Realmente acredita que estou amaldiçoada e que terei que casar com um cigano para fazer essa maldição desaparecer? Não seriam, como o papai disse, palavras sem sentido e que apenas expressaram semelhante estupidez para proporcionar medo? -- Ela falou enquanto se sentava ao lado da mãe.

—Não, Anne. Minha avó nunca evocaria almas ruins para me assustar -- disse, acariciando seu rosto jovem. -- Acredito nessa maldição, a única coisa que tento descobrir é como se livrará dela sem ter que se casar com um cigano.

Como ela poderia se apaixonar por um cigano? Como poderia abandonar uma vida confortável para transformá-la no oposto? Jamais rejeitaria a mistura de seu sangue, mas nunca aceitaria viver como eles. Por essa razão, decidiu que a única maneira de lutar contra essa parte selvagem era se trancar em casa e deixar que os anos passassem. No entanto, seu problema cresceu e cresceu a ponto de atingir uma loucura sem precedentes. Aos 22 anos ela decidiu enfrentar essa possível maldição. Começou a sair, aparecer nas festas em que era convidada e aproveitar tudo aquilo que não tinha aproveitado por ter se submetido ao isolamento. Durante essas celebrações, sua atitude era muito parecida com a de Elizabeth: ela conversava com os convidados sem se importar com a

classe social a qual pertencia, aceitava danças até mesmo dos homens menos apropriados e não evitava os olhares daqueles que a observavam. Só deixava as festas quando seus pés doíam tanto que não suportaria uma dança mais. Naquela época, ela conheceu Dick Hendall, um burguês bonito com quem se encontrou em muitas ocasiões. Primeiro, houve alguns olhares discretos, depois algumas conversas e acabaram ficando nas áreas mais escuras dos jardins. Dick era um verdadeiro sedutor e a transformou em uma mulher apaixonada e desinibida. Cada vez que estavam sozinhos, ela se apaixonava não apenas pelas palavras bonitas, mas também pelos beijos e carícias que a deixavam tremendo. Nunca imaginou que o cortejo de um homem em relação a uma mulher era tão enganador e assim acabou cedendo àquela paixão que ambos mantinham em segredo. Depois de vários encontros de amor, Dick propôs casamento argumentando que não tinha uma mulher no mundo que pudesse amar tanto. Naquele momento e prisioneira da felicidade, Anne aceitou sua proposta, esquecendo, novamente, a maldição que sua mãe havia comentado.

Na tarde em que seu belo Sr. Hendall apareceu na residência dos Moore para formalizar a proposta de casamento, ela estava tão nervosa que mal conseguia ficar sentada por mais de três segundos. Andou pelo corredor esfregando as mãos enquanto esperava que um dos pais saísse do escritório e reivindicasse a presença dela. Nesse ir e vir ao redor da casa, rezava para que

sua mãe, porque seu pai não acreditava em maldições ou feitiços, esquecesse a ideia daquele encantamento familiar. Desperdiçou quase sete anos de sua vida acreditando nessa insensatez e esperava que todos aceitassem, de uma vez por todas, que não havia maldição. Uma hora depois da chegada de Hendall, sua mãe abriu a porta e chamou por ela. Quando entrou, pôde ver a emoção nos olhos de Dick. Seus pais aceitaram o compromisso e, a partir daquele momento, ela se tornou noiva do sr. Hendall.

Nada poderia deixá-la mais feliz ou mais orgulhosa de si mesma. Não só se casaria com o homem por quem estava apaixonada, mas, com essa atitude, tinha abolido a estupidez de que estivesse amaldiçoada.

Foram dias muito felizes para a família. Suas irmãs se uniram nessa alegria, ajudando-a a procurar um vestido de noiva e a elaborar a lista de convidados. Até seu pai se unia, toda vez que seu trabalho permitia, àquelas divertidas reuniões de mulheres. A única pessoa que não compartilhava esse estado de euforia coletiva era sua mãe. Desde que Dick saíra de sua casa, ela permaneceu em silêncio, esquiva e misteriosa. Anne, furiosa com tal atitude inadequada, teve a audácia de censurá-la por ter passado toda a sua juventude assustada por uma mentira e que demonstraria, com o seu casamento, que estava errada e que não precisaria se casar com um cigano para ser feliz. Sophia relutantemente concordou que tudo o que pensara sobre seus ancestrais era uma mentira e que nenhum de seus parentes

tinha a habilidade de amaldiçoar.

Os dias passaram e, pela primeira vez em muito tempo, a palavra maldição foi banida de sua mente. Mas tudo isso mudou na noite em que um criado de Dick apareceu para informá-los da trágica notícia...

Depois de ouvi-lo, ela teve que sentar no primeiro degrau da escada do corredor para não cair no chão. Lágrimas lutavam para brotar, enquanto ela se recusava a assumir o que havia acontecido. Foi seu pai quem decidiu descobrir o que havia acontecido e, depois de ouvir várias vezes a versão do criado, pegou o casaco e saiu com ele. Aturdida e petrificada, Anne sentiu os soluços de suas irmãs como se estivessem a vários quilômetros de distância dela. Tudo ao seu redor havia desaparecido; ela deixou de ser Anne Moore, a noiva de Hendall, para se tornar um fantasma sem nome ou destino. Esse estado de choque a manteve longe da realidade por três dias, o tempo que os pais de Dick definiram para velar seu corpo inerte. Mesmo assim, embora se encontrasse durante aqueles dias ao lado de um caixão, só reagiu quando duas pessoas vestidas de rigoroso luto colocaram o caixão no mausoléu da família. Então ela teve que aceitar a verdade: seu noivo havia morrido. Um cavaleiro experiente, que competira em cem corridas, caiu de um garanhão ao galopar em direção à sua casa.

Após o cortejo fúnebre, ela se trancou em seu quarto e não saiu até que vários dias depois seu pai entrou e lhe disse a versão do Dr. Flatman:

que a morte de Dick poderia ter sido evitada se ele não estivesse andando em um cavalo não castrado depois de ter ingerido tanto álcool como para embebedar a tripulação do maior navio de Londres. Apesar dessa descoberta, embora Randall tentasse convencê-la de que ela não tivera nada a ver com isso, Anne não deu ouvidos as razões. Durante um ano e meio manteve um luto severo pelo noivo morto e o pensamento de que estava amaldiçoada voltou à sua mente.

Uma vez que o período de luto passou, a mesa de seu pai foi novamente preenchida com convites. Nessa ocasião, não convocavam apenas a ela, mas também Mary, que completara vinte anos, e Elizabeth, que tinha dezenove. A resposta de Mary foi sempre negativa, no entanto, Elizabeth não estava disposta a deixar passar o tempo sem aproveitar os benefícios de ser a filha do famoso Dr. Randall Moore. Embora a garotinha sempre tentara chamar a atenção dos presentes, dificilmente conversava porque era jovem demais. Para a angústia de Anne, os olhares se voltavam novamente para ela. Ninguém estava falando sobre a noiva infeliz que, faltando um mês para o casamento, seu pretendente morreu, nem ouviu rumores sobre uma possível maldição. Até aquele momento, o segredo ainda estava protegido. Mas isso mudou depois da morte de Lorde Hoostun, o único filho do conde de Hoostun...

Ela não sabia nada sobre o menino, talvez porque nunca tivesse

saído da residência onde vivera desde que nascera. O único que conhecia era o conde viúvo. O velho a observava com atrevimento quando coincidiram em algum

evento

e

tentava,

por

meio

de

conhecidos,

iniciar

conversas. Logicamente, ela recusou essas abordagens, mas a fixação do viúvo por Anne tornou-se cada vez mais exaustiva.

Na noite em que o velho conde apareceu em sua casa para pedir um compromisso entre ela e seu filho, Anne gritou aos céus. Repetiu para seus pais até que estivessem cansados de que deveriam se lembrar da maldição à qual ela foi submetida e que se eles aceitassem a proposta matariam outra pessoa. Randall refutou todas as suas alegações lembrando-a de que a morte de Hendall aconteceu por ele mesmo ser um tolo e não devia se tornar egoísta porque suas irmãs sofreriam um futuro incerto por causa dela. Anne implorou a sua mãe, a única que ainda pensava sobre a existência dessa maldição, mas ela não a ouviu. Talvez porque, depois de confessar que perdera a virtude com Dick, achasse que era a última chance que a vida lhe ofereceria para encontrar um marido que não a rejeitasse por não ir inocente para o casamento. Como o viúvo esclareceu, nem ele nem seu filho se importavam com o que Anne fizera no passado, mas com o que lhe ofereceria no futuro próximo: a descendência de que tanto precisavam para que o título não voltasse à coroa. Apesar de seus gritos e pedidos, Randall concordou com o compromisso. Dois dias depois que os jornais anunciaram que estavam

noivos, o jovem Hoostun, a quem ela ainda não havia encontrado pessoalmente, morreu. Nesta ocasião, foi o próprio Dr. Flatman que a visitou para falar sobre o que aconteceu. Por mais que ele insistisse que fora algo fortuito, porque ninguém previu que a arma dispararia durante a limpeza, Anne se sentiu tão culpada que mergulhou em uma terrível depressão. Embora não tenha saído de casa por meses, rumores sobre a aura maligna que a cercava chegaram aos seus ouvidos. Eles a nomearam de tantas maneiras diferentes que não podia contar com os dedos das mãos. Até mesmo uma cartunista, que trabalhava para um jornal semanal, fez uma caricatura explicando que, se quisessem fazer com que um libertino que estivesse atrás de uma dama honesta desaparecesse, a melhor maneira de se livrar dele seria promete-lo a filha mais velha do Dr. Moore. Logicamente, os convites para eventos sociais desapareceram. A mesa de seu pai estava vazia e isso causou uma controvérsia familiar muito perigosa. Por um lado, Mary ainda não queria um marido, Josephine aperfeiçoava a habilidade militar com a qual nascera e Madeleine manteria sua excessiva timidez em segurança. Por outro lado, Elizabeth não queria adotar essa posição. Cada vez que o tema aparecia nas poucas reuniões de família em que participava, a repreendia que, por culpa dela, nunca alcançaria seu sonho: casar com um aristocrata. Anne, desesperada, decidiu se afastar, inclusive, da própria família. Se trancou em uma sala e passou muitas horas praticando aquilo que a fazia feliz quando

criança: a pintura.

Lentamente, se levantou do banquinho, alisou o vestido e caminhou até a porta. Antes de sair, olhou para Mary, que, como de costume, já estava na cama e lendo um novo livro sobre medicina.

—Não faça essa cara -- comentou ao descobri-la olhando para ela sem piscar. -- Certamente apreciará a bela cerimônia.

—Se tem tanta certeza, por que não vai? -- Ela a repreendeu com um pouco de raiva.

—Porque tenho um compromisso que não posso adiar --

comentou, levantando o livro que ela tinha em suas mãos. -- E parece mais apropriado me informar de como enfrentaremos doenças futuras do que evitar os olhares de desaprovação dos cavalheiros que irão a essa bendita festa. --

Além disso, não estou tão desesperada quanto Elizabeth. Não estou procurando por um homem para arruinar a minha vida.

—De

acordo

com

Madeleine,

acabará

casada

--

comentou Anne, mordaz.

—As visões de nossa irmã mais nova não me causam nenhuma preocupação. Só as aceitei para que você não saísse de Londres depois da morte do seu segundo pretendente. Embora eu já tenha ouvido que continua com essa ideia e que o papai vai se encontrar hoje à noite com a pessoa que irá levá-la para a sua amada Paris -- explicou ela enquanto se sentava na

cama.

—Não

posso

ficar

mais

aqui,

a

machucarei

--

disse Anne tristemente.

—Não penso o mesmo. Estamos todos muito felizes, exceto você.

—Não está ciente da atitude que nossa irmã tomou? Não vê o que eu vejo? Enquanto continuar assim, terminará mal e nunca encontrará um marido.

-- O que Elizabeth faz com a vida dela é problema dela, não meu. Ela deve estar ciente de que é burguesa e que não realizará o sonho de se comprometer com um aristocrata. O que acho insuportável é que se culpe por isso. Se ela usasse alguma outra coisa em seu cérebro, em vez de se olhar tanto no espelho, perceberia que tem um dom tão precioso que qualquer homem, seja ou não um aristocrata, cairia a seus pés. Mas, felizmente para ela do que para você, é mais fácil culpar os outros pela imprudência que ela faz diariamente.

—E a maldição? -- Anne perguntou, se aproximando da cama da irmã.

—Isso é estupida! Pelo amor de Deus, realmente acredita nela?

—Depois das mortes de...

—Eles eram ineptos! Hendall era tolo por andar bêbado em um garanhão, o pobre Hoostun não tinha cérebro e seu pai acreditava que,

casando-o com uma mulher saudável, ele resolveria o problema. Além disso, você mesma testemunhou a impaciência do conde. Qualquer homem honesto teria gritado aos céus quando nossa mãe confessou que não guardou sua virtude e o que ele disse?

—Que ele não se importava com o que fizera no passado, que a única coisa que lhe interessava era que seu filho tivesse filhos logo --

comentou Anne, corando com a frieza com que sua irmã expunha o fato de que ela entregara o tesouro de sua virgindade para Dick.

—Exatamente! —Disse Mary, ajoelhada na cama. -- Aquele homem só queria netos saudáveis para mostrar seu título nobre, mas ele se esqueceu da insanidade de seus próprios filhos. Talvez se ele a tivesse reclamado como sua esposa, teria tido uma chance.

—Ou ele teria morrido -- disse Anne um pouco com raiva.

—Bem, certamente seu coração não teria suportado uma noite ao seu lado. Se o sangue cigano, que nossa mãe diz que a enlouqueceu a ponto de não ter consciência do que fez com Dick, ainda está em suas veias, o velho teria morrido só de vê-la nua. —E depois dessa declaração, ela soltou uma risada.

—E você? Não tem sangue cigano? Porque sua mãe é a mesma que a minha -- ela recriminou.

—Como já ouvi, o sangue cigano nos incita a viver paixões e

desejos para com os homens e eu, por enquanto, não quero deitar nos braços de ninguém. Então, felizmente para mim, eu não deveria ter uma única gota. É mais provável que o Moore predomine, então só preciso encher minha mente com sabedoria e não ter sonhos absurdos. A castidade, minha querida irmã, deve ser o segredo de eu ser mais inteligente que você —disse ela com orgulho.

—Espero que encontre o homem que Madeleine viu e se torne mais luxuriosa do que eu fui! —Anne gritou enquanto caminhava em direção à saída.

—Outra maldição? —Rosnou Mary com sarcasmo.

—Se isso a fizer uma mulher menos instruída, sim, é outra maldição —declarou antes de fechar a porta.

Não suportava à frivolidade que Mary expressava quando falava sobre o problema que tinham com Elizabeth, ou como podia zombar dela por se entregar ao homem que amava, ou como ria daquela maldição. Ela era culpada por tudo o que aconteceu! Só ela! Mas logo o problema seria resolvido... naquela mesma noite, o pai conversaria com o homem que a levaria para longe de Londres e da sua família. Uma vez que a filha amaldiçoada deixasse de existir para a sociedade, suas irmãs recuperariam o que haviam perdido por sua causa e finalmente encontrariam a paz.

Quando apareceu no topo da escada, notou que Elizabeth estava

esperando por ela na entrada ao lado de seus pais. Sua irmã havia escolhido um vestido azul claro para a ocasião e, como sempre, sua escolha foi muito sábia. O tom do tecido não apenas destacava a cor dos seus olhos, mas também enfatizava dourado do cabelo. Anne sentia pena dela. Ela era linda demais para adotar esse comportamento tão inadequado. Se ela se tornasse uma mulher respeitável e deixasse seu dom ser conhecido, como Mary explicou, os homens cairiam loucamente a seus pés.

—Finalmente! —Exclamou ao vê-la. -- Por que escolheu esse vestido horrível? Não percebe que essa cor não a favorece? Se usar algumas joias de estanho, vai parecer uma verdadeira cigana e estarão lhe pedindo o tempo todo para que leia o futuro —disse antes de soltar uma risada.

—Elizabeth... —advertiu sua mãe. -- Deveria estar agradecida por sua irmã ter decidido acompanhá-la até a cerimônia, em vez de zombar dela.

—Anne, agradeço por me acompanhar, —Eli resmungou. —Mas preferiria a Mary.

—Elizabeth! —Seu pai gritou. -- Como pode ser tão pérfida?

—Não sou pérfida, pai -- ela disse, suavizando o tom. -- Sou realista e a única coisa real que vejo neste acompanhamento, é que ninguém se aproximará de mim porque estarei sob a proteção de uma amaldiçoada que também usa um vestido horrível.

—Elizabeth Moore! Está de castigo! -- Gritou Sophia, com raiva.

—Não vai me deixar ir? O que minha amiga pensará quando não me ver? Que boato os convidados vão espalhar quando não houver representação dos Moore no evento mais importante do ano? —Ela perguntou com rancor.

—Não se preocupe, mãe. Cuidarei dela —Anne apaziguou.

—Se observar algo inapropriado, se o comportamento de Elizabeth se tornar insuportável, não hesite em arrastá-la até aqui --

pediu Sophia, apertando os olhos. —Então me ocuparei para que mude sua atitude quando ela passar pela porta.

—Lembre-se, mãe, que o sangue cigano corre pelas minhas veias e, como a senhora fez na época, eu também procuro por um homem que me faça feliz —expos Elizabeth enquanto Shira a ajudava vestir o casaco.

—Meu sangue cigano me avisa que sofrerá por um longo tempo

—Sophia murmurou. —Enquanto a tristeza cobrira esse coração sombrio, não encontrará a luz.

—Por favor... —Anne interveio. —Não é hora de começar outra discussão. Certamente nada acontecerá e Elizabeth se comportará corretamente.

—Espero que sim —Randall sussurrou antes de pegar a mão de sua esposa e beijá-la para tranquilizá-la.

Depois que saíram de casa, Elizabeth subiu primeiro na carruagem, sentou-se no banco e olhou para Anne com os olhos apertados.

—Espero que não me envergonhe novamente.

—Eu? —Anne perguntou atordoada. —Se alguma coisa a envergonha, é o seu comportamento. Parece uma prostituta.

—Se não tivesse enterrado dois pretendentes, não teria que mostrar o decote para encontrar um marido.

—Madeleine disse que iria encontrá-lo —Anne lembrou.

—Sim, ela também disse que apareceria no caminho entre a nossa casa e a do Bohanm, e você viu um cavaleiro rondando aquela área?

—Deveria ter paciência e....

—Não tenho tempo! —Ela exclamou em voz alta. —Não percebe que estou prestes a completar vinte e dois? Estou muito velha!

—Mas...

—Não há mais, Anne. Os dias passam cada vez mais rápido, minha beleza desaparecerá, e se não encontrar um marido antes do final do ano, me tornarei uma solteirona amarga como você —ela disse antes de virar o rosto para a janela da carruagem finalizando a conversa.

Anne a observou em silêncio. Ela estava tão desesperada para alcançar seu propósito que, como Mary dissera, qualquer coisa poderia acontecer com ela, da qual se arrependeria pelo resto de sua vida. Mas,

felizmente, ela permaneceria ao seu lado naquela noite para não cometer nenhum disparate e, quando voltassem para casa, seus pais cuidariam dela. Só esperava que o capitão do navio aceitasse a proposta de seu pai e que partissem o mais rápido possível...

Depois

de

suspirar

profundamente,

colocou

as

mãos

involuntariamente no peito. Não entendia por que estava tão inquieta ultimamente. Talvez fosse devido à angústia que sentia por Elizabeth ou à ansiedade de descobrir de uma vez quando iria embora. Independentemente da razão disso, o latejar aumentou durante a viagem e seu sangue cigano, que congelara após a morte de Dick, recuperou a vida, como se indicasse que seu destino mudaria para sempre naquele dia....


I


Como já temia, a cerimônia nupcial não apenas consistia em acompanhar o futuro casal na igreja, mas depois tiveram que assistir à celebração que o Marquês de Riderland havia preparado em sua residência em Londres. Anne, cansada depois de muitas horas sem poder se sentar, decidiu se esconder e se apoiar atrás de um dos pilares que cercavam a sala. Aquele lugar isolado permitiria que ela continuasse observando sua irmã enquanto apaziguava a dor insuportável em seus pés. Incapaz de piscar, para não perder um único movimento de Elizabeth, notou que ela e sua amiga Natalie, agora Sra. Lawford, olhavam com desconfiança para o local da sala destinado para jovens solteiros. Anne silenciosamente amaldiçoou ao descobrir quem eram os possíveis protagonistas da conversa. Como Elizabeth poderia agir dessa maneira? Ela não tinha nem um pouco de dignidade? Os dois rapazes aos quais observavam não eram apenas mais jovens do que ela, mas também eram os filhos de dois importantes aristocratas londrinos. Isso confirmava que o problema de sua irmã era maior do que pensava. Quando as duas amigas olharam para outro lado, Anne contemplou silenciosamente aqueles dois jovens. O primeiro, exceto pela cor dos olhos, era uma réplica idêntica ao duque de Rutland. Até se assemelhava à retidão de sua grande corpulência. Como suas clientes comentavam, a quem ela retratava diante de

uma bela paisagem e com vestidos que nunca compraria por sua exagerada extravagancia, o belo adolescente tornara-se um dos solteirões mais cobiçados da cidade. Sendo o primogênito do duque, e o único homem, herdaria um legado que muitas jovens casadoiras estavam ansiosas por conseguir, embora, felizmente para ele, ainda não estivesse interessado em encontrar uma esposa com quem compartilhar essa herança, mas em terminar os estudos que acabara de começar. O segundo menino que Elizabeth observou por um momento foi Eric Cooper, o filho do barão de Sheiton. Um jovem alto, com olhos de safira e uma cor de cabelo incomum, já que naquele cabelo avermelhado, umas mechas loiras brilhavam como ouro. Outro candidato a marido, pelo qual não apenas as jovens suspiravam, mas também as mães delas. Porque, se o filho do duque tinha uma aura de respeito, seriedade e honestidade que intimidava qualquer um que se aproximasse dele, lorde Cooper assustava ainda mais com seu comportamento nobre. Ninguém se atrevia a espalhar um boato falso sobre ele. Sua honestidade excedia em muito a do homem mais honesto do mundo e, de acordo com as declarações das jovens que se fascinavam por serem retratadas, o futuro barão de Sheiton recusou, sem rodeios, mostrar uma vida de devassidão. Que mulher em sã consciência não sonharia em ter um marido dedicado apenas para agradar a sua esposa? Esse comportamento incomum entre os aristocratas de Londres se confirmava em qualquer evento social. Um dos exemplos mais

significativos dessa atitude fria e distante poderia ser notado no momento das danças. Ele nunca levava uma mulher para dançar, exceto a esposa de seu pai, sua irmã Hope, a filha do marquês de Riderland ou as do duque de Rutland.

Devido a essa atitude distante, cada vez que o jovem caminhava ao lado de um grupo de jovens casadoiras, os suspiros se tornavam tão profundos quanto os gemidos de tristeza.

Depois de refletir sobre os dois jovens, ela decidiu deixar a área onde estava e ir para os lugares que eram destinados para as senhoras idosas, que se cansavam durante a noite, ou para aquelas jovens que esperavam um generoso cavalheiro que as levasse para dançar. Ela estava na primeira opção, embora não tivesse chegado aos vinte e cinco. Mas não conseguiria ficar de pé por nem mais um segundo. Enquanto caminhava pelo amplo corredor formado pelas colunas e a parede, observava os convidados. Todos bebiam, sorriam, dançavam e falavam sem prestar atenção à sua presença, como se ela não existisse. Isso, de certa forma, a agradava. Dessa forma, não teria que oferecer desculpas absurdas sobre o comportamento esquivo que mantinha ou ouvir de novo a triste história da morte de seus noivos. A sociedade, em vez de falar sobre a habilidade que adquirira com a pintura e o que era considerado entre as damas da alta sociedade por seus trabalhos, preferia se alegrar nos piores momentos de sua vida. Embora isso não importasse depois dessa noite. Quando a pessoa que seu pai visitaria concordasse em levá-la em

seu barco, ela partiria. Desta forma, esqueceria quem era e iria se concentrar em quem queria ser: Anne Moore, a pintora.

Fora Dick quem lhe contara sobre a viagem a Paris durante os encontros românticos que tiveram. Ela sempre dizia que estava cansada de morar em Londres porque, por mais que tentasse, não conseguia encontrar seu lugar em uma cidade tão esquiva e orgulhosa. Claro, nunca disse a ele que uma parte dela, seu lado cigano, insistia para que viajasse de um lugar para outro e descobrisse novos mundos como se fosse uma nômade. No final, ficou evidente que seu sangue cigano era maior que o Moore...

Após a morte do filho do conde, relembrou todas as histórias que Dick contara sobre a cidade e acabou obcecada com um ponto: a sociedade parisiense era muito diferente da inglesa. Ninguém perguntava sobre o passado das pessoas. A única coisa que os interessava era a pessoa que havia chegado e jamais perguntariam o que aconteceu para que saísse de sua cidade. Essa nova visão da vida seria fabulosa porque, uma vez que pisasse em Paris, esqueceria a tragédia que vivera em Londres e se apresentaria como uma jovem artista que procurava ter sucesso na arte da pintura.

?Uma jovem artista ... ?suspirou para si mesma.

Ela não era mais tão jovem, mas uma grande pintora nasceu dentro dela e tudo se devia à morte de seu segundo pretendente. Algo bom despontou desse passado horrível!

Durante a depressão que sofreu após o episódio, ela se concentrou em pintar e desenvolver sua técnica. A única coisa que a fazia sair de casa, era visitar uma livraria onde comprava livros que explicavam como evoluir no dom que possuía desde criança. No início, representava apenas paisagens sombrias e tenebrosas, no entanto, com o passar do tempo, começou a ver luz e beleza nelas. Sua mãe, como recompensa por essa nova perspectiva, colocou as telas que ela chamava de belas na entrada da casa, permitindo que todos que as visitassem pudessem admirá-las. Uma dessas visitas foi o casal Flatman. O parceiro de seu pai queria descobrir como estava após o segundo transe. Mas não falaram sobre a enfermidade mental que sofreu porque a esposa do médico concentrou todas as conversas em sua maravilhosa habilidade. Durante o jantar, a Sra. Flatman decidiu pedir-lhe para retratar suas filhas porque, segundo ela, ambas tinham uma beleza semelhante à das deusas gregas. Ela aceitou o trabalho rapidamente, esperando que essa alternativa fosse benéfica para ela. E assim foi. Antes de terminar o segundo retrato das filhas do médico, havia confirmado uma série de outros pedidos. Quase todas as senhoras, que podiam pagar seu preço, exigiam seus serviços. Embora só pintasse mulheres, porque os cavalheiros não se atreviam a olhar para ela, no caso de envenená-los com os olhos, gostava daquele novo rumo que a vida lhe dera. No entanto, com o passar do tempo começou a se cansar de ir de um lugar para outro com o cavalete, das

conversas que as jovens lhe ofereciam e de retratar mulheres bonitas que escondiam uma maldade parecida com a de sua bisavó Jovenka.

Essa era a segunda razão pela qual queria se afastar de sua família. Além de libertá-los da maldição, poderia se dar uma oportunidade.

Não queria se tornar uma testemunha silenciosa das projeções maravilhosas que as moças que ela retratava apresentavam, ela queria ser a protagonista dessas experiências. Já havia assumido que seu sangue materno era mais poderoso que o do pai, que dentro dela havia uma mulher apaixonada que queria amar e ser amada e que, a cada dia que passava trancada, seus anos de vida eram reduzidos. O que sua mãe disse? Que deveria casar com um cigano para que a maldição desaparecesse, mas em nenhum momento explicou que não poderia manter relações com os homens. Logicamente, devido à reputação de seu pai, não pretendia encontrar amantes em Londres, mas os encontraria em Paris. Talvez... até... sim, poderia até se tornar mãe. Anne fechou os olhos e suspirou. Se conseguisse ter um filho em seu ventre, se conseguisse gerá-lo, ela o amaria e cuidaria dele até o fim de seus dias. Nunca diria ao pai sobre a existência daquele filho, de modo que ele não insistisse em se casar e se tornasse a terceira vítima da maldição. Nunca pensou nisso enquanto mantinha relações amorosas com Dick. Talvez porque era muito jovem ou talvez porque ele prometera que, até que eles se casassem, não deixaria sua semente dentro dela. Independente do motivo, não

se imaginou com uma criança em seus braços até que decidiu deixar a cidade que odiava. Só Paris poderia oferecer-lhe o que sonhava e desejava!

Quando estava prestes a chegar na área da sala a qual se dirigia, escutou vozes masculinas muito próximas a ela. Por causa do tom que usavam, não pareciam estar tendo uma conversa cordial, muito pelo contrário. Embora devesse ser discreta, Anne olhou para aquelas duas figuras masculinas que afastadas dos convidados. Um, sem dúvida, era o marquês de Riderland. Mesmo que estivesse de costas, o cabelo loiro e a altura eram seus traços mais característicos. No entanto, os olhos castanhos de Anne se fixaram no cavalheiro desconhecido. Suas costas eram tão largas quanto às do Marquês e diferiam pouco em altura. Suas pernas longas e torneadas estavam perfeitamente moldadas pelas calças. Eles pareciam duas figuras exatas, no entanto, o estranho usava um longo cabelo escuro preso em uma fita preta, de acordo com o tom do terno que usava. Anne, percebendo que ele começava a mover seu lindo corpo virando para o lado dela, começou a andar em direção às cadeiras, tirando rapidamente os olhos daquele lugar. Se repreendia Elizabeth por seu comportamento descarado, não poderia fazer exatamente o que estava recriminando. Mas a curiosidade em descobrir quem irritou o marquês em um dia tão importante para a família, fez com que ela lentamente virasse o rosto para eles. No momento em que viu as feições do estranho, estendeu a mão para o encosto da cadeira mais próxima e se

agarrou a ela com força. Eles eram da família, disso não havia dúvidas. Somente os Riderland poderiam ter aquela cor de olhos tão especial e rara. Como Elizabeth dissera, era uma característica muito típica dos Bennett. Mas Anne não fixou apenas os olhos no homem, mas continuou a observá-lo com ousadia. Sua mandíbula, forte e máscula, ostentava uma barba bastante espessa e comprida. Parecia que ele havia demitido seu valete anos atrás. Lentamente, e sem conseguir parar de olhá-lo, contemplou seu nariz aquilino, as rugas em sua testa e aquela forma de coração que mostravam seus lábios vermelhos como o carmim. Atordoada por esse comportamento tão atrevido, se colocou na frente da cadeira que estava segurando e se sentou. No entanto, seus olhos pareciam não ter percebido aquele constrangimento que percorria seu corpo e permaneceram presos no estranho, reunindo todos os detalhes daquele corpo tão másculo e magnético. Conseguiu rapidamente a resposta a uma das perguntas que se fez mentalmente; ele era um legítimo Bennett, apesar de ser moreno. Talvez fosse um sobrinho, um primo ou um tio jovem do marquês. Mas sem dúvida, um Bennett.

Estava tão encantada com ele, tão atraída por aquele corpo musculoso e sensual, que não percebeu que o observara por tanto tempo que acabaram cruzando seus olhares. No momento em que aquele estranho ergueu a sobrancelha direita, perguntando em silêncio para o que estava

olhando, Anne, ainda mais envergonhada, abaixou a cabeça. No entanto, percebeu que ele não tirara os olhos dela. Sentia como a olhava, como contemplava cada centímetro dela, e naquele exato momento queria que uma cortina de fumaça, como a usada pelos ilusionistas que atuavam no teatro, a cercassem para que pudesse escapar. Mas aquela névoa espessa não apareceu e

continuou

percebendo

o

escrutínio

daquele

homem

sobre

ela. Mereceu. Causara aquele constrangimento por ser tola. Como se atrevera a olhar para um homem assim? Não estava zangada porque Elizabeth fizera o mesmo com os dois jovens aristocratas? Bem, agora... quem ficaria chateado por sua atitude inadequada? Ela. Ela mesma ficou irritada com sua indiscrição e com a repercussão que sua atitude inconveniente havia causado.

Ela colocou as mãos no vestido, eliminou as poucas rugas que havia e respirou fundo para se acalmar. Como era a única culpada dessa indecência era, colocaria um fim nela. Muito lentamente, foi se levantando, precisava voltar para o lugar onde passara às últimas duas horas. Ninguém iria vê-la ali e esse homem pararia de olhá-la. Mas quando ergueu o rosto, quando seus olhos se dirigiram de maneira involuntária para o lugar em que ele estava, descobriu aterrorizada que continuava a observá-la. Suas pernas começaram a tremer, suas mãos estavam tão suadas que podia ver as manchas de suor em suas luvas e seu coração, que tinha parado de bater quando Dick morreu, começara a palpitar com tanta força que a obrigou a se balançar ao

ritmo dessas batidas. O que diabos estava acontecendo com ela? Por que estava tão paralisada? E.... por que sua temperatura subira? Desesperada, porque não havia palavra melhor para defini-la, virou-se, desviou os olhos daquele estranho e, ao dar o primeiro passo, esbarrou com uma mulher que conhecia há mais de vinte anos.

—Senhorita Moore, está bem?

—Milady —disse Anne, fazendo uma leve reverência. —Sim, muito bem, obrigada.

—Já vai? —A baronesa perguntou.

—Não, acabei de chegar. Estava prestes a sentar -- mentiu.

Estendeu a mão para a idosa e ajudou-a a ficar em pé na frente da cadeira ao lado da que ela havia permanecido.

—Então me acompanhe, se não tiver nada melhor para fazer --

pediu à filha mais velha de seu bom amigo Randall.

—Será uma honra —Anne respondeu, se acomodando novamente.

—Está aqui há muito tempo? Não a vi antes.

—Desde o início da tarde, milady. Como sabe, Elizabeth é a melhor amiga da atual esposa do Sr. Lawford e não poderíamos perder um dia tão especial —explicou lentamente.

—Então o fato de não ter ouvido falar a seu respeito até agora é

porque passou esse tempo cuidando da integridade de sua irmã em vez de aproveitar a festa, estou errada? —Vianey perguntou com grande confiança.

—É muito astuta, baronesa —disse Anne, esboçando um leve sorriso.

