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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MÃO ESQUERDA DE DEUS / Paul Hoffman
A MÃO ESQUERDA DE DEUS / Paul Hoffman

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

"Preste atenção. O Santuário dos Redentores no Penhasco de Shotover deve seu nome a uma grande mentira, pois há pouca redenção naquele lugar e ele tampouco serve de refúgio divino."
Com esse alerta que o inglês Paul Hoffman começa A Mão Esquerda de Deus, um livro sombrio e cheio de mistério. Estréia do autor no romance aventura, a obra vem sendo divulgada no exterior como um “novo Harry Potter”, muito embora o autor não recorra a elementos sobrenaturais nem raças não-humanas em sua narrativa.
O cenário da trama é desolador. Habitado por meninos que foram levados para lá muito novos e geralmente contra a sua vontade, o Santuário dos Redentores é uma mistura de prisão, monastério e campo de treinamento militar.
Lá, esses milhares de garotos são submetidos a uma sádica preparação para lutar contra hereges que vivem nas redondezas. A intenção dos Lordes Opressores, os monges que protegem o lugar, é fortalecer os internos tanto física quanto emocionalmente, preparando-os para uma monstruosa guerra entre o bem e o mal.
Entre os jovens está Thomas Cale. Não se sabe ao certo se ele tem 14 ou 15 anos ou como foi parar ali. O que se sabe é que Thomas tem uma capacidade incomum de matar pessoas e organizar estratégias de combate. Essas poderosas habilidades serão colocadas à prova quando ele e dois amigos testemunham um brutal assassinato entre os corredores labirínticos da prisão.
A visão do crime dá início a uma perseguição desesperadora e, finalmente fora dos muros do monastério, Cale irá compreender a extensão da crueldade dos lordes e a verdadeira origem de seu poder.


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Preste atenção. O Santuário dos Redentores no Penhasco de Shotover deve seu nome a uma grande mentira, pois há pouca redenção naquele lugar e ele tampouco serve de refúgio divino. A região à sua volta é coberta de arbustos rasteiros e vegetação mirrada e você mal consegue notar a diferença entre verão e inverno, o que quer dizer que faz sempre um frio de rachar a qualquer época do ano. É possível ver o Santuário propriamente dito a quilômetros de distância — quando não está encoberto por uma neblina imunda, o que é raro —, com sua estrutura de sílex, concreto e farinha de arroz. A farinha deixa o concreto mais duro do que pedra, e esse é um dos motivos que possibilitaram à prisão — pois é isso que ele é na verdade — resistir às várias tentativas de conquista, agora consideradas tão inúteis que há centenas de anos ninguém tenta tomar o Santuário de Shotover.
Trata-se de um lugar fedorento e asqueroso ao qual somente os Lordes Redentores vão por livre e espontânea vontade. Quem seriam seus prisioneiros, então? Essa, na realidade, é a palavra errada para os que são levados para Shotover, pois sugere a existência de um crime, e nenhum deles transgrediu qualquer lei feita por Deus ou pelos homens. Eles também são diferentes de qualquer prisioneiro que você tenha visto antes: somente garotos com menos de 10 anos são levados para lá.
Dependendo da idade em que entram, podem demorar mais de 15 anos para sair e, mesmo assim, apenas metade deles chega a tanto. A outra metade é despachada dentro de sacos azuis para ser enterrada em Ginky’s Field, um cemitério que começa atrás dos muros. O cemitério é amplo, estendendo-se a perder de vista, o que talvez possa lhe dar uma idéia do tamanho de Shotover e de como é difícil simplesmente continuar vivo ali. Ninguém conhece toda a sua geografia e é tão fácil se perder em meio aos seus corredores intermináveis e sinuosos quanto em um deserto. Isso é agravado pelo fato de não haver mudança na paisagem — cada lugar é praticamente idêntico ao outro: marrom, escuro, sinistro e com cheiro de coisa velha e rançosa.
Parado em um desses corredores, um garoto olha pela janela, segurando um saco azul-escuro grande. Tem algo entre 14 ou 15 anos de idade. Nem ele nem ninguém sabe ao certo. Já não recorda como se chama de verdade, pois todos os que chegam ali são rebatizados com o nome de um dos mártires dos Lordes Redentores — que são muitos, uma vez que, desde tempos imemoriais, todos os que eles não conseguiram converter os odeiam profundamente. O menino que olha pela janela se chama Thomas Cale, embora ninguém jamais use seu primeiro nome e ele esteja cometendo um pecado gravíssimo por fazê-lo.
O que o atraiu para a janela foi o som do Portão Noroeste rangendo como sempre rangia nas raras vezes em que era aberto, como o gemido de um gigante com os joelhos terrivelmente doloridos. Ele ficou olhando enquanto dois Lordes com suas batinas negras atravessavam o portal, conduzindo um garotinho de cerca de 8 anos seguido por outro um pouco mais jovem e por um terceiro. Cale contou vinte ao todo antes que outra dupla de Redentores chegasse por último e o portão novamente se fechasse, lenta e artriticamente.
A expressão de Cale mudou à medida que ele se inclinava para a frente, tentando enxergar as Terras Crestadas que se estendiam para além do portão que se fechava. Ele havia estado do lado de fora dos muros apenas seis vezes desde que chegara ali, mais de uma década atrás — a criança mais jovem já trazida para o Santuário, pelo que diziam. Nas seis, tinha sido protegido como se as vidas dos guardas dependessem disso (o que era verdade). Se tivesse fracassado em algum desses seis testes — pois eles não eram outra coisa —, teria sido morto no ato. Da sua vida pregressa, Cale não tinha lembrança.
Quando o portão se fechou, ele tornou a focar sua atenção nos meninos. Nenhum deles era gorducho, mas tinham os rostos arredondados de crianças pequenas. Todos ficaram de olhos arregalados ao verem a fortaleza, com seu tamanho descomunal e muros enormes. No entanto, embora estivessem perplexos e intimidados pela simples estranheza do ambiente, não sentiam medo.
O peito de Cale se encheu de emoções profundas e estranhas que ele não conseguia nomear. Contudo, por mais que estivesse entregue a elas, sua habilidade de manter uma orelha em pé para qualquer coisa que acontecesse ao seu redor o salvou, como tantas vezes no passado.
Ele se afastou da janela e desceu o corredor.
— Você! Espere!
Cale parou e deu meia-volta. Um dos Redentores, enorme de gordo, com dobras de pele pendendo sobre o colarinho, estava parado em um dos portais ao longo do corredor. Vapores e sons estranhos saíam do aposento às suas costas. Cale olhou para ele, sua expressão inalterada.
— Venha cá e deixe-me ver seu rosto.
O menino andou na direção dele.
— Ah, é você — disse o Redentor gordo. — O que está fazendo
aqui?
— O Lorde Disciplinador me mandou levar isto até o tímpano. — Ele ergueu o saco azul que estava carregando.
— O que você disse? Fale pra fora!
É claro que Cale sabia que o Redentor gordo era surdo de um ouvido e falara baixinho de propósito.
Cale repetiu a frase, desta vez gritando a plenos pulmões.
— Está dando uma de engraçadinho, menino?
— Não, Redentor.
— O que você estava fazendo na janela?
— Na janela?
— Não pense que eu sou idiota. O que estava fazendo?
— Eu ouvi o Portão Noroeste sendo aberto.
— É mesmo, por Deus?
Isso pareceu distraí-lo.
— Estão adiantados — resmungou ele, contrariado, virando-se e olhando de volta para a cozinha, pois era isto que era o gordo: o Lorde dos
Víveres, supervisor da cozinha que alimentava com fartura os Redentores e mal dava de comer aos meninos. — Temos mais vinte para jantar — gritou para a fumaça malcheirosa às suas costas. Ele se voltou para Cale.
— Você estava pensando enquanto estava naquela janela?
— Não, Redentor.
— Estava sonhando acordado?
— Não, Redentor.
— Se pegar você vadiando novamente, Cale, eu vou arrancar seu couro. Entendido?
— Sim, Redentor.
O Lorde dos Víveres se virou para entrar na cozinha e começou a fechar a porta. Ao mesmo tempo, Cale falou baixinho, porém muito claramente, de modo que qualquer pessoa sem problemas de audição poderia ter ouvido:
— Morra engasgado, seu dritsek cheio de banha.
O Redentor bateu a porta e Cale voltou a descer o corredor, arrastando o saco grande atrás de si. Levou quase 15 minutos, correndo por boa parte do caminho, até chegar ao tímpano, localizado ao final de um pequeno corredor à parte. Ele era chamado assim porque parecia mesmo um tímpano, desconsiderando-se o fato de ter 1,80m de altura e estar embutido em uma parede de tijolos. Do outro lado dele, havia um ambiente isolado do restante do Santuário onde, segundo boatos, viviam 12 freiras que cozinhavam somente para os Redentores e lavavam suas roupas. Cale não sabia o que era uma freira e nunca tinha visto nenhuma, embora de vez em quando falasse com uma delas através do tímpano. Ele não sabia o que diferenciava as freiras das outras mulheres, das quais raramente se falava e, mesmo assim, sempre com repulsa.
Havia duas exceções: a Irmã Sagrada do Redentor Enforcado e a Santa Imelda Lambertini que, aos 11 anos de idade, havia morrido de êxtase durante sua primeira comunhão. Os Redentores não explicavam o que significava êxtase e ninguém era idiota de perguntar. Cale rodou o tímpano, que girou sobre o próprio eixo, revelando uma grande abertura. Ele largou o saco azul lá dentro e o rodou novamente. Então, bateu na sua
parede, fazendo-o ressoar com força. Aguardou trinta segundos e então uma voz abafada falou do outro lado da parede.
— O que foi?
Cale aproximou a cabeça do tímpano para ser ouvido, seus lábios quase tocando a parede.
— O Redentor Bosco quer este aqui de volta amanhã de manhã — gritou ele.
— Por que não veio com os outros?
— Como você quer que eu saiba?
Ouviu-se um grito agudo e abafado de raiva vindo do outro lado do tímpano.
— Qual o seu nome, fedelho herege?
— Dominic Savio — mentiu Cale.
— Bem, Dominic Savio, eu vou denunciar você ao Lorde Disciplinador e ele vai tirar o seu couro.
— Estou pouco me lixando.
Vinte minutos depois, Cale estava de volta à sala de treinamento do Lorde da Guerra. Ela estava vazia, com exceção do próprio Lorde, que não ergueu os olhos ou deu qualquer sinal de ter visto Cale. Ele continuou escrevendo em seu livro-razão por mais cinco minutos antes de falar, com os olhos ainda baixados.
— Por que você demorou tanto?
— O Lorde dos Víveres me parou no corredor da ala externa.
— Por quê?
— Acho que ele ouviu um barulho lá fora.
— Que barulho? — perguntou o Lorde da Guerra, olhando finalmente para Cale. Seus olhos eram de um azul-claro, quase cristalino, mas afiados. Não deixavam muita coisa passar. Ou nada.
— O Portão Noroeste estava sendo aberto para a entrada dos novatos. Ele não esperava que fossem chegar hoje. Me parece que ficou de ovo virado.
— Controle sua língua — disse o Lorde da Guerra, embora tenha falado com brandura, considerando a rispidez habitual. Cale sabia que ele detestava o Lorde dos Víveres e, por isso mesmo, achava menos perigoso se referir a um Redentor naqueles termos.
— Eu perguntei ao seu amigo sobre o boato de que eles haviam chegado — disse o Redentor.
— Eu não tenho amigos — respondeu Cale. — É proibido.
O Lorde da Guerra deu uma risadinha; um som nada agradável.
— Você não me preocupa nesse sentido, Cale. Mas, já que precisa ser difícil: o loiro magricela. Como vocês o chamam?
— Henri.
— Eu sei o nome de batismo dele. Mas vocês lhe deram um
apelido.
— Nós o chamamos de Henri Embromador.
O Lorde da Guerra riu, porém, desta vez podia se ouvir o eco de um bom humor normal.
— Muito bem — disse ele, satisfeito. — Eu lhe perguntei a que horas os novatos chegariam e ele disse que não sabia ao certo, em algum momento entre as oito e as nove badaladas. Então, quis saber quantos viriam e ele respondeu por volta de 15, talvez mais. — Ele fitou dentro dos olhos de Cale. — Eu lhe dei uma surra para ele aprender a ser mais específico da próxima vez. O que você acha disso?
— Não faz diferença para mim, Redentor — respondeu friamente Cale. — Ele mereceu qualquer castigo que o senhor tenha aplicado.
— É mesmo? Que gratificante você pensar dessa forma. A que horas eles chegaram?
— Pouco antes das cinco.
— Quantos?
— Vinte.
— De que idade?
— Nenhum com menos de 7 e nenhum com mais de 9.
— De que raças?
— Quatro mezos, quatro uitlanders, três folders, cinco mestiços, três miamis e um que não consegui identificar.
O Lorde da Guerra grunhiu como se estivesse apenas ligeiramente satisfeito que todas as suas perguntas tivessem sido respondidas com tanta precisão.
— Vá até a mesa. Preparei um enigma para você. Dez minutos.
Cale se encaminhou para uma mesa grande, de 6 x 6 metros, sobre a qual o Lorde da Guerra havia desenrolado um mapa que caía um pouco pelas beiradas. Era fácil reconhecer algumas das coisas desenhadas nele — colinas, rios, florestas —, porém, no restante do espaço, havia diversos bloquinhos de madeira com números e hieróglifos escritos, alguns em ordem e outros aparentemente misturados. Cale analisou o mapa pelo tempo que lhe foi concedido, erguendo os olhos em seguida.
— E então? — disse o Lorde da Guerra.
Cale começou a montar sua solução.
Vinte minutos depois havia acabado, suas mãos ainda estendidas diante do corpo.
— Muito engenhoso. Impressionante, até — disse o Lorde da
Guerra.
Algo mudou nos olhos de Cale. Então, com uma velocidade extraordinária, o Redentor açoitou a mão esquerda do menino com um cinto de couro salpicado de tachinhas minúsculas, porém grossas.
Cale se encolheu e seus dentes trincaram de dor. No entanto, logo seu rosto retornou à frieza vigilante habitual, a única coisa que o Redentor via nele ultimamente. O Lorde da Guerra se sentou, analisando o menino como se ele fosse um objeto ao mesmo tempo interessante e insatisfatório.
— Quando você vai aprender que fazer a coisa mais inteligente, mais original, significa apenas estar à mercê do seu próprio orgulho? Essa solução pode funcionar, porém, é arriscada demais. Você conhece muito bem a solução consagrada para este problema. Na guerra, uma vitória insossa é sempre melhor do que uma vitória brilhante. Já está na hora de você começar a entender por quê.
Ele esmurrou a mesa, furioso.
— Você se esqueceu que um Redentor tem o direito de matar no ato qualquer menino que faça algo de inesperado?
Ouviu-se outro estrondo quando ele esmurrou a mesa novamente, levantando-se e fuzilando Cale com o olhar. Um pouco de sangue pingava dos quatro buracos na mão esquerda ainda estendida do menino.
— Nenhum dos outros o trataria com tanta condescendência quanto eu. O Lorde Disciplinador está de olho em você. De tempos em tempos, ele gosta de dar um exemplo. Você quer terminar como um Ato de Fé?
Cale ficou olhando para a frente, sem dizer uma palavra.
— Responda!
— Não, senhor.
— Você se acha importante, seu Zed inútil?
— Não, senhor.
— É minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa — disse o Lorde da Guerra, batendo três vezes no peito com a mão. — Você tem 24 horas para refletir sobre seus pecados e então irá se humilhar perante o Lorde Disciplinador.
— Sim, Redentor.
— Agora saia daqui.
Largando as mãos dos lados do corpo, Cale deu meia-volta e andou até a porta.
— Não sangre no tapete — falou o Lorde da Guerra enquanto ele ia embora.
Sozinho no seu cubículo, o Redentor ficou observando a porta se fechar. Quando ouviu o clique do trinco, a raiva mal contida em seu rosto se transformou em curiosidade reflexiva.
No corredor, Cale ficou parado por um instante sob a luz marrom tenebrosa que infestava todas as partes do Santuário e examinou sua mão esquerda.
As feridas não eram profundas porque as tachas no cinto eram feitas para causar dor intensa sem que os machucados demorassem a sarar. Ele cerrou a mão em um punho e a apertou; à medida que o sangue pingava em gotas pesadas no chão, sua cabeça tremia como se um pequeno terremoto estivesse acontecendo no fundo do seu crânio. Então, relaxou a mão e, sob a luz sinistra, uma expressão de desespero atroz atravessou seu rosto. No instante seguinte ela havia desaparecido e Cale continuou descendo o corredor, sumindo de vista.
Nenhum dos meninos no Santuário sabia quantos iguais a eles havia ali. Alguns diziam que o número chegava a 10 mil e crescia a cada mês. Mesmo entre os que beiravam os 20 anos de idade, havia um consenso que, antes dos últimos cinco anos, o número, fosse ele qual fosse, permanecera constante. No entanto, desde então ele vinha crescendo. Os Redentores haviam mudado sua maneira de agir, o que por si só era estranho, além de mau sinal: velhos hábitos e conformidade com o passado eram para eles tão naturais quanto o ar que se respira. Cada dia deveria ser como o dia seguinte e cada mês como o mês seguinte. Um ano jamais deveria ser diferente do outro. Contudo, o aumento significativo no número de meninos exigira mudanças. Os dormitórios tinham sido reformados com
beliches de dois e até mesmo três catres para acomodar os recém-chegados. Os cultos divinos eram realizados por escalas, de modo que todos pudessem rezar e receber os conselhos contra a danação todos os dias.
Também as refeições passaram a ser feitas em turnos. Porém, os meninos não faziam idéia dos motivos por trás dessas mudanças.
Cale, com a mão esquerda envolvida em um pedaço de linho sujo que os lavadores de pratos haviam jogado fora, atravessou o refeitório imenso para a segunda refeição do dia carregando uma bandeja de madeira. Atrasado, mas não muito, caso contrário teria sido surrado e expulso dali, ele seguiu em direção à mesa grande no fim do salão, onde sempre comia. Parou atrás de outro menino, aproximadamente da mesma idade e altura que ele, mas tão concentrado em comer que não percebeu Cale em pé às suas costas. Só se deu conta quando viu que os outros meninos à mesa estavam com as cabeças levantadas. Ele ergueu os olhos.
— Desculpe, Cale — disse ele, empurrando os restos de comida para dentro da boca ao mesmo tempo que saía de trás do banco e se apressava em ir embora, carregando sua bandeja.
Cale se sentou, olhando para o seu jantar: havia algo nele que parecia uma salsicha, mas não era, coberto por um molho aguado junto com algum tubérculo indeterminável, embranquecido após ferver eternamente em uma papa amarelada e anêmica. Em uma tigela ao lado daquilo, havia mingau — gelatinoso, frio e cinza como neve derretida de uma semana atrás. Por um instante, apesar de faminto, ele não conseguiu se forçar a comer. Então alguém abriu caminho aos empurrões até o assento ao seu lado. Cale não olhou para o menino, mas começou a atacar a comida. Somente depois de uma pequena mordida com o canto da boca ele descobriu o que era aquela coisa nojenta.
O menino que se acotovelara para sentar ao seu lado começou a falar, mas com uma voz tão baixa que somente Cale conseguia ouvir. Não era prudente ser pego conversando com outro menino durante as refeições.
— Eu descobri uma coisa — disse o menino, a empolgação clara na sua voz, embora ela fosse quase inaudível.
— Bom para você — respondeu Cale com frieza.
— Uma coisa maravilhosa.
Desta vez, Cale não demonstrou reação alguma, concentrandose em mandar o mingau goela abaixo sem ter engulhos. O menino fez uma pausa.
— Eu encontrei comida. Do tipo que dá pra comer. — Cale mal ergueu a cabeça, mas isso bastou para que o menino ao seu lado soubesse que tinha vencido.
— Por que eu deveria acreditar em você?
— Henri Embromador estava comigo. Nos encontre às sete atrás do Redentor Enforcado.
Com essas palavras, o menino se levantou e foi embora. Cale ergueu a cabeça e uma expressão estranha de anseio tomou conta do seu rosto, tão diferente da máscara fria que ele geralmente mostrava para o mundo que o menino sentado à sua frente o encarou. — Você quer isso, não quer? — disse o menino, seus olhos brilhando de esperança como se a salsicha rançosa e o mingau verde-esbranquiçado oferecessem mais prazer do que a mente de Cale era capaz de vislumbrar.
Cale não respondeu ou olhou para o menino, mas voltou a comer, forçando-se a engolir e tentando não passar mal.
Quando terminou, ele levou a bandeja de madeira ao lavadouro e a esfregou na bacia com areia, devolvendo-a à sua prateleira. Enquanto saía, observado por um Redentor sentado em uma cadeira alta imensa da qual podia inspecionar o refeitório, Cale se ajoelhou diante da estátua do Redentor Enforcado, bateu três vezes no peito e murmurou: “Eu sou um Pecado, eu sou um Pecado, eu sou um Pecado”, sem dar a menor atenção ao significado dessas palavras.
Estava escuro lá fora, e a neblina noturna havia descido sobre o Santuário. Isso era bom; seria mais fácil para Cale passar despercebido pelo púlpito até os arbustos que cresciam atrás da grande estátua.
Quando chegou ali, Cale já não conseguia enxergar nem 5 metros diante do seu nariz. Ele desceu do púlpito até o caminho de cascalhos diante da estátua.
Aquele era o maior de todos os cadafalsos sagrados do Santuário, sendo que provavelmente havia centenas deles, alguns de não mais que poucos centímetros, pregados às paredes, montados em nichos,
decorando as tinas de cinzas sagradas ao final de cada corredor e nos vãos que encimavam cada porta.
Eles eram tão comuns e tão comentados que a imagem em si há muito perdera qualquer sentido. Ninguém, exceto pelos novatos, chegavam a notá-la pelo que era de fato: a representação de um homem pendurado numa forca com uma corda em volta do pescoço, seu corpo riscado pelas cicatrizes das torturas que antecederam a execução, suas pernas quebradas pendendo em um ângulo estranho no ar. Os cadafalsos sagrados do Redentor Enforcado feitos na época da fundação do Santuário, mil anos antes, eram toscos e tendiam a um realismo explícito: um terror nos olhos e no rosto, apesar da falta de habilidade do escultor; o corpo retorcido e devastado, a língua saltando da boca. Essa, segundo os escultores, era uma maneira terrível de se morrer.
Com o passar dos anos, as estátuas se tornaram mais requintadas, mas também mais insossas. A grande estátua, com suas forcas imensas, sua corda grossa e o messias de 6 metros de altura suspenso na ponta dela tinha apenas 30 anos de idade: os vincos nas suas costas eram salientes, porém, limpos e sem sangue. Suas pernas não estavam esmagadas de forma aflitiva, mas posicionadas como se ele estivesse sentindo câimbras. Contudo, o mais estranho era a expressão no seu rosto — em vez da dor do estrangulamento, ele transmitia uma espécie de santidade incomodada, como se um ossinho estivesse preso na sua garganta e ele estivesse tentando soltá-lo com uma tosse discreta.
No entanto, em meio à neblina e à escuridão daquela noite, a única coisa que Cale conseguia ver do Redentor eram os seus pés enormes suspensos na névoa branca. A estranheza daquilo o deixou apreensivo. Tomando cuidado para não fazer barulho, Cale se embrenhou nos arbustos que o ocultariam de qualquer um que passasse por ali.
— Cale?
— Sou eu.
Kleist, o menino do refeitório, e Henri Embromador surgiram de dentro dos arbustos à sua frente.
— É melhor que isso valha a pena o risco, Henri — sussurrou
Cale.
— Vale sim, Cale. Eu prometo.
Kleist gesticulou para Cale, chamando-o para entrar nos arbustos. Estava mais escuro ainda ali e Cale teve que esperar seus olhos se ajustarem. Os outros dois aguardaram. Então, uma porta surgiu diante deles.
Isso era espantoso — embora houvesse muitos portais no Santuário, quase não havia portas. Durante a Grande Reforma de duzentos anos atrás, mais da metade dos Redentores foi queimada na fogueira por heresia. Temendo que os apóstatas pudessem ter contaminado seus meninos, a seita vitoriosa dos Redentores os degolou para não correr nenhum risco. Uma vez reabastecidos de novos jovens, os Redentores fizeram muitas mudanças, e uma delas foi retirar todas as portas de qualquer parte do Santuário em que houvesse garotos.
Afinal, de que servem as portas onde existem pecadores? Portas escondem as coisas. Elas possibilitam vários comportamentos diabólicos, decidiram os Redentores, como guardar segredos e ficar sozinho ou na companhia de terceiros aprontando sabe-se lá o quê. O próprio conceito por trás de uma porta, pensando melhor, começou a fazê-los tremer de raiva e medo. Até o diabo já não era representado apenas como uma besta com chifres, mas também, e quase com a mesma freqüência, como um retângulo dotado de uma fechadura. É claro que essa antipatia em relação às portas não se aplicava aos próprios Redentores: a presença de uma delas em seus locais de trabalho e nos cubículos em que dormiam era, por si só, um sinal de redenção. Para eles, a santidade era medida pelo número de chaves que lhes era permitido carregar na corrente em volta da cintura. Se você tilintasse ao caminhar, seu lugar no céu já estava garantido.
É por isso que a descoberta de uma porta desconhecida era algo extraordinário.
À medida que seus olhos se habituavam à escuridão, Cale conseguia ver uma pilha de reboco despedaçado e tijolos esfarelados ao lado da porta.
— Eu estava me escondendo de Chetnik — disse Henri Embromador.
— Foi assim que achei este lugar. O reboco estava soltando naquele canto, então eu fui mexer nele enquanto esperava. Estava caindo aos pedaços de tão infiltrado. Não demorou nada pra sair.
Cale estendeu o braço em direção à beirada da porta e a empurrou com cuidado. Então a empurrou novamente. E novamente.
— Está trancada.
Kleist e Henri Embromador sorriram. O primeiro enfiou a mão no bolso e retirou algo que Cale nunca tinha visto aos cuidados de um menino — uma chave. Àquela altura, os olhos dos três estavam brilhando de entusiasmo. Kleist colocou a chave na fechadura e a girou, grunhindo por conta do esforço. Então, com um barulho surdo, ela se moveu.
— A gente passou três dias enchendo essa porta de graxa e tudo o mais para ela abrir — disse Henri Embromador, sua voz cheia de orgulho.
— Onde vocês conseguiram a chave? — perguntou Cale. Kleist e Henri Embromador estavam adorando o fato de Cale estar falando com eles como se tivessem ressuscitado os mortos ou caminhado sobre as águas.
— Eu conto depois que a gente entrar. Venham. — Kleist encostou o ombro na porta e os outros dois fizeram o mesmo. — Não empurrem com muita força, as dobradiças podem estar enferrujadas. Não queremos fazer barulho. Vou contar até três. — Ele fez uma pausa. — Preparados? Um, dois, três.
Eles empurraram e, com um rangido, a porta se moveu. Os três recuaram, sobressaltados. Ser ouvido era o mesmo que ser pego, e ser pego era o mesmo que sofrer só Deus sabia o quê.
— Nós podemos ser enforcados por isso — disse Cale. Os outros dois o encararam.
— Eles não fariam uma coisa dessas. Não um enforcamento. — falou Henri Embromador.
— O Lorde da Guerra me disse que o Disciplinador estava procurando uma desculpa para dar um exemplo. Já faz cinco anos desde o último enforcamento.
— Eles não fariam uma coisa dessas — repetiu Henri, chocado.
— Fariam, sim. Pelo amor de Deus, isto é uma porta. Vocês estão com uma chave. — Cale se voltou para Kleist. — Você mentiu para
mim. Não faz a menor ideia do que tem aí dentro. É provavelmente um beco sem saída, sem nada que valha a pena roubar e nada que valha a pena saber. — Ele se virou para encarar o outro menino. — Isso não vale o risco, Henri, mas o pescoço é seu. Eu estou fora.
Assim que ele começou a dar meia-volta, uma voz chamou do púlpito, irritada e impaciente.
— Quem está aí? Que barulho é esse?
Então, eles ouviram o som de um homem pisoteando o caminho de cascalhos em frente ao Redentor Enforcado.
2
Terror absoluto seria pouco se comparado ao que Kleist e Henri sentiram ao ouvirem aquele som e tomarem consciência da crueldade que os aguardava por serem tão burros — a multidão enorme e silenciosa aguardando sob a luz cinzenta, seus gritos a medida que eles eram arrastados para o cadafalso, a terrível espera de uma hora enquanto a Missa era realizada e, finalmente, a forca e os dois sendo atirados para baixo, sufocando e chutando o ar.
Cale, no entanto, já havia retornado a porta e, com um esforço silencioso, a ergueu das suas dobradiças em frangalhos, empurrando-a para a frente. Ele apanhou os dois garotos paralisados pelo ombro e os empurrou em direção à abertura. Uma vez que os dois estavam lá dentro, Cale se espremeu para entrar atrás deles e, com outro esforço monumental, fechou a porta as suas costas, novamente quase sem fazer barulho algum.
- Apareça agora mesmo! — A voz do homem soava abafada, porem nítida.
- Me dê a chave — disse Cale. Kleist a entregou para ele. Cale se voltou para a porta e tateou em busca da fechadura. Então, se deteve. Não sabia como usar uma chave. — Kleist! Faca você! — sussurrou ele. Kleist procurou a fechadura no escuro e enfiou a chave pesada nela.
- Sem barulho — disse Cale.
Com sua mão tremula ciente de que aquilo era uma questão de vida ou morte, Kleist girou a chave.
Ela rodou com o que lhes pareceu o estardalhaço de um martelo batendo em uma panela de ferro.
- Venha cá agora! — exigiu a voz abafada. Porém, Cale conseguia notar um quê de insegurança nela. Quem quer que estivesse lá fora na neblina não sabia bem o que tinha ouvido.
Eles esperaram. O silêncio quebrado apenas pelo leve chiado da respiração dos amedrontados. Por fim, conseguiram ouvir, bem baixinho, o barulho abafado de pés esmagando o cascalho à medida que o homem se afastava, o som desaparecendo rapidamente.
- Ele foi buscar os Patrulheiros.
- Talvez não — disse Cale. — Acho que era o Lorde dos Víveres. Ele é um gordo preguiçoso e não sabe direito o que ouviu. Poderia ter vasculhado os arbustos, mas não quis se dar o trabalho. Não vai se arriscar a chamar os Patrulheiros com seus cachorros quando não estava disposto nem a olhar atrás de algumas moitas para não ter que arrastar sua carcaça banhuda.
- Se ele voltar amanhã, quando estiver claro, vai encontrar a porta — disse Henri Embromador. — Mesmo se escaparmos agora, eles virão atrás da gente.
- Eles virão atrás de alguém e vão dar um jeito de encontrar, independente de a pessoa ser culpada ou não. Não tem nada que nos associe a este lugar. Alguém vai pagar o pato, mas não ha o menor motivo para sermos nós.
- E se ele tiver ido buscar ajuda? — perguntou Kleist.
- Destranque a porta e vamos sair daqui.
Kleist tateou a porta e foi descendo a mão ate a chave que saltava da fechadura. Tentou gira-la, mas ela não se mexeu. Tentou novamente. Nada. Então, a torceu com toda a sua força. Um estalo alto ressoou na escuridão.
- O que foi isso? — quis saber Henri Embromador.
- A chave — disse Kleist. — Ela quebrou na fechadura.
- O quê? — disse Cale.
- Está quebrada. Não dá pra gente sair. Não por aqui.
- Meu Deus! — praguejou Cale. — Seu cabeça-oca. Se conseguisse enxergar você eu torceria o seu pescoço.
- Deve haver outra saída.
- E como nos vamos encontrá-la neste breu? —- perguntou Cale com rispidez.
- Eu trouxe luz — disse Kleist. — Achei que a gente ia precisar
mesmo.
Por um instante, ouviu-se apenas o barulho de Kleist remexendo na sua batina, deixando cair algo no chão, apanhando-o de volta e remexendo na batina novamente. Então, com o auxilio de uma pederneira, ele acendeu faíscas sobre um punhado de limo seco. Logo ele pegou fogo e os outros dois viram Kleist encostando o pavio de uma vela a chama. Sem demora, a colocou dentro da sua redoma de vidro e os meninos puderam finalmente olhar a sua volta.
É verdade que não havia muito para se ver sob a luz da vela — a gordura animal derretida não oferecia mais que uma iluminação precária —, porém, a medida que os meninos corriam os olhos pelo local, logo ficou claro que aquilo não era uma sala, mas sim um corredor bloqueado.
Cale pegou a vela das mãos de Kleist e examinou a porta - O reboco não é tão velho. Tem no máximo alguns anos.
Algo fugiu correndo pelos cantos e os três pensaram na mesma coisa: ratos.
Os acólitos eram proibidos de comer ratos por motivos religiosos, mas pelo menos havia uma boa razão para esse tabu em especial — aqueles bichos eram doenças ambulantes. Ainda assim, os meninos consideravam a carne deles uma iguaria e tanto. Mas obviamente nem todo mundo podia ser um açougueiro de ratos. Tratava-se de uma habilidade muito prezada, que era transmitida do açougueiro para o aprendiz em troca apenas de objetos valiosos e favores. Os açougueiros de ratos eram discretos e cobravam metade do roedor pelos seus serviços — um preço tão caro que, vez por outra, alguns apanhadores resolviam dispensá-los e tentar preparar a carne por conta própria, geral-mente com resultados que incentivavam os demais a pagarem com satisfação. Kleist era um açougueiro treinado.
- Não temos tempo — disse Cale, percebendo o que estava passando pela cabeça do outro. — E não há luz o suficiente para preparar a carne.
- Eu consigo esfolar um rato no escuro — respondeu Kleist. — Quem sabe quanto tempo vamos ficar presos aqui? — Ele levantou a batina, tirando uma pedra grande de um bolso escondido na bainha. Mirou com atenção e a atirou na penumbra. Ouviu-se um guincho vindo do canto e um barulho terrível de correria. Kleist apanhou a vela de Cale e andou em direção ao som.
Enfiou a mão no bolso e, com muito cuidado, desdobrou um pedacinho de pano, usando-o para apanhar a criatura. Com um giro do punho, quebrou seu pescoço e a colocou no mesmo bolso.
- Depois eu termino.
- Isto aqui é um corredor — disse Cale. — Devia dar em algum lugar antes. Talvez ainda dê. — Como estava com a vela, Kleist liderou o caminho.
Menos de um minuto depois, Cale começou a reconsiderar sua hipótese. O corredor logo se estreitou tanto que eles não conseguiam mais seguir em frente sem se apertarem. Contrariando as expectativas de Cale, nenhum portal apareceu, emparedado ou não.
- Isto não é um corredor — disse ele por fim, ainda mantendo a voz baixa. — Está mais para um túnel.
Eles continuaram andando por mais de meia hora, movendo-se a passos rápidos apesar do escuro, pois o solo era praticamente liso, sem entulho algum.
Algum tempo depois, foi Cale quem voltou a falar.
- Por que você me disse que havia comida se nunca tinha entrado neste lugar.
- Não é óbvio? — disse Henri Embromador. — Você não teria vindo de outra forma, teria?
- E que burrice teria sido isso, não é? Você me prometeu comida, Kleist, e eu fui idiota o bastante para confiar em você.
- Eu achava que você tinha fama de não confiar nas pessoas — disse Kleist. — Além do mais, estou com um rato no bolso. Não menti. E, de qualquer forma, tem comida aqui, sim.
- Como você sabe? — perguntou Henri, sua voz traindo a fome
que sentia.
- Tem muito mais ratos neste lugar. Ratos precisam comer. Eles precisam tirar a comida de algum lugar.
Kleist parou de andar de repente.
- O que foi? — perguntou Henri.
Kleist estendeu a vela para a frente. Uma parede se erguia diante deles. Não havia porta.
- Talvez esteja atrás do reboco — falou Kleist.
Cale correu a palma da mão pela parede e então bateu nela com o punho cerrado.
- Não é reboco. É farinha de arroz e concreto. Igual aos muros externos. — Seria impossível quebrar aquilo.
- Temos que voltar. Talvez a gente tenha passado por uma porta lateral no túnel. Não estávamos procurando por isso.
- Duvido — disse Cale. — E, alem disso... até quando essa vela
vai durar?
Kleist olhou para a vela que estava segurando.
- Uns vinte minutos.
- O que a gente vai fazer? — disse Henri Embromador.
- Apagar e vela e pensar — falou Cale.
- Boa idéia — disse Kleist.
- Que bom que você acha — murmurou Cale, sentando-se no
chão.
Depois de se sentar também, Kleist abriu a redoma de vidro e apagou a vela entre o polegar e o indicador.
Os três ficaram sentados no escuro, distraídos pelo cheiro de gordura animal que a vela soltava. Para eles, o fedor rançoso de sebo queimado lembrava uma só coisa: comida.
Depois de cinco minutos, Henri Embromador falou.
- É só que... — disse ele, interrompendo a frase no meio., Os outros dois esperaram. — A gente está em uma ponta de um túnel.... — Ele se deteve novamente. — Mas tem que haver mais de uma maneira de se entrar num túnel... — Ele balbuciou algo mais e então se calou. — E só uma idéia.
- Uma idéia? — disse Kleist. — Não seja presunçoso.
Henri não respondeu, mas Cale se levantou.
- Acenda a vela.
Kleist precisou de um minuto para fazer fogo com o limo e a pederneira, mas logo eles conseguiam enxergar novamente. Cale se agachou.
- Entregue-a para Henry e suba nos meus ombros.
Kleist entregou a vela para Henry, subiu nas costas de Cale e prendeu as pernas em volta do seu pescoço. Com um grunhido, Cale o ergueu no ar.
- Pegue a vela.
Kleist obedeceu.
- Agora de uma olhada no teto.
Kleist levantou a vela, sem fazer idéia do que estava procurando.
- Achei! — exclamou ele.
- Não grite, droga!
- É um alçapão — sussurrou ele, eufórico.
- Você consegue alcançar?
- Consigo. Quase não preciso esticar os braços.
- Tenha cuidado, empurre de leve. Pode ter alguém por perto. Kleist colocou a palma da mão sobre a extremidade mais próxima do alçapão e o empurrou.
- Esta se mexendo.
- Tente empurrá-lo para cima. Tente ver alguma coisa.
Ouviu-se um rangido.
- Nada. Está escuro. Vou colocar a vela lá em cima. — E então, após uma pausa: — Ainda não dá pra ver muita coisa.
- Não consegue subir?
- Empurre os meus pés depois que eu agarrar a beirada. Agora!
Cale agarrou os pés dele e os impulsionou para cima. Kleist subiu lenta mente, esgueirando-se pelo buraco no teto a medida que o alçapão se fechava ruidosamente sobre as cabeças dos outros dois.
- Não faca barulho! — sibilou Cale.
Então ele desapareceu.
Cale e Henri ficaram esperando no escuro, iluminados pela luz fraca do alçapão. A medida que Kleist vasculhava as redondezas, mesmo ela perdeu seu brilho, apagando-se em seguida.
- Você acha que podemos confiar que ele não vai dar no pé?
- Bem — disse Henri Embromador. — Acho que sim. — Ele fez uma pausa. — Provavelmente.
Porém, não terminou de falar. A luz reapareceu no alçapão, seguida pela cabeça de Kleist.
- E uma espécie de aposento — sussurrou ele. — Mas consigo ver luz saindo de outro alçapão.
- Suba nos meus ombros — disse Cale para Henri Embromador.
- E você?
- Não se preocupe, só esperem lá em cima para me puxarem. Henri Embromador era muito mais leve do que Kleist e foi fácil erguê-lo ate o alçapão, onde Kleist pode acabar de puxá-lo.
- Baixe a vela o máximo que puder.
Kleist desceu pelo buraco enquanto Henri Embromador o segurava pelos pés.
Cale foi ate a parede do túnel e ergueu os braços ate uma fenda, usando-a para puxar o corpo para cima. Então encontrou outra e depois outra, ate conseguir alcançar a mão de Kleist.
Eles se agarraram pelos pulsos.
- Você acha que consegue?
- Se preocupe com você mesmo, Cale. Vou dar a vela para
Henri.
Ele virou a mão para trás em direção a Henri Embromador, com metade do corpo pendendo do alçapão, e a luz desapareceu novamente na escuridão acima.
- Quando eu chegar no três. — Ele fez uma pausa. — Um, dois,
três.
Cale largou a parede e seu corpo se balançou no ar — Kleist soltou um grunhido forte ao sustentar seu peso. Ele ficou pendurado ali por um instante, esperando o vaivém parar. Então, esticou o braço livre para cima e pegou o ombro de Kleist, enquanto Henri o puxava pelas pernas. Os dois tinham se movido apenas 15 centímetros, porém, foi o suficiente para
Cale agarrar a beirada do alçapão e aliviar o peso de Kleist e Henri. Ele se segurou ali por alguns segundos e depois foi puxado pelo buraco até o chão de madeira.
Os três ficaram deitados ali, ofegando por conta do esforço. Então, Cale se levantou.
- Me mostre o outro alçapão.
Após se levantar também, Kleist apanhou a vela quase no fim e andou até a outra extremidade do aposento, que Cale calculava ter uns 6 metros por 4,5.
Kleist se agachou ao lado do primeiro de três alçapões. Havia, conforme ele dissera, uma fenda em uma de suas laterais. Cale aproximou o olho o máximo possível dela; no entanto, apesar de haver luz ali, ele não conseguiu ver nada em especial. Então, colou o ouvido a fenda.
- O que você...?
- Cale a boca! — sibilou Cale.
Ele continuou com o ouvido grudado ali por uns bons dois minutos. Então se sentou, voltando-se para o alçapão. Não havia nenhuma maneira clara de abri-lo, de modo que ele tateou as beiradas ate encontrar uma fresta grande o bastante para puxá-lo para cima em direção ao lado preso. O alçapão cedeu um pouco, soltando um rangido. Cale franziu o rosto de irritação. Como não havia espaço o bastante nem para um dedo, ele teve que cravar as unhas na madeira para conseguir algum tipo de apoio. Doeu quando ele puxou a beirada, mas logo ela estava levantada o bastante para Cale enfiar as mãos por baixo. O menino ergueu a tampa da armação e os três olharam pelo buraco.
O que os esperava cerca de 5 metros abaixo era diferente de qualquer coisa que tivessem visto na vida; na verdade, superava até seus sonhos mais grandiosos.
3
Totalmente imóveis, totalmente em silencio, os três meninos continuaram. a olhar para a cozinha, pois era isso que ela era. Cada superfície estava coberta de travessas de comida: havia frangos assados com a pele douradinha tem-perada com sal e pimenta em pó, bifes grossos e carne de porco com uma casquinha tão crocante que faria o som de um graveto seco se partindo ao ser mordida. Fatias grossas de pão com a casca tão escura que era quase preta em algumas partes, travessas com pilhas altas de cebolas roxas e arroz com frutas secas, passas gordas e macas. E, para completar, os doces: suspiros que pareciam montanhas, pudins de ovos amarelo-escuros e tigelas de creme de leite.
Os meninos não tinham palavras para a maioria das coisas que viam: como ter uma palavra para pudim de ovos se você nunca sequer imaginou a existência de algo parecido, ou pensar que as fatias de bife e peito de frango tinham alguma relação com os pedaços de vísceras, patas e cérebro cozidos na mesma panela e enfiados em salsichas que eram a única coisa que conheciam por carne? Imagine como as cores e os atrativos do mundo seriam estranhos para um cego que tivesse começado a enxergar de repente; ou um homem surdo de nascença ouvindo pela primeira vez a melodia de uma centena de flautas.
No entanto, por mais confusos e impressionados que estivessem, a fome os fez descer pelo alçapão como macacos, balançandose para não caírem em cima da mesa e aterrissando no meio da cozinha. Os três ficaram pasmos diante da fartura que os cercava. Ate Cale quase se esqueceu de que o alçapão precisava ser fechado. Deslumbrado com os cheiros doces e as cores, ele tirou algumas das travessas de cima da mesa
para subir nela. Esticando as mãos ao máximo, conseguiu puxar a tampa de volta e colocá-la no lugar.
Quando voltou ao chão, os outros dois já estavam roubando a comida com a habilidade de saqueadores experientes. Eles pegavam apenas uma coisa de cada travessa e reorganizavam o monte para dar a impressão de que nada havia sido retirado. Não conseguiram resistir e comeram algumas lasquinhas de frango ou pão, porém, a maioria das coisas que pegavam ia direto para os bolsos ocultos costurados nas suas batinas para guardar qualquer artigo fácil de roubar e esconder que encontrassem.
Cale ficou enjoado por conta dos cheiros fortes que pareciam dilatar no seu cérebro e lhe davam vontade de desmaiar, como se eles tivessem sido enfeitiçados por vapores estranhos.
