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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MARCA DO ASSASSINO
A MARCA DO ASSASSINO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

WASHINGTON, D. C.

Susanna Dayton passou a tarde de domingo trabalhando do meio-dia às oito, sem interrupção, salvo para abrir a porta no meio da tarde para uma entrega. Tom Logan, o editor do Post, exigira mais, e ela o encontrara. O artigo era inatacável. Possuía documentos imobiliários e bancários reais que corroboravam as acusações mais graves. Tinha fontes humanas duplas e triplas que corroboravam as restantes. Nenhum dos mencionados no artigo poderia pôr em causa o que era dito. Os fatos falavam por si, e Susanna estava na posse dos fatos.

O dia foi gasto em escrever. Trabalhou em casa, pois não queria distrações. O artigo estava repleto de informações: números, nomes, datas, locais, pessoas. O desafio de Susanna era transformá-lo numa história interessante. Começou com uma breve descrição da personagem central, James Beckwith, um jovem procurador, um talento promissor sem fortuna pessoal, que poderia auferir no setor privado um rendimento bastante superior