—Bem, tenho que informá-la que não serve como dama de companhia -- ela disse de forma repreensiva. —Caso não tenha notado, Elizabeth decidiu dançar com Lorde Lorre e posso assegurar-lhe que esta companhia não é muito apropriada.

Anne, diante do comentário da baronesa, olhou para a pista de dança e confirmou suas palavras. Elizabeth dançava e sorria para seu acompanhante. Como aceitou dançar com ele sem pedir permissão? Estava tão desesperada para ignorar os protocolos sociais? E o que ela fez para impedir isso?

—É só uma dança...—Anne murmurou para a baronesa. —Tenho certeza de que quando eles terminarem, ela virá até mim e tudo será resolvido.

—Sua irmã, querida, não deixará nada resolvido. Não sei se seus pais são conscientes da atitude inadequada que a terceira de suas filhas tem adotado, mas o resto da sociedade sim -- disse ela severamente. -- Seria uma lástima se, após o tempo que o seu pai levou para se posicionar onde está, a má reputação de uma de suas filhas o destrua.

—Milady, com todo o respeito, devo dizer que está dramatizando uma atitude afável. Minha irmã não adota uma...

—Como definiria o comportamento de uma jovem que, desesperadamente, tenta se casar com um aristocrata, Anne?

O fato de que aquela mulher a chamava pelo primeiro nome a deixou aturdida. Era verdade que seus pais e a baronesa de Swatton tinham um relacionamento muito íntimo depois que seu pai salvara seu amante, o administrador Arthur Lawford, de uma terrível doença. Mas nunca se dirigiu a ela com tanta familiaridade. Isso só poderia indicar que estava muito preocupada com a fama que Elizabeth poderia adquirir e o drama que acarretaria à sua família.

—Irá passar... -- Anne admitiu depois de respirar fundo.

—Acredita mesmo que depois que sair da cidade a sua irmã irá mudar? —Ela retrucou, olhando-a sem piscar.

—Como sabe...? —Tentou dizer.

—Sua mãe e eu, como bem sabe, somos muito boas amigas e me contou que decidiu ir para Paris pelo bem de suas irmãs —confessou.

—Não só por isso, milady, mas também pelo desejo de evoluir como artista. Não posso passar o resto da minha vida retratando damas, isso vai me destruir de novo e, como bem sabe, depois do que aconteceu no passado, só fui capaz de sair daquele estado horrendo através da pintura.

—Então... nenhum cavalheiro tentou se tornar seu terceiro pretendente, certo? ?Vianey estava interessada.

—Não. Nenhum e também não quero que o façam. Cheguei à conclusão de que quero ficar sozinha. Não quero um homem ao meu lado que esteja continuamente verificando o que farei durante o dia. Preciso de liberdade para fazer o que me agrada -- disse ela com as mesmas palavras que Mary usou quando sua mãe insistiu, três semanas atrás, que levantasse os olhos dos livros e os colocasse em algum homem.

—Entendo... -- a baronesa murmurou, desviando o olhar de Anne e o prendendo no outro extremo da sala. Para sua surpresa, descobriu que o irmão do marquês, o visconde de Devon, continuava observando o lugar onde estavam. Muito a contragosto, tinha certeza de que aquele belo cavalheiro não a contemplava, mas sim a sua companheira. Rapidamente voltou seus olhos para a filha mais velha de Randall e fez uma expressão de aborrecimento com a cor daquele vestido. —Paris não me agrada. Lá os cônjuges são infiéis.

—Os desta cidade não? —Anne perguntou, levantando as sobrancelhas castanhas.

—Os daqui também, mas menos do que os dessa cidade --

continuou em seu discurso. ?Além disso, nem tudo está perdido. Talvez apareça um cavalheiro que não tenha medo de enfrentar a morte e queira

descobrir o que está escondendo sob este horrível vestido laranja. Sua mãe não a proibiu quando a viu? Porque se fosse minha filha, teria feito isso em pedaços.

—Minha mãe, como bem sabe, respeita as decisões de suas filhas. Por essa razão, me permitiu usar este lindo vestido de seda laranja e me apoia na decisão de partir para Paris —disse sarcasticamente.

—Bem, sendo esse o caso, devo avisá-la para se concentrar, durante o tempo que permanecer aqui, na atitude de sua irmã, não acho que minha querida Sophia deseje ouvir conversas sobre a posição que sua terceira filha ocupará se desejar manter um relacionamento com o senhor Lorre.

—A qual posição está se referindo? —Ela perguntou, se virando para a baronesa.

—Não ouviu os últimos rumores sociais, certo?

—Como deve compreender, não estou disposta a prestar atenção a diálogos absurdos sobre o que a aristocracia faz ou não —disse seriamente.

—Nesse caso, farei um resumo. Aparentemente, os barões de Pherguin, os pais de Lorde Lorre, fizeram tudo ao seu alcance para trazê-lo de volta da Espanha. O muito ingrato dilapidou mais de dois terços da herança familiar e foram obrigados a concordar com um futuro casamento com a filha do casal Bakalyan, os donos da segunda mais poderosa empresa de ferro. Assim que o acordo se tornar público, o único lugar que o ilustre

Lorde Lorre poderá oferecer é o de uma amante. Sua linda irmã quer se tornar amante de tal homem? Sophia também respeitará essa alternativa para sua filha? —Disse de má vontade.

—Tenho certeza de que Elizabeth não sabe do que aconteceu, milady. Caso contrário, ela teria se recusado a conceder aquela dança —murmurou enquanto observava o casal sorridente. —Mas não se preocupe, assim que a peça terminar, falaremos sobre isso e verá como tudo foi um grande engano.

—Espero que a coloque em seu lugar —disse a baronesa, levantando-se depois de descobrir que Arthur estava indo em sua direção. --

Seria horrível que tal comportamento selvagem que resolveu ter, a levasse a se perder. Testemunhei catástrofes irreparáveis sobre a honra de uma mulher.

—Como eu disse, tenho certeza que foi um engano —disse Anne, se levantando também.

—Bem, confio em seu bom senso, Anne. Não gostaria de testemunhar a terrível humilhação que seus queridos pais suportariam —ela insistiu.

—Não seria a primeira vez... —murmurou para si mesmo, mas a baronesa ouviu.

—Que seus noivos tenham morrido não é tão importante quanto ver arruinada a honra de sua irmã. E agora, se me der licença, tenho que me

encontrar com Arthur. Estará cansado e quererá ir embora.

—Boa noite, milady —disse Anne, com uma leve reverência.

—Boa noite, Anne e lembre-se de uma coisa, a esperança é a última coisa que se perde.

—Se está se referindo a Elizabeth, não se preocupe, tenho certeza que tudo terminará em breve.

—Não me refiro a essa harpia disfarçada de menina, mas a você. Não perca a esperança de viver aqui o que sonhou, porque prevejo que sua vida mudará muito mais cedo do que imagina —disse ela antes de caminhar lentamente para o local onde o administrador a estava esperando.

Enquanto tentava se acalmar, observou a baronesa caminhando em direção ao amante sem se importar com a fofoca dos outros. Era ilógico que uma mulher como ela, que mantinha um caso com o tio do marido de Natalie há cinco décadas, notasse o comportamento infantil de Elizabeth. Mas isso só fortaleceu o que já havia concluído: que a aristocracia estaria sempre acima do resto do mundo. Incapaz de aplacar a raiva que sentia, Anne franziu o cenho e silenciosamente amaldiçoou que seus pais não tivessem escolhido Mary para ocupar seu lugar. Certamente, depois de ouvir as palavras da baronesa, ela teria se levantado, ido até os dois e, depois de esbofetear aquele rosto masculino bem-cuidado, teria agarrado Elizabeth pelo braço para arrastá-la para fora da residência do marquês. No entanto, ela, estava

paralisada olhando para as expressões coquetes de Elizabeth e rezando para que as cordas de todos os violinos arrebentassem e o baile acabasse de fato.

«Mais alguns minutos...", pensou enquanto começava a caminhar para aquela área onde queria se esconder até que a música terminasse. Se já era penitência suficiente suportar que todos a evitassem e sua irmã não se comportasse adequadamente, não queria acrescentar, a essa lista, que os convidados percebessem que ela estava zangada, muito zangada. Certamente sairiam correndo gritando que a bruxa queria matar outra pessoa. Mas quando ia se colocar atrás daquela grande coluna que a protegeria até que pudesse pegar sua irmã e fazê-la voltar para casa, tornou a sentir uns olhos fixos nela. Com medo, porque estava ciente de quem era a única pessoa que teria a coragem de fazê-lo, levantou o queixo lentamente e teve a confirmação. Lá estava ele, aquele estranho de olhos azuis, a observando. Sem tirar os olhos dela, levou o copo que tinha na mão até a boca, bebeu devagar e, depois de tomar aquele gole, lambeu lentamente os lábios. Aquele ato tão descarado causou um ardor tão imenso em Anne que ela quase se ajoelhou. Seu coração batia descontroladamente de novo, suas mãos suavam novamente e uma dor estranha apareceu em seu abdômen. O que diabos estava errado com ela? Seu sangue cigano tinha ressurgido das cinzas ao vê-lo? O que havia de especial naquele homem? Por que estava tão alterada? Anne respirou fundo e, embora suas pernas não respondessem como desejava, se escondeu atrás do pilar, mas

a saia de seu vestido laranja, uma cor bonita, mas não muito discreta, derramava de ambos os lados como se vestisse aquele pilar de mármore. «Se existe, me ajude a sair daqui», ela pediu fechando os olhos.

—Mais uma vez se escondendo? —Elizabeth perguntou.

—Elizabeth! —Exclamou surpresa.

—O que? —Ela retrucou, olhando-a com espanto. —O que aconteceu? Alguém riu do seu vestido horrível? —Ela zombou.

—Temos que ir. Temos que sair daqui... agora! —E, como havia pensado, agarrou o braço dela e arrastou-a para o corredor.

—Tenho que me despedir de Natalie! -- Ela disse uma e outra vez.

—Amanhã envie uma missiva para ela, se desculpe dizendo que não queria que ela perdesse mais tempo e que partiu porque já era muito tarde

—ela indicou sem olhar para ela.

Seu casaco. Tudo o que ela precisava para sair de lá era o casaco. Mas se o mordomo demorasse muito para oferecê-lo, sairia sem ele.

E enviaria Shira para buscá-lo no dia seguinte.

—Mas Anne! —Insistia Elizabeth. —Não. Não está correto agir...!

—Está depois do que fez! Sabe o que a Baronesa de Swatton sugeriu para mim enquanto dançava com Lorde Lorre?

—Vindo dela, qualquer coisa —disse Eli divertida.

—Que os homens não te veem como uma futura esposa, mas como amante —disse ela sem hesitar.

—E é isso que uma mulher que esteve em um relacionamento secreto por décadas com um administrador de fama suspeita disse? --

Trovejou Elizabeth, ofendida.

—Se ela pensa assim, o resto do mundo também. Ela só quer nos informar o que acontecerá se não reagir em breve.

Quando ela se virou para pegar o casaco que um mordomo finalmente oferecia, seu corpo endureceu como uma tábua. Ele a seguiu. Aquele homem a estava seguindo. Por que ele fez isso? Que interesse tinha em relação a ela?

—Ouça uma coisa, Anne Moore —disse Eli, apontando o dedo para ela. —Nem pense em contar aos nossos pais tanta tolice. Não procuro ser amante de ninguém, mas a esposa de alguém. Talvez tenha desistido quando seus dois pretendentes morreram, talvez a tolice daquela maldição de nossa bisavó a tenha assustado, mas não a mim. Não quero me tornar uma solteirona e pretendo me aproveitar do físico que tenho para encontrar um homem para casar.

—O físico não é importante... —Anne murmurou assombrada.

—Para se tornar a esposa de um aristocrata, sim —disse ela antes

de se virar e sair da residência com o queixo tão alto quanto uma duquesa.

Anne, antes de dar um passo à frente e correr atrás de Elizabeth, virou-se para o lugar onde ela tinha visto o homem e descobriu que ele ainda estava lá, encostado na parede, naquele impecável terno preto, mostrando uma aura de mistério e olhando para ela sem piscar. Atordoada, pela forma tão ousada de observá-la, se virou e correu em direção à saída. Uma vez que entrou na carruagem e está partiu, seus olhos perfuraram involuntariamente a entrada da residência do Marquês e, quando observou a figura encostada no batente da porta, seu sangue cigano começou a ferver queimando a pele.

II


Quando Randall chegou à sua casa, depois de falar com o visconde de Devon, foi diretamente para o corredor norte, onde ele e sua esposa costumavam tomar o café da manhã com tranquilidade antes de suas filhas acordarem. Ao entrar, Sophia, como eles combinaram antes de ele partir, estava esperando sentada em frente ao calor da lareira. Ela havia soltado os cabelos e aquela esteira de fios negros e lisos chegava à cintura. Lentamente Randall foi em sua direção, colocou-se atrás dela e lhe deu um beijo carinhoso na cabeça.

—Ele se recusou a levá-la, certo? —Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

—Sim, recusou, apesar de ter lhe dado o envelope --

respondeu. Se virou gentilmente e sentou-se ao lado de sua esposa. —Nem o olhou... —ele acrescentou depois de respirar. —Não posso culpá-lo, Sophia. Porque o culpado de tudo sou eu... —continuou aflito.

—Não tem nada a ver com esse rechaço. As coisas acontecem por uma razão e estava previsto que ele não aceitaria essa proposta, mesmo que tenha lhe oferecido um milhão de libras —assegurou.

—Não sei se estava ou não —disse ele, descansando a cabeça no ombro dela. —A questão é que ele se recusou completamente depois de falar

sobre a maldição de nossa filha.

—E, porque contou a ele sobre isso? —Sophia retrucou, pulando para cima. Ela olhou para ele e, vendo a tristeza naquele rosto que ela amava, relaxou.

—Não sei... —Randall disse esfregando o rosto em desespero. --

As palavras saíram da minha boca sem que pudesse controlá-las e quando eu quis parar, já era tarde demais.

—O que disse... exatamente? -- Ela exigiu saber enquanto se colocava na frente dele. Se ajoelhou, colocou as mãos nos joelhos de Randall e olhou para ele com muito carinho.

—Quando ele se recusou a navegar com uma mulher em seu navio, pensei que, explicando o seu passado, mudaria de ideia.

—E? —Sophia insistiu.

—Eu confessei sua verdadeira origem, o que sua avó fez, o sonho que teve no nascimento de Anne e a morte de seus pretendentes —disse ele sem olhar para ela.

—E? —Ela continuou insistindo.

—E, claro, ele se recusou ainda mais. Que capitão de navio levaria uma mulher amaldiçoada entre sua tripulação?

—Essa foi a razão pela qual ele rejeitou? Essas mesmas palavras saíram da sua boca? —Ela insistiu novamente.

—Não. O visconde não se referiu à maldição, mas à ideia maluca de tirar nossa filha de nós.

—O que aconteceu quando contou sobre a morte dos pretendentes de nossa filha?

—Pensei que me chutaria para fora de sua casa —ele disse com pesar. —Primeiro ele ficou pálido, como se não acreditasse em minhas palavras, então, quando expliquei que nenhum homem se aproximava dela e que ele pode confirmar isso na festa, me culpou pela infelicidade de nossa filha. Segundo o visconde, foram nossas escolhas equivocadas que provocaram essa catástrofe.

—Nós não temos nada a ver com a aceitação de Anne para o Sr.

Hendall. Ela mesma decidiu o que queria com seus atos inapropriados --

Sophia o lembrou.

—Verdade, e se aquele canalha não tivesse confessado que Anne perdera sua virtude com ele, não o teria aceitado. Mas também testemunhou como ele usou a honestidade de nossa filha para alcançar seu propósito.

—E o destino puniu seu trabalho maligno com a morte —disse Sophia, levantando-se. Ela se virou devagar e sentou-se ao lado do marido.

—Sorte dela... —ele meditou em voz alta. —Ainda estou me perguntando como Anne não foi capaz de descobrir quem esse homem realmente era e o que ele pretendia com esse casamento —disse Randall,

colocando as mãos nos joelhos, como se para apaziguar a frieza que sentia após a retirada de sua esposa. —A cidade inteira conhecia a má reputação de Hendall e, apesar disso, Anne deixou-se seduzir sem se importar com o motivo pelo qual se aproximava.

—Uma mulher apaixonada é incapaz de ver além dos olhos de seu amado. Mesmo que ela ouvisse rumores sobre os casos de amor de Hendall e as pretensões que tinha de se casar, ela negaria cegamente --

assinalou Sophia, colocando as mãos na de seu marido. -- Acredita, realmente, que nossa filha poderia admitir que seu noivo deixou um clube em estado semelhante de embriaguez e depois de ter relações sexuais com prostitutas? Ou que a razão pela qual ele queria se casar com ela era conseguir o prestígio que seu bom nome ofereceria à sua companhia?

—Não.

—Bem, tem a resposta, Randall. Nenhuma mulher seria capaz de sobreviver a tal humilhação. Nem mesmo seu dom para pintar a teria libertado daquela amargura.

—E o filho do conde? Alguém achou que ele estava tão perturbado que se mataria com sua própria arma? —Perguntou o médico, virando-se para Sophia.

—Nós dois sabíamos que o jovem não estava bem quando não conseguiu se aproximar para pedir a mão da nossa filha. Além disso,

recriminou o velho conde pela decisão de escolher Anne porque era uma mulher saudável e poderia usá-la como parideira... —ela refletiu acariciando as palmas das mãos do marido com os dedos.

—Não sei o que fazer ou o que pensar. A única opção que ponderei até agora desapareceu quando o visconde se recusou a levá-la em seu navio. Talvez Anne devesse assumir que seu destino é ficar aqui conosco e deixar passar o tempo até que todos esqueçam o que aconteceu. O único inconveniente que vejo nisso é que ela não vai aceitar facilmente. Viu sua insistência em partir, em se tornar uma mulher diferente e, infelizmente, a depressão que passou voltará quando lhe explicar o que aconteceu -- Randall disse com pesar.

—Tem toda a razão. Anne não vai ficar de pé com os braços cruzados quando souber que o visconde se recusou a levá-la embora e irá procurar outro jeito de conseguir. Além disso, não faz isso apenas por ela, mas também por suas irmãs. Não percebeu como está triste depois da mudança de atitude de Elizabeth? Ela se sente culpada pelo desespero de sua irmã e acha que Eli será a jovem que era quando ela for embora —explicou, voltando o olhar para o fogo.

—A única coisa que eu entendo é que, por causa da nossa má escolha...

—Pela maldição —interrompeu Sophia.

—Sabe que não acredito nesse absurdo! Não há estudo científico que explique tal coisa, querida. São apenas conjecturas de uma crença... --

Randall ficou em silêncio enquanto observava as feições de sua esposa endurecerem. Doía falar sobre seu povo, sua cultura e tudo em que ela acreditava desde criança. Mas ele não aceitava essa ideologia. Sua filha não era amaldiçoada. Sua primogênita sofria apenas das más decisões de seus pais, como o visconde dissera, e a recriminação de uma sociedade frívola e injusta. Quanto ele teve que lutar para pular todos os obstáculos que colocaram em seu caminho? Muito! Mas ao longo dos anos e com sua tenacidade manteve a reputação que merecia. Nem a aristocracia poderia ofusca-lo! Então... por que a filha dele não poderia lutar como ele? A resposta que apareceu em sua cabeça lhe causou muita dor, tanto que sentiu suas entranhas se abrissem. Mulher. Só porque Anne era uma mulher, tinha que sofrer essa agonia miserável.

—Por que está tão quieto? —Ela perguntou depois de beijá-lo na bochecha.

—Penso sobre a injustiça, sobre a sociedade tão miserável em que nossas filhas vivem. Estamos prestes a terminar um século e não vejo nenhuma evolução.

—Sobre que?

—Sobre nossas filhas, sobre o fato de que elas são mulheres e o

futuro que terão... —confessou Randall depois de respirar fundo.

—Não deveria se preocupar tanto porque Morgana vai cuidar delas e transformá-las em mulheres abençoadas —disse ela, virando-se para ele.

—Não está pensando sobre a visão de Madeleine novamente, está? —Ele disse, apertando seus velhos olhos.

—Ela não teria dito nada sobre esse assunto se não acreditasse. --

Ela a defendeu com firmeza.

—Madeleine ama sua irmã mais velha e estaria disposta a fazer qualquer coisa por ela, até mesmo mentir, embora, como bem sabe, toda vez o faz aparece, uma erupção aparece em seu rosto.

—Se me lembro bem, não tinha nada em seu rostinho quando disse isso —ela a defendeu novamente. Embora Randall não admitisse suas crenças de sangue, ela o fazia e tinha certeza de que o que Madeleine vira no sonho de que falava se tornaria real.

—Não parou de comer?

—Não.

—Não teve uma erupção cutânea em qualquer parte do corpo? --

Randall continuou dando um pequeno sorriso.

—Não -- Sophia negou novamente.

—Então... acha mesmo que vamos encontrar um marido para a

nossa Mary? —Ele disse zombeteiramente.

—O que Madeleine disse sobre isso? —Ela perguntou timidamente, levantando-se.

—Mas... realmente não duvida dela?

—Não.

—Tem muita fé... —ele sussurrou olhando para o fogo.

—Mary descobrirá aquele marido que venerará sua inteligência e aplacará sua língua.

—Aham —Randall continuou, seus olhos nunca deixando o fogo.

—Josephine...

—Josephine? ?Ele perguntou, virando o olhar para sua amada esposa e erguendo as sobrancelhas. —Se Mary é um tema complicado, Josephine é duas vezes mais— acrescentou sarcasticamente.

—Se não encorajasse sua atitude de guerreira, se não tivesse comprado àquela arma infeliz, Shira teria tomado o cuidado de vesti-la como uma menina e ela não usaria aquelas benditas calças. Sabe como as vendedoras olham para mim quando peço roupas masculinas que uma mulher possa usar? —Ela retrucou com raiva.

—Josephine tem uma alma guerreira e tem que admitir que nenhum homem tem a habilidade que ela tem para a luta. Não tenho dúvidas de que ela seria o soldado mais valente de um exército.

—Não é um homem, Randall! Ela é uma mulher! Não percebeu que começam a brotar certas protuberâncias em seu peito? De acordo com o termo médico são seios, certo?

—Como eu gosto quando fala assim! —Ele exclamou, levantando-se, mas quando foi abraçar sua esposa, ela o rejeitou.

—Mary encontrará um marido, Josephine o seu, Elizabeth... ela vai se apaixonar pelo homem que Morgana escolheu, embora ele não seja aristocrata e Madeleine terá que abandonar esse medo para enfrentar o seu próprio.

—Esqueceu Anne... Se casará com um cigano?

—Sim —ela disse sem hesitar por um único segundo. —O fará.

—Como? Não pensa em levá-la a um acampamento cigano, certo?

—Não, eu não farei tal tolice. Amanhã falarei com ela e contarei o que aconteceu com o visconde. Entre nós duas, vamos procurar uma solução. Talvez possamos encontrar um cliente que more fora de Londres e, desse modo, poderá sair daqui, mesmo que não seja Paris. Certamente que esse cigano aparecerá a qualquer momento...

—E enquanto isso, o que fazemos com Elizabeth? Não podemos permitir que ela continue agindo de maneira tão pouco descente —ele perguntou, estendendo a mão para Sophia.

—Se for necessário trancá-la em seu quarto até que mude seu comportamento, o farei —Sophia disse com firmeza, aceitando a mão do marido.

—Espero que Anne não fique muito chateada quando disser a ela que seu pai contou que era amaldiçoada —disse o médico enquanto os dois caminhavam em direção à saída.

—Ele realmente o olhou como se estivesse louco?

—Não pode imaginar... quando disse a ele que teria que tê-la notado porque nenhum homem se aproximava dela, seus olhos quase saltaram fora. E isso que não contei sobre esse vestido laranja infeliz! Como permitiu que ela fosse vestida assim? Se o que ela tentou foi passar despercebida, não teve sucesso. Até mesmo um cego a teria visto! —Ele exclamou divertido.

—Eu juro que quando a vi descendo as escadas com essa cor quase a fiz voltar para seu quarto para mudar, mas algo dentro de mim gritou que não fizesse isso —disse Sophia, inclinando a cabeça no ombro esquerdo do marido.

—É, de todas as nossas filhas, a que mais se parece com você. Tem tanto sangue cigano correndo em suas veias que ela não pode controlá-lo. Só faltaram as joias que Elizabeth falou para ir gritando quem realmente é.

—É por isso mesmo está amaldiçoada e por isso se entregou àquele canalha. Se ela fosse mais sensata e menos apaixonada, teria analisado sobre a perda de sua honra —murmurou Sophia.

—Não fique zangada com algo que não podemos mais remediar. Anne tem quase vinte e cinco anos e pode fazer o que quiser. Além disso, já conhece o caráter boêmio que os artistas têm... —ele continuou falando em tom de brincadeira.

—Se Madeleine estiver certa, o sangue cigano logo evocará a pessoa que está destinada a ela e esse homem acalmará a paixão que surge nela.

—Acredita? —Randall questionou duvidosamente.

—Eu não fiz isso com você?

—De verdade? Pensei que tinha ido à sua aldeia para curar um homem doente, não para procurar uma esposa —disse o médico, em pé na frente da escada que os levaria ao segundo andar.

—Meu querido Randall, é a pessoa mais gentil que eu já conheci. Ainda pensa, depois de saber o que nossa raça é capaz de fazer, que meu pai adoeceu sozinho? Que não fiz um feitiço para fazê-lo aparecer antes que eles me obrigassem a uma união arranjada?

—Fez isso? —Ele perguntou, levantando as sobrancelhas.

—Não, claro que não —ela disse antes de soltar uma risada e

subir os primeiros degraus. Quando ela viu que Randall não a estava seguindo, se virou para ele. -- Vai ficar aí a noite toda?

—Fez isso? —Ele repetiu novamente.

—Randall Moore —ela começou descendo os dois degraus que os separavam —eu faria qualquer coisa para encontrá-lo.

—Até envenenar seu pai?

—Até envenenar meu pai —ela repetiu antes de beijá-lo nos lábios. —E agora vamos para a cama. Nós temos que descansar. Espero que amanhã seja um dia muito especial para todos nós.

—Especial? —Ele exigiu, apertando os olhos.

-- Sim —disse Sophia antes de encorajar Randall a subir para o quarto. —Muito especial…

-- Outra clarividência? —Ele perguntou ao se colocar ao seu lado e abraça-la.

—Um pressentimento cigano —disse ela.

III


Anne se inclinou contra o tronco ao lado dela e manteve os olhos fixos na frente. A música, a que a puxou para fora da cama e a atraiu para aquele lugar desconhecido, tornou-se mais intensa a cada passo que dava. A escuridão da noite a impedia de ver além do que encontrava quando se movia para a frente, mas isso não lhe causava pavor; ao contrário, nesse momento sentia tanta força e segurança que esqueceu o significado da palavra medo. Ela retirou a mão do tronco em que estava segurando, deu outro passo e ouviu um ruído acima de sua cabeça. Lentamente, ela levantou o rosto e encontrou o maior corvo que já vira. Este último, depois de bater as asas, grasnou e foi para o lugar onde a melodia estava ficando mais alta. Encantada pela música, ela esqueceu o pássaro e entrou na floresta frondosa. Sem se perguntar por que estava indo em direção àquela voz cantando, cruzou o caminho íngreme até chegar a uma pequena clareira no meio daquela floresta. Com espanto deduziu, vendo uma grande fogueira no centro daquele lugar amplo, que não estava sozinha e que talvez a pessoa que acendeu o fogo fosse a mesma que cantava. Parando, sem ao menos mexer os dedos dos pés descalços, olhou em volta, procurando a figura humana que deveria estar em algum lugar. No entanto, não encontrou ninguém. Ela estava sozinha na frente do fogo que a convidava, com seu

calor e luz, a se aproximar e se sentir protegida sob suas chamas.

Quanto mais perto ela chegava da grande fogueira, mais confiante ela estava, apesar do tecido de sua camisola queimar tanto que ardia sua pele. Mas era incapaz de parar no meio do caminho, ela precisava, sem saber por quê, tocar aquelas chamas tão atraentes e seguras.

Deu um passo, depois outro, enquanto seus ouvidos captavam com mais clareza as frases daquela canção: Aproxime-se do fogo, sinta-o em sua pele, em sua alma, em seu peito. Ele te livrará da sua dor, da sua tristeza e te conduzirá ao que almeja.

Como poderia entender essas frases se as ouvia em outra língua? Por que eram tão familiares? O que havia de especial naquela música para deixá-la sem o poder da decisão? Sua mente procurava as possíveis respostas quando estendeu a mão para o fogo. Não se queimou, nem sentiu dor. Por mais estranho que parecesse, não percebeu nada além de tranquilidade, como quando chegava em casa depois de um dia intenso de trabalho. Com os olhos fixos naquele vai e vem amarelo e laranja e com aquela música que repetia várias vezes que encontraria o que procurava, respirou fundo. O que havia desejado durante seus anos de vida? Como se livraria da dor? O que tinha de especial naquele fogo? Teria que atravessá

lo para descobrir as respostas?

Fechou os olhos, abriu as mãos e, determinada a conhecer todos

os enigmas que surgiram em sua mente, colocou os pés sobre as brasas ardentes. Mas estas também não queimavam. Sua camisola ainda estava intacta e ela ainda estava... viva.

—O que quer? —Se atreveu a dizer no meio da fogueira. —O que encontrarei? Por que me trouxe aqui? —Mas tudo ficou em silêncio. Até a voz cantada, que a acompanhara no caminho, cessou no momento em que entrou no fogo. —O que quer? —Repetiu abrindo os olhos.

Depois de passar alguns segundos esperando a resposta, decidiu sair e voltar para aquela cama fria que havia deixado. No entanto, quando saiu do fogo, ouviu o vento agitar as copas das árvores.

—Eu te amo e só tem que me encontrar -- disse a voz de um homem atrás dela.

Assustada, ela se virou e descobriu que o fogo tinha desaparecido. Em seu lugar havia uma figura masculina, que reconheceu rapidamente. Aterrorizada, colocou as mãos no peito e gritou.

—Leve-me porque eu sou seu, assim como é minha —ele continuou falando.

Ela tentou andar para trás, longe daquele homem que estendia as mãos para ela, mas seu corpo se recusava a fazê-lo. Sentia uma atração tão imensa por ele que podia sentir sua pele se separando dela e voando para aquele estranho.

—Não lute, não precisa fazer isso. É minha e eu sou seu —ele continuou falando com ela enquanto cortava a distância entre os dois.

Ela fechou os olhos, não queria ver mais nada. Queria voltar para a cama que não deveria ter deixado, para sua casa, para sua vida horrível, para a solidão..., entretanto, quando o homem a abraçou para consolar aquela inquietação agonizante, tudo ao seu redor deixou de existir e uma liberdade apareceu em seu interior.

Sede, tinha sede e calor. Tanto calor que poderia derreter a qualquer momento. E essa sede não era humana, mas espiritual. Como se ao permanecerem unidos, seu corpo não tivesse sangue e precisasse dele.

—Olhe para mim... —ele disse, levantando o queixo com um dedo. Olhe para mim e descubra em meus olhos tudo o que questiona.

Muito lentamente, ela fez o que lhe foi dito e, aqueles olhos azuis como o mar, lhe ofereceram visões tão claras que pareciam reais. Ela se viu na festa, escondendo-se atrás da parede, mas ele a seguia, a procurava.

Também assistiu à cena de sua partida e percebeu a angústia que sentiu ao sair. Então uma casa apareceu, grande e sólida como um castelo. Ela corria rindo, divertida, enquanto pegava suas saias para não cair no chão. Sua risada misturada com outras, as dele. Outra cena apareceu, não estava mais no meio de um prado, mas em uma sala. Ela estava nua, gemendo, aceitando os beijos que ele lhe oferecia. Se retirou, empurrou-a para a cama, ela bateu

no colchão e sorriu. Então ele se colocou em seus quadris, guardando em seu interior aquele sexo masculino. Ele continuou ofegando, movendo-se, enquanto tocava seus seios, levava sua boca para a dela e sugava todos os seus gemidos. Seus cabelos castanhos dançando ao ritmo daquele ato apaixonado, daquele encaixe, daquela união...

—Não! —Ela exclamou desesperadamente quando se viu daquela maneira luxuriosa. —Não! —Ela gritou apoiando as mãos naquele duro tronco nu e empurrando-o para longe dela.

Anne sentou-se na cama, puxou bruscamente as cobertas e pôs as mãos no rosto. Suas bochechas queimavam e alguns fios de cabelo estavam presos a elas por causa do suor produzido pelo sonho. Atordoada, ela puxou o cabelo úmido para trás, olhou para frente e suspirou angustiada. Como tinha sido capaz de sonhar com algo tão proibido com um homem que não conhecia? Por que sua mente lhe oferecia imagens tão descaradas? Espantada e ao mesmo tempo com medo, moveu-se lentamente pelo colchão, pôs os pés no chão e tentou apaziguar esse estado de excitação. Mas ela achou impossível relaxar. Mesmo que já estivesse acordada e ciente de onde estava, as imagens daquela fantasia ainda estavam em sua cabeça como se fossem reais. Fechou os olhos, pressionou as mãos no rosto e soluçou. Ela não podia permitir que sua mente lhe mostrasse algo tão imoral, tão pecaminoso ou tão real, porque isso a levaria à loucura. Ela não era... ela não podia... ela era

amaldiçoada.

Depois de respirar fundo, se levantou, caminhou até o pé da sua cama, se agarrou ao dossel de madeira e descansou a testa. Não podia chamar o que viveu de um sonho, mas de um pesadelo. Um em que ela se deixava levar pela paixão de um homem que só vira uma vez e que, possivelmente, não encontraria novamente. Então, por que sua mente gritava que ela seria dele? «É minha e eu sou seu», ouviu de novo como se estivesse ao seu lado. Sem se afastar do dossel, tentou eliminar o que aconteceu, mas não conseguiu. Se viu novamente em um lugar que ela não conhecia e a música retornou. O que esse sonho significava? Ela estaria enlouquecendo? Tão encantada ficou ao vê-lo? Não podia negar que, desde que o viu, uma atração inconfessável nasceu nela. Qualquer mulher teria tido ao vê-lo! Era, entre os cavalheiros que estavam na festa, o homem mais viril, sedutor e enigmático. Sua aura perigosa exalava tanto magnetismo que nenhuma mulher podia desviar o olhar de tal pessoa. No entanto, isso não poderia servir como uma desculpa para tê-lo em seus sonhos, para sentir seu toque em sua pele e ouvir novamente seus próprios suspiros ao possuí-la... com os olhos ainda fechados, Anne agarrou o dossel com as duas mãos e choramingou novamente. Nem mesmo seu amado Dick fizera amor com ela daquele jeito tão apaixonado, tão selvagem e.... antinatural. Aquele estranho a levara a um estado de frenesi tão grande que ela tomara as rédeas daquele

encontro e fora ela que o atacara. Ela! Desde quando uma mulher evitava a modéstia e se comportava de maneira tão desavergonhada? Nua! Totalmente nua e desinibida! E ele a tocava... E a beijava... E....