— Não comam. Apenas levem o que puderem esconder. — Aquelas instruções serviam tanto para os outros quanto para ele. Cale pegou sua pane e escondeu o que surrupiou, porem, tinha poucos bolsos para esconder a comida. Não havia necessidade de muitos esconderijos, uma vez que normalmente os roubos eram poucos e irrisórios.
— Temos que sair daqui. Agora. — disse Cale, encaminhandose para a porta. Como se tivessem sido despertados de um sono profundo, Kleist e Henri Embromador começaram a perceber o tamanho do perigo que estavam correndo. Cale ficou escutando diante da porta por um instante e depois a abriu devagar. Era um corredor.
— Só Deus sabe onde nos estamos — disse ele. — Mas precisamos encontrar um esconderijo. — Com essas palavras, acabou de abrir a porta e saiu da cozinha, os outros dois o seguindo com cautela.
Eles andaram depressa, mantendo-se colados as paredes. Poucos metros depois, passaram por uma escada que subia. Cale balançou a cabeça quando Henri Embromador andou na direção dela.
— Temos que encontrar uma janela ou sair para ver se descobrimos onde estamos. Precisamos voltar para o dormitório antes do apagar das luzes, ou eles saberão que nos sumimos.
Eles seguiram em frente, porem, quando se aproximaram de uma porta a esquerda, ela começou a se abrir.
Em um piscar de olhos, deram meia-volta e fugiram de volta para a escada, correndo ate o ultimo degrau. Os três se deitaram rente ao chão do para-mar, ouvindo vozes atravessarem o corredor lá embaixo. Escutaram outra porta sendo aberta e, erguendo a cabeça, Cale pode ver um vulto entrar na cozinha da qual tinham acabado de sair. Henri Embromador veio para o seu lado. Ele parecia confuso e assustado.
— Aquelas vozes — sussurrou ele. —- O que ha de errado com
elas?
Cale balançou a cabeça, mas também notara como elas eram estranhas e sentiu um movimento estranho na barriga. Então, se levantou para examinar o local onde eles estavam se escondendo. Não havia saída, exceto por uma porta as suas costas. Ele girou rapidamente a maçaneta e se esgueirou para dentro do aposento atrás dela. Porém, não era um aposento. Era uma espécie de balcão com um muro baixo a uns 3 metros da porta. Cale engatinhou até ele enquanto os outros dois faziam o mesmo até estarem todos agachados atrás do muro.
Uma explosão de risadas e aplausos veio do espaço para o qual o balcão dava vista.
Não foram apenas as gargalhadas que assustaram os três meninos – pois era raro se ouvir tanta risada por ali, e jamais naquela altura e com tanta alegria -, mas acima de tudo o som e a sonoridade delas. Como as vozes que tinham escutado no corredor pouco antes, as risadas desencadearam uma emoção desconhecida dentro deles.
- Levante pra olhar – sussurrou Henri Embromador.
- Não – fez Cale com a boca.
- Você tem que olhar, senão olho eu.
Cale agarrou seu punho e o apertou.
- Se nós fomos pegos, estamos mortos.
Com relutância, Henri Embromador se recostou de volta contra o muro do balcão. Houve outra explosão de risadas, porém, desta vez, Cale ficou de olho em Henri. Então percebeu que Kleist tinha se ajoelhado e estava olhando para baixo, fascinado, em direção à fonte de tanta alegria despreocupada. Normalmente, o riso de um acólito era algo estranho,
lacônico e amargo. Ele tentou puxá-lo de volta, mas Kleist era muito mais do que Henri Embromador e era impossível movê-lo sem fazer uma força tal que os entregaria imediatamente.
Cale ergueu a cabeça devagar por sobre o muro do balcão e, olhando para baixo, se deparou com alo muito mais chocante e perturbador do que a visão da comida na cozinha. Era como se tudo dentro dele estivesse sendo espetado por uma centena dos pauzinhos de laranjeira dos Redentores.
Lá embaixo, em um grande salão, havia cerca de uma dúzia de mesas, todas cobertas com as mesmas comidas que eles tinham visto na cozinha. As mesas estavam dispostas em um círculo, de modo que todos os que as ocupavam pudessem ver uns aos outros, e parecia óbvio que duas garotas vestidas do mais puro branco eram o motivo da celebração. Uma delas em especial era estonteante, com cabelos negros longos e olhos verdes profundos. Ela era bonita, mas também rechonchuda como uma almofada. No meio do circulo de mesas, havia uma enorme piscina cheia de água quente, coberta por uma camada de vapor. Foram as cerca de meia dúzia de meninas dentro dela que deixaram os olhos de Cale e Kleist arregalados, congelando seus rostos em uma expressão tão chocada e perplexa quanto se tivessem se deparado com o próprio paraíso.
As meninas na piscina estavam nuas. Elas eram rosadas e pardas, a cor da pele variando de acordo com suas origens, mas todas eram curvilíneas e voluptuosas. No entanto, não foi a nudez delas que os espantou, mas sim o fato de nunca terem visto uma mulher antes.
Quem poderia capturar o que eles sentiram? Nenhum poeta seria capaz de colocar em palavras a alegria terrível, o choque e o assombro daqueles meninos.
Desta vez foi Henri Embromador, que aquela altura estava de pé do lado dos dois, quem engasgou de espanto.
O barulho pôs a cabeça de Cale de volta no lugar. Ele se jogou para baixo, recostando-se contra a parede. Poucos segundos depois, os outros dois fizeram o mesmo, pálidos e confusos.
- Que coisa linda – sussurrou Henri Embromador para si mesmo – Linda, linda, linda.
- Temos que sair daqui, ou vamos morrer.
Cale se colocou de quatro e engatinhou até a porta com os outros dois no seu encalço. Eles saíram do balcão, se arrastaram até a beirada do patamar e ficaram escutando. Nada. Então, desceram a escada e começaram a atravessar o corredor. A sorte estava do lado deles, pois não restava mais nada dos meninos habilidosos e precavidos que tinham chegado ao balcão e testemunhado as cenas chocantes lá embaixo. Contudo, mesmo nesse estado abalado e embevecido, eles conseguiram chegar até um portal que conduzia a um segundo corredor. Uma vez nele, viraram à esquerda por não terem motivo melhor para virarem na outra direção.
Então, restando apenas meia hora para voltarem ao galpãodormitório, os três começaram a correr. Porém, menos de um minuto depois, chegaram a curva fechada. O caminho depois dela se estendia por 6 metros e terminava em uma porta grossa. Seus rostos se encheram de desespero.
- Deus do céu! – sussurrou Henri Embromador.
- Daqui a quarenta minutos eles vão mandar os Patrulheiros atrás da gente – disse Kleist.
- Bem, com a gente preso aqui, vai ser moleza pra eles, não é mesmo? – disse Cale.
- E depois? Eles não vão nos deixar contar o que vimos aqui – falou Kleist.
- Então nós temos que dar o fora – disse Cale.
- Dar o fora?
- É, tipo ir embora e nunca mais voltar.
- A gente não consegue nem sair daqui – disse Kleist - , e você vem me falar em escapar do Santuário como um todo.
- Que outra escolha nós... – Porém, a resposta de Cale foi interrompida pelo som de uma chave girando a fechadura da porta à sua frente. Era uma porta imensa, com pelo menos 15 centímetros de espessura, de modo que eles tinham apenas alguns segundos para encontrar um esconderijo. O único problema é que não havia nenhum.
Cale fez sinal para os outros dois se espremerem contra a parede onde a porta aberta os esconderia, pelo menos até ser fechada novamente. Mas não havia outra saída: correr de volta significava ficarem presos onde estavam até sua ausência ser descoberta, ao que se seguiria uma captura rápida e uma morte lenta.
A porta se abriu, não sem algum esforço, a julgar pelo xingamento e pelo grunhido irritado que os meninos ouviram. Em meio a outros resmungos mal-humorados, a porta se moveu na direção deles e parou. Então, um pequeno calço de madeira foi empurrado para baixo dela de modo a mantê-la aberta. Depois de mais alguns xingamentos e resmungos, ouviu-se o somo de um carrinho sendo empurrado pelo corredor. Cale, que estava na beirada da porta, olhou para fora e divisou um vulto familiar com uma batina preta dobrar, mancando, a curva e desaparecer. Ele fez sinal para os outros e atravessou depressa a porta.
No instante seguinte, estavam do lado de fora, envoltos pela neblina fria. Havia outro carrinho cheio de carvão esperando para ser levado para dentro. Era por isso que o Sub-Redentor Smith, preguiçoso como sempre, tinha prendido a porta aberta em vez de trancá-la de volta, conforme devia ter sido ordenado.
Normalmente, eles teriam roubado o máximo de carvão possível, porém, seus bolsos estavam cheios de comida e, de qualquer forma, estavam assustados demais.
- Onde estamos? – perguntou Henri Embromador.
- Não faço idéia – respondeu Cale. Ele desceu do púlpito tentando se acostumar à neblina e à escuridão para encontrar um ponto de referência. No entanto, o alivio de terem escapado já estavam desaparecendo. Eles tinham andado bastante no túnel. Poderiam estar em qualquer lugar do Santuário, com seu labirinto de construções, púlpitos e corredores.
Então, dois pés enormes foram saindo aos poucos da neblina. Era a grande estátua do Redentor Enforcado que eles haviam deixado para trás mais de uma hora antes.
Cinco minutos depois, já haviam se juntado, separadamente, a fila para o galpão-dormitório, mais formalmente conhecido como o Dormitório da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Não faziam idéia do
que tudo isso significava e estavam pouco se lixando. Então, começaram a cantar junto com os demais “E se eu morresse esta noite? E se eu morresse esta noite? E se eu morre esta noite?” Os Redentores haviam deixado a resposta para essa pergunta sinistra bem clara desde que os acólitos se entendiam por gente: a maioria deles iria para o inferno por conta do estado corrompido e repugnante de suas almas, onde queimariam por toda a eternidade. Por anos, sempre que o assunto de eles morrerem no meio da noite vinha à tona – o que era bem freqüente - , Cale era arrastado para a frente do grupo, ao que o Redentor responsável levantava-lhe a batina para expor suas costas nuas e mostrar as feridas que as cobriam da nuca até a base da coluna. As chagas possuíam os mais variados tamanhos e, enquanto passavam pelas diversas etapas de cicatrização, eram às vezes até bonitas de se olhar, com seus inúmeros tons de azul, cinza, verde, vermelho vivo e amarelo quase dourado.
- Olhem para essas cores! – dizia o Redentor. – Suas almas, que deveriam ser brancas como as nadadeiras de uma tartaruga, são piores do que as manchas negras e roxas nas costas deste menino. É assim que todos vocês são aos olhos de Deus: roxos e negros. E se algum de vocês morrer esta noite, sabe muito bem em qual fila irá entrar. Quando chegarem ao final dela, eis o que os espera: bestas que irão comê-los, evacuá-los e então comê-los novamente. Fornos de metal, vermelhos de tão quentes, nos quais serão reduzidos a cinzas por uma hora e depois transformados em gordura. Em seguida, um demônio irá misturá-los, reduzindo-os a uma massa repulsiva de cinzas e banha, quando finalmente renascerão para serem queimados novamente e novamente por toda a eternidade.
Certa vez, um dignitário visitante – um tal Redentor Compton, que se opunha a Bosco – testemunhou essa demonstração e também uma das surras que causava as feridas.
- Estes meninos – disse o Redentor Compton – estão sendo treinados para combater a blasfêmia dos Antagonistas. Uma violência tão extrema contra uma criança, por mais que ela tenha se tornado um joguete do diabo, quebrará seu espírito muito antes de ela ficar forte o bastante para nos ajudar a varrer o sacrilégio dos nossos inimigos dos olhos de Deus.
- Ele não é rebelde e está muito longe de ser um joguete do diabo. – Bosco, sempre muito cauteloso quando o assunto era Cale, ficou imediatamente com raiva de si mesmo por ter sido provocado a dar uma explicação, por mais enigmática que fosse.
- Então porque o senhor permite isso?
- Não pergunte o motivo. Apenas fique satisfeito.
- Diga-me, Redentor.
- Eu me recuso.
E, diante dessas palavras, o Redentor Compton, como sempre mais sábio que Bosco, se calou. Porém, mais tarde, instruiu dois de seus informantes no Santuário a descobrirem tudo o possível sobre o menino de costas roxas.
À medida que Cale e os demais murmuravam: “E se eu morresse esta noite? E se eu morresse esta noite? E se eu morre esta noite?”, a caminho do galpão-dormitório, a ladainha que anos de repetição quase esvaziaram de sentido reconquistou o poder terrível que tinha sobre eles durante a infância, quando os deixava acordados a noite inteira, convencidos de que bastaria fecharem os olhos para sentir a boca quente da besta, ou para ouvir o bater das portas chamuscadas dos fornos de metal.
Dez minutos depois, o dormitório enorme estava cheio e a porta trancada, enquanto 5 mil meninos se preparavam para dormir em silêncio total no galpão amplo, frio e mal iluminado. Então, as velas foram apagadas e eles começaram a se preparar para um sono que veio depressa, pois estavam acordados desde as cinco da manhã. O dormitório foi tomado por uma mistura barulhenta de roncos, choro, gritinhos e gemidos à medida que os meninos se refugiavam em qualquer que fosse o conforto ou o horror que os aguardava em seus sonhos.
Três deles, é claro, não adormeceram tão rapidamente, continuando despertos por várias horas.
4
Cale acordou cedo. Tinha esse hábito desde quando conseguia se lembrar. Isso lhe dava uma hora inteira sozinha, até onde isso era possível com 5 mil meninos dormindo no mesmo lugar. Porém, na escuridão que precede o amanhecer, não havia ninguém para falar com ele, observá-lo, lhe dar ordens, fazer ameaças, ou procurar alguma desculpa para espancá-lo ou até mesmo matá-lo. E embora sentisse fome, pelo menos estava aquecido. Então, é claro, ele se lembrou da comida. Seus bolsos estavam cheios dela. Era arriscado esticar o braço para apanhar a batina pendurada do lado da cama, mas algo irresistível o impulsionava; não era apenas a fome, pois ela era uma companheira constante, mas a alegria, a idéia, o prazer esmagador de comer algo que tinha um gosto tão maravilhoso. Sem pressa, ele enfiou a mão no bolso e pegou a primeira coisa que encontrou lá dentro, uma espécie de biscoito com uma cobertura de creme de ovos, e a enfiou na boca.
A principio, achou que iria enlouquecer de satisfação, o gosto de açúcar e manteiga explodindo não só na sua boca, mas também no cérebro, ou melhor, em sua própria alma. Ele continuou mastigando e engoliu, sentindo um prazer inenarrável.
Então, obviamente, Cale passou mal. Estava tão acostumado àquele tipo de comida quando um elefante a voar no céu. Como um homem morrendo de sede ou de inanição, ele precisava ser alimentado a contagotas e com migalhas, ou seu corpo de rebelaria, morrendo graças à própria coisa de que necessitava tão desesperadamente. Cale ficou meia hora deitado ali, se esforçando ao máximo para não vomitar.
À medida que começava a se recuperar, Cale conseguia ouvir o som de um dos Redentores fazendo sua ronda antes da hora de acordar. As solas duras dos seus sapatos estalavam no chão de pedra enquanto ele andava em meio aos meninos adormecidos. Isso durou dez minutos. Então, de repente, os passos ficaram mais rápidos e o homem bateu palmas com força. DE PÉ! DE PÉ!
Cale, ainda enjoado, se empertigou e começou a vestir a batina, tomando cuidado para não derrubar nada dos bolsos abarrotados enquanto 5 mil meninos gemiam se levantavam cambaleantes.
Poucos minutos depois, eles marchavam pela chuva até a missa no grande edifício de pedra da Basílica da Eterna Misericórdia, onde passaram as duas horas seguintes murmurando preces em respostas aos dez Redentores que celebravam o culto usando palavras há tempos esvaziadas de sentido por conta da repetição. Cale não via problema nisso, ainda pequeno aprendera a dormir de olhos abertos e murmurar com o resto dos meninos, apenas uma pequena parte da sua mente de prontidão, alerta a qualquer Redentor à cata de preguiçosos.
Em seguida, veio o café da manhã. Mais mingau cinza e pé de defunto, uma espécie de bolo feito com diversos tipos de animais e gordura vegetal, geralmente estragada, e uma grande variedade de grãos. Repugnante, porém muito nutritivo. Era somente por conta dessa mistura nojenta que os meninos conseguiam sobreviver. Os Redentores queriam que eles tivessem o mínimo de prazer possível na vida, contudo, seus planos para o futuro – a grande guerra contra os Antagonistas – exigiam que os meninos fossem fortes. Os que sobrevivessem, é claro.
Somente às oito, quando foram enfileirados para o treino no Campo da Absoluta Misericórdia dos Nossos Redentores, que os três puderam conversar novamente.
- Estou passando mal – disse Kleist.
- Eu também – sussurrou Henri Embromador.
- Eu quase vomitei – admitiu Cale.
- A gente vai ter que esconder a comida.
- Ou jogar fora.
- Vocês vão se acostumar – disse Cale. – Bem, podem me dar o que pegarem se não quiserem mais.
- Eu vou ter que dobrar as vestes depois do treino – disse Henri Embromador. – Me deem a comida que eu escondo no meio delas.
- Conversando. Vocês. Conversando. – O Redentor Malik tinha aparecido atrás deles daquele seu jeito quase miraculoso de sempre. Era estupidez fazer qualquer coisa de errado quando Malik estava por perto, por conta da sua estranha habilidade de apanhar os outros de surpresa. O fato inesperado de ele ter assumido o treinamento no lugar do Redentor Fitzsimmons, conhecido universalmente como Fitz Caganeira, por conta da disenteria que o atormentava desde a época em que serviu na campanha dos Pântanos, foi um tremendo azar.
- Pague duzentas – disse Malik, dando um cascudo forte na parte de trás da cabeça de Kleist. Ele obrigou toda a fileira, e não só os três, a se apoiar no chão com os punhos fechados e começar a fazer as flexões exigidas. – Você não, Cale – disse Malik. – Fique de ponta-cabeça. – Cale plantou bananeira com facilidade e começou a subir e descer o corpo. Com a exceção de Kleist, os outros meninos da fileira já estavam franzindo o cenho por conta do esforço. Cale, no entanto, continuava a se mover para cima e para baixo, como se pudesse fazer aquilo para sempre, seu olhar vazio, a mil quilômetros de distância. Kleist parecia apenas entediado, mas totalmente à vontade, enquanto fazia o exercício duas vezes mais rápido do que os demais. Quando o ultimo da fileira terminou, exausto e dolorido, Malik mandou Cale fazer mais duzentas flexões por demonstrar orgulho físico.
- Eu mandei você ficar de ponta-cabeça, e não fazer flexões também. O orgulho de um menino é um tira-gosto delicioso para o diabo. – Essa foi uma lição de moral incompreensível para os acólitos à sua frente, que o encaravam confusos: comer alguma coisa leve, porém revigorante, entre as refeições, fosse ela saborosa ou não, era algo que eles jamais tinham imaginado, quanto mais feito.
Quando a sirene tocou para sinalizar o fim do treino, 5 mil meninos se encaminharam o mais lentamente que a ousadia deles permitia de volta à Basílica para as orações matinais. Ao passarem pelo beco que conduzia aos fundos do grande edifício, os três meninos escapuliram. Kleist e Cale entregaram toda a comida nos seus bolsos para Henri
Embromador e então voltaram à longa fila que se aglomerava na praça em frente à Basílica.
Enquanto isso, Henri Embromador abria o trinco da entrada da Sacristia com o ombro, pois suas mãos estavam cheias de pão, carne e bolo. Ele empurrou a porta e tentou ouvir se havia Redentores lá dentro. Então, adentrou o recanto marrom-escuro do vestiário, preparado para sair se visse qualquer coisa. A Sacristia parecia vazia. Ele correu em direção a um dos armários, mas precisou largar um pouco de comida no chão para conseguir abri-lo. Um pouco de sujeira, refletiu ele, nunca fez mal a ninguém. Com a porta aberta, enfiou a mão dentro móvel e levantou uma tábua de madeira do chão. Debaixo dela, havia um espaço grande onde Henri Embromador guardava seus pertences – todos eles proibidos. Os acólitos não podiam possuir nada que os fizessem, nas palavras do Redentor Porco, “cobiçar as coisas materiais do mundo”. (Porco, diga-se de passagem, não era seu verdadeiro nome, mas sim Redentor Glebe.)
E foi então que a voz do próprio Glebe ressoou atrás dele.
- Quem está aí?
Com três quartos do corpo escondidos pela porta do armário, Henri Embromador jogou a comida nos seus braços, além das coxas de galinha e do bolo que estavam no chão, dentro do móvel e, levantando-se, fechou a porta.
- O que o senhor disse, Redentor?
- Ah, é você – disse Glebe. – O que está fazendo?
- O que estou fazendo, Redentor?
- Sim – falou Glebe, irritado.
- Eu... hã... bem. – Henri Embromador olhou à sua volta como se buscasse inspiração. Pareceu encontrá-la em algum lugar no teto. - Eu estava... guardando as vestes que o Redentor Bent esqueceu aqui. – Não havia dúvidas de que o Redentor Bent era louco, porém, sua reputação de esquecido devia-se principalmente ao fato de que, sempre que tinham uma chance, os acólitos o culpavam por qualquer coisa que estivesse fora do lugar ou sempre que eram questionados por algo que estivessem fazendo. Se fosse pegos fazendo algo que não deviam ou em um lugar onde não deveriam estar, seu primeiro argumento de defesa era dizer que
estavam sob as ordens do Redentor Bent, cuja péssima memória de curto prazo era uma garantia de que eles não seriam contestados.
- Traga-me minhas vestes. – Henri Embromador encarou Glebe como se não fizesse idéia do que aquilo se tratava.
- E então? O que foi? – disse Glebe
- Vestes? – perguntou Henri Embromador. Quando Glebe estava prestes a dar um passo à frente para esbofeteá-lo, ele disse alegremente: - É claro, Redentor. – Então, se virou e foi até outro armário, abrindo a porta como se estivesse muito entusiasmado.
- Pretas ou brancas, Redentor?
- Qual é o seu problema?
- Meu problema, Redentor?
-Sim, seu idiota. Por que eu usaria vestes negras em um dia de semana durante o mês dos mortos?
- Em um dia de semana? – disse Henri Embromador, como se estivesse impressionado com aquele conceito. – É claro que não, Redentor. Mas o senhor vai precisar de um thrannock, obviamente.
- Do que você está falando? – O tom irritado de Glebe também parecia hesitante. Existiam centenas de hábitos cerimoniais e ornamentos, muitos tendo caído em desuso durante os mil anos desde a fundação do Santuário. Estava claro que ele jamais tinha ouvido falar de nenhum tharannock, porém, isso não significava que a coisa não existisse.
Henri Embromador foi até uma gaveta e a abriu, observado pelo Redentor Glebe. Ele a vasculhou por um momento e então retirou um colar feito de pequenas contas, em cuja ponta havia um pequeno quadrado feito de pano.
- Ele deve ser usado no dia do mártir Fulton.
- Eu nunca usei uma coisa dessas antes – disse Glebe, ainda hesitante. Ele foi até o Ecclesiasticum e abriu o livro no dia em que estavam. Era, de fato, dia do mártir Fulton, porém, havia mais mártires do que dias no calendário, de modo que alguns dos menos importantes eram
celebrados apenas de vinte em vinte anos, ou coisa parecida. Glebe fungou com irritação.
- Ande logo, estamos atrasados.
Com a devida solenidade, Henri Embromador colocou o thrannock em volta do pescoço de Glebe e o ajudou a vestir o longo hábito branco, repleto de enfeites. Feito isso, ele seguiu o Redentor até a Basílica reservada para as orações matinais, onde passou a meia hora seguinte revivendo com prazer o episódio do thrannock, que não existia fora da sua imaginação. Ele não fazia idéia para que servia o quadrado de pano na ponta do colar de contas, porém, havia inúmeras quinquilharias desconhecidas como aquela na Sacristia, cujo significado religioso há tempos caíra no esquecimento. Seja como for, ele tinha corrido um risco imenso pelo simples prazer de fazer um Redentor de bobo – e não era a primeira vez. Se algum dia fosse desmascarado, eles lhe arrancariam o couro. Literalmente.
O apelido que Cale lhe dera tinha pegado, porém, apenas os dois sabiam o que ele realmente significava. Somente Cale percebia que a maneira evasiva de Henri retrucar ou repetir qualquer pergunta que lhe era feita não se devia a uma incapacidade de compreender o que escutava ou de dar respostas claras. Tratava-se apenas de uma maneira de desafiar os Redentores, forçando a barra até os limites da tolerância deles, que já não era muito grande. Foi por ter descoberto o que Henri estava fazendo e passado a admirar sua espetacular ousadia que Cale quebrara uma de suas regras mais importantes: não fazer amizades e não permitir que ninguém faça amizade com você.
Cale abriu caminho até um banco vago na Basílica Número Quatro, louco para colocar o sono em dia durante as Orações de Degradação. Ele havia dominado a arte de cochilar enquanto se flagelava pelos seus pecados – de torpeza, de delectatio morosa, de gaudium, de desiderium, de desejos eficazes e ineficazes. Em uníssono, as 5 mil crianças na Basílica Quatro juravam nunca mais cometer transgressões que lhes seriam impossíveis mesmo que soubessem do que se tratavam: meninos de 5 anos de idade juravam solenemente jamais cobiçar a mulher do próximo, outros de 9 juravam não esculpir imagens sob hipótese alguma, enquanto os de 14 prometiam não adorá-las mesmo que as esculpissem. Tudo isso sob pena de o castigo divino recair sobre seus filhos até a terceira ou quarta geração. Após um revigorante cochilo de 45 minutos, a Missa terminou e Cale se junto em silêncio à fila que saía da Basílica, retornando ao campo de treinamento.
O campo nunca mais ficava vazio durante o dia. O enorme aumento no número de acólitos sob a tutela dos Redentores nos últimos cinco anos fez com que quase tudo passasse a ser realizado em turnos: o treinamento, as refeições, os banhos, os cultos. Havia treino até mesmo à noite, para os que supostamente estavam ficando para trás – horário especialmente odiado por conta do frio de rachar, o vento que soprava das Terras Crestadas cortando como uma faca mesmo durante o verão. Não era segredo que o motivo desse aumento era fornecer mais tropas para a guerra contra os Antagonistas. Cale sabia que muitos dos que deixavam o Santuário não eram enviados permanentemente para o Front Ocidental, mas sim mantidos em reserva a maior parte do tempo e revezados por seis meses entre um front e outro, voltando para a reserva por um ano ou mais entre as transferências. Ele sabia disso porque Bosco lhe contara.
- Você pode fazer duas perguntas – disse Bosco depois de informá-lo sobre essa estratégia curiosa. Cale refletiu por um instante.
- O tempo que eles são mantidos em reserva... o senhor pretende aumentá-lo cada vez mais?
- Sim – Respondeu Bosco. – Segunda pergunta.
- Não preciso de uma segunda pergunta – disse Cale.
- Sério? É melhor ter certeza, você não acha?
- Eu ouvi o Redentor Compton dizendo para o senhor que havia um impasse nos fronts.
- Sim, eu notei que você estava bisbilhotando.
- E, ainda assim, vocês dois trataram o assunto como se não fosse problema.
- Prossiga.
- Vocês treinaram uma quantidade imensa de padres guerreiros durante os últimos cinco anos; gente demais. Querem lhes dar a chance de lutar, mas não querem que os Antagonistas descubram que estão ampliando suas forças. É por isso que o tempo na reserva vem aumentando. Estamos sempre ouvindo falar que os fronts estão cheios de traidores Antagonistas. Isso é verdade?
- Ah – sorriu Bosco, algo nada bonito de se ver -, uma segunda pergunta, depois de ficar se gabando de que só precisava de uma. A vaidade será sua ruína, menino, e não digo isso pelo bem da sua alma. Eu tenho... – Ele se deteve, como se não soubesse ao certo o que dizer em seguida, coisa que Cale nunca tinha visto antes. Era perturbador. – Eu tenho expectativas quanto a você. Exigências serão feitas. Ser jogado de cima dos muros deste lugar com uma pedra amarrada ao pescoço seria muito melhor do que fracassar em cumprir essas exigências e expectativas. E é o seu orgulho que mais me preocupa. Qualquer Redentor daqui até a eternidade lhe dirá que ele é a causa de todos os outros 28 pecados mortais, porém, tenho outras prioridades mais importantes do que sua alma. O orgulho distorce seu juízo e faz com que você se coloque em situações que poderia ter evitado. Eu lhe concedi duas perguntas e, por pura soberba, você quis ser melhor do que eu, arriscando uma punição por fracassar que poderia ter evitado. O orgulho o enfraquece de tal forma que chego a me perguntar se você mereceu de fato minha proteção por todos esses anos.
Ele encarou Cale, que baixou os olhos para o chão, ao mesmo tempo odiando e desdenhando a idéia de que Bosco o protegesse. Pensamentos estranhos e perigosos cruzaram sua mente enquanto ele esperava.
- A resposta para sua segunda pergunta é que sim, existem espiões e agentes secretos Antagonistas nos fronts. Poucos, mas em número suficiente.
Cale manteve os olhos baixados. Era preciso fingir não oferecer resistência. Minimizar o castigo. Por mais que sentisse, ao mesmo tempo, uma raiva imensa por saber que Bosco tinha razão e que ele poderia ter evitado o que estava por vir.
- Vocês estão acumulando tropas de reserva para um grande ataque em ambas as frentes, mas precisam manter os números nelas mais ou menos no mesmo nível, ou eles conseguirão prever o que estão planejando. Querem que essas tropas ganhem experiência, mas agora existem demais delas, então os soldados precisam passar mais tempo longe do front. E, ao mesmo tempo, o senhor precisa de mais homens para acabar de vez com os Antagonistas, porém, eles precisam ser endurecidos no campo de batalha e já não há combates o suficiente. É um dilema, senhor.
- Qual a solução?
- Preciso de tempo, Redentor. Talvez não haja solução que não seja outro problema.
Bosco riu.
- Deixe-me lhe dizer uma coisa, menino: a solução para qualquer problema é sempre outro problema.
Então, sem aviso, Bosco lançou um golpe contra Cale. O menino o bloqueou tão facilmente quanto se tivesse sido atacado por um velho. Os dois trocaram olhares.
- Abaixe sua mão.
Cale obedeceu.
- Eu vou lhe bater outra vez em um instante – falou Bosco com a voz calma – e, quando eu fizer isso, você não moverá as mãos ou a cabeça. Deixará que eu lhe bata. Você me dará sua permissão. Seu consentimento.
Cale aguardou. Desta vez, Bosco deixou bem claro que se preparava para golpeá-lo. Então, atacou novamente. Cale se encolheu, mas o golpe não o atingiu. A mão de Bosco parou a milímetros do seu rosto.
- Não se mexa, menino. – Bosco puxou a mão de volta e iniciou um terceiro golpe. Cale se encolheu novamente. – NÃO SE MEXA! – gritou ele outra vez, seu rosto vermelho de raiva, exceto por dois círculos brancos muito pequenos no meio das bochechas, que ficavam cada vez mais pálidos à medida que o restante do seu rosto escurecia. Então, mais um golpe, porém, desta vez ele atingiu seu alvo enquanto o menino ficava imóvel com uma pedra. Depois outro e mais outro. Por último, uma pancada tão forte que derrubou Cale, atordoado, no chão.
- Levante-se – disse Bosco, em um tom de voz quase inaudível. Cale se levantou, tremendo como se estivesse sentindo um frio intenso. Então, outro golpe. Ele caiu e se levantou novamente. E outro. Cale voltou a se levantar. Bosco trocou de mão. Sua esquerda era mais fraca, de modo que foram precisos mais cinco golpes para derrubá-lo desta vez. Bosco baixou os olhos para o menino enquanto ele começava a se levantar. Àquela altura, os dois tremiam.
- Fique onde está. – Bosco estava quase sussurrando. – Se você se levantar, não me responsabilizo pelo que pode acontecer. Estou indo embora. – Ele parecia quase desnorteado, exausto pela intensidade terrível da sua ira. – Espere cinco minutos e depois suma daqui. – Então, Bosco caminhou até a porta e saiu.
Cale ficou um minuto inteiro sem se mover. Em seguida, sentiu enjôo. Precisou de mais um minuto para descansar e de outros três para se limpar. Então, lentamente, ele saiu para o correr – tremendo como se nunca fosse conseguir alcançá-lo – e, apoiando-se ao longo da parede, se encaminhou até um dos becos sem saída que cercavam um pátio e se sentou no chão.
- MANTENHA A CINTURA RETA! NÃO! NÃO! NÃO! – Cale despertou sobressaltado do que se tornara quase um transe. Os barulhos e as cenas do campo de treinamento haviam desaparecido à medida que ele se perdia nas lembranças do passado. Isso era algo que vinha acontecendo com cada vez mais freqüência, porém, não era uma boa idéia ser tão distraído em um lugar como o Santuário. Era preciso ficar atento ali, ou logo, logo algo desagradável podia acontecer. No instante seguinte, todas as visões e todos os sons do treino ao seu redor já lhe pareciam vividas. Uma fileira de vinte acólitos que em breve deixariam o Santuário praticava uma formação de ataque. O Redentor Gil – conhecido como Gil, o Gorila, por conta da sua feiúra e força terrível, fazia as reclamações de praxe sobre a displicência dos seus recrutas: - Você por acaso teve um vislumbre dos portões da morte, Gavin? – falou ele com cansaço na voz. – É o que vai acontecer se continuar expondo seu flanco esquerdo desse jeito.
Os acólitos na fileira sorriam diante do constrangimento de Gavin. Apesar de toda a força física e feiúra abrutalhada, o Redentor Gil era o mais próximo de um homem decente que um Redentor já conseguiu ser. Com a exceção do Redentor Navratil, que era um caso à parte.
- Treino noturno para você – disse Gil ao desafortunado Gavin. – O menino ao seu lado riu. – E pode se juntar a ele, Gregor. E você também, Holdaway.
Logo atrás da fileira, um garotinho de no máximo 7 anos de idade estava pendurado pelos braços em uma armação de madeira a 2 metros do chão. Havia um cinturão de pesos amarrado em volta das suas canelas e ele fazia uma careta, lágrimas de dor escorrendo pelo seu rosto contorcido. O Sub-Redentor abaixo dele não parava de insistir que, a
menos que ele erguesse os pés em um L, perfeito todas as vezes, nenhuma de suas tentativas contaria.
- Chorar é perda de tempo, só fazer direito vai adiantar alguma coisa. – Enquanto a criança se esforçava para fazer o que era mandado, Cale notou como era extremamente definidos os seis músculos da sua barriga, salientes e fortes como os de um adulto. – Quatro! – contou o SubRedentor.
Cale passou andando por meninos de 5 anos, alguns rindo como fazem os garotinhos do mundo todo, e rapazes de 18 que pareciam homens de meia-idade. Havia grupos de mais ou menos oitenta acólitos treinando, se empurrando para frente e para trás, girando em compasso, como se fossem gigantes grunhindo um contra o outro; uma fileira adicional de cerca de quinhentos meninos marchava em formação num silêncio absoluto, virando-se em uníssono ao sabor da bandeira de sinalização: esquerda e direita, então parando de repente, depois recuando, parando outra vez e seguindo adiante. Àquela altura, Cale estava a uns 50 metros da grande muralha que cercava o Santuário, á beira da galeria de tiro com arco na qual Kleist fazia gato e sapato de um pelotão de dez acólitos no mínimo quatro anos mais velhos do que ele. Ele os humilhava por serem inúteis, feios, ineptos, terem os dentes podres e os olhos muito juntos uns dos outros. Parou somente depois que viu Cale.
- Você está atrasado – disse. – Sorte sua que Primo está doente, ou ele tiraria seu couro.
- Você pode tentar fazer isso, se quiser.
- Eu? Estou pouco me lixando se você aparece ou não. O problema é seu.
Cale encolheu os ombros de leve, indicando admitir com relutância que isso era provavelmente verdade. Kleist estava nu até a cintura, revelando um físico extraordinário, por mais estranho que fosse. Ele parecia ser todo costas e ombros, como se o torso de um homem adulto tivesse sido encaixado entre as pernas e a cabeça de um menino de 14 anos. Seu braço e ombro direitos, em especial, eram tão mais cheios de músculos do que o lado esquerdo ele parecia quase deformado.
- Certo – disse Kleist -, vamos ver onde você está errando. – Ele estava claramente gostando da chance de demonstrar sua sensação de superioridade e muito interessado em deixá-la clara para Cale também.
Cale ergueu o arco longo que Kleist lhe dera, puxou a corda para trás até a bochecha, mirou, manteve a posição por um instante e atirou a flecha em direção ao alvo a 80 metros dali. Soltou um gemido enquanto ela saía. A flecha descreveu um arco até o alvo, que era do tamanho e formato de um corpo humano, e o errou por vários metros.
- Merda!
- Nossa mãe – disse Kleist -, não vejo uma coisa dessas desde... bem, não consigo nem me lembrar. Você costumava ser razoável; onde foi arranjar este bando de cacoetes?
- Só me diga o que eu devo fazer para melhorar.
- Ora, isso é moleza. Você está estalando a corda quando deveria apenas soltá-la... assim. – ele esticou a corda do seu próprio arco para mostra o que Cale estava fazendo de errado e então indicou, com enorme prazer, como deveria ser feito. – Também está abrindo a boca, quando atira e deixando o braço que segura a corda cair antes de soltá-la. – Cale começou a protestar. – E – interrompeu Kleist – está deixando a mão se arrastar para frente ao mesmo tempo.
- Certo, já entendi. É só ir falando o que preciso fazer. Eu adquiri uns maus hábitos, só isso.
- Não sei não, acho que pode ser mais do que alguns maus hábitos. Você me parece é estar amarelando. – Ele apontou para a cabeça de Cale. – Acho que deu zebra aí em cima, parceiro. Pensando melhor, o seu é o pior caso de treme-treme que eu já vi.
- Você inventou isso agora.
- Você sofre de treme-treme sim senhor. Está tudo aí: os cacoetes, os tiques. Não tem cura. Toda essa coisa de ficar com a boca aberta e deixar o cotovelo cair não passa de um reflexo do estado da sua alma. O verdadeiro problema está no seu espírito. – Kleist colocou uma flecha no seu arco, puxou a corda para trás e a soltou com um movimento elegante. Ela descreveu um arco impecável no ar e atingiu com um baque gratificante o peito do alvo. – Está vendo: perfeito. Um sinal externo de graça interna.
A essa altura, Cale já estava rindo. Então, quando se voltou para a aljava largada no banco atrás dele, viu Bosco atravessando o meio do campo de treinamento e se aproximando do Redentor Gil, que imediatamente gesticulou para um acólito ir andando até onde os dois estavam. Cale ouviu um “Vupt!” baixinho às suas costas e virou a cabeça para ver Kleist, que apontava furtivamente seu arco para o ainda distante Bosco, fazendo o som de uma flecha rumo ao alvo.
- Vá em frente. Ou não tem coragem?
Kleist riu e se voltou para os seus pupilos, que estavam a alguma distancia dali, conversando. Um deles, Donovan, havia se aproveitado, como sempre, do intervalo para começar seu sermão sobre a maldade dos Antagonistas.
- Eles não crêem em um purgatório onde você possa expiar seus pecados e ir para o céu. Em vez disso, acreditam em absolvição pela fé. – Alguns dos acólitos que o ouviam se sobressaltaram de incredulidade. – Eles afirma que é o Redentor quem escolhe definitivamente se qualquer um de nós vai ser salvo ou condenado e que não há nada que possamos fazer a respeito. Além disso, pegam as melodias das canções dos bêbados e as utilizam para compor seus hinos. O Redentor Enforcado no qual acreditam nunca existiu e eles têm horror a se confessarem, e por isso morrerão em pecado e partirão desta vida com todas as suas transgressões gravadas na alma para serem condenados.
- Cale a boca, Donovan – disse Kleist -, e volte ao trabalho.
Logo que o acólito se afastou com a mensagem para Cale, Bosco chamou o Redentor de lado para que eles não fossem ouvidos.
- Há um boato de que os Antagonistas estão negociando com os mercenários lacônicos.
- E ele é confiável?
- Até onde boatos podem ser...
- Então deveríamos estar preocupados. – Um pensamento veio à cabeça de Gil. – Eles precisarão de 10 mil deles ou mais para nos derrotar. Como irão pagar?
- Os Antagonistas encontraram minas de prata em Laurium. E isso não é um boato.
- Então que Deus nos ajude. Mesmo nós temos apenas algumas mil tropas... três, talvez... capazes de enfrentar mercenários lacônicos. A reputação deles não é exagerada.
- Deus ajuda quem ajuda a si mesmo. Se não formos capazes de enfrentar homens que lutam apenas por dinheiro e não pela glória do Senhor, então merecemos a derrota. Este teste já era esperado. – Ele sorriu. – Apesar das masmorras, do fogo e da espada, certo, Redentor?
- Bem, meu caro Lorde da Guerra, se este é um teste, não sei como passar dele. E, perdoe-me pelo pecado do orgulho, mas, se eu não sei, nenhum outro Redentor saberá.
- O senhor tem certeza? Sobre o pecado de orgulho, quero dizer.
- Aonde o senhor quer chegar? Não há necessidade de ser misterioso comigo. Mereço um melhor tratamento da sua parte.
- Claro que sim. Perdão pela minha própria arrogância. – Ele bateu de leve no peito três vezes. – Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. Já venho esperando isso, ou algo parecido, há algum tempo. Sempre tive a sensação de que nossa fé seria testada e testada com severidade. O Redentor foi enviado para nos salvar e a resposta da humanidade a esse presente divino foi pendurá-lo em uma forca. – Seus olhos começaram a ficar marejados e se perderam na distância, como se ele estivesse diante de algo que testemunhara pessoalmente, embora um milênio tivesse se passado desde a execução do Redentor. Ele suspirou fundo novamente, como se relembrasse uma dor terrível e recente, e então encarou Gil. – Isso é tudo que posso dizer – prosseguiu, tocando o braço do outro delicadamente, com uma ternura genuína -, exceto que, se essa informação for verdadeira, não perdi meu tempo em buscar uma forma de acabar com a apostasia dos Antagonistas e remediar o crime terrível de se assinar o único mensageiro de Deus. – Ele sorriu para Gil. – Há uma nova estratégia.
- Não compreendo.
- Não se trata de uma tática militar, mas sim de uma nova forma de enxergar as coisas. Não devemos mais pensar apenas no problema dos
Antagonistas; é preciso buscar uma solução definitiva para a questão da maldade humana em si.
Ele chamou Gil mais para perto e baixou ainda mais a voz.
- Há muito tempo que nos concentramos apenas na heresia dos Antagonistas e em nossa guerra contra eles; no que eles fazem ou deixam de fazer. Isso nos fez esquecer que eles são menos importantes do que nosso propósito de não permitir que haja nenhum deus além do Único e Verdadeiro Deus e nenhuma fé além da Única e Verdadeira Fé. Por nossa própria culpa, ficamos presos a essa guerra como se ela fosse um fim em as mesma. Permitimos que ela se tornasse uma rixa a mais um mundo cheio de rixas.
- Perdão, Redentor, mas o Front Ocidental se espalha por mais 1.500 quilômetros e os mortos chegam a centenas de milhares... não estamos falando de uma simples rixa.
- Não somos os Materazzi ou os Janes, interessados na guerra por dinheiro ou poder. No entanto, foi nisso que nos transformamos. Uma potência entre tantas outras na guerra de todos contra todos e, como elas, desejamos a vitória, mas tememos a derrota.
- É sensato temer a derrota.
- Nós somos os representantes de Deus na Terra através do Divino Redentor. Nossa existência possui apenas um propósito, e nós nos esquecemos dele porque temos medo. Portanto, as coisas precisam mudar: é melhor cair uma só vez do que para sempre. Precisamos decidir se acreditamos ou não que Deus está do nosso lado. Se acreditamos de verdade nisso, em vez de apenas fingir que sim, então, logicamente, devemos buscar a vitória absoluta em detrimento de todas as outras.
- Se o senhor diz, Redentor.
Bosco soltou uma risada gostosa, genuinamente alegre.
- Pois digo sim, meu amigo.
Tanto Cale quanto Kleist perceberam que o acólito vinha na direção deles, feliz por ter a chance de transmitir o que sem dúvida eram más noticias. Assim que começou a falar, Kleist o interrompeu.
- O que foi, Salk? Estou ocupado.
Isso frustrou seus planos cruéis de dar a noticia vagarosamente.
- Se deu mal, Kleist. Não tem nada a ver com você. O Redentor Bosco quer que Cale vá até os aposentos dele depois das orações da noite.
- Ótimo – disse Kleist, como se aquilo fosse pura rotina. – Agora dê o fora.