E as bochechas queimaram novamente ...

Irritada com essa reação, se afastou da cama e foi até a sala de banho. Devia encontrar alguma sanidade e bom senso. Não era uma mulher que se deixasse levar por emoções ardentes, não mais. Tinha feito quando conheceu Dick, mas depois de sua morte, seu coração e alma foram aprisionados em uma urna de gelo.

—Anne? O que aconteceu?

A voz de sua mãe a tirou daquele transe. Ela estava tão absorta em si mesma que não a ouviu entrar no quarto ou se aproximar dela.

—Mãe? —Ela perguntou confusa. -- O que faz aqui?

—O que há de errado, Anne? Por que está tremendo? Porque está chorando? Os ataques de pânico retornaram? —Perguntou se aproximando da filha. A última vez que a viu naquele estado foi após a morte do filho do conde.

Anne olhou para ela um tanto confusa. Deveria ser sincera? Era apropriado confessar que ela tinha visto um homem, a quem havia encontrado na noite passada, sair do fogo e viu em seus olhos cenas pecaminosas? Não, claro que não.

—Foi apenas um pesadelo -- disse ela por fim.

—Um pesadelo? Que pesadelo? O que viu? —Ela insistiu em saber. Até agora, Anne herdara um dom, o da pintura. Poderia ser possível que também fosse clarividente?

—Estava em uma floresta, sozinha, sem nada ao meu redor. De repente, um corvo apareceu e começou a me perseguir. Por mais que eu corresse, ele ainda estava ao meu lado porque queria me machucar.

—Um corvo? —Perguntou Sophia erguendo as sobrancelhas. --

Se assustou com um corvo?

—Era enorme. O maior que eu já vi na minha vida —acrescentou.

-- Não viu mais nada? Um fogo? Ouviu uma música?

Naquele momento, Anne esqueceu de respirar. Como sua mãe sabia disso? Teve um sonho parecido? O sangue que compartilhavam era tão semelhante que ambas sonhavam o mesmo? Esperava que isso não fosse verdade porque não conseguiria nem olhar para a sua cara...

—Não —ela disse devagar, segurando a camisola com força. Ela não teria bolhas como Madeleine quando estava mentindo, mas seu rosto estava tão corado que ninguém duvidaria de sua mentira.

—Bem, então, só se assustou com um corvo... —pensou Sophia sem desviar o olhar.

Se sua intuição não se confundia, Anne acabara de sonhar com

seu homem, embora não quisesse confessar. Isso significava que ele entrara em sua vida e que seu sangue cigano o evocava. Mas... onde o viu? Na cerimônia da Sra. Lawford? Quem seria?

—Só um corvo... —admitiu Anne, incapaz de levantar os olhos do chão.

—E.... te bicou? Te machucou? -- Perseverou Sophia audaciosa.

-- Quando sonhei com um corvo, juro que me machucou tanto...

—O que queria, mãe? —A interrompeu bruscamente.

—Vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem. --

Sophia deixou Anne mudar de assunto. Se ela tivesse sonhado com o que ela supunha, teria que assimilar muitas coisas.

—Quer que saia agora, enquanto minhas irmãs ainda dormem? --

Ela falou desesperada para sair de lá.

—Falaremos sobre isso quando se aprontar —disse a mãe, caminhando até a porta. —E, exceto Mary, estão todas acordadas. Ela olhou para a segunda de suas filhas, de quem só se via os tubos de metal que Shira colocava em seu cabelo antes de dormir. —Outra vez esteve lendo até o amanhecer?

—Ela começou um novo livro —Anne esclareceu.

—Vou queimar todos eles! —Sophia rosnou. —Farei a maior fogueira de Londres quando jogá-los no fogo.

E naquele exato momento, Anne colocou as mãos no peito e sua mãe sorriu, quando descobriu que, na verdade, o homem que Morgana escolhera para sua filha tinha finalmente aparecido.


***


Quando Sophia fechou a porta, Anne foi a sala de banho, mas não antes de olhar para Mary. Estava tão calma, dormia tão docemente que ansiava ser ela por alguns momentos. Como ela disse ontem à noite, seu sangue Moore era tão poderoso que a salvava de pensar coisas tão imprudente como ela fez aquela noite.

Ligou a torneira de água quente, se despiu e esperou que o sabão espumasse. Pelo menos estava sozinha para refletir sobre o que tinha acontecido. Graças à tenacidade do pai e à aceitação de certas inovações, não precisava da ajuda de uma criada para ter um pouco de água quente. O que menos desejava naquele momento tão urgente era ter Shira ao seu lado perguntando-lhe mil vezes por que sua pele estava tão vermelha quanto uma flor.

A diferença entre Mary e ela reapareceu. Ali, onde aceitara de bom grado as reformas da sala de banho, Mary gritou aos céus e chamou as novas banheiras de engenhocas demoníacas. Como pensou em chamá-las

dessa maneira? Ela! Uma mulher que não acreditava em anjos, deuses, demônios ou qualquer coisa sobrenatural. Se quando sua mãe falava sobre as visões que teve no passado, perguntava quanto ópio tinha tomado! Anne levou as mãos à boca para acalmar a risada que queria soltar, recordando os castigos que Mary sofrera por expressar tais comentários. Mas ela nunca mudara de ideia. Era tão forte, tão segura de si mesma e tão...

especial. Embora sua mãe a repreendesse, embora estivesse muito zangada com ela quando o pai lhe contava sobre outra discussão em uma reunião de médicos, na qual sua filha havia destroçado o orgulho de algum outro cavalheiro, Mary não mudava sua atitude e isso fazia dela a mais poderosa das cinco filhas.

Ela colocou os pés na água e moveu os dedos impregnados com espuma branca. A água há relaxara um pouco. O suficiente para refletir sobre esse sonho. Não tinha nada a temer. Aquele homem não apareceria novamente em sua vida, e se houvesse algo do qual deveria ter medo, era que a caldeira explodisse e saltasse para a outra extremidade da sala de banho, como Mary disse quando a viu pela primeira vez. Recordando aquele momento, aquela risada reprimida fluiu suavemente. Só a ela poderia ocorrer esse tipo de coisa! Não havia dúvida de que Mary tinha mais sangue Moore do que Arany.

—Realmente quer que nós confiemos nisso? —Ela perguntou a

seu pai quando as reformas tinham terminado.

—Nada acontecerá. Há muitos nobres que as usam e todos elogiam o conforto de ter água quente imediatamente —respondeu Randall.

—Quer se livrar de nós... —Mary resmungou.

—Sophia! —Ele gritou chamando sua esposa. Cada vez que eles discutiam, pedia a ela para interceder na conversa. Talvez porque ele e Mary fossem tão parecidos que, depois de um debate angustiante, estariam empatados. —Vem por favor! Pode explicar à sua querida filha Mary que não quero me livrar dela e que não está em perigo se entrar na nova banheira?

—O que acontece desta vez? —Sophia perguntou com resignação.

—O pai me garante que nada acontecerá comigo enquanto tomo banho, porém, percebo que ele não se lembra do artigo que os jornais publicaram há alguns anos atrás.

—O que dizia o artigo, Mary? —Disse a mãe com uma voz cansada.

—Que o aquecedor a gás de Lorde Fhautun quebrou e explodiu a banheira e o próprio lorde que estava dentro dela. Ambos estavam do lado oposto da sala! —Ela exclamou desesperadamente.

—Isso é verdade, Randall? —Ela se virou para o seu marido,

que não parava de rir ao se lembrar daquele dia, porque ele teve que atender o pobre barão.

-- Sim, mas em defesa dessa criação inovadora, tenho que explicar que isso aconteceu há alguns anos e que eles a aperfeiçoaram para que ninguém saia disparado como a bala de um canhão.

—Não deixarei nenhuma das minhas filhas voarem pela casa como pássaros, Randall Moore! —Sophia exclamou horrorizada. —Que Shira e outra donzela continuem a aquecer a água na cozinha. Este método é mais seguro para elas —declarou solenemente.

E enquanto o médico acompanhava a esposa até o quarto e lhe oferecia uma série de razões pelas quais ela não deveria ter medo de usar as novas torneiras, Mary observava do corredor enquanto uma de suas criadas levantava baldes de água quente e os derramava dentro da banheira novinha em folha.

No entanto, tudo mudou quando as gêmeas adoeceram. Shira, sua mãe e as donzelas estavam tão ocupadas cuidando das pequenas que Mary decidiu aceitar a derrota. Nos primeiros meses, apesar de sua mãe ficar muito zangada, ela se banhava de camisola para o caso de voar como Lorde Fhautun. Se parecia embaraçoso sofrer tal situação, era mais se isso acontecesse com ela nua. E, apesar de ter acontecido há algo em torno de cinco anos, os banhos de Mary não duravam muito...

Alegre depois da lembrança, saiu da banheira, vestiu um robe de seda preta e caminhou até o quarto. Ela precisava se preparar o mais rápido possível para conversar com a mãe. O que diria? Informaria sobre a decisão do capitão? Ele teria aceitado a proposta de seu pai? Esperava que fosse isso e que pudesse finalmente sair de Londres. Talvez, afastando-se da cidade, nunca mais sonhasse com aquele homem, e Elizabeth nunca mais manteria uma atitude tão descarada com outro Lorde. Lembrando o que aconteceu na tarde anterior, a agonia que o sonho produziu desapareceu de repente e a dura realidade retornou. Que palavras sua mãe usou para informar que ela queria falar com ela?

«Eu vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem». Mas ontem à tarde várias coisas aconteceram e entre elas...

—Oh, meu Deus! —Exclamou, abrindo bem os olhos. —A baronesa lhe contou o que Elizabeth fez com lorde Lorre!

IV


Sophia olhava seu jardim pela janela. Nele, apenas Josephine permanecia com aquela arma horrível em suas mãos. Estava apontando para outro alvo. Ela se aproximou um pouco mais do vidro e exalou todo o ar em seus pulmões quando viu outro jarro de porcelana branca da louça que guardava na despensa. Teria que falar muito seriamente com a quarta de suas filhas. Ela não podia usar os poucos pertences que Randall herdara de seus pais como alvos para seus tiros, porque quando terminasse com eles, qual seria o próximo? Apoiando-se na moldura da janela, viu Elizabeth emergir da estufa para gritar com Josephine. Isso só poderia indicar que a bala havia atravessado um vidro na estufa.

—Pelo amor de Morgana! —Exclamou horrorizada, levando as mãos ao peito.

Os problemas cresciam e não sabia como eliminá-los. Precisava colocar ordem em todo esse caos familiar e a primeira coisa séria ordenar que Randall desaparecesse com o rifle. Talvez se dissesse a ele que o jardim era pequeno demais e que algumas de suas filhas ou criados pudesse se machucar, ambos reconsiderariam. «Bobagem! —Pensou —Algum deles ouviria? Ouviriam suas explicações? " Não, claro que não. Randall continuaria aplaudindo a habilidade de sua filha e, em vez de obrigá-la a

guardar a arma, a levaria para o campo, onde o perigo de matar alguém seria minimizado.

Se virou para o sofá, onde passara muitas horas costurando, e olhou para sua caixa de costura. A bobina laranja chamou sua atenção. Como ocorreu a Anne usar um vestido tão pouco discreto? Quando o comprou e por que não disse nada sobre isso? Sempre mostrou a ela tudo o que adquiria e nunca escondia nada. Então, o que mudou? O que estava acontecendo?

Sophia se sentou na cadeira de balanço, colocou as mãos no colo e apertou-as. A única pessoa que conhecera em sua vida e que se vestira de maneira tão pouco discreta era sua avó Jovenka. Todos os dias ela usava algo de cor laranja. Senão era um vestido, era um lenço ou um casaco, porém nunca faltava em seu traje aquele tom tão cigano. Ela suspirou profundamente quando se lembrou da avó e da horrível obsessão de não contaminar o sangue. Se Randall não tivesse aparecido naquela noite... O que teria acontecido com ela? Mas, embora tenha se afastado, mesmo que tenha parecido que ela os havia deixado viver em paz, não foi assim. Ela ficou, embora o acampamento tenha decidido sair de Londres. Viveu resguardada na floresta, perseguindo-os em silêncio até cumprir sua palavra...

Uma noite, que ao longo do tempo descobriram ser a mesma em que geraram Anne, decidiram deixar a janela aberta para que a luz da lua ambientasse aquele momento tão romântico e apaixonado. Corria uma leve

brisa e as cortinas se moviam suavemente, como se fossem dançarinas elegantes e delicadas. Ambos se entregaram como haviam feito tantas vezes. No entanto, desta vez foi especial porque quando Randall terminou, depositando sua semente dentro dela, o silêncio do lado de fora desapareceu ao ser interrompido por um trovão horrível. O marido, vendo-a tremer de medo, se levantou, fechou a janela e voltou para a cama para acalmar seu medo. Mas o que ele encontrou quando chegou a ela o deixou aturdido. Em questão de segundos, aqueles que demorara em voltar para o lado dela, a temperatura do seu corpo subiu tanto que ela se agitava pelos tremores de febre. Como ele fizera desde que a viu naquela carroça, ajudara-a o tempo todo. Toda vez que colocava um pano de água fria nela, as mãos dele avermelhavam com o calor que transpirava do tecido. Assustado, ele chamou um dos empregados para pegar a carruagem e trazer o máximo de blocos de gelo possíveis. A colocaram em uma banheira cheia de gelo, mesmo assim, a febre não diminuiu até o amanhecer chegar. Como se fosse apenas um sonho terrível, essas convulsões e o calor desapareceram antes na chegada dos primeiros raios de sol. Claro, Randall nunca admitira que o sol a tivesse curado, mas que o gelo, as emersões e seus panos a aliviavam.

Depois de passar uma noite tão agitada, decidiram ficar descansando pelo resto do dia. Mas seu marido teve que sair porque alguém apareceu na residência solicitando seus serviços. Quatro horas depois de sua

partida, ele retornou e informou-a de que o assunto que o levara de casa fora sua avó. Um homem, que caminhava pelo campo, descobriu um corpo caído, pensando que havia desmaiado, correu até ela, mas quando descobriu que tinha uma adaga presa no abdome e que era cigana, pediu ajuda à polícia e estes a dele, porque nenhum outro médico iria atendê-los.

Depois de contar o que aconteceu, ela chorou, não de tristeza, mas de alegria, prazer e entusiasmo, porque acreditava, estupidamente, que a morte os salvara da maldição. Mas estava errada, tinha acabado de começar...

Dois meses depois, ela soube que estava grávida. Estava tão animada para ser mãe, que não conseguia pensar em nada além do bebê que estava chegando e que sua avó não estava mais viva para machucá-la.

Não foi assim….

Quando Anne nasceu, quando a segurou nos braços e olhou para aquele rosto, aquele cabelo e aqueles olhos castanhos, teve tanto medo ao ver que era tão parecida com Jovenka que ficou inconsciente. Durante aquele desmaio, ela viu sua avó na sacada, na noite em que conceberam Anne. Então a observou se afastar de casa para onde a encontraram morta. Ela mesma cravou a adaga assim que o trovão soou. Estava com ela durante o desmaio e mostrou-lhe o nascimento de suas outras quatro filhas enquanto gritava várias e várias vezes que o sangue contaminado as destruiria. Quando acordou, estava com tanto medo que nem queria olhar para sua pequena recém

nascida. Anne estava chorando no berço porque precisava se alimentar da mãe que lhe dera a vida, mas ela recusou seu contato. Graças à ajuda de Randall, sua ternura, sua compreensão e aquela grande paciência, ela finalmente admitiu que fora apenas um pesadelo gerado pelo cansaço do parto e, quando se acalmou, ele ofereceu seu bebê. Com os olhos fechados, amamentou-a. Mas os abriu ao sentir o calor daquele pequeno corpo e a sensação de suas pequenas mãos na pele. Naquele momento concluiu que a única coisa que Anne tinha de sua avó era o físico que Randall afirmara ser algo que ele chamara de coincidência genética. No entanto, o tempo indicara que havia se enganado novamente. Anne era tão ardente e apaixonada quanto Jovenka. Ela até herdou seu dom para pintar! Quantos rostos masculinos sua avó pintou com o carvão das fogueiras? Todos os que passavam por sua carruagem. Nenhum foi deixado sem retratar. Era seu triunfo, seu destino, sua vida e, infelizmente, esse espírito diabólico voltava muito mais jovem e mais forte do que antes. Ela só esperava que o desejo de gerar não aparecesse em Anne, porque quinze filhos bastardos nasceram do ventre de sua avó. Alguns pararam de respirar em seu ventre, outros foram abandonados nas portas das igrejas das aldeias em que se instalaram e outros... outros não tiveram nem uma sorte nem outra e tornaram-se servos de seu povo. Escravos sem opção de vida, exceto a servidão a que ela os sujeitou. O único filho de sangue puro era seu pai, então ansiava que sua neta continuasse seu legado de pureza

casando-a com outro cigano. Mas ela não queria morar no povoado ou seguir as regras de sua avó porque, desde que Randall apareceu em seus sonhos, ela o amara.

Sophia se balançou devagar enquanto recordava o que acontecera vinte e cinco anos antes. Seus olhos, até então fixos em suas mãos, foram pregados na porta por onde Anne iria entrar. Não deveria apenas se concentrar em comentar a resposta do visconde, mas tentaria extrair algo sobre o sonho que ela tivera durante a noite. Quem ela conheceu? Quem, de todas as pessoas em Londres, teria sangue cigano? Onde o viu? Em que momento? Se falaram? Se conheceram?

—Morgana —disse ela em voz alta, —se minha filha encontrou esse homem, se finalmente permitiu que encontre a pessoa que irá salvá-la da maldição, que esqueça a ideia de partir, dê a ela forças para tomar seu destino e eliminar seu passado. Afaste o espírito que a atormenta de uma vez por todas, liberte-a da pressão, da prisão, da minha avó...

Fechou os olhos, segurou as mãos e começou a cantar para essa mãe que criara sua raça, a única que poderia escutá-la. Mas esse canto foi interrompido quando ouviu uma batida no vidro da janela em que havia permanecido. Assustada e preocupada, deu um pulo, caminhou até a sala e soltou um grito.

—Josephine Moore! Está de castigo! —Trovejou ao ver um

buraco e vidros no chão.

—Eu prometo, eu juro que... —a jovem tentou dizer. —Foi culpa da Elizabeth! Ela me jogou uma pedra!

—Elizabeth Moore! Está... ?mas não terminou a imposição daquela segunda punição. A terceira de suas filhas se virou para a estufa sem ouvi-la.

Anne estava certa. O comportamento da jovem mudou desde que seu segundo pretendente morreu. Pensou que, depois da visão de Madeleine, ela deixaria de agir dessa maneira horrível, mas estava errada. A única coisa que a revelação da menina causou foi uma pequena trégua familiar. No entanto, a incerteza havia retornado... quando aconteceria tudo o que Madeleine previu? Levaria muito tempo para chegar? Morgana silenciosamente esperava pela destruição de suas filhas para agir? Afligida, ela voltou para a cadeira de balanço, ouvindo Shira repreendendo Josephine.

Sentou-se muito devagar, como se em vez de 45 anos tivesse noventa, fechou os olhos e lembrou-se da tarde em que Madeleine confessou o que vira em seus sonhos para descobrir se, em algum momento, ela havia apontado uma data exata.

—Mas que bobagem! —Mary exclamou levantando. -- Realmente quer se afastar de nós por causa dessa irracionalidade?

—É a coisa mais sensata —disse Anne, depois da explicação de

sair de Londres e viajar para Paris. Aqui não terei a vida que mereço como artista e vocês não encontrarão um bom futuro por causa da maldição.

—Eu

lutarei

contra

essa

maldição

até

o

fim!

--

Josephine comentou, levantando a mão direita como se estivesse carregando uma espada. —Uma Moore não desiste tão facilmente!

—A maldição só afeta ela, certo? —Elizabeth perguntou depois de ouvir Anne. Não lamentava pelo desejo da irmã de deixar a família, mas por ela. Desde que o filho do conde morrera, ninguém os convidou para nenhuma festa, nenhum homem olhou para elas... O tempo passava e ela não conseguia encontrar seu aristocrata.

—Sim —respondeu Sophia. —Mas como podem ver, todas estão envolvidas porque, até agora, ninguém veio aqui pedir um compromisso com nenhuma de vocês.

-- Bendita maldição! —Mary exclamou eufórica. -- Agora sim acredito nela! Por favor, Anne, continue a se comprometer com todos os ousados que a desejam como esposa, para ver se ficam tão assustados que saem do nosso caminho e deixem as ruas de Londres livres para andarmos em paz. Além disso, posso preparar uma lista de nomes dos presunçosos para que possa aniquilar. Se quiser, amanhã começamos com A.

—Mary! —Sophia repreendeu-a. Que não deseje encontrar um marido não significa que suas irmãs pensem o mesmo.

—Alguma de vocês quer viver sob o domínio de um homem, exceto Elizabeth? —Ela perguntou olhando para o rosto da mencionada. Ao ver que se mantinha em silêncio, sentou-se abruptamente e cruzou os braços.

--

Eu

também

não

quero

me

casar! -- Josephine interveio novamente.

—Claro que não quer fazer isso agora, querida, é jovem demais para pensar nisso —disse Sophia com ternura. ?Mas futuramente não quer se tornar uma solteirona, certo?

—Um soldado não pode se comprometer com nada além de amor ao seu país -- declarou solenemente enquanto colocava as mãos no cós da calça.

—Soldado? —Randall perguntou a sua esposa um pouco confuso.

—Desde que comprou aquela bendita arma e ela dispara em todos os vasos que colocou no jardim, decidiu que quando tiver idade suficiente para se alistar no exército, cortará aquele lindo cabelo loiro, enfaixará seu peito e lutará contra qualquer inimigo que Londres possua --

resmungou Sophia, olhando para o marido como se quisesse derrubá-lo ali mesmo.

—Bem... não é uma opção muito descabida. Como não tem a esperança de encontrar um marido que seja mais habilidoso do que ela em esgrima ou caça, é uma alternativa a considerar. Além disso, não acredito

que haja um homem no mundo que possa descansar ao lado de nossa Josephine sem pensar que, a qualquer momento, ele vai cortar seu pescoço

—explicou o pai com algum divertimento.

—Randall Moore! Como pode proclamar algo tão horrível sobre Josephine? Ela é uma jovem corajosa, não uma criminosa! —Ela o repreendeu.

Como sempre, a educação que o marido dava à quarta filha era motivo de discussão. Ela insistia em esclarecer que não era uma criança, mas uma pequena mulher que logo teria que participar de festas e que todos falariam sobre o comportamento masculino de Josephine. Prosseguiu esse debate com a atitude inadequada de Elizabeth. Seu marido declarou em voz alta que preferia uma filha que pudesse se defender da audácia de um homem do que os movimentos sedutores de Elizabeth. Então, assim que o tom da conversa começou a exceder o limite correto, uma voz suave e terna os deixou sem palavras.

—O que disse? -- Sophia perguntou Madeleine, a gêmea de Josephine, ao não a ouvir claramente.

—Anne não terá que sair porque o homem que vai resgatá-la da maldição está prestes a chegar -- ela repetiu timidamente. Moveu seu corpo ligeiramente, sentada no peitoril da janela, em direção a sua família e depois de observar a expectativa nos rostos, ela continuou: -- Eu vi nos meus

sonhos. Anne se casará com um homem com sangue cigano, mas ninguém sabe que porque ele o mantém em segredo e só admitirá quando a encontrar.

—Ela apontou com o queixo para sua irmã mais velha.

Randall olhou para ela estupefato, só faltava saber que uma de suas filhas tinha alucinações para morrer naquele momento, mas quando sua esposa levantou e abaixou os ombros, tirando a importância das palavras de sua filha mais nova, respirou com facilidade. A coisa mais sensata a fazer era deduzir que a jovenzinha estava fazendo todo o possível para que sua irmã mais velha, por quem tinha grande afeição, não deixasse a família.

—O que viu? —Anne perguntou com voz aveludada, enquanto caminhava em direção a ela.

—Vejo o homem que será seu marido. Ele olhava nos seus olhos enquanto sussurrava que nada lhe aconteceria, porque a libertaria da sua maldição —ela respondeu calmamente. —E será verdade.

—O que mais viu? —Sua mãe perguntou sem sair do lado de seu marido caso ele precisasse de uma mão para não cair no chão.

-- Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente impedir os sentimentos que aquele homem causará a ela a partir do momento em que se encontrarem pela primeira vez —ela continuou com firmeza.

—Eu? Bobagens! —Bufou fazendo um gesto de desdém. —Tenho certeza de que na noite em que aparecer tomara mais suco de laranja do que

deveria e sabe que um excesso de vitamina C não é bom para a mente.

—Não dê ouvidos a ela —Sophia a consolou depois de ameaçar Mary com um olhar. —Sabe que sua irmã não gosta de ouvir que alguém vai mudar sua vida, muito menos um homem.

—Mas ela vai —disse Madeleine, olhando para sua irmã Mary fixamente.

—Viu mais alguma coisa? Sonhou comigo? Vou casar com um aristocrata? —Elizabeth perguntou impaciente.

—Não sei... -- murmurou a menor das irmãs, voltando o olhar para quem lhe fazia as perguntas. -- Só pude ver que o homem que está esperando aparecerá no caminho que conecta nossa casa com a de Bohanm. Não posso confirmar se é um familiar do casal ou parente de alguém que logo conheceremos, mas tenho certeza de que será a pessoa com quem se casará -- disse ela antes de fixar os olhos verdes na irmã gêmea. --

E Josephine...

—Serei um soldado? Vou lutar com honra? Me tornarei a mulher mais valente do meu batalhão? Me condecorarão? —A jovem perguntou sem respirar.

—Não. Se tornará a esposa de um homem mais honrado do que um soldado, mais temeroso que uma espada e mais severo que o impacto de uma bala —declarou ela.

—Isso sim que eu não esperava! —Randall exclamou olhando para sua esposa achando graça. —Vê, minha querida, no final, meus presentes inadequados servirão para protegê-la de um marido folgado! --

Ele argumentou antes de soltar uma gargalhada.

—E você? -- Anne perguntou acariciando suavemente seu cabelo enquanto ouvia o riso de seu pai.

—Eu saberei que ele é o escolhido quando se aproximar de mim para me ajudar a levantar de uma queda infeliz —disse ela, fixando seus olhos verdes na mão que ele tocaria.

—Então, tudo ficou claro —disse Mary. -- Anne não precisa ir embora e, para sua paz de espírito —disse ela à Sophia, —nos verá casadas. Embora eu só espero que meu futuro marido tenha um cérebro admirável e um corpo preguiçoso, então ele não me visitará à noite e eu poderei continuar lendo em silêncio... —ela comentou ironicamente.

—Mary Moore, não fale assim de novo na frente de suas irmãs ou eu vou queimar todos os seus livros! -- A ameaçou enquanto apontava o dedo.

«Anne não terá que sair porque o homem que irá resgatá-la da maldição está prestes a chegar» ela evocou a frase que estava procurando na memória. Bem, dois anos se passaram desde aquela conversa e o tempo estava lutando contra a família. Se Madeleine estivesse certa e Anne tivesse

tido seu primeiro sonho com fogo, isso poderia dar à família um halo de luz. Talvez, apenas talvez, aquele momento de paz estivesse prestes a aparecer. Mas... quem mantinha em segredo que o seu sangue era cigano? Porque motivo?

—Mãe? —Anne perguntou quando ela apareceu no pequeno quarto.

—Entre —ela disse sem se levantar da cadeira de balanço. --

Sente-se ao meu lado. Quero falar sobre o que aconteceu com o capitão desse navio.

Ao ouvir o tema da conversa, Anne sentiu que a forte pressão em seu peito desaparecia imediatamente. Por sorte, a baronesa lhe dera uma pequena trégua, embora não tivesse certeza de quanto tempo duraria.

—O que ele disse? Aceitou o pedido para me levar? --

Ela quis saber quando se sentou ao seu lado.

—Não.

—Não? Por quê? —Perguntou, amassando em suas mãos o vestido que escolhera para aquele dia. Que, para a tranquilidade de sua mãe, não era laranja, embora pudesse apreciar essa cor na presilha de seu cabelo.

—Porque, segundo ele, não seria apropriado navegar com uma mulher.

—E se eu prometer que não sairei da minha cabine? -- Ela propôs esperançosamente.

—Pelo que seu pai contou, até ofereceu cortar seu cabelo, mas recusou-se a completamente.

--

Ele

realmente

fez

tudo

ao

seu

alcance?

--

Perguntou desconfiada.

—Está questionando as palavras do seu pai? —Sophia soltou com raiva.

—Não, mãe, me desculpe —ela disse, abaixando a cabeça.

—Acredite em mim quando digo que ele fez tudo o que pôde, até ofereceu-lhe um envelope com....

—Um envelope? —Anne perguntou olhando-a sem piscar.

—Sim, um envelope que ainda não voltou —esclareceu ela.

—Então... talvez... —ela disse, se levantando. —Talvez eu tenha uma chance! —Exclamou eufórica.

—Eu não consideraria nenhuma esperança, Anne. Talvez hoje um criado apareça com esse envelope.

—Mãe... —ela disse, ajoelhando-se diante dela -- tudo que me resta é ter fé de que esse homem reconsidere a oferta.

—Mas...

—Não há mais, mãe. Não notou a destruição que minhas irmãs

sofrem por minha causa? -- Soluçou.

—Vi que apenas Elizabeth mudou sua atitude, as outras ainda são as mesmas de sempre —disse ela, acariciando o cabelo de sua filha para tranquilizá-la.

—Eu preciso sair daqui... quero esquecer o meu passado... —ela riu.

—Eu sei, Anne. Eu sei ..., entretanto, algo me diz que deve esperar um pouco mais.

—Teve outra visão? —Perguntou levantando o rosto.

—Não, é um ligeiro palpite. Talvez, se me disser o que sonhou e porque esse corvo a assustou tanto... —ela insistiu.

Anne sentou-se devagar, caminhou até a janela, que tinha um buraco e suspirou. Seria conveniente dizer-lhe a verdade? O que pensaria dela quando revelasse o que viu? Por muito tempo a olhou com ódio, com receio depois de confessar que perdera a virgindade com Dick. Ele cometeu um erro, e pagou com acréscimo. Agora era hora de libertar sua dor, seu pesar e fazer com que sua mãe a observasse com respeito.

—Anne... —disse Sophia se levantando. Caminhou até ela, pôs a mão no seu ombro e apertou com ternura. Eu prometo que não vou julgá

la. Sei que está pensando sobre o que aconteceu entre nós no passado. Eu sinto isso aqui, no meu coração. Mas não é mais uma jovenzinha, mas uma

mulher inteira, e eu juro, pelo sangue que ambas temos, que não irei mais julgá-la, mas sim ajudá-la em tudo que puder.

—Tem certeza? —Perguntou sem olhar para ela.

—Totalmente.

—Ontem conheci um homem —disse ela depois de respirar. --

Tentei desviar o olhar, para não o notar, mas não consegui controlar algo tão básico quanto meus olhos. Talvez eu não devesse ter olhado tanto para ele...

possivelmente ele não teria me descoberto se.... -- Ela suspirou tristemente.

—E?

—E sonhei com ele. Uma música me tirou de uma cama que não era minha, andei em uma estrada desconhecida, vi aquele corvo e ele me levou para um prado. Havia uma fogueira... não queimava... eu toquei, entrei e....

—Ele saiu do fogo? Mostrou em seus olhos imagens do seu futuro? —Perseverou, virando-a para ela.

-- Não sei se era meu futuro, mas sei que tudo me assustou --

confessou.

—Oh, querida! —Sophia exclamou segurando-a com força. --

Chegou! Ele chegou!

V


—Bem, aqui me tem. O que diabos quer? -- Philip disse quando abriu a porta do escritório de Logan sem esperar ser anunciado.

—Boa tarde, obrigado por vir tão rápido. Desta vez, apenas quinze horas se passaram desde que lhe pedi para vir à minha residência --

disse estendendo a mão para seu amigo.

—Sou um homem muito ocupado, lorde Bennett —disse sarcasticamente enquanto apertava a mão forte e o abraçava com um irmão. ?Ou se não, pergunte a amante que deixei para vê-lo.

—Uma nova? ?Logan perguntou quando se sentou.

—Não me lembro do nome dela, mas sim, é nova. Essa vida sedentária me aborrece demais para ficar sempre com a mesma mulher... --

 

disse desabotoando os botões da jaqueta marrom.

—O dia que encontrar sua futura esposa, certamente que terá que suportar uma vida estável e virtuosa...

—Antes prefiro comer um rato vivo! —Exclamou Philip horrorizado. —O que aconteceria comigo sem o prazer do sexo? Ah, nem quero pensar nisso! —Exclamou divertido. Se recostou na cadeira, moveu as costas da direita para a esquerda para caber em um encosto tão pequeno e olhou para Logan. —Qual é a sua preocupação?

—Como sabe...? —Ele tentou dizer.

—Porque me chamou com urgência e porque seu rosto tem tantas sombras que parece um espírito errante. O que ocorre? Tem problemas na vida idílica de Riderland? Ou sua amante o expulsou do quarto dela?

—Terminei meu relacionamento com ela há algumas semanas atrás —ele disse enquanto pegava a caixa de charutos.

—Porque motivo? Não era mais tão carinhosa? Ela mostrou sua verdadeira personalidade? —Persistiu zombeteiramente.

—Queria consolidar o relacionamento e não aceitei. Ela sempre foi...

—Uma amante —disse Philip. —Muito poucas reconhecem a posição dada a elas. É por isso que nunca durmo com a mesma mulher duas vezes.

—Por acaso dorme uma? —Perguntou estreitando os olhos.