Pego desprevenido tanto pela falta de curiosidade hostil tanto pelo fato de Cale o estar encarando de um jeito esquisito. Salk cuspiu no chão para mostrar sua própria indiferença e se afastou. Cale e Kleist trocaram olhares. Uma vez que Cale era o zelote de Bosco, se chamado para uma audiência com o Lorde da Guerra, coisa que teria deixado qualquer outro menino apavorado, não era algo incomum. O que não era nada comum e, portanto, preocupante – considerando os acontecimentos do dia anterior – era que Cale fosse convocado para os aposentos particulares, e à noite. Isso nunca tinha acontecido antes.
- E se ele tiver descoberto? – disse Kleist.
- Já estaríamos na Casa do Desígnio Especial, se fosse o caso.
- É bem a cara de Bosco fazer a gente pensar assim.
- Pode ser. Mas agora já não podemos fazer nada. – Cale puxou a corda do arco, manteve-a esticada por um instante e então soltou a flecha. – Ela descreveu um arco em direção ao alvo e não o acertou por uns bons 30 centímetros.
Os três já haviam combinado de fugir do jantar. Normalmente, estar em qualquer lugar que não fosse onde deveria era perigoso, contudo, ninguém nunca tinha ouvido falar de um acólito que tivesse faltado a uma refeição, pois, por mais repugnante que fosse a comida, eles estavam sempre famintos. Portanto, os Redentores jamais ficavam tão pouco atentos quanto durante a refeição da noite, o que tornou mais fácil para Cale e Kleist se esconderem atrás da Basílica Número Quatro e esperarem que Henri Embromador trouxesse a comida deles da Sacristia. Os meninos comeram mais lentamente desta vez – e pouco – porém, dez minutos depois já estavam todos passando mal.
Dali a trinta minutos, Cale estava esperando no corredor escuro em frente aos aposentos do Lorde da Guerra. Passada uma hora, ainda estava lá. Então, a porta de ferro batido se abriu e o vulto alto de Bosco parou sob o batente, observando-o.
- Entre.
Cale entrou atrás dele em um aposento pouco menos iluminado do que o corredor. Se tivesse nutrido esperanças de ver algo da vida privada daquele homem depois de todos aqueles anos, teria se decepcionado. Havia portas que conduziam para além da sala em que ele se encontrava, porém, estavam fechadas e tudo o que havia para ver era o próprio gabinete, com o pouco que havia ali. Cale ficou parado e esperou, sabendo que poderia ter sido chamado apenas para apanhar uma dúzia de sacos azuis ou para receber sua própria sentença de morte.
Depois de alguns minutos, Bosco falou, mas sem erguer os olhos e em um tom questionador, porém ameno.
- Você tem alguma coisa para me dizer?
- Não, senhor. – respondeu Cale.
Bosco continuou com os olhos baixados.
- Se mentir para mim, não há nada que eu possa fazer para salvá-lo. – Ele fitou dentro dos olhos de Cale, seu olhar infinitamente frio e negro. Era como se a própria morte o encarasse. – Então, vou lhe perguntar novamente. Você tem alguma coisa para me dizer?
Mantendo o olhar firme, Cale respondeu.
- Não, senhor.
O Lorde da Guerra não desviou os olhos de Cale, que sentiu sua força de vontade se dissolver, como se estivessem derramando ácido na sua alma. Um desejo terrível de confessar começou a crescer na sua garganta. Era o pavor, a certeza que o acompanhara desde garotinho de que o Redentor à sua frente era capaz de qualquer coisa, de que dor e sofrimento eram companheiros constantes daquele homem e que qualquer coisa viva se calava diante da sua presença.
Bosco olhou de volta para o papel à sua frente e assinou seu nome. Então dobrou a folha, selando-a com cera vermelha. Ele a entregou para Cale.
- Leve isto para o Lorde Disciplinador.
Um vento gelado atravessou o corpo de Cale.
- Agora?
- Sim. Agora.
- Já está escuro. O dormitório será fechado em poucos minutos.
- Não se preocupe com isso. Já tomei as devidas providências.
Sem erguer os olhos, o Redentor Bosco voltou a escrever.
Cale não se moveu. O Redentor levantou a cabeça de volta.
- Algo mais, Cale?
Instinto lutava contra instinto dentro de Cale. Se confessasse, o Redentor talvez pudesse ajudá-lo. Afinal de contas, ele era seu zelote. Ele poderia salvá-lo. Porém, outras criaturas dentro da alma de Cale gritavam com ele: “Jamais confesse! Jamais admita a culpa! Jamais! Sempre negue tudo. Sempre.”
- Não, senhor.
- Então vá.
Cale deu meia-volta e andou até a porta, resistindo à vontade correr. Uma vez no corredor, ele fechou a porta de ferro batido e olhou de volta para o aposento como se ela fosse transparente como vidro, seus olhos repletos de ódio e repulsa.
Ele foi até o corredor vizinho e parou sob a luz fraca de uma vela presa à parede. Sabia que Bosco o estava testando deliberadamente ao lhe dar a chance de abrir a carta, um delito que levaria à sua execução imediata. Se Bosco sabia sobre o dia anterior, era possível que aquela fosse uma ordem para que o Lorde Disciplinador o matasse – a maneira que o Redentor encontrara de fazer com que Cale entregasse sua própria sentença
de morte. Por outro lado, poderia não ser nada, apenas mais uma das intermináveis tentativas do Lorde da Guerra de testá-lo sempre que possível.
Ele respirou fundo e tentou ver as coisas como elas era, descoloridas pelo medo. Era óbvio: poderia não haver nada de mortal naquela carta, embora suas conseqüências estivessem fadadas a ser desagradáveis e dolorosas – porém, abri-la significaria morte certa. Com isso em mente, ele começou a andar em direção ao gabinete do Lorde Disciplinador, por mais que as dúvidas sobre o que faria se o pior acontecesse não parassem de martelar na sua cabeça.
Dez minutos depois, após se perder brevemente no labirinto de corredores, ele chegou à Câmara da Salvação. Por um instante, deteve-se na penumbra diante da grande porta, o coração disparado de medo e raiva. Então, notou que ela estava destrancada e ligeiramente entreaberta.
Cale ficou parado por um momento, pensando no que fazer. Olhou para o documento que trazia na mão e então empurrou a porta o suficiente para olhar para dentro. Na extremidade oposta do aposento, ele conseguia ver o Lorde Disciplinador debruçado sobre alguma coisa e cantarolando.
A fé dos nossos pais ainda vive Apesar das masmorras, do fogo e da espada Pã, pã pã rã, pã pã rã, pã pã rã Pã, pã pã rã, pã pã rã, pã pã A fé dos nossos pais, pã pã pã Nós seremos fiéis a vós até a morte.
Então, ele interrompeu a cantoria, vendo necessidade de se concentrar com atenção especial em algo. Aquela parte do aposento estava tão bem iluminado quanto o possível pela luz em uma vela, e era como se o Lorde Disciplinador estivesse contendo a luz em uma espécie de redoma de um brilho cálido, delimitada pelo seu próprio corpo. À medida que os olhos de Cale se ajustavam, ele pôde ver que o Redentor se debruçava sobre uma mesa de madeira de cerca de 1,80 por 60 centímetros e que havia algo estendido nela, embora o final da coisa estivesse coberto por um pano. Então o Lorde Disciplinador voltou a cantar, virando-se para o lado e largando algo pequeno e pesado em uma bandeja de ferro. Apanhando uma tesoura que estava ao lado dela, ele voltou ao trabalho.
Como seria doce o destino dos seus filhos,
Se eles também pudessem morrer por vós! Pã, pã pã rã, pã pã rã, pã pã rã Pã, pã pã rã, pã pã rã, pã pã
Cale abriu um pouco mais a porta. Mas adianta, na parte mais escura do aposento, ele conseguia ver outra mesa, também com algo estendido em cima dela, porém, obscurecido pela penumbra. Então o Lorde Disciplinador se empertigou novamente, foi até um armário baixo à sua direita e começou a remexer em uma gaveta. Cale ficou apenas olhando, incapaz de entender o que era aquela coisa deitada ali, embora já pudesse ver com bastante clareza o que o Redentor estava fazendo. Sobre a mesa, havia um corpo que o Lorde da Disciplina estava dissecando. O peito havia sido destrinchado com muita habilidade e aberto até o fim da barriga. Cada pedaço de pele e músculo tinha sido seccionado e mantido separado da incisão por uma espécie de pesinho. O que mais chocara Cale – além da visão de um corpo naquele estado -, o que tornara aquilo tão difícil de agüentar, apesar de ele já ter visto muitos cadáveres antes, era o fato de se tratar de uma garota. E ela não estava morta. Vez por outra, a mão esquerda que pendia de um dos lados da mesa estremecia, enquanto o Lorde Disciplinador continuava remexendo na gaveta, ainda cantarolando.
Cale teve a sensação de que aranhas subiam pelas suas costas. Então ouviu um gemido. Sem o corpo do Lorde Disciplinador, para conter a luz, ele conseguiu ver o que estava sobre a outra mesa. Era outra garota, amarrada e amordaçada, tentando gritar. E ele a conhecia. Ela era a mais estonteante das duas que estavam vestidas de branco e rindo de alegria no centro das comemorações do dia anterior.
O Lorde Disciplinador parou de cantarolar, se empertigou e olhou para a garota.
- Fique quietinha, aí – disse ele, com uma voz quase gentil.
Então, se debruçou novamente, voltou a cantar e continuou procurando.
Cale tinha visto muitas coisas pavorosas durante sua curta vida, atos de crueldade escabrosos, e tolerado sofrimentos quase indescritíveis. Porém, naquele instante, ele estava assombrado pelo que via, sem conseguir entender o sentido daquela garota dissecada, com sua mão que se mexia cada vez menos. E então, muito lentamente, ele saiu de costas do aposento, voltando para o corredor, e começou a se afastar de forma tão silenciosa quanto havia vindo.
5
- Ah! – disse para si mesmo, com uma satisfação profunda, o Redentor Picarbo, também conhecido como Lorde Disciplinador, ao encontrar o que estava procurando: uma vareta longa e fina com uma pinça afiada na ponta. – Deus seja louvado. – Ele a testou, cortando o ar. Satisfeito, voltou-se para a garota em cima da mesa e analisou pensativo a ferida terrível, porém muito bem feita. Pegou com delicadeza a mão já sem vida dela e a colocou ao lado de seu corpo deitado. Então, apanhou a pinça com a mão direita e estava prestes a continuar quando a garota no canto da sala começou a tentar gritar novamente. Desta vez, ele falou com mais firmeza, como se sua paciência já tivesse se esgotado.
- Já falei pra você ficar quieta. – Ele sorriu. – Não se preocupe, a sua hora está chegando.
Talvez tenha ouvido alguma coisa, ou talvez tenha sido apenas seu instinto afiado por anos de experiência, mas o Lorde Disciplinador se virou e ergueu o braço para bloquear o golpe contra a sua nuca desferido por Cale. O Redentor o atingiu logo abaixo do punho, uma pancada tão forte que o meio tijolo na mão do menino saiu voando pela sala, chocandose ruidosamente contra um dos armários e se quebrando em uma dúzia de pedaços. Cale perdeu o equilíbrio e o Lorde Disciplinador o empurrou com violência para a esquerda, atirando-o contra a base da mesa em que a garota amarrada estava deitada. Ela soltou outro grito abafado.
O Redentor lançou um olhar de absoluta perplexidade para Cale. Era simplesmente impossível que ele tivesse sido atacado por um acólito; não ali, não naquele lugar, ou em qualquer outra ocasião. Em mil anos, ninguém jamais ouvira falar de coisa parecida. Por um instante, eles ficaram apenas se encarando.
- Você está louco? O que está fazendo aqui? – exigiu saber o Redentor, possesso. – Será enforcado por isso... enforcado e esquartejado. Será estrangulado e estripado vivo e verá suas entranhas queimarem diante dos seus olhos. E...
Ele se deteve após aquele jorro veloz de palavras, novamente subjugado pelo espanto de ter sido atacado. Cale estava lívido de horror. O Lorde Disciplinador se virou para o lado e apanhou o que parecia, e de fato era, uma faca de açougueiro.
- Vou fazer isso agora mesmo, seu merdinha. – Ele foi em direção ao menino caído de bruços e, parado em cima dele com as pernas separadas, ergueu a faca no ar. Foi então que Cale desferiu um golpe com a pinça que havia caído do seu lado durante a luta, atingindo o Lorde Disciplinador na parte de dentro da coxa.
O Redentor cambaleou para trás, não por ter sido ferido, mas por conta de um espanto ainda mais profundo, maior do que ele imaginava possível.
- Você me atacou! – disse ele. Assombro. Incredulidade. Surpresa. – Você me atacou. – Ele baixou os olhos para o menino. – Por Deus, sua morte será lenta. Por tudo que há de mais... – O Redentor se deteve, de forma bastante repentina, no meio da frase. O seu rosto foi tomado por uma expressão intrigada, como se tivesse ouvido uma pergunta difícil. Ele entortou a cabeça para o lado, como quem tenta escutar algo.
Então, sentou-se lentamente, como se empurrado pela mão enorme, porém gentil, de um gigante. O Redentor observou Cale enquanto o menino recuava, afastando-se dele. Em seguida, olhou para as próprias pernas. Uma poça grande de sangue manchava a parte de baixo de sua batina. De repente, Cale não parecia ser nem um menino assustado nem um assassino furioso. Uma calma estranha o invadiu, deixando-o mais parecido com uma criança curiosa observando algo de interesse considerável, porém não irresistível. O Redentor Picarbo continuou puxando sua batina, estupefato, revelando a enorme mancha vermelha que cobria suas calças de
baixo. Ele puxou a mão de volta como se ofendido, olhou para Cale com uma expressão de “Está vendo o que fez?”, e, então, rasgou a calça por sobre a ferida, expondo a pele da própria coxa. Sangue brotava do pequeno talho em jatos sucessivos. O Redentor ficou olhando para ele, totalmente perplexo, então encarou Cale com a mesma expressão.
- Traga-me uma toalha – disse, gesticulando para uma pilha de panos na mesa ao lado da garota morta. Cale reagiu levantando-se, mas não saiu de onde estava. Era como se apenas parte do que ele via fosse real. O Redentor à sua frente tentando conter a hemorragia com os dedos e suspirando de irritação, como se tivesse causado um vazamento pequeno, porém muito inconveniente; a mancha preta de sangue espalhando-se, implacável, pelo chão. Era impossível assimilar aquela cena e o que ela significava. A parte dele incapaz de compreender o que havia feito estava pensando que era impossível voltar atrás e tornar as coisas como elas eram há menos de um minutos, e que, quanto mais esperasse para fazer isso, mais difícil seria. No entanto, também sabia que não havia nada a fazer. Tudo tinha mudado, terrível e completamente. Um versículo que ele ouvira uma centena de vezes do Livro de Provérbios dos Redentores voltou-lhe à memória e ficou ecoando sem parar em sua cabeça: “Nós somos como a água esparramada no chão que não pode ser juntada novamente.” Assim, ele continuou olhando, petrificado, enquanto Picarbo se recostava e, como se estivesse exausto, apoiava-se primeiro no próprio cotovelo e, depois, estendia-se no chão.
Cale continuou observando enquanto a respiração do corpo dele cessava e a luz nos olhos desaparecia aos poucos. O Redentor Picarbo, o qüinquagésimo a receber o título de Lorde Disciplinador, estava morto.
6
Kleist acordou com a sensação de estar sendo sufocado e pressionado contra a cama. O motivo era simples: Cale tapava sua boca com a mão, enquanto Henri Embromador prendia-lhe as mãos dos lados do corpo.
- Shhhh! Somos nós, Cale e Henri. – Cale esperou Kleist parar de se debater e então tirou a mão de cima da sua boca. Henri soltou um pouco seus braços. – Você precisa vir com a gente agora. Se ficar, está morto. Você vêm?
Kleist se sentou na cama e olhou para Henri Embromador sob a escuridão iluminada pela lua.
- Isso é verdade?
Henri assentiu. Kleist deu um suspiro e se levantou.
- Cadê o Spider? – perguntou Kleist, olhando ao seu redor em busca do Redentor do dormitório.
- Foi fumar um cigarro. Temos que ir andando.
Cale deu meia-volta e os outros dois o seguiram. Então ele parou e se agachou rente à cama de um menino que fingia estar dormindo.
- Se disser uma palavra para Spider, Savio, eu vou estripar você, seu merdinha. Entendido? – O menino desperto assentiu sem abrir os olhos e Cale seguiu em frente.
Depois de atravessar a porta que Spider, descuidado como sempre, havia deixado destrancada, Cale os conduziu até o púlpito. Então, mantendo-se do lado do muro, seguiu até a grande estátua do Redentor Enforcado, chegando à entrada que haviam descoberto no dia anterior.
- O que está acontecendo? – perguntou Kleist.
- Fique quieto.
Cale abriu a porta e empurrou os dois para dentro. Então, acendeu uma vela muito mais brilhante do que qualquer coisa que tinham visto na vida.
- Como você abriu a porta? – perguntou Kleist.
- Com um pé de cabra.
- E onde arranjou esta vela?
- No mesmo lugar em que arranjei o pé de cabra.
Kleist se voltou para Henri Embromador.
- Você sabe o que está acontecendo? – Henri balançou a cabeça. Cale foi até o canto esquerdo do túnel e ergueu a vela.
- Meu Deus! – disse Kleist ao ver a figura aterrorizada agachada
no chão.
- Está tudo bem – disse Cale, agachando-se em direção à garota. – Eles estão aqui para ajudar – acrescentou ele, sem muita convicção.
- Conte-me o que está acontecendo – exigiu Kleist. – Ou nós vamos sair no braço aqui e agora.
Cale olhou para ele e sorriu, embora com certa amargura.
- Preste atenção... – disse ele, apagando a vela com um sopro. Vinte minutos depois, havia terminado a história e acendido a vela de volta.
Os dois meninos ficaram olhando para ele e para a garota, horrorizados com o que tinham acabado de ouvir e, ao mesmo tempo, fascinados pela menina. Kleist precisou de um momento para se recompor.
- Você matou Picarbo, Cale. Porque nos arrastar para isso?
- Não seja idiota. Assim que descobrirem que fui eu, eles irão torturar Henri porque sabem que nós somos amigos. Depois, ligarão Henri a você. Do meu jeito, você tem uma chance.
- Mas eu não tenho nada a ver com isso.
- E que diferença faz? Você foi visto conversando comigo pelo menos duas vezes nos últimos dias. Eles o matarão para provar que estão certos e para não correrem riscos.
- Isso significa que você tem um plano? – perguntou Henri, com medo, mas tentando se acalmar.
- Sim – disse Cale. – Provavelmente não vai dar certo. Mas temos uma chance. – Ele apagou a vela e lhes contou o que havia bolado.
- Você tem razão – disse Kleist depois que ele terminou. – Provavelmente não vai dar certo.
- Se tiver alguma idéia melhor... – Cale deixou a frase pelo meio. Ele acendeu a vela de volta e a aproximou da garota, que estava com o olhar distante, tremendo e abraçando o próprio corpo.
- Qual o seu nome? – perguntou Cale. A principio, ela não pareceu escutá-lo, então voltou os olhos para o seu rosto. Porém, não falou nada.
- Pobrezinha – disse Henri Embromado.
- Ela é alguma coisa sua para você ficar sentindo pena? – disse Kleist com amargura, dividido entre seu próprio medo e a criatura estranha encolhida no canto do túnel. – Você deveria estar preocupado é com sua própria pele.
Cale se levantou, entregou a vela para Henri Embromador e foi
até a porta.
- Agora – disse ele.
Henri apagou a luz. Ouviu-se o som da porta abrindo e fechando, e Henri Embromador, Kleist e a garota se viram numa escuridão total.
O choque causado pelos acontecimentos daquela noite começou a passar enquanto Cale atravessava o Santuário pela terceira vez. Ele continuava, obviamente, seguindo pelas sombras porém estava mais calmo àquela altura. Começava a perceber que seus hábitos de uma vida inteira – a consciência de que estava sendo observado a cada momento, de que sempre havia olhos preparados para perceber e informar cada passo seu – já não eram necessários. Os Redentores tinham bons motivos para supor que sua habilidade de vigiar os acólitos, aliada à crueldade dos castigos a qualquer desobediência imaginada ou real, manteria a ordem entre eles. Partiam do pressuposto que, à noite – com os acólitos trancados em seus dormitórios, exaustos e temendo, com razão, as conseqüências de uma tentativa de fuga -, podiam diminuir sua vigilância obsessiva. Ao atravessar o Santuário pela terceira vez naquela noite em um espaço de poucas horas, Cale vira apenas um Redentor ao longe.
Ele foi invadido por uma estranha euforia. As pessoas que odiava e pareciam tão invulneráveis não eram nada disso. Tinha sido mais esperto que Bosco, matado o Lorde Disciplinador e estava transitando com facilidade pelo Santuário. Um alarme soou bem no fundo do seu coração, dizendo-lhe para não ficar tão convencido: “Tome cuidado, ou vai acabar na forca.”
Ainda assim, por mais que ele pensasse sobre o assunto – e por mais que aquilo cheirasse à imprudência -, fazia sentido voltar aos aposentos do Lorde Disciplinador. Ele havia pegado algumas coisas antes de sair com a garota, porém, se os quatro quisessem ter alguma chance de sobreviver lá fora, precisariam... na verdade, Cale não sabia do que eles precisariam, mas provavelmente encontraria muitas coisas úteis nos aposentos do morto e seria uma tolice não aproveitar essa chance. Com sorte, o corpo do Redentor só seria descoberto dali a quatro horas.
Dez minutos depois, Cale estava parado sobre o cadáver de Picarbo novamente. Ele se deteve por um instante e então começou sua
busca. Foi uma experiência estranha, pois havia coisas demais ali. Aos acólitos, não era permitido ter nada. Mesmo os Redentores deveriam possuir apenas sete coisas, embora ninguém soubesse por que não seis ou oito. Havia inúmeras delas nos aposentos de Picarbo. Muitas, Cale nem sabia o que eram e teria adorado passar algum tempo simplesmente girando-as em suas mãos e especulando para que serviriam – como era estranho e agradável tocar um pincel de barba de pele de texugo e sentir o cheiro maravilhoso e a textura escorregadia de uma barra de sabão. No entanto, a morte logo tolheu sua curiosidade e ele começou a escolher o que colocaria na mochila que havia encontrado: facas, um telescópio, uma coisa fabulosa que ele tinha visto Bosco usar através das ameias da fortaleza, um amolador para os instrumentos cirúrgicos de Picarbo, uma sacola de linho, algumas ervas que ele já vira sendo usadas para tratar feridas, agulhas de fino calibre, linha, um rolo de barbante. Ele vasculhou os armários, porém, a maioria deles continha apenas vasos sobre vasos de amostras de órgãos conservados de corpos femininos. Cale, obviamente, não reconheceu boa parte deles. Não que precisasse de qualquer tipo de justificativa para matar Picarbo, um homem que ele havia visto espancar várias crianças durante punições formais e até matar uma delas. No entanto, os órgãos cuidadosamente desidratados o fizeram sentir repulsa e pavor ao mesmo tempo.
Então, ele tentou abrir uma das portas que conduziam para além daquela sala, evitando olhar para a pobre criatura sobre a mesa de dissecação.
Assim que conseguiu, um cheiro forte e desagradável de padre encheu suas narinas. Cale já havia notado, sempre que ficava entre mais de dois Redentores em um espaço fechado, que eles tinham um cheiro esquisito. Porém, naquele aposento, ele parecia estar entranhado nas próprias paredes – um fedor de coisa podre, como se tudo que houvesse dentro deles, a própria alma que os animava, estivesse em processo de decomposição. Enquanto saía, ele não quis olhar para o corpo da menina, mas algo o atraiu em sua direção. Ele olhou apenas por um instante para a mutilação minuciosa daquela bela jovem. Sentiu um arroubo incomum de pena que algo tão macio e delicado pudesse ter sido destruído de tal maneira. Então, seu olhar detectou o pequeno objeto duro na bandeja de metal que o Lorde Disciplinador havia retirado do estômago da menina logo antes de Cale sair dali pela primeira vez. Não era um osso ou nada que parecesse muito repulsivo – possuía o formato e a textura de um pequeno seixo alisado pela exposição continua a uma corrente de água veloz. Era de um marrom puxado para o dourado, leitoso e translúcido. Cuidadosamente, ele o tocou com o indicador. Então o apanhou e pôs-se a observá-lo,
cheirando-o em seguida. Foi quase subjugado por aquele odor, como se cada célula do seu cérebro tivesse sido tomada pelo perfume estranho, porém maravilhoso. Cale ficou parado por um instante, entorpecido e prestes a desmaiar. Porém, tinha que ir embora. Ele respirou fundo e continuou a busca, enchendo a mochila com mais algumas coisas que talvez pudessem ser úteis e algumas outras das quais apenas gostou da aparência. Em seguida saiu pela porta para retornar ao seu esconderijo.
7
Cale vinha planejando sua fuga há quase dois anos. Ele jamais usaria o plano em questão se tivesse escolha, pois as chances de sucesso eram muito pequenas. Os Redentores moviam mundos e fundos para recapturar fugitivos, para os quais a punição era enforcamento seguido de esquartejamento. Ninguém, até onde Cale sabia, havia conseguido despistar os Cães do Paraíso e seu palno de longo prazo para escapar dos Redentores envolvia paciência, seu plano de longo prazo para escapar dos Redentores envolvia paciência, aguardar até os 20 anos de idade, ser enviado para a fronteira e aproveitar sua chance quando ela chegasse. “De qualquer forma”, pensou ele com seus botões, “que bom que me preparei para isso”. Enquanto se esgueirava pelo púlpito, ele tentava não pensar nas chances de aquilo dar certo. Apesar disso, não conseguia conter a raiva ao ver o quanto sua intervenção lhe custara. Salvar a menina tinha sido inútil. Tudo que conseguira com Áquila era a morte quase certa: a sua e – o que era menos importante – a de Henri Embromador e Kleist. Idiota! Ele respirou fundo e tentou se acalmar. Mas ela parecera tão feliz na noite anterior, seu sorriso tão... o quê? Era difícil descrever o que ele sentia sobre a felicidade, sobre ver alguém feliz de fato. Era isso que tinha voltado à sua memória quando ele tentou ir embora e ficou parado no corredor escuro, tremendo por conta do que vira nos aposentos do Lorde Disciplinador e do horror daquela crueldade repugnante. Aquilo o deixara lívido de raiva, coisa com a qual já
estava acostumado, porém, pela primeira vez na vida, Cale dera vazão a ela. “Mas nada de bom saiu disso”, pensou ele. “Nada mesmo.”
Fosse como fosse, ela já havia chegado. Estava em um pequeno vão depois do púlpito principal, que tinha uma fenda em uma das pontas, não exatamente uma passagem, mas apenas o local onde parte de um muro interno não se encontrava direito com a muralha externa do Santuário. Ele deslizou de lado para dentro dela, pretendo a respiração e se enfiando com dificuldade na abertura. Dentro de alguns meses, já estaria grande demais para passar por ali. No entanto, ele estendeu o braço para agarrar um apoio que tinha cavado quando era menor e conseguiu entrar raspando. Estava escuro demais para enxergar, mas o espaço era pequeno e Cale conhecia bem o esconderijo. Ele se agachou, puxando um dos tijolos soltos para fora e depois o que havia do seu lado, deslocando em seguida os dois meios tijolos em cima deles.
Em seguida, enfiou a mão no buraco e puxou uma corda longa trançada com esmero, em cuja ponta havia um gancho de ferro. Então, empertigou-se e se espremeu de volta entre as paredes.
De volta ao vão, ficou escutando por um instante. Nada. ergueu o braço e tateou a superfície áspera do muro principal, enfiando o gancho em uma pequena fissura que talhara no mês anterior, logo após terminar de trançar a corda. Ele a havia feito não de juta ou sisal, mas com os fios de cabelo dos acólitos e Redentores que catara dos banheiros durante os anos em que trabalhara como faxineiro – uma função repugnante, sem dúvida, que lhe causara engulhos diversas vezes, mas que Cale se forçara a suportar por ver nela uma chance de sobrevivência. Ele puxou a corda para se certificar de que estava presa. Então, com uma força impressionante para um menino de 14 anos, içou o próprio corpo e se encaixou entre as duas paredes do vão, apoiando as costas contra uma e os pés contra a outra. Soltou o gancho, erguendo-o novamente até outra fissura e repetiu várias vezes o processo. Durante a hora seguinte, movendo-se não mais que 60 centímetros por vez – e muitas vezes menos – ele foi subindo até o topo da muralha do Santuário.
Quando rolou pela beirada do topo, ele soltou um grunhido exausto de satisfação. Ficou deitado ali por cinco minutos, seus braços como pesos mortos, sem vida exceto pela dor excruciante. Não ousou esperar mais que isso. Estendendo o braço para baixo, puxou a corda desenrolada atrás de si e enfiou o gancho na maior fissura que conseguiu encontrar. Então, jogou a corda pelo outro lado.
Esperava que ela fizesse um barulho quando batesse no chão, porém, o som que a corda fez quando ele a balançou para cima e para baixo não lhe pareceu nem um pouco claro. Ela tinha a metade da altura do muro, como no lado de dentro do Santuário, porém, até onde ele sabia, aquela parte da muralha poderia ter sido construída à beira de um precipício.
Ele olhou para baixo, em direção à escuridão insondável, se deteve por um momento e então desceu o corpo pela beirada. Com a mão direita, tateou em busca da corda e a esticou de tal forma que o gancho foi obrigado a fincar sua ponta na fissura. Com uma das mãos no muro e a outra mantendo a corda retesada, ele parou onde estava ao perceber como aquela situação era apavorante. Mesmo assim, melhor isso do que ser enforcado e frito. E, com esse pensamento consolador em mente, soltou o muro, deixou a corda agüentar o tranco e desceu pela beirada.
Com as pernas cruzadas sobre a corda, Cale foi descendo de mão em mão. Essa era a parte fácil, pois seu peso fazia todo o trabalho. Na verdade, ele teria ficado exultante, não fosse pelo fato de a corda não ter sido testada e poder arrebentar ou se desfazer de tanto se arrastar contra os muros ásperos – além da hipótese desagradável de ela não ser longa o bastante e deixá-lo pendurado a 30 metros do solo. Mesmo se caísse de uma altura de 3 metros nas rochas, quebraria a perna. Mas de que adiantava se preocupar? Era tarde demais.
Em menos de cinco minutos, ele já havia alcançado o nó na corda que lhe dizia faltarem apenas 15 metros para ela acabar. Então, chegou ao marco de 3 metros. E, por fim, ao nó grande na ponta.
Não havia nada abaixo dele. Ele deslizou pelo nó até estar se segurando apenas com uma das mãos.
Um. Dois. Três. Ele soltou.
8
De poucos em poucos minutos. Kleist e Henri Embromador acendiam a vela que Cale roubara do Lorde Disciplinador e olhavam para a garota. Haviam concordado que era melhor dar uma conferida nela de vez em quanto. Afinal de contas, tinham nove velas, de modo que não precisavam economizar. Eles já haviam visto pessoas ficarem caladas como aquela garota e com aquele mesmo olhar cego e estranho, geralmente meninos que tinham levado mais de cem chibatadas. Se ficassem assim por mais de dois dias, eram levados embora e nunca mais voltavam. Os que conseguiam se recompor costumavam acordar aos gritos no meio da noite, semanas ou até meses depois – no caso de Morto, foram anos. Então eles desapareciam também.
Era por isso, diziam para si mesmos, que ficavam de olho na garota. Se ela começasse a gritar, alguém poderia ouvir.
Sempre que acendiam a vela, Henri Embromador dizia para ela: “Vai ficar tudo bem.” A garota não respondia, limitando-se a estremecer de vez em quando. Na terceira vez em que acenderam a luz, Henri se lembrou de algo do passado muito distante, uma frase que lhe veio à cabeça, algo reconfortante que ouvira certa vez e do qual se esquecera há tempos.
- Passou, passou – disse ele. – Passou, passou.
Porém, eles tinham outro motivo para ficarem acendendo a vela, além de conferirem a garota: não conseguiam parar de olhar para ela. Ambos tinham chegado ao Santuário aos 7 anos de idade, saídos de uma vida que, àquela altura, lhes parecia tão distante quanto a lua. Os pais de Henri Embromador tinham morrido pouco depois de ele nascer. Os de Kleist o haviam vendido por cinco dólares aos Redentores e eram apenas um pouco menos violentos com ele. Os dois não viam uma garota ou mulher desde que passaram pelos grandes portões do Santuário, e tudo que os Redentores haviam lhes dito era que mulheres e garotas eram joguetes do diabo. Se por acaso vissem alguma delas quando deixassem a fortaleza em direção à fronteira ou aos Vales Ocidentais, deveriam baixar os olhos. “O corpo de uma mulher é o pecado encarnado, clamando aos céus por vingança!” Apenas uma mulher deveria ser olhada sem repulsa ou temor: a mãe do Redentor Enforcado que, caso único entre o seu sexo, era pura. Ela era fonte de compaixão, perpétuo socorro e conforto – embora os meninos não fizessem idéia do que significavam essas virtudes, uma vez que jamais haviam se deparado com nenhuma delas. Os Redentores eram igualmente vagos sobre o que implicava toda essa coisa de as mulheres serem joguetes do diabo. Por conta disso, Kleist e Henri Embromador se sentiam impelidos a observar a garota com uma curiosidade profunda, misturada a um medo e assombro consideráveis. Qualquer criatura que conseguisse levar os Redentores a arroubos tão intensos de repulsa e ódio deveria ser bastante poderosa e, portanto, de maneiras que eles jamais conseguiriam sequer imaginar, digna de medo.
Naquele momento, tremendo e apavorada sob a luz da vela, a garota não parecia nada assustadora. Ela ainda era, no entanto, fascinante. Para começo de conversa, suas formas eram extraordinárias. Ela usava um vestido de linho de boa qualidade, muito melhor do que qualquer coisa que os meninos já tivessem vestido, amarrado em volta da cintura por um cordão.
Kleist pediu para Henri Embromador se afastar e abaixou a cabeça para sussurrar no ouvido dele.
- O que são aquelas saliências no peito dela? – perguntou ele.
Henri Embromador, com o máximo de deferência possível, levando-se em conta que ele não sabia como se comportar em relação a uma mulher, estendeu a vela em direção aos seus seios e os observou com atenção.
- Não sei – sussurrou ele por fim.
- Ela deve ser gorda – sussurrou Kleist. – Como aquele merda do Lorde dos Víveres. – Obviamente, quase não havia meninos gordos no Santuário. Podia-se contá-los nos dedos entre todos os 10 mil.
Henri Embromador refletiu sobre aquilo.
- O Lorde dos Víveres é pelancudo e redondo. Ela é toda cheia
de curvas.
- Pegue para ver, então – disse Kleist.
Henri pensou na hipótese por um instante.
- Não, talvez seja melhor a gente deixá-la em paz – disse ele. – A coitada deve ter levado uma surra dele.
Kleist deu um suspiro profundo enquanto analisava a garota.
- Ela não tem cara de quem agüenta uma surra, não do tipo que Picarbo é capaz de dar.
- Costumava dar – corrigiu Henri Embromador. Os dois grunhiram com uma satisfação estranha, levando-se em conta o perigo em que a morte dele os colocara.
- Por que será que ele bateu nela? – perguntou-se Kleist.
- Provavelmente – disse Henri Embromador -, por ela ser um joguete do diabo.
Kleist assentiu. Parecia plausível.
- Como você se chama? – perguntou Henri Embromador, não pela primeira vez. Novamente, ela não respondeu. – Quanto tempo será que Cale vai demorar? – disse ele
- Você acha que ele tem um plano?
- Acho – disse Henri Embromador, em um tom de certeza absoluta. – Quando ele diz uma coisa, é pra levar a sério.
- Bem, fico feliz que você tenha tanta certeza. Quem me dera pensar assim.
Então a garota disse algo, mas tão baixinho que eles não conseguiram ouvir.
- Hã, o que você disse? – perguntou Henri Embromador.
- Riba. – Ela respirou fundo. – Meu nome é Riba.
9
Enquanto descia pela escuridão profunda, os dois maiores medos de Cale se tornaram realidade. Primeiramente, seus pés chegaram ao nó grande que havia feito na ponta da corda com ele ainda no meio do ar, sem fazer idéia do quanto faltava até o solo. Em segundo, lugar, ele conseguia sentir que a tensão sobre o gancho de ferro que sustentava seu peso tinha sido forte demais. Mesmo estando tão longe do topo, percebia que ele estava começando a ceder. “Você vai cair de qualquer jeito”, pensou ele com seus botões e, tomando impulso com os dois pés na muralha, Cale ergueu os braços para proteger a cabeça e arriscou a queda.
Quer dizer, se é que um tombo de uma altura de 60 centímetros pode ser chamado de queda. Um Cale maravilhado se levantou e ergueu as mãos, triunfante. Então, apanhou uma das velas que havia roubado do Lorde Disciplinador e tentou acendê-la com limo seco e uma pederneira. Algum tempo depois, conseguiu fazer uma chama e acendeu a vela, porém, quando a ergueu em meio à vasta escuridão , sua luz era tão fraca que ele não conseguiu enxergar quase nada. Então, o vento a apagou.
A escuridão era total, à medida que uma nuvem grossa eclipsava a lua. Se tentasse andar, ele poderia cair, e até mesmo um ferimento superficial que o atrasasse significaria a morte. Era melhor esperar mais ou
menos duas horas até o amanhecer. Com essa decisão tomada, Cale se enrolou na própria batina, deitou no chão e adormeceu.
Quase duas horas depois, abriu os olhos e descobriu que a alvorada cinza-escura já lhe dava luz suficiente para enxergar o caminho. Ele olhou de volta para a corda que pendia da muralha, apontando o local em que ele iniciara sua fuga como um enorme dedo indicador. Contudo, não havia nada a fazer quanto àquilo, nem quanto ao remorso por estar deixando para trás algo que lhe custou 18 meses, e engulhos sem fim, para fazer. Ela parecia um rabo de cavalo de 60 metros, embora Cale nunca tivesse visto um na vida. Ele se virou e, sob a luz nascente, desceu pela encosta rochosa e acidentada da Colina do Santuário, satisfeito com a possibilidade de ainda ter uma hora antes que o corpo do Lorde Disciplinador fosse descoberto e, com sorte, outras duas antes de encontrarem a corda.
Ele não teve sorte em nenhum dos dois casos. O corpo do Redentor Picarbo havia sido descoberto meia hora antes do amanhecer por seu criado, cujos gritos histéricos fizeram o Santuário inteiro, por maior que fosse, acordar e ficar em polvorosa em questão de minutos. Os acólitos de todos os dormitórios foram acordados rapidamente e a chamada feita, e logo ficou claro que três deles estavam desaparecidos.
Brunt Farejador, que cuidava dos cães e era o Redentor encarregado de capturar os pouquíssimos acólitos idiotas o suficiente para tentar escapar, foi convocado imediatamente pelo Redentor Bosco e, pela primeira vez na vida, conduzido ao seu gabinete sem demora.
- Quero os três de volta vivos, e com isso quero dizer que você fará tudo ao seu alcance para que isso aconteça.
- É claro, Lorde da Guerra. Eu sempre...
- Poupe-me – interrompeu Bosco. – Não estou pedindo que você seja cuidadoso, estou mandando. Sob nenhuma circunstância, nem mesmo que lhe custe a própria vida, Thomas Cale deve ser ferido. Creio que não há problema se Kleist e Henri forem mortos, embora eu também os prefira vivos.
- O senhor me permite perguntar por que a vida de Cale é tão preciosa, senhor?
- Não.
- O que devo dizer aos outros? Eles jamais entenderão uma coisa dessas e estão furiosos.
Bosco percebeu aonde Brunt queria chegar. A ira sagrada podia dominar até o mais obediente Redentor diante de um acólito que fez algo tão inimaginavelmente terrível. Ele suspirou com irritação.
- Você pode sugerir que Cale está sob minhas ordens e foi forçado a acompanhar esses assassinos enquanto tentava desvendar uma conspiração das mais tenebrosas para assassinar o Sumo Pontífice. – Essa, pensou Bosco, é uma desculpa medíocre, porém boa o suficiente para Brunt, que ficou imediatamente pálido de aflição. Ele era de uma brutalidade excepcional, mesmo para os padrões dos Redentores responsáveis pelos canis, porém, o zelo profundo que Brunt sentia pelo Pontífice, como o de uma mãe pelo filho, era evidente para qualquer um.
A corda de fios de cabelo de Cale foi logo descoberta e seu cheiro mostrado para os Cães do Paraíso. Em seguida, os portões foram abertos e uma equipe de caçadores foi enviada, com Cale a menos de 8 quilômetros de distância dali. No entanto, em seu aspecto mais importante, o plano tinha sido um sucesso: não ocorrera a ninguém que apenas um acólito tivesse escapado, de modo que não foi feito nenhum tipo de busca dentro do Santuário. Por ora, Henri Embromador, Kleist e a garota estavam a salvo. Partindo do principio, é claro, que Cale mantivesse sua promessa.
Cale já havia andando outros 6,5 quilômetros quando ouviu, muito ao longe, o som de cães se deslocando contra o vento. Ele se deteve e ficou escutando no silêncio. Por um instante, havia apenas o vento gelado raspando as rochas arenosas. Então, ficou claro que, por mais distante que aquele som lhe parecesse, cedo ou tarde ele enfrentaria problemas. Era um barulho estranho e agudo, diferente dos latidos habituais de uma matilha de cães de caça, e que mais parecia um grito contínuo de raiva, como os guinchos de um porco degolado por uma serra enferrujada. E aqueles cães eram, de fato, grandes como porcos, mais ferozes do que javalis e com presas que davam a impressão de que alguém tinha despejado uma sacola cheia de pregos enferrujados em suas bocas. O som morreu novamente enquanto ele procurava algum sinal do oásis de Voynich. Nada saltava à vista na extensão sem fim de outeiros pedregosos e de aparência doentia que davam às Terras Crestadas seu nome. Ele se pôs a correr novamente, desta vez, mais rápido do que nunca. Havia um longo caminho pela frente e, com os cães de caça tão próximos, ele sabia que teria sorte se conseguisse passar do meio-dia. Se andasse devagar demais, os cães o
pegariam; se corresse, seria derrotado pelo cansaço. Ele bloqueou todos esses pensamentos e ficou escutando apenas o ritmo da sua própria respiração.
- Há quanto tempo você está aqui, Riba?
Por um instante, ela pareceu não ter escutado Henri Embromador, então o encarou como se tentasse colocá-lo em foco.
- Estou aqui há cinco anos. – Os meninos trocaram olhares de perplexidade.
- Mas por que você está aqui? – disse Kleist.
- Nós viemos para cá para aprendermos a ser noivas – disse ela. – Mas eles mentiram. Ele matou Lena, aquele homem, e teria me matado também. Por quê? – Suplicou a garota, transtornada. – Por que alguém faria uma coisa dessas?
- Não sabemos – disse Kleist. – Não sabemos nada a seu respeito. Não fazíamos idéia de que você existia.
- Comece do começo – disse Henri Embromador. – Conte para a gente como veio parar aqui, de onde saiu.
- Não precisa se apressar – falou Kleist – Temos tempo de
sobra.
- Ele vai voltar para buscar a gente, não vai, aquele outro
menino?
- O nome dele é Cale.
- Ele vai voltar, certo?
- Vai – disse Henri Embromador. – Mas a gente pode ter que esperar bastante.
- Eu não quero esperar aqui – disse ela, furiosa – É frio, escuro e horrível. Não vou esperar aqui!
- Fale baixo.
- Deixe-me sair, agora, ou eu grito.
A questão não era que Kleist nem imaginava como tratar um membro do sexo oposto, mas sim que não fazia idéia de como lidar com alguém que se comportasse de maneira tão emotiva. Expressar raiva descontrolada geralmente significava uma visita a um buraco de 90 centímetros de profundidade no cemitério de Ginky’s Field. Kleist ergueu o braço para calá-la, mas Henri o impediu.
- Você precisa ficar quieta. – disse ele para Riba. – Cale vai voltar e nós a levaremos para um lugar seguro. Mas, se eles nos ouvirem, estamos mortos. Você tem que entender isso.
Ela o encarou por um instante, como se a própria loucura estivesse sussurrando em seu ouvido. Então, assentiu com a cabeça.
- Conte para a gente de onde você veio e o máximo que souber sobre por que está aqui.
Em meio à sua enorme agitação, Riba tinha se levantado, uma garota alta e formosa, embora gorducha. Ela se sentou de volta e respirou fundo para se acalmar.
- A madre Teresa me comprou no mercado de escravos em Memphis quando eu tinha 10 anos. Ela comprou Lena, também.
- Você é uma escrava? – disse Kleist.
- Não – disse a garota sem titubear, envergonhada e ofendida. – A madre Teresa nos dizia que éramos livres e podíamos ir embora quando quiséssemos.