—Certo! —Giesler exclamou divertido. Uma vez que parou de sorrir, pegou um dos charutos que Logan oferecia, acendeu e soltou a fumaça calmamente. —O que há de errado? —Repetiu.

—Três dias atrás, depois da festa que meu irmão Roger fez em sua residência...

—Uma loucura, segundo ouvi -- interveio Philip.

—Foi convidado.

—Não pude ir.

—Porque não quis.

—Porque eu tinha outro arranjo mais interessante —explicou Giesler, soltando outra nuvem de fumaça.

—Continuo ou irá me explicar que arranjo foi esse?

—Mulheres e sim, pode continuar.

—Quando voltei da festa, o Sr. Moore veio aqui.

—O médico? Está doente? Por que não me contou? O que diagnosticou? —Philip gritou, arregalando os olhos e inclinando-se para a frente.

—Não estou doente, então pode ficar tranquilo —Logan assegurou-lhe esboçando um grande sorriso.

—Menos mal... —comentou com alívio. Só faltava ficar doente e ter sua irmã Valeria o dia todo ao seu lado falando sobre dever, lealdade e o futuro que o aguardaria sendo o barão.

—A razão pela qual o médico apareceu foi implorar para que eu levasse a primogênita de suas filhas com a tripulação em nossa próxima viagem.

—Por que pediu tamanha loucura? —Falou, erguendo as sobrancelhas loiras.

—Porque, de acordo com ele, uma maldição recai sobre ela que

afeta toda a família —explicou com uma voz cansada.

—Santo céu! Eu pensei que tinha ouvido todas as besteiras do mundo! —Exclamou Philip brincalhão. —Esse homem é realmente um dos melhores médicos de Londres? Porque, depois disso, começo a duvidar de seu grande julgamento... —acrescentou ao trocar o charuto de mão.

—Bem, acredite ou não, aquele pobre homem parecia muito convencido de suas palavras —disse Logan ao pegar o envelope que o Dr.

Moore lhe dera antes de sair. Fechou-o de má vontade e jogou-o na mesa. --

Me pagou adiantado —resmungou —e me deu uma foto da moça.

—Viu a foto? Sua imagem não está enfeitiçada? —Ele perguntou divertido.

—Não diga bobagem! Isso é muito sério... -- ele avisou. -- O Sr.

Moore quer se livrar da jovem o mais rápido possível.

—Mas... o que aconteceu para aquele pobre coitado alegar tal absurdo? Por acaso não pensou que usando a palavra maldição, a rejeitaria antes que terminasse a frase? —Ele retrucou, pegando o envelope. Olhou-o de maneira esquiva e observou que havia cerca de quinhentas libras dentro. Muito dinheiro para um médico. Isso só avisava que estava muito desesperado.

—Deduziu tanta loucura —enfatizou —porque os dois noivos de sua filha morreram.

-- Augen des Teufels[1]! -- Trovejou Philip engasgando com a fumaça do charuto e largando o envelope sobre a mesa como se estivesse queimando. —Os dois? Mortos? —Retrucou perplexo. -- E quer que nos acompanhe na próxima viagem? Se estivesse no seu lugar, teria chamado uma sacerdotisa para limpar a aura da minha casa... não percebeu que somos jovens demais para morrer? O que aconteceria se viajássemos com ela? Um polvo gigante nos atacaria? Ah, pobre Valeria! Quão triste seria quando seu irmão morresse entre os tentáculos de um polvo sem ter aceitado o baronato!

?Ele ironizou, incapaz de parar de rir.

—Quer levar o assunto com um pouco de seriedade? —Logan trovejou. -- Estamos falando sobre a reputação de uma mulher e daquela que assumido durante esse tempo.

—Eu levo, meu amigo, eu levo —continuou ironicamente.

—Não entendo como pode estar tão desesperado para acreditar que isso mudaria minha decisão -- disse se levantando. Colocou as mãos nas costas e começou a andar. -- Entendo que ele não pensou, nem por um momento, no problema que sua filha causaria no navio. Quando os homens estivessem em alto mar por um pouco mais de duas semanas... —Logan apertou os lábios. Não queria pensar sobre o que aconteceria se ocorresse uma fatalidade, ou o que ele poderia fazer naquele momento. Era melhor deixar sua mente em branco do que imaginar que um homem pudesse tocá

la... cortaria sua garganta no ato!

—Sim, não tenho dúvida de que eles se matariam pelo prazer daquela mulher —continuou zombeteiramente. —Acho que até eu participaria dessa briga. Sabe que eu não posso ficar muito tempo sem uma amante na minha cama...

—Feche essa boca agora mesmo! —Ele ordenou. —Ninguém irá tocá-la! Entendido?

Philip afastou a fumaça do charuto com a mão para poder observar melhor o amigo. Aqueles olhos azulados tinham mudado para uma cor tão escura que até uma noite tempestuosa no meio do oceano não poderia assustá-lo tanto. Meditou calmamente as palavras que iria dizer, mas, como não encontrara algo sensato ou sério, permaneceu em silêncio.

—Vou devolver esse maldito pagamento e deixar claro que não irei levá-la no meu navio —disse Logan depois de recuperar a atitude serena.

—Acho que é uma decisão muito sábia. Dessa forma, continua a manter a educação e a dignidade de um cavalheiro de sua linhagem e protege suas costas dessa maldição, no caso do médico não estar errado ...

—Não faço por isso! -- Ele gritou novamente.

—Então... por que está fazendo isso, meu amigo? —Insistiu. --

Existe algo que não me contou? Essa talvez seja a razão pela qual me fez sair do meu quarto sem dizer adeus à mulher com quem descansei esta noite?

—Antes de lhe dizer por que o fiz vir, gostaria de explicar o que John descobriu sobre essas mortes —disse Bennett, voltando para a cadeira, recostando-se e olhando para o amigo sem piscar.

—John? Ótimo! Isso está ficando cada vez mais interessante! --

Disse Philip, apagando o charuto no cinzeiro de vidro que Logan tinha em sua mesa. Estendeu a mão e encheu um copo de conhaque. Era muito cedo para beber, mas algo lhe dizia que precisaria se embriagar novamente para aceitar a conversa que manteria em seguida. —Por que diabos pediu ajuda àquele índio? Dúvida das minhas capacidades? Lembre-se que, antes de vigiar as suas costas, trabalhei com Borsohn na Scotland Yard. Ele poderia ter me informado o que aconteceu sem ter que pedir favores ao cão fiel de seu irmão.

—Não fique com raiva, Giesler, mas sabe que John é o melhor rastreador que já conheci e, além disso, não recebi um sinal de vida seu desde que desembarcamos. O assunto tinha prioridade absoluta —declarou rapidamente. O maior defeito que seu amigo poderia ter era o orgulho e, se ele não queria que sua amizade estivesse em perigo, teria que escolher suas palavras muito bem, de modo que uma questão tão pessoal não afetasse o relacionamento deles.

—Como bem sabe, tenho uma irmã muito irritante, e se eu não tivesse aparecido em casa assim que colocasse meus lindos pezinhos em

Londres, ela teria aparecido na minha residência gritando como um vendedor de peixe -- ele resmungou.

—Certo. É por isso que não queria incomodá-lo. Além disso, sei que Martin fica ansioso para vê-lo quando voltamos e também estou ciente de que a Sra. Reform poderia me mandar para a forca, se eu tirasse seus dias de folga —esclareceu Logan, finalmente esboçando um enorme sorriso. É claro que ele conhecia o caráter da Sra. Reform e não havia dúvida de que o sangue espanhol, que vagava em suas veias, era mais perigoso do que dez homens habilidosos no arremesso de facas. —É por isso que escolhi o John.

—E o que descobriu? —Disse Philip, aceitando a derrota.

A explicação foi tão convincente que não se sentiu magoado. Era verdade que seu irmão Martin esperava por ele toda vez que desembarcava. Por mais improvável que parecesse, durante os dias em que morava em Londres, ele deixava a universidade, onde lecionava aulas de matemática avançada, e conversava durante horas sobre o que acontecera durante sua ausência. Logicamente, para Martin descobrir uma nova fórmula com a qual encontrar o mesmo resultado era algo fascinante, tanto que seus olhos brilhavam. Já seus olhos só brilhavam desse modo quando uma nova amante se despia em seu quarto. Mas é claro, Martin Giesler não herdara o dom de seduzir mulheres, mas a capacidade de matá-las de tédio por que...

quem queria ouvir essas palestras sobre questões aritméticas quando

poderiam se esconder em um canto e satisfazer uma paixão repentina? E, por outro lado, havia Valeria... ela poderia esquecer o tema do baronato e da procura de uma esposa? Nunca! Sua irmã tinha esses dois temas gravados em sua mente e mal o cumprimentava, com sua efusividade usual, já perguntava... «Visitou nosso avô? Encontrou uma mulher? " «Não e não», respondia antes de ouvir os gritos ensurdecedores de Valeria e os conselhos amorosos que seu marido Trevor lhe oferecia.

—Seu primeiro pretendente foi o senhor Hendall —começou a explicar. ?Morreu depois de cair de um garanhão. De acordo com John, ele visitou um dos clubes de Hondherton antes de tentar retornar à sua residência.

—Bem, a única coisa que ouvi sobre Hendall foi que a sua empresa não prosperava como desejava e que a principal razão para essa destruição era seu amor pelo jogo, bebida e as companhias inapropriadas todas as noites —disse Philip depois de tocar sua barba loira incipiente.

—Sim, isso mesmo. John conversou com o Dr. Flatman e com um dos ex-funcionários de Hendall e ambos concluíram que ele ingerira muito Bourbon para controlar o cavalo que montava —Logan disse calmamente.

—Isso é chamado de imprudência ou estupidez da parte do estimado Sr. Hendall, então não tem nada a ver com a maldição que Moore fala. Pode me dizer quem foi o segundo pretendente? Estou ansioso para

conhecer a versão que o índio lhe deu —disse Philip com um tom inquisitivo.

Descansou as costas ligeiramente no respaldo da cadeira e cruzou as pernas compridas pelos tornozelos.

—Era o filho dos Condes de Hoostun —disse depois de respirar. —E toda Londres sabia que ele não nasceu com uma mente sensata, por isso seus pais o mantiveram escondido na residência. Embora o conde desesperado como era, vendo que seu fim estava próximo, temia por seu famoso título, caso não tivesse descendentes, e decidiu encontrar uma mulher saudável para ajudá-lo com seu propósito.

—Em suma, esse pretendente era um tanto demente e o conde exasperado pensava que o casando com a filha de um médico, não só ele fixaria a cabeça de sua prole, mas também poderia dar a ele uma prole normal

—resumiu Giesler. —Bom raciocínio, sim senhor. O que o matou?

—Infelizmente, depois que o noivado foi divulgado, ele decidiu limpar a arma e levou um tiro —disse Logan, irritado. —Embora tenha receio de que a versão correta tenha sido a de que ele não aguentou a pressão do casamento e decidiu encerrá-la ele mesmo.

—Uma vez que um acordo é feito, apenas a morte pode livra-lo dele —disse Philip antes de deixar escapar uma risada.

—Não é engraçado! —Logan gritou, se levantando e colocando as palmas das mãos sobre a mesa. —Ela acha que é a culpada por essas

mortes!

—Me desculpe excelência. Não queria zombar do sofrimento daquela jovem desventurada —disse Giesler com uma mistura de espanto e sarcasmo. —Foi uma impertinência de minha parte alegar tamanha insensatez. Imploro seu perdão.

Logan olhou para ele com raiva. Apesar dessas palavras, seu rosto não mostrava nenhum sinal de arrependimento. Em vez disso, ele expressava escárnio, o mesmo que queria fazer desaparecer com um bom soco de direita. No entanto, não o havia chamado para discutir, nem para se envolver em uma briga, mas porque precisava, mais do que nunca, da sua ajuda.

—Sinto muito... —disse depois de se acalmar. —Este tema me incomoda muito. Mas odeio a injustiça e me parece muito cruel que uma jovem carregue a morte de dois homens nas suas costas —acrescentou ele, sentando-se novamente.

—Aceito suas desculpas e espero que aceite as minhas —ele disse calmamente.

Logan assentiu levemente, admitindo o pedido de desculpas, enquanto Philip, sem deixar de olha-lo, tomava outro gole da bebida.

—Quero que me acompanhe até a residência dos Moore --

pediu. -- É por isso que o chamei com tanta urgência.

E naquele momento, o licor que Philip escondia dentro de sua

boca, saltou como se fosse água de uma das fontes que sua irmã tinha no jardim.

—O que disse? —Perguntou, enxugando os lábios na manga. --

Está sugerindo que o acompanhe até aquela casa onde o próprio Moore declara que há uma maldição? —Não disse que não quero morrer ainda? O

que pretende?

—Não há maldição —ele murmurou. —Nós dois deduzimos que foram incidentes infelizes. E a única coisa que pretendo é devolver esse bendito pagamento. —Ele indicou com o queixo o lugar onde estava o envelope.

—Não pode enviar Kilby? Certamente estará muito mais seguro do que nós —explicou como uma alternativa.

—Quero ir pessoalmente, Philip. Para mostrar a ele que não há maldição naquela casa.

—Kilby também pode enviar uma nota explicando que é um homem ocupado e....

—Não! Não farei isso! Pensaria que tenho medo dela!

—Ela? Quem? A viúva negra? Certamente já tem assumido...

—Vai me acompanhar? —Logan gritou com raiva.

—Então a razão pela qual me chamou foi, única e exclusivamente, continuar protegendo suas costas... —ele refletiu, tocando

sua barba novamente.

—De certo modo…

—O que está me escondendo, Logan Bennett? —Giesler perguntou, apertando os olhos. —Se não acredita nessa maldição, por que precisa da minha presença?

—Porque não seria apropriado aparecer desacompanhado em uma casa onde há cinco jovens casadoiras —disse por fim.

—Cinco! —Exclamou, arregalando os olhos. —Esse pobre homem tem que casar cinco mulheres? Essa é a maldição, amigo! Como pode ter tantas filhas?

—Sua irmã tem quatro —disse ele.

—Sim, e mais dois homens. Mas ela não terá nenhum problema em encontrar um marido. Reform será o problema porque não achará apropriado nenhum homem que tente se casar com elas. No entanto, estamos falando do Sr. Moore e da maldição. Embora já tenha me explicado que todas as mortes ocorreram de maneira racional, começo a duvidar... O que acontecerá se entrarmos nesse castelo mortal? Nós vamos morrer quando sairmos? Uma carruagem vai nos atropelar? Um raio nos atingirá, apesar de não ver uma única nuvem no céu? Ou pior ainda... —continuou falando enquanto se levantava e se dirigia para a porta, como se dentro do escritório de seu amigo não houvesse oxigênio suficiente para respirar. —Não pensou

que alguém poderia nos ver entrar naquela casa e espalhar o boato de que pretendemos cortejar uma dessas cinco mulheres?

—Vai expor mil desculpas para não ir? Me forçará a pedir ajuda a John? Quer que o informe que se recusou a me proteger porque tem medo de cinco meninas? —Rosnou. Philip Giesler era tão orgulhoso que não consentiria em ser substituído pelo índio em outra missão.

-- Amaldiçoo o índio, seu senso de honra e a miserável maldição! —Exclamou, abrindo a porta bruscamente.

—Isso é um sim?

—Que diabos está esperando? —Grunhiu, pegando a maçaneta como se quisesse arrancá-la. —Não tenho o dia todo.

—Obrigado —Logan disse depois de pegar o envelope e caminhar em direção ao seu amigo.

—Não me agradeça até eu voltar para casa vivo —disse ele antes de bufar como um dragão. —Espero não encontrar uma bruxa naquela casa ou terá que me levantar do chão.

—John me disse que são jovens adoráveis... cinco adoráveis mulheres que não são capazes de ferir nem uma pequena flor —disse sorrindo como uma criança travessa.

—Sim, amáveis e amaldiçoadas —Philip acrescentou antes de fechar a porta do escritório com um grande estrondo.

VI


Anne saiu da cama com o cabelo molhado. Três noites... O sonho não a deixava em paz e se repetia toda vez que adormecia. Fizera todo o possível para fazê-lo desaparecer. Até leu um dos livros de Mary! Mas nem mesmo enchendo a cabeça com dados clínicos e doenças mortais o manteve fora de sua mente. Pelo contrário, estava se tornando mais real e o sentia com tanta intensidade que acordava banhada em suor pela paixão que vivia nele. Não via mais nos olhos do homem o que aconteceria, segundo sua mãe, no futuro. Desde a segunda noite, ambos acabavam nus no chão daquele pequeno prado e se entregavam a um desejo sem precedentes.

Perturbada, esfregou o rosto, se levantou e foi a sala de banho. Não podia perder muito tempo, sua mãe apareceria a qualquer momento para perguntar se o corvo a visitara novamente. Como não queria mentir, responderia sim e ela sairia com um sorriso de orelha a orelha. No entanto, a felicidade de sua mãe lhe causava uma dor terrível, porque não tinha sido capaz de explicar que o homem que aparecia naquele sonho era um parente do Marquês de Riderland. Como um aristocrata poderia ter sangue cigano? Um primo, sobrinho ou o que quer que o relacionasse com o marquês, não teria sangue vermelho nas veias, mas azul. Ainda admitiria que a maldição estava prestes a terminar se ela descobrisse quem ele era?

Possivelmente não. A ilusão que a mãe mostrara durante o dia se transformaria em agonia e Elizabeth sairia de casa procurando o pretendente ideal. As únicas que pareciam impassíveis a essa esperança eram suas outras irmãs, que continuavam com suas vidas rotineiras após a feliz reunião de família.

Ela abriu a torneira, tirou a camisola e deixou o corpo relaxar em um banho quente de espuma. Algo que uma vez pareceu maravilhoso para ela, já não dava prazer. Não estava contente com nada e era esmagador não encontrar alguma paz onde antes havia encontrado. Ensaboou o cabelo e enxaguou sem confirmar se estava brilhante. Retirou-se da banheira, vestiu o robe de seda preta e, quando saiu da sala de banho, encontrou Sophia debruçada sobre Mary.

—Ela ainda está dormindo como um tronco -- disse com raiva. ?Cobri o nariz dela para ver se acordava, mas começou a respirar pela boca.

—Ontem leu outro livro até... -- ela tentou dizer.

—Tanto faz! —Interrompeu. —Não vou deixar que passe seus anos vivendo desse jeito! —Exclamou com raiva. —A partir de hoje, Shira removerá as cortinas da janela —apontou com o dedo para o lugar onde a janela estava —de modo que alguma luz entre no quarto. Vamos ver se, dessa forma, ela entende que não pode dormir até a hora do almoço —acrescentou,

enquanto caminhava em direção a ela. —Mas não vim aqui para ficar com raiva... —suavizou seu tom de voz. -- Queria saber se sonhou com ele hoje.

—Sim, mãe. O corvo também apareceu essa noite —respondeu, fixando os olhos no chão, para não mostrar o constrangimento causado por falar de algo tão íntimo com sua mãe.

—Maravilhoso! —Exclamou dando-lhe um beijo na bochecha. --

Isso significa que aparecerá em breve e que nossas tristezas estão prestes a terminar —continuou em uma voz satisfeita.

—Se diz... —ela murmurou.

—Não confia em minhas palavras? Duvida de mim? —Como sua filha não levantou o rosto, ela colocou um dedo sob o queixo e o levantou. --

Anne, se lembra de onde eu venho? Está ciente do sangue que eu tenho?

—Sim —ela disse, olhando-a nos olhos. Nunca, em seus quase vinte e cinco anos de vida, havia visto tanto brilho naquele olhar verde.

—Querida, esta noite, antes de ir para a cama eu orei a Morgana e pedi a ela que me levasse para o seu sonho.

—O que disse? —Perguntou se afastando dela e arregalando os olhos.

—Mas ela não me presenteou esse momento —disse, sorrindo de orelha a orelha. —A criadora nunca interrompe a intimidade de um casal.

E Anne pôde respirar com tranquilidade.

—O que mostrou?

—Morgana me ofereceu uma bela foto da família, a mesma que Madeleine comentou naquela tarde. Pela primeira vez em vinte e cinco anos, não havia escuridão sobre nós, mas luz.

—Tem certeza? Realmente acha que o homem que vejo dormindo vai nos livrar de tudo isso?

—Por que desconfia? Está escondendo algo importante de mim? —Perguntou, apertando os olhos.

—Não, mãe.

—Então, com o que está preocupada? Pensa que estou tão desesperada que sou capaz de provocar essas visões?

—Não! Nunca faria uma coisa dessas! —Disse rapidamente.

—Por favor... —Mary disse em uma voz sonolenta. —Meu cérebro precisa de descanso...

—Seu

cérebro

precisa

de

umas

palmadas!

--

Sophia trovejou virando-se para a segunda filha. —Levante-se de uma vez! Não se lembra que esta manhã nós temos que sair?

—Vai me comprar mais livros? —Perguntou sem tirar os lençóis do rosto.

—Claro que não! —Exclamou a mãe para a cama, na qual ela só podia ver uma colcha rosa e os tubos metálicos que Mary havia enrolado em

seus cabelos negros.

—Então... me deixe dormir!

—Mary Moore, quero que afaste essas cobertas agora mesmo! --

Sophia ordenou como se ela fosse do alto escalão do exército.

—Mãe, reconsidere sua decisão —Anne pediu quando a viu se aproximar dela. ?Acho que seria mais apropriado não nos acompanhar nessa saída familiar. Esqueceu o que aconteceu da última vez que a forçou a se juntar a nós?

Sophia olhou para a primeira filha, depois para a segunda e franziu a testa. Claro que ela se lembrava! Não só ela, mas qualquer habitante de Londres! Como poderia esquecer que ela bateu na carruagem do filho de um lorde com os punhos, porque, depois de uma conversa acalorada sobre uma descoberta médica, ele disse a ela que deveria se concentrar em manter a boca fechada? Nem mesmo as quatro xícaras de tília que tomou quando retornaram acalmaram o constrangimento que ela e o resto de suas filhas sofreram.

—Tudo bem, —disse. —Até que sua situação seja esclarecida, é melhor ficar longe de nós.

—Obrigada. Fez o correto.

—Se diz... —murmurou. -- Vou esperar na sala de costura. Preciso verificar certas coisas antes de sair.

—Minhas irmãs estarão lá? —Queria saber enquanto seguia em direção ao guarda-roupa.

—Não, Elizabeth está na estufa, ela me disse que precisava plantar algumas sementes que o seu pai trouxe ontem à noite. Madeleine ajuda a cozinheira com uma nova sobremesa e Josephine disse algo sobre tentar limpar o cano de um instrumento —explicou sem tirar os olhos de Mary.

—Não demorarei a descer —assegurou Anne, apertando os lábios para não rir quando ouviu a palavra instrumento. Sua mãe não percebia que o instrumento era outra arma? Apesar da reprimenda que recebeu depois de ter perfurado o vidro da sala de descanso, ela ainda estava determinada a colocar em suas mãos o que era proibido.

—Antes de descer preciso que faça duas coisas.

—Que deseja? —Perguntou se virando para ela.

—Quero que hoje use o vestido esmeralda —a informou.

—Não é muito elegante? Lembre-se que compramos para uma ocasião especial. —Tentou dissuadi-la.

—Se aquele homem está prestes a chegar, quero que note sua beleza e não os decotes que Elizabeth exibe.

—Mas...

—Não há discussão possível sobre esse assunto! Entendido? --

Assegurou.

—Sim mãe, o vestido esmeralda. Qual é a segunda coisa que quer me pedir? -- Perguntou Anne com resignação.

—Antes de sair, lembre à sua querida irmã que, mesmo que não estejamos em casa, ela tem que descer arrumada. Se ousar deixar esse quarto de camisola... será punida para sempre! -- Sophia apontou antes de sair do quarto.

?Nem pense em repetir, ?disse Mary, virando-se no colchão. Já ouvi isso. Eu e qualquer um que esteja a cinco quilômetros de distância.

—Mas ela está certa Mary. Não é apropriado que saia de camisola. Se tiver dificuldade em se vestir antes de tomar o café da manhã, peça a Shira para subir com ele.

—Acho que é uma boa ideia... irei deixar o quarto de camisola e gritar para ela do alto da escada para trazê-lo.

—Mary...

—Faça-me um favor, Anne. Vista-se em outro quarto. Minha cabeça dói depois de ouvir tanto absurdo.

—Acha que a mamãe vai esquecê-la? Realmente acredita que poderá evitá-la para o resto da sua vida?

—No momento, só quero evitá-la hoje... amanhã, amanhã me preocuparei em continuar lutando contra ela.

Anne olhou para ela sem piscar, maravilhada com a atitude desafiadora de Mary. Não entendia como era capaz de continuar dormindo depois de ouvir as ordens de sua mãe. Até o mais feroz soldado tremeria! No entanto, ela não parecia se importar com nada além de seus livros. Depois de suspirar profundamente e rezar para que um dia mudasse de comportamento, virou-se para o guarda-roupa, pegou o vestido que a mãe indicara, um lenço laranja e foi na ponta dos pés até a porta.

—Se encontrar Shira, diga a ela que estou doente, assim não abrirá as cortinas —ela pediu, se virando de novo na cama.

Sem responder a esse pedido, Anne saiu do quarto, fechou a porta e, quando estava caminhando em direção ao quarto das gêmeas, encontrou Shira.

—Senhorita! —Exclamou horrorizada ao ver que levava nas mãos as roupas escolhidas para sair. -- Por que não esperou por mim?

—Bom dia, Shira. Mary está doente e não quero incomodá-la.

—Doente? O que tem dessa vez? —Retrucou, colocando as mãos na cintura.

—Febre, eu acho...

—Bem, a senhora ordenou que abrisse as cortinas e sabe que nunca desobedecerei a sua mãe.

—Pode esperar, por favor, até nós estarmos fora de casa? Não

quero ouvir mais gritos por hoje —pediu.

—Sua mãe indicou que o faça depois de ajudá-la a se vestir, então...

—Entendo —disse, entregando suas roupas para Shira.

Uma vez que chegaram ao quarto das pequenas, a donzela fez um grande esforço para deixá-la como sua mãe havia indicado. Apertou tanto o espartilho que seus seios pareciam tão grandes quanto os melões que comprava no mercado. O que ela queria? Que lutasse contra a beleza de Elizabeth? Então, era uma batalha perdida. Onde a terceira das Moore tinha uma altura ideal para ser mulher, ela superava uma cabeça. Seus olhos eram castanhos e seu cabelo era tão escuro como a noite. Elizabeth herdara os olhos azuis e os cabelos dourados como ouro. Além disso, quando andava mal movia o tecido da saia, Eli parecia uma dançarina de balé. Compará-la?

Superá-la? Não, poderia se comparar a ela ou superá-la. A única coisa em que ela se destacava era aquela paixão selvagem com a qual nasceu. Elizabeth, ao contrário, se comportava descaradamente, mas no momento da verdade valorizava sua virgindade acima de tudo.

—Como sua mãe previu, esse vestido se encaixa perfeitamente --

recuou Shira quando terminou de arrumá-la.

—Ainda não estou satisfeita, mas é verdade que é tão bonito que não notarão a minha altura, mas o brilho de seda —disse, olhando para si

mesma no espelho.

—Se subestima, senhorita, é uma mulher muito bonita, tudo o que precisa fazer é confiar em si mesma.

—Obrigada Shira —agradeceu dando-lhe um beijo enorme na bochecha.

—Desça o mais cedo possível, sua mãe está esperando e tenho que deixar a luz entrar em seu quarto. Espero que sua irmã não decida me jogar o último livro que tem debaixo do colchão.

—Se o fizer, feche a porta, porque é enorme! —Exclamou entre risadas.

Depois de relaxar, caminhou na ponta dos pés, para que Mary não a ouvisse antes que Shira abrisse a porta, parou no topo da escada e olhou para baixo. De repente, alcançou o corrimão e o agarrou. O que acontecia com ela? Por que ao olhar para a porta seu coração começou a bater tão rápido? Por que seus joelhos queriam tocar o chão? Sufocada e assustada com essa mudança repentina, ela desceu lentamente as escadas sem largar o corrimão. No entanto, quanto mais perto chegava da entrada, mais sua fraqueza aumentava e seu batimento cardíaco ecoava em seus ouvidos como as balas das armas de Josephine.

—Morgana... —se dirigiu pela primeira vez à mãe sobre quem Sophia falava —o que acontece comigo? O que quer me dizer?

Depois de descer o último degrau, emaranhou o lenço laranja nas mãos e respirou com dificuldade. Queimava. Aquela peça de roupa que no andar de cima estava fria pela temperatura ambiente, na frente da porta, ardia.

Desenrolou-o de suas mãos, pegou-o com as pontas dos dedos e o arejou. As quatro borlas costuradas nos quatro cantos se moveram quando o sacudia e, de repente, um halo de luz cruzou aquele lenço. Assustada, mais do que nunca, o agarrou com força e, sem diminuir o passo, foi a sala de descanso. Quanto mais cedo se apresentasse à mãe, mais cedo tudo o que estava acontecendo desapareceria.

—Está ótima! ?Sophia exclamou ao vê-la. —Mas não quero que use isso —acrescentou, apontando para o lenço laranja que sua filha estava segurando firmemente em sua mão direita. —Não vê que não é apropriado?

—Gosto dele... —sussurrou. Como havia imaginado, assim que entrou na sala, seu corpo recuperou a normalidade e o lenço parou de queimar.

—É horrível! -- Insistiu sua mãe. -- Não gosto da cor, nem do tecido nem das borlas. Onde comprou? Ultimamente faz coisas sem me consultar...

—Comprei no mesmo dia em que Elizabeth comprou aquele chapéu de flores —explicou, caminhando em direção a ela.

—No estabelecimento da Sra. Jancks? Ela não mostrou outros

menos... laranja?

—Oh sim! Mas nenhum me agradou tanto quanto este... —ela comentou enquanto o colocava em seus ombros.

—Nem pense em sair com isso, Anne Moore! Ou deixa na cadeira ou...!

Não conseguiu terminar a frase de aviso porque alguém bateu na porta. Sophia olhou para a entrada da sala, depois para a filha e respondeu.

—Entre.

—Senhora, me perdoe por te interromper —disse Shira, mostrando duas bochechas vermelhas no rosto —mas tem uma visita.

—Uma visita? —Perguntou Sophia levantando as sobrancelhas.

—Para nós?

—Não Senhora. Dois cavalheiros vieram procurando pelo Senhor. No entanto, quando os informei que não estava em casa e não chegaria até o final da tarde, um deles insistiu...

—Em que? —Sophia exigiu saber.

—Em conversar com a senhora —afirmou sufocada.

—Comigo? —A sra. Moore perguntou perplexa.

Por que queria falar com ela? O que poderia ser tão urgente para não esperar pela chegada do marido? Quem seriam esses cavalheiros? Sophia respirou fundo, empurrando as perguntas e a inquietação que causavam a ela.

Teria que adotar o comportamento da esposa de Randall, o médico mais admirado de Londres, e receber aquelas visitas inesperadas como ditava o protocolo. Caminhou lentamente até o meio da sala, espalmou no vestido de seda bege, levantou o queixo e disse para sua governanta:

—Faça-os entrar. Irei recebê-los —disse com determinação.

—Tem certeza? —Shira perguntou, de olhos arregalados. --

Posso dar uma desculpa razoável. Uma senhora com suas filhas, sem a companhia do marido...

—Estou —disse Sophia, lançando um olhar furtivo para a mais velha de suas filhas para que ela pudesse ficar ao seu lado e adotar a postura adequada para receber os visitantes.

—Quem serão? —Anne perguntou olhando para a porta. —Por que insistem em falar com a senhora e não retornam quando o papai estiver?

—Assim que eles aparecerem por aquela porta, descobriremos --

declarou Sophia solenemente.


***


Shira, depois de confirmar que mãe e filha haviam se colocado no lugar certo e adotado a postura perfeita, afastou-se da entrada, voltou ao salão e informou ao homem insistente que a sra. Moore os atenderia naquele

momento.

—Me acompanha? —Logan perguntou para Philip, que tinha dado um único passo em frente e não tinha a intenção de dar nem um mais.

—É seu problema, não meu. Além disso, em nosso acordo não há referência sobre protegê-lo de uma dama amaldiçoada —disse Giesler.

—Vai me deixar sozinho? Não quer descobrir como é a mãe dessas cinco filhas? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas.

—Não quero saber nada sobre nada. Tudo o que estou tentando fazer é salvar minha pele enquanto devolve esse bendito envelope. Além disso, se me encontrar em perigo, esta área da casa é o local ideal para sair sem olhar para trás —declarou Philip depois de estudar com precisão o interior da casa dos Moore.

Enquanto seguiam para a residência, pensou em como seria a casa e seu entorno. Para sua paz de espírito, não encontrou nada de estranho. A residência era bastante espaçosa e iluminada. Aquela escuridão que tinha visto em sua mente não era real. A luz do dia entrava pelas janelas do primeiro andar e alcançava os vasos cheios de flores colocados em ambos os lados da escada que se comunicava com o segundo andar. A construção desse segundo andar era muito parecida com a sua. Um amplo patamar, uma escadaria de cerca de quarenta degraus de mármore claro, uma grade de madeira escura e, atrás daquele amplo patamar, havia duas galerias; uma

levava para a ala direita e a outra levava para a esquerda. Também havia percebido que do lado de fora, no grande jardim, uma pequena estufa de vidro fora construída. Tudo isso lhe dizia que a família Moore, apesar dessa maldição que supostamente caía sobre eles, era uma família razoavelmente rica; do contrário, não teriam um lar tão semelhante ao de um aristocrata.

—Está bem. Se algo assustá-lo, grite e virei em seu auxílio --

Logan disse, achando graça antes de começar o caminho que a criada apontava para ele.

Giesler o observou até que estava na frente da porta e recuperou o fôlego quando o viu endireitar o casaco, adotar uma postura rígida e confirmar que o envelope ainda permanecia no bolso direito. Naquele momento, não o invejava. A única coisa que sentia por seu amigo era misericórdia. O pobre tolo foi para a sala onde estava a mãe das meninas amaldiçoadas. Só esperava que ele saísse de lá inteiro e.... vivo.