Kleist riu.
- Então por que você não foi?
- Porque ela era boa com a gente. Nos enchia de presentes, nos paparicava como se fôssemos gatas siamesas, nos dava comidas maravilhosas e muitas coisas bonitas, além de nos ensinar a sermos noivas e nos dizer que, quando estivéssemos preparadas, teríamos um cavaleiro de armadura reluzente que nos amaria e tomaria conta de nós para sempre. – Ela parou de falar, quase sem fôlego, como se o que dizia estivesse de fato acontecendo e os horrores do dia que passou fossem apenas um sonho. E
foi melhor assim, pois muito pouco do que disse fez sentido para os meninos.
Henri Embromador se voltou para Kleist.
- Não estou entendendo. É contra a Fé possuir escravos.
- Nada disso faz sentindo. Por que os Redentores comprariam garotas para fazer todas essas coisas com elas e depois as retalharem como...
- Cale a boca! – Henri Embromador olhou para a garota, mas ela estava, por ora, perdida em seu próprio mundo. Kleist suspirou com irritação. Henri Embromador o afastou dali e baixou a voz. – Como você se sentiria se tivesse que ver aquilo acontecendo com uma pessoa com quem conviveu por cinco anos?
- Eu agradeceria à minha estrela da sorte por ter um desmiolado como o Cale por perto para me salvar. Você precisa – acrescentou ele – se preocupar mais com a gente e menos com aquela garota. O que ela significa para a gente ou a gente para ela? Deus sabe que nós não precisamos procurar mais sarna para nos coçar.
- O que está feito, está feito.
- Mas ainda não está feito, está?
Como isso era verdade, Henri Embromador ficou em silêncio por um instante.
- Por que logo os Redentores – disse ele, finalmente, sussurrando – trariam criaturas que eram joguetes do diabo para dentro do Santuário, lhes dariam de comer, cuidariam delas e depois as cortariam em pedacinhos ainda vivas?
- Porque eles são uns desgraçados – disse Kleist em um tom sombrio. Porém, ele não era bobo e a pergunta o intrigava. – Por que eles multiplicaram o número de acólitos por cinco, talvez até por dez? - Então, Kleist praguejou e se sentou no chão. – Diga-me uma coisa, Henri.
- O quê?
- Se soubéssemos a resposta, você se sentiria melhor ou pior? – E, ao ouvir isso, ele se calou de vez.
Cale estava urinando sobre a beirada de um dos outeiros semidesmoronados das Terras Crestadas. Àquela altura, o latido estridente dos cães já soava próximo e ininterrupto. Ele terminou, esperando que o cheiro os desviasse do seu verdadeiro trajeto por alguns minutos. Apesar do descanso, estava ofegante, suas coxas pesadas começavam a retardá-lo. Pelos seus cálculos, que se baseavam no mapa que encontrara no gabinete do Redentor Bosco, ele já deveria estar no oásis. No entanto, ainda não havia sinal dele, apenas os outeiros, as rochas e pedras que se estendiam até onde a vista alcançava. Somente então Cale admitiu a possibilidade que vinha carregando consigo desde que havia encontrado o mapa – a de que aquilo era uma armadilha preparada para ele pelo Lorde da Guerra.
Não fazia sentido desacelerar agora; os cães estariam em cima dele em questão de minutos. Não houve interrupção no barulho, o que significava que eles haviam deixado de sentir ou ignorado o cheio de sua urina. Ele começou a correr o mais rápido possível, embora estivesse cansado demais depois de quatro horas para aumentar em muito sua velocidade.
Os cachorros ladravam, preparados para matar, e Cale começou a diminuir o ritmo, sabendo que jamais conseguiria correr mais rápido do que eles. Sua respiração chiava como se areia estivesse sendo raspada contra os seus pulmões e ele começou a tropeçar. Então, caiu.
Cale se levantou em um instante, porém, a queda o fizera olhar ao seu redor. Ainda os mesmos outeiros e as mesmas rochas, mas já era possível ver mato ressecado e tufos de grama na areia. Onde havia grama, só poderia haver água. Imediatamente, os latidos ficaram mais intensos, como se os cães tivessem sido açoitados com um chicote coberto de pregos. Cale saiu correndo em busca do oásis, rezando para estar indo na direção certa, e não o contornando rumo a mais deserto e à morte certa.
Contudo, a grama e o mato ficaram mais espessos e, depois de quase levar um tombo ao saltar por sobre uma colina, Cale se viu diante do oásis de Voynich. Àquela altura, os cachorros estavam uivando, pois sentiam que a caçada chegara ao fim. Cale continuou correndo, tropeçando conforme seu corpo começava a se rebelar. Ele sabia que não devia olhar para trás, mas não pôde evitar. Os cães de caça saltavam do topo da colina como pedras de carvão de dentro de um saco, latindo e uivando em seu
desespero para fazê-lo em pedaços e se atrapalhando enquanto rosnavam e mordiam uns aos outros.
Ele continuou correndo à medida que os cães saltavam em sua direção, com as costas vergadas e arreganhando os dentes. Então, conseguiu ver as primeiras árvores do oásis. Um dos cachorros, mais rápido e feroz que os demais, já estava em cima dele. A criatura sabia o que fazer e enganchou o calcanhar de Cale com a pata da frente, fazendo-o perder o equilíbrio e se estatelar no chão.
Isso deveria ter sido o fim – porém, de tão afoito em agarrar sua presa, o cão também se desequilibrou. Desacostumado à superfície mais úmida e movediça do oásis, ele não conseguiu apoio e caiu de cara, dando uma cambalhota e levando uma pancada forte na espinha ao bater contra uma árvore. O cão uivou de raiva, porém, seu desespero em ficar de pé só piorou a situação, à medida que ele se debatia em busca de equilíbrio no solo instável. Cale correu em direção ao lado no centro do oásis e já havia avançado 15 metros antes de o animal conseguir se levantar para segui-lo. Porém, ele não tardaria a alcançá-lo, uma vez que corria quatro vezes mais depressa do que o menino exausto. O cão venceu a distância rapidamente e estava prestes a saltar quando Cale saltou antes dele, descrevendo um longo arco no ar e espalhando água por toda parte ao atingir a superfície do lago.
O cão soltou um uivo de raiva ao parar na beirada do lago. Então, outro cachorro o alcançou, e depois outro; todos latindo para ele em um coro que parecia o fim do mundo – ódio, fúria e fome.
O Farejador e seus homens levaram cinco minutos para chegar, montados em seus pôneis, e encontrar os cães à beira do lago que alimentava o oásis. Eles ainda estavam latindo, porém, não havia nada à vista. O Farejador ficou parado na margem por algum tempo, observando e pensando – seu rosto, que nunca era bonito de se ver, enegrecido de decepção e suspeita. Finalmente, um dos homens falou.
- Tem certeza de que são eles, Redentor? Não seria a primeira vez que esses imbecis – disse ele, olhando para os cachorros – correram atrás de um cervo ou de um javali.
- Silêncio – falou Brunt em voz baixa. – Talvez eles ainda estejam aqui. Todos dizem que são ótimos nadadores. Cerquem esse lugar de guardas e dos melhores cães. Se estiverem aqui, nós os pegaremos. Mas, por Deus, Cale não deve ser ferido. – Na verdade, Brunt não havia contado nada a seus homens sobre a conspiração contra o Pontífice inventada por
Bosco. Ele não havia mentido ao Redentor sobre a ira dos seus subordinados, pelo menos não exatamente. Eles estavam enfurecidos, não havia dúvida, porém, cumpririam suas ordens pelo simples fato de que elas partiam dele. Ser o único Redentor comum a conhecer a terrível ameaça contra o Pontífice fazia com que Brunt sentisse um amor ainda mais profundo pela Sua Santidade, e ele não queria desperdiçá-lo compartilhando-o com terceiros.
Ele fez um gesto – um leve menear da cabeça, nada mais – e, no instante seguinte, os homens ao seu redor começaram a se mexer. Em menos de uma hora, o oásis estava completamente fechado.
No corredor secreto do Santuário, Riba estava dormindo, Kleist tinha ido caçar ratos, enquanto Henri Embromador observava a garota, intrigado com suas curvas estranhas e sentindo novos e embaraçosos impulsos juntamente com a fome e o medo. Ele fazia bem em estar assustado. Os Redentores não paravam de procurar por fugitivos até eles serem apanhados, por mais que demorasse. Quando finalmente os recapturavam, transformavam-nos em exemplos que congelariam o sangue nas veias de cada acólito por cem anos, fazendo seus corações pararem dentro do peito e seus cabelos ficarem em pé como os espinhos de um ouriço irritado. A crueldade e a agonia da punição e morte deles se tornariam uma lenda.
Apesar de entretido com os ratos, Kleist sentia praticamente o mesmo. O outro sentimento que os dois compartilhavam era a suspeita cada vez maior de que Cale estava a meio caminho de Memphis e que jamais voltaria. Na verdade, Kleist não tinha dúvidas disso, porém, mesmo o leal Henri Embromador não estava seguro do que Cale faria. Ele sempre quis ser seu amigo, embora não conseguisse entender bem por quê. O medo do anátema contra amizades dos Redentores fazia com que os acólitos se evitassem, principalmente porque eles bolavam armadilhas. Os meninos que possuíam algum charme e certa tendência à deslealdade, eram treinados pelos padres a desenvolverem ainda mais essas qualidades. Conhecidos como frangotes, esses meninos seduziam os incautos a trocar confidências, bater papo e brincar, entre outros sinais de amizade. Os que caíam na conversa deles levavam trinta golpes com uma luva coberta de pregos diante do dormitório inteiro e eram deixados sangrando ali por 24 horas. Contudo, nem mesmo conseqüências tão terríveis impediam alguns acólitos de se tornarem bons amigos e aliados na grande batalha para continuarem vivos ou serem engolidos pela fé dos Redentores.
No entanto, quando o assunto era Cale, Henri Embromador nunca sabia ao certo se a amizade deles era verdadeira. Henri se deu o trabalho de instigar Cale bancando o insolente com vários Redentores na frente dele, esperando impressioná-lo com sua esperteza e ousadia. Ainda assim, passou meses achando que o outro nem percebia o que ele estava fazendo, ou que, se percebesse, estava pouco se lixando. Cale mantinha sempre a mesma expressão atenta, fria e lacônica. Ele jamais deixava suas emoções transparecerem, fossem quais fossem as circunstâncias. Suas vitórias nos treinamentos não pareciam lhe dar prazer, assim como as punições cruéis para as quais Bosco geralmente o selecionava não pareciam lhe causar dor. Não era exatamente temido pelos acólitos, que tampouco gostavam dele. Ninguém conseguia entendê-lo; Cale não se rebelava, mas também não abraçava a fé. Todos o deixavam em paz, e Cale, até onde dava para perceber, preferia que fosse assim.
- Uma moeda pelos seus pensamentos. – Era Kleist, de volta da caça aos ratos, as presas sem rabo pendendo de um cordão em volta da sua cintura. Cinco delas. Ele desatou um nó, largou os roedores em uma pedra e começou a esfolá-los.
- Melhor prepará-los antes que ela acorde – disse Kleist, sorrindo. – Não acho que ela os comeria cozidos nas suas próprias peles.
- Por que você não deixa ela em paz?
- Você sabe que a gente vai morrer por causa dele, não sabe? Não que tenhamos muita chance, de qualquer forma. Seu amigo tem 12 horas para voltar, ou...
- Ou o quê? – interrompeu Henri Embromador. – Se você tiver um plano, desembuche. Sou todo ouvidos.
Kleist fungou e começou a estripar os ratos.
- Seu eu não tivesse essas belezinhas para comer – disse ele, gesticulando para os ratos -, estaria muito pessimista agora. Sobre nossas chances, quero dizer. Nossas chances de ver Cale novamente.
Depois de emergir de um dos canaviais às margens do lago, Cale atravessou cerca de 500 metros de escavações. Há 15 anos que os Redentores vinham até aquele oásis e levavam embora toneladas do húmus precioso que se formava sob as copas das árvores. Aquele húmus era mágico, capaz de enriquecer até mesmo o solo morto das hortas de vegetais
do Santuário. Ele era tão fértil que seu uso permitiu, sozinho, que o número de acólitos treinados ali fosse multiplicado por dez. Cale, no entanto, descobrira que o solo do oásis possuía outra propriedade. Certo dia, enquanto trabalhava nos jardins sob a vigilância dos cães que eram lançados sobre qualquer acólito que roubasse, Cale parou por um instante e tirou do bolso um pedaço de pé de defunto que havia encontrado no chão do refeitório. Logo que o cheirou, percebeu que ele não tinha caído da panela, mas sido jogado fora: estava podre e completamente intragável. Cale notou que um dos cachorros estava dormindo ali perto, enquanto seu cuidador olhava para o outro lado. Ele jogou a carne na direção da criatura, não por bondade, mas esperando que ela – que, como qualquer cão, comeria qualquer coisa – mandasse aquilo goela abaixo e passasse mal – o que seria bem feito. O pedaço de pé de defunto caiu perto do cão, em cima de um montinho de húmus do oásis ao lado da sua cabeça. O cachorro se levantou ao ouvir o barulho, alerta. Porém, apesar de haver comida debaixo do seu nariz – que conseguia sentir o cheiro de xixi de mosquito a mil metros de distância -, ele sequer olhou para o pedaço de carne. Em vez disso, encarou Cale, deu um bocejo e se coçou, deitando-se novamente e voltando a dormir. Mais tarde, depois que o guarda e o cão foram embora, Cale apanhou o pedaço de pé de defunto e o cheirou. Estava fedendo terrivelmente. Intrigado, ele envolveu a carne em um punhado de húmus que apanhara do chão. Então, cheirou-a novamente e tudo o que conseguiu sentir dessa vez foi um aroma forte e pungente de adubo.
Algo no húmus havia feito mais do que disfarçar o cheiro de gordura apodrecida: ele tinha desaparecido. Porém, somente enquanto os dois estavam em contato.
Voltando à horta nos dias seguintes, ele fez uma experiência com os cães, à medida que o pedaço de pé de defunto ficava cada vez mais fedorento. Em nenhuma das vezes eles sentiram cheiro algum. Por fim, Cale largou a carne sem a camada de húmus na calçada de pedra e, em questão de minutos, um dos cachorros a devorou, atraído pelo cheiro. Para grande satisfação de Cale, dez minutos depois ele pôde ver o cão botar suas prodigiosas tripas para fora em um canto.
Era mais perigoso do que difícil encontrar referência às origens do húmus na biblioteca. O Lorde da Guerra sempre lhe pedia para buscar mapas e arquivos nela, então, tudo que Cale precisava fazer era aguardar com paciência a chance de apanhar o arquivo certo e, depois, ter mais paciência ainda para aguardar a chance de devolvê-lo. Embora a probabilidade de ser apanhado fazendo isso fosse pouca, as conseqüências seriam terríveis, talvez fatais, se os Redentores descobrissem que seu
interesse nos documentos sobre o oásis estava mais relacionado a um plano de fuga do que, digamos, a uma paixão por jardinagem e fertilizantes.
Logo depois de ter emergido do lago, um Cale encharcado ainda conseguia ouvir os latidos dos cães. Quando alcançasse as árvores, ele não poderia mais ser visto ou farejado, porém, sabia que isso não duraria muito tempo. Assim que começou a andar, ele se viu no território de escavação dos Redentores. A retirada do húmus havia deixado uma vasta extensão de buracos, em vez de fossos retos, pois, ao contrário da terra comum, ele era macio demais para sustentar paredes perpendiculares, embora sólido o bastante para prender e asfixiar um homem que fosse soterrado por ele, conforme os arquivos deixavam claro. A idéia agradou Cale, uma vez que uma dúzia de Redentores havia morrido retirando o húmus; mas nem tanto assim, pois ele precisava de algo que pudesse escondê-lo da visão e do faro dos cães.
Após escolher seu esconderijo, uma pequena depressão na base de um dos outeiros, ele cavou um buraco até onde teve coragem, junto um pouco do húmus solto à sua volta para que os farejadores não detectassem sinais de escavação recente e passou a para dentro daquela abertura funda, cercando-se com o adubo e arrastando-o com cuidado para dentro do buraco. Logo estava se sentindo vulnerável tão perto da superfície, porém, temia causar um desmoronamento se cavasse mais fundo. Tentou se lembrar de que precisava apenas manter-se longe dos olhos e do faro dos cães. A confiança dos Redentores em seus animais era uma fraqueza – para eles, se os cães não sentissem cheiro algum, não havia nada no local. Nem se davam o trabalho de fazer uma simples busca, pois não achavam necessário. Cale se recostou e tentou dormir, sabendo que não havia mais nada a fazer. Ele precisava descansar. E, de qualquer, não seria um sono profundo. Há tempos que havia aprendido a acordar em um instante.
E dormir foi o que ele fez, ainda que apenas por um instante, alerta ao som dos cães que latiam e dos Redentores que gritavam. Eles chegavam cada vez mais perto, os latidos se reduzindo a fungadelas à medida que os animais se concentravam na busca mais lenta, esquecendo a caçada. O som foi chegando mais e mais perto, até parecer que um deles estava farejando a poucos centímetros de distancia. Porém, o cão não se demorou por ali. E por que se demoraria? O húmus fez sua parte, escondendo qualquer cheiro que não fosse o seu próprio. Logo, as fungadelas e os latidos espaçados desapareceram e Cale se permitiu um momento de alegria e triunfo. No entanto, ainda precisava ficar horas onde estava. Ele relaxou e adormeceu.
Quando voltou a acordar, seu corpo estava enrijecido pelos efeitos da longa corrida e seu joelho esquerdo em especial, dolorido por conta de uma lesão antiga, latejava. Ele também estava morrendo de frio. Ergueu o braço direito em meio ao húmus e o afastou o suficiente para ver que estava escuro. Ele aguardou. Duas horas depois, pôde ouvir pássaros cantando e, logo em seguida, o céu começou a clarear. Cale saiu lentamente do buraco, preparado para retornar a ele ao primeiro sinal dos Redentores. Contudo, não ouviu nada além do som dos pássaros nas árvores altas e o farfalhar de animais pequenos na vegetação rasteira. Então, apanhou a sacola de linho que havia roubado dos aposentos do Lorde Disciplinador e começou a enchê-la de húmus, empurrando-o para o fundo para poder enfiar o máximo possível.
Em seguida, jogou a sacola nas costas e saiu em busca dos Redentores e seus cães.
Ele os encontrou três horas depois. Não foi difícil – havia vinte Redentores e quarenta cachorros. Além do mais, eles não tinham motivo para cobrir seus rastros: ninguém em um raio de mais de 300 quilômetros chegaria perto de um Redentor por livre e espontânea vontade, quanto mais de um bando deles com cães. Eram eles que procuravam os outros, não o contrário. Depois de alcançá-los, Cale passou dez minutos refletindo se deveria ou não esquecer os três que o esperavam no Santuário e tentar fugir para Memphis enquanto podia. Ele não devia nada a Kleist, a Henri Embromador só um pouco, e já havia salvado a vida da menina uma vez. Como um polvo que muda de cor diante do perigo – tons de vermelho e amarelo oscilando debaixo de sua pele como as ondas do mar -, Cale se via à mercê de suas vontades conflitantes, que iam e vinham como a maré, numa mistura de águas turvas e límpidas. Os motivos para sumir naquele mesmo instante eram óbvios, enquanto os motivos para voltar eram nebulosos e obscuros, porém, foi a contracorrente destes últimos que o impulsionou, com grande relutância e muitos xingamentos, de volta aos cães farejadores e aos padres.
Embora estivesse coberto de terra do húmus, Cale continuou a favor do vento em relação aos cães, mantendo uma distância de no mínimo 800 metros. Duas horas depois, conforme ele havia esperado, eles interromperam a busca e deram meia-volta, retornando ao Santuário. Cale sabia que os Redentores não tinham desistido. Aquela era apenas a busca primária, enviada para apanhar um fugitivo rapidamente. Geralmente dava certo, porém, se eles perdessem o rastro dentro de trinta horas, a primeira equipe voltaria para ser substituída por um máximo de cinco equipes secundárias, totalmente equipadas e auto-suficientes, que dariam
continuidade à caça por anos a fio, se necessário. Nunca chegava a tanto. Dois meses foi o máximo que um acólito conseguiu evitar ser recapturado e sua punição ao ser apanhado foi inominável.
Ainda mantendo certa distância e a favor do vento, Cale seguiu os Redentores pelas 12 horas seguintes, aproximando-se cada vez mais, esperando que os cães dessem algum sinal de terem sentido seu cheiro. Ele os seguiu até o Santuário, já tão perto deles que tudo o que precisou fazer foi se juntar ao final do grupo – que àquela altura estava exausto – e, encapuzado, atravessar os portões envoltos na mais completa escuridão. Não havia revista de segurança. Afinal, que tipo de louco, adulto ou criança, tentaria invadir o Santuário?
Após esperar um dia inteiro no corredor secreto, os três estavam sentados no escuro, cada qual entregue aos seus próprios pensamentos, que eram sempre os mesmos, sempre sombrios. Quando ouviram a batidinha de leve na porta, correram até ela desesperadamente esperançosos, mas também dominados pelo medo de que pudesse ser uma armadilha.
- E se forem eles? – sussurrou Kleist.
- Se forem, eles vão entrar de qualquer jeito, não é mesmo? – respondeu Henri Embromador. Os dois começaram a abrir a porta.
- Graças a Deus é você – disse Henri.
- Quem você estava esperando? – disse Cale.
- Nós achamos que poderiam ser aqueles homens.
Aquela era a primeira vez que uma mulher dirigia a palavra para Cale cara a cara. Sua voz era suave e baixa e, se fosse possível ver a expressão dele no escuro, ela revelaria uma surpresa e um fascínio profundos.
- Se os Redentores vierem atrás de nós, eles não vão bater antes de entrar.
- Talvez batam – disse Kleist, sem muita convicção. – Como uma armadilha.
Cale fechou a porta.
- Isso já é uma armadilha.
- Já estamos fartos – disse Kleist. – Diga o que você estava fazendo e se vamos sair daqui vivos.
- Acenda uma vela, nós vamos precisar.
Dois minutos depois, eles já conseguiam ver uns aos outros sob a luz fraca, que tornava a cena quase bonita – os quatro ali, juntos.
- Que cheiro é esse? – perguntou Henri Embromador.
Cale largou a sacola de húmus no chão.
- Os cachorros não conseguem sentir seu cheiro se você espalhar isso pelo corpo e pelas roupas. Eu vou explicar o que aconteceu enquanto vocês fazem isso.
Em outros lugares do mundo, o que aconteceu em seguida talvez parecesse estranho. Riba, chocada diante daquilo, estava prestes a reclamar que precisava de privacidade, porém, os três meninos deram as costas para ela e uns para os outros. Ficar nu na presença de outro menino era uma ofensa que clamava aos céus por vingança, como gostava de dizer o falecido Lorde Disciplinador. Havia muitas ofensas que faziam os céus bradarem por represálias.
Os meninos adentraram a escuridão para se despir por conta de um hábito arraigado. Uma vez sozinha, não havia ninguém para ouvir seus protestos. Então, Riba apanhou um punhado do húmus de cheiro forte e penetrou, também, a escuridão.
- Preparados – zombou a voz de Cale. – Então, vou começar.
Cinco horas depois, enquanto uma aurora encardida sangrava das trevas, Brunt despachou suas cinco equipes de busca secundárias, cada qual composta de cem homens com cachorros, da praça principal. Quando o último grupo saiu, outros quatro vultos encapuzados para se protegerem do frio se juntaram ao fim da coluna e atravessaram os portões com os demais, seguindo pelo caminho da escória de carvão até a planície de vegetação rasteira mais abaixo. Ali, os quinhentos Redentores se dividiam em seus respectivos grupos e se encaminhavam para todas as direções.
Os quatro continuaram atrás da coluna que seguia para o sul. Eles a acompanharam por quatro horas, enquanto o Preceptor entoava a marcha da vergonha:
- Sagrado Redentor!
- EXPURGE NOSSOS PECADOS! – veio a resposta grunhida de 104 vozes.
- Sagrado Redentor!
- CASTIGUE-NOS POR NOSSAS OFENSAS!
- Sagrado Redentor!
- FLAGELE-NOS POR NOSSA LUXÚRIA!
- Sagrado Redentor!
- MORTIFIQUE-NOS POR NOSSA...
E assim por diante, até uma curva fechada que contornava o primeiro outeiro das Terras Crestadas, quando 104 vozes se tornaram somente cem.
De cima das ameias, o Lorde da Guerra observava os quinhentos soldados emergirem da neblina rasteira e, cerca de 2 ou 3 quilômetros mais adiante, começarem a se dividir em cinco. Ficou ali até o ultimo grupo desaparecer de vista e então deu meia-volta para ir tomar o café da manhã, que calhava de ser o seu predileto – uma tigela de tripa negra e um ovo bem cozido.
Os meninos teriam conseguido fazer uns 60 ou até 80 quilômetros antes do anoitecer, se Riba não estivesse ali para atrasá-los. Bonita, gorducha e mimada, em cinco anos ela mal havia se movido, andando somente da mesa de massagem para uma banheira quente e, de lá, outras quatro vezes por dia, para uma mesa de jantar cheia de folhas de uva recheadas, pés de porco com geléia de carne, bolos de especiarias e tudo o mais de engordativo que você possa imaginar. Conseqüentemente, ela era tão incapaz de andar 60 quilômetros quanto de voar 50. A principio, Kleist e Cale ficaram irritados, mandando-a se mexer, porém, quando ficou claro que espezinhá-la, ameaçá-la e até mesmo implorar não faria a pobre garota dar mais um passo que fosse, eles se sentaram no chão. Em seguida, Henri
Embromador conseguiu convencê-la a contar sobre seu dia a dia nos recônditos do Santuário.
Aquela não era apenas uma história maravilhosa de luxo e conforto; de mimo, cuidado e ternura. Ela era também incompreensível. A cada novo detalhe que Riba acrescentava sobre a maneira como ela e as outras garotas eram paparicadas e mimadas, os três acólitos se perguntavam, cada vez mais perplexos, porque os Redentores agiriam daquela forma com quem quer fosse – quanto mais com criaturas que eram joguetes do diabo. E qual era o sentido de uma bondade tão inacreditável diante do procedimento abominável a que Lena, a amiga de Riba, fora submetida? – uma crueldade tão grotesca que nem mesmo os meninos teriam creditado aos Redentores. No entanto, ainda faltava muito tempo para qualquer um deles começar a juntar as peças da história terrível da qual os três acólitos, Riba e o Lorde da Guerra haviam passado a fazer parte – principalmente porque Cale havia colocado o objeto de cheiro doce que encontrara na bandeja de dissecação em um dos bolsos que raramente usava e se esquecido completamente dele.
Contudo, eles tinham problemas mais urgentes do que o destino da humanidade para resolver: como continuar vivos mesmo arrastando a bela, porém pesada, Riba. Conseguiram andar 16 quilômetros naquele dia, uma espécie de tributo à força de vontade de Riba, uma vez que o esforço mais extenuante que ela já havia feito na vida era levar um pedaço de frango frito à boca ou se virar na mesa de massagem para que passagem loções e ungüentos deliciosos na sua pele perfeita. Obviamente, essa determinação por parte de Riba não foi muito apreciada pelos três meninos. Exausta, ela adormeceu no chão assim que eles pararam para a noite. Então, enquanto comiam a carne seca preparada por Kleist, os meninos discutiram o que fazer com ela.
- Vamos deixá-la aqui e fugir – disse Kleist.
- Ela vai morrer – disse Henri Embromador.
- A gente deixa água. E, convenhamos – prosseguiu Kleist, correndo os olhos pelo seu corpo superalimentado - , ela vai levar um bom tempo para morrer de inanição.
- Se continuarmos andando nesse ritmo, ela vai morrer de qualquer jeito. E nós também. – Dessa vez, foi Cale quem falou, não exatamente elaborando um argumento, mas apontando um simples fato.
Henri Embromador tentou bajulá-lo.
- Duvido, Cale. Você os enganou direitinho. Eles estão achando que estamos a quilômetros de distância. Devem até pensar que tivemos a ajuda de alguém para fugir com tanta facilidade.
- E quem seria maluco de nos ajudar contra os Redentores? – perguntou Kleist.
- Que diferença faz? Eles acham que nós fugimos. E fugimos mesmo. Ainda vão demorar muito para descobrir como a gente fez isso, se é que vão descobrir. Podemos ir devagar.
- Seria bem melhor não irmos – disse Cale.
- Nesse ritmo, eles vão nos pegar – falou Kleist. – Vamos precisar de mais do que um truque e cocô de texugo para despitá-los.
- Nós passamos por tudo isso para salvá-la. Não podemos deixála morrer agora.
- Podemos sim – disse Kleist. – A coisa mais misericordiosa que podemos fazer é cortar a garganta dela enquanto ela está dormindo. Melhor para ela e para nós.
Cale soltou um suspiro curto, não muito arrependido.
- Henri tem razão. De que adianta deixá-la morrer agora?
- De que adianta? – exclamou um Kleist irritado. – Adianta o seguinte, seus idiotas: nós vamos fugir. Liberdade. Para sempre.
Os outros dois ficaram calados. Era verdade.
- Vamos votar – disse Henri Embromador.
- Não, nada de votar. Vamos usar nossa cabeça.
- Vamos votar – disse Cale.
- Para quê? Vocês já se decidiram. Vamos ficar com a garota.
Houve um silêncio emburrado.
- Tem outra coisa que deveríamos fazer – disse Cale por fim.
- O que foi agora? – resmungou Kleist. – Vamos catar penas de ganso o suficiente para fazer um colchão para a cadela gorda?
- Fale baixo – disse Henri Embromador. Cale ignorou Kleist.
- Temos que decidir quem vai ser o executor se formos capturados pelos Redentores.
Era uma idéia desagradável, porém, eles sabiam que Cale tinha razão. Nenhum dos três queria ser levado de volta para o Santuário vivo.
- Vamos tirar no palitinho – disse Henri Embromador.
- Não temos palitinhos – falou Kleist com desânimo.
- Então vamos usar pedras. – Henri Embromador foi procurá-las e, um minuto depois estava de volta com três de tamanhos diferentes. Ele as mostrou para os demais, que concordaram com a cabeça. – Quem tirar a menor, perde.
Henri escondeu as pedras atrás das costas e então estendeu a mão esquerda para a frente, o punho cerrado diante do corpo. Por um instante, ninguém fez nada. Desconfiado como sempre, Kleist não conseguia escolher. Cale deu de ombros e estendeu a mão, com a palma virada para cima e os olhos fechados. Sem deixar Kleist ver, Henri Embromador largou a pedra e Cale fechou o punho em volta dela. Então, abriu os olhos. Em seguida, Henri estendeu as duas pedras restantes, uma em cada punho. Kleist ainda não se sentia seguro para tomar uma decisão, desconfiado que, de alguma maneira que ele não conseguia perceber, os dois estivessem passando-lhe a perna.
- Ande logo – disse Henri Embromador, com uma impaciência fora do comum. Com grande relutância, Kleist tocou a mão direita de Henri e fechou os olhos. Então, cada um ficou com uma pedra.
- Quando eu chegar a três. Um, dois, três.
Os três meninos abriram seus punhos. Cale estava segurando a menor pedra.
- Bem, pelo menos vocês já sabem que vai ser feito direito.
- Não precisava ter se preocupado, Cale – disse Kleist. – Eu não teria tido problema nenhum em apagar você.
Cale o encarou, mas ainda havia um vestígio de sorriso no seu
rosto.
- O que vocês estão fazendo? – Riba tinha acordado e os observava. Kleist olhou na direção dela.
- Estávamos discutindo quem vamos comer primeiro depois que a comida acabar. – Ele a encarou sugestivamente, como se quisesse insinuar que a resposta era mais que óbvia.
- Não dê ouvidos a ele – falou Henri Embromador. – Estávamos só decidindo quem vai ficar de vigia primeiro.
- Quando vai ser minha vez? – perguntou Riba.
Todos os três acólitos ficaram surpresos com o tom desafiador, irritadiço até, de sua voz.
- Você precisa descansar o máximo que puder – disse Henri Embromador.
- Estou pronta para fazer a minha parte.
- Claro que está. Daqui a alguns dias, você vai estar mais acostumada. Por enquanto, precisamos que esteja o mais descansada possível. É melhor assim... e você sabe disso.
Isso era, obviamente, quase indiscutível.
- Quer comer um pouco? – perguntou Henri Embromador, estendendo um pedaço de carne de rato seca. Não parecia apetitoso, especialmente para uma menina criada à base de guloseimas, tortas de frango e molhos de carne deliciosos. Porém, ela estava faminta.
- O que é isso? – quis saber ela.
- Hã... carne – disse Henri Embromador, embromando.
Então, se aproximou dela e enfiou o pedaço de carne debaixo do seu nariz. Tinha exatamente o cheiro que se esperaria de um rato morto. Seu nariz delicado se enrugou em uma repulsa involuntária.
- Eca, não – disse ela, embora tenha se apressado a acrescentar: - Obrigada.
- Passar um pouquinho de fome não vai fazer mal nenhum a ela – murmurou Kleist baixinho, mas alto o bastante para a garota ouvir. Riba, no entanto, não se achava nada menos que perfeita. Era o que tinha ouvido a vida toda, de modo que, embora percebesse a hostilidade por trás do comentário de Kleist, ele não representava o menor insulto para ela.
- Eu fico de vigia primeiro – disse Cale, virando-se em seguida e andando até o topo de um montinho próximo dali.
Os outros dois meninos se deitaram e, em questão de minutos, estavam adormecidos. Riba, no entanto, não conseguia sossegar e começou a soluçar baixinho. Kleist e Henri Embromador estavam mortos para o mundo. Cale, por sua vez, no topo do montinho, conseguia ouvir o som do seu choro e ficou prestando bastante atenção nele, até que finalmente a garota também caiu no sono.
Na manhã seguinte, os meninos acordaram às cinco, como sempre, porém, não havia sentido em desmontar o acampamento, por assim dizer.
- Vamos deixá-la dormir – disse Cale. – Quanto mais descansada estiver, melhor.
- Sem ela, já estaríamos a mais de 120 quilômetros daqui, talvez quase 200 – murmurou Kleist. Uma faca se fincou com um baque no chão diante dos seus pés.
- Roubei de Picarbo. Corte a garganta dela, se preferir. Faça o que quiser, desde que pare de resmungar. – Seu tom era casual, não havia raiva alguma nele. Kleist encarou Cale, seus olhos frios e cheios de antipatia. Então, virou as costas. Henri Embromador ficou se perguntando se ele estava de fato pronto para matar a garota, ou talvez usar a faca contra Cale; ou se simplesmente gostava de ter um motivo para reclamar. Cale, de qualquer forma, era esperto o bastante para não insinuar nenhum tipo de vitória quando voltou a falar.
- Tenho uma idéia. Talvez possamos tirar algum proveito do problema que é esta garota.
Kleist se virou de volta, carrancudo. Porém, estava ouvindo.
- Se não podemos aumentar a distância que separa os grupos ao leste e ao oeste de nós, é melhor os seguirmos para não corrermos o risco de topar com eles por acidente.
Ele se agachou para apanhar a faca e começou a desenhar na
areia.
- Se Henri e a garota forem para o sul em uma linha reta e não andarem mais que 20 quilômetros por dia, então Kleist e eu sempre saberemos mais ou menos onde vocês estão. Kleist vai para o oeste e eu para o leste, para encontrarmos as duas equipes de busca mais próximas. – Ele indicou a linha reta que havia desenhado para Henri e Riba. – Se acharmos que eles vão topar com as equipes de busca, que estarão andando em zigue-zague, então voltamos para levá-los em outra direção.
Kleist parecia pensativo, além de incrédulo.
- Vamos supor que você volte e leve os dois para algum outro lugar. Como eu vou te encontrar se você não vai estar no lugar marcado?
Cale deu de ombros.
- Você vai ter que decidir se prefere seguir nosso rastro ou escapar sozinho para Memphis. Espere por nós pelo tempo que achar justo.
Kleist deu uma fungada e desviou o olhar. Era o seu jeito de dizer que concordava.
- Está bom para você? – perguntou Cale, meneando a cabeça na direção de Henri.
- Está – respondeu ele. – Quero perguntar um monte de coisas para a garota.
Cinco minutos depois, após dividirem a comida e a água, Cale e Kleist já seguiam rumo ao leste e ao oeste, respectivamente. Passados outros cinco minutos, haviam desaparecido de vista.
Henri Embromador estava sentado, tomando seu café da manhã e olhando a garota dormir, analisando a pele branca e linda, os lábios vermelhos e os cílios longos, a sensação de paz sublime que ela emanava. Uma hora depois, quando ela acordou, o menino ainda a observava, fascinado. Riba levou um susto ao se deparar com Henri Embromador olhando-a fixamente, a menos de um metro de distância.
- Nunca lhe disseram que é falta de educação ficar encarando os
outros?
- Não – respondeu Henri Embromador com sinceridade.
- Bem, pois fique sabendo que é.
Henri olhou para os próprios pés, constrangido.
- Desculpe – disse ela. – Não quis ser tão dura.
Ao ouvir essas palavras, Henri se esqueceu do constrangimento e caiu na gargalhada.
- Qual é a graça? – perguntou ela, irritada novamente.
- Para nós, duro é ser arrastado para a frente de quinhentas pessoas e pendurado na ponta de uma corda pelos Redentores.
- Como assim?
- Ir para a forca. Como o Redentor Enforcado.
- Quem é o Redentor Enforcado?
Essas palavras o calaram no ato. Henri a encarou como se ela tivesse perguntado o que era o sol, ou se os animais sabiam falar. Ficou algum tempo sem dizer nada, porém, a dúvida sobre o que aquilo poderia significar martelava sua cabeça.
- O Redentor Enforcado é o filho do Criador. Ele se sacrificou para lavar nossos pecados com seu sangue.
- Eca! – disse ela. – E para que isso?
A expressão assombrada de Henri fez com que ela se arrependesse imediatamente daquela reação.
- Desculpe, não quis ofendê-lo. É só que é uma idéia tão
esquisita...
- O quê? – perguntou ele, ainda boquiaberto.
- Bem... que pecados são esses? O que você fez?
- Eu nasci em pecado. Todos nascem cheios de pecados repugnantes.
- Que idéia ridícula.
- É?
- Como um bebê pode ter feito alguma coisa de errado, quanto mais de terrível?
Os dois ficaram calados por um instante.
- E por que você iria querer lavar alguma coisa com sangue?
- É um símbolo – disse ele, na defensiva e se perguntando por
quê.
- Não sou burra – respondeu ela. – Já entendi isso. Mas por quê? Por que usar sangue como um símbolo de algo assim?
Henri Embromador era, por natureza, uma pessoa que refletia bastante sobre tudo. No entanto, essas idéias faziam parte dele de tal forma e há tanto tempo que era como se ela tivesse lhe perguntado para que serviam seus braços ou qual era o sentido dos seus olhos.
- Onde estão os outros? – perguntou ela. Ainda processando o que tinha ouvido, Henri respondeu distraidamente.
- Ah, eles foram embora.
- Eles nos abandonaram? – disse ela, arregalando os olhos de
temor.
- Só por alguns dias. Eles vão seguir as equipes de busca ao leste e ao oeste para garantir que a gente não acabe topando com elas.
- E como vão nos encontrar de volta?
- Eles são muito bons em seguir rastros – disse Henri de forma
evasiva.
- Não entendo – disse ela. – Vocês não tinham dito que quase nunca saiam do Santuário?
- Hã... é melhor irmos andando. Eu explico no caminho.
O Redentor Bosco ergueu sua bengala e bateu duas vezes na
porta.
Ela demorou quase trinta segundos para ser aberta, porém, ele não demonstrou sinal algum de impaciência, ou do que quer que fosse. Por fim, ela se abriu e um homem alto, outro Redentor, surgiu diante do Lorde da Guerra.
- O senhor tem hora marcada? – perguntou o homem alto.
- Não seja tolo – respondeu Bosco, lacônico e desdenhoso. – O Supremo Redentor solicitou minha presença. Estou aqui.
- O Supremo Redentor ordena, ele não solicita nenhum...
Bosco forçou sua entrada.
- Diga-lhe que eu estou aqui.
- Ele está descontente com o senhor. Nunca o vi tão irritado. – Bosco ignorou o homem alto, que foi em direção a uma porta interna, bateu e entrou. Logo em seguida, a porta se abriu novamente e o homem alto voltou, sorrindo, embora as perspectivas não fossem nada agradáveis.
- Ele está pronto para recebê-lo.
Bosco entrou em um aposento tão escuro que até mesmo seus olhos acostumados à penumbra tiveram dificuldade em enxergar. Havia algo mais, no entanto, do que as janelas pequenas com as persianas fechadas e a tapeçaria escura que recontava, de forma sombria, as histórias
de martírios ancestrais e medonhos. O centro da escuridão parecia emanar da cama em um dos cantos. Havia um homem recostado nela, sustentado por no mínimo uma dúzia de almofadas desconfortáveis. Bosco teve que se aproximar bastante para poder divisar o rosto, sua pele tão pálida que chegava a ser descolorada, pendendo das faces e do pescoço em inúmeras dobras esquálidas. Os olhos eram lacrimosos e opacos, como se a mente tivesse se apagado há tempos. Porém, quando enxergaram Bosco, uma espécie de brilho lampejou neles, como o facho de um farol distante. Essa luz, no entanto, apontava diretamente para o rosto do Redentor Bosco e era repleta de ódio e grande astúcia.
- Você me fez esperar! – disse o Supremo Redentor, sua voz distante, porém clara.
- Vim o mais rápido possível, Sua Excelência. – Suas palavras foram recebidas com incredulidade, e ele não esperava que fosse diferente.
- Quando eu o convocar, Bosco, você deve largar tudo imediatamente, sem demora. – Ele riu. Era um som especialmente desagradável que apenas Bosco, em todo o Santuário, não achava irritante. Soava como uma coisa morta, animada apenas por uma malicia e raiva intensas.
- Qual o motivo da minha convocação, Sua Excelência? – O Supremo Redentor o encarou por um instante.
- Aquele menino, Cale.
- Sim, Sua Excelência?
- Por que diz isso, Sua Excelência?
- Você tinha planos para ele.
- O senhor sabe que sim, Sua Excelência.
- Ele deve ser trazido de volta.
- Nós dois não discordamos em nada, Sua Excelência.
- Trazido de volta e punido.
- É claro, Sua Excelência.
- E depois enforcado e esquartejado.
A principio, Bosco não respondeu nada.
- Ele assassinou um Redentor. Deve ser transformado em um
Ato de Fé.
Bosco pareceu refletir por um momento.
- Minhas investigações deixaram claro que os responsáveis foram os outros dois acólitos. É bem provável que tenham coagido Cale a fugir com eles. Estavam armados, ele não. Se isso for verdade, então Cale deve ser punido apenas para servir de exemplo. O esquartejamento, no entanto, me parece desnecessário. Já basta os outros dois, uma vez que a culpa é deles.
Ouviu-se uma risada de desprezo que mais parecia o som de alguém se engasgando.
- Rá! A piedade não combina com você, Bosco. É a sua vaidade quem está falando. Não interessa quem matou Picarbo, Cale ou esses outros dois. Por Deus, estou quase decidido a queimar o dormitório inteiro junto com eles.
O Supremo Redentor se permitiu ficar agitado demais, a ponto de engasgar na própria saliva. Ele gesticulou para uma caneca d’água sobre o criado-mudo. Bosco a entregou para ele, sem a menor pressa. O Supremo Redentor bebeu ruidosamente. Por fim, devolveu ao Lorde da Guerra a caneca suja de baba. Bosco devolveu-a ao criado-mudo com uma expressão discreta de nojo.
Aos poucos a respiração chupada do Supremo Redentor começou a desacelerar e voltar ao normal. A atmosfera de malevolência, no entanto, havia apenas crescido.
- Conte-me sobre esse problema envolvendo Picarbo.
- Problema, Sua Excelência?
- Sim, problema, Bosco. O problema de terem encontrado o Lorde Disciplinador nos seus aposentos com uma vadia estripada?
- Ah – disse Bosco, pensativo. – Esse problema.
- Você acha que o fato de eu estar velho e doente significa que eu não saiba o que está acontecendo aqui? Bem, está muito enganado, e não é a primeira vez. por mais doente que eu esteja, você ainda não consegue ser rápido o suficiente para me enganar, Bosco.
- Ninguém que tenha alguma inteligência subestimaria sua sabedoria e experiência, Sua Excelência, porém... – Ele soltou um suspiro de arrependimento. – Eu pretendia poupá-lo da natureza revoltante do que encontramos nos aposentos de Picarbo. Seria uma lástima que um reinado tão ilustre quanto o seu fosse ofuscado por um fato desses.
- Estou velho demais para esse tipo de abobrinha, Bosco. Quero saber o que ele estava fazendo com ela. Não era apenas sexo, era?