Logan respirou fundo, pegou a maçaneta, a girou e, quando deu um passo à frente, congelou. Tinha pensado nisso. O pensamento cruzara sua mente mil vezes enquanto se dirigiam para a residência Moore, mas uma coisa era a atitude que adotara durante aquela imagem mental, na qual controlara perfeitamente seu estranho desejo por ela, e outra bem diferente era encontrá-la de uma maneira real. Se na festa, naquele vestido laranja, ela já parecia a mulher mais bonita de Londres, vê-la ali, no meio da sala,

esperando sua chegada com aquele vestido esmeralda o deixara tão impressionado que teve que chamar sua razão para poder dar mais um passo em frente.

—Bom dia, Sra. Moore. —Ele olhou para a esposa do médico, fazendo um grande esforço para parar de observar a jovem, que, ao vê-lo, empalidecera. —Sou o visconde de Devon e pretendia falar...

Logan não terminou a frase porque nesse momento correu em direção a Anne. A jovem, depois de dar o segundo passo, começou a vacilar.

—Anne! —Sophia exclamou quando viu como sua filha estendia uma mão para ela, para evitar uma queda. —Anne! O que há de errado? --

Gritou desesperada.

E, justamente quando Anne estava no meio desse colapso para cair, quando o seu corpo ia bater no chão, Logan chegou a tempo de pegá-la e erguê-la em seus braços.

—Pelo amor de Deus! —Sophia gritou, imitando as palavras que o marido usava quando alguma coisa o deixava perplexo.

Não sabia o que a chocava mais, se o desmaio inesperado Anne ou como o homem a segurava. Suas mãos grandes e poderosas se agarraram ao vestido de Anne de um jeito tão possessivo, tão rude, que as pontas daqueles dedos perfurariam a roupa da filha e acabariam criando marcas em sua pele.

—Madame... —Logan começou a dizer colocando a cabeça da jovem em seu tórax, sentindo o hálito de sua respiração acariciando seu peito e como seu coração respondia àquelas respirações. —Onde posso…?

—Lá! —Apontou o sofá que o marido utilizava para cochilar enquanto ela costurava.

Com um passo firme, Bennett foi até o lugar que a Sra. Moore indicara e, com muita gentileza, colocou Anne no sofá.

—Shira! —Gritou Sophia enquanto corria para a porta. --

Shira! Repetia desesperada.

—Senhora? —Perguntou, aparecendo quando Sophia ia sair da sala.

—Pegue os sais! —Ordenou. —Anne sofreu um desmaio.

E naquele momento, um grito veio da entrada.

VII


Ele sabia amaldiçoar em muitos idiomas, todos aqueles que aprendera desde que começou a ler.

Quando notou que seu rosto estava aquecido pela luz que entrava pela janela, Mary cobriu os olhos com o antebraço direito e gritou horrorizada. Por que as cortinas estavam abertas? Anne não explicou à Shira que ela não deveria fazer isso porque estava doente? Não acreditou nela? Sua mãe continuava a impor seus desejos? Ninguém na casa entendia que ela deveria descansar depois de passar uma noite enchendo seu cérebro com uma sabedoria exaustiva?

-- Für alle Übel der Welt[2] ! —Gritou depois de puxar o lençol de seu corpo como se em vez de ser feito de algodão ele estivesse cheio de cardos espinhosos. —No dia em que tiver minha própria casa, ordenarei que deixem o quarto no escuro até eu acordar -- disse, emburrada, enquanto colocava os pés no chão. -- E miserável de quem ousar desobedecer a minha ordem!

Levantou-se e, como de costume, caminhou até a porta descalça, de camisola e com aqueles rolos nos cabelos que Shira a forçava a usar antes de dormir. Quando a mão dela tocou a maçaneta, sorriu de orelha a orelha, olhou em direção a janela, para confirmar que o desafio que faria era uma

resposta para a batalha que sua mãe começou ao puxar as cortinas, e abriu a porta. Com uma atitude confiante e corajosa, porque imaginara que todos haviam ido às compras, caminhou pelo corredor sem se preocupar e bocejando. Um café. Ela precisava de um café antes de aguentar a árdua tarefa de se lavar, vestir e pentear o cabelo.

Com os olhos fechando e abrindo, pois, a sonolência não desapareceria até que tomasse o primeiro gole de café, pensava sobre a diferença entre as cinco irmãs ao acordar. Anne pulava da cama, entrava na banheira e desfrutava de um longo banho de espuma. Elizabeth não saia do quarto sem estar asseada, vestida e, claro, perfeitamente penteada. Se a curvatura do lado esquerdo não se ajustasse às dimensões e ao laço exato, de modo que a ponta do cabelo tocasse levemente a pele de seu enorme decote, voltava para o quarto e não saía até conseguir. Josephine tinha que fazer seus exercícios matinais. Claro, esses exercícios não eram usuais em uma mulher. A quarta filha jogava facas em uma pintura que ela escondia debaixo do colchão, no mesmo lugar em que mantinha aquela meia dúzia de punhais com os quais ela praticava. Se verificasse que sua pontaria não tinha melhorado desde a noite anterior, se asseava, vestia as roupas que sua mãe odiava, descia, tomava café da manhã e saia para o jardim com a nova arma em suas mãos. Madeleine... a pequena era de outro mundo. Toda vez que se levantava, ela mostrava um enorme sorriso no rosto. Tudo a fazia feliz, nada

a incomodava e ela se sentia muito à vontade... em casa. Seu rosto angelical desaparecia quando tinha que sair de casa. E por outro lado, estava ela, que precisava de uma boa xícara de café para entrar na banheira porque, enquanto suas irmãs desfrutavam de um banho quente, ela ficava em alerta no caso de, em algum momento, a caldeira a gás emitir ruídos estranhos, como aconteceu com Lorde Fhautun antes de ele sair disparado junto com a banheira.

Em suma ... cinco filhas, cinco personalidades.

Antes de virar à esquerda para se colocar no patamar do segundo andar, ela coçou a bunda por cima da camisola e um enorme bocejo fez com que fechasse os olhos e abrisse tanta boca que parecia a mandíbula de uma baleia. Com os olhos ainda fechados, ela estendeu a mão que havia tocado sua nádega ao corrimão e começou a descer as escadas até ouvir algo parecido com um grunhido. Surpresa, ela juntou os lábios, abriu os olhos e....

gritou com toda a sua força.

—O que está fazendo aí parado? Quem o deixou entrar?

?Perguntou, quando terminou de gritar, para o homem que estava parado na porta, olhando para ela com uma expressão de medo e se aproximando da porta, como se precisasse confirmar que ainda estava perto da saída.

-- Eine Hexe! -- Philip exclamou, incapaz de tirar os olhos daquela imagem aterrorizante. O que era aquilo que via? Um fantasma? Um diabo? Que criatura da natureza seria? O que quer que fosse, tinha que sair

dali o mais rápido possível, porque, pelo que tinha na cabeça, deduzia que era parente da deusa Medusa e poderia transformá-lo em pedra a qualquer momento.

—Me chamou de bruxa? —Mary explodiu irritada ao ouvir como ele a chamara em alemão. —A mim? —Naquele ataque de raiva ela colocou as mãos no cabelo, rapidamente desfez os rolos de metal que tocava lançando-os com toda a força que sua raiva lhe dava. —Não sou uma bruxa pedaço de asno! —Continuou gritando irritada, jogando os bobes nele como se fossem dardos.

—O que diabos está jogando em mim, bruxa? —Philip perguntou, movendo-se da direita para a esquerda, para que o que ela estivesse jogando não o atingisse. —Quer me transformar em pedra?

—Em pedra? -- Agora sim que não podia ficar com mais raiva. Ele a estava comparando a Medusa, a deusa que, através dos seus olhos, transformava as pessoas em pedra? Dando um puxão forte em seus cabelos, ela conseguiu tirar mais de cinco rolos de metal de uma só vez e atirou todos contra aquele ingrato. -- Vai saber o que significa se tornar uma pedra, titã desgraçado! Arsch! Dumm[3]!

—Mary Moore! —Exclamou Sophia, vendo o que a segunda de suas filhas estava fazendo. —Chega!

—Não! Nunca vou parar porque esse asno me chamou de bruxa!

A mim! Na minha própria casa! —Gritou com tanta raiva que as veias de seu pescoço pareciam as cordas que eles usavam na Idade Média para enforcar os ladrões.

E naquele momento Josephine veio em socorro, segurando com força a última espingarda que seu pai lhe dera. Se colocou entre sua irmã e o estranho, levantou o cano e apontou para o peito grande.

—Saia desta casa se quiser continuar vivo porque, mesmo sendo uma mulher, posso puxar o gatilho e ter uma bala atravessada no seu coração

—avisou.

—Josephine Moore, abaixe essa arma agora mesmo! —Sophia gritou sufocada, aturdida e prestes a se tornar a bruxa que nomeara Mary.

E como não há dois e sim três, Madeleine correu da cozinha quando ouviu tantas vozes. Mas quando viu um homem de tal tamanho na porta, sua irmã Josephine apontando a arma para ele, Mary na escada de camisola, puxando os bobes, e sua mãe tentando colocar a paz na situação, ela parou a corrida, se virou e abriu a porta da sala de descanso, o lugar ideal para se esconder. No entanto, também havia pessoas na sala. Madeleine arregalou os olhos, levou a mão direita à boca e gritou ao ver que um homem, que beijava Anne até que o interrompeu, virou a cabeça para ela e a olhou sem piscar.

—Já... está! Veio...! Maldição! Ele... —Ela voltou para a cozinha,

gritando entre soluços.

Sophia ficou a cinco passos da sala e a sete de onde estava aquele cavalheiro loiro. Olhou para a esquerda e bufou enquanto observava Madeleine correndo e gritando palavras sem sentido. Então ela voltou os olhos para Josephine. Ela ainda não havia cumprido sua ordem e continuava a apontar para o peito daquele cavalheiro hercúleo cujo rosto estava mais branco do que o da menina assustada. Por que Morgana lhe oferecia uma situação tão absurda? Deveria passar por esse calvário para encontrar a paz? Não era normal o que acontecera em menos de dois minutos: Anne desmaiara ao entrar aquele cavalheiro que não pôde nem se apresentar, Madeleine tinha visto algo naquela sala que a desequilibrara, Josephine ainda com a arma nas mãos, apontando o peito do homem que não conseguia afastar os olhos de Mary. Se alguma vez pensou que os espetáculos que sua segunda filha oferecia nas reuniões médicas eram bastante humilhantes para ela, estava errada. Aquilo superava tudo o que tinha visto em sua vida!

—Josephine Moore, eu disse, abaixe a arma! —Ela repetiu com mais energia e desespero.

—Mãe, eu prometo que vou fazer isso assim que esse homem afastar o olhar de Mary. Caso continue a observá-la dessa maneira, descobrirá que sob a camisola ela está nua —Josephine exclamou.

E naquele momento Mary gritou novamente. Josephine continuou

apontando para Philip e, apesar de ouvir o aviso de quem segurava a arma, não desviou o olhar da mulher, a quem chamaram de Mary, tentando descobrir que figura feminina teria a diabólica Medusa.

—Vá agora para o seu quarto, Mary Moore! Espero que isso a ensine a não descer sem se arrumar —explodiu Sophia. —Eugine! --

Chamou a cozinheira.

Mas Mary não subiu, ela ficou lá, petrificada pelo constrangimento, contemplando furiosa como o atrevido estava procurando o ângulo perfeito para descobrir o que estava escondido sob a longa camisola.

—Sim senhora? —Disse rapidamente a criada, que, antes do burburinho que se formara em um piscar de olhos na casa pacífica, abandonou suas tarefas para ir até a entrada.

—Faça para Madeleine um chá calmante e que não saia da cozinha até que tudo isso esteja sob controle —disse sem tirar os olhos de Josephine.

—Sim, senhora —disse antes de se virar e procurar a filha mais nova.

—Shira! —Chamou a governanta.

—Estou aqui, senhora —respondeu às costas de Sophia.

—Dirija-se à sala de estar e deixe que Anne inspire os sais para ver se ela acorda imediatamente. Não saia de lá até eu limpar toda essa

bagunça porque o cavalheiro que queria falar comigo, continua sozinho com ela —disse seriamente.

—Agora mesmo —Shira respondeu, dando passos rápidos para a sala.

—Se não abaixar a arma, Josephine, prometo que não terá uma enquanto estiver respirando. Juro pelo meu sangue que as aulas de esgrima e as escapadas para o campo com o seu pai irão acabar —ameaçou sua quarta filha.

—Mãe... —ela disse, abaixando a arma. —Esse homem…

—Senhor! —Sophia a corrigiu. —Ele é um homem que apareceu em nossa casa para procurar seu pai e.... como o trataram? —Ela gritou, olhando para Mary e depois para Josephine. —Que imagem minhas filhas ofereceram? É assim que expressam a educação que com tanto esmero demos às duas? -- Persistiu em voz alta.

Josephine, descobrindo a extensão da raiva materna e assustada com as repercussões que teria, decidiu pedir desculpas antes que sua mãe pegasse todas as suas espadas, facas, rifles e os entregasse ao primeiro ferreiro que passasse pelos arredores de sua casa. Ela deu dois passos em direção a Philip, abaixou a arma e estendeu a mão.

—Desculpe por apontar a arma e por querer atirar no senhor. Mas, como entenderá, não foi correto olhar para a minha irmã desse

jeito —ela esclareceu com orgulho. —Só fiz o que qualquer homem faria no meu lugar.

—Desculpas aceitas, senhorita Moore e acredite em mim eu a entendo perfeitamente. —Aceitou uma saudação tão masculina. --

Certamente eu teria reagido como a senhorita se um estranho entrasse em minha casa e olhasse com atrevimento o corpo seminu da minha irmã --

acrescentou, ainda incapaz de afastar os olhos de Mary Moore e lhe dar um sorriso leve e sedutor.

Depois que ele a perdoou, Josephine se virou, olhou para a mãe, assentiu, colocou a arma no ombro direito e voltou para o lugar de onde havia saído com um passo militar.

—Mary... —avisou sua mãe quando viu que ainda estava no alto da escada e tinha mais alguns cilindros de metal na mão.

—Nunca me desculparei com um sujeito rude! —Gritou, se virando para subir as escadas.

Mas justo quando chegou ao patamar, quando apenas devia sair pelo corredor da esquerda para ir ao seu quarto, olhou de lado para o homem e seu corpo se encheu de raiva. Ele estava olhando seu traseiro? Aquele grosseiro, mal-educado e desbocado tinha os olhos fixos na sua bunda? Respirou fundo, lançou um olhar assassino e, depois de jogar outro daqueles rolos metálicos que segurava na mão direita, correu para seu quarto.

Assim que a calma reinou no local, Sophia respirou fundo, esboçou um largo sorriso, caminhou em direção ao cavalheiro que suportara estoicamente aquela situação desastrosa, estendeu a mão e disse:

—Bom dia senhor…

—Giesler —disse Philip, escondendo na palma da mão esquerda o último rolo que a bruxa morena de olhos azuis jogara nele, depois de descobrir que ele não desviou o olhar do seu traseiro.

Aceitou a mão dela e deu-lhe um beijo casto nas juntas.

—Bom dia, Sr. Giesler. Sinto esse alvoroço, espero que possa esquecer facilmente. Minhas filhas são meninas muito calmas e sensatas --

ressaltou.

—É claro, Sra. Moore. Testemunhei o bom senso do qual fala e devo parabenizar a senhora e seu marido pela educação erudita que elas estão mostrando.

—Sarcasmo, Sr. Giesler? —Sophia disparou, erguendo a sobrancelha.

—Completamente, senhora —disse com um sorriso que cruzou seu rosto.

—Quer me acompanhar até a sala? Exceto pelo desmaio da minha primogênita, certamente será um lugar menos perigoso.

—Obrigado pelo convite, mas, se não se importar, continuarei no

corredor, perto da saída, para o caso de suas queridas filhas quererem me mostrar de novo aquelas atitudes tão tranquilas e delicadas que ensinou —ele disse tentando não olhar para cima, onde a bruxa dos rolos de metal tinha saído.

—Como quiser —Sophia disse, estreitando os olhos para descobrir para onde os do Sr. Giesler estavam se dirigindo. «Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente combater os sentimentos que esse homem despertará nela a partir do momento em que se encontrem pela primeira vez», lembrou. Se virou, olhou para cima, confirmando que Mary não estava, endireitou as costas, adotando a atitude mais digna que poderia ter naquele momento e retornou à saleta. Ainda tinha que resolver a questão mais importante, quem era aquele homem e o que queria.


***


Uma vez que a deitou no sofá que a Sra. Moore apontara, Logan se forçou a manter as mãos longe da jovem. Por que agia assim? Por que todo o seu ser o incitava a não se afastar da jovem e a guardá-la como se nada no mundo importasse a não ser ela? Atordoado por aquele súbito desejo de proteção, mesmo acima de sua própria vida, ele deu um passo para trás.

—Pegue os sais! —Ele ouviu a ordem da esposa do médico

quando se afastou deles. —Anne sofreu um desmaio.

Mas naquele exato momento um grito foi ouvido na casa. Logan se virou para a porta e deu um passo à frente. Aquele grito de terror só poderia ser de Philip. Foi isso que lhe disse antes de deixá-lo na porta, que se algo terrível acontecesse, ele gritasse e deixariam a casa dos Moore sem olhar para trás. No entanto, o desejo de descobrir o que aconteceu com seu amigo desapareceu quando percebeu que a própria Sra. Moore estava correndo em direção ao salão e deixando-o sozinho com a jovem a quem ela chamara de Anne. O médico lhe contou o nome de sua filha? Naquele momento, não se lembrava bem de ter feito isso, a única coisa que podia especificar era o estado de ansiedade que o pai mantivera durante sua breve visita.

Sem pensar se era conveniente estar sozinho com ela, ele se virou e a olhou por algum tempo. Como poderia se sentir tão atraído por uma mulher que não conhecia? Por que seu sangue atingiu uma temperatura sem precedentes? O que havia de especial nela? Ainda pensando em como seu corpo reagia ao estar tão perto da jovem, ele recuou do passo que havia dado e se colocou tão perto dela que seus joelhos tocaram o vestido. De onde estava, podia ver aquele grande e volumoso seio subindo e descendo no ritmo da respiração lenta. Ela parecia tão relaxada, tão longe de onde estava, que notou como essa paz que ela sentia se apoderava dele também. Aquele rosto, apesar

de

pálido

devido

ao

desmaio,

mostrava

uma

beleza

incomparável. Seus lábios, ligeiramente separados, convidaram-no a beijá-los com ternura e discrição. Logan se recusou a fazer o que sua mente estava gritando com desespero, apenas um vilão se aproveitaria de tal ocasião.

Ele preferia beijar mulheres acordadas e ver nos olhos delas o brilho que oferecia a paixão de seus lábios. No entanto, ela era tão especial, tão diferente de todas as que conhecia... ela não tinha a beleza de sua última amante, Rose, nem a força de Barbara, a mulher africana com quem ela vivera durante sua viagem à África. A senhorita Moore era única, diferente e especial. Logan a olhou de cima a baixo, concentrando-se no lenço laranja que ainda segurava na mão esquerda. Ela não percebia que aquela tonalidade era imprópria a uma mulher em sua posição? Só precisava levar algumas joias em suas mãos e orelhas para expressar a todos quem ela realmente era. «Minha esposa é cigana —recordou a conversa com o médico, —mas mantivemos segredo para o bem das nossas filhas». Pois a primogênita do casamento, não arrastava apenas a maldição da qual ele falou, mas suas entranhas gritavam que seu sangue era diferente do resto de Londres.

«Ela não esconde o que é», disse a si mesmo enquanto se ajoelhava. «Você, ao contrário, foge da realidade, da sua natureza, da sua verdadeira origem», continuou pensando enquanto sentia como o sangue que ele chamava de contaminado assumia o controle quanto mais tempo passava com ela.

Parecia estranho, não só por causa do que estava acontecendo com ele ao lado de Anne, mas por causa dos sentimentos que vinham de dentro dele. Tentou raciocinar, como costumava fazer aquela parte Bennett que aparecia nele toda vez que estava em apuros. No entanto, a parte que ele odiava, seu lado cigano, atacou com força dentro dele, sua cabeça se encheu de ideias absurdas. Como ele apagaria de sua vida o que aconteceu depois de seu nascimento? A humilhação a que foi submetido, a desordem que sofreu até aquela piedosa mulher levá-lo até seu irmão e, depois de implorar piedade por um filho bastardo que tinha que viver com dignidade, permaneceu sob sua proteção. Não podia esquecer sua origem, nem como todos gritavam que ele era o filho do diabo, nem se davam conta de que a pessoa que finalmente lhe dava seu sobrenome tinha sido um vilão apenas para uma mulher que ele mal conhecia.

Olhou para os lábios dela novamente, aumentando a preciosa visão de seu desejo de beijá-la. Anne tinha uma boca tão tentadora, tão sedutora que queria descobrir como eram aqueles lábios vermelhos. Se inclinou sobre ela, respirou com dificuldade, como se precisasse inspirar o perfume da jovem para sobreviver, levou sua boca à dela, fechou os olhos, beijou-a e, naquele instante, algo ainda mais estranho aconteceu.

De repente, tudo ao seu redor ficou escuro como se alguém tivesse apagado a luz do sol. O silêncio que permanecia no quarto foi

interrompido por uma música suave. Ele estreitou os olhos, esperando poder visualizar algo naquela escuridão e o encontrou. Uma luz laranja e rosada apareceu na sua frente. Atônito, estupefato e inquieto, ele estendeu as mãos para frente, procurando pelo corpo de Anne, mas ela não estava ali, desaparecera como uma névoa matinal. O que era aquilo? Onde estava? Logan sentiu os pelos em seu corpo eriçarem, como a temperatura do corpo começou a subir tanto que sobravam todas as roupas que tinha. De repente, um estranho sufocar tomou posse de sua garganta. Oprimido, levou as mãos à gravata e puxou para se livrar do nó. Quando conseguiu que seus pulmões tivessem um pouco de oxigênio, levantou-se lentamente, incapaz de desviar o olhar daquela luz na sua frente. Suas mãos adquiriram vida própria e se espalharam novamente, como se buscassem um ponto para se segurar.

Inexplicavelmente, apesar da escuridão, apesar de não distinguir nada ao redor, exceto aquela luz, seus dedos atingiram algo suave, delicado.

—O que quer de mim? -- Perguntou. -- Onde estou?

Ninguém respondeu. A única coisa que continuava ouvindo era a música que dizia para ele atravessar o fogo, para andar sobre ele, porque entre as chamas estaria à verdade. Respirou fundo, olhou para aquela luz inquieta e, quando pretendia seguir em frente, Anne chamou sua mãe e tudo desapareceu...

Logan piscou várias vezes, tentando acostumar seus olhos àquela

súbita mudança de luz. Ele havia voltado para a casa dos Moore, estava ao lado da jovem e ela o fizera voltar, com um simples sussurro, de onde havia estado. Muito lentamente, se ajoelhou novamente diante de Anne, estendeu a mão direita sobre seu rosto e o acariciou devagar.

—Quem é você Anne Moore? O que me aconteceu ao beijá

la? -- Perguntou com um leve murmúrio.

Enquanto seus dedos acariciavam aquele rosto com cuidado, percebeu uma ligeira mudança de cor vermelha onde quer que ele a tocasse. Era como se ele pudesse reacender a pele que tocava. O dom da vida, o dom da eternidade... sem tirar os dedos de sua bochecha lisa, Logan se inclinou em direção a ela para respirar o ar que expelia de sua boca. Aqueles lábios, que uma vez sussurraram uma palavra que o tirou daquela alucinação, novamente lhe pediam um beijo. Sem se separar de Anne, tomando cada respiração de seu ar, tentou assimilar o que estava acontecendo com ele. Havia beijado mais de cem mulheres desde que começara a masculinidade, tinha beijado apaixonado, suave, insuportável, ruim, prejudicial e até louco, mas nenhum como o que tivera com Anne. Apenas um toque, um toque leve e casto o transportara para um mundo sombrio e distante. Essa seria sua maldição? Ao tocar seus lábios já estaria predestinado a morrer? Aquela escuridão que tinha visto era a última coisa que seus pretendentes viram? Então, quando terminou de se fazer essa pergunta,

balançou a cabeça lentamente. Não, pelo menos um deles não tinha visto isso: o filho do conde. De acordo com John, eles nem se conheciam para que pudessem se beijar, apenas o Sr. Hendall teve tal privilégio. E de repente, um sentimento de posse tomou conta dele outra vez. Queria pegar Anne em seus braços novamente e deixar aquela casa com ela enredada debaixo de seu corpo.

—Maldita seja! -- Exclamou sentado em seus próprios calcanhares. Acariciou seus cabelos, oprimido por esses pensamentos, pela ansiedade de beijá-la, tirá-la de lá, afastá-la do mundo e ficar com ela... para sempre. -- O que fez comigo, cigana? —Perguntou baixinho. —Me enfeitiçou? —Continuou enquanto os dedos de sua mão se moviam lentamente pelo queixo e pelo pescoço, passando devagar pelo generoso decote. —Porque se assim for, me tem ajoelhado, prostrado aos seus pés.

Como continuava sem responder, sem acordar, Logan afastou os dedos daquele busto feminino e baixou lentamente para pegar sua mão. Estendeu os dedos, longos e finos, próprios de uma mulher tão magra quanto ela e prestou atenção a uma pequena mancha entre eles. Tinta. Ela havia sido manchada com tinta branca. Detalhe que não o surpreendeu porque John também contara sobre sua fama como retratista. Aproximou seus lábios para aquela área e, com um movimento suave, fez aquela mão negligente acariciá-lo. Aquele contato, aquele leve toque de uma mão

delicada em sua barba, causou uma alteração sem precedentes nele: sua masculinidade saiu de controle, seu corpo se alargou tanto que as roupas estavam muito apertadas e ele estava sem fôlego. Surpreendido ainda mais por essas reações, abaixou a mão lentamente, colocando-a no lugar em que estivera e, quando estava debruçado, quando deveria se afastar para não tentar a sorte duas vezes, ele a beijou. Embora desta vez não se contentasse com um toque suave. Seus lábios prenderam o lábio inferior de Anne, capturando o gosto de sua boca, a suavidade daquele lábio feminino. Fechou os olhos, para aproveitar por mais tempo aquele prazer simples e requintado, e foi quando a porta se abriu. Logan tentou se afastar para que a pessoa que acabara de aparecer não deduzisse o que havia acontecido ali. Mas tudo o que pôde fazer foi virar lentamente seu rosto para a jovem de cabelos ruivos e olhos azuis que, ao tentar explicar que só queria confirmar que estava respirando, se virou e começou a gritar desesperada. Irritado por não conseguir se controlar, caminhou até a porta. Precisava sair dali e tentar explicar o que havia acontecido. No entanto, naquele momento a Sra. Moore ordenava que uma criada fosse para onde ele estava. Se virou para o centro da sala, mantendo uma distância considerável de Anne, enquanto a donzela entrava.

—Milorde, com sua permissão... —ela disse, mostrando o pote de sais.

—Claro —respondeu, sem desviar o olhar da moça.

Rapidamente, a criada, a quem a Sra. Moore chamara de Shira, se ajoelhou ao lado dela, colocou o braço esquerdo sob a cabeça de Anne e a fez inalar esses sais para despertá-la.

—Shira... —a jovem murmurou quando abriu os olhos. —Oh, Shira! —Ela exclamou, descobrindo que, exceto por ela, não havia mais ninguém ao seu redor. Finalmente o pesadelo acabou. O homem não estava...

No entanto, quando Logan se aproximou para perguntar se estava bem, ela o olhou e desmaiou novamente.

—Acho que é melhor deixá-las sozinhas porque, como posso ver, a minha presença não causa nenhuma melhoria para a senhorita Moore --

Logan comentou, um tanto confuso.

Por que desmaiava ao vê-lo? Por que não podia ficar acordada? O

que acontecia com ela? Tinha ouvido alguma conversa sobre ele? Teriam dito que era um libertino, que andava com mulheres de reputação discutível? Ou, talvez, pensava que ele queria propor casamento a ela e, depois das mortes de seus pretendentes anteriores, não queria assumir mais uma morte?

«Maldição», essa foi a palavra que seu pai usou para confirmar seu desejo de tirá-la de Londres. Mas depois do que aconteceu, ele precisava descobrir muito mais sobre ela.

—Obrigado, milorde —disse a criada, tirando-o de seus

pensamentos.

Com solenidade, com o andar próprio de um Bennett, Logan seguiu para a saída com a firme ideia de esclarecer o que acontecera. No entanto, quando estava prestes a chegar à porta, a Sra. Moore apareceu. Seu rosto ainda mostrava confusão e um leve tom de vermelho persistia em suas bochechas, provocado, talvez, pelo que acontecera do lado de fora da sala.

—Milorde —ela não comentou nada, mas o viu.

—Ela ainda está inconsciente —explicou Logan.

Sophia se aproximou da filha, acariciou suas bochechas e apertou sua mão com força, a mesma que Logan havia beijado momentos antes.

—Seria melhor se nos retirássemos —ela pediu, olhando para ele com preocupação. —Posso atendê-lo no escritório do meu marido, se ainda quiser falar comigo.

—Sim, claro. Vim para resolver um assunto e não irei embora sem fazê-lo —respondeu Logan com firmeza.

—Então, se fizer a gentileza de me acompanhar —disse Sophia, andando na frente do visconde.

VIII


Silenciosamente, Logan deixou a sala atrás da esposa do médico e a seguiu até a sala ao lado. Antes de virar para a esquerda, para onde a anfitriã se encaminhava, olhou para Philip. Ele nem sequer notou sua presença porque não tirava os olhos do andar de cima. O observava como se, a qualquer momento, a própria rainha fosse aparecer. O que teria acontecido e por que ele não conseguia tirar os olhos daquela parte da casa? Ele parecia até mais alto do que já era, com seu corpo estando tão rígido! Se não se acalmasse, as costuras de seu terno cor de vinho estourariam. Logan ficou ainda mais desconfortável quando observou o rosto de seu amigo. Ele tinha um desespero semelhante ao que expressava depois de navegar por três meses em alto mar sem uma amante para aquecer sua cama. Quem ele conheceu para deixá-lo tão desnorteado? Estaria com medo ou talvez ansioso? O que quer que fosse, uma vez que os dois se afastassem da residência, falariam sobre isso, porque, se ele estava confuso depois de beijar Anne, Philip revelava um caos ainda maior na dureza de sua expressão.

Com uma caminhada serena, ele avançou pelo escritório do Sr.

Moore. Uma grande estante cheia de tomos negros estava atrás de uma mesa de mogno escuro. Sobre ela encontrou uma centena de papéis, dando-lhe a entender que o bom doutor passava várias horas naquele lugar e que a

desordem era um dos seus grandes defeitos, além de achar que Anne estava amaldiçoada.

—Peço desculpas pelo comportamento que minhas filhas demonstraram, milorde —começou a dizer Sophia, enquanto caminhava em volta da mesa. —Meu marido geralmente não recebe visitantes em nossa casa. Todos aqueles que desejam falar com ele aparecem na clínica que fica localizado na Baker Street —esclareceu. —Aceita um café, talvez chá?

—Não, obrigado -- Logan respondeu enquanto esperava que a anfitriã lhe oferecesse um lugar para sentar. —Peço-lhe que me perdoe por ser a causa de tal situação, mas a razão pela qual estou em sua casa é da maior importância e não tem nada a ver com a ocupação de seu marido.

—Estou ouvindo, milorde —disse Sophia, apontando para uma das duas cadeiras que Randall tinha diante de sua mesa.

—Primeiro de tudo —Logan começou tirando algo do bolso esquerdo. —Gostaria de lhe oferecer meu cartão de visita. Não fui capaz de entregá-lo a sua criada porque ela ficou nervosa e saiu correndo, nem tampouco pude me apresentar adequadamente quando entrei na sala.

—Meu marido sempre me advertiu que minhas filhas precisam fazer o desjejum antes que se possa manter uma conversar com elas --

explicou, aceitando o cartão e observando o visconde abrir os botões de seu paletó verde-escuro antes de se sentar. ?Mas hoje pulei essa regra e, como

pôde ver, tiveram as consequências que meu amado marido me advertira --

acrescentou como meio de desculpa para o desmaio de Anne. Não era conveniente explicar que a sua presença a havia perturbado de um modo sobre humano e que estava ansiosa em terminar essa conversa para descobrir a verdadeira razão pela qual sua filha desmaiou quando o viu.

Depois de falar, Sophia leu o nome que havia escrito no cartão de visitas e se esqueceu de respirar. Esse homem era o irmão do marquês de Riderland e da melhor amiga de Elizabeth? Seu marido não havia dito que a pessoa a quem ele pedia o favor era o visconde de Devon? Ele não percebeu que era um parente direto do marquês e de Natalie Lawford? «É tão inteligente para as suas coisas e tão desleixado para outras... " ela pensou.

Sophia respirou fundo, fazendo com que seu peito se sentisse pressionado pelo espartilho, devolveu o cartão de visitas e adotou a postura que deveria oferecer a esposa de Randall Moore, um excelente médico, mas um distraído sem esperança.

—Sei quem é, milorde —ela explicou sem rodeios. —Meu marido me contou sobre a visita que ele fez há algumas noites atrás e também me informou que se recusou a aceitar sua proposta.

—Esse foi o motivo para me apresentar em sua casa neste momento tão inapropriado —disse ele, pegando o envelope do bolso direito. —Não irei aceitar a sua oferta —acrescentou ele, depositando-o sobre

a mesa.

—Não parece quantidade suficiente? —Sophia insistiu, olhando dentro do envelope, procurando a foto de Anne. Randall não dissera que lhe dera um retrato para que ele soubesse quem era? Então... onde estava? Teria sido perdido?

—Não é sobre isso, senhora. A quantia é muito adequada, no entanto, rejeito essa proposta por razões morais —ele respondeu seriamente.

Logan ficou perplexo ao ver como a esposa do médico olhou para o envelope. Duvidava dele? Desconfiava de sua honra apesar de se apresentar em sua casa? Porque não faltava nada no envelope, a não ser a foto que, depois de pegá-la do chão, estava guardada no bolso esquerdo do colete que ele usava.

—Motivos morais? —Ela disse, deixando o envelope sobre a mesa. —O que quer dizer, milorde?

—Seu marido apareceu em minha residência me pedindo para levar sua primogênita entre minha tripulação. Quando me recusei a fazê-lo, ele disse algo sobre uma maldição —disse Logan com um pouco mais de calma, observando que a Sra. Moore não notara que a foto da filha estava faltando. —Pelo que entendi, acreditam que Anne é amaldiçoada e que é a causa da morte de seus dois noivos. Estou certo?

—Não acredita em maldições, milorde? —Disse Sophia direta,

suportando a satisfação de ouvir como o visconde se referia à sua filha pelo seu primeiro nome.

—Não quero dizer que elas não existam, mas no caso de sua filha não existe —afirmou com integridade.

—Como pode ter tanta certeza? —Sophia perguntou, apertando as mãos e mantendo as costas completamente rígidas.

—Depois da visita do seu marido, pedi a um dos meus homens mais leais que falasse com o Dr. Flatman sobre as verdadeiras causas das duas mortes. O primeiro, embora fosse um cavaleiro experiente, bebeu mais de duas garrafas de Bourbon antes de montar um garanhão. Deduzindo que seu estado de embriaguez não permitisse que ele controlasse o feroz animal em que galopava.

—Continue —disse Sophia, surpresa e confusa ao ouvir que ele se dera ao trabalho de investigar os pretendentes de Anne.

Como deveria se sentir? O mais sensato era com raiva, mas não estava. Ela estava muito relaxada, demasiado para estar na frente de um aristocrata tão famoso pelo berço em que nasceu. No entanto, a forma como a olhava, o modo como falava com ela e até mesmo a expressão em seu rosto não eram comuns a um homem de sua classe social. O visconde tinha algo que era muito familiar para ela, mas... o que era?

—O segundo pretendente de sua filha, não era um homem

pleno. O conde o manteve preso em sua casa desde que nasceu porque, como descobri, ele sofria episódios de delírios e depressões.

—Delírios e depressões? Interessante... —Sophia murmurou, movendo o pé esquerdo rapidamente sob a mesa. Sinal inequívoco de que aquele homem lhe transmitia tranquilidade. Até agora, toda vez que ela tinha que falar com um aristocrata, se mantinha rígida como uma tábua e controlava cada movimento, no entanto, com ele tudo parecia diferente. Elizabeth não havia dito em alguma ocasião que os Bennetts eram uma família peculiar? Bem, talvez ela estivesse certa...

—Então, temo que não suportou a pressão que o conde exercia sobre ele —assegurou com firmeza.

—Então, de acordo com seu julgamento, não há maldição, estou certa? —Ela falou, apertando os olhos.

—De fato, não existe. E parece injusto que faça sua filha acreditar nesse tipo de tolice —disse ele com relutância.

—Suponho que tenha perguntado sobre esses terríveis acontecimentos porque queria confirmar que a maldição não era real e que sua exposição seria irrefutável. —Logan afirmou com um aceno suave. --

Sendo esse o caso, por que se recusa a levá-la em seu navio? A que se referiu quando disse razões morais, milorde?

—Não é apropriado para uma mulher viajar em um barco cheio

de homens —disse Logan.

—Conheço muitas mulheres que viajaram de barco para a Europa e nada lhes aconteceu porque o capitão observou pessoalmente a sua segurança. Não é um desses, milorde? Se recusaria a protegê-la? —Disse mordaz.

—A trataria com o respeito e a proteção que eu ofereceria à minha própria irmã, a senhora Moore —disse solenemente ao sentir como sua virilidade estava sendo questionada.

—E se fosse sua irmã, como disse, e não pudesse levá-la, a quem confiaria sua segurança? —Ela reiterou com calma.

—Insiste em afastá-la de Londres? —Explodiu, levantando-se e colocando as palmas das mãos naqueles papéis desordenados.

—Ela quer ir embora, milorde —disse, olhando para ele sem piscar.

Toda Londres conhecia a natureza dos Bennetts: apaixonada, corajosa, orgulhosa, teimosa, trabalhadora, inteligente, respeitosa, sincera, confiável e.... libertina. Mas o que Sophia nunca pensou foi que ela pudesse acrescentar àquela interminável lista de características a falta de respeito. Por que ele perdia o controle tão facilmente? Por que o incomodava tanto que Anne partisse para Paris?

—Por que quer fazer isso? Não é capaz de encontrar um lugar

nesta maldita cidade? —Perguntou fora de si.

—Minha filha, visconde —começou, sua voz terrivelmente suave quando se levantou —nasceu com um dom, o da pintura. Graças a ele, foi capaz de se recuperar da depressão que sofreu após a morte de seu segundo pretendente, mas não a salvará do próximo. —Ela andou até se colocar ao seu lado esquerdo e olhou-o com tanta força que poderia derrubá-lo. —E peço sinceramente que não levante a voz em minha própria casa. Não sou uma mulher comum, milorde. Lembre-se que minha família me ensinou a não me basear nos absurdos protocolos sociais nos quais nasceu. Se não se acalmar, deixará minha casa e não voltará até que meu marido possa atendê-lo, entendeu? —Disse com o mesmo tom que minutos antes repreendera suas filhas.

—Peço mil desculpas —disse Logan, abaixando a cabeça. —Fui impulsivo. —Como havia perdido a compostura tão rapidamente? Por que motivo tratou a Sra. Moore dessa maneira? «Raiva», ele pensou. Sim, a raiva o cegara de tal maneira que não conseguiu raciocinar. Apenas imaginar que Anne iria se afastar de Londres em outro navio, que ela pudesse estar ao lado de outro homem ou que se ela se sentisse em perigo em algum momento e ele não estivesse lá para salvá-la, o irritou. ?Como sabe, venho de uma família que precisa estar unida para ter uma vida plena e tenho dificuldade em acreditar que outras pessoas não mantenham o mesmo apego —disse

calmamente.

—Desculpas aceitas milorde e nossa família é muito parecida com a sua. Tenho que explicar que meu marido agiu com desespero e agonia a pedido de Anne. Nós não queremos que ela saia, pelo contrário, queremos que fique aqui, mas, como eu disse antes, se ela sofrer outra depressão, nada e ninguém poderia salvá-la.

—Porque diz isso? Ela está doente? —Logan perguntou depois de respirar fundo e sentar-se novamente.

—Não agora, mas estará em breve -- disse Sophia com um suspiro. Caminhou até onde o visconde estava e sentou ao seu lado. —Se investigou essas mortes, imagino que também descobriu ao que minha filha se dedica, certo?

—Sim —respondeu sem hesitar.

—E o que acha disso?

—Não entendi sua pergunta —respondeu, virando-se para ela.

-- O que disseram sobre o seu trabalho? —Sophia esclareceu.

—Que tem um grande talento, mas até agora só foi usado por mulheres, embora não tenha havido uma única queixa sobre ela —confessou.

—Sim, de fato —disse se movendo na cadeira até que estivesse olhando para as prateleiras em frente a eles. ?Mas toda essa fama mudaria se alguém descobrisse quem eu realmente sou.

—Se refere a sua origem cigana?

—Exato. Por enquanto, minhas filhas foram respeitadas porque seu pai se casou com uma burguesa, mas... o que aconteceria se tudo viesse à tona? Tenha em mente, milorde, que a vida para nós não é tão fácil quanto é para o senhor. A sua sociedade —disse corajosamente —as rejeitaria e nenhuma delas teria um futuro adequado.

—Acho que é um assunto bem ridículo. Se tem um dom, deve ser elogiado por isso, independentemente de sua procedência ou origem —disse Logan se levantando. Colocou as mãos nas costas, apenas em torno da cintura e começou a andar pelo escritório. —Mas está certa em argumentar que essa questão não beneficiaria suas filhas. Erroneamente ainda se repara no berço em que nasce.

—Isso mesmo —disse Sophia.

—No entanto, ainda não entendo o que tem a ver a maldição que seu marido me contou sobre todo esse assunto —disse ele, virando-se para ela.

—É muito fácil de entender, milorde. —Falou olhando em seus olhos, confirmando não apenas que o jovem havia herdado a cor azul do pai, mas também encontrou certa inquietude em seu rosto. Se preocupa com o assunto? Porque motivo? —Se minha filha Anne partir, não só ela conseguirá se tornar a mulher que deseja ser, mas os cavalheiros desta cidade esquecerão

a miséria que sofremos com seus noivos e cortejarão minhas outras filhas.

Com o tempo, todas encontrarão um marido para protegê-las e ninguém se perguntará se a primogênita realmente matou seus pretendentes.

—Mas ela não os matou! —Ele exclamou um pouco irritado. —A morte chegou a eles por causa de seus maus atos!

—Qualquer pessoa sensata entenderia dessa maneira, mas nem todo mundo esconde uma mente erudita dentro de uma linda cabeça --

argumentou Sophia.

—Seu marido não tentou esclarecer as razões pelas quais eles morreram? —Ele perguntou, diminuindo seus passos abruptamente e virando para a Sra. Moore. —Ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico com sua fama.

—De fato, o senhor mesmo disse; ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico, mas de um pai —esclareceu.

—Entendo... —disse Logan novamente caminhando pensativo.

—Por mais que o tempo passe, o estigma social que Anne possui não poderá ser eliminado a menos que ela saia daqui.

—Não há outra maneira de fazê-lo desaparecer? —Bennett disse.

—Não. Como disse, até agora, minha filha só retratou mulheres porque os homens se recusam a ficar com ela. Não sei se a viu na festa da sua irmã, milorde. Se assim for, tornou-se uma testemunha desse comportamento

indescritível.

—Talvez com o passar dos anos tudo seja esquecido e ela consiga a reputação que merece —sugeriu Logan.

—Talvez, mas... o que aconteceria se, durante esse tempo, minha origem fosse descoberta? Tenho mais quatro filhas e duas delas já são maiores de idade para encontrar um marido. Se houvesse um cavalheiro na cidade que estivesse interessado em alguma delas, tenho certeza de que se perguntaria o motivo pelo qual ainda não encontraram um marido para cuidar delas. Que futuro elas terão caso se revele que sua mãe é filha de ciganos e que os pretendentes da primogênita morreram? Pensarão que foram enfeitiçados, amaldiçoados por meus ancestrais.

—Não acredito que sejam razões suficientes para um homem eliminar seus sentimentos em relação a uma de suas filhas... —disse calmamente. —Quando um homem se apaixona, ele luta contra o mundo para conseguir a mulher que ama.

—Palavras preciosas para um homem que ainda não se comprometeu —Sophia apontou maliciosamente. —Mas acredite em mim quando digo que minhas filhas têm uma marca oculta nas costas e que nenhuma teria um futuro digno se descobrissem que sua mãe é uma cigana miserável.

—Ninguém deve julgar o sangue dos outros —Logan murmurou.

—Não deveriam, mas fazem. Não pode nem imaginar o que sofrerão porque não nascera com sangue azul. Os de sua classe —apontou sarcasticamente -- não são capazes de enxergar além da linhagem das pessoas e, embora meu marido tenha uma fortuna ainda maior que a de alguns aristocratas, nunca o tratarão com a dignidade que merece. —Ela apontou sem reduzir sua raiva.

Logan franziu a testa e se rendeu ao debate porque a Sra. Moore estava certa. Se descobrissem quem realmente era, a sociedade os separaria como se tivessem a peste. Ele mesmo participou da rejeição de outros e de si mesmo. Quantas vezes negou ser a pessoa que realmente era? Talvez desde que soube a verdade sobre o seu nascimento. Mas em sua história o sangue negado era o do Marquês, por violar sua mãe até que ela ficasse grávida. No entanto, graças a Roger, havia seguido em frente e também havia esquecido que, no fundo, não era nada mais que um simples bastardo.

—Quem sabe sua origem? —Perguntou depois de ponderar sobre a parte de sua vida que o machucava.

—Acha mesmo que poderíamos divulgar um segredo de tal índole? Não me escutou atentamente quando expliquei que minhas filhas não teriam um futuro decente se alguém descobrisse que sua mãe é uma simples romani? —Ela disse com tanta raiva que suas bochechas ficaram vermelhas novamente.

—Posso assegurar que muitos daqueles que afirmam ser cavalheiros com sangue azul não são —disse Logan calmamente. —Mas respeito sua preocupação e a de seu marido, mesmo que não entenda isso --

disse ele caminhando em direção a ela.

Sophia bufou de resignação, o mesmo que Mary fazia quando retornava de uma reunião médica na qual um nobre tentava discutir uma nova descoberta científica.

—Por essa razão, gostaria de propor um acordo —começou a dizer depois de concluir que, se havia alcançado a felicidade graças ao apoio de Roger, a jovem teria a sua chance de se livrar desse resquício social.

—Um acordo? —Sophia apontou intrigada. —Qual e por que quer oferecê-lo para mim?

—Entendo sua posição como mãe de cinco filhas e até começo a entender o desespero que seu marido me mostrou algumas noites atrás, mas continuo insistindo em que não deveriam desistir de sua primogênita para que as outras irmãs possam alcançar o futuro que desejam para elas.

—Não queremos nos separar de uma de nossas filhas, milorde --

repetiu Sophia. —Mas temos a certeza de que é a melhor opção para todos.

—Minha proposta é a seguinte: se dentro de um mês, a data em que pretendo partir novamente, não conseguir que sua filha mais velha seja aceita na sociedade e alcance a reputação que merece, irei pessoalmente levá

la para Paris.

—O que irá receber em troca, milorde? —Disse sem aceitar esse compromisso ainda.

—Faça seu marido entender que não há nenhuma maldição e que o sangue que corre em suas veias não é um impedimento para suas filhas serem felizes —disse se aproximando dela e estendendo a mão direita.

—Terá muitos problemas... —ela disse duvidosamente. —Talvez não devesse se envolver nessa questão porquê...

—Haverá acordo, Sra. Moore? -- Logan insistiu, movendo levemente a mão que ainda estava estendida para ela.

—Um mês? —Repetiu, se levantando.

—Sim.

—E mudará a vida da minha filha? Isso a fará feliz?

—Prometo, Sra. Moore -- disse ele sem vacilar.

—Aceito sua proposta, milorde. Só espero que não saia prejudicado —disse finalmente.

—Acha que, diante da sociedade que nomeou, as loucuras de um futuro marquês serão levadas em conta?

Com essa pergunta, Sophia sorriu amplamente, colocou-se na frente do visconde e aceitou a mão que ele oferecia. No entanto, quando as palmas das mãos tocaram para selar esse acordo, a Sra. Moore sentiu uma

inexplicável descarga elétrica percorrer seu corpo. Por que notou que esse homem era especial? Por que estava tão confortável? O que estava escondendo? Por que Morgana o colocou na vida de sua filha? Um leve arrepio percorreu sua figura esbelta, trazendo uma satisfação e bem-estar que poucas pessoas forneceram ao toca-la. Quem era esse homem? Por que era tão familiar?

—Sra. Moore? —Perguntou Logan ao ver como seu rosto empalidecia.

—Eu... eu sinto muito...—Sophia se desculpou, recuando o suficiente para respirar. —Entenda que tudo isso me desconcertou. Talvez meu marido esteja certo em insistir que devemos tomar café antes de ter uma conversa exaustiva e racional.

—Bem, deveria ouvir o conselho de um dos melhores médicos da cidade —disse Logan, feliz por ter um acordo com a mãe de Anne.

—Eu vou —Sophia respondeu com um longo suspiro.

—Não quero tomar mais do seu tempo, Sra. Moore. —Ele apontou para ela, tomando a mão com a qual havia selado a aliança para dar um beijo casto. —Foi um prazer conhecê-la e descobrir que o Sr. Moore escolheu uma esposa digna e respeitável.

—O prazer é meu, milorde —respondeu Sophia, desconcertada com esse estranho bem-estar.

—Prometo que terá notícias minhas em breve -- argumentou Logan, dando um passo à direita para que a Sra. Moore se movesse em direção à saída.

—Estaremos esperando, milorde. Mas lembre-se de que, se em algum momento hesitar em seu acordo, não o levarei em conta.

—Não hesitarei senhora, meu juramento é sagrado —disse solenemente.

Em silêncio, acompanhou-o até a entrada onde seu acompanhante o esperava.

—Sr. Giesler —disse estendendo a mão para ele —foi um prazer conhecê-lo. Espero que da próxima vez que nos encontremos, minhas filhas saibam como se comportar.

—Certamente o farão —disse divertido.

—Espero que sim... —Sophia suspirou olhando para o segundo andar.

—Vamos? —Logan perguntou a Philip.

—Claro —disse depois de suspirar e desviar o olhar do andar de cima. Não havia descido. Desde que aquela Medusa raivosa tinha desaparecido, depois de jogar o último tubo de metal, não tinha decidido descer e isso, embora não devesse alterá-lo, o fez e muito. —Tenha um bom dia, Sra. Moore —disse enquanto fazia um leve gesto com a cabeça.

—Obrigado pela visita, Sr. Giesler —respondeu, dando um passo em direção a eles.

—Madame... —Logan disse beijando sua mão novamente.

—Milorde... —respondeu com uma ligeira genuflexão.

—Nós veremos em breve.

—Quando puder —ela respondeu antes de os dois cavalheiros se virarem para a porta, abrirem e saírem.

Sophia esperou que os dois se afastassem de sua propriedade, fechou a porta lentamente, recostou-se nela e suspirou. O que planejava o visconde? Por que assumia tantos problemas? Não entendia o motivo que o levou a se preocupar com sua filha se eles não se conheciam e só haviam estado juntos...

—Madeleine! —Gritou, cortando a respiração e andando rapidamente em direção à cozinha.


***


—Vai me dizer o que aconteceu enquanto permaneci retido no salão —disse Logan depois de colocar o chapéu e dar o primeiro passo que os levou para os arredores da residência. —A Sra. Moore enfatizou que suas filhas não tomaram café da manhã e que, por essa razão, elas se comportaram

como pequenas feras.

—Pequenas

feras?

Bela

maneira

de

mascarar

esses

comportamentos selvagens! Uma dessas donzelas apontou com um rifle para o meu peito, outra foi gritando de um lugar para outro como se o próprio diabo a tivesse possuído e outra...

—E outra? —Logan perguntou enquanto estendia o manto sobre os ombros.

—Tudo o que posso pedir é que, da próxima vez que quiser voltar, chame o índio —murmurou.

—John? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas. —Isso não prejudicará seu grande orgulho?

—O que destruiria meu orgulho é que essa terceira filha me lançasse de novo mais objetos demoníacos como este. —Philip pegou o tubo que tinha no bolso e mostrou para ele.

—O que é isso? Bala?

—Não acho que são balas porque essa bruxa os usava enrolados em seu cabelo —disse guardando-o novamente.

—E? Porque os pegou? —Perguntou Logan curioso. —Não acha que essa mulher vai descobrir que levou um? Talvez o chamem de ladrão...

—ele disse divertido.

—É uma prova! —Choramingou.

—Uma prova? Para que? —Insistiu Bennett.

—Não se lembra de que eu era um agente? Se Borsohn me ensinou alguma coisa, foi estudar a evidência de um caso e está —ele colocou sua grande mão direita no bolso da calça e apertou-o com força -- é a única coisa que precisará se, nos próximos dias, eu me transformar em pedra.

E depois dessa abordagem tão surreal, Logan soltou uma gargalhada.

IX


Felizmente para Sophia, Madeleine ainda estava entrincheirada na cozinha. Eugine fez o melhor que pôde para que tomasse um chá, mas se recusara completamente a beber um misero gole. Devia ter ficado tão atordoada com a algazarra que foi montada na casa que nem uma gota entrava em seu estômago. Isso costumava acontecer toda vez que ela sofria um episódio de terror. Até se recuperar, era incapaz de provar algo. Sophia a observou da porta e refletiu novamente sobre a conversa que teria com ela. Se não abordasse o assunto com cuidado, deixaria de comer e toda a família indagaria o motivo dessa atitude. Sua pequena Madeleine era uma criança muito frágil e retraída. Sua aparência física, apesar de muito bonita, lhe acarretava certa inferioridade em relação às irmãs e isso agravava seu comportamento reservado. Passou muito tempo observando-as e enumerando as diferenças entre elas. Sempre quis ter cabelos escuros, como Anne ou Mary, e olhos verdes, como os de Josephine. No entanto, aquela juba cor de fogo, aquelas sardas no rosto e as pupilas azuis davam-lhe uma aparência mais bonita do que imaginava. Se, em vez de ser tão tímida e assustada, ela fosse tão descarada quanto Elizabeth, teria cem pretendentes na porta de sua casa esperando serem atendidos por Randall. Mas a vida não era justa para nenhuma de suas filhas e reafirmara sua crença depois do que aconteceu

momentos antes: Anne desmaiou quando viu o visconde, assunto do qual falariam assim que recuperasse a consciência, Mary jogou aqueles rolos metálicos, que Shira a forçava usar, o cavalheiro que permaneceu atordoado na entrada, Josephine apontava para ele com a arma e Madeleine gritava como uma menina selvagem. O que mais teria para ver? Que novo espetáculo suas meninas ofereceriam se voltassem a ter uma visita? A melhor maneira de manter uma ordem adequada em sua casa era dizer a Shira que não admitiriam mais presenças masculinas, desta forma, salvaguardaria o verdadeiro comportamento de suas filhas queridas e não revelariam que tinham um caráter bastante peculiar.

Depois de ter certeza de que a melhor maneira de proteger a família era conversar com Madeleine para tranquilizá-la enquanto pensava em como devia abordar o problema com seu marido, deu vários passos para a cozinha, olhou para Eugine, que estava ao lado de sua filha, e disse-lhe:

—Deixe-nos a sós, Eugine. Vá para a sala de estar com Shira e confirme se Anne despertou do desmaio. Assim que Madeleine tomar o chá, irei verificar como ela está.

—Sim, senhora —respondeu antes de obedecer a sua ordem.

Sophia se colocou na frente de sua quinta filha e ficou olhando sem piscar. A coitada ainda tremia de medo e seu cabelo, que costumava prender num simples rabo de cavalo, estava revolto, como se tivesse sido

acariciado com desespero. Ela pegou a xícara que ainda emitia fumaça, aproximou-se e disse:

—Beba um pouco, Madeleine. Isso irá acalmá-la.

—Mãe... eu juro que eu... eu não queria gritar assim diante de estranhos ?balbuciou pensando que iria repreendê-la.

Lágrimas apareceram em seus olhos e percorreram seu rosto alvo.

Sophia estendeu os braços e a jovem, percebendo que não tinha ido para repreendê-la, mas para acalmá-la, se levantou, deu a volta na mesa e pulou em direção à mãe.

—Calma, pequena. Tudo bem... eles já se foram —falou acariciando o cabelo vermelho emaranhado. ?Eles não queriam nos machucar, só queriam falar com o seu pai, mas como ele não se encontrava, o visconde resolveu falar comigo porque o assunto que o trouxe até aqui era bastante urgente —explicou em voz baixa e relaxada.

—Mary... Mary... —ela riu. ?Mary jogou alguma coisa no cavalheiro que estava na porta. Josephine estava apontando a arma para ele, pensei que ela dispararia, e a senhora... e então Anne e aquele homem... a beijou —ela revelou finalmente.

—O que acabou de me dizer? —Perguntou segurando-a gentilmente pelos ombros e empurrando-a alguns passos longe dela.

—Esse homem a beijou e.... e eu entrei e.... descobri ... E, quando

ele olhou para mim.... Ah, é ele! —Ela exclamou depois de esconder o rosto no peito de sua mãe. —É ele! —Ela repetiu. -- É o homem que vi no meu sonho, aquele que nos libertará da maldição! —Ela exclamou.

—Tem certeza? —Ela insistiu, porque não podia imaginar que o visconde, o filho de um marquês e com uma linhagem tão azul quanto a cor de um dos vestidos que ela guardava em seus armários, pudesse ajudá-los a se livrar daquele feitiço cigano. Sua avó não lhe disse que o sangue seria puro novamente? Bem, sendo assim, a pequena Madeleine estava confusa.

—Sim, mãe —respondeu afastando o rosto do seu seio. —Não confia em mim? Acha que estou mentindo?

—Não, querida. Sei que não faz isso e confio muito em você --

declarou acariciando suas bochechas para afastar suas lágrimas. —Mas não seria prudente falar sobre esse assunto sem corroborar certos aspectos. Tudo o que sabemos é que o visconde é o irmão do Marquês de Riderland e que veio até aqui para se recusar a levar Anne em seu navio.

—Mas... na minha visão... eu... além disso, o vi beijando-a.... --

Ela gaguejou.

—Ele realmente a beijou? Viu exatamente como seus lábios se uniram aos de Anne? —Ela insistiu.

—Não, porque ele levantou o rosto quando eu apareci —ela explicou.

—Então, não podemos afirmar algo que só suspeitamos, não acha? —Madeleine arregalou os olhos e apertou os lábios contra a boca para parar de falar. —O melhor para todas é mantermos silencio, querida. Não quero que suas irmãs fiquem loucas com a ideia dessa liberdade e seu pai...

—Ela suspirou. —Sabe como é. Seria capaz de procurar por um alfinete no palheiro.

—Então, como quer que eu aja? —Ela insistiu, se afastando de Sophia e voltando a sua cadeira. —Quer que eu minta? Que apague da minha memória o que eu vi?

—Realmente a beijou? —Sophia repetiu, em pé na frente de sua filha.

—Eu juro que foi isso que vi —disse ela.

—Madeleine lembra que a maldição só vai desaparecer com um homem que tem sangue cigano e esse lorde só tem...

—Lembre-se que eu disse que ele manteve essa parte de sua vida escondida e só revelaria quando visse sua relação com Anne em perigo --

disse ela com a mesma firmeza que Mary ao falar sobre as causas da febre.

Sophia colocou as palmas das mãos na mesa e observou a filha sem piscar. Em seu rosto não havia dúvida alguma, e mais, só mostrava segurança, uma que não tivera até agora. Mas... e se estivesse errada? E se estivesse confusa? Era verdade que ela mesma sentira uma ligação estranha

com o visconde, mas ainda não sabia como nomear. O que devia fazer? Um mês. O visconde lhe pedira um mês para... fazê-la feliz e jurara por sua honra. Poderia Madeleine suportar um segredo durante um mês?

—Tem certeza da sua visão, certo? —Insistiu.

—Sim —afirmou novamente.

—Bem, sendo assim, vou te pedir um favor.

—Qual? —Perguntou, erguendo a sobrancelha direita.

—Vamos manter tudo isso em segredo até que a própria Anne descubra que o visconde é o homem que Morgana escolheu para ela —disse Sophia.

—Não quer que minha irmã saiba que ele será seu marido? O que nos libertará da maldição? —Perguntou desesperada. —Ela ficaria muito feliz em saber, então pararia de pensar em partir e se prepararia para conquistar esse homem.

—Do que gosta mais, Madeleine, que lhe digam o que está dentro de um presente antes de abri-lo ou descobrir por si mesma o que se esconde dentro?

—Descobrir por mim mesma, o que tem dentro —ela respondeu rapidamente.

E nisso sua mãe estava certa. Toda vez que seu pai lhe dava alguma coisa, Josephine se aproximava e dizia o que era antes de poder

desembrulhá-lo. Por essa razão, no último Natal, antes que alguém revelasse o que escondia seu presente, pegou-o e correu para o seu quarto.

—Bem, esta situação é muito parecida para a sua irmã. Ela não deve saber que este homem será seu marido, porque então não será uma surpresa para ela —disse com determinação.

—E se uma das minhas irmãs me perguntar por que gritei quando o vi? Eu sei que Josephine e Mary me viram entrar na sala e logo correr para cá —ela esclareceu depois de suspirar.

—Bem, dirá que ficou com medo quando viu dois estranhos em casa —disse se aproximando de Madeleine novamente para abraçá-la com força. —De acordo? —Insistiu.

—Se acha que Anne conseguirá ser feliz, farei —comentou, não sabendo muito bem se sua mãe estava agindo corretamente.

—Obrigada, querida —disse Sophia antes de beijá-la na cabeça. ?Agora, tome aquele chá antes que fique frio e vamos ver se suas irmãs estão mais calmas.

E no exato momento em que Madeleine se separou de sua mãe para tomar o chá, a porta da cozinha abriu com um estrondo, causando outro grande susto.

—O que aconteceu mãe? —Elizabeth perguntou nervosa. --

Josephine me disse que Madeleine estava gritando e que Mary estava em

perigo porque um cavalheiro não parava de olhar para ela de camisola.

—Plantou suas sementes? Colheu mais flores? Deveria encher os vasos na entrada porque as rosas estão um pouco murchas —Sophia disse tentando não responder às perguntas no caso de Madeleine ainda não ser capaz de manter a boca fechada.

—Peço-lhe que não mude de assunto. Quem veio? Quem eram esses homens? Que motivo eles alegaram para se apresentar a essa hora? Por que não me avisaram? —Ela disse, irritada, imaginando que era algum pretendente perguntando por ela e sua mãe recusou a sua presença.

—O senhor Giesler e o visconde de Devon foram os cavalheiros que nos visitaram —Sophia finalmente respondeu quando viu Madeleine pegar a xícara com as duas mãos e olhar dentro dela.

—Logan? —Ela disse, erguendo as sobrancelhas.

—Logan? —Retrucou a mãe, franzindo a testa ao ouvir como a terceira de suas filhas falava com tamanha familiaridade do visconde.

—Me desculpe mãe, queria dizer o visconde. O que sua Excelência queria? —Se corrigiu rapidamente. —Queria me informar que Natalie voltou da viagem que tinha planejado?

—Não —sua mãe negou enfaticamente. —A intenção do visconde era deixar claro que não levaria Anne em sua próxima viagem.

—O papai pediu que ele a levasse para Paris? Esse era o homem

com quem ele falaria? —Ela gritou de olhos arregalados, assombrada com a loucura que seu pai fizera.

—De fato, há algum problema nisso, Elizabeth? —Sua mãe exigia saber depois de ver a filha tão perplexa.

—Mãe, todo mundo sabe que o visconde não pode viajar com mulheres em seu navio.

—E, por que não pode viajar com mulheres? —Sophia insistiu.

—Porque é o maior libertino de Londres desde que o atual Marquês de Riderland e seus amigos decidiram se casar. Nenhum pai sensato ofereceria a proteção de sua filha nem a ele ou a seu primeiro a bordo, o Sr.

Giesler —disse Elizabeth.

Então Madeleine soltou um grito e, quando as duas olharam para ela para descobrir o que estava acontecendo, ela disse:

—Queimei meus lábios com chá.


***


Não queria abrir os olhos. Embora escutasse as vozes de Shira e Eugine, não queria abri-los para o caso de encontrá-lo novamente. Se sentia tão idiota, tão infantil, que a vergonha não permitia que movesse um só dedo das mãos. O que o visconde teria pensado ao observar como desmaiara

quando o viu entrar? Que opinião concebeu sobre ela? Só de pensar nisso, sentia como suas bochechas queimavam e seu corpo tremia. Foi o pior momento de sua vida e, infelizmente, tivera alguns depois da morte de seus noivos.

Sem prestar atenção à conversa que as duas servas mantinham sobre o homem que foi agredido em frente à entrada da casa por suas irmãs, Anne só foi capaz de lembrar o momento em que seus olhos estavam fixos nele e na maneira como ele a observava. Ele parecia satisfeito em vê-la e tão surpreso quanto ela. Mas isso era real ou tinha sonhado? Não tinha mais certeza de nada...

Respirou fundo para se acalmar. Precisava ganhar algum controle sobre si mesma novamente e colocar seus sonhos equivocados fora de sua cabeça. Embora fosse incapaz de fazê-lo. Como poderia apagar de sua mente essa aparência magnífica? Ele a deixou tão impressionada que perdeu suas forças. Sem mencionar que, quando ele entrou pela porta, quando deu aquele passo para a sala de estar, sua mente, sua mente perversa e odiosa, o imaginou naquele prado, nu, beijando-a e tocando-a por toda parte. Como se deixara levar pela luxúria tão facilmente? Por acaso perdera seu raciocínio? «Morgana - pensou - por que o conduziu para mim? Por que me faz sofrer? Não tive o suficiente? Deveria morrer para aplacar este sofrimento? "

—Senhorita, está se sentindo melhor? —Shira perguntou.

Diante da pergunta e do fato de que ela se movera inquieta, lembrando-se dele ao seu lado daquele jeito tão lascivo, Anne abriu os olhos, abriu as mãos e se deixou ajudar.

—Está bem? Precisa de mim para lhe trazer um chá? —Eugine interrompeu.

—Não, obrigada. Estou muito melhor. Sabe onde minha mãe está? —Ela perguntou enquanto tocava o cabelo que havia caído do coque.

De repente, aquela mão direita começou a queimar. Assustada, olhou para ela e sentiu uma estranha vermelhidão nela. Mas quando a levou aos olhos para confirmar a formação daquele círculo vermelho, seus lábios também arderam.

O que acontecia? Por que sentia que sua boca e aquela mão não pertenciam mais a ela? O que acontecera durante o seu desmaio?

—Já acordou? —Ela ouviu a voz de sua mãe na entrada da sala.

—Mãe? —Falou olhando para ela.

—Estou aqui —respondeu. Caminhou rapidamente até Anne e sentou-se ao lado dela. —Se recuperou?

—Mãe! Que vergonha! —Exclamou, se jogando em seus braços. —Como eu pude... —E não terminou a frase porque observou como as servas olhavam-na ansiosas por informações.

—Eugine, prepare o salão matinal. Nós temos que tomar o

desjejum antes de seguir com o plano combinado. Shira suba até o quarto de Mary e não saia até que esteja bem arrumada. Informe a ela que, já que atrasamos a hora da partida, virá conosco —disse com autoridade.

—Sim, senhora —responderam em uníssono antes de saírem da sala e deixarem-nas sozinhas.

As duas ficaram em silêncio até a porta se fechar. Foi então que Sophia se afastou da filha, foi até a janela e pensou no assunto que iriam discutir. Não seria fácil perguntar sem rodeios se o visconde de Devon era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Foi horrível —Anne começou enquanto tentava se levantar. --

Mas garanto que nem eu mesma esperava a reação que tive. Aquele cavalheiro terá pensado que...

—É o visconde de Devon —ela corrigiu. —O irmão de Natalie Lawford.

—Seu irmão? —Perguntou, sentando-se de repente no sofá.

Ela suspeitava que fosse parente do marquês, mas nunca imaginou que fosse um irmão. Agora, como essas informações afetariam seus sonhos? Voltaria a vê-lo durante as noites depois de confirmar que era um homem inatingível? Como poderia tira-lo da cabeça? Só conseguiria partindo, por esse motivo, seu desejo de fugir de Londres aumentou.