Mesmo Bosco, um homem ao qual nada parecia afetar, ficou perturbado ao ouvir aquele termo. Ninguém jamais se referia de forma tão direta ao ato sexual, que geralmente era mencionado através de eufemismos como “bestialidade” e “polução” – e, ainda assim, muito raramente.
- Talvez sua alma tenha se desvirtuado. O Mal nunca descansa, Sua Excelência. Ele talvez tenha passado a retirar prazer das punições justas que aplicava aos acólitos. Já aconteceu outras vezes, se não me engano.
O Supremo Redentor grunhiu.
- Como ele arranjou uma garota aqui?
- Até o momento, não fui capaz de descobrir. Porém, ele possuía muitas chaves. Somente o senhor e eu tínhamos permissão para fazer perguntas a um Lorde Disciplinador. Levará tempo.
- Ele não teria conseguido fazer isso sem ajuda. Talvez não seja uma questão apenas de bestialidade, mas também de heresia.
- Também pensei o mesmo, Sua Excelência. Vinte dos seus comparsas estão isolados na Casa do Desígnio Especial. Até o momento, os veteranos dizem não saber de nada, porém, os Redentores comuns admitiram terem expandido o cordão de isolamento ao redor do convento por ordem de Picarbo. Eles teriam bloqueado mais corredores para não levantar suspeitas. Afinal, o convento já é totalmente isolado dos
Redentores. Ninguém jamais deveria ver os rostos das noivas. Picarbo disfarçou as idas e vindas deles passando a cozinha e a lavanderia dos Redentores superiores para dentro do cordão de isolamento. Tudo entra e sai através de um grande tímpano. Depois que Picarbo incluiu o Lorde dos Víveres e o Mestre da Lavanderia em sua pequena trama herege, retirar comida ou qualquer outra coisa lá de dentro deixou de ser problema.
- Mas estamos abrindo quilômetros e quilômetros dos corredores antigos. Molloy teria descoberto cedo ou tarde.
- Infelizmente, o Mestre das Reivindicações também era um
deles.
- Meu Deus! Aquele falso beato insignificante do Molloy estava ajudando a transformar o Santuário em um prostíbulo? – O Supremo Redentor se recostou e ficou boquiaberto diante de terrível enormidade da questão. – Precisamos de um expurgo, precisamos de Atos de Fé daqui até o fim do ano... devemos estri...
- Sua Excelência – interrompeu Bosco -, ainda não há a menor certeza de que o propósito deste harém seja a polução. Desconfio que nem mesmo seja um harém, e sim mais um lugar de isolamento. Pelo que pude decifrar dos escritos de Picarbo,por mais loucos que fossem, ele estava à procura de alguns coisa, algo bem especifico.
- E o que poderia encontrar nas tripas de uma cadela gorda?
- Ainda não sei dizer, Sua Excelência. Talve seja necessário um expurgo, e de grandes proporções, porém, deveríamos esperar até eu chegar à verdade disso tudo antes de começarmos a acender as velas para Deus.
Acender velas para Deus não tinha nada a ver com cera ou
pavios.
- Tome cuidado, Bosco. Você se acha melhor por saber das coisas, mas eu sei... – Ele apontou um dedo para Bosco e ergueu a voz. – EU SEI que o conhecimento é a raiz de todo o mal. Aquela desgraçada da Eva quis saber das coisas e foi isso que trouxe o pecado e a morte para todos nós.
Bosco se levantou e seguiu em direção à porta.
- Redentor Bosco!
O Lorde da Guerra se virou para encarar o velho sacerdote
atrofiado.
- Assim que você trouxer Cale de volta para cá, ele será executado. Eu expedirei uma ordem para isso hoje mesmo. E esqueça isso de investigar a fundo a devassidão de Picarbo. Dê cabo de todas as pessoas envolvidas com ele. Não quero saber se podem ser inocentes. Não podemos nos arriscar a ter heresia por aqui. Queime-os e deixei que Deus separe o joio do trigo. Os puros terão uma melhor recompensa na vida eterna.
Um observador atento aos mínimos detalhes talvez tivesse visto o Lorde da Guerra piscar como se tivesse refletido sobre algo e tomado uma decisão. Poderia, no entanto, ter sido apenas uma ilusão criada pela falta de luz. Ele deu um passo à frente e se inclinou como se quisesse afofar os travesseiros em volta do Supremo Redentor. Mas, em vez disso, pegou um deles e o posicionou com cuidado e firmeza sobre o rosto minúsculo e velho. Tudo isso foi feito tão rápido, e com tão pouco alarde, que o Lorde Supremo Redentor só percebeu o horror do que estava acontecendo uma fração de segundo antes de o travesseiro tapar sua boca.
Dois minutos depois, Bosco saiu do quarto e viu o Redentor Alto se levantar imediatamente para ir ao encontro de seu mestre.
- Ele caiu no sono enquanto conversávamos. Não é algo que o Supremo Redentor costume fazer. Talvez o senhor devesse dar uma olhada nele.
Bosco não só havia assassinado o Supremo Redentor, como também havia mentido para ele. Não lhe revelara o verdadeiro tamanho da coleção de jovens do sexo feminino de Picarbo, ou suas suspeitas cada vez maiores em relação ao objetivo dos experimentos repulsivos do falecido Lorde Disciplinador. Precisaria de um tempo para refletir sobre o que fazer com as mulheres, porém, em breve elas seriam um ótimo pretexto para seu próximo passo no intuito de assumir total controle do Santuário, além de uma lição prática para Cale quando ele estivesse de volta.
No terceiro dia, Cale já havia alcançado os Redentores e os observado virar para o oeste, afastando-se de Henri Embromador e Riba. Porém, no dia seguinte, eles viraram para o leste, o que os aproximaria perigosamente dos dois. Foi enquanto os seguia, torcendo para tomarem a direção oposta novamente, que ele teve a única experiência realmente estranha da sua tocaia.
Ele estava acabando de contornar um dos outeiros das Terras Crestadas, que havia desabado, formando uma saliência dentada. Quando fez a curva, topou com um homem vindo na direção oposta. Cale ficou tão surpreso que quase perdeu o equilíbrio no chão de cascalho, enquanto o homem, que estava em uma parte mais íngreme, não conseguiu encontrar apoio e caiu de costas com um baque pesado.
Isso deu tempo a Cale de puxar a faca que havia roubado do Lorde Disciplinador e ir para cima do homem, deixando-o à sua mercê. O outro, no entanto, logo venceu a surpresa que aquela visão estranha lhe causara e começou a se levantar com um gemido. Cale brandiu a faca na sua direção, para deixar claro que ele deveria ficar onde estava.
- Então é assim? – disse o homem com uma cordialidade aborrecida. – Primeiro você me derruba no chão e depois quer cortar minha garganta. Não é muito amigável.
- É o que dizem a meu respeito. O que você está fazendo aqui?
O homem sorriu.
- O que todo mundo faz nas Terras Crestadas. Tentando sair.
- Não vou perguntar de novo.
- Não acho que isso seja da sua conta.
- Sou eu que estou com a faca, então eu decido o que é da minha conta ou não.
- Bem observado. Posso me levantar?
- Por enquanto pode ficar aí mesmo.
O homem parecia já ter visto algumas coisas estranhas na vida, porém, estava claramente intrigado com a presença de alguém tão jovem e tão seguro de si no meio das Terras Crestadas.
- Você está bem longe de casa, não está garoto?
- Não esquente comigo, vovô, você deveria estar mais preocupado em saber onde vai conseguir comprar uma bengala neste fim de mundo.
O homem riu.
- Você é um acólito dos Redentores, não é?
- O que você tem com isso?
- Nada, na verdade. É só que nas poucas ocasiões em que vi um acólito eles estavam em fileiras de duzentos e havia umas duas dúzias de Redentores vigiando-os com chicotes. Nunca tinha visto um sozinho.
- Bem – disse Cale -, tem uma vez para tudo.
O homem sorriu.
- É, acho que sim. – Ele estendeu a mão. – IdrisPukke, atualmente a serviço de Gauleiter Hynkel.
Cale não apertou sua mão. IdrisPukke deu de ombros e a
abaixou.
- Talvez você não seja tão jovem quanto parece. É melhor ter cuidado por aqui.
- Obrigado pelo conselho.
IdrisPukke riu mais uma vez.
- Você é duro de roer, não é menino?
- Sou – disse Cale com frieza. – E não me chame de menino.
- Como preferir. Do que devo chamá-lo?
- Não precisa me chamar de nada. – Cale meneou a cabeça para o leste. – Você vai por ali. Tente me seguir, IdrisPukke, e você vai ver como eu posso ser duro de roer. – Cale indicou com um gesto que ele podia se levantar. IdrisPukke obedeceu. Ficou olhando para Cale por alguns instantes, como se estivesse pensando bem no que deveria fazer. Então suspirou, deu meia-volta e partiu na direção que Cale havia indicado.
Durante as 12 horas seguintes, Cale ficou intensamente desconfiado daquele encontro com IdrisPukke. Seria ele um Redentor disfarçado, por exemplo? Pouco provável. Aquele homem emanava uma vivacidade muito grande para ser um deles. Um caçador de recompensas? Também parecia difícil. Os Redentores gostavam de manter esse tipo de coisa entre eles. Por outro lado, Cale tinha matado o Lorde Disciplinador, um pecado tão abominável que eles provavelmente estavam dispostos a fazer de tudo para apanhá-lo de volta. E foi por esses caminhos que sua mente vagou enquanto ele acompanhava o Lorde dos Redentores e torcia para seu grupo mudar de rumo. No dia seguinte, foi o que eles fizeram, voltando a pegar a direção oeste. Geralmente os caçadores continuavam no mesmo sentido por pelo menos 24 horas. Estava na hora de se reunir aos outros. Se ele conseguisse encontrá-los.
Doze horas depois, Cale estava na rota que eles haviam traçado para Henri e a garota, embora 15 quilômetros mais adiante, só por precaução. Então, começou a voltar pelo trajeto para se certificar de que não os perderia, mantendo-se o tempo todo o mais escondido possível, para que os Redentores que Kleist deveria estar vigiando não topassem com ele ou vice-versa. Levou apenas algumas horas para encontrar os três em um grande vale, cercados por cerca de vinte corpos mutilados, alguns cortados em pedacinhos. Os outros o viram a 100 metros de distância e esperaram, sem se mover, à medida que ele atravessava o amontoado de cadáveres. Ao chegar, cumprimentou os três com a cabeça.
- Os Redentores foram para o oeste – disse ele.
- Da última vez que eu vi os meus, eles tinha virado para o leste.
Então, fez-se um silêncio.
- Fazem alguma idéia de quem são? – perguntou Cale, meneando a cabeça em direção aos mortos.
- Não – disse Henri Embromador.
- Eu diria que já morreram há mais ou menos um dia – disse
Kleist.
Riba estava quase com a mesma expressão chocada que ele vira em seu rosto quando a salvou de Picarbo – era uma expressão que dizia: isso não está acontecendo.
- Há quanto tempo vocês estão aqui? – perguntou baixinho Cale.
- Há uns vinte minutos. Encontramos Kleist no caminho umas duas horas atrás.
Cale assentiu.
- É melhor vasculharmos os corpos. Quem quer que tenha feito isso não deixou muito para trás, mas talvez ainda dê para salvar alguma coisa.
Os três meninos começaram a busca em meio aos restos mortais, encontrando uma moeda aqui, um cinto e um casaco rasgado acolá. Então, Henri Embromador bateu o olho em algo brilhante do lado de uma cabeça decepada. Apressou-se a afastar a areia de cima do objeto, porém, era apenas um soco-inglês de latão. Ficou desapontado, mas pelo menos era útil.
- Socorro – gemeu a cabeça decepada.
Henri saltou para trás com um grito.
- Ela falou comigo, ela falou comigo!
- O quê? – disse Kleist, irritado.
- A cabeça. Ela falou.
- Socorro – gemeu a cabeça.
- Viu?! – exclamou Henri Embromador.
Cale se aproximou com cautela da cabeça com a faca em punho e cutucou sua têmpora. A cabeça gemeu, mas não abriu os olhos.
- Eles o enterraram até o pescoço – disse ele, depois de refletir por um instante. Foi então que os três meninos, habituados à crueldade humana, perceberam que não havia nada de sobrenatural envolvido. Todos olharam para o homem enterrado, pensando no que deveriam fazer.
- Deveríamos desenterrá-lo – disse Henri Embromador.
- Não – falou Kleist. – Quem quer que tenha feito isso teve bastante trabalho. Não acho que aceitariam bem o fato de estragarmos o serviço deles. É melhor deixarmos pra lá.
- Socorro – sussurrou novamente o homem.
Henri Embromador olhou para Cale.
- E então? – perguntou.
Cale não disse nada, pensando bem no assunto.
- Não temos o dia inteiro, Cale – falou Kleist. A essa altura, Cale já estava com o olhar distante.
- Não, não temos - O tom de voz de Cale era estranho, alarmante. Os outros dois ergueram os olhos, seguindo seu olhar sem vida.
No topo do outeiro mais próximo, a cerca de 300 metros de distância, uma fileira de Redentores olhava para eles. Então, ela começou a se mover.
Os três meninos, todos pálidos, ficaram parados. Não havia para onde fugir. Riba foi a primeira a se mover, correndo para a frente para enxergar melhor a fileira de homens que marchava na direção deles.
- Não. Não. Não – dizia ela, sem parar.
Henri Embromador, branco como um lençol, olhou para Cale.
- Você tirou a pedra menor – falou ele.
Cale encarou o amigo, seus olhos inexpressivos. Depois de hesitar por um instante, apanhou sua faca e andou depressa em direção a Riba, que ainda olhar a fileira de homens que se aproximava. Quando Cale fez menção de agarrar seus cabelos e expor-lhes o pescoço, Kleist gritou:
- Espere!
Neste momento, Riba se virou, Cale tinha baixado sua faca, porém, mesmo apavorada, ela pôde ver que algo de estranho estava acontecendo.
- Eles não são Redentores – disse Kleist. – Seja lá quem forem. Melhor esperar para ver o que acontece.
Enquanto eles observavam, mais homens atravessaram o topo da colina. Esses, no entanto, estavam montados a cavalo e conduziam outros trinta atrás de sis. Ao alcançarem os que estavam a pé, eles também pararam e, em menos de um minuto, os quatro se viram cercados por algo em torno de cinqüenta cavaleiros mal-encarados. Metade deles desmontou de seus cavalos e começou a examinar o que restava dos cadáveres. Os demais, com as espadas em punho, ficaram apenas olhando para os quatro.
Um dos cavaleiros que vasculhava os corpos exclamou:
- Capitão, é a missão diplomática de Arnhemland. Este é o filho do Lorde Pardee.
O capitão, um homem grande com um cavalo imenso de vinte palmos de altura, fez o animal andar e desmontou. Ele foi até Cale e, sem titubear, deu-lhe um soco tão forte na cara que fez o menino desabar no chão.
- Antes de executá-lo, quero saber quem ordenou isto.
Atordoado e dolorido, Cale não respondeu. O capitão estava preste a acrescentar um chute de encorajamento quando Henri Embromador se manifestou.
- Não tivemos nada a ver com isso, senhor. Acabamos de encontrá-los. Por acaso parece que teríamos condição de fazer uma coisa dessas? – Henri achou melhor contar a verdade. – Temos apenas uma faca conosco. Como conseguiríamos?
O capitão olhou para ele e então de volta para Cale. Em seguida, desferiu um chute forte contra a sua barriga.
- Está certo. Não vamos cortar suas gargantas por assassinato. Vamos cortá-las por roubo.
Ele olhou para a pequena pilha de objetos que os meninos haviam recolhido dentre as coisas que os assassinos deixaram passar – uma mochila, um prato, algumas facas de cozinha e frutas secas, além do socoinglês de latão. Henri via que aquilo não parecia nada bom.
- Um deles ainda está vivo. Estávamos prestes a desenterrá-lo. – Henri apontou para o homem, que àquela altura estava inconsciente e parecia, mais do que nunca, uma cabeça decepada na areia.
Os soldados se apressaram a cercá-lo e começaram a cavar a areia e o cascalho.
- É o chanceler Vipond – falou um deles.
O capitão gesticulou para eles pararem e se ajoelhou, apanhando um cantil. Com cuidado, derramou um pouco d’água na boca do homem inconsciente. Ele tossiu, cuspindo tudo de volta.
Àquela altura, um dos soldados havia trazido duas pás e, cinco minutos depois, haviam libertado o homem da areia, estendendo-o no chão. Ficaram um bom tempo auscultando seu coração e conferindo se ele não estava ferido.
- Nós íamos salvá-lo – disse Henri, enquanto Cale olhava com malevolência para o capitão de sua posição encurvada na areia.
- Isso é o que você diz. A única coisa que sei ao certo é que vocês são um bando de ladrões. Não vejo motivos para não vender a garota e matar os três.
- Não seja impulsivo, meu querido capitão Bramley – disse a voz de um homem, vinda de trás de um soldado montado a cavalo. Obviamente não se tratava de um deles, pois não usava uniforme e estava com as mãos atadas a uma corda presa à sela do animal à sua frente.
- Feche a matraca, IdrisPukke – disse o capitão.
Porém, estava na cara que IdrisPukke não era o tipo de homem que obedecia a ordens.
- Seja sensato uma vez na vida, meu querido capitão. O senhor sabe que o chanceler Vipond e eu nos conhecemos há muito, muito tempo. Posso dizer que ele não ficaria nada satisfeito se o senhor matasse três jovens que tentaram salvá-lo. O que acha?
Pela primeira vez, o capitão pareceu indeciso. IdrisPukke abandonou o tom de zombaria.
- Ele gostaria de ter a chance de decidir por contra própria. Isso com certeza.
O capitão baixou os olhos para o homem inconsciente, que estava sendo colocado numa maca, com um cobertor enrolado debaixo da cabeça. Então, voltou a encarar IdrisPukke.
- Mais uma palavra sua e eu juro por Deus que arrancarei sas tripas aqui mesmo. Entendido?
IdrisPukke deu de ombros, porém, pensou Henri Embromador, teve o bom-senso de não dizer nada.
- Grady! Fog! – disse o capitão, chamando dois soldados. – Fiquem de olho nesse verme. E, se ele der o menor sinal de que vai tentar escapar, arranquem-lhe a cabeça.
10
O Capitão Bramley apenas amarrou as mãos dos três meninos e os deixou andar e, de vez em quando, correr atrás dos cavalos. No entanto, como punição para IdrisPukke, ele o manteve amarrado a uma sela e, em resposta aos seus pedidos debochados para que o deixassem ir nos braços de um cavaleiro como a garota, deu-lhe vários chutes pelo incômodo.
O grupo acampou cerca de meia hora antes do anoitecer. Riba foi deixada solta com os cavaleiros, que foram alertados com rispidez por Bramley para não tocá-la. Aqueles eram homens duros, que tinham visto e feito muitas coisas – em grande parte, desagradáveis demais para serem contadas -, porém o alerta era praticamente desnecessário para a maioria. Por mais que alguns fossem adorar fazer maldades com a bela jovenzinha, a maioria parecia hipnotizada por ela, à medida que a garota conversava e brincava com eles, flertando com naturalidade e arregalando os olhos de
espanto diante do estoque interminável de histórias que os soldados contavam com prazer. Embora lançasse olhares de simpatia para os meninos, Riba havia sido ordenada a se manter longe deles sob pena de ser amarrada caso lhes dirigisse a palavra.
Em vez dela, tinham IdrisPukke como companhia. Os quatro estavam acorrentados ao eixo da roda de uma carruagem que se juntara à cavalaria logo depois de eles serem capturados. Os meninos tinham ganhado comida, mas não IdrisPukke, que recebera um chute em vez de carne enlatada e pão de bicarbonato. Eles estavam famintos e comeram depressa, como cachorros.
- Que tal dividir um pouco comigo?
- E por que deveríamos fazer isso? – disse Kleist com a boca
cheia.
- Bem, porque eu intercedi a favor de vocês quando aquele desgraçado do Bramley queria espalhar suas tripas sobre as famintas areias das Terras Crestadas.
Kleist terminou rapidamente seu ultimo bocado.
- Sinto muito. Mas obrigado por hoje à tarde.
Os outros dois foram mais generosos, embora Cale só tivesse oferecido seu pão de bicarbonato porque queria fazer perguntas a IdrisPukke.
Ao contrário dos meninos, o homem comeu devagar o pão e o pouco de carne que Henri Embromador deixara para ele.
- Você sabe alguma coisa sobre aquela matança? – perguntou
Cale.
- Eu? – disse IdrisPukke. – Estava para lhes perguntar a mesma coisa. – Ele deu outra mordida no pão. – Vocês iam ajudar Vipond?
Houve uma pausa enquanto Henri e Cale se entreolharam.
- Estávamos pensando no assunto – respondeu Cale.
- Muito sensato. Sempre pense com cuidado antes de fazer um favor a alguém. É um bom conselho. Em relação ao seu amigo – acrescentou ele, indicando Kleist com a cabeça -, eu bem gostaria de tê-lo seguido.
- Teria ficado sem jantar, se fosse o caso.
IdrisPukke riu baixinho.
- Não me parece uma troca muito boa: dois pedaços de pão por três vidas. Eu diria que vocês ainda me devem uma.
- Não podemos fazer nada por você – disse Henri Embromador.
- Talvez não. Mas no futuro pode ser que eu precise cobrar o favor. Espero que sejam homens honrados.
Cale riu.
- E você é um homem honrado?
- Você não estaria rindo agora se eu não fosse.
Henri Embromador achou melhor mudar de assunto.
- O que acha que eles farão com a gente?
IdrisPukke deu de ombros.
- Vocês serão levados para Memphis. Se Vipond sobreviver, ficarão bem. – Ele sorriu. – Desde que não se contradigam.
- E se ele morrer? – perguntou Henri Embromador.
- Aí depende. Podem levá-los a julgamento ou simplesmente jogar vocês no limbo.
- E o que é isso?
- Um lugar onde os outros se esquecem de você.
- Nós não fizemos nada – disse Cale.
- Disso eu sei. – Ele riu novamente. – Mas não contem para
eles.
- Quem você acha que matou aqueles homens?
IdrisPukke pensou no assunto.
- As Terras Crestadas estão cheias de maus elementos, mas poucos pensariam em se meter com uma expedição armada dos Materazzi.
- Quem são esses?
- Meu Deus, eles não ensinam nada para vocês naquele lugar?
Os três o encararam inexpressivamente.
- Certo. Bem, os Materazzi dominam tudo entre Memphis e as Terras Crestadas ao norte e a Grande Enseada ao sul, da qual, pelo jeito, vocês também nunca ouviram falar.
- Como é Memphis?
- Maravilhosa. O mais espetáculo da Terra. Não há nada que não se possa conseguir em Memphis, nada que não se possa comprar ou roubar, nenhum crime que não tenha sido cometido, nenhuma comida que não tenha sido provada, nenhuma prática que não tenha sido... – ele se deteve - ... praticada. Vocês vão ter muito o que aproveitar, isso se não acabarem mortos ou esquecidos. E, é claro, desde que tenham dinheiro.
- Não temos – disse Cale.
- Então precisam arranjar. Se você não tem dinheiro em Memphis, é um inútil. E, se for inútil em Memphis, logo alguém encontra uma utilidade para você.
- Do que você está...
- Chega de perguntas. Estou todo dolorido e cansado. Conversamos mais pela manhã. – Ele deu uma piscadinha. – Se eu ainda estiver por aqui. – E, com essas palavras, IdrisPukke virou de lado e, cinco minutos depois, estava roncando.
Os meninos acharam que ele estava brincando, como parecia, curiosamente, sempre estar. No entanto, quando acordaram na manhã seguinte, IdrisPukke tinha sumido.
O capitão Bramley ficou furioso e deu uma bela surra nos três meninos, o que, embora tivesse feito com eles se sentissem consideravelmente pior, não parecia ter melhorado seu ânimo. Riba se aproximou correndo e implorou para ele parar.
- Por que eles o ajudariam a fugir se fosse para continuarem aqui? – observou ela desesperadamente. – Isso não é justo?
Os meninos, já habituados a injustiças, ficaram com as bocas estoicamente fechadas e tentaram manter suas partes mais frágeis longe da ponta da bota do capitão Bramley. Para sorte deles, o capitão era um amador perto dos habilidosos sádicos aos quais estavam acostumados. A idéia de que a punição deveria ser equivalente à gravidade do crime eralhes tão estranha quanto um cachorro de cinco pernas; ou quanto ao fato de que a promessa feita pelo Redentor Enforcado – e constantemente repetida pelos padres – de que qualquer pessoa que ferisse uma criança seria fervida em banha de porco por toda a eternidade, deveria ser interpretada literalmente – ou sequer tivesse algum sentido.
Quando os meninos chegavam, eles ouviam várias histórias e parábolas sobre a bondade do Sagrado Redentor e sobre como ele se preocupava especialmente com os jovens, sempre aconselhando a todos ao seu redor a cuidar deles e garantir que fossem felizes. A principio, o fato de muitas vezes eles apanharem sem motivo antes desses sermões sobre o amor e a bondade – e geralmente depois também – era motivo de indignação. Com o passar dos anos, no entanto, as contradições deixavam de existir e as palavras de conforto e alegria entravam por um ouvido e saiam pelo outro. Não passavam de palavras.
Tendo descontado sua explosão de raiva inicial nos meninos, Bramley se voltou para o sargento e o cabo da sua tropa, que aguardavam, sem muita paciência, sua vez.
- Você! – gritou ele para o sargento. – Seu saco gordo de bosta. E você! – disse o capitão, olhando para o cabo, que era um homem muito menos. – Seu saquinho raquítico de bosta. Reúnam dez dos seus melhores homens e encontrem aquele desgraçado do IdrisPukke. E se voltarem sem ele, e vivos, tragam sua própria comida, porque, quando eu terminar com vocês dois, vão precisar.
E, com essas palavras, ele saiu pisando firme em direção à sua
tenda.
- Continuem interrogando os prisioneiros – gritou ele por sobre
o ombro.
O sargento deu um suspiro forte de desdém e irritação
resignada.
- Você ouviu o que o homem disse, cabo.
O cabo se aproximou dos três meninos, que àquela altura estavam recostados contra a roda da carroça, os joelhos erguidos para se protegerem.
- Vocês sabem alguma coisa sobre a fuga do prisioneiro?
- Não! – gritou de volta um Kleist furioso, porém amedrontado.
- O prisioneiro diz que não – relatou o cabo com tranqüilidade.
- Pergunte se ele tem certeza, cabo.
- Você tem certeza?
- Sim, tenho – disse Kleist. – Por que, em nome de Deus, ele nos diria para onde estava indo?
- Faz sentido, sargento.
- É – falou o sargento, desanimado. – Faz, sim. – E, depois de uma pausa: - Reúna o Sétimo Pelotão e acorde Scout Callhoun. Partiremos em dez minutos.
Depois disso, os soldados ao redor deles se dispersaram e os meninos e Riba foram deixados em paz como se nada tivesse acontecido. Ela se ajoelhou ao lado dos três e os olhou com uma piedade de cortar o coração – um sentimento do qual, diga-se de passagem, eles não gostavam muito. Em primeiro lugar, estavam mais preocupados com seus próprios ferimentos e, além disso, não eram capazes de compreender que ela pudesse se solidarizar com seu sofrimento. Com exceção, talvez, de Henri Embromador, que, durante a semana em que eles passaram juntos nas
Terras Crestadas, havia se despido até a cintura para tomar banho quando os dois se depararam com um dos poucos rios da região. Ele a havia pegado olhando disfarçadamente para as suas costas e para as inúmeras cicatrizes, sulcos e vergões que as cobriam. Embora nunca tivesse se deparado com a compaixão feminina antes, ele era – de uma maneira confusa, verdade seja dita – sensível ao seu estranho poder.
Então, o próprio acampamento começou a se mover. Os prisioneiros foram alimentados com mingau de aveia e então colocados para andar. Antes de ser levada embora, Riba sussurrou empolgada que em dois dias eles estariam em Memphis. Os três foram incapazes de compartilhar do seu entusiasmo, por não saberem ao certo como seriam recebidos.
- Aquele velho – disse Kleist para Riba -, o que a gente estava prestes a salvar. Ele morreu?
- Acho que não.
- Tente ser útil para alguma coisa e descubra – falou Kleist.
Seus olhos se arregalaram diante daquela bronca e começaram a ficar marejados.
- Deixe-a em paz – disse Kleist. – Eles vão nos enforcar se ele bater as botas. Então não entendo como ela pode ficar cavalgando para Memphis em cima do seu rabo gordo sem descobrir o que precisamos saber.
As lágrimas foram instantaneamente substituídas por indignação.
- Por que você fica me chamando de gorda? Eu sou exatamente como deveria ser.
- Chega de discussão – disse Cale, irritado. – Kleist, deixe-a em paz. Você, descubra o que aconteceu com o velho.
Riba encarou Cale, chocada e com raiva, mas ficou quieta.
- Marchem ou morram! Marchem ou morram! – exclamava o cabo, embora a ameaça já não fizesse sentido, pois era gritada todas as vezes que eles desmontavam o acampamento e retomavam o caminho. A
carroça a qual os meninos estavam amarrados balançou e seguiu em frente, fazendo com que eles deixassem Riba para trás, encarando-os furiosa. Mais tarde naquele dia, no entanto, ela veio andar ao lado dos três, ainda obviamente contrariada, e disse como se não tivesse importância alguma:
- Ele ainda está vivo.
Cem metros adiante, as Terras Crestadas chegaram subitamente ao fim. Eles deixaram para trás areia, poeira, pedras e colinas dilapidadas para adentrarem uma planície verde e fértil, já salpicada de fazendas, casas e cabanas de trabalhadores. As pessoas saíam detrás de cercas vivas e carroças abarrotadas para observá-los. Porém, não olhavam por muito tempo – a visão de bagagem militar e prisioneiros era o suficiente para deixá-los curiosos, mas, depois de ficarem olhando embasbacados por uns vinte segundos, todos menos as crianças voltavam aos seus afazeres.
Pelo resto daquele dia e durante todo o seguinte, o número de casas e pessoas foi ficando maior. Primeiro vilarejos, depois cidades e então os subúrbios da própria cidade de Memphis. Contudo, ainda precisaram andar mais duas horas para ver sua grande fortaleza. Ela era imensa, e não só maior do que o desprezível Santuário, que já era enorme: mesmo de tão longe, era possível ver os minaretes dourados, as catedrais e os palácios apontando com elegância para o céu. No Santuário, tudo era igual; aquele lugar desafiava a imaginação, com sua beleza e variedade sem fim.
Eles haviam parado por conta de um engarrafamento e um dos cabos, ao vê-los olharem impressionados para a cidade, se aproximou com seu cavalo.
- Aquelas muralhas são as maiores do mundo. Elas têm no mínimo 15 metros de espessura e para dar meia volta nelas você teria que andar 8 quilômetros. – Os meninos olharam para ele.
- São 16 quilômetros de muros, então – disse Kleist.
O cabo ficou de cara no chão e esporeou o cavalo, seguindo em
frente.
11
Os últimos 2 quilômetros que os separavam dos grandes portões de Memphis consistiam exclusivamente de mercados de todo o tipo. Os sons, cheiros e as cores deixaram os meninos de olhos arregalados e embevecidos. Qualquer viajante teria considerado aquela uma experiência a ser lembrada até o Fim dos Tempos – porém, para os três meninos, cuja alimentação básica se resumia a algo chamado pé de defunto e, de vez em quando, carne de rato, aquele lugar era o próprio paraíso; mas um paraíso inimaginavelmente suntuoso e estranho. Cada fungada trazia consigo o aroma de cominho e alecrim, que se confundia com o cheiro de suor de um
pastor vendendo bodes e de uma dona de casa borrifada com óleo de tangerina, misturando-se ainda ao perfume de rosas e a um leve odor de urina. De toda parte vinham gritos e exclamações, grasnidos de papagaios; o miado do prato favorito dos gourmets – gato cozido à Mem-phis -; arrulhos de pombas à venda para sacrifícios; e latidos de cães criados nas colinas ao redor da cidade para serem assados durante as festas. Porcos guinchavam, vacas mugiam e, de repente, ouviu-se um berro quando um lúcio prestes a ser estripado escapou agitando as nadadeiras das mãos de um peixeiro, debatendo-se rumo à liberdade de um esgoto. Enquanto o peixeiro se esgoelava por conta do trágico prejuízo, a multidão ria debochadamente.
E eles seguiram adiante, ao som dos gritos incompreensíveis dos comerciantes. “Widdee, Widdee, Wee!”, exclamou um homem que parecia estar vendendo rabos de vaca rosa-shocking em um esquife, esfolados e da cor de algodão-doce. “Etchy-Gudda-Munda”, gritou outro, ao exibir seus vegetais, estendendo a mão com toda a empáfia de um mágico que tivesse acabado de fazê-los aparecer do nada. “Dá só uma zoiada nos meus legume! Tumates madurim. Bacaxis diliciosos. Compra minhas erva, minhas verdura maraviosa.”
Algumas barracas ocupavam setores de quase 2 mil metros quadrados – e, em um canto, um velho seminu estendia um pedaço de pano esfarrapado, tentando vender os dois ovos que havia dentro dele e saltando de um pé para o outro.
Olhando boquiaberto para a sua esquerda, Henri Embromador viu uma fileira de meninos por volta dos 9 anos de idade, presos por correntes em volta dos seus pescoços. Eles eram conduzidos rumo a um portão, vigiados por homens enormes com jaquetas de couro que os mandavam entrar meneando a cabeça. Os meninos pareciam despreocupados, porém, o que mais espantou Henri foi o fato de seus lábios estarem pintados de vermelho e, suas pálpebras, empoadas de um azul clarinho.
Henri Embromador chamou um dos soldados ao seu lado. Ele apontou com a cabeça os meninos e a estrutura que se erguia depois do portão, pintada de cores berrantes e ainda mais cheia de gente do que o mercado.
O soldado olhou para os meninos e seu rosto se empalideceu de
repulsa.
- Aquela ali é Kitty Town. Nunca entre naquele lugar. – Ele se calou por um instante e olhou com tristeza para Henri Embromador. – Não se tiver alguma escolha.
- Por que Kitty Town?
- Porque essa parte da cidade é controlada por Kitty das Lebres. E, para você parar de fazer perguntas, ele não é mulher nem é uma lebre. Fique longe dali.
Quando eles passaram pelos guardas e adentraram a cidade de Memphis propriamente dita, a mudança foi imediata: trocaram o tumulto, o barulho e os cheiros do mercado pelo frio claustrofóbico do túnel. Depois de 30 metros sob a muralha, numa escuridão quase total, saíram para a luz novamente. As construções, algumas antigas, outras novas, se erguiam em praças com jardins e fontes, em cujo centro as pessoas se sentavam para ler ou se reuniam em grupo para bater papo enquanto as crianças brincavam. Somente a presença dos meninos sujos, cansados e grosseiros perturbava a imagem de um mundo dominado pela elegância e pelo bom gosto. Quase ninguém olhava para eles: mais do que ignorados, era como se fossem invisíveis. Exceto pelas crianças menores, com seus cachinhos e cabelos loiros, que arregalavam os olhos em sua direção por trás das finas grades de ferro.
Então, ouviu-se uma comoção vinda de uma das estradas acima deles e vinte oficiais da cavalaria de elite, com seus uniformes vermelhos e dourados, surgiram ruidosamente na praça, escoltando uma carruagem enfeitada. Eles seguiram às pressas em direção à caravana e pararam em volta da carroça coberta na qual Lorde Vipond estava inconsciente. As duas portas largas da carruagem foram abertas e três homens de aparência importante dispararam até a carroça, sumindo dentro dela. Todos os demais ficaram cinco minutos parados, esperando sob a brisa gelada e as sombras das árvores que ladeavam a praça.
Uma garotinha de uns 5 anos de idade andou – sem que sua mãe, distraída pelo bate-papo, notasse – até a grade mais próxima dos três acólitos.
- Ei, menino.
Cale olhou para a garotinha com toda a hostilidade considerável que ele era capaz de reunir.
- É, menino, você mesmo.
- O que foi? – disse Cale.
- Você tem cara de porco.
- Caí fora.
- De onde você vem, menino?
Ele a encarou novamente.
- Do inferno, pra te pegar à noite e comer você viva.
Ela refletiu sobre aquilo por um instante.
- Você parece um menino comum, pra mim. Um menino comum e sujo.
- As aparências enganam – disse Cale. Àquela altura, Kleist já havia se interessado pela conversa.
- O negócio é o seguinte – falou ele para a garotinha. – Daqui a três noites, nós vamos invadir o seu quarto, mas sem fazer barulho nenhum, para sua mãe não ouvir. E então, vamos colocar uma mordaça na sua boca e provavelmente comer você lá mesmo. Só vão sobrar os ossos.
Ela já não parecia ter tanta certeza de que eles eram meninos comuns. Porém, não era uma garotinha tão fácil de assustar assim.
- Meu pai vai impedir e matar vocês bem mortos.
- Não vai, não. Porque nós vamos comê-lo também. Provavelmente antes, então você já sabe o que esperar.
Cale soltou uma risada ao ouvir isso e balançou a cabeça diante do prazer que Kleist estava tirando da conversa.
- Não dê corda para essa pirralha – disse ele, sorrindo. – Ela tem a maior cara de traíra.
- Eu não sou uma traíra! – exclamou a garotinha, indignada.
- Você nem sabe o que é isso – disse Kleist.
- Sei, sim.
- Cale a boca! – sussurrou Cale.
A mãe da garotinha finalmente deu falta dela e veio apressada em sua direção.
- Venha cá, Jemima.
- Só estou conversando com os meninos sujos.
- Quieta, sua atrevida! Você não deve falar desse jeito sobre essas pobres criaturas. Perdão – disse ela para os dois meninos. – Peça desculpa agora mesmo, Jemima.
- Não vou pedir.
A mãe começou a arrastá-la dali.
- Então vai ficar sem sobremesa.
- E quanto à gente? – gritou Kleist. – Vai ter sobremesa pra
gente?
Então, um movimento começou mais adiante e seis soldados de elite baixaram o chanceler Vipond da carroça, enquanto os três homens observavam com uma expressão preocupada. Ele foi carregado até a carruagem e suspendido com cuidado até o interior dela. Um minuto depois, o veiculo já havia deixado a praça e a caravana o acompanhava lentamente.
Três horas mais tarde, eles estavam dentro da prisão mais afastada da fortaleza, onde foram levados até as masmorras, despidos, revistados e levaram três baldes de água gelada, que tinha um cheiro desagradável de produtos químicos desconhecidos. Então, receberam suas roupas de volta e foram polvilhados com um pó branco, que dava coceira, e trancados em uma cela. Uma vez lá dentro, ficaram trinta minutos em silêncio, até que Kleist suspirou e disse:
- Quem teve essa idéia? Ah, sim. Foi Cale. Tinha esquecido.
- A diferença entre aqui e o Santuário – respondeu Cale, como se mal estivesse interessado no assunto – é que aqui nós não sabemos o que vai acontecer. Se estivéssemos lá, saberíamos, e com certeza teria muitos gritos envolvidos. – Isso era quase indiscutível e, poucos minutos depois, estavam todos adormecidos.
Lorde Vipond passou três dias se aproximando cada vez mais da morte. Muitos foram os bálsamos e medicamentos administrados, as ervas aromáticas queimadas dia e noite e as infusões disso e daquilo aplicadas em suas feridas. Todos esses tratamentos foram inúteis ou até claramente nocivos, e somente o vigor e a boa saúde natural de Vipond foram capazes de reerguê-lo, apesar dos esforços dos melhores médicos que Memphis tinha a oferecer. Quando seus herdeiros já haviam sido informados para se prepararem para o pior (ou, do ponto de vista deles, o melhor), Vipond despertou e exigiu roucamente que as janelas fossem abertas, as ervas perniciosas retiradas e seu corpo lavado com água fervida.
Poucos dias depois, não mais privado de ar fresco e com suas defesas naturais aptas a fazerem seu trabalho, ele já se encontrava sentado na cama, dando seu relato dos acontecimentos que o levaram a ser enterrado na areia pedregosa das Terras Crestadas.
- Estávamos a cerca de quatro dias de Memphis quando fomos atingidos por uma tempestade de areia, embora houvesse mais cascalho nela do que areia propriamente dita. Foi isso que dispersou a caravana e, antes que pudéssemos nos reagrupar, os Gurriers nos atacaram. Eles mataram todos no ato, mas, por algum motivo, decidiram me deixar da maneira que me encontraram.
Seu interlocutor era o capitão Albin, chefe do serviço secreto dos Materazzi – um homem alto com os olhos azuis de uma jovem bonita. Esse traço arrebatado contrastava com o restante da sua aparência, que era irretocável (ele parecia ter acabado de ser passado a ferro) e fria.
- O senhor tem certeza de que foram somente os Gurriers? – perguntou Albin.
- Não sou especialista em bandidos, capitão, mas foi isso que Pardee me disse antes de morrer. O senhor tem algum motivo para discordar?
- Algumas coisas estranhas.
- Como por exemplo?
- A maneira como as colunas foram atacadas me pareceu muito organizada, muito inteligente para os Gurriers. Eles são oportunistas e carniceiros, e raramente se juntam em número suficiente para derrotar soldados tão bons quanto os que protegiam o senhor, por mais que tenham sido dispersados pela tempestade.
- Compreendo – disse Vipond.
- Além disso, há o fato de eles terem deixado o senhor vivo. Por
quê?
- Fui deixado à beira da morte.
- É verdade. Mas por que correr esse risco, por menor que fosse? – Albin foi até a janela e olhou para o pátio lá embaixo. - O senhor foi encontrado com um pedaço de papel enfiado na boca.
Vipond olhou para ele e recordou a sensação desagradável de lhe separarem os lábios à força e de ter que lutar para respirar antes de perder a consciência.
- Desculpe-me, Lorde Vipond, isso não deve ser fácil para o senhor. Prefere que eu volte amanhã?
- Não, está tudo bem. O que dizia o papel?
- Era a mensagem que o senhor estava trazendo de Gauleiter Hynkel para o marechal Materazzi, prometendo que haveria paz no nosso tempo.
- Onde está ela?
- Com o conde Materazzi.
- Não faz diferença.
- Ah – disse Albin, pensativo. – O senhor acha? Na verdade, faz diferença, sim.
- E por quê?
- Deixá-lo vivo com uma mensagem relativamente importante enfiada na boca dá a impressão de que alguém está querendo dizer alguma coisa.
- Como o quê?
- Alguma coisa obscura. Deliberadamente obscura, talvez. Sem dúvida não parece coisa dos Gurriers. O interesse deles está em estuprar e roubar, não em mensagens políticas, claras ou cifradas.
- Se era uma mensagem, não deveria ter sido mais explícita?
- Não necessariamente. Hynkel gosta de se ver como uma espécie de brincalhão. Ele se dúvida acharia divertido simular um ataque como esse contra um enviado dos Materazzi e, ao mesmo tempo, nos causar inquietação, sabendo que pensaríamos haver mais coisas por trás dele. – Albin abriu um sorriso autodepreciativo. – Porém, o senhor o encontrou mais recentemente: talvez discorde da minha opinião.
- Nem um pouco. Ele foi um anfitrião simpático, mas que ostentava demais seu brilhantismo. Como muitos homens inteligentes, ele pensa que todos os outros são idiotas.
- Ele certamente não pensa outra coisa do nosso embaixador. Houve um pequeno silêncio e Albin se perguntou se não teria ido longe demais. Vipond o examinou com atenção.
- Você parece saber bastante – disse ele com cautela, mas instigando-o a prosseguir.
- Bastante? Quem me dera. Mas sei alguma coisa. Dentro de alguns dias, talvez receba noticias que esclareçam a questão de uma forma ou de outra.
- Eu ficaria muito grato se o senhor me mantivesse informado. Também tenho recursos que podem ser úteis.
- Naturalmente, meu amo.
Albin ficou satisfeito com o que parecia ser um acordo. A questão não era se poderia confiar em Vipond, pois o mais provável era que não pudesse. A corte de Memphis era um ninho de cobras e ninguém que
não tivesse presas afiadas cheias de veneno poderia ter ocupado uma posição tão importante quanto a dele. Não fazia sentido esperar o contrário. Ainda assim, Albin achava ter feito progressos no sentido de um pacto; pacto este que consistia no seguinte: ele podia contar que Vipond só o trairia se tivesse muito a ganhar ao fazê-lo.
- Gostaria de discutir mais um ou dois assuntos com o senhor, meu amo. Mas é claro que, se o senhor estiver muito cansado, posso voltar amanhã.
- De forma alguma. Por favor...
- Há a questão estranha dos quatro jovens que Bramley encontrou ao seu redor quando o senhor estava... – Ele se deteve.
- Enterrado até o pescoço?
- Bem, sim.