—O conheceu? —Sophia retrucou, caminhando até ela.

—Não pessoalmente —respondeu enquanto descansava os pés no chão novamente. —Eu o vi discutindo com o Marquês de Riderland na outra noite. Mas até este dia, não sabia que existia.

—Bem, ele existe e, conforme constatei, sua irmã Elizabeth o conhece bem o suficiente —disse mordazmente.

—Em que sentido? —Perguntou, arregalando os olhos e notando como seu coração estava batendo rápido.

—Em um sentido fraternal —esclareceu. —Segundo ela, o visconde é um homem leal à sua família e amigos.

—Se ela diz isso... —murmurou um pouco ciumenta. Olhou para os pés, moveu-os devagar enquanto pensava se era adequada a pergunta que rondava sua cabeça, mas a curiosidade era tanta que a fez sem pensar: —O

que o trouxe para a nossa casa?

—Se lembra de que seu pai, depois de ter aceitado a decisão de manda-la para Paris, procurou um navio que partisse nas próximas semanas de Londres?

—Sim —respondeu sem tirar os olhos dos sapatos brancos.

—Bem, pediu a ele —disse atenta à reação que sua filha mostraria.

—Lorde Bennett? —Perguntou, arregalando os olhos e dirigindo-os para a mãe com espanto.

—O mesmo —assegurou com um leve aceno de cabeça.

—Não existem mais homens em Londres? Como o nosso pai pode ter o dom do absurdo? Não há mais capitães, mais barcos, mais pessoas nesta cidade a quem recorrer? -- Gritou desesperada.

—Mas... —interrompeu Sophia, levantando o dedo indicador da mão direita para silenciá-la.

—Mas? —Anne perguntou com expectativa.

—Ele se recusou a fazê-lo.

—Graças a Deus! —Disse Anne com um longo suspiro. —Não seria capaz de ficar ao lado desse homem por um único segundo.

—Por quê? —Sophia perguntou, aproximando-se dela. —Pelo que vi, é um homem honesto.

—Por que... desmaiei quando ele apareceu? O que pensará de mim? —Soltou horrorizada.

—Nada.

—Nada? —Anne repetiu dando um pulo. —Perdi a consciência ao vê-lo!

—Não será a primeira nem a última a fazê-lo —ela disse mordazmente. —Pelo que diz sua irmã, ele é um homem que levanta paixões onde quer que apareça.

—Perfeito! E meu pai volta a fazer das suas me enviando às

garras de um homem libertino! —Exclamou desesperada.

—Anne, por que desmaiou quando o viu? —Ela rapidamente mudou de assunto.

 

—Como? —Perguntou se virando para ela com tanta força que a saia do vestido rodou entre as suas pernas.

—Responda.... Por que agira de maneira tão inadequada? --

Persistiu sem afastar os olhos da filha.

—E as vertigens têm sempre uma explicação lógica? —Se defendeu.

—Bem, eu disse ao visconde que não tinha feito o desjejum e que, devido a isso, sofreu um leve atordoamento, mas temo que não seja o motivo correto, estou certa? —Continuou obstinada.

—E ele acreditou?

—Claro! —Disse com firmeza. —Por que duvidaria das minhas palavras?

—Menos mal... —sussurrou para si mesma. Colocou as mãos no estômago, como se a desculpa de sua mãe também servisse para que não precisasse lhe contar a verdade, abaixou a cabeça e declarou: —Com certeza foi isso. Não tomei o chá antes de falar com a senhora.

—Acha que eu sou tola, Anne Moore? —Soltou a mãe zangada. —Diga-me o que aconteceu de uma vez! E nem pense em mentir

para mim, por muito que seja uma mulher adulta irei castigá-la —disse.

—O que quer que eu diga mãe? —Perguntou levantando o rosto para olhá-la.

—A verdade —disse Sophia. —Preciso que seja honesta comigo porque eu e o visconde selamos um acordo antes dele sair.

—Um acordo? —Retrucou, arregalando tanto os olhos que poderiam sair de suas órbitas.

—Sim. Ele veio aqui para devolver o envelope que seu pai lhe ofereceu. Em meio a sua negativa categórica, perguntei se ele conhecia outra pessoa honesta que pudesse levá-la a Paris e sabe como ele agiu?

—Não —murmurou.

—Ficou furioso. E não sei que diabos está acontecendo entre vocês e nem quero perguntar! —Gritou. -- Mas deve esclarecer o motivo pelo qual o visconde me pediu um mês para fazê-la feliz.

—Ele pediu isso? Por quê? O que quer? —Perguntou sem fôlego.

—Não sei, embora tenha medo de que você saiba a resposta --

assegurou-a com firmeza.

Anne continuou com as mãos no estômago. Ele começou a rosnar, como se quisesse eliminar o pouco que abrigava nele. Caminhou lentamente até o sofá, onde alguém a havia deitado, pegou o lenço laranja como se lhe desse a força necessária para confessar e respirou.

—Anne, seja o que for, estou aqui para ajudá-la —disse depois de sentar ao seu lado e segurar o lenço nas mãos. —Juntas lutaremos contra todos os perigos que apareçam em sua vida.

—Contra todos? —Disse virando o rosto, permitindo que sua mãe observasse as lágrimas que vinham de seus olhos.

—Contra todos —Sophia repetiu solenemente.

—E como podemos lutar contra o homem que aparece nos meus sonhos?

—Com paciência e com muito amor —assegurou antes de abraçá

la.

X


Uma vez que ambos estavam em frente ao portão de Whespert, olhou de relance para Philip. Seu amigo estava absorvido em algum pensamento irritante que o fazia franzir a testa e apresentar uma cara azeda. Supôs que ainda estava pensando sobre o que aconteceu na casa dos Moore. No entanto, não achou um episódio desagradável, mas exatamente o oposto. A conversa que tiveram durante a caminhada foi tão engraçada que sua mente esqueceu do beijo que roubou da primogênita do médico e da alucinação que teve quando o fez. Mas uma vez que se viu em frente à sua residência e Giesler não tinha mais nada para contar, a realidade retornou, assim como a memória do acordo que fez com a esposa do médico. Por que havia oferecido tal loucura? Um mês? Como poderia, em tão pouco tempo, colocar a jovem no lugar que havia prometido? Por que agira tão impulsivamente? Talvez o desespero da mãe, depois de confessar o que aconteceria se sua verdadeira procedência fosse revelada, o fez reagir de maneira tão impetuosa.

Na verdade, a Sra. Moore não estava errada. Se alguém descobrisse que o famoso médico casou com uma cigana e não com a filha de outro burguês, não só a reputação do médico estaria em risco, como suas filhas sofreriam uma rejeição social que acabaria arruinando a família. Assim,

a única razão pela qual se ofereceu para ajudá-los não era outra senão empatia, e isso não abrangia nenhum sentimento estranho por Anne.

Ele mesmo, por muitos anos, temeu que as pessoas de seu convívio murmurassem sobre a possibilidade de ele não ser um filho legítimo dos marqueses. Infelizmente, a falecida marquesa ameaçou Roger a revelar a verdade e interromper tudo o que ele havia construído com tanto esforço. No entanto, uma vez que ela morreu, seu irmão confirmou que a mulher traiçoeira havia levado o segredo ao túmulo e que a partir daquele momento ele deveria esquecer seu passado e se concentrar no presente. Ainda assim, todos os dias se colocava em frente ao espelho e contemplava o reflexo de quem ele realmente era: um bastardo, filho de uma mocinha que não superou o parto e morreu ao dar à luz.

—O que pretende fazer agora?

A pergunta de Philip tirou-o de suas reflexões. Olhou para ele sem piscar, como se não reconhecesse a pessoa ao seu lado.

—Tenho que pensar no acordo que propus à senhora Moore --

respondeu. —Quanto mais cedo descobrir como oferecer à jovem o reconhecimento que merece, mais cedo poderei voltar à minha antiga vida --

disse pensativo.

—Se eu estivesse em seu lugar, recusaria a todo custo me encontrar novamente com uma filha daquele casal. Mesmo que não acredite

na maldição, eu testemunhei isso. Essas moças são amaldiçoadas —disse ele, colocando a mão no bolso, onde guardara o tubo de metal e apertando-o com tanta força que quase o dobrou ao meio.

—Não seja teimoso. Sabe tão bem quanto eu que o que aconteceu na casa dos Moore não tem nada a ver com essas bobagens que está falando. Admita de uma vez por todas que nossa presença provocou uma tremenda algazarra —resmungou antes de avançar pelo caminho de seu grande jardim. E já que quer se colocar no meu lugar, me colocarei no seu para cuidar da sua língua quando falar sobre elas. Acredito que elas sofreram muito com a miséria que a morte desses homens trouxe, para continuar a adicionar mais tristeza em suas vidas. Além disso, lembre-se de que o único interesse que esses pais têm é casar suas filhas e, à medida que mais testemunhos falsos forem divulgados, eles nunca conseguirão fazê-lo.

Claro, guardou para si o que aconteceu com a mais velha das irmãs depois de beijá-la. Sua mãe havia proclamado que ela tinha o dom de pintar, mas ele tinha vivido em sua própria carne outro muito diferente. Como poderia tê-lo feito projetar essa visão mesmo quando estava inconsciente? Ela teria mais habilidades do que a mãe confessou? Poderia se encontrar em um lugar onde apenas ciganas feiticeiras haviam nascido?

—Cinco! —Philip exclamou revirando os olhos. —Tem que casar as cinco! —Acrescentou com a mesma ênfase. —E uma delas é tão malvada

quanto a terrível Medusa. Quem poderá se casar com essa mulher? Só um louco terá a coragem de se ajoelhar na frente dela e pedir que se torne sua esposa! -- Gritou fora de si.

—Deduzo, velho amigo, que para apaziguar o trauma que sofremos, ambos precisamos de uma bebida. Não é todo dia que mulheres lhe jogam tubos de metal, apontam para o seu peito ou gritam por quão desinteressante é —Logan disse sarcasticamente quando Kilby, atento como sempre, abriu a entrada principal.

—Aquela menininha não gritou por minha causa! —Philip se defendeu. Que seu amigo tenha atacado sua atração masculina doeu mais que um chute na canela. Não passou muito tempo treinando e exercitando um corpo tão grande para ser ridicularizado. —Se bem me lembro, aquela bruxa ruiva gritou quando abriu a porta do salão em que você estava. —Indicou, apertando os olhos na hora em que estava tirando o paletó para oferecê-lo ao mordomo. -- O que estava fazendo? Não me disse que a mulher estava inconsciente? Levitou? —Diante dessa pergunta, ele arregalou os olhos. --

Aquela mulher podia sair do chão voando?

—Sim, claro! E não a viu passando pelo corredor montada em uma vassoura? —Murmurou. —Não diga bobagem, Philip. As irmãs Moore não são amaldiçoadas, nem lançam tubos envenenados, nem serão vistas no meio do jardim fazendo poções malignas. —Virou-se para Kilby para que o

ajudasse com o manto, colocou-o no antebraço e virou-se para Giesler para pegar a jaqueta. —Só precisam de uma pessoa que acredite nelas e que as ajude.

—Bem, nesses momentos, o que preciso é que meu bom amigo abra a porta da adega e me deixe escolher o melhor licor. —Colocou a mão no ombro de Logan e caminhou com ele até a biblioteca, o lugar onde eles ficariam bêbados até que nenhum deles se lembrasse do que tinha acontecido naquela manhã.

—Se está com tanta sede, pode ir ao clube —Logan ofereceu divertido. -- Não quero ter que embarcar em alguns dias porque minhas reservas de vinho do Porto acabaram prematuramente.

—Eles me negaram a entrada no clube por seis meses —disse Philip, puxando o amigo contra ele em um abraço camarada.

—Bentinck? —Exclamou Logan levantando a sobrancelha direita. Não poderia ser outra pessoa. Implicava com Philip desde que jogou cartas pela primeira vez, quando tinha apenas quinze anos de idade, e o acusou de trapacear na frente de todos os convidados do Reform.

—O mesmo —respondeu, desenhando um enorme sorriso depois de recuar e bater no peito como se fosse um gorila celebrando o triunfo de uma disputa.

—Pode esvaziar a adega de uma das suas amantes —ofereceu

enquanto abria a porta da biblioteca e permitia que ele entrasse.

—Mais mulheres? Não obrigado. Com a visita de hoje, tive o suficiente por alguns dias. Além disso, tenho que confirmar se essa aspirante a Medusa não me envenenou —resmungou, dando um passo para dentro.

—Não ficará doente exceto por....

—Milorde...

Kilby tentara informar que o marquês de Riderland estava em casa, mas não ousou interromper a conversa, a não ser quando os viu ir à biblioteca. Uma vez que eles fechassem aquela porta, pediriam uma caixa do melhor uísque e não poderiam ficar de pé por alguns dias.

—Qual é o problema, Kilby? —Logan perguntou se virando para o mordomo.

—Quero te informar que sua Excelência o está esperando no ginásio. Chegou antes das onze e, por mais que tenha insistido que não poderia recebê-lo hoje, porque tinha saído para cuidar de um assunto importante, ele não foi embora.

—Está sozinho? —Exigiu saber enquanto seus olhos estavam ampliados pela excitação de descobrir que seu irmão não havia esquecido o encontro de toda quinta-feira.

—Não, milorde. Vossa Excelência pediu ao jovem jardineiro que se apresentasse diante dele enquanto esperava seu regresso —esclareceu,

expressando certo temor em suas palavras.

Logan deu um grande sorriso quando ouviu que Roger começara a treinar com um de seus criados. Talvez, quando aparecesse na frente dele, uma hora depois de sua chegada, estaria tão exausto pela luta que poderia vencê-lo.

Quando comprou Whespert, a primeira coisa que fez foi construir aquele ginásio localizado na parte de trás da residência. Lá ele ensinava esgrima, treinava no ringue que tinha do lado direito e continuava praticando seu passatempo favorito: lançamento de facas. Olhou de soslaio para Philip que sorria da mesma maneira que ele. O brilho que seus olhos consagravam só podia indicar uma coisa: diversão.

—Sente vontade de dar uma boa surra naquele velho? —Sugeriu a seu amigo, sabendo a resposta.

—Pensei que nunca me perguntaria! —Exclamou, agitando os cílios como se fosse uma mulher tentando seduzir um amante.

Com passos longos e rápidos, os dois homens foram em direção ao salão de vidro, que chamavam de ginásio. Enquanto caminhavam em direção àquele lugar, os dois tiraram suas roupas: jaquetas, gravatas, coletes e até camisas caíram no corredor limpo e brilhante. Como sempre, não ficaram muito tempo nos ladrilhos de cor marfim, porque as donzelas, sufocadas ao ver como dois homens tão grandes e esbeltos se comportavam como crianças,

as apanhavam antes de se sujarem.

—O que diabos fez para não lembrar que hoje é quinta-feira? --

Gritou assim que viu seu irmão aparecer na porta.

Roger tinha o corpo do jardineiro contra o dele. Seus braços tinham rodeado o pescoço do moço e ele tentava afastá-los apertando os antebraços do marquês com as mãos.

—Bom dia irmão. Saí para atender a um assunto urgente. —E

logo depois de falar, caminhou em direção ao marquês com os punhos erguidos.

Roger, prevendo suas intenções, jogou seu oponente para a direita, libertando-o daquela amarração abrupta e se defendendo contra o ataque de Logan. Quando o punho do visconde ia tocar seu rosto, ele se virou e aproveitou a confusão para dar um soco no torso nu.

—Um assunto urgente? —Respondeu no mesmo instante em que pulava para trás, exibindo o brilho do suor que a parte superior de seu corpo mostrava pelo treinamento e fazendo seu cabelo loiro, molhado do esforço, se mover como um leque. —Que urgência poderia fazê-lo esquecer nossa reunião semanal? —Adicionou outro golpe quando Logan tentou atacá-lo por trás.

Imediatamente, o rapaz espancado se dobrou ao meio e olhou suplicante para o amigo. Levou a mão esquerda para a mecha de cabelos

negros que se soltou do rabo de cavalo e observou os movimentos do titã Giesler.

—Mulheres —Philip acrescentou, levantando os punhos para enfrentar o marquês, enquanto Logan se recuperava daqueles golpes duros.

—Lady Rose voltou a sua vida? —Perseverou, respondendo ao convite de Philip, colocando-se em guarda.

—Não, acredito que Lady Rose tenha deixado de existir para o seu irmão, Excelência —disse Giesler antes de acertar a mão direita no Marquês.

Colocou o antebraço esquerdo como escudo e, quando o terceiro impacto de Philip atingiu aquela parte de seu corpo, Roger sorriu e deu um forte golpe no queixo do titã loiro. Embora, para seu pesar, não o tenha movido do chão. A única coisa que Giesler fez, depois do impacto, foi levar a mão direita até o queixo e movê-lo da direita para a esquerda.

—Vejo que meu irmão ouve meus conselhos... —o marquês comentou dando vários passos para trás. Olhou para o alemão de cima e para baixo e sorriu. De fato, Logan escolheu a pessoa mais qualificada para cobrir suas costas. O peito do gigante era duas vezes maior do que o dele e havia montanhas de músculos em seus bíceps.

—Estou ciente disso —Logan comentou sobre o assunto de Philip atacando seu irmão pelas costas.

—Sou mais velho, mas ainda estou em forma—comentou brincando quando viu que, depois de fazer uma pequena pausa, seu irmão colidiu com o alemão. Evelyn cuida de mim corretamente.

—Vou pedir à minha amada cunhada que deixe Londres por algumas semanas —disse Logan, virando-se para encarar seu irmão novamente.

—Minha esposa não vai a lugar nenhum sem mim. —Roger se afastou um pouco, pegou-o pelos punhos e jogou-o no chão, fazendo as costas de Logan estalarem ao tocarem o piso frio.

—O que foi isso? —Disse Philip diante da manobra que o marquês fez.

—Isso se chama w u shù[4] —disse Roger com orgulho. -- Yeng vem praticando esse tipo de luta com Evah desde que ela voltou de seu país e eu também queria aprender.

—Permite

que

sua

filha

aprenda

a

lutar?

--

Philip perguntou incrédulo.

As mulheres estavam mudando, elas não eram as donzelas que precisavam ser salvas. Naquela época, elas lutavam com os punhos e com o que usavam para enrolar seus cabelos.

—Minha filha, Giesler, está sempre em perigo porque é uma Bennett e precisa se defender contra as ameaças que a perseguem —afirmou

Roger, estendendo a mão para o irmão.

—É verdade —disse Logan, aceitando a ajuda para se sentar. --

E, por essa razão, minha querida sobrinha foi instruída pelos dois melhores lutadores que conhecemos: o índio e o chinês. Agora, Evah poderia matar um homem, com apenas um dedo, se ele quisesse beijá-la sem a autorização de seu reverenciado pai.

—Ninguém ousará fazer uma coisa dessas se quiser continuar respirando —disse Roger soberbo.

Um sorriso arrogante cruzou o rosto do pai orgulhoso. Sua amada filha havia herdado a beleza de Evelyn, mas a natureza provocativa era inteiramente sua e esse era o maior perigo que ela poderia enfrentar.

Logan olhou para ele por um curto período de tempo, imaginando se seria a melhor hora para expor que sua amada Evah, sua tenra e inocente filha, era tão apaixonada quanto todos os que tinham sangue de Bennett e que durante a festa de Natalie ouviu como ela beijava Terry, o primogênito de seu sócio Leopold.

—Que mulher aquece sua cama agora? —Perguntou o marquês para Logan enquanto voltava os punhos para ele de novo.

—Não há nenhuma mulher —disse oferecendo-lhe outro golpe que, por sorte, foi certeiro.

—Cinco! —Philip disse depois de aplaudir Logan por aquele

impacto de sorte.

—Cinco? Rompeu seu relacionamento com Lady Rose porque decidiu manter cinco novas amantes? —Roger perguntou ao tentar devolver o reverso. —Não pode se contentar com uma?

—Elas são irmãs... —Logan argumentou, esquivando-se daquele ataque.

—Quer manter um idílio com cinco irmãs ao mesmo tempo? --

Disse o Marques confuso. Naquele momento, ele se esquivou de um novo desafio, levantou as palmas das mãos e parou a luta no ato. —Explique-se agora mesmo! —Berrou colocando as mãos em cada lado da cintura, brilhando de suor.

—Não podia ficar de boca fechada? —Gritou para Philip, que tinha os braços cruzados defensivamente. —O que está querendo? Que meu irmão me faça mudar de ideia?

—O

que

está

acontecendo,

Logan

Bennett?

--

Roger rosnou adotando na mesma posição que Giesler. —Dê-me uma explicação razoável antes de me ver obrigado a dizer a Evelyn que meu amado irmão não levou a amante, com quem viveu por dois anos, porque decidiu —enfatizou —jazer sob a horrível repugnância da poligamia.

—Está equivocado... —o visconde resmungou. Virou as costas para eles, caminhou em direção a uma das cestas da sala e pegou várias

toalhas.

—Bem... vá em frente, vamos conversar! —Roger pediu um tanto irritado. —Preciso de uma resposta coerente imediatamente! —Exigiu, adotando a atitude de pai.

—Nosso estimado lorde decidiu visitar a educada e gentil família Moore esta manhã —começou Philip, sarcasticamente. ?E esse casal respeitável tem cinco filhas adoráveis —esclareceu com aborrecimento.

—Por que apareceu na casa dos Moore? Está doente? --

Perguntou o Marquês enquanto estendia a mão para a toalha que Logan atirou nele.

—O Sr. Moore veio me ver várias noites atrás. Desejava que, na próxima viagem, eu levasse sua primogênita no meu barco —começou a explicar enquanto caminhava na direção deles.

—Está falando sobre a jovem retratista? Por que quer tirá-la de Londres? Não tem clientes suficientes? Deixaram de contratá-la? —Roger perguntou enquanto limpava o suor do rosto e do peito.

—Segundo parece, a mulher é amaldiçoada e o bom pai quer se livrar dela porque o impede de encontrar um marido para as outras... —Philip não terminou sua exposição porque a toalha que Logan jogou o atingiu com força no rosto.

—Ela não é amaldiçoada e não é a causa de nada —resmungou o

jovem Bennett. —A moça, como disse, é uma excelente pintora e eles acham que, se ela deixar Londres, poderá ter a fama e o prestígio que merece.

—Eu não entendo... —murmurou Roger, olhando de um e para o outro. —Ela está amaldiçoada ou anseia por um futuro melhor?

—Não consigo entender depois do que aconteceu com aqueles cavalheiros —disse Philip, jogando a toalha encharcada de suor no cesto de vime que tinha as suas costas. Ele jogou os braços para trás, como se precisasse de mais espaço em suas costelas para respirar depois de lembrar da jovem Medusa e seus rolos novamente. Por que diabos não conseguia tirá-la da cabeça? Ficou inebriado ao pensar que ela não estava usando nada sob aquela camisola? Ou talvez ele se mantinha em estado de alerta no caso de ficar doente logo? O que quer que fosse, a senhorita Mary Moore estava dentro de sua mente e não podia eliminá-la como fazia com qualquer amante.

—Primeiro de tudo, investiguei as mortes dos seus noivos e....

—Seus pretendentes morreram? —Soltou Roger, abrindo bem os olhos e interrompendo seu irmão.

—Dois, Excelência. Morreram os dois únicos homens que ousaram desafiar essa... —Philip ficou em silêncio de novo porque Logan, traiçoeiramente, o atingiu de lado.

—Nenhuma maldição! —O visconde exclamou com raiva. --

Aqueles cavalheiros procuraram a própria morte! -- Continuou com raiva

?Ela é uma vítima do desempenho de dois homens absurdos!

Queria bater em Giesler de novo, mas este evitou o golpe, agarrou-o com força e virou-o para o marquês.

—Deixando essa suposição de lado —Roger começou calmamente. ?O Sr. Moore não foi cauteloso o suficiente para procurar outro dono de um navio?

—Por que deveria fazer isso? —Disse Logan se esforçando para se afastar de Philip. —Não acredita que eu poderia protegê-la até que desembarcasse no país ao qual desejam enviá-la? —Deu um passo à frente, depois de atingir seu objetivo, virou-se para o amigo e olhou-o como se quisesse arrancar seu coração.

—Os homens iriam se revoltar se houvesse uma mulher em um navio! E essa maldição seria cumprida em alto mar! Nós nos tornaríamos um navio fantasma, cercados por cadáveres e seríamos devorados por essa mulher e sua infeliz irmã do diabo! —Exclamou Giesler dando um passo para trás. Se sua experiência não o enganasse, como ele não fechava a boca, o que não faria para salvar seu companheiro, este tentaria acertá-lo novamente.

—Use esse tom de novo para falar sobre ela e ficará sem dentes

—alertou Logan, levantando os punhos.

—Chega! —Roger interveio que, espantado com o olhar que seu irmão oferecia ao seu melhor amigo, resolveu colocar a paz entre os dois e

esclarecer, de uma vez por todas, o que tinha acontecido. —O que diabos aconteceu naquela casa para manter esse comportamento tão desprezível?

—Quer que eu explique, Excelência? —Disse Philip sarcasticamente.

—O avisei! ?Logan gritou antes de pular na direção do amigo.

Como duas crianças, eles começaram a se socar. Roger, a princípio, permitiu essa atitude infantil por alguns minutos, mas quando descobriu que havia sangue em ambas as bocas, se colocou ao lado deles e os removeu bruscamente.

—Ele fez um acordo com a Sra. Moore —disse Philip enquanto afastava o sangue de um dos lábios para longe com as costas da mão.

—Um acordo? —Roger perguntou ao irmão, que fez o mesmo que Giesler. —Que acordo fez com essa família, Logan?

—Quero mostrar a esse pai que não há nenhuma maldição. Que tudo aconteceu de uma forma acidental e que a jovem pode encontrar um marido quando e onde ela quiser —disse sem qualquer preocupação.

—É melhor comprar um colarinho de alho ou dizer ao seu irmão onde quer ser enterrado se for se aproximar dela de novo —disse Giesler, desesperado.

—Não teve o suficiente? —Retrucou Logan dando um passo em direção ao amigo, mas os dedos de Roger pressionaram seu braço esquerdo,

impedindo-o de começar outra briga.

—O que pretende fazer? Como vai conseguir o que prometeu? --

Quis saber o marquês sem soltá-lo.

—Se o que eles querem é que a moça consiga o prestígio que ela merece, eu darei a ela —começou a dizer mais calmo. -- Não tenho dúvidas de que, se conquistar a fama que deseja, a senhorita Moore terá milhares de pretendentes na porta de sua casa —disse muito seguro de si mesmo.

—E o dono do coche funerário esfregará as mãos quando esses imbecis estiverem à sua porta! —Philip gritou com raiva.

—Giesler, silêncio! —Roger repreendeu-o como a uma criança pequena.

—Excelência —disse Philip em uma voz mais calma. —Seu irmão, meu amigo, que usou meu corpo como escudo em muitas ocasiões --

enfatizou —não pensa com clareza. Não só a primogênita está amaldiçoada, mas o resto das irmãs também. Sofri, na minha própria carne, a ira de uma bruxa —disse sem respirar.

—Neste momento, vamos nos concentrar na filha mais velha e teremos tempo para as outras —disse Roger, adotando a atitude do marquês que era. Se virou para Logan, que ainda estava segurando seus punhos tão apertados que suas juntas ficaram brancas. —Como conseguirá que uma pintora consiga a fama que deseja nesta maldita cidade? -- Insistia em

descobrir.

Roger sabia que ela poderia ser a melhor artista de Londres, que poderia ter nascido com uma habilidade sem precedentes, mas temia que mesmo a sociedade de Londres não estivesse preparada para que uma mulher ocupasse uma posição superior à de um homem, a menos que fosse a cortesã mais experiente de um bordel de prestígio.

—Não sei... —Logan murmurou girando em seus calcanhares e parado em frente à porta. —Estou pensando nisso...

—Poderia pedir a ela para retratá-lo —disse Philip sarcasticamente. —Não me disse que só pintava rostos de mulheres ou crianças? Bem, se aceitar um contrato de trabalho seu, poderia ser o precursor de outros cavalheiros. Não só as mulheres devem exibir seus belos rostos na entrada das casas —acrescentou com violência. -- Assim, todas as casas terão um retrato dos homens que vivem nelas e.... —deu um sorriso largo --

e se não estão, os amantes dessas tristes viúvas poderão ver o rosto daquele que construiu a casa em que se deitará com sua antiga esposa.

—Ou pode pintar minha querida Evelyn —explicou Roger como uma alternativa. —Certamente ela ficará encantada e, desta forma, os viciados em fofocas sociais permanecerão de boca fechada.

—Que quer dizer? —Logan perguntou se virando para eles.

—É um Bennett e sabe para o que nossos ancestrais masculinos

se dedicaram. Se fizer essa menina ficar em sua casa mais do que estipulado como correto, seu prestígio seria arruinado, assim como sua honra.

—Verdade... —Philip refletiu, relaxando com o julgamento razoável do marquês. —Não posso nem imaginar os prós e contras que ofereceriam sobre a pintora e o visconde. Seriam semanas, meses e até anos para debater sobre quando, como e por que essa mulher conseguiu o que as outras não conseguiram. Sem mencionar como sua última amante aceitaria a notícia. Tenho certeza de que Rose perguntaria sobre ela e arrancaria seus olhos assim que a tivesse na sua frente. Embora também... —disse enquanto tocava o queixo coberto por um arbusto de barba loira —essa moça possa ser protegida pela discípula de Medusa. Certamente Rose virará pedra quando notar o estranho penteado que usa sobre sua cabeça. —E depois dessa afirmação, soltou uma gargalhada enorme.

—Deve pensar sobre este assunto com calma e não agir com pressa —disse Roger, colocando a mão esquerda no ombro do irmão. —Não quer se ver na obrigação de casar com ela por esse absurdo, certo?

—Casar? Que estupidez! Logan não pode se casar! Certamente ele prefere ter varíola a viver com aquela moça pelo resto de sua vida! --

Philip exclamou enquanto se afastava do ginásio.

Mas o marquês não escutou as frases dolorosas de Giesler. Não conseguia desviar o olhar do irmão e, se não estava enganado, parecia que a

ideia de ficar mais tempo com essa mulher misteriosa não era tão desagradável quanto o amigo pensava.


***


—Que

Deus

tenha

piedade

de

nós!

—Exclamou

Randall sem parar de andar de um lado para outro, enquanto acariciava seu velho rosto de maneira desesperada. —Tenha piedade desta família! --

Acrescentou exasperado.

Sophia o observava sentada no sofá, esperando pacientemente que ele se acalmasse. Sabia que depois daquele episódio de ansiedade refletiria sobre o assunto. Mas parecia que o tempo de espera ia ser maior do que em ocasiões anteriores, porque seu rosto estava completamente vermelho, apenas respirava calmamente e acariciava seu cabelo como se quisesse arrancá-lo de sua cabeça.

De repente, Randall ficou na frente dela, levou as mãos à gravata e tentou retirá-la, como se a peça de roupa estivesse sufocando-o.

—Randall, querido, respire devagar —sugeriu, levantando-se e pegando a peça de roupa da qual ele não podia se desvencilhar. —Como lhe disse, selamos um acordo e não duvido da sua palavra.

—Um acordo? Realmente acredita que um aristocrata agirá de

acordo com suas palavras? Desde quando confia tanto nesse tipo de gente? --

Soltou com mais raiva do que nunca.

Com aquela expressão de fúria, Sophia deu vários passos para trás. Não estava com medo, mas confusa. Até então, o marido nunca estivera tão zangado. Ela errou no acordo? Seu marido não concordava que o visconde deveria tentar ajudar sua filha? Não tinha ido até ele para pedir ajuda? Pois, ele havia vindo, mas não com a opção que havia pedido. No entanto, ela sentia que a nova decisão era a melhor alternativa para todos desde que Anne confessara que o visconde era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Sinto muito —ele se desculpou enquanto observava sua esposa recuar. ?Lamento oferecer-lhe este horrível espetáculo —disse inclinando a cabeça, arrependido por uma atitude tão desagradável.

Nesse momento, Sophia voltou para o seu lado e o abraçou confortando-o.

—Ele me deu sua palavra e, quando nossas mãos se uniram para selar esse acordo, notei em seus olhos que estava dizendo a verdade. Esse homem é diferente dos outros.

—Tem certeza? Quantos aristocratas são confiáveis? Quantos escrevemos no caderno negro, querida? Você, melhor do que ninguém, sabe o quanto são cruéis e os danos que podem nos causar —disse com mais

calma.

—Reflita um pouco, Randall. Ele apareceu em nossa casa, trouxe o envelope que lhe ofereceu e, depois de ouvir uma das razões pelas quais Anne deve sair de Londres, ficou tão interessado que decidiu colocá-la no lugar a que a corresponde. Logicamente, todo o resto deve permanecer em segredo.

—Mas esquece que nossa filha diz ser amaldiçoada —murmurou, colocando o queixo no cabelo preto de sua esposa -- e suas irmãs, especialmente Elizabeth, acham que é verdade. Talvez, como Anne diz, deveria partir para alcançar um futuro favorável longe desta cidade.

E depois de expor essas palavras, Sophia deu vários passos para trás. Agora era ela quem estava com raiva e rezou a sua mãe criadora para que não estivesse escutado bem.

—Quer que ela vá embora? —Gritou. É tão obtuso que ainda acha que Anne deveria se afastar de nós? Não é você quem está sempre dizendo que prefere suas filhas por perto?

—Não me entenda mal... —disse abaixando a voz. —Anne pode fazer o que quiser e se conseguir ficar aqui, ela me faria o pai mais feliz do mundo.

—Então? —Perguntou colocando as mãos na cintura. -- Não gostou que eu interferisse neste assunto? Não me vê capaz de ajudar a

família?

—Ah não, não, não! —Exclamou o médico mexendo as mãos da direita para a esquerda. -- Tenho certeza de que suas intenções estão corretas. A única coisa que questiono é a posição do visconde. Lembre-se de que é um Bennett? Sabe o que aconteceu com os antigos marqueses?

—Sim, claro que sei! E você também sabia quando foi pedir a ele para levá-la em seu navio! —Disse.

—Mas não é o mesmo... -- murmurou.

—Por que não é o mesmo? —Esbravejou. -- Por acaso sua palavra é superior à minha? Explique-se agora mesmo, Randall Moore, ou dormirá naquele sofá pelo resto dos seus anos! —Ameaçou.