- Eu pensei que tivesse sido um sonho – disse o chanceler Vipond. – Três meninos e uma menina.
- Exato.
- O que eles estavam fazendo?
- Bem, achávamos que o senhor talvez pudesse responder a essa pergunta. Bramley quer executar os meninos e vender a garota.
- Ora, mas por quê?
- Ele acha que os jovens faziam parte do bando Gurrier que atacou o senhor.
- Eles nos atacaram no mínimo 24 horas antes de eu ser encontrado. Pelo amor de Deus, o que eles estariam fazendo ali se tivessem algo a ver com os Gurriers?
- Mesmo assim, Bramley quer executá-los. Segundo ele, precisamos deixar bem claro o que espera qualquer um que atacar um enviado dos Materazzi.
- Ele é um carniceiro desgraçado este seu Bramley.
- Oh, ele não é nada meu... Deus me livre.
- O que aquelas crianças têm a dizer em sua própria defesa?
- Que tinham acabado de chegar e estavam prestes a desenterrá
lo.
- E o senhor não acredita nelas?
- Não havia sinais de escavação. – Albin fez uma pausa. – E eu não diria que eles são exatamente crianças. Os três meninos têm 13 ou 14 anos, mas são criaturas de aparência endurecida. A garota, entretanto, parece ter sido conservada em sabonete liquido. E o que eles estavam fazendo no meio das Terras Crestadas?
- O que eles têm a dizer em defesa própria? – repetiu Vipond.
- Eles falaram que são ciganos.
Vipond gargalhou.
- Já não existe um só cigano nesta parte do mundo desde que os Redentores os exterminaram sessenta anos atrás.
Ele pareceu refletir por um instante.
- Eu conversarei com eles pessoalmente daqui a alguns dias, quando estiver me sentindo melhor. Passe-me aquela caneca d’água, por gentileza.
Albin apanhou a caneca d’água sobre o criado-mudo e a entregou para Vipond, que, àquela altura, estava bastante pálido.
- Vou deixá-lo sozinho, chanceler.
- O senhor não disse que eram duas coisas?
Albin se deteve.
- Sim. Antes de Bramley encontrar o senhor, ele capturou IdrisPukke, que estava escondido a cerda de 6 quilômetros do local.
- Excelente – disse Vipond, seus olhos se iluminando de interesse. – Falarei com ele amanhã.
- Infelizmente, ele escapou.
Vipond engasgou de irritação, ficando quase um minuto calado.
- Eu quero IdrisPukke. Se um dia você puser as mãos nele, traga-o para mim e não conte a ninguém.
Albin assentiu.
- Naturalmente. – Quando saiu do quarto de Vipond, era um homem satisfeito.
Aquele era o sexto dia em que eles estavam presos nas masmorras sob a cidade de Memphis, porém, apesar da incerteza, os três meninos estavam de bom humor. Além de comerem três boas refeições diárias – o que, nos parâmetros de uma pessoa normal, significa que comiam três pratos repugnantes por dia -, podiam dormir o quanto quisessem, e chegavam a fazê-lo por 18 horas seguidas, como se estivessem compensando pelas privações de uma vida inteira. Às quatro da tarde, o carcereiro destrancou a porta da cela e fez entrar Albin, que já os havia interrogado antes, acompanhado de um homem claramente muito respeitado de 50 e tantos anos.
- Boa tarde – disse Lorde Vipond.
Henri Embromador e Kleist o examinaram com atenção de suas camas. Cale estava sentado com os joelhos colados ao peito e o capuz sobre o rosto.
- Levantem-se quando Lorde Vipond entrar no recinto – falou Albin com a voz tranqüila. Henri Embromador e Kleist se levantaram devagar. Cale não se mexeu.
- Você, levante-se e tire seu capuz, ou chamarei os guardas para fazer isso no seu lugar. – Albin continuava falando em um tom baixo, amigável e casual.
Depois de esperar um momento, Cale saltou de pé como se estivesse acordando de um sono revigorante e jogou seu capuz para trás.
Em seguida, ficou encarando o chão como se houvesse algo extremamente interessante nele.
- E então? – disse Vipond. – Estão me reconhecendo?
- Sim – disse Kleist. – O senhor é o homem que nós tentamos salvar nas Terras Crestadas.
- Exatamente – disse Vipond. – O que vocês estavam fazendo
lá?
- Somos ciganos – disse Kleist. – Nós nos perdemos.
- Que tipo de ciganos?
- Ah, dos mais comuns – disse Kleist, sorrindo.
- O capitão Bramley acha que vocês estavam tentando me
roubar.
Kleist deu um suspiro.
- Ele é um homem cruel, esse capitão Bramley; um homem muito cruel. Tudo o que estávamos fazendo era tentar salvar uma pessoa importante como o senhor e ele nos acorrenta como criminosos e nos joga aqui. Isso é que é gratidão.
Havia uma gaiatice estranha e alarmante na maneira em que Kleist confrontava o grande homem à sua frente, como se além de não esperar que ele acreditasse em suas palavras, pouco se importasse com isso. Vipond havia testemunhado esse tipo de insolência vir apenas de mais uma fonte: dos homens que acompanhara à forca e sabiam que nada poderia salvá-los.
- Nós estávamos prestes a ajudar o senhor – disse Henri Embromador que, obviamente, do seu ponto de vista, estava dizendo a verdade.
Vipond olhou para Cale.
- Qual o seu nome?
Cale não respondeu.
- Venha comigo. – Vipond andou até a porta. O carcereiro a abriu imediatamente. O chanceler se virou para Cale. – Venha, menino. Você é surdo além de insolente? – Cale olhou para Henri Embromador, que assentiu, como se o instigasse a concordar. Cale continuou parado por um instante e então se encaminhou lentamente para a porta da cela.
- Siga-nos, por gentileza, capitão Albin. – Vipond foi embora acompanhado por Cale e com Albin seguindo-os de longe, seu dedo soltando o fecho que prendia a espada curta na bainha. Kleist foi até as barras enquanto a cela era fechada.
- E quanto a mim? Também quero passear.
Então, os dois meninos ouviram a porta externa ser destrancada e Cale sumiu de vista.
- Tem certeza – perguntou Henri Embromador – de que você bate bem da cabeça?
Cale se viu em um pátio agradável com um gramado elegante no centro. Eles começaram a andar ao longo da passarela que ladeava os muros, com Cale seguindo na mesma passada que o chanceler Vipond.
- Sempre acreditei no principio – disse Vipond, depois de eles caminharem cerca de um minuto em silêncio – de que você jamais deve contar ao seu melhor amigo algo que não esteja preparado para contar ao seu pior inimigo. Porém, este é um momento, no que diz respeito a você, em que a honestidade é sem dúvida a melhor opção. De modo que não quero ouvir nenhuma conversa fiada sobre ciganos, ou qualquer outro tipo de enrolação. Quero a verdade sobre quem vocês são e o que estavam fazendo nas Terras Crestadas.
- O senhor quer dizer a verdade como eu a contaria para o meu melhor amigo.
- Posso não ser o seu melhor amigo, meu jovem, mas sou melhor esperança. Diga-me a verdade e eu talvez faça vistas grossas ao fato de que, embora a garota e o desmiolado quisessem me salvar, você e o outro pivete pretendiam me deixar onde eu estava.
Cale olhou para ele.
- Já que estamos sendo sinceros, se estivesse na nossa pele, o senhor não estaria pensando em onde está se metendo?
- Sem dúvida. Agora desembuche. E, se achar que você está mentindo, irei entregá-lo para Bramley num piscar de olhos, sem maiores explicações.
Cale ficou calado por alguns segundos, então deu um suspiro, como se tivesse tomado uma decisão.
- Nós três somos acólitos dos Redentores do Grande Santuário em Shotover.
- Ah, a verdade – disse Vipond, sorrindo. – Ela soa bem, você não acha? E a garota?
- Estávamos procurando comida nas catacumbas, os túneis e corredores que os Redentores bloquearam. Topamos com ela em um lugar de que nunca tínhamos ouvido falar antes. Havia outras como ela.
- Mulheres no Santuário? Que coisa mais estranha? Ou talvez
não.
- Fomos vistos com a garota e não tivemos escolha. Nos vimos obrigados a dar no pé.
- Um risco muito grande.
- Não haveria risco nenhum se tivéssemos ficado.
- Concordo. – Ele ficou cerca de um minuto pensando sobre o que ouviu enquanto os dois caminhavam lado a lado, no mesmo ritmo lento, em volta do pátio. – E por que as Terras Crestadas?
- Era o melhor lugar para se esconder. Não dá para ver muito longe com todos aqueles outeiros e montes acidentando o terreno.
- Os Redentores caçam com cachorros. Já vi um deles: feios como a morte, mas grandes farejadores.
- Eu descobri uma maneira de despistá-los. – Cale explicou como, omitindo os detalhes da sua fuga em dois tempos. O fato de terem fugido podia ser verdade, porém, independentemente do que dizia Vipond,
os acontecimentos que os levaram a fugir não soavam verdadeiros. E, além disso, os três haviam concordado em simplificar a história, depois da tentativa idiota de Kleist de afirmar que eles eram ciganos. Estava claro que tudo o que os Redentores tinham lhes contado sobre esse povo era uma mentira: não houvera nenhum ataque traiçoeiro contra o Santuário sessenta anos atrás, seguido de uma expedição punitiva, porém comedida, para ensinar os ciganos e se comportarem no futuro. Eles devem ter sido massacrados até a última criança.
- O senhor vai nos entregar para a equipe de busca dos Redentores?
- Não.
- E por que não?
Vipond riu.
- Boa pergunta. Porém, não há motivo para tanto. Não temos nem mesmo relações diplomáticas. Negociamos com eles somente através dos Duena.
- Quem são os Duena?
- Você sabe o que é um mercenário?
- Alguém que mata por dinheiro.
- Os Duena são mercenários pagos para negociar, em vez de matar. Lidamos tão pouco com os Redentores que é mais fácil pagar a terceiros para fazê-lo em nosso lugar. Parece-me que chegou a hora de uma mudança. Temos sido negligentes em nos manter ignorantes. Você pode ser muito útil. A guerra nos Vales Ocidentais os manteve ocupados por uma centena de anos. Talvez eles estejam planejado fazer algo aqui; ou talvez em outra parte. Já está na hora de nos informarmos melhor. – Ele sorriu para o menino. – Então, talvez você possa confiar em mim, porque pode ser útil para nós.
- Sim – disse Cale, pensativo. – Talvez.
Àquela altura, eles já haviam retornado à porta externa das masmorras. Com o punho cerrado, Vipond bateu forte nela e alguém a abriu imediatamente. Então, voltou-se para Cale.
- Daqui a alguns dias você será transferido para um lugar mais confortável. Até lá, será tratado melhor: comida decente e exercícios.
Cale assentiu e atravessou a porta, que se fechou rapidamente às suas costas.
Vipond deu meia-volta à medida que Albin se aproximava por
trás dele.
- Que criatura instigante, meu caro Albin; diferente de qualquer outra criança que eu tenha conhecido. Se algum Redentor vier procurá-los, eles não devem saber e devem ser mantidos por perto. Os meninos ficarão em prisão domiciliar.
E, com essas palavras, Vipond se afastou, falando por sobre o
ombro:
- Traga-me a garota amanhã, às onze horas.
12
- Então, Riba – disse Vipond, tão afável quanto um professor gentil - , até aqueles três jovens frustrarem essa tentativa de um Redentor atacá-la, durante a qual ele foi nocauteado, você ignorava completamente a existência de homens no Santuário?
- Sim, senhor.
- E, ainda assim, viveu ali desde os 7 anos de idade, sendo tratada, pelo que me disse, como uma princesinha? Isso é muito estranho, você não acha?
- Era a isso que eu estava acostumada, senhor. Tínhamos quase tudo o que queríamos e a única norma rígida, que resultaria em uma punição terrível se fosse quebrada, era não deixarmos a área em que vivíamos. O espaço era muito amplo e os muros impossíveis de serem escalados. E nós éramos muito felizes.
- As mulheres responsáveis por vocês lhes explicavam por que estavam sendo tratadas com tanto carinho e tamanha generosidade? Riba suspirou pela morte de um sonho que conservava há tempos.
- Elas diziam que, quando fizéssemos 14 anos, seríamos levadas para nos tornarmos noivas em um lugar ainda mais maravilhoso do que o Santuário, onde seríamos felizes para sempre. Mas só se ficássemos o mais perfeitas possível.
- Perfeitas? Em que sentido? – perguntou Vipond, já um pouco
alarmado.
- Nossa pele deveria ser impecável, nossos cabelos brilhosos e assentados, nossos olhos deveriam ser grandes e cheios de vida, nossas bochechas rosadas, nossos seios redondos e volumosos, nossas nádegas grandes e macias, e não deveríamos permitir que um só pelo crescesse entre nossas pernas, debaixo de nossos braços ou em qualquer outro lugar. Deveríamos ser sempre atenciosas, charmosas e sempre ter cheiro de flores. Jamais deveríamos sentir raiva, dar broncas ou criticarmos quem quer que fosse, mas sim sermos gentis, carinhosas e sempre dispostas a dar beijos e afagos.
Tanto Albin quanto Vipond eram homens consideravelmente experientes que tinham visto e ouvido muitas coisas estranhas, porém, quando Riba terminou seu relato, nenhum dos dois conseguia pensar em nada para dizer. Foi Albin quem finalmente se manifestou.
- Voltando ao ataque do Redentor. Você nunca o havia visto
antes?
- Não, nem outro homem nenhum.
- Como – perguntou Vipond – vocês praticavam seus... afagos? Se não havia homens.
- Umas nas outras, senhor. – Isso espantou ainda mais os dois homens. – Nós nos revezávamos e fingíamos estar cansadas e mal
humoradas, gritando bastante e batendo portas. Daí, uma das outras nos acalmava e nos cobria de gentilezas até ficarmos felizes. – Riba olhou para eles e percebeu que, de alguma maneira, sua resposta não surtiu efeito. – E tínhamos também os bonecos.
- Os bonecos?
- Sim, os bonecos de homens. Nós os vestíamos, massageávamos e os tratávamos como reis.
- Entendo – disse Vipond.
- Eu e Lena... – Ela se interrompeu por um instante. – Lena era a menina que o Redentor matou. Diziam para a gente que tínhamos sido escolhidas e seríamos levadas para nos casarmos e viveríamos felizes para sempre. Mas então fomos trazidas para o quarto daquele homem por uma de nossas Tias... era assim que chamávamos as mulheres que nos criaram e diziam que iríamos nos casar. Aí ele chegou e matou Lena.
- Suas Tias, elas sabiam o que iria acontecer com vocês?
- Por que elas fariam isso, depois de serem tão gentis com a gente? Elas devem ter sido enganadas.
- Não lhe parece uma estranha coincidência – disse Albin, na dúvida se não estariam sendo enrolados, embora ela precisasse ser, pensou ele, uma exímia mentirosa se fosse o caso – que você tenha cruzado com este Redentor e Cale em um espaço de 24 horas e que o menino tenha chegado no momento exato para salvá-la?
- Sim. Eu pensei nisso, mesmo na hora. Que estranho encontrar quatro homens ao mesmo tempo depois de todos esses anos. Um tão cruel e os outros arriscando a própria vida por mim, por alguém que eles nem conheciam. Esse tipo de coisa é normal?
- Não – disse Vipond. – Não é normal. Obrigado, Riba. Isso é tudo por enquanto. – Ele tocou a sineta à sua frente. A porta se abriu e uma jovem entrou. Ela possuía o ar de orgulho indiferente de qualquer membro de 16 anos da aristocracia, como se já tivesse visto tudo e nada lhe despertasse o interesse. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ela se deparou com Riba, com seus cabelos dourados e curvas volumosas e rechonchudas. Paradas uma do lado da outra, elas pareciam criaturas de espécies apenas remotamente semelhantes.
- Riba, esta é mademoiselle Jane Weld, minha sobrinha. Ela cuidará de você pelos próximos dias.
Mademoiselle Jane, ainda chocada, assentiu de leve. Riba limitou-se a abrir um sorriso nervoso.
- Albin. O senhor poderia esperar lá fora com Riba por um instante enquanto eu converso com mademoiselle Jane?
Albin conduziu Riba para fora e fechou a porta. Vipond encarou a sobrinha espantada.
- Feche a boca Jane, pode bater um vento e deixar você assim para sempre.
A boca de mademoiselle Jane se fechou com um estalo quase audível, porém, ela a abriu de volta quase imediatamente.
- Que raio de criatura era aquela?
- Sente-se e ouça e pelo menos uma vez na vida faça o que eu
mando!
Contrariada, mademoiselle Jane obedeceu.
- Você ficará amiga de Riba e fará com que ela lhe conte tudo o que já contou para mim e todo o resto. Escreva o que ela disser e entregue para mim, sem omitir o menor detalhe, por mais trivial ou estranho que seja... – Ele encarou a jovem. – E eles serão estranhos. Depois de ouvir sua história, você verá se é possível treiná-la para manter tudo o que ela lhe disse em segredo e fingir que veio das Ilhas do Sul ou coisa parecida. Ela já é bem educada o suficiente, mas nós vamos ensiná-la nossas maneiras. Talvez, se ela se sair bem, possa se tornar uma criada particular ou até uma dama de companhia.
- O senhor espera que eu treine uma criada? – falou mademoiselle Jane, indignada.
- Eu espero que você faça qualquer coisa que eu mandar. Agora
saia.
13
O Redentor Stape Roy, o Farejador da equipe de busca sul, chegou montado em seu cavalo a Memphis, após deixar seus cem homens e cães em uma cidade a 50 quilômetros de distância, com a mente mais inquieta do que nunca. Essa inquietação não era nada desprezível, uma vez que Stape tinha passado por experiências infernais e causado um bom número delas, também. No entanto, ao se aproximar de Kitty Town, ele sentia estar chegando ao lugar mais semelhante ao próprio inferno que poderia ser encontrado na Terra. Quando se acercou da entrada iluminada com luzes vulgares daquele subúrbio apavorante de Memphis, ele se deteve, desmontou do cavalo e o conduziu pela mão pelos poucos metros
restantes. Embora fosse tarde, turistas e nativos ainda passavam aos borbotões pelos guardas, que ignoravam a maioria e revistavam alguns.
- Você não pode entrar aqui com ele – falou um dos guardas, gesticulando para o cavalo. – Está armado?
Até os dentes, pensou Stape.
- Não quero entrar. Tenho uma carta para Kitty das Lebres –
disse ele.
- Nunca ouvi falar. Agora caia fora!
Lentamente, observado com atenção pelos guardas, Stape enfiou a mão em seus alforjes e retirou duas carteiras, uma bem maior do que a outra. Então, estendeu a menor.
- Essa é para vocês dividirem. A outra é para Kitty das Lebres.
- Passe-as para cá. Eu providenciarei que ele as receba. – Os guardas, cinco deles, imensos e escolhidos a dedo por sua falta de simpatia, começaram a se mover para cercar Stape. – Volte amanhã, ou, melhor ainda, depois de amanhã.
- Ficarei com o dinheiro até lá.
- Não. É melhor não – disse o guarda. – Ele ficará mais seguro com a gente.
Ele veio para cima de Stape o mais rápido possível para um homem de quase 130 quilos, estendendo a mão para pegar o dinheiro. Stape parecia ter desistido, seus ombros encurvados em sinal de completa derrota. Então, quando o guarda empurrou seu peito, o Redentor simplesmente enlaçou as mãos dele com as suas e as puxou para baixo. Ouviu-se um estalo não muito alto e um grito de agonia enquanto o homem caía de joelhos. Os outros, surpreendidos pela maneira repentina como tudo aconteceu, dispararam para a frente. Porém, assim que começaram a se mover, viram que Stape estava segurando a ponta de uma espada curta contra o pescoço do guarda. O grito deste para que eles recuassem foi praticamente desnecessário.
- Agora tragam alguma autoridade para cá, e sem demora. Não pretendo ficar neste antro mais do que o necessário.
Vinte minutos depois, Stape estava sentado em uma antessala e, embora aquele fosse um dos ambientes mais agradáveis em que já havia entrado – com seus lambris de madeira de cedro e sândalo, o lugar transpirava uma simplicidade requintada, com um cheiro tão sutil e relaxante que ele cogitou cortar um pedaço do revestimento para levá-lo consigo -, ele continuava apreensivo. Não por causa da luta nos portões de Kitty Town, mas pelo que havia visto depois que lhe permitiram entrar. O homem que supervisionara os massacres de Odessa e da Floresta da Polônia, célebres mesmo entre o rol de crueldades que caracterizava as guerras nos Vales Ocidentais, ficou abalado por conta das coisas que testemunhara nos últimos minutos. Uma porta se abriu na extremidade oposta da antessala e um velho deu um passo à frente, anunciando polidamente:
- Kitty das Lebres irá recebê-lo agora.
No instante em que a porta se abriu, um aroma curioso flutuou na sua direção. Ele era apenas ligeiramente desagradável e até doce, embora sua doçura arrepiasse os pelos da nuca de Stape. Ele certamente nunca tinha sentido aquele cheiro na vida, mas, ainda assim, algo o alertava, prevenindo-o, deixando-o inquieto apesar de toda a sua coragem. Já profundamente perturbado pelas cenas que testemunhara em Kitty Town, ele andou até a porta que o velho fechou às suas costas, permanecendo na antessala.
O quarto era escuro, mas iluminado de forma cuidadosa, para que o chão fosse bem visível. Acima da cintura, não se enxergava nada além das formas mais opacas. Havia alguém sentado em uma mesa no centro do aposento, porém, era como se a pessoa fosse feita de sombras.
- Por favor, fique à vontade, Redentor.
Aquela voz. Era diferente de qualquer coisa que ele já tivesse ouvido. Não havia crueldade alguma nela, nenhum sibilar de malícia e tampouco ameaça ou intimidação, todos os tons de voz aos quais estava familiarizado. Ela era como o arrulhar de uma pomba, uma nota sussurrada de incrível tristeza, um lamento cavernoso. Era, de longe, a coisa mais terrível que ele havia escutado na vida. O som parecia ressoar no seu estômago como a nota mais grave jamais ouvida do órgão da grande catedral de Kiev. Ele sentiu que iria passar mal.
- O senhor não parece bem, Redentor – arrulhou a voz – Gostaria de um pouco d’água?
- Não. Obrigado.
A voz de Kitty das Lebres suspirou, como se ele estivesse preocupadíssimo. Para Stape, era como ser beijado por algo inimaginavelmente sórdido.
- Aos negócios, então.
O Redentor precisou de toda a sua força de vontade para responder – força de vontade esta confirmada várias vezes ao queimar apóstatas e massacrar indiscriminadamente os inocentes.
Respirar fundo não adiantou nada. Havia apenas mais daquele cheiro adocicado horroroso à sua volta.
- É verdade – disse Kitty das Lebres – que os quatro jovens que o senhor está procurando estão presos em Memphis.
- O senhor pode chegar até eles?
- Ah, Redentor, ninguém é inalcançável. O senhor os quer
vivos?
- O senhor pode fazer isso? – O padre Stape estava a um passo de desmaiar.
- Prefiro não fazê-lo, Redentor. Não é do meu proveito,
entende?
Então, ele fez um som que poderia ter sido uma risadinha, ou não. A porta se abriu e o velho que o havia convidado a entrar disse:
- Tenha a gentileza de me acompanhar, Redentor, e eu fecharei nosso negócio.
Dez minutos depois e ainda passando mal, o Redentor Roy Stape se recuperava da sua pavorosa entrevista com Kitty das Lebres.
- Sente-se melhor, Redentor? – perguntou o velho. Stape olhou
para ele.
- Que tipo...
- Não faça perguntas que possam ser consideradas ofensivas – interrompeu o velho. – Não é sensato ser afrontoso quanto a esse tipo de coisa neste lugar. – O velho respirou fundo. – A situação é a seguinte. Você quer que nós tiremos essas quatro pessoas da cidade velha. Isso é possível, mas não o faremos porque seria contrário aos nossos interesses mais preciosos.
- Então eu estou de saída para informar meu mestre. Ele insiste em receber más noticias imediatamente.
- Não seja precipitado, Redentor – disse o velho. – Mas presteza, menos pressa. Nós ficaremos de olho neles. Em algum momento, terão que deixar a cidade. O senhor será informado. E então, como um gesto de boa vontade, nós os devolveremos aos seus cuidados sem um arranhão. Isso é uma promessa.
- Quanto tempo?
- O tempo que for necessário, Redentor. Cumpriremos nossa palavra, porém, deixe-me esclarecer uma coisa. Se o senhor tentar de alguma forma capturá-los sozinho, Kitty das Lebres interpretará isso como um ataque contra os seus interesses.
Ouviu-se uma batida na porta.
- Entre.
Ela se abriu e dois guardas entraram.
- Estes homens o escoltarão até os portões de Kitty Town. O seu cavalo foi alimentado e dado de beber como um gesto de nossas boas intenções. Adeus.
Quando o Redentor Stape saiu do edifício, o ar de Kitty Town o atingiu como um soco na cara. Quanto barulho! Quanta gente! Sentia-se como um cego cuja primeira visão fosse os arco-íris do inferno, um surdo que recuperasse a audição para ouvir os sons do fim do mundo. Havia bawlers cheios de penduricalhos e mawlers com seus ya-yas à mostra: benjamins de galochas gritando: “Do amarelo, quem vai querer, quem vai querer.” Burtons com seus trombadinhas nus, traficantes procurando
encrenca, titias com seus mancebos cobertos de ruge e oferecendo dois pelo preço de um. Huguenotes vendendo seus artigos exóticos para quem desse o maior lance e meninos alucinados com línguas compridas caçando pombos em grupos de dois.
Fulminando de horror e paralisado de espanto, o Redentor Stape soltou um grito repentino de total aversão e repulsa. Então, para a surpresa dos dois guardas que o escoltavam, ele passou sebo nas canelas, botando sua alma calcinada para correr até os portões de Kitty Town e disparando noite adentro.
A 50 quilômetros do ultimo vilarejo sob a proteção da cidade de Memphis, IdrisPukke estava sentado em uma vala sob a chuva. Não havia nada seco que pudesse usar para acender um fogo e, mesmo que houvesse, seria muito perigoso fazê-lo. Tudo o que comera nas ultimas 24 horas tinha sido meia batata, e pegajosa de tão podre ainda por cima. Como um homem que havia comandado três exércitos, sido os ouvidos de reis e imperadores e desonrado quase uma geração inteira de filhas de nababos e sátrapas havia chegado a esse ponto? Boa pergunta, mas IdrisPukke sabia a resposta.
Alguma pessoas podem até abusar da sorte de vez em quando, mas IdrisPukke abusava dela diariamente. Ele tinha colhido sem plantar; tomado o braço quando lhe ofereceram a mão; ganhado seis fortunas e perdido sete. Suas nove vidas já haviam sido gastas há muito tempo. Sua genialidade como soldado no campo de batalha, no entanto, era inegável: sua sagacidade, habilidade com as armas e bom-senso na política admirados em todo o mundo conhecido – o que quer dizer que, em cada parte dele, havia uma sentença de morte à sua espera, isso sem incluir os lugares em que coisas como julgamentos e sentenças eram consideradas formalidades enfadonhas. Em suma, IdrisPukke não podia fugir para nenhum país sem correr o risco de ser cozido em água fervente, estripado, queimado vivo ou enforcado e, não raro, as quatro coisas diversas vezes seguidas. O maior mercenário que o mundo já havia visto estava reduzido a se esconder de um dentre as dezenas de caçadores de recompensas e soldados no seu encalço em uma vala, molhado, cansado e sofrendo uma indigestão terrível depois de sua ultima refeição bolorenta.
Duas vezes no ultimo mês ele tinha sido capturado e conseguira escapar quase imediatamente. No entanto, o verdadeiro problema era que não havia para onde escapar. Tudo o que IdrisPukke precisava fazer era fechar os olhos para ouvir os erros do passado voltando para assombrá-lo.
De repente, ouviu-se um estalo.
Antes que pudesse pensar, IdrisPukke estava de joelhos e catando cavaco pela vala o mais rápido possível.
- Tochas. Luzes. Ele nos viu!
Tochas se acenderam por todo o lado, iluminando o breu do campo. Porém, o que os ajudava serviu de ajuda também IdrisPukke, que pôde ver um bosque a 50 metros de distância. Ele continuou correndo aos trancos e barrancos, tão rápido quanto um cachorro, mas escorregando e derrapando na lama.
- Ali!
Ele tinha sido avistado. Enquanto corria, conseguia ver a luz das tochas se juntarem na sua direção. Aconteceria a qualquer momento: a flecha ou a espada e a morte lenta. Ofegante e assustado, ele continuava correndo. Ainda estava livre e em movimento. Precisava chegar até as árvores. Subiu a encosta aos escorregões e, logo que passou pela sua beirada, o barulho de um golpe.
Ele ficou parado por um instante. O mundo tinha sido congelado em uma explosão de luz e dor. Então, um segundo golpe e ele estava caindo para trás. Antes mesmo de atingir o fundo da vala, levando outra pancada terrível na cabeça, ele já estava inconsciente.
Quando despertou, um gorila imenso e peludo segurava firme seus dois pés com uma das mãos e jogava sua cabeça despreocupadamente contra um muro de tijolos, como uma dona de casa batendo um tapete entediada. Então, o gorila parou, erguendo-o até os dois ficarem cara a cara e fitando-o dentro dos olhos. IdrisPukke sabia que era um gorila porque tinha visto um em um circo em Arnhemland. Este era muito maior – seu hálito quente e úmido, cheirando a carne podre de um mês atrás, enquanto filetes grossos de ranho verde escorriam do seu nariz.
- Então você ainda está vivo – disse o gorila. Só então, e com certo alivio, IdrisPukke percebeu que ainda estava inconsciente e sonhando. Em seguida, o gorila voltou a esmurrar preguiçosamente sua cabeça contra o muro de tijolos.
Quando forçou seus olhos a se abrirem, a cena ao seu redor se dissolveu, tornando-se uma carroça de fazendeiro à qual ele estava
amarrado pelas mãos e pelos pés. Sua cabeça batia contra a lateral de madeira a cada solavanco, enquanto a carroça seguia pelo terreno sulcado.
Ele respirou fundo para manter a consciência e afastou sua cabeça para o meio da carroça. Era verdade, pensou ele: é bom parar de bater com a cabeça contra a parede. Em seguida, a dor voltou guinchando e IdrisPukke parou de se sentir grato. Ele gemeu.
- Então você está acordado, hein?
Era um soldado, e não um caçador de recompensas, o que pelo menos indicava que ele tinha caído nas mãos de pessoas que talvez quisessem cumprir algumas formalidades antes de infligir qualquer castigo desagradável. Isso significava uma chance de escapar. O soldado lhe deu um golpe rápido na barriga com o cabo da sua lança curta.
- Eu lhe fiz uma pergunta civilizada e quero uma resposta
civilizada.
- Sim, estou acordado – grunhiu IdrisPukke – Para onde estão me levando?
- Feche a matraca. Eles me disseram para não falar contigo, sob hipótese alguma, mas não entendo por quê. Você não me parece grande coisa. – E, depois de lhe dar outro golpe na barriga com o cabo da lança, o soldado se recostou e não voltou a falar mais.
14
- O que o senhor quer que eu faça com eles? – perguntou Albin.
Vipond ergueu os olhos de sua mesa e pensou sobre o assunto.
- Eles me interessam. Mas acho que está na hora de pressionálos um pouco mais. Quero que supervisione o interrogatório sobre os Redentores. Precisamos ter uma idéia melhor do Santuário e saber se o que os Redentores estão tramando tem alguma importância para nós. Enquanto isso, coloque os meninos como aprendizes no Mond.
- Solomon Solomon não vai gostar disso.
- Meu Deus do céu – espantou-se Vipond. – Ninguém mais quer obedecer ordens? Se ele não gostar, vai ter que engolir.
- Os soldados do Mond são arrogantes, chanceler, não vai ser fácil para os três.
- Sei disso. Mas quero que você fique de olho neles. Preciso saber como reagirão ao tratamento que irão receber lá. Não os culpo por mentirem para mim, eu faria o mesmo no lugar deles, mas quero desvendar esse mistério.
E foi assim que, dois dias depois, Cale, Kleist e Henri Embromador se viram no Pátio do Campo da Excelência, juntamente com outros 47 aprendizes, observando o mesmo número de jovens aristocratas do clã Materazzi se aquecer diante de Solomon Solomon, mestre das artes marciais do Mond. Ele era um homem grande, com a cabeça raspada e olhos tão frios quanto o vento que vem do leste em um dia gélido de janeiro.
Naquele dia, o céu estava azul e o vento, quente. Os novos aprendizes ficaram parados ali, admirando os rapazes de 14 e 15 anos, que alongavam e relaxavam os músculos no campo de treinamento. No geral, a aparência deles era uniforme: altos, espantosamente flexíveis, loiros e esbeltos. Confiança e segurança cintilavam no ar a sua volta, à medida que eles estiravam seus braços e pernas longos em contorções inacreditáveis, ou faziam flexões com apenas uma das mãos como se alguma espécie de motor mágico impulsionasse seus braços flexíveis. Quarenta e sete dos aprendizes os observavam boquiabertos, filhos de mercadores ricos que haviam pagado a Solomon Solomon um bom dinheiro para que meros comerciantes tivessem a oportunidade de estar em contato diário com os Materazzi. A recente substituição de três deles por aqueles pivetes das Terras Crestadas havia custado a Solomon Solomon mais de mil dólares anuais. Era por isso que seu coração gélido estava muito mais frio que o normal.
Cada aprendiz portava um brasão diferente e, embora Cale não fizesse idéia do que os brasões significassem, notou, ao observar os Materazzi que se aqueciam mais adiante, que todos traziam um distintivo no peito, sendo que alguns eram iguais aos brasões que adornavam as costas de determinados aprendizes. Cale demorou um pouco para encontrar o dono do distintivo que combinava com o seu próprio brasão. Ele era como os outros, porém muito melhor: mais alto, mais loiro, mais gracioso, mais forte. Movia-se a uma velocidade extraordinária enquanto brigava de mentira com vários oponentes, contendo seus golpes, mas ainda assim deixando todos na lona sempre que queria. Cale dedicou alguns segundos a olhar para trás e examinar a vasta coleção de armas reservadas para cada aprendiz do Mond: meia dúzia de espadas diferentes, lanças curtas, médias e longas, e machados, além de diversos outros tipos de armas que ele nunca tinha visto na vida.
- Você! VOCÊ! FIQUE ONDE ESTÁ! – Era Solomon Solomon, e estava olhando para Cale. Ele desceu do palanque grosseiro, repleto de bonecos de treinamento, de onde supervisionava o aquecimento e marchou diretamente para Cale, sem desgrudar os olhos dele por um só instante até estar bem na sua frente. No campo, o aquecimento foi interrompido enquanto os jovens Materazzi esperavam para ver o que iria acontecer. Assim que alcançou Cale, Solomon deu-lhe uma bofetada forte no lado da cabeça. Alguns dos membros do Mond riram com uma espécie de compaixão desalmada, do mesmo jeito que você riria ao ver um atleta levar um tombo feio em uma corrida ou um boxeador fraco levar um soco que o deixaria inconsciente por horas a fio.
Embora Cale tivesse cambaleado, ele não caiu conforme Solomon Solomon esperava. E, enquanto voltava para a fila, tampouco protestou ou encarou Solomon Solomon com raiva – Cale estava bastante acostumado a gestos arbitrários de violência e ao mau gênio incompreensível dos que estavam em posição de autoridade para cometer qualquer um dos dois erros.
- Você sabe o que fez?
- Não, senhor – respondeu Cale.
- Não, senhor? E ainda tem a audácia de me dizer que não sabe? – Isso foi dito com toda a fúria contida de um sovina que havia perdido mil dólares anuais sem nenhuma explicação razoável. Ele bateu novamente em Cale. Ao receber o terceiro golpe, Cale compreendeu seu erro. No Santuário, cair depois de apanhar faria apenas você apanhar de novo; ali,
estava claro que era o contrário. Então, ele caiu no chão, conforme rezava o figurino. – Da próxima vez – gritou Solomon Solomon -, olhe apenas para a frente, observe seu mestre e não desgrude os olhos dele. ENTENDIDO?
- Sim, senhor.
Com essas palavras, Solomon Solomon se virou, marchando de volta para o seu pódio. Cale se levantou devagar, sua cabeça tilintando. Todos os demais aprendizes olhavam aterrorizados para a frente – com exceção de Henri Embromador e Kleist, que o faziam por saber que era preciso. Uma pessoa, no entanto, o encarava: o mais alto e gracioso dos Materazzi, dono do brasão ao qual Cale estava submetido. Os rapazes ao seu redor estavam rindo, mas o Materazzi loiro, não. Ele estava quase vermelho vivo de raiva.
Nem mesmo a surra que tinha dado em Cale melhorou o humor de Solomon Solomon; perder tanto dinheiro havia sido um golpe duro contra o seu coração.
- Dirijam-se aos seus aprendizes. Espadas curtas.
Os integrantes do Mond seguiram em direção à fileira de aprendizes e pararam diante dela. O Materazzi alto olhou para Cale e falou baixinho:
- Se você se exibir daquele jeito outra vez, eu vou fazer você desejar nunca ter nascido. Entendido?
- Sim, entendido – respondeu Cale.
- Meu nome é Conn Materazzi. A partir de agora, você vai me chamar de mestre.
- Sim, mestre, entendido.
- Me dê a espada curta.
Cale virou para trás. Havia três espadas penduradas em uma barra de madeira com lâminas do mesmo comprimento, mas de formatos diferentes, de retas e curvadas. Para Cale, uma espada era uma espada. Ele escolheu uma.
- Não, aquela. – O que foi seguido por um chute na bunda. – A outra. – Cale estendeu a mão para apanhar a espada ao lado. Levou outro chute. Uma explosão de risadas veio de seus colegas e de alguns dos aprendizes. – A outra – disse Conn Materazzi. Cale a apanhou, entregandoa para o rapaz sorridente. – Ótimo, agora me agradeça por aquele chute instrutivo. – Fez-se um silêncio diante dessas palavras, a expectativa silenciosa de que talvez o aprendiz fosse idiota o bastante para protestar ou, melhor ainda, reagir.
- Agradeça – repetiu Conn.
- Obrigado, mestre – falou Cale, em um tom quase cordial, para o alivio de Henri Embromador e até mesmo de Kleist.
- Excelente – disse Conn, olhando para os seus colegas. – Falta de tutano, gosto disso em um servo. – As risadas lisonjeiras foram interrompidas por outra ordem vociferada por Solomon Solomon. Durante as duas horas seguintes, Cale observou, com a cabeça dolorida, o Mond cumprir sua rotina de treinamento. Quando ela terminou, os Materazzi deixaram o campo às risadas para tomar banho e comer. Então, vários homens mais velhos, os treinadores, apareceram para ensinar os aprendizes a usar e cuidar das armas empilhadas atrás deles.
Mais tarde, os três se sentaram para conversar, Henri Embromador e Kleist surpreendentemente mais aborrecidos do que Cale.
- Meu Deus – falou Kleist - , e eu achando que tínhamos finalmente dado um pouco de sorte de parar aqui. – Ele olhou contrariado para Cale. – Você tem um grande talento para irritar as pessoas, Cale. Precisou só de... Quanto?... Vinte minutos para arranjar briga com os dois maiores brutamontes do grupo numa coisa que parecia a maior moleza.
Cale refletiu sobre aquilo, mas não disse nada.
- Você quer fugir hoje à noite? – perguntou Henri Embromador.
- Não – respondeu Cale, ainda pensativo. – Preciso de tempo para roubar o máximo que puder.
- Esperar não me parece uma boa idéia. Pense no que pode
acontecer.
- Vai dar tudo certo. Além do mais, não há motivo para vocês dois fugirem, Kleist tem razão, vocês deram sorte.
- Rá! – disse Henri. – Assim que você sumir, eles vão partir para cima da gente de qualquer maneira.
- Pode ser que sim, pode ser que não. Talvez Kleist esteja certo, tem alguma coisa em mim que irrita as pessoas.
- Eu vou com você – disse Henri Embromador.
- Não.
- Estou dizendo que vou.
Fez-se um longo silêncio, finalmente quebrado por Kleist.
- Bem, eu não vou ficar aqui sozinho – disse ele, indo embora de cara amarrada.
- Talvez – disse Cale - , pudéssemos ir embora antes de ele
voltar.
- É melhor a gente se manter junto.
- Imagino que sim, mas por que ele tem que reclamar tanto?
- É o jeito dele. Ele não é má pessoa.
- É mesmo? – perguntou Cale, como se estivesse apenas ligeiramente interessado.
- Quando você quer partir?
- Daqui a uma semana. Tem um monte de coisa que vale a pena roubar aqui. Precisamos nos abastecer.
- É perigoso demais.
- Vai dar tudo certo.
- Discordo.
- Bem, a cabeça e o rabo são meus, então sou eu que decido.
Henri Embromador deu de ombros.
- Então ta. – Ele mudou de assunto. – O que você acha dos soldados desse tal de Mond? Bem convencidos, não é?
- Mas fazem bonito, também.
- Bem – disse Henri Embromador, sorrindo - , bonitos podem
até ser.
- Você acha que Riba vai ficar bem?
- Por que não ficaria? – Era óbvio que Henri Embromador estava genuinamente preocupado. – A questão é a seguinte – prosseguiu ele - , ela não é como nós dois. Não agüentaria uma surra, nem nada. Não foi criada para isso.
- Ela vai ficar bem. Vipond cuidou bem de nós, não cuidou? O que Kleist disse é verdade. Se não fosse por mim, vocês estariam sendo tratados a pão de ló aqui. – Na verdade, ele não sabia o que era pão de ló, mas tinha ouvido a expressão algumas vezes e gostava dela. – Riba sabe se dar bem com as pessoas. Não vai acontecer nada com ela.
- Por que você não consegue se dar bem com as pessoas, então?
- Não sei.
- Apenas tente ficar fora do caminho delas e, se não conseguir, pare de dar a impressão que quer cortar suas gargantas e dá-las de comer para os cachorros.
Porém, no dia seguinte, a esperança de Henri Embromador de que as coisas iriam melhorar em relação a Solomon Solomon e Conn Materazzi não se cumpriu. Solomon Solomon arranjou outra desculpa para continuar a surra cruel do dia anterior, mas desta vez no meio do campo, para que todos pudessem ver bem e se sentirem incentivados a também procurar uma razão para fazer o mesmo. Conn Materazzi, no entanto, mais sutil do que seu mestre das artes marciais, e sem querer dar a impressão de que estava tão somente imitando-o, continuou a chuta Cale por qualquer motivo, embora mal colocasse força nos pés. O jovem tinha um talento para a humilhação, tratando Cale como se ele fosse um fardo divertido com
o qual ele estava condenado a lidar da melhor forma possível. Com suas pernas longas e flexíveis, e tendo praticado a vida inteira, ele podia atingilo na panturrilha, no traseiro ou lhe dar um chute de raspão na orelha, como se usar as mãos em alguém como Cale fosse levá-lo a sério demais. Depois de quatro dias disso, foi o efeito de Conn em Cale que começou a preocupar Henri Embromador: mais até do que os maus-tratos aos quais Solomon Solomon o submetia. Cale estava habituado a uma brutalidade mais extrema do que qualquer coisa que Solomon Solomon poderia oferecer. Contudo, ser motivo de gozação, passar ridículo, era algo que eles não conheciam. Henri começou a temer que Cale se sentisse impelido a revidar.
- Ele me parece mais tranqüilo do que nunca – disse Kleist, enquanto Henri Embromador se preocupava do seu lado.
- Tão tranqüilo quanto uma casa mal-assombrada até o demônio que mora nela acordar. – Os dois riram dessa frase tantas vezes repetida pelos Redentores.
- Só mais dois dias.
- Vamos convencê-lo a fugir amanhã.
- Está certo.
Conn Materazzi continuou fazendo o papel de mestre tolerante de um tolo patético com cada vez mais malicia – e recebendo uma grande admiração de seus amigos por isso. No intervalo entre as surras administradas por Solomon Solomon, ele despenteava o cabelo de Cale por conta de algum suposto erro, como se ele fosse um velho animal de estimação sem controle da própria bexiga, mas do qual era impossível não sentir pena. Ele levava incontáveis tapinhas na nuca e golpes de leve na bunda com a parte chata da espada de Conn. E, durante todo esse tempo, Cale foi ficando cada vez mais calado. E Conn percebia isso – que, enquanto as surras não pareciam surtir efeito algum, por mais que Cale se esforçasse para disfarçar, as gozações estavam penetrando aos poucos em sua alma dura como pedra. Conn Materazzi poderia ser um monstro, mas não era idiota.
Os Materazzi eram famosos por duas coisas: a primeira, sua habilidade suprema nas artes marciais, que era acompanhada por uma imensa coragem; a segunda, a extraordinária beleza de suas mulheres, rivalizada apenas pela extraordinária frieza delas. Na verdade, dizia-se que
só era possível compreender a disposição dos Materazzi a morrer no campo de batalho depois de ser apresentado a uma de suas esposas. Os Materazzi eram máquinas de guerra terríveis tanto em termos individuais quanto coletivos. No entanto, se você um dia conhecesse uma de suas mulheres, certamente se depararia com uma condescendência, um orgulho e um desdém sem precedentes. Mas, também ficaria perplexo diante da beleza delas – e, como os Materazzi do sexo masculino, disposto a suportar quase tudo por um sorriso ou pelo obséquio de um beijo.
Embora os Materazzi controlassem com mão de ferro quase um terço do mundo conhecido através do seu poderio militar, econômico e político, os conquistados sempre poderiam se consolar com a idéia de que, por maior que fosse sua hegemonia, os Materazzi sempre seriam escravos de suas mulheres.
Enquanto as surras e gozações continuavam para Cale, todos os três ex-acólitos passavam o maior tempo possível roubando. Isso não era especialmente difícil ou perigoso – os Materazzi tinham uma atitude em relação às suas posses que, para os meninos, era bizarra. Eles pareciam querer jogar as coisas fora logo depois de comprá-las. A principio, os meninos roubaram objetos que imaginavam ser úteis: um canivete, um amolador, dinheiro largado em cima da cama de seus mestres, geralmente em quantias absurdamente grandes. Então, descobriram que era mais fácil perguntar se eles queriam que tal coisa fosse consertada ou colocada em outro lugar, pois muitas vezes recebiam ordens para simplesmente jogá-las fora. Em quatro dias, eles haviam roubado ou “ganhado” mais coisas do que poderiam, ou até mesmo sabiam como, usar: facas; espadas; arco de caça com um defeitinho que Kleist arrumou com facilidade; uma pequena chaleira; tigelas; colheres; cordas; barbantes; comidas em conserva das cozinhas; e uma bela quantidade de dinheiro, que seria ainda maior quando eles limpassem os quartos de seus mestres logo antes de fugirem. Todas essas coisas eram escondidas com cuidado em uma série de fendas e rachaduras, porém, a chance de serem descobertas era mínima, pois ninguém dava falta delas. A noção de que você poderia viver a vida que pediu a Deus naquele lugar só com as coisas que os outros não queriam mais deixou Kleist e Henri Embromador morrendo de tristeza por terem que partir. Contudo, Henri via que, a cada provocação debochada de Conn Materazzi, a cada gozação humilhante, Cale ficava mais e mais calado. Ele torcia a orelha de Cale e puxava seu nariz como se ele fosse um garotinho travesso.
Na tarde do quinto dia, Cale estava procurando algo útil para roubar em uma parte da fortaleza na qual, como aprendiz, estava proibido
de entrar. “Proibido” em Memphis não significava o mesmo que “proibido” no Santuário – lá, uma infração poderia significar, digamos, quarenta chibatadas com um cinto de couro com tachinhas de metal que poderiam, facilmente, fazê-lo sangrar até a morte. Em Memphis, significava fazer algo que você não devia sob pena de sofrer uma punição ligeiramente desagradável, ou algo do qual você poderia se safar na base da conversa sem o menor problema. Neste caso, se fosse pego, Cale poderia se desculpar dizendo que estava perdido.
Ele estava passando pela parte mais velha da grande fortaleza, que era, na verdade, a parte mais velha de Memphis. Quase todo aquele muro, com seus aposentos internos atualmente usado como depósito, havia sido demolido e substituído por casas elegantes, com aquelas janelas imensas de que os Materazzi tanto gostavam. No entanto, aquela parte antiga de Memphis era escura, a única iluminação vinda dos corredores localizados nas extremidades dos muros, geralmente separados por 20 metros de distância. Ela havia sido feita para sitiar os inimigos, não para passeios. À medida que Cale subia cautelosamente um lance de degraus de pedra escura, sem nenhum balaustrada ou corrimão que o protegesse de despencar mais de 10 metros até as lajotas lá embaixo, ele escutou alguém descendo às pressas em sua direção. Não conseguia enxergar a pessoa por conta de uma curva na escadaria, porém, fosse quem fosse, estava carregando uma lanterna. Ele recuou para dentro de um vão e torceu para ser ignorado por quem passasse. Os passos rápidos e a luz fraca se aproximaram e, em seguida, entraram no seu campo de visão. Ele espremeu as costas contra a parede e a garota não o viu ao passar correndo. Contudo, a luz era fraca naquele lugar imenso e os degraus assimétricos. Ela fizera a curva rápido demais e, já desequilibrada, prendeu seu salto em uma lajota irregular.
Vacilou por um instante até recuperar o equilíbrio, pairando sobre a queda de 10 metros até o chão de pedra dura. Então, a menina soltou um gritinho à medida que a lamparina caía pela beirada e estava prestes a ir junto quando Cale a agarrou pelo braço, puxando-a de volta.
Ela soltou um grito de pavor diante daquela surpreendente
aparição.
- Meu Deus!
- Está tudo bem – disse Cale. – Você ia cair.
- Oh! – disse ela, olhando para baixo em direção à lamparina, quebrada, mas com o óleo que se espalhara ainda em chamas. – Oh – repetiu ela. – Você me assustou.
Cale riu.
- Você tem sorte de estar viva para ainda ficar assustada.
- Eu teria me virado sozinha.
- Não, não teria.
Ela baixou os olhos para a queda pronunciada e então voltou a encarar Cale na penumbra. Ele era diferente de qualquer menino ou homem que já tivesse visto, com sua altura mediana e cabelos muito negros, mas era a expressão nos seus olhos – envelhecida, sombria e algo mais que não conseguia identificar – que lhe era estranha.
De repente, sentiu medo.
- Tenho que ir – disse ela. – Obrigada. – E então, começou a descer rapidamente as escadas.
- Cuidado – disse Cale, tão baixinho que não havia a menor chance de ela ter ouvido.
E, então, a menina desapareceu.
Cale se sentiu como se tivesse sido atingido por um raio. A garota com a qual havia topado era capaz de mexer até mesmo com a cabeça mais experiente e sábia do mundo e, quando o assunto era mulheres, a dele estava muito longe de ser qualquer uma dessas coisas. Ela era Arbell Materazzi, filho do marechal Materazzi, doge de Memphis. No entanto, ninguém, com exceção de seu pai, chamava Arbell pelo sobrenome. Para todos os demais, ela era sempre Arbell Pescoço de Cisne, considerada pela unanimidade a mulher mais bonita de Memphis e, provavelmente, de todo o seu vasto império. Como descrever sua beleza? Pense em uma mulher com corpo de cisne.
Como esta história teria sido diferente se Cale não a tivesse encontrado dentro da grande muralha naquela tarde, ou se tivesse lhe faltado a destreza naquele lugar escuro e escorregadio para puxá-la de
volta, ao que ela teria, sem dúvida, quebrado seu pescoço maravilhosamente longo e elegante nas lajotas lá embaixo.
Horas depois, um Cale apaixonado contou aos seus dois companheiros, um perplexo e o outro ressentido, que havia mudado de idéia quanto a fugir de Memphis. Obviamente, não explicou o verdadeiro motivo, dizendo-lhes que já havia passado a vida inteira levando surras piores do que as aplicadas por Solomon Solomon e que decidira simplesmente ignorar as tolices de Conn Materazzi. Por que deveria se preocupar com as gozações idiotas de um pirralho mimado quando eles tinham tantos bons motivos para ficar ali? Por mais intrigados que estivessem, Henri Embromador e Kleist não tinham motivo para duvidar dele. Ainda assim, Henri duvidou.
- Você acreditou nele? – perguntou mais tarde, quando se viu sozinho com Kleist.
- Por que eu deveria me preocupar com isso? Por mim tudo bem se ele quiser ficar, só não gosto de vê-lo agindo como Deus Todo-Poderoso o tempo todo.
Durante os próximos dias, Henri Embromador observou as surras e as gozações continuarem. Como sempre, eram as humilhações que mais o preocupavam. Conn Materazzi poderia ser um pirralho mimado, porém, também era um lutador de artes marciais de habilidade inigualável. Somente os mais velhos e experientes soldados do clã Materazzi conseguiam derrotá-lo nas lutas dolorosamente realistas que aconteciam todas as sextas-feiras e duravam o dia inteiro. E mesmo essas derrotas contra soldados mortais e implacáveis se tornavam cada vez mais raras com o passar das semanas. Basta dizer que ele era um Materazzi de renome, e por um bom motivo. Não foi surpresa alguma que ele tivesse recebido, na ultima semana do seu treinamento formal, um prêmio raramente concedido a um soldado que entrasse para o exercito dos Materazzi: a Forza, ou Espada de Danzig, popularmente conhecida como A Lâmina. Feita por Martin Bacon, o grande ferreiro, cem anos atrás, era uma arma forjada com um aço de força e flexibilidade únicas, um segredo lamentavelmente perdido quando Bacon se matou por uma jovem aristocrata Materazzi que não o amava. Peter Materazzi, então doge de Memphis, para quem ele forjara a espada, ficou inconsolável ao saber da sua morte e passou o resto da vida se recusando a crer que um homem do gênio de Bacon tivesse se matado por um motivo desses. “Uma garota!”, exclamou ele, incrédulo. “Eu teria lhe dado minha esposa se ele tivesse me pedido.” Dado a reputação de frieza das mulheres do clã Materazzi, até hoje não se sabe se
essa oferta teria sido cumprida. Seja como for, ficar responsável por A Lâmina era uma honra extraordinária para Conn; honra esta que não era conferida há mais de vinte anos.
A cerimônia de entrega e o desfile que se seguiu foram tão esplêndidos quanto se possa imaginar: vastas multidões, chapéus agitados no ar, vivas, música, pompa e circunstância e tudo o mais. O Mond estava alinhado em frente aos seus predecessores, quase 5 mil cabeças ao todo. Estes não deveriam ser confundidos com meros soldados – tratava-se de uma elite blindada, a mais bem treinada e equipada do mundo, composta apenas de membros do alto escalão e de berço aristocrático.
E, no centro disso tudo, Conn Materazzi: com seus 16 anos e 1,82 metro de altura, loiro, musculoso, esguio e belo – aquele que era observado por todos os observadores, o centro das atenções, o queridinho das multidões, o orgulho dos Materazzi. Como ele estava cheio de si ao aceitar os vivas e aplausos no momento em que A Lâmina lhe foi entregue. Quando a ergueu bem alto sobre a cabeça, o alarido foi tão grande que parecia o fim do mundo.
Henri Embromador aplaudiu para não chamar atenção para si. Kleist expressou seu desagrado com entusiasmo, exagerando nos aplausos e comemorando escandalosamente, como se Conn fosse seu irmão gêmeo. Porém, apesar de uma cotovelada de Kleist e de um pedido sussurrado de Henri Embromador, Cale ficou observando impassível, uma reação que não passou despercebida pelo seu mestre, por mais que ele se sentisse como se tivesse sido atingido por um raio divino.
Uma vez que já contava com uma opinião bastante lisonjeira de si mesmo o que era reforçada pelo seu séqüito de entusiastas bajuladores -, o senso de superioridade de Conn alcançou proporções vertiginosas. Mesmo duas horas depois, com a multidão já dispersada e de volta à reclusão da grande fortaleza, seu cérebro ainda zumbia como uma colméia de abelhas em polvorosa. Ainda assim, quando os elogios e a adoração dos seus amigos e da nata da sociedade dos Materazzi começaram a minguar, ele retornou o bastante ao mundo real para se lembrar do insulto calculado que Cale lhe ofertara, recusando-se até mesmo a aplaudir seu triunfo.
Esse gesto espetacular de insubordinação não deveria ser tolerado, de modo que ele mandou um de seus servos convocar seu aprendiz imediatamente.
O servo demorou um pouco para encontrá-lo, principalmente porque, ao chegar ao dormitório dos aprendizes, ele teve a infelicidade de perguntar a Henri Embromador onde Cale estava. Já havia algum tempo que seu talento para evasivas não era requisitado, porém, quando Henri se viu diante de uma pergunta direta, sua natureza esquiva voltou à tona.
- Cale? – disse ele, como se nem mesmo soubesse o que aquilo significava.
- O novo aprendiz do Lorde Conn Materazzi.
- Lorde quem?
- Ele tem cabelo preto. É mais ou menos deste tamanho. – O servo, percebendo que estava lidando com um idiota, ergueu a mão a mais ou menos 1,70 metro de altura. – Está sempre com cara de coitado.
- Ah, você quer dizer Kleist. Ele está lá embaixo, na cozinha.
Talvez, pensou o servo, ele estivesse procurando por Kleist. Achava que Conn Materazzi tinha falado Cale, mas bem que podia ter sido Kleist. Porém, levando-se em conta o humor de seu mestre, a idéia de voltar para perguntar não lhe agradava muito. Infelizmente, no entanto, Cale entrou no dormitório na esperança de conseguir tirar um cochilo e o plano de Henri Embromador de fazer o servo andar metade do caminho até o Santuário em sua busca não deu em nada.
- É aquele ali – falou o servo para Henri Embromador.
- Aquele não é o Kleist – respondeu Henri Embromador, triunfante. – Aquele é o Cale.
Quando Cale chegou ao jardim de verão, a multidão em volta de Conn havia rareado e desaparecido. Entretanto, uma ultima visita, e de longe a mais importante aos olhos do jovem Materazzi, finalmente chegara: Arbell Pescoço de Cisne. Criada para tratar os homens com um desdém quebrado apenas pela condescendência, Arbell tinha certa dificuldade em fingir ter algum tipo de interesse pessoal em Conn que fosse além, na melhor das hipóteses, da indiferença. Na verdade, ela não era mais indiferente à sua beleza e sucesso do que a maioria das outras jovens seria, por mais bela e parecida com um cisne que fosse. Se o contemplado tivesse sido qualquer outro que não Conn, ela teria instintivamente aparecido na metade da cerimônia, lhe dado os parabéns sem o menor entusiasmo e
desaparecido. No entanto, não lhe era tão fácil quanto de costume permanecer indiferente. Nem mesmo o exemplar mais frio da elite feminina dos Materazzi conseguiria se manter impassível diante do belo e jovem guerreiro, do clamor das multidões e do poder glorioso e raro da cerimônia. Arbell Pescoço de Cisne era, na verdade, consideravelmente menos desdenhosa do que parecia e, para sua enorme confusão, chegou a tremer no momento em que Conn ergueu A Lâmina para o público, que rugiu sua aprovação para aquele jovem magnífico. Conseqüentemente, seu talento para transparecer um completo desdém pelos jovens do sexo masculino – por mais magníficos que fossem – a havia abandonado e sua indecisão a levado a chegar muito atrasada e até a ruborizar (mas não a ponto de Conn perceber) ao cumprimentá-lo por sua grande conquista. Conn reservava certo grau de deferência apenas para duas pessoas: seu tio e a filha dele. Ele reverenciava Arbell tanto por sua beleza estonteante quanto por seu aparente desprezo total por ele.
Apesar de aquele ser um dia em que sua já presunçosa juventude havia sido dotada de ainda mais poder e majestade, Conn ainda foi tomado pela confusão ao vê-la chegar, e só teria notado seu desconforto se ela tivesse se atirado nos seus braços e o coberto de beijos. Ele escutou suas felicitações em um estalo de constrangimento tão grande que mal conseguia compreender o que ela dizia, quanto mais perceber seu tom de voz inseguro. Foi somente depois de ambos trocarem mesuras e Arbell Pescoço se Cisne já ter se virado para ir embora que Cale chegou.
Normalmente, Arbell não daria mais atenção a um aprendiz do que a uma mariposa comum. Porém, estando já um pouco abalada, ela foi atirada em uma confusão ainda mais profunda ao encontrar repentinamente o menino estranho que, poucos dias antes, a havia salvado de cair das escadas na velha muralha. Em meio a tanta tensão, o rosto de Arbell se congelou em uma expressão totalmente vazia.
Somente os maiores e mais experientes amantes da história – o lendário Nathan Jog, talvez, ou o famoso Nicholas Panick – teriam enxergado a jovem em polvorosa que se escondia por trás de uma expressão como aquela. O pobre Cale, obviamente, estava muito aquém de qualquer um desses grandes amantes e viu apenas o que temia ver. Para ele, sua expressão transmitia apenas uma afronta gélida: ele salvara sua vida e se apaixonara, e ela nem ao menos o reconheceu. Mesmo em seu estado de profunda confusão, Arbell Pescoço de Cisne saiu daquele encontro inesperado com elegância suficiente. Ela simplesmente deu meia-volta e começou a cruzar os cerca de 100 metros que a separavam do portão do outro lado do jardim. Àquela altura, havia apenas sete pessoas no jardim
além dessas três: quatro dos amigos mais íntimos de Conn Materazzi e três guardas entediados, vestindo armaduras cerimoniais completas e carregando três vezes mais armas do que levariam para uma batalha de verdade.
E havia também um espião: Henri Embromador, preocupado com o amigo, tinha subido até o telhado que dava vista para o jardim e observava a cena detrás de uma chaminé.
Então, Conn Materazzi se voltou para o seu aprendiz. No entanto, o que quer que pretendesse fazer foi ofuscado por um de seus amigos que, embriagado, achou que divertiria a todos copiando o hábito de Conn de tratar Cale como se ele fosse um miolo mole. Ele estendeu a mão e deu-lhe dois tapinhas de leve no rosto. Os demais, com exceção de Conn, começaram a rir tão alto que Arbell Pescoço de Cisne olhou para trás e viu um terceiro tapa de brincadeira. Ela ficou horrorizada com o que viu, porém, Cale enxergava apenas mais provas do seu desdém em sua expressão.
Foi no quarto tapa que, não seria exagero dizer, o próprio mundo mudou. Aparentemente sem nenhum grande esforço, Cale apanhou o pulso do rapaz com a mão esquerda e seu antebraço com a direita e então os torceu. Ouviu-se um estalo alto e um grito de agonia. Cale continuou fazendo seu movimento aparentemente lento e, agarrando o adolescente aos gritos pelo ombro, o atirou para cima de um Conn surpreso, derrubando-o no chão. Cale deu um passo para trás, encaixou o punho direito na mão esquerda e acertou o rosto do Materazzi mais próximo com o ombro. Antes mesmo de cair no chão, o rapaz já estava inconsciente. Então, os dois que restavam se recuperaram do espanto e sacaram suas adagas cerimoniais antes de darem um passo para trás, assumindo posição de combate. Não só pareciam formidáveis, como o eram. Cale continuou se movendo na direção deles, porém, se agachou no caminho, apanhando um punhado de cal e cascalho, que atirou na cara dos dois oponentes. Eles rodopiaram para trás em agonia, enquanto Cale encaixava um soco brutal no rim do mais próximo e outro no esterno do segundo. Em seguida, apanhou as duas adagas e se virou para encarar Conn, que já havia se desembaraçado do amigo ainda aos berros. Tudo isso não levou mais que quatro segundos.
Então, um longo silencio recaiu enquanto Conn e Cale se encaravam. Conn Materazzi trazia uma expressão contida, porém furiosa, no rosto; o de Cale estava totalmente inexpressivo.
Àquela altura, os três soldados tinham vindo correndo do claustro onde estavam tentado se refrescar em suas armaduras completas.
- Deixe-nos cuidar dele, senhor – disse o chefe dos guardas.
- Fiquem onde estão – falou o Materazzi com calma. – Se derem um passo para apanhá-lo, juro por Deus que passarão o resto da vida limpando bosta de cavalo. Vocês são obrigados a me obedecer.
Isso era bem verdade. O chefe dos guardas recuou, mas fez sinal para os outros buscarem reforços. Espero, pensou ele, que esse babaca convencido leve uma bela surra. No entanto, sabia que isso não ia acontecer. Conn Materazzi era um soldado de habilidade inigualável, já um mestre aos 16 anos de idade. Ele poderia ser um babaca, mas, quanto a isso, tinha-se que dar o braço a torcer.
Conn desembainhou A Lâmina. Com a exceção da cerimônia daquele dia especifico, a espada era valiosa demais para não permanecer à mostra na segurança do grande salão. Certamente era valiosa demais para ser usada em uma luta. Porém, Conn sabia poder argumentar que não teve escolha, de modo que, pela primeira vez em quarenta anos, A Lâmina foi desembainhada com a intenção de matar alguém.
- Pare! – exclamou Arbell Pescoço de Cisne.
Conn a ignorou. Em um assunto como aquele, nem mesmo ela teria voz. Cale não deu sinal de sequer ter ouvido. No alto do telhado, Henri Embromador sabia não haver nada que pudesse fazer.
Então começou.
Conn brandiu A Lâmina para a frente a uma velocidade enorme, desferindo outro golpe e, logo em seguida, um terceiro à medida que Cale recuava lentamente, bloqueando cada investida com as duas adagas ornamentais que logo estavam dentadas como um serrote velho. Conn se movia, desviava e bloqueava com grande rapidez e elegância, ao mesmo tempo espadachim e dançarino. Cale continuava recuando, bloqueando por pouco cada golpe; à medida que Conn estocava e investia contra sua cabeça, coração, pernas e qualquer outra brecha que encontrasse. E tudo isso se dava em silêncio, exceto pela musica estranha do choque da quase melodiosa A Lâmina contra as adagas e da resposta surda destas.
Conn Materazzi continuava avançando, enquanto Cale se defendia ao bloquear um golpe alto aqui, outro acolá, sempre se movendo para trás. Por fim, Conn o encurralou contra a parede e já não havia mais como recuar. Com seu oponente sem saída, Conn se afastou um passo, impossibilitando Cale de se mover para ambos os lados.
- Você luta como um cachorro de rua – disse ele para Cale. A expressão de Cale, no entanto, vazia e sem emoção, não mudou. Era como se não tivesse ouvido.
Conn se deslocou de um lado para outro e deu alguns passo elegantes, sinalizando aos que observavam que estava se preparando para matar. Seu coração se avolumou no peito, chocado pelo êxtase de compreender que jamais seria o mesmo novamente.
Nesse momento, outros vintes soldados, alguns arqueiros inclusive, já haviam vindo até o jardim e sido organizados pelo chefe da guarda em um semicírculo a poucos metros da luta. Ele conseguia ver, assim como todos os demais, como aquilo iria acabar. Apesar das ordens de Conn, o chefe da guarda sabia muito bem que haveria problemas se ele se ferisse de alguma forma. Ele sentiu pena sincera do menino encurralado contra a parede enquanto Conn erguia sua espada para o golpe de misericórdia. Porém, Conn manteve a espada suspensa no ar, esperando – à procura do medo nos olhos de Cale. Contudo, sua expressão não mudou em nenhum instante, continuando vazia e distante, como se já não houvesse alma dentro dele.
Ande logo com isso, seu merdinha, pensou o sargento.
Então, Conn desferiu o golpe. É impossível precisar a rapidez com que A Lâmina cortou o ar – um relâmpago seria vagaroso em comparação. Cale não bloqueou o ataque desta vez – simplesmente se moveu, de forma quase imperceptível, para um lado. A espada errou o alvo, mas apenas pela distância de uma asa de mosquito. Em seguida, outro golpe em falso. E, por fim, uma estocada da qual Cale se desviou, embora tivesse sido rápida como o bote de uma cobra.
Então, pela primeira vez, Cale desferiu um golpe. Conn o evitou, mas por pouco. Uma sucessão de ataques começou a empurrá-lo para trás, até os dois estarem de volta ao local onde a luta havia começado. Conn respirava pesado, o medo crescente fazendo-o arfar cada vez mais forte – seu corpo desacostumado ao terror e à presença da morte rebelando
se contra sua imensa habilidade e os anos de treinamento, seus nervos desgastados e suas entranhas dissolvidas.
Então, Cale se deteve.
Ele se afastou e, fora do raio de ataque, olhou Conn dos pés à cabeça. Após um intervalo de um ou dois segundos, um Conn desesperado desferiu outro golpe, A Lâmina sibilando enquanto cortava o ar. Cale, no entanto, se moveu antes mesmo de o golpe começar, bloqueando A Lâmina com uma adaga e enterrando a outra bem fundo no ombro de seu oponente.
Com um grito de dor e surpresa, Conn largou a espada à medida que Cale girava seu corpo e o segurava pelo pescoço com o antebraço, apontando a adaga restante contra a barriga do adversário.
- Fique quieto – sussurrou ele baixinho no ouvido de Conn, dirigindo-se em voz alta aos soldados que se aproximavam para impedi-lo: - Parados, ou eu rasgo esse escrotinho no meio. – Então, deu uma pancada forte na barriga de Conn para mostrar que estava falando sério. O chefe da guarda, já aterrorizado, ordenou que seus homens parassem.
Durante todo esse tempo, Cale apertava Conn com cada vez mais força pelo pescoço, para ele não poder respirar. Novamente, sussurrou no seu ouvido.
- Antes de partir, mestre, leve isso com você: lutar não é uma
arte.
Depois de ouvir essas palavras, Conn perdeu a consciência, pendendo frouxo do braço de Cale, que já aliviava a pressão em volta do seu pescoço.
- Ele ainda está vivo, sargento, mas não vai continuar se você bancar o corajoso. Vou apanhar a espada, então comporte-se.
Sustentando o peso considerável de Conn, Cale se abaixou devagar e estendeu a mão para apanhar A Lâmina. Depois de pegá-la, levantou-se de volta sem desgrudar os olhos dos solados. Mais deles chegavam pelos portões externos, até somarem quase uma centena.
- Para onde você vai, filho? – perguntou o sargento.
- Sabe de uma coisa – respondeu Cale - , ainda não tinha pensado nisso.
Foi então que Henri Embromador gritou de cima do telhado.
- Se você prometer que não vai feri-lo, ele libertará Conn.
Surpreendidos, os soldados reagiram a essa primeira tentativa de negociação com três flechas na direção de Henri, que se abaixou, sumindo de vista.
- Parem! – gritou o sargento. – O próximo que se mover sem ordens minhas vai levar cinqüenta chibatadas e passar um ano limpando as latrinas!
Ele se voltou para Cale.
- Que tal, filho? Liberte-o e ninguém irá feri-lo.
- E depois?
- Não posso dizer. Farei o possível. Contarei a eles que aqueles meninos estavam perturbando você. Agora, se eles vão ouvir... Que escolha você tem?
- Cale! Faça o que ele diz – gritou Henri Embromador de cima do telhado, desta vez tomando o cuidado de mostrar apenas a cabeça por sobre a beirada.
Cale aguardou um instante, embora estivesse perfeitamente claro o que ele deveria fazer. Afastando A Lâmina do pescoço de Conn, ele olhou ao seu redor, procurando um lugar para colocá-la. Teve sorte. À distancia de dois passos para trás, que ele deu com extrema cautela, havia um pedaço antigo do muro logo abaixo da altura do seu joelho, onde duas pedras fundamentais enormes se encontravam. Ele enfiou A Lâmina entre as duas pedras a uma profundidade de 25 centímetros.
- O que você está fazendo, menino? – falou o sargento.
Em seguida, Cale largou Conn Materazzi inconsciente no chão, voltou-se para a espada e a empurrou com toda a sua força para o lado, forçando-a contra as pedras grandes. A Lâmina, talvez a maior espada em
toda a história do mundo, entortou e se partiu com o som de um sino tocando – BLÉM!
Os soldados arquejaram de espanto como se fossem uma só pessoa: Cale olhou para o sargento, largando calmamente a metade quebrada de A Lâmina que ainda estava em suas mãos. O sargento andou em sua direção, apanhando uma algema de um dos soldados ao seu lado.
- Vire-se, menino.
Cale obedeceu. Enquanto o algemava, o sargento falou baixinho no ouvido de Cale:
- Essa foi a ultima idiotice que você fez na vida, filho.
Um dos médicos da guarda – havia um entre cada sessenta homens do exército dos Materazzi – estava examinando Conn, que jazia inconsciente. Ele assentiu para o sargento e foi examinar os demais. Ao mesmo tempo, Arbell Pescoço de Cisne invadia o circulo que rodeava Cale e se ajoelhava ao lado de Conn, tomando seu pulso. Satisfeita, ela se levantou para encarar Cale, que já se encontrava preso entre dois soldados. Ele devolveu o olhar, inexpressivo e calmo.
- Imagino que você não vá me esquecer uma segunda vez – disse ele. E, com essas palavras, foi arrastado dali pelos soldados. Foi então que a sorte de Cale mudou. Henri Embromador não estava sozinho no telhado. Tão curioso quanto ele, embora menos preocupado com o que podia acontecer com Cale, Kleist o seguira. Logo no começo da briga, Henri lhe dissera para tentar trazer Albin para lá.
Kleist o encontrou no único lugar em que sabia onde procurá-lo. Num piscar de olhos, Albin já estava fora de seu gabinete e chamando seus homens para acompanhá-lo. E, assim, ele chegou no instante em que os quatro soldados arrastavam Cale do jardim em direção à cadeia da cidade, um lugar onde ele teria sorte se sobrevivesse até o dia seguinte.
- Nós cuidaremos disso a partir daqui – disse Albin, acompanhado de dez dos seus homens, uniformizados com seus coletes pretos e chapéus de feltro da mesma cor.
- O sargento nos disse para levá-lo para a cadeia – falou o soldado mais veterano de todos.
- Eu sou o capitão Albin, da Divisão de Assuntos Internos, e responsável pela segurança da Cidadela, de modo que é melhor entregá-lo para mim, ou então...
A presença imponente de Albin, assim como os dez oficiais com cara de poucos amigos que o acompanhavam, conhecidos pelo apelido nada carinhoso de “buldogues”, acovardara os soldados, cuja entrada raramente era permitida na Cidadela e que ficavam imediatamente desconfortáveis quando contestados em um ambiente tão estranho. Ainda assim, o soldado veterano fez uma segunda tentativa.
- Preciso perguntar ao sargento.
- Pergunte a quem quiser, mas ele é nosso prisioneiro e está vindo conosco agora mesmo. – Com essas palavras, Albin mandou seus homens avançarem com um gesto da cabeça, ao que os soldados em desvantagem deixaram Cale ser apanhado com hesitação. O soldado veterano assentiu para um dos outros, que atravessou de volta o jardim para buscar ajuda. Porém, àquela altura os buldogues já haviam apanhado Cale e, erguendo-o do chão, começado a seguir caminho pelo labirinto de becos que serpeavam por toda a Cidadela. Quando o reforço chegou, eles já haviam desaparecido.
Dez minutos depois, Cale estava em uma das celas particulares de Vipond e um carcereiro trabalhava nas algemas que prendiam suas mãos. Em vinte minutos, ele estava livre e parado no meio do cubículo mal iluminado, enquanto a porta era fechada às suas costas. Havia outra cela ao lado da sua, separada em parte por um muro e em parte por barras. Cale se sentou e começou a refletir sobre o que tinha feito. Não eram pensamentos felizes, porém, poucos minutos depois, eles foram interrompidos por uma voz vinda da cela à direita.
- Tem um cigarro?
15
- A gente só se encontra em circunstâncias desagradáveis – disse IdrisPukke. – Talvez devêssemos mudar de vida.
- Fale por você, vovô. – Cale se sentou no catre de madeira e fingiu ignorar seu companheiro de prisão. Era o cúmulo do acaso, reencontrar IdrisPukke.
- Que coincidência isso – disse o outro.
- Pode-se dizer que sim.
- E não é? – Fez-se um silêncio. – O que o traz aqui?
Cale pensou antes de responder.
- Eu entrei numa briga..
- Entrar numa briga não o faria acabar na prisão particular de Vipond. Com quem você estava brigando?
Novamente, Cale pensou sobre a sua resposta. Mas, que diferença fazia?
- Conn Materazzi.
IdrisPukke gargalhou, porém, o fascínio e a admiração estavam claros naquela risada, de modo que, por mais que tentasse, Cale mal conseguiu resistir à bajulação.
- Meu Deus, o Pentelhinhos Dourados em pessoa. Pelo que ouvi falar, você tem sorte de estar vivo.
- A sorte é toda dele. Deve estar acordando agora, e com uma bela dor de cabeça.
- Você é cheio de surpresas, não é? – Ele ficou calado por um instante. – Ainda assim... nada disso explica sua presença aqui. O que essa história tem a ver com Vipond?
- Talvez seja por causa da espada.
- Que espada?
- A espada de Conn Materazzi.
- A espada não era exatamente dele.
- Como assim?
- Na verdade, é a do marechal Materazzi. A que eles chamam de A Lâmina. – Desta vez, o silêncio foi muito mais profundo.
- Depois que larguei Conn no chão, eu enfiei a espada no meio de duas pedras e quebrei.
O silêncio que vinha de IdrisPukke era grave e frio.
- Um ato de vandalismo particularmente estúpido. Aquela espada era uma obra de arte.
- Não tive muito tempo para admirá-la enquanto Conn tentava me cortar em dois com ela.
- Mas a briga já tinha acabado, você mesmo disse.
A verdade era que Cale vinha se arrependendo do seu gesto impulsivo desde o instante em que quebrara a espada.
- Quer meu conselho?
- Não.
- Vou dá-lo de qualquer maneira. Se você for matar alguém, então mate. Se for deixar a pessoa viver, deixe-a viver. Mas não faça disso um bicho de sete cabeças.
Cale deu as costas para IdrisPukke e se deitou.
- Enquanto estiver dormindo, sonhe no seguinte: tudo o que você fez, especialmente ter quebrado a espada, significa que deveria estar nas mãos do doge. Nada disso explica sua presença aqui.
Meia hora depois, um Cale insone foi perturbado pelo som da porta da sua cela sendo destrancada. Ele se sentou e viu Albin e Vipond entrando. Vipond o encarou cheio de ódio.
- Boa noite, Lorde Vipond – falou alegremente IdrisPukke.
- Cale a boca, IdrisPukke – respondeu Vipond, ainda encarando Cale. – Agora me diga exatamente o que aconteceu. Eu quero toda a verdade, ou juro por Deus que o entrego para o doge neste minuto. E, quando terminar, me conte exatamente quem é você e como pode ter conseguido derrotar Conn Materazzi e seus amigos com tanta facilidade. Estou falando sério: a verdade, ou eu lavo minhas mãos quanto a você mais rápido do que um aspargo leva para cozinhar.
Cale obviamente não sabia o que era um aspargo. A única dificuldade seria decidir o quanto teria que contar a Vipond para persuadilo de que ele estava sendo totalmente sincero.
- Eu perdi a cabeça. É isso que as pessoas fazem o tempo todo,
não é?
- Por que você quebrou a espada?
Cale pareceu constrangido.
- Foi idiotice minha... aconteceu no calor de uma briga. Eu sinto muito, e vou dizer isso ao doge.
Albin riu.
- Ah, se você sente muito, então tudo bem.
- Onde você aprendeu a lutar tão bem? – perguntou Vipond.
- No Santuário. Minha vida inteira, 12 horas por dia, seis dias por semana.
- Você está me dizendo que Henri e Kleist conseguem lutar daquele jeito?
- Não. Quero dizer, eles são treinados para lutar, mas Kleist é um... um especialista.
- Em quê?
- Em lanças e no arco e flecha.
- E Henri?
- Logística, cartografia, espionagem. – Isso era verdade, mas não toda ela.
- Então nenhum dos dois poderia ter feito o que você fez hoje.
- Não. Já lhe disse.
- Existem outros com a mesma habilidade que você no
Santuário?
- Não.
- O que faz de você tão especial? – perguntou Vipond.
Cale ficou um instante calado para dar a impressão de que estava relutante em responder.
- Quando eu tinha 9 anos de idade, já era bom de luta, mas não como agora.
- Então o que aconteceu?
- Eu estava treinando combate com um garoto muito mais velho. Valia tudo, armas de verdade, mas com as pontas e os gumes cegos. Eu me saí melhor do que ele, que acabou no chão... mas banquei o convencido e ele conseguiu me derrubar também. Então ele me bateu no lado da cabeça com uma pedra. E foi isso. Os Redentores o arrancaram de cima de mim, e só por isso ele não arrancou meus miolos na base da pedrada. Acordei dali a duas semanas e, outras duas depois, eu estava de volta ao normal, com a exceção de um amassado no crânio. – Ele ergueu a mão e apontou com um dedo o lado direito da cabeça, em direção à nuca. Então se deteve novamente, como se relutasse em prosseguir.
- Mas você não era mais como antes?
- Não. A principio, não conseguia mais lutar tão bem. Meu timing estava todo errado, mas, depois de um tempo, me acostumei ao que quer tenha acontecido quando ele abriu meu crânio.
- Ao que você se acostumou? – perguntou Albin.
- Sempre que você dá um golpe, significa que já decidiu onde vai atingir seu adversário. E sempre se entrega de algum jeito: o lugar para onde você está olhando, o movimento do seu corpo, a maneira como se dobra para não perder o equilíbrio ao atacar. Tudo isso revela ao adversário onde você pretende atingi-lo e, se ele interpretar mal esses sinais, vai levar o golpe; mas, se os interpretar corretamente, consegue bloqueá-lo e evitar ser atingido.
- Qualquer lutador, qualquer esportista, sabe disso – disse Albin. – Um bom soldado, ou um bom jogador de bola, consegue disfarçar um golpe ou um lançamento.
- Eles não conseguiriam disfarçar de mim, independentemente do que fizessem. Pelo menos não agora. Eu consigo antecipar qualquer movimento que uma pessoa pretenda fazer.
- Você pode nos mostrar? – perguntou Vipond. – Sem machucar ninguém, quero dizer.
- Peça que o capitão Albin coloque sua mão atrás das costas.
Albin pareceu desconfortável diante daquilo, o que não passou despercebido a IdrisPukke, que até então observava calado.
- Eu não confiaria nele se fosse você, meu querido capitão.
- Cale a boca, IdrisPukke. – Albin cravou os olhos em Cale, colocando lentamente as mãos atrás das costas.
- Tudo o que o senhor precisa fazer é decidir qual mão apontar para mim o mais rápido que puder. Pode fazer tudo o que quiser para me enganar: fingir que vai atacar, mexer o corpo, tentar me levar a escolher o lado errado. O senhor deci...
Antes de Cale terminar a frase, Albin atirou a mão esquerda na sua direção, apenas para ver o menino apanhá-la na sua mão direita, tão delicadamente quanto se fosse uma bola atirada por um bebê desajeitado. Por mais que ele se esforçasse, o mesmo aconteceu outras seis vezes.
- Minha vez – falou Cale quando um Albin irritado, mas também impressionadíssimo, desistiu. Cale colocou a mão atrás das costas e eles repetiram o processo ao contrário. O menino atirou o braço para a frente seis vezes, e seis vezes Albin escolheu o lado errado.
- Consigo ver o que vai fazer – disse Cale – no instante em que você começa a se movimentar. Isso se dá apenas uma fração de segundos antes de eu ser atingido, mas é sempre o suficiente. Ninguém consegue ver o que estou prestes a fazer, por mais ágeis e experientes que sejam.
- E é só por isso? – perguntou Albin. – Porque você levou uma pancada na cabeça?
- Não – respondeu Cale, irritado sem saber ao certo por quê. – Fui treinado minha vida inteira para fazer uma coisa só. Poderia ter derrotado Conn Materazzi de qualquer forma, por melhor que ele seja, mas não com tanta facilidade e não outros quatro ao mesmo tempo. Então não, capitão, não é só por isso.
- Como os Redentores reagiram quando perceberam o que tinha acontecido?
Cale soltou um grunhido, uma espécie de risada que não indicava divertimento algum.
- Não os Redentores, mas um Redentor: Bosco, o Lorde da Guerra, responsável por todo o treinamento nas marcais.
- Marciais? Como as nossas artes marciais?
Cale riu, achando graça de verdade desta vez.
- Não existe arte nenhuma no que nós fazemos. Pergunte a Conn Materazzi e seus amigos.
Vipond ignorou o gracejo.
- Esse Bosco, o que ele fez quando descobriu o resultado da sua
lesão?
- Ele passou meses me testando, mas desta vez contra meninos muito mais velhos e forte. Chegou a trazer cinco veteranos, que haviam lutado nas guerras dos Vales Ocidentais e estavam sentenciados à morte, segundo ele. – Cale se deteve.
- E o que aconteceu?
- Ele me colocou para lutar com eles quatro dias seguidos. “Mate ou morra”, era o que ele dizia para nós dois. Então, depois do quarto dia, ele parou.
- Por quê?
- Já havia visto o bastante para não ter mais dúvidas quanto a mim. Uma quinta vez seria um risco desnecessário. – Ele abriu um sorriso nada amigável. – Afinal de contas, uma luta é sempre imprevisível, não é mesmo? Sempre tem uma chance... um golpe de sorte.
- E depois?
- Depois ele tentou me reproduzir.
- Como assim?
- Ele passou dias medindo a lesão na minha cabeça e comparando-a a alguns crânios que havia apanhado nos cemitérios. Daí fez um modelo de argila. Então, ficou seis meses tentando repetir o ocorrido.
- Não estou entendendo. Como?
- Ele escolheu 12 acólitos da mesma idade e altura do que eu e os amarrou, acertando a cabeça deles com um cinzel feito sob medida, no formato da minha lesão. Pegou um martelo e os golpeou no mesmo ponto do crânio. Às vezes com mais força, depois mais de leve e, então, mais de leve ainda.
Ninguém falou nada por um instante.
- O que aconteceu? – perguntou Vipond baixinho.
- O que aconteceu foi que metade deles morreu quase na hora e o resto... bem, eles não eram os mesmos depois. Daí ninguém mais os viu novamente.
- Foram levados para algum outro lugar?
- Pode-se dizer que sim.
- E então?
- Bosco começou a me treinar pessoalmente. Nunca tinha feito isso antes. Às vezes, me fazia treinar dez horas seguidas por dia, procurando alguma fraqueza, tirando meu couro quando eu errava e depois me corrigindo. Então, ele desapareceu por seis meses e, quando voltou, trouxe sete Redentores que disse serem os melhores no que faziam.
- Que era?
- Matar pessoas, basicamente. Pessoas com armaduras, sem armaduras, com espadas, com bastões, desarmadas. Como organizar chacinas... – Cale fez uma pausa.
- De prisioneiros?
- Não só de prisioneiros, de qualquer tipo de gente. Dois deles eram como se fossem generais. Um se encarregava da parte tática: batalhas, retiradas, grandes manobras militares. O outro cuidava das atividades de guerrilha: pequenos grupos combatendo em território inimigo, assassinatos, como aterrorizar os nativos para que eles ajudem você, e não o inimigo.
- E para que servia tudo isso?
- Bem, eu nunca fui idiota a ponto de perguntar.
- Tinha a ver com as guerras dos Redentores no Ocidente?
- Já lhe disse, eu não perguntei.
- Você deve ter formado uma opinião.
- Formado uma opinião? Sim. De que tinha algo a ver com as guerras no Ocidente.
- Formado uma opinião? Sim. De que tinha algo a ver com as guerras no Ocidente.
Vipond lançou um olhar demorado e firme para Cale, que o devolveu com insolência. Então, o chanceler pareceu se decidir quanto a algo. Ele se voltou para Albin.
- Traga os outros dois para a minha casa o mais rápido possível.
Albin fez sinal para o carcereiro e eles foram embora.
Cale se sentou em sua cama e IdrisPukke se aproximou das
barras.
- Vida interessante a sua – falou ele para Cale. – Você deveria escrever um livro.
16
Assim que Lorde Vipond terminou de falar com Henri Embromador e Kleist, ele foi até o palazzo do marechal Materazzi, o doge de Memphis.
O doge tinha muitos conselheiros, pois era um homem que adorava se consultar e discutir os assuntos de forma minuciosa e demorada. O fato de ele raramente aceitar conselhos era apenas uma daquelas peculiaridades que muitas vezes afligem os que herdam posições de imenso poder. A única exceção a esta regra de falar sem ouvir era reservada ao Lorde Vipond, ele próprio extremamente poderoso graças à sua rede de espiões e informantes e a um talento quase incontestável para estar certo. Conforme dizia a rima popular:
O chanceler Vipond não está plantando nem colhendo E o que ele não sabe não vale a pena ficar sabendo.
Não é nenhuma grande rima, mas também não deixa de estar correta. O marechal Materazzi era um homem consideravelmente implacável, que chegou ao reinado do maior império que o mundo já conheceu. Manter o controle incontestável sobre ele durante vinte anos exigiu grande habilidade militar, talento para a política e uma inteligência notável. No entanto, embora tenha tido Vipond como conselheiro durante quase todo esse tempo, o doge jamais conseguiu entender como o chanceler se tornou quase tão poderoso quanto ele. Um dia, após cerca de três anos de reinado, ele se deu conta, para o seu horror, de que Vipond se tornara indispensável. A princípio, isso o deixou profundamente hostil ao chanceler – aquela era uma situação intolerável, que o deixava exposto a um assassinato, ou, pior ainda, ao risco de se tornar uma espécie de marionete. Contudo, Vipond deixara claro ao marechal que sempre seria seu servo fiel, desde que ele não interferisse no seu papel de chanceler e parasse de ser um pé no saco. Desde então, a relação entre os dois tem sido não exatamente tensa, mas, como dizem os camponeses dos arredores de Memphis, mais azeda.