—Sophia, querida, entende que a vida nesta cidade é diferente...

—O que? -- Interrompeu-o.

—Se o visconde, com essa reputação que o precede, passear com a nossa filha ou ela espera em sua casa mais tempo do que é devido, o que vai acontecer?

—Pelo menos eu prevejo que não acabará enterrado abaixo da terra -- declarou ela solenemente.

—Não se importa com a reputação da sua filha? —A repreendeu.

—Acaso não sabe a reputação que tem? —Contra-atacou.

—Por favor... não discutam por minha causa —disse Anne, que

entrou na sala sem que seus pais a ouvissem.

—Não é uma discussão, querida -- disse Randall, caminhando para ela. Ele a abraçou com força, beijou-a na testa, colocou as mãos em seus antebraços e lentamente retirou. Sua mãe fez um acordo com o visconde e não me pareceu apropriado.

—Por quê? —Anne queria saber.

—Porque eu não sei o que pretenderá. —Explicou —Esse homem é um Bennett. Sabe que fama tem todos àqueles que levaram esse nome?

—Não confiou a ele a tarefa de me levar em seu navio? --

Soltou Anne, defendendo o homem que aparecia em seus sonhos.

Randall ficou pálido, engoliu em seco, virou-se para Sophia e disse:

—Toda sua. Tenho certeza que no final...

O médico não pôde terminar a frase porque alguém bateu na porta. Os três se viraram e olharam para ela, esperando pelo aparecimento de outra das filhas que teriam ido até lá pelas vozes. No entanto, a pessoa que apareceu na entrada foi Shira.

—Senhorita... Senhorita... —ela tentou dizer, mas as palavras não saíram. A única coisa que podia fazer era estender o envelope que tinha nas mãos para a deles.

—Shira? —Perguntou Sophia ao vê-la tão inquieta. —O que

ocorre? Por que está tão nervosa?

—Um... um servo acaba de me dar essa missiva e está endereçada a senhorita Anne -- informou.

—Quem mandou? —Randall exigiu saber caminhando em direção à criada.

—Tem o selo do visconde de Devon —esclareceu Shira.

E nesse momento Anne notou que a sala começou a girar em torno dela. O visconde estava se dirigindo a ela? Por quê? O que queria? Falaria sobre o acordo que fez com sua mãe? Teria pensado melhor e rejeitado?

Com as mãos trêmulas, ela avançou em direção a Shira antecipando seu pai, pegou o envelope, aproximou-se de um dos assentos e, sem que seus pais pudessem se separar dela nem um único passo, abriu-o: Cara senhorita Moore:

Estou lhe escrevendo pessoalmente para indicar que, depois do que foi acordado com sua mãe, encontrei a melhor maneira de obter nosso acordo. Peço-lhe que apareça amanhã em minha casa às doze horas. Espero que apareça com uma acompanhante. Não quero difamar seu bom nome. Prometo que comentarei, com mais detalhes, o plano que elaborei.

Uma cordial saudação

Logan Bennett, visconde de Devon.


Anne leu a carta várias vezes e depois deu aos seus pais para que eles pudessem descobrir o que ele havia escrito sem ter que sentir a respiração deles na nuca. Seu coração batia tão rápido que, novamente, queria sair do peito. Agarrou a saia do vestido com força, impedindo-os de descobrir o tremor de seus dedos. Em pessoa. Ele exigia sua presença. Falariam sobre o acordo, sobre o plano. Mas... seria capaz de ouvi-lo antes de desmaiar? Teria a coragem de se manter de pé sem perder sua força?

—Deve comparecer —disse Sophia, devolvendo a carta. --

Amanhã se apresentará em sua casa acompanhada por Mary.

—Acha que é conveniente? —Perguntou levantando o rosto, que empalideceu depois de descobrir o que estava escondido na missiva.

—Sim —disse Sophia sem hesitação.

—O que acha pai? -- Em seus olhos mostrava uma súplica. Até agora, toda vez que olhava para Randall dessa maneira, sentia pena dela e dava outra alternativa. No entanto, o brilho de seus olhos castanhos lhe disse que ambos concordaram que deveria fazer essa loucura.

—Deve ir —Randall disse sem pensar por um único segundo.

—Claro que ela deve ir! -- Sophia repetiu com autoridade. —Ele deu sua palavra e eu dei a minha —acrescentou.

—Nesse caso... se os dois concordarem, eu vou —disse Anne, dobrando a carta em porções tão pequenas que poderia escondê-la dentro de sua palma.

—Espero que seja um bom acordo —interveio Randall.

—Posso negar se o que me oferecer não me convier? --

Soltou Anne, levantando-se bruscamente.

—Claro! —Sophia respondeu rapidamente. -- Se o que sugerir não for do seu agrado, pode rejeitá-lo imediatamente.

—Obrigada! —Agradeceu.

—Agora, avise as suas irmãs que vamos jantar antes das cinco. Vamos conversar sobre o que elas fizeram com o pobre Sr. Giesler, com o seu pai e o que acontecerá amanhã. Além disso, devemos escolher as palavras certas para informar Mary que amanhã irá acompanhá-la —Sophia comentou calmamente.

—Poderia acompanhá-la Josephine com sua arma —disse Randall. -- Desta forma, a honra de nossa filha não... —Ele ficou em silêncio, pensando no nome que sua mulher dissera, virou-se para ela, com os olhos arregalados e soltou: -- Disse Sr. Giesler?

—Sim, querido, eu disse isso -- falou caminhando para ele.

—Disse que algo aconteceu com o Sr. Giesler e nossas filhas? --

Perseverou.

—Algo... Sim. Algo aconteceu... —disse evasiva.

—E.... o que é esse algo, Sophia? Sabe que ele não é um homem comum, certo?

-- Não? —Perguntou inocentemente.

—Não, ele é um futuro barão alemão —o médico determinou muito seriamente.

—Isso explica a cor do seu cabelo, seus olhos e sua pele... --

continuou misteriosamente.

—Mas... o que aconteceu na minha ausência? —Randall perguntou espantado.

—Anne, por favor, procure suas irmãs e informe-as do que vamos fazer enquanto eu explico ao seu pai o que aconteceu com.... lorde Giesler? —Retrucou, agarrando o braço dele.

—Sim, mãe -- respondeu Anne.

—Por favor... não me deixe em suspense, Sophia. Sabe que posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento —disse Randall enquanto sua filha se afastava deles.

Anne caminhou em direção à saída tentando controlar o tremor de seu corpo. No dia seguinte, ela apareceria na casa do visconde. Eles ficariam sozinhos, falariam... O que ele teria pensado em fazer com ela? Como ele tinha idealizado um plano tão rapidamente? Depois de fechar a porta, apoiou

as costas sobre ela, olhou para o papel dobrado e suspirou. Seria uma loucura e sabia disso. A ideia de ficar com aquele homem era uma insensatez porque não conseguia parar de pensar no que os dois faziam em seus sonhos. Ela não seria capaz de respirar ao seu lado, ou ficar sã, ou... nada. Levou a mão esquerda aos lábios e acariciou-os. Ainda sentia um toque imaginário, um beijo inexistente, uma sensação e um calor sonhado. Porque tudo era irreal, como o que via à noite...

—O que aconteceu lá? —Perguntou Elizabeth quando a viu daquela maneira tão estranha.

—Vamos! —Disse, pegando sua mão e puxando-a para as escadas que levavam para o quarto.

—O que há de errado, Anne? O que está acontecendo? --

Insistiu Eli intrigada.

—Quero que me conte tudo o que sabe sobre o irmão de Natalie.

—Sobre o Marquês?

—Não, sobre o visconde de Devon —esclareceu quando se viraram para o corredor da esquerda.

—Oh, meu Deus! —Elizabeth exclamou apavorada. —Esse homem não é adequado! É um libertino! Um homem que não é capaz de amar qualquer mulher porque não tem coração!

XI


Que pudesse conciliar o sono facilmente estava descartado...

Uma vez que Mary apagou a lamparina na mesa, depois das três horas da manhã, Anne esperou silenciosamente que caísse no sono. Não queria que a irmã descobrisse que ainda estava acordada porque se sentaria na cama e tentaria falar sobre todos os pontos negativos que a reunião teria, e não estava disposta a ouvir outro sermão sobre a sensibilidade feminina. Tudo o que queria era se acalmar e assimilar as repercussões que teria após a convocação inesperada.

Quando ouviu os roncos singulares de Mary, se levantou e foi até a janela. Ao afastar a cortina, observou a luz da lua iluminar os arredores da sua casa, dando-lhe uma aparência bastante serena. Colocou a mão direita no vidro, sentindo o frio do lado de fora na pele. Sem esperar que a palma voltasse a temperatura do resto de seu corpo, colocou-a na camisola, logo acima do peito, para aplacar a batida do coração, mas não conseguiu. Pelo contrário, ia contra a sua dona e, como vingança, vibrava com mais força. Desconcertada por essa reação incomum, Anne pressionou a testa contra a janela e suspirou. A incerteza de descobrir o que o visconde queria dela tornou-se mais angustiante e seu pesar aumentava à medida que percebia que no dia seguinte estariam juntos... de novo.

Seu corpo, pensando sobre essa reaproximação, estava cheio de tanta energia que poderia sair do quarto e passar por todas as ruas da cidade sem se cansar. Era como se, das profundezas de seu ser, aparecesse uma força estranha que tentava viver ou sentir tudo o que nunca havia vivido ou sentido. Mas devia controlar essa emoção tão explosiva. Não podia se deixar levar de novo por sentimentos impulsivos. Cometeu um erro no passado, aprendeu com ele e agora se tornara uma mulher muito diferente.

Olhou para fora, fixando os olhos na copa da árvore mais alta do jardim. Balançava de maneira semelhante àquela que via em seus sonhos. Foi assim que tudo começou, com a chegada de um pequeno sopro de ar que fazia as folhas das árvores e as chamas da fogueira se moverem. Então tudo se apagava e até mesmo o canto parava para dar lugar à figura masculina mais perfeita que já conhecera. Desviou o olhar do lado de fora e focou em suas mãos. Elas a pinicavam e o mantinham inquieta, como sempre acontecia quando se colocava diante de uma tela em branco. O que estavam tentando lhe dizer? Queriam pintá-lo? Mas... como poderia capturar o poder e o fascínio que ele mostrava em uma pintura? Com um leve movimento, sentou-se no peitoril da janela, colocou a carta dobrada sobre a camisola branca e agarrou-se aos joelhos para continuar apaziguando o tremor das mãos segurando-as em si mesma. Mesmo assim, continuavam se movendo, inquietas, agitadas, pedindo, com tremores leves, que abandonasse o quarto,

se trancasse na sala de pintura e não desperdiçasse mais tempo.

Respirou fundo, olhou para fora e focou na imagem do homem que despertara nela um instinto tão selvagem. Não podia fazer tal loucura. Não podia pintar o rosto daquele homem. Mas sua mente lançava uma batalha contra essa persistência. Ela gritava que deveria se render ao desejo e não se opor mais. Mas... qual seria a primeira coisa que pintaria sobre ele? Seus ombros? Os braços fortes? Não, isso não era tão importante. Depois de pegar um carvão e escolher a tela certa, daria forma àqueles olhos puros, àquele olhar sincero. Marcaria as sobrancelhas e os cílios escuros e deixaria os círculos de sua íris em branco, para dar-lhe o tom de céu azul quando terminasse com o rosto. Enfatizaria a forma de coração que seus lábios apresentavam, marcaria o queixo masculino, iria embelezá-lo com aquela espessa barba negra e, assim que a mandíbula mostrasse sua masculinidade, continuaria com o cabelo. Como gostava mais? Com o cabelo solto, movendo-se com o ritmo daquele vento que aparecia em seu sonho, ou como o usava nas duas ocasiões em que o viu; amarrado em um laço? Anne pressionou a testa no vidro novamente e uma cerca de névoa quente, devido a sua respiração, foi refletida nele. Ergueu a mão direita sem estar consciente, colocou a ponta do dedo indicador na direção daquela leve marca de vida e desenhou o contorno dos olhos em que pensava. Ela se afastou um pouco, apenas o suficiente para admirar o que tinha feito e, de repente, algo nela

mudou. Poderia chamá-lo de entusiasmo? Ou melhor, se tratava de uma loucura? Anne não podia definir essa nova atitude que tomou conta dela, porque nunca havia sentido nada parecido. Sem pensar, se colocou de pé no parapeito da janela, sem lembrar que tinha sobre os joelhos a carta do visconde, e que terminou descuidadamente no chão e começou a expelir todo o vapor que podia pela boca para continuar desenhando. Durante pouco mais de uma hora, aquela janela se tornou a tela mais apropriada para ela. De cima para baixo, da direita para a esquerda, sua respiração se tornou a tinta de cor que usava para o trabalho, seu dedo o pincel e os pulsos, as borrachas para apagar o que não era preciso. Quando terminou, quando não havia sequer um pequeno detalhe para pintar naquele rosto, colocou os pés no chão, caminhou para trás e admirou seu trabalho. A lua brilhava tanto que parecia um farol na janela. Seus raios atingiram o vidro, cruzando apenas as áreas que ela não havia desenhado. Os olhos, as sobrancelhas, o nariz, os lábios, a barba e os cabelos que finalmente pintou livres e agitados pelo vento, se apresentava com tal realismo que parecia respirar e observá-la em silêncio. Sem ser capaz de desviar o olhar daquelas linhas perfeitas, ela colocou as mãos no peito e sentiu como ele batia sem controle.

—Me parece tão... vivo, tão ... meu, que agora tremo de medo --

ela sussurrou. Mas não posso...

Um ronco mais alto do que o habitual fez os lábios de Anne

apertarem e se virou para Mary. Aqueles encrespadores na cabeça não permitiam que ela respirasse corretamente e, toda vez que se movia, bufava alto. Depois de confirmar que ela não tinha acordado, se virou para aquela imagem que parecia persegui-la e olhou para ela por um longo tempo. O que ele iria querer dela? O que pensava dizer a ela? Por que ele aparecia em seus sonhos? Por que seu corpo reagia estranhamente desde que apareceu em sua vida? Seria a maldição ou o medo de que ele tivesse o mesmo futuro que seus dois pretendentes? Enquanto tentava encontrar respostas para todas as suas perguntas, se abaixou, pegou a missiva, voltou para a cama, cobriu-se com a colcha e adormeceu olhando para aquele rosto.


***


—Vamos! Hoje não é um bom dia para descansar! —Sophia exclamou depois de abrir a porta e encontrar suas filhas dormindo pacificamente. —Há muitas coisas para fazer antes de visitarem o visconde

—acrescentou enquanto caminhava até a janela.

Anne abriu os olhos muito devagar, com certa preguiça. Era a primeira vez, em muito tempo, que havia descansado dessa maneira. E nem sonhara com o visconde! Essa ideia a perturbou tanto que se sentou rapidamente na cama. O que diria a sua mãe quando perguntasse sobre o

sonho? Devia mentir para ou contar a verdade? Mas sua ansiedade mudou de direção quando descobriu que ela estava indo em direção à janela onde tinha pintado seu rosto. O veria através da luz do dia? Como pode ser tão descuidada que não a limpou antes de ir dormir?

—Nem pense em descer sem se arrumar —disse Sophia a Mary depois de puxar a cortina da janela da esquerda, sem perceber por que a outra não estava em seu lugar. Se virou para a segunda de suas filhas e continuou:

?Viu o que aconteceu ontem e não estou disposta que suas irmãs fiquem alteradas novamente por sua causa. Hoje é um dia especial para a família e nada deve nos preocupar, exceto a reunião de Anne com o visconde.

Ao ouvir essa afirmação, Anne notou como seu estômago apertava e como seu coração batia tão rápido que os ecos dessas palpitações retumbavam em sua cabeça.

—Está preocupada, querida? -- Perguntou depois de afastar bruscamente os lençóis de Mary. Não fique. Sabe que seu pai e eu iremos apoiá-la em qualquer decisão que tome.

O rosto de Sophia, apesar dessas palavras, mostrava desapontamento. Não duvidava da sabedoria de sua filha, mas tinha certeza de que o visconde se dispusera a oferecer-lhe algo que não podia ser negado.

—Levante-se imediatamente! —Gritou para Mary quando, ao sentir o frio em seu corpo, alcançou o pé da cama e se cobriu novamente.

—Cinco minutos a mais... —pediu depois de colocar o travesseiro naquele ninho de bobes de metal.

—Eu disse a Foderhy para trazer uma xícara de café bem forte --

explicou Sophia, tirando os lençóis novamente. —Espero que seja o suficiente para que se mova.

—Nem pense mãe —Mary começou a dizer enquanto se espreguiçava. -- Se me fizer beber mais café do que o habitual, meu corpo reagirá de maneira contrária a que quer.

—Sabe o que está tentando me dizer? —Perguntou a Anne enquanto arregalava os olhos.

—Não —disse a primogênita, colocando os pés no chão. -- Mas certamente a resposta estará no livro que ela guarda debaixo da cama.

Quando Mary ouviu essa declaração, se ergueu rapidamente do colchão e foi à sala de banho. Não seria apropriado, pelo menos dessa vez, que sua mãe lesse o título do livro que estava escondendo. O que pensaria dela quando descobrisse que pegara um dos romances de Elizabeth? Que ficara louca! E talvez estivesse certa, porque nem ela sabia por que, depois do confronto com aquele maldito cavalheiro, queria encher a cabeça com bobagens.

—Não demore —Anne disse antes que sua irmã fechasse a porta.

—Não se preocupe, só quero esvaziar minha bexiga para que

possa enchê-la novamente com o que nossa mãe determinou que eu preciso.

—Mary Moore! —Sophia disse, colocando as mãos na cintura. Está zombando da mulher que lhe deu vida? Que a levou em sua barriga durante uns agonizantes nove meses e meio?

—Nove meses e meio? —Ela perguntou, levantando as sobrancelhas. —Posso confirmar que sou inteligente desde então. Sabia que o mundo era tolo o suficiente para uma mulher tão instruída quanto eu nascer nele ? hesitou antes de fechar a porta.

—Não sei o que fazei com ela! —Exclamou Sophia com raiva. --

Ninguém pode parar essa língua tão insolente!

—Não se aflija, mãe. Quando o homem de quem Madeleine falou aparecer, usará sua língua para outra coisa —disse Anne divertida.

-- Não diga bobagem, Anne Moore! Sua irmã não é como você!

E nesse momento se sentiu a mulher mais estúpida do mundo.

—Dessa vez será Shira quem a vestirá. Disse a ela que vestido deverá usar.

—Como? -- Perguntou atordoada. -- Não confia na minha escolha?

—Claro que não. Ultimamente mostra uma imagem bastante inapropriada. Então, a partir desse momento, aviso que, se levar uma peça de roupa sequer da cor laranja, abrirei seu armário enquanto estiver fora e

queimarei tudo o que me causar repulsa —disse severamente.

—Senhora... —a criada falou justamente quando Anne estava planejando dizer que não deveria ameaçá-la ou projetar nela a fúria que Mary criou.

—Vá em frente —disse a Sra. Moore.

Sophia foi até a porta quando Shira começou a procurar o vestido no armário, olhou para a filha, depois para a donzela e apontou:

—Que ela não arrume o cabelo sozinha. Eu quero que a penteie e não faça aquele coque absurdo que insiste em usar. Deixe alguns fios em seus ombros, mas não esconda seu rosto.

—Sim, senhora —Shira confirmou, pegando o vestido escolhido e caminhando para a moça.

Anne, quando descobriu o vestido que deveria usar, olhou de lado para a mãe, que estava imóvel na porta, e apertou os lábios para não responder. Por que tinha decidido arrumá-la como se estivesse indo para uma festa? Não estava ciente de que ia mostrar ao visconde uma imagem errônea? Não pretendia seduzi-lo com o decote oferecido por aquele vestido rosa pastel, nem que se distraísse observando alguns cachos tocavam a pele de seus ombros levemente. Ela precisava que ele falasse sobre o acordo, ponderar se estava interessada ou não e sair de lá o mais rápido possível.

—Mary Moore! Saia do banho de uma vez ou queimarei seus

livros na lareira da sala! —Sophia gritou ao perceber que estava demorando mais do que prometera.

—Como pode expressar tal heresia? —Respondeu a jovem, abrindo a porta rapidamente.

—Porque sabe que farei —respondeu com firmeza.

—Pelo amor daquele Deus que constantemente evoca! —Mary exclamou, enquanto levava as mãos para os rolos. Hoje não consigo nem urinar tranquila?

-- Urin... o que? —Shira perguntou, olhando para a segunda das irmãs duramente enquanto observava como tirava os rolos metálicos de forma inadequada.

-- Urinar —Mary repetiu, caminhando até o armário. —A função que alguns seres vivos realizam para esvaziar o que nós contemos em nossa bexiga —ela acrescentou. —As mulheres têm um...

—Nem pense mais em falar sobre esse assunto! —Sophia esbravejou horrorizada. —Não é hora de falar sobre um assunto tão efêmero.

—Disse efêmero? —Mary retrucou, virando-se para a mãe com um sorriso de orelha a orelha. —Oh! O que meus ouvidos captaram? Posso concluir que tudo ainda não está perdido nesta família? —Continuou zombando.

—Mary Moore —Sophia começou a dizer, caminhando

lentamente até a sua segunda filha. —Realmente acredita que a inteligência que possui vem do seu pai?

—De quem mais? —Ela respondeu arrogantemente.

—Pois está errada...

—Não tenho tanta certeza. De acordo com alguns estudos que tenho...

Ela ficou em silêncio quando sua mãe levantou um dedo da mão direita.

—Elimine tudo o que tem nessa cabeça teimosa e seja, por uma vez, uma mulher respeitável. Quero que se comporte corretamente na casa do visconde hoje. Se Anne me informar que causou uma briga, usarei todos os meus encantos de mulher para seu pai concordar em excluí-la de suas próximas reuniões médicas —garantiu, colocando as mãos na cintura.

—O papai não aceitará isso —desafiou, apertando os olhos. --

Ele, melhor do que ninguém, ama minhas réplicas e não vai querer perder como sua filha erudita destrói qualquer abordagem masculina irracional.

—Acho que não teria tanta certeza. Porque, uma vez que feche a porta do nosso quarto, ele fará tudo o que eu pedir —disse mordazmente.

—Por favor! —Mary disse, revirando os olhos. —Joga com vantagem!

-- E? —Sophia insistiu sem reduzir seu tom de voz cruel.

—Não vou demorar mais um minuto! —Afirmou caminhando até Foderhy, a donzela encarregada de atendê-la e que esperava do lado de fora do quarto até que a discussão entre mãe e filha tivesse terminado.

Enquanto Shira ajustava o vestido para Anne, Mary não parou de reclamar sobre como a vida era injusta para ela. Murmurava sobre sua felicidade e sobre a única coisa que precisava para alcançá-la: viver cercada de livros sem que ninguém a interrompesse. Mas Anne mal a ouvia. Estava profundamente envolvida em seus próprios pensamentos. Ficou se perguntando por que sua mãe tentou dar a ela um visual tão elegante e tão diferente do que queria ter. Por que proibiu a cor laranja se sabia que ela amava? Se existia uma tonalidade que pudesse defini-la com exatidão era essa. Não só expressava um caráter alegre, mas também mostrava ao mundo que ela não se importava com a opinião que tinham sobre ela. Ou não era assim?

—Prenda a respiração —Shira pediu a Anne enquanto ajustava os laços nas costas.

-- Se achar melhor, pare de respirar por alguns minutos para ver o que acontece —Mary comentou mordaz quando ouviu as palavras da donzela.

—Não preste atenção nela —Anne interveio. —É que ela ainda não tomou o café que nossa mãe lhe prometeu.

—Oh, desculpe-me! —Foderhy disse, afastando as mãos do vestido de Mary e levando-as à boca. —Deixei no aparador do corredor.

—Frio! —Disse Mary, caminhando pelo quarto. —Terei que tomar frio!

—Eu... eu... sinto muito, senhorita Moore —disse a donzela angustiada.

—Não se preocupe, vai tomá-lo de qualquer maneira —disse Anne depois de caminhar até o banquinho em frente à penteadeira.

Agora era a vez do penteado. Shira obedeceria a ordem de sua mãe sem questionar. Então, quando terminasse com ela, estaria pronta para participar para uma festa em vez de ir a uma reunião com o visconde.

—Nós continuamos com a batalha? —Mary perguntou quando ela apareceu no quarto.

Uma hora depois, as duas irmãs saíram do quarto, caminharam lentamente pelo corredor, ainda olhando uma para a outra e, assim que chegaram à escada, mostraram o melhor sorriso quando viram Sophia esperando na porta.

—Nós parecemos adequadas? —Perguntou Mary com certa animosidade: —Ou quer que voltemos para mudar?

—Só precisam de uma coisa —respondeu a mãe, ignorando o comentário mordaz de sua filha: —Esta manhã está bastante fria —disse

Sophia depois de abrir a porta e sentir uma leve brisa vinda de fora. --

Coloquem seus casacos e peguem seus regalos.

—As luvas vão manter minhas mãos aquecidas —Mary comentou enquanto Shira a ajudava a vestir o casaco. —Se colocar o regalo, vão suar como se estivéssemos no meio do verão.

—Anne? —Sophia perguntou, levantando a sobrancelha esquerda.

—Acho o mesmo que Mary -- respondeu.

—Não demorem muito quando saírem da residência do visconde. Como podem imaginar, todos estaremos sem viver até que saibamos o que quer —disse Sophia, afastando-se um pouco da porta.

—Sim, mãe —responderam em uníssono.

Depois que as duas beijaram Sophia na bochecha, foram para fora, onde o cocheiro estava esperando por elas. A primeira a entrar foi Anne e Mary a seguiu depois de um rápido olhar para a entrada da casa e confirmar que a mãe ainda se agarrava à maçaneta da porta, olhando para elas.

—Espero que a reunião seja curta —disse Mary quando o cocheiro atiçou os cavalos. —Porque estou na melhor parte do livro.

—O que está lendo agora, Mary? —Anne perguntou depois de estender o vestido no banco.

—É.... se trata... —Ela hesitou por alguns segundos. -- É um

artigo sobre os procedimentos antissépticos que o Dr. Semmleweis explicou

—mentiu.

Era melhor do que contar a verdade. O que Anne pensaria se ela confessasse que estava lendo Orgulho e Preconceito? Talvez seu coração tenha finalmente despertado daquela letargia a qual o submetera e começasse um discurso sobre o tratamento adequado de um cavalheiro. Então, para não ouvir um assunto tão absurdo, decidiu continuar oferecendo a imagem de uma mulher racional. Nenhuma de suas irmãs deveria suspeitar que, depois de descobrir a reação absurda do cavalheiro loiro de olhos azuis, ela decidiu investigar, cientificamente, sobre a mente dos homens. No entanto, uma vez que foi até a biblioteca e revisou livro por livro todos os acordos científicos sobre o cérebro humano, visitou a seção de livros de Elizabeth e escolheu o que aparentemente, descrevia muito bem seu caráter e atitude do titã alemão.

—E, por que está tão intrigada com esse médico? —Anne insistiu, inclinando-se levemente.

—Porque se estiver certo, muitas doenças que aparecem após o parto podem ser evitadas com um simples ato de limpeza antes de serem atendidas. Segundo sua teoria, há microrganismos em nossas mãos —tirou as luvas e as mostrou para Anne —que podem ser transmitidos, até mesmo por um leve carinho, e se tornarem mortais. Com isso, recomendo que nunca tire suas luvas. Alguém poderia alisar sua mão e envenená-la sem estar

consciente —disse sarcasticamente enquanto as cobria novamente.

—Pelo amor de Deus, Mary! Se tiver razão, todos deveríamos cobrir o corpo com uma luva gigante —exclamou Anne, lamentando por perguntar.

—Seria suficiente que as costureiras fizessem peças de roupas que cobrissem nossas cabeças e, como uma dica, elas deveriam rasgar o tecido ao redor dos olhos. Desta forma, poderíamos ver o que temos diante de nós e evitar nos infectar de doenças que...

—Chega! Não continue! Prefiro me infectar com mil insetos desses que diz a cobrir meu corpo com esse tipo de roupa —resmungou antes de desviar o olhar de sua irmã para fixá-lo na janela.

Sua mãe realmente havia escolhido bem ao elegê-la como acompanhante? Bem, estava errada! O que Mary faria depois de ler algo tão absurdo? Rejeitaria a saudação do visconde quando pensasse que seus lábios poderiam transmitir algum tipo de doença? Começaria uma conversa sobre todos os prós e contras que envolveria uma saudação cortês? Anne fechou os olhos e bufou. Sem dúvida, o desastre estava do seu lado. Ela apenas rezou para que o visconde falasse sobre o que pensara antes de expulsá-las de sua residência.

Quando a carruagem parou, ela abriu os olhos e focou em Mary. Esta continuava com o olhar perdido, pensando em algo que a fez

relembrar porque apresentava uma cara muito azeda. Sem querer descobrir o que estava causando aquela amargura, ela agarrou o vestido e desceu quando o cocheiro abriu a porta para ela. Então, Mary desceu, e, como ela deduziu, não aceitou a mão do criado porque não usava luvas.

—Por Cristo! —Mary exclamou ao olhar para a casa do visconde. —É linda!

—Como todas as que possuem os aristocratas -- disse Anne com desdém.

—Bem, eu passaria muito tempo nessa área do jardim —disse ela, apontando com o queixo para uma gangorra branca colocada ao lado de uma fonte redonda de mármore escuro.

—Com um livro? —Disse a mais velha sarcasticamente.

—Com centenas! —Mary respondeu depois de esfregar as mãos.

Durante a curta caminhada que fizeram da entrada até a porta da frente, ambas permaneceram em silêncio, observando atentamente a residência do visconde. Mas quando elas subiram as escadas e Anne estava prestes a bater para que abrisse, ela se virou para a irmã e disse:

—Se comporte adequadamente.

—Prometi

mil

vezes

que

eu

vou

—comentou

desesperadamente. —O que aconteceu ontem não teve nada a ver com lorde Bennett, mas com aquele arrogante e rude Sr. Giesler. Oh, não me perdoe,

soube que ele é um barão... bem, lorde imbecil Giesler!

—Só agiu como qualquer pessoa faria em seu lugar ao vê-la daquela forma —disse Anne, repreendendo-a.

—Se lembra que ele me chamou de bruxa? —Mary murmurou, franzindo a testa e cerrando os punhos. -- Ele vai engolir suas palavras! Algum dia ele vai engolir essas malditas palavras! —Sentenciou.

—Mary, pelo amor de Deus! -- Anne exclamou, revirando os olhos.

—Se Deus existisse, o que eu me recuso a acreditar, me dará a oportunidade de encontrá-lo novamente e farei com que ele pague por toda palavra desdenhosa que me ofereceu -- declarou ela solenemente. O único arrependimento que sinto é que não tinha pedras em vez de alguns bobes miseráveis. Eu o teria apedrejado naquele momento.

—O papai a trancará no quarto se tentar assustá-lo de novo.

—Aceitarei de bom grado essa punição, se me permitir encher o quarto com livros que vão apaziguar a minha solidão —disse ela, sorrindo maliciosamente.

—Talvez devesse recusar ler por várias semanas, então aprenderá a se comportar -- Anne a repreendeu enquanto pegava a aldrava para chamar.

—Se por acaso sugerir essa opção, vou dizer ao papai que

finalmente acredito na ideia absurda da maldição e que a melhor coisa para todos nós é matar dez galos e banhá-la com seu sangue —ameaçou.

—Não se atreveria? -- Perguntou, arregalando os olhos.

—Me teste —disse severamente.

—Boa tarde, senhoras. Que desejam? —Kilby as cumprimentou depois de abrir a porta. Primeiro olhou para uma e depois para a outra. As duas mulheres eram muito parecidas, embora uma delas, a que tinha olhos castanhos, mostrasse um semblante mais amável. No entanto, a outra, que tinha belos olhos azuis, exibia uma dureza no rosto mais parecida com um burro do que com uma dama.

—Boa tarde, somos as senhoritas Moore. O visconde nos espera

—disse depois de respirar e encontrar alguma calma.

—Entrem, por favor —respondeu o mordomo, afastando-se da entrada. -- Se forem amáveis em me dar seus casacos.

—Claro —respondeu Anne, desfazendo os botões.

—Uma manhã fresca, certo? —Kilby perguntou gentilmente às duas mulheres.

—Não tão fresca quanto poderíamos ter se vivêssemos no Polo Norte, mas sim, é um pouco frio para os corpos fracos da aristocracia de Londres —respondeu Mary, incapaz de desviar o olhar da residência do visconde.

—Desculpe minha irmã —disse Anne rapidamente. —Ela odeia o frio e, como pode ver, não senta bem a sua cabeça.

Com esse comentário, Kilby suavizou o rosto e olhou com compaixão para a mais velha das duas irmãs. No entanto, quando Mary ofereceu-lhe o casaco, ele o segurou como se tivesse piolho.

—Se forem gentis em me seguir, o visconde as espera na biblioteca.

E então Mary sentiu mil borboletas se agitarem em seu estômago.

Seus olhos brilhavam de emoção e um sorriso cruzou seu rosto. Como seria a biblioteca do visconde? Ele seria um homem culto? Teria lido todos os livros que guardava nas prateleiras? Permitiria que ela lesse enquanto os dois falavam sobre esse acordo? Ela esfregou as mãos, como uma menininha prestes a abrir um presente, olhou para Anne e fez seu sorriso crescer ainda mais.

—Esse visconde parece agradável —murmurou.

—Como pode declarar isso, se ainda não conheceu? —Anne respondeu, estreitando os olhos.

—Apenas ter citado a biblioteca, tem minha absoluta aprovação.

—Mas não disse que odeia homens? Que todos se parecem com jumentos com orelhas curtas? —Murmurou.

—Bem, mas esse parece diferente. Além disso, não procuro um

marido para humilhar por causa do meu grande intelecto. Tudo o que quero é uma boa biblioteca para passar o tempo e, se o visconde a possui, estarei encantada em oferecer-lhe a sua mão —sussurrou.

—Mary! —Exclamou indignada em voz baixa. —Isso não posso esconder de nossa mãe!

—Lembre-se dos galos... —lembrou antes de esticar as costas e caminhar serenamente para o lugar mais idílico para ela.

 

 

 


CONTINUA