Conduzido à presença do Materazzi, Vipond assentiu com a cabeça e foi convidado a sentar.
- Como vai, Vipond?
- Muito bem, meu amo. E o senhor?
- Ah, bem.
Fez-se um silêncio desconfortável: ou melhor, desconfortável para o marechal, pois Vipond simplesmente continuou sentado com um sorriso benevolente nos lábios.
- Fui informado que você se reuniu com os embaixadores da Noruega hoje – falou o marechal.
- Exatamente.
Os noruegueses, uma das raças da fronteira conquistadas pelos Materazzi mais de 15 anos atrás, haviam aproveitado com gosto as vantagens oferecidas pela ocupação – estradas, palazzos com aquecimento central e artigos de importação luxuosos -, sem, no entanto, abandonar seu apetite voraz por batalhas. Já fazia cinco anos que o marechal, atualmente cansado de guerra, sentindo-se cada vez mais irritado pelos custos de manutenção do seu vasto império, havia decidido que ele não deveria mais se expandir. Os noruegueses, no entanto, apesar de sua comovente lealdade aos conquistadores, estavam constantemente criando problemas e tentando expandir seu próprio território para o norte sempre que possível, apesar das repetidas ordens para que não o fizessem. Desonestos até dizer chega, os noruegueses provocavam seus vizinhos e, geralmente, utilizavam todos os truques disponíveis para afirmar que haviam sido atacados e, portanto, não tinham outra escolha senão invadir os agressores para se protegerem. Conforme Vipond sabia muito bem, esses ataques eram realizados por soldados noruegueses disfarçados de tropas do país vizinho, já que gostavam mesmo era de uma boa pilhagem.
- O que eles tinham a dizer em defesa própria?
- Ah – respondeu Vipond - , o de sempre: que eram vitimas, vitimas pacificas que estavam apenas se defendendo e defendendo o império do qual são os mais fiéis súditos.
- E qual foi a sua resposta?
- Eu disse que não nasci ontem e que, se eles não mandassem suas tropas de volta para o quartel, nós consideraríamos a hipótese de lhes oferecer a independência.
- E como reagiram a isso?
- Os seis enviados ficaram brancos de horror e prometeram que o exército se retiraria até o fim de semana.
Materazzi observou Vipond atentamente.
- Talvez devêssemos lhes oferecer a independência de qualquer maneira, e a vários outros, também. O custo de governar e policiar essas províncias é exorbitante. Mais do que recolhemos de impostos, não estou certo?
- Basicamente... mas então o senhor teria, ou que reduzir nosso exército e ter um bando de soldados de pavio curto zanzando por aí a procura de confusão, ou mantê-lo às próprias custas.
Materazzi resmungou.
- Entre a cruz e a espada.
- Temo que sim, meu amo. Porém, obviamente, se o senhor quiser que eu faça uma estimativa oficial...
- Para onde você levou o menino que quebrou minha espada?
Essas mudanças de assunto repentinas eram uma velha tática do marechal para abalar qualquer um que estivesse lhe causando aborrecimento.
- Sou responsável pela segurança dentro da cidade.
- Você é responsável por assuntos relacionados à sedição, não é um policial. Isso não tem nada a ver com você. Ele quebrou minha espada, que é inestimável, e feriu gravemente meu sobrinho e os filhos de quatro membros da corte. Essas pessoas querem o sangue dele e, digo isto sem esperar nada em troca, eu também.
Vipond o encarou pensativo.
- Talvez seja possível consertar A Lâmina.
- Você não sabe nada sobre o assunto. Não finja que sabe.
- De fato não sei, mas conheço um homem que sabe. O comissário Walter Gurney retornou de sua embaixada em Riben.
- Por que ele não se reportou a mim?
- Ele não está bem. Provavelmente não verá o próximo ano, eu
diria.
- O que isso tem a ver com a minha espada?
- O relatório de Gurney continha uma longa seção sobre a extraordinária habilidade dos ferreiros de Riben. Ele diz nunca ter visto um trabalho parecido. Tivemos uma breve conversa, e ele me confidenciou que, se A Lâmina puder ser consertada, talvez os forjadores de Riben sejam as pessoas certas para tanto. – Ele fez uma pausa. – Isso se daria, obviamente, sob minha garantia pessoal de que ela estaria segura e às minhas próprias custas.
- Por quê? – perguntou Materazzi. – O que esse menino significa para você para valer todo esse trabalho e custo?
- Em sua irritação perfeitamente compreensível diante do que aconteceu a um bem valioso e dos ferimentos sofridos pelo seu sobrinho, o senhor, se me permite a franqueza, ignorou o fato de que um menino de 14 anos conseguiu dar uma sova em cinco dos mais promissores soldados dos Materazzi, entre eles, o que supostamente é o melhor de sua geração. Isso não o preocupa?
- Mais um motivo para nos livrarmos dele.
- O senhor não está interessado em como ele adquiriu esse talento extraordinário?
- Como, então?
- Esse jovem, que se chama Cale, foi treinado pelos Redentores, no Santuário.
- Eles nunca nos deram problema algum.
- Não no passado, porém, esse menino me contou que, nos últimos sete anos, houve uma grande mudança no dia a dia e nos treinamentos no Santuário. Eles estão treinando mais soldados e com mais brutalidade.
- Você tem medo que eles nos ataquem? Seria muita tolice se fizessem isso.
- Em primeiro lugar, é meu dever ter medo desse tipo de coisa. Em segundo, quantos reis e imperadores pensaram o mesmo a respeito do senhor trinta anos atrás?
Materazzi suspirou, irritado e desconfortável: por mais que tivesse sido um terror sagrado sedento por sangue enquanto erguia seu grande império, a verdade era que, em dez anos de paz, ele havia perdido seu apetite pela guerra.
O soldado implacável, que já fora sinônimo de conquista voraz, se tornara um homem nos estertores da meia-idade que desejava uma vida tranqüila, na qual jamais precisaria estar congelando de frio numa semana, morrendo se sede na outra, ou temendo – conforme admitira certa vez, embriagado, para Vipond – acabar estripado pelo facão de um camponês manco que tivesse acertado um golpe de sorte. Jamais admitira para ninguém, mas sua verdadeira aversão pela guerra começou depois de um inverno em que ele passara fome nos campos de gelo de Stetl, onde se viu reduzido a comer os restos mortais do seu estimado sargento-mor.
- Então, qual é o seu plano? Tenho certeza de que você tem um. E é melhor que ele inclua alguma maneira de tirar meu irmão do meu cangote a respeito de Conn.
Vipond colocou uma carta na mesa. Era de Conn Materazzi. O marechal a abriu e começou a ler. Ao terminar, devolveu a carta à mesa.
- Conn Materazzi possui muitas qualidades admiráveis. Eu não sabia que a capacidade de ser superior fosse uma delas.
- A sua facilidade em julgar as pessoas, marechal, é uma lição para todos nós. Não seria uma questão de vaidade? Tive uma conversa com Conn e ressaltei que punir Cale por derrotá-lo o deixaria exposto ao ridículo. Ele concordou.
- Você não pode deixar esse seu garoto à solta pelas ruas de Memphis. Os pais da cidade não irão tolerar uma coisa dessas, e eu tampouco. As pessoas não podem achar que fiz vistas grossas a esse assunto, Vipond.
- É claro que não. Mas todos sabem que ele está sob a minha custódia. Se ele escapar, as críticas serão direcionadas a mim.
- Você quer deixá-lo escapar.
- De forma alguma. O menino possui habilidades inigualáveis. Além disso, ele e seus amigos são a única fonte real de informações que temos sobre os Redentores e suas intenções. Precisamos saber muito mais. Isso já está sendo providenciado, mas preciso que eles confirmem as informações que recebo. Esses garotos são valiosos demais; mais importantes do que qualquer espada ou do que os galos nas cabeças de um bando de valentões mimados que receberam exatamente o que mereciam.
- Por Deus, você está me desacatando?
- Se eu lhe desagradei de alguma forma, meu amo, irei renunciar imediatamente.
O marechal soltou um arquejo sonoro de irritação.
- Pronto! Lá vai você novamente. Não se pode dizer “bu!” sem que você faça uma tempestade em copo d’água. A idade está lhe deixando cada vez mais suscetível, Vipond.
- Perdão, marechal – disse Vipond com um ar de falso arrependimento. – Meus ferimentos talvez tenham me deixado mais genioso do que eu gostaria.
- Exatamente! Meu caro Vipond, você precisa se cuidar. Foi uma provação terrível, terrível. Eu já tomei demais do seu tempo, um egoísmo imperdoável da minha parte. Você precisa descansar.
Vipond se levantou, aceitando com um gesto da cabeça a preocupação do marechal, e então se pôs a sair. Porém, quando ele estava chegando à porta, Materazzi falou em um tom agradável:
- Então, providencie o conserto da espada às suas custas e cuide desse outro assunto.
17
Dois dias depois, IdrisPukke e Cale avançavam lentamente pela avenida Sete, uma das estradas de pedra largas que partiam de Memphis e que, dia e noite, estavam repletas de mercadorias que entravam e saíam daquele que era o maior de todos os centros comerciais. Após várias horas de silêncio, Cale fez uma pergunta.
- Você foi mandado para a cadeia para me espionar?
- Fui – respondeu IdrisPukke.
- Não, não foi.
- Por que pergunta, então?
- Queria ver se podia confiar em você.
- Bem, não pode.
- O chanceler Vipond confia?
- Nem um pouco.
- Então por que ele me obrigou a ficar com você como condição para manter meus amigos em segurança?
- Você deveria ter perguntado para ele.
- Eu perguntei.
- E o que ele disse?
- “A curiosidade matou o gato.”
- Então, pronto.
Cale ficou calado por um instante.
- O que ele fez para garantir que você ficaria comigo?
- Ele me pagou.
Isso não era exatamente mentira, porém, o que ligava IdrisPukke a Cale era muito mais do que dinheiro. Para que o dinheiro tenha alguma utilidade, você ter onde gastá-lo. E não havia nenhum lugar o qual valesse a pena ir que também não tivesse uma sentença de morte à sua espera. Vipond havia simplesmente colocado a realidade do futuro de IdrisPukke na mesa – o que quer dizer que não havia futuro algum para ele – e então lhe oferecido uma saída possível. Primeiro, um lugar relativamente confortável para se esconder por alguns meses e então, se ele cumprisse suas ordens, a possibilidade de uma série de perdões temporários que poderia ao menos livrá-lo de ser executado por qualquer governo oficial sob o comando dos Materazzi.
- E quanto às pessoas que querem me matar extraoficialmente? – perguntou ele a Vipond.
- Isso é problema seu. Mas se você se aproximar do menino e descobrir algo de útil, além de mantê-lo longe de problemas, talvez eu possa ajudá-lo.
- Não é grande coisa, meu amo.
- Para um homem na sua posição, que, na verdade, não é posição nenhuma, eu acho uma oferta muito generosa – respondeu Vipond, despachando-o com um gesto. – Se você tiver outra melhor, sugiro que a aceite.
- O que – disse Cale após outra hora de silêncio – nós vamos fazer nesse tal lugar para onde estamos indo?
- Ficar longe de problemas. Esclarecer algumas coisas para
você.
- Tipo?
- Espere até a gente chegar lá.
- Você sabia – perguntou Cale – que nós estamos sendo
seguidos?
- O brutamontes feioso de paletó verde?
- Sim – falou um Cale desapontado.
- Está bem na cara, você não acha?
Cale se virou para olhar, como se a obviedade do homem que os seguia também fosse clara para ele. IdrisPukke riu.
- Quem quer que esteja por trás disso espera que a gente pegue o sr. Simpatia lá trás e largue em uma vala qualquer. O verdadeiro perseguidor está a uns duzentos metros de distância.
- Como ele é?
- Essa é sua primeira lição. Veja se consegue identificá-lo antes de eu lidar com ele.
- Você quer dizer matá-lo?
IdrisPukke encarou Cale.
- Que matadorzinho sanguinário você é. Vipond deixou claro que deveríamos nos tornar invisíveis, e não acho que deixar um rastro de cadáveres se enquadre nisso.
- Então o que você vai fazer?
- Observe e aprenda, filhote.
Ao longo das estradas que conduziam a Memphis havia pequenas guaritas separadas por 8 quilômetros de distância umas das outras e ocupadas por no máximo meia dúzia de soldados. Foi numa delas que IdrisPukke, observado por um Cale que se divertia, entrou numa discussão com um cabo.
- Pelo amor de Deus, homem, esta é uma autorização assinada pelo próprio chanceler Vipond.
O cabo falou em tom de desculpa, mas com firmeza:
- Sinto muito, senhor. Tem cara de oficial, mas eu nunca vi uma dessas antes. É um comandante em chefe quem geralmente assina esse tipo de autorização. Sei como elas são e conheço a assinatura. Tente ver o meu lado. Vou mandar chamarem o tenente Webster.
- Quanto isso vai demorar? – disse um IdrisPukke exasperado.
- Só amanhã, provavelmente.
IdrisPukke resmungou, frustrado, e então foi até a janela. Cerca de um minuto depois, ele fez sinal para Cale se aproximar.
- Espere lá fora – sussurrou ele.
- Achei que era para eu observar e aprender.
- Não discuta comigo, cacete, só faça o que mandei. Vá para os fundos e não deixe ninguém ver você.
Sorrindo, Cale obedeceu. Nos fundos da guarita, havia quatro soldados sentados contra uma parede, fumando e com cara de entediados. Cinco minutos depois, IdrisPukke apareceu e fez com a cabeça para Cale se juntar a ele, enquanto conduzia os cavalos por um beco afastado da rua principal.
- E então – perguntou Cale - , o que está rolando?
- Ele vai prendê-los e mantê-los na cadeia por uns dois dias.
- O que o fez mudar de idéia?
- O que você acha?
- Não sei, é por isso que estou perguntando.
- Eu o subornei. Quinze dólares para ele e cinco para cada um de seus homens.
Cale ficou genuinamente chocado com isso. Por mais odiosos, cruéis e bitolados que fossem os Redentores, a hipótese de negligenciarem seus deveres por dinheiro era inconcebível.
- Nós tínhamos uma autorização – disse ele, indignado. – Por que precisaríamos suborná-los?
- Não tem necessidade de ficar puto dentro das calças – falou IdrisPukke com irritação. – Considere isso parte da sua educação, um novo fato para assimilar no sentido de saber como as pessoas são de verdade. Não fique pensando que – prosseguiu ele, de cara amarrada -, só porque os Redentores o tratavam como um cachorro, você já sabe tudo sobre como a raça humana não passa de um bando de desgraçados podres e corruptos.
E, com essa observação mal-humorada, ele seguiu adiante e ficou o resto do dia calado.
Talvez seja fácil dizer por que IdrisPukke ficou tão incomodado, embora estivesse acostumado a coisas muito piores do que ser extorquido por um milico cínico como o cabo. Quantos de nós precisamos necessariamente de um grande desastre para ter um chilique? Perder uma chave, pisar em uma pedra pontuda ou ser contestado em um assunto sem importância já basta para deixar até mesmo o homem mais razoável furioso, se ele estiver no clima. A questão era toda essa e, por mais que Cale tivesse seus limites para compreender a natureza humana no que dizia respeito a qualquer um que não fosse um fanático cruel, ele teve o bomsenso de deixar IdrisPukke quieto no seu canto até ele se acalmar.
Não obstante, se IdrisPukke tivesse percebido quem estava por trás do fato de eles estarem sendo seguidos, teria todo o direito de se sentir furioso – e amedrontado também, pois saberia que Kitty das Lebres não teria permitido que seus espiões fossem descobertos com tanta facilidade. Os dois homens que IdrisPukke havia identificado estariam em uma cela dentro de uma hora, porém, eles eram apenas iscas, enviados justamente para serem apanhados. Enquanto Cale e IdrisPukke voltavam para a estrada principal e, um dia depois, saíam dela para seguir em direção à Floresta Branca, outros dois pares de olhos os seguiam e, desta vez, eram muito mais astuciosos.
À medida que eles subiam pela montanha, o sol brilhava e o ar lhes parecia tão cristalino quanto água potável. IdrisPukke havia esquecido a rabugice do dia anterior e retomado seus modos mais expansivos, contando para Cale sobre a sua vida, suas aventuras e suas opiniões – que ele tinha de sobra. Você talvez esteja imaginando que Cale, capaz como ele era de uma ira implacável e uma violência terrível, tenha ficado irritado com o fato de seu companheiro se colocar na posição de mentor, reservando-lhe o papel de discípulo. No entanto, você deve levar em conta
que Cale ainda era jovem, apesar de todas as suas qualidades duras, e a extensão e a natureza da experiência de IdrisPukke, seus altos e baixos, seus amores e seus adversários, teriam fascinado até mesmo o mais saturado dos ouvintes. Um dos maiores talentos de IdrisPukke era a maneira como ele fazia graça de si mesmo e assumia a responsabilidade pela maioria de suas derrocadas. Um adulto que ria de si mesmo era algo mais do que inusitado para Cale: era quase incompreensível. Rir para os Redentores era uma coisa pecaminosa – uma estultice inspirada pelo próprio diabo.
Não que IdrisPukke tivesse, de forma alguma, uma visão alegre do mundo, no entanto, seu pessimismo era expressado através de uma alegria sagaz e uma disposição a se incluir no seu próprio cinismo espirituoso; disposição esta que Cale achava estranhamente reconfortante, além de divertida. Cale não era propenso a dar ouvidos a qualquer um que tivesse uma opinião favorável sobre os seres humanos – esse tipo de temperamento jamais combinaria com sua experiência diária. Contudo, ele descobriu que ouvir alguém que ria da crueldade e da estupidez humana tornava sua raiva mais fácil de suportar, chegando até apaziguá-la.
- São poucas as maneiras – proclamaria IdrisPukke do nada – de deixar as pessoas de bom humor que não envolvam contar para elas alguma desgraça terrível que tenha acometido você recentemente.
Ou então:
- A vida é uma viagem para gente como eu e você: uma viagem na qual nós nunca sabemos para onde estamos indo. Você vê um novo destino no caminho, depois outro melhor e assim por diante, até o local a que pretendia chegar inicialmente cair no esquecimento. Somos como alquimistas que começam buscando por ouro e, durante o processo, descobrem novos remédios, uma maneira lógica de ordenar as coisas e fogos de artifício: a única coisa que nunca descobrem é ouro?
Cale riu.
- Por que eu deveria escutar uma só palavra que você diz? Quando te vi pela primeira vez, você caiu diante dos meus pés e, nas outras duas vezes, estava preso.
Uma expressão de ligeiro desdém atravessou o rosto de IdrisPukke, como se aquela fosse uma objeção conhecida que mal merecia uma resposta.
- Então aprenda com meus erros, Mestre Acabei de Sair das Fraldas. E aprenda também com o fato de que, embora eu tenha andado pelos corredores do poder durante quarenta anos, ainda estou vivo. O que é bem mais do que se pode falar sobre a maioria das pessoas que andaram por eles comigo. E eu me atrevo a dizer que, se você não demonstrar um bom-senso muito maior do que demonstrou até agora, vai acabar indo pelo mesmo caminho.
- Tenho me saído bem até aqui.
- Ah, é?
- É.
- Você tem dado sorte, filhote, e muita. E pouco me importa o quanto você é bom com os punhos. O fato de você ter chegado até aqui sem acabar pendurado na ponta de uma corda é tanto uma questão de sorte quanto de conseqüência. – Ele fez uma pausa e suspirou. - Você confia em Vipond?
- Eu não confio em ninguém.
- Qualquer idiota pode dizer que não confia em ninguém. O problema é que às vezes é preciso. As pessoas podem ser nobres, abnegadas e todas aquelas outras qualidades admiráveis. Elas existem, mas a questão é que essas virtudes nobres tendem a ser inconstantes. Ninguém espera que um homem bem-humorado ou uma mulher bondosa sejam assim o tempo inteiro todos os dias. Mas, mesmo assim, ficam chocados quando uma pessoa é confiável durante um mês ou um ano e deixa de ser por uma hora ou um dia.
- Se você não pode contar com uma pessoa o tempo todo, então não confia nela.
- E você é confiável.
- Não. Eu descobri, IdrisPukke, que sou capaz de fazer coisas nobres. Sou capaz de salvar os inocentes – ele sorriu, zombando de si mesmo -, salvá-los das garras dos perversos e injustos. Porém, não combina comigo. Eu estava em um dia bom, ou em um dia ruim, quando salvei Riba. Mas vai demorar a acontecer de novo.
- Você tem certeza disso?
- Não, mas vou me esforçar ao máximo. – Eles cavalgaram em silêncio por mais meia hora. – Você confia em Vipond? – disse Cale, por fim.
- Depende. Em relação a quê?
Cale e mexeu desconfortavelmente em sua sela.
- Ele prometeu que, se eu ficasse com você e me comportasse, Henri Embromador e Kleist ficariam bem. Que os protegeria. Ele vai fazer isso?
- Então... você está preocupado com seus amigos? Não é tão sem coração quanto gosta de fingir.
- Você acha? Tente depender do meu coração... e espere para ver onde vai parar.
IdrisPukke riu.
- O que você não deve esquecer a respeito de Vipond é que ele é um grande homem, e que grandes homens têm grandes responsabilidade. Quebrar suas promessas é uma delas.
- Você só está querendo soar esperto.
- Nada disso. Vipond tem peixes muito mais graúdos para fritar, e você e seus amigos não são peixes nem um pouco grandes. E se uma centena de vidas ou a segurança de Memphis e de todos os seus milhares de almas dependessem de ele quebrar sua palavra para três peixinhos como você e seus amigos? O que faria no lugar dele? Se você acha que é tão casca-grossa assim, diga-me.
- Kleist não é meu amigo.
- O que acha que Vipond quer de você?
- Ele quer que eu aprenda a confiar em você para lhe contar toda a verdade sobre o que aconteceu com os Redentores. Está achando que eles podem ser uma ameaça.
- E ele tem razão?
Cale o encarou.
- Os Redentores são uma praga que infesta a face da Terra... – Ele deu a impressão de querer prosseguir, porém, esforçou-se para se conter.
- Você ia dizer mais alguma coisa.
- É, eu ia.
- O quê?
- Só eu sei, cabe a você descobrir.
- Como quiser. Quanto a confiar em Vipond... você pode, sim, até certo ponto. Ele fará tudo ao seu alcance para proteger seu amigo e o outro que não é seu amigo, a não ser que passe a ser necessário não fazê-lo. Enquanto eles não se tornarem importante do jeito errado, estão em total segurança.
Enquanto cavalgavam em silêncio, os dois continuaram sem perceber que os olhos e ouvidos de Kitty das Lebres acompanhavam seus passos e ouviam sua conversa.
Às quatro horas daquela tarde, IdrisPukke desmontou de seu cavalo e, gesticulando para Cale fazer o mesmo, abandonou a trilha, adentrando o que parecia uma mata virgem. O caminho teria sido árduo mesmo sem os cavalos, e eles seguiram por quase duas horas inteiras até as árvores e arbustos ficarem menos cerrados, dando lugar em seguida a outra trilha claramente pouco utilizada.
- Me parece que você já conhecia o caminho – disse Cale para as costas de IdrisPukke.
- Estou vendo que não dá pra esconder nada de você, sr. Sabe
Tudo.
- Como, então?
- Eu costumava vir bastante aqui para Treetops com meu irmão, quando era garoto.
- E quem é ele?
- O chanceler Leopold Vipond.
18
Cale poderia ter achado que os dois meses seguintes passados no Chalé de Treetops foram os mais felizes da sua vida, se tivesse outra experiência feliz com a qual compará–los. Porém, levando–se em conta que dois meses no Sétimo Círculo do Inferno teriam sido um progresso diante da vida que levava no Santuário, não havia nada com que comparar sua felicidade. Ele estava simplesmente feliz. Dormia 12 horas por dia e muitas vezes até mais, bebia cerveja e, ao cair da noite, fumava junto com IdrisPukke, que se esforçou ao máximo para garantir que, uma vez superada a aversão inicial, fumar seria ao mesmo tempo um grande prazer e um dos poucos consolos verdadeiramente confiáveis que a vida tinha para dar.
À tardinha, os dois se sentavam na espaçosa varanda de madeira da velha cabana de caça, escutando o zumbido dos insetos e observando as andorinhas e os morcegos mergulhando e fazendo acrobacias no ar. Geralmente, ficavam sentados horas a fio em um silêncio pontuado, de tempos em tempos, por alguma das anedotas de IdrisPukke sobre a vida e seus prazeres e suas ilusões.
– A solidão é uma coisa maravilhosa, Cale, e por dois motivos. Em primeiro lugar, ela permite que um homem esteja consigo mesmo e, em segundo, evita que ele esteja na companhia dos outros. – Cale concordou com a cabeça com uma sinceridade possível apenas para alguém que havia passado cada hora desperta ou adormecida da sua vida na companhia de centenas de outras pessoas, sempre vigiado e espionado.
– Ser sociável – prosseguiu IdrisPukke – é uma coisa arriscada. Fatal até, pois significa estar em contato com pessoas. E a maioria delas é idiota, perversa e ignorante, e está com você apenas porque não consegue agüentar a própria companhia. Normalmente, as pessoas se entediam sozinhas e recebem você não como um amigo de verdade, mas como uma distração, como se fosse um cachorro dançante ou um ator de meia–tigela com um estoque de histórias divertidas. – IdrisPukke tinha uma antipatia especial por atores e era fácil ouvi–lo discorrer sobre seus defeitos, uma
repulsa que não fazia sentido para Cale, pois ele jamais tinha visto uma peça: a idéia de fingir se outra pessoa por dinheiro lhe era incompreensível.
– Obviamente, você é jovem e ainda não sentiu o impulso mais forte de todos: o amor de uma mulher. Não me entenda mal. Todo homem e toda mulher deveriam saber o que significa amar e ser amado. O corpo feminino é a melhor imagem da perfeição que conheço. Porém, para ser totalmente sincero com você, Cale, embora duvide que vá fazer alguma diferença, desejar o amor, como disse certa vez um homem muito espirituoso, é desejar estar acorrentado a um lunático.
Em seguida, ele abria uma cerveja, enchia um quarto da caneca de Cale – nunca mais do que isso e sempre com moderação – e se recusava a lhe dar mais tabaco, observando que, quando o assunto era fumar, o exagero faz mal e pode prejudicar o fôlego de um jovem.
E, depois, às vezes já bem de madrugada, Cale ansiava pelo que havia se tornado quase o seu maior prazer: uma cama quente e um colchão macio para aproveitar total e completamente sozinho, sem nenhum resmungo, grito, ronco ou o cheiro dos peidos de centenas de meninos – apenas um silêncio e uma paz maravilhosos. Durante aqueles dias, para Cale era uma alegria estar vivo.
Ele começou a vagar sem rumo pela mata por horas a fio, desaparecendo logo ao acordar e retornando à cabana de caça ao cair da noite. As colinas, os eventuais prados, os rios, os cervos desconfiados, os pombos que arrulhavam nas árvores durantes as tardes de calor, a alegria maravilhosa de simplesmente passear sozinho, tudo isso lhe causava um prazer ainda mais intenso do que a cerveja e o tabaco. A única coisa que estragava sua felicidade era o pensamento de Arbell Pescoço de Cisne, cujo rosto lhe vinha sem ser convidado tarde da noite, ou então à tarde, deitado às margens do rio, onde os únicos sons eram o barulho de um ou outro peixe saltando na água, o cantar dos pássaros e o vento fraco contra as árvores. As sensações que Cale tinha quando ela lhe vinha à mente eram estranhas e inoportunas e chocavam-se de forma desagradável contra a paz extraordinária que sentia. Ela o deixava nervoso de um jeito que ele nunca mais queria ficar novamente. Queria apenas se sentir assim: livre, preguiçoso, sem precisar dar satisfações a ninguém em meio ao calor de verão e à beleza verde daquela grande floresta.
A outra grande alegria que ele descobriu foi a de comer. Comer para viver, saciar uma fome intensa simplesmente enchendo a barriga, era uma coisa. No entanto, para um menino cuja dieta consistira, durante boa
parte da vida, em pé de defunto, a possibilidade de comer boa comida significava que algo para o qual as pessoas geralmente não davam importância poderia ser fonte de encanto.
IdrisPukke era um grande amante da culinária e, tendo vivido em algum momento ou outro em praticamente qualquer parte do mundo civilizado que se possa imaginar, se considerava, como na maioria dos assuntos, um especialista. Ele adorava preparar refeições quase tanto quanto adorava comê-las, porém, infelizmente, seu desejo de ensinar seu receptivo pupilo sobre o mundo teve que vencer alguns obstáculos.
Sua primeira tentativa de apresentar Cale à grande arte de comer terminou mal. Certo dia, quando Cale voltou ao chalé após uma ausência de dez horas e tão faminto que seria capaz de devorar um padre, ele se deparou com o Banquete do Imperador – a versão improvisada de IdrisPukke da refeição mais espetacular que ele já comera na vida, uma especialidade da Casa de Imur Lantana, na cidade de Apsny. Vários ingredientes tinham sido substituídos; não era possível encontrar pênis de porco nas montanhas, uma vez que os nativos os consideravam animais sujos; açafrão tampouco, pois era caro demais e, de qualquer forma, ninguém nunca tinha ouvido falar de coisa parecida. Além disso, faltava uma iguaria que muitos consideravam o ponto alto do banquete: IdrisPukke, embora não fosse nada sentimental, não teve coragem de afogar dez filhotes de cotovia em conhaque para depois assá-los em forno quente por menos de trinta segundos. Quando chegou, bronzeado de sol e esfomeado, Cale soltou uma gargalhada ao se deparar com as iguarias que um orgulhoso IdrisPukke colocara à sua frente.
- Comece por aqui – disse o cozinheiro sorridente, e Cale quase literalmente se jogou em cima do prato de camarões de água doce moídos, fritos em pão branco com um molho de framboesa selvagem azeda. Depois de cinco pratos desses, IdrisPukke indicou com a cabeça o pato grelhado com molho de ameixa e, então, com um aviso gentil para que ele fosse mais devagar, as asas de galinhas fritas em farelo de pão e as batatas fritas em palito.
Obviamente, em pouco tempo Cale estava passando terrivelmente mal. IdrisPukke tinha visto bastante gente vomitar na vida, e feito o mesmo com freqüência. Testemunhara o desagradável hábito kvenlandês de se interromper banquetes de 39 pratos para visitas ao bilematório, ou salão de vômito, necessárias mais ou menos a cada dez pratos se você quisesse comer até o final, evitando, assim, o insulto mortal
aos anfitriões que não conseguir chegar ao 39º prato implicaria. Cale golfava em proporções épicas à medida que se estômago sobrecarregado expelia tudo que ele comera nos vinte minutos anteriores e, conforme parecia a IdrisPukke, praticamente tudo o mais que comera na vida.
Finalmente, o menino exausto terminou e foi para a cama. Na manhã seguinte, Cale apareceu com uma cor branco-esverdeada na cara que IdrisPukke só havia visto antes em um cadáver de três dias. Cale se sentou à mesa e tomou, com uma cautela considerável, uma xícara de chá fraco sem leite. Com uma voz abatida, ele começou a explicar para IdrisPukke por que tinha passado tão mal.
- Bem – falou IdrisPukke depois que Cale acabou de lhe contar sobre como os Redentores lidavam com a comida - , se um dia eu me sentir disposto a pensar mal de você, tentarei desculpá-lo ao me lembrar que não deveria esperar muito de uma criança criada à base de pé de defunto. – Então, após um breve silêncio: - Espero que não se importe que eu lhe dê um conselho.
- Não – disse Cale, abatido demais para se sentir ofendido.
- Não devemos achar que a capacidade de aceitação das pessoas é ilimitada. Talvez seja melhor, se um dia o assunto surgir quando estivermos em boa companhia, não mencionar os ratos.
19
Henri Embromador e Kleist tinham visto Cale apenas por alguns minutos antes da sua partida apressada, de modo que mal tiveram tempo para registrar a reaparição extremamente suspeita de IdrisPukke, quanto mais para receber uma explicação aceitável do que havia acontecido com Cale depois que ele fora arrastado do jardim de verão. Kleist, para sua considerável irritação, nem mesmo teve tempo para dizer que a Cale que sua falta de disciplina e egoísmo generalizado tinham deixado os dois encalhados em um rio de bosta. Porém, no fim das contas, o medo cabível que Kleist sentia de Cale ter atraído para eles o interesse hostil de todos que os cercavam acabou não se concretizando por completo. Havia hostilidade, sem dúvida, contudo, a surra cruel que Cale aplicara na nata do Mond deixara os que ansiavam por vingança extremamente ressabiados em relação a Henri Embromador e Kleist, pois havia o risco de eles serem igualmente habilidosos. Mais do que ferimentos graves ou a morte, o que o Mond temia era a humilhação de levar uma coça de pessoas tão claramente abaixo deles na sociedade.
Vipond ordenara que os dois fossem transferidos para as cozinhas, onde não havia chance de encontrarem ninguém importante. Os xingamentos demorados e constantes que Kleist dedicava a Cale por tê–lo deixado lavando pratos dez horas por dia são fáceis de imaginar. No entanto, havia uma vantagem inesperada: os servos que guardavam algum tipo de rancor contra o Mond por conta da sua empáfia e arrogância – e eles não eram poucos – os viam com certa admiração. Pelo menos o suficiente para, depois de cerca de um mês, deixar que eles ajudassem em tarefas mais interessantes do que lavar pratos, Kleist se ofereceu a ajudar na seção das carnes, impressionando a todos com suas habilidades de açougueiro: “Um talento nato.” Ele teve o bom–senso de não especificar com quais animais pequenos havia aprendido seu oficio.
– Quanto a mim – disse Kleist a Henri Embromador enquanto desmembrava alegremente uma enorme vaca Holstein – , eu gosto de trabalhar em grande escala.
Henri Embromador teve que se contentar em alimentar os animais e levar uma eventual mensagem à entrada de serviço dos palazzos das redondezas. Isso lhe deu a chance de ver Riba, que, àquela altura, praticamente não lhe saía da cabeça. Quando a via, nunca era por muito tempo, porém, seu rosto se iluminava e ela disparava a falar com empolgação, tocando seu braço e sorrindo para ele com seus dentinhos brancos lindos. No entanto, ele logo começou a notar que quase ninguém deixava de receber o mesmo sorriso, a mesma demonstração de prazer. Era de sua natureza ser aberta e sedutora em relação a todos, que, por sua vez, se mostravam receptivos, muitas vezes se surpreendendo ao ver o quanto passavam a valorizar aquele sorriso encantador. Henri Embromador, no entanto, o queria apenas para si.
Ele vinha nutrindo, há algum tempo, um segredo sombrio a respeito de Riba, desde que eles se viram sozinhos nas Terras Crestadas por quase cinco dias. A princípio, ele a tratou com uma deferência estupefata, como alguém que estivesse fazendo uma peregrinação com um anjo. Todos os homens já foram hipnotizados pela beleza de uma mulher, porém, imagine o fascínio de uma pessoa que crescera sem jamais ver ou imaginar criatura parecida. Após alguns dias na sua companhia, ele começou a se acalmar um pouco, nem que fosse para dar vazão a sentimentos mais mundanos do que reverência e adoração. Ele tomou todo o cuidado para não tratar aquela presença divina de maneira eu pudesse ofender sua própria admiração (embora tivesse uma incerteza profunda quanto ao que ofendê–la poderia envolver). Coisas para as quais não tinha nome se agitavam dentro dele. Depois de alguns dias, eles chegaram a um pequeno outeiro que se estendia ao longo da lagoa.
Ele se deitou de costas e, aos poucos, começou sua primeira batalha verdadeiramente árdua contra o diabo. As oportunidades para grandes tentações eram escassas no Santuário. O Redentor Hauer, seu conselheiro espiritual por quase dez anos, teria se afligido ao descobrir como a resistência de Henri Embromador era fraca, como tinha sido ineficaz a ladainha sem fim sobre a certeza da danação para os que cometiam crimes contra o Espírito Santo. (Por motivos jamais explicados, era o Espírito Santo que ficava especialmente traumatizado por desejos pecaminosos dessa espécie.) A força de vontade de Henri foi subitamente dominada pelo diabo e ele se virou de barriga para baixo, rastejando devagar, como o réptil servo de Belzebu que havia se tornado, até estar
logo abaixo da beirada do outeiro. Algum dia o ato de cair em tentação já foi tão regiamente recompensado? Riba estava de pé, com água até o meio das coxas, banhando–se com indolência. Seus seios eram enormes, embora Henri não tivesse nada com que compará–los, e as aréolas que cobriam suas pontas eram de um rosado extraordinário, diferente de qualquer coisa que ele tivesse visto na vida. Eles se mexiam junto com ela, mas tremulando com uma graça que o fez se engasgar. No meio das suas pernas... mas não devemos ir tão longe – embora Henri Embromador não tenha respeitado essa proibição por um instante que fosse. O diabo tomara conta dele por completo. Sua respiração parou, fulminada por aquele que era o mais secreto dos lugares. Henri tinha várias imagens do inferno marcadas a ferro quente na sua alma, porém, até aquele momento divino, nenhuma só imagem do paraíso. Aquela era uma visão da graça envolvida em delicadas dobras de pele, que jamais seria superada e vibraria em sua alma até o dia de sua morte. Foi então que Henri Embromador, transfigurado por um terror sagrado, deslizou lentamente de volta, afastando–se da beirada do outeiro.
Riba, o alvo de toda aquela transgressão, continuou se banhando por mais alguns minutos, alheia à epífania que se dava logo adiante, do outro lado do outeiro. Se Henri tivesse simplesmente ficado à beira da lagoa observando–a, ela não teria achado aquilo inadequado. Riba adorava dar prazer aos homens. Afinal de contas, era para isso que havia sido criada. Quanto ao pobre Henri Embromador, ele havia sido fulminado como um diapasão e continuaria vibrando por meses a fio. A natureza lhe concedera um desejo intenso, porém, a vida o privara de qualquer experiência ou compreensão que lhe possibilitasse lidar com ele.
Riba tinha dado muito mais sorte do que os meninos no quesito emprego. Ela começara como criada da criada particular de mademoiselle Jane Weld, um cargo que, embora fosse o mais inferior no mundo impiedoso da criadagem das damas da corte, só podia ser obtido após no mínimo 15 anos de trabalho no ramo. A sobrinha do chanceler Vipond aceitara Riba sentindo–se especialmente indignada por ter, a olhos vistos, uma sub–sub–subcriada de tão baixa categoria. No entanto, sua indignação começou a diminuir (o que fez a já violenta indignação das demais criadas aumentar) quando ficou claro que Riba tinha, de fato, um talento para as habilidades pelas quais as criadas são muito valorizadas: ela era uma cabeleireira muito delicada e habilidosa, sabia espremer uma espinha ou um cravo causando o mínimo de estrago na pele quanto humanamente possível, disfarçando em seguida a vermelhidão a ponto de deixá–la invisível. Peles foram revigoradas sob o tratamento dos cremes e loções caseiros de Riba, que era uma feiticeira no que dizia respeito à confecção
deles; unhas horrorosas ficaram elegantes; cílios engrossaram; lábios se avermelharam; pernas ficaram macias (esfoliadas da forma mais indolor possível, o que quer dizer a um passo da agonia). Em suma, Riba foi um achado.
Isso deixava mademoiselle Jane com o problema do que fazer com as outras três criadas particulares, que haviam se tornado redundantes, sendo que a mais velha a acompanhava desde a infância. Mademoiselle Jane, embora fosse uma beldade fria em muitos aspectos, possuía um lado sensível, de modo que não conseguia ter coragem de dizer à velha Briony que ela não era mais necessária. Ela sabia que sua ex–babá ficaria profundamente angustiada e, pensando melhor, também se preocupava bastante com as várias confidências que fizera a Briony, do tipo que uma pessoa ressentida talvez estivesse disposta a revelar, caso recebesse motivos suficientes. Portanto, mademoiselle Jane poupou Briony da experiência dolorosa de ser demitida após 12 anos de serviços fiéis ao mandar que suas malas fossem feitas enquanto ela estava na rua comprando uma bisnaga de creme facial à base de alecrim. Ao voltar, a infeliz criada encontrou apenas um quarto vazio e um empregado com um envelope nas mãos. O envelope continha vinte dólares e um bilhete agradecendo–a por seus serviços fiéis e informando–lhe que ela estava sendo enviada para ser a criada de um parente distante em uma província remota e que, em reconhecimento aos já mencionados serviços, ela seria acompanhada em sua viagem bastante longa pelo empregado que lhe entregara o envelope, que recebera instruções para ficar ao seu lado e protegê–la a todo momento. Mademoiselle Jane lhe desejava tudo de bom e expressava suas esperanças de que ela aproveitasse da melhor forma possível a sua boa sorte. Vinte minutos depois, uma Briony chocada estava montada em seu cavalo, rumando, juntamente com seu guarda–costas, em direção a uma nova vida, sem que ninguém jamais tivesse noticias suas novamente.
As demais criadas, para o caso de Brioney ser tão indiscreta quanto sua patroa, foram igualmente dispersadas, e mademoiselle Jane pôde contemplar uma vida em que espinhas, cravos, lábios finos e cabelos rebeldes eram coisas do passado.


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                                                    CONTINUA
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Durante vários meses, a jovem aristocrata esteve no paraíso. O talento de Riba para as artes do embelezamento extraía o máximo de sua beleza nada mais que moderadas. Houve inclusive um aumento no número de pretendentes, o que lhe possibilitou tratar esses candidatos a amantes – conforme exigido pelas tradições de galanteio dos Materazzi – com um desdém e um menosprezo ainda maiores. Conforme ela sabia muito bem, nenhuma droga, por mais rara e preciosa que fosse, igualava o prazer extraordinário de ser o centro dos sonhos e desejos de outra pessoa e poder, apenas com um sorriso ou um olhar, fazê–lo em pedacinhos. Embora a principio tenha se perdido no deleite de saber que estava partindo mais corações do que até mesmo a odiada Arbell Pescoço de Cisne, mademoiselle Jane começou a se dar conta, para o seu desconforto, de algo tão estranho e inusitado que, durante algumas semanas, ela teve certeza de que era imaginação sua.
Alguns dos jovens aristocratas que vinham ao seu encontro, e não mais que alguns, pareciam não ficar tão devastados pela sua constante rejeição quanto ela esperava. Eles resmungavam, se lamentavam e imploravam que ela reconsiderasse tanto quanto os demais, porém, ela era, conforme já vimos antes, uma garota sensível (ainda que apenas no que dizia respeito a si mesma) e começou a suspeitar que seus protestos não fossem totalmente sinceros. O que isso poderia significar? Talvez, pensou mademoiselle Jane, ela estivesse se acostumando a partir corações e seu prazer nisso estivesse diminuindo, como geralmente acontece com prazeres aos quais nos entregamos com freqüência. Mas não era isso, pois ela continuava a sentir exatamente o mesmo arrebatamento com aqueles que ficavam arrasados de verdade diante da sua frieza. Algo estava acontecendo.


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Mademoiselle Jane sempre reservava o fim da manhã para partir corações, concedendo aos seus pretendentes fatias generosas do seu tempo, podendo chegar a até trinta minutos, se eles fossem especialmente bons em lamentar sua beleza, frieza e crueldade. Ela decidiu reservar a manhã inteira aos que considerava suspeitos para ver se conseguia sanar suas dúvidas perturbadoras. Seus aposentos eram projetados de maneira que ela pudesse espiar com facilidade seus pretendentes à medida que chegavam e partiam, e ela passou a manhã fazendo exatamente isso.
Já pela metade da manhã, ela estava em um mau humor furioso, uma vez que todos os seus medos haviam se confirmado, embora de uma maneira que desafiava a imaginação. Era tudo culpa de Riba, aquela cadela ingrata.
Três vezes naquela manhã ela suportara os protestos insinceros de jovens que, agora estava claro, tinham vindo ao seu encontro apenas porque isso lhes dava a oportunidade de chegar mais cedo, se humilharem diante dela e então partirem o mais rápido possível para fazerem cara de cachorro pidão para aquela piranha gorda da Riba. Aquilo era inimaginavelmente humilhante. Eles não só estavam traindo a mulher mais bela e desejável de Memphis (o que era um exagero – ela era a 15ª da lista, no máximo –, mas devemos dar um desconto por conta da sua compreensível indignação), como também o estavam fazendo com uma criatura do tamanho de um bonde, que tremia como um manjar branco sempre que andava.
Esse insulto – e, para uma Materazzi, chamar uma mulher de gorda era um insulto mortal – também não era, de forma alguma, justo. Era evidente que...

 

 

                                                                                                    

 

                                       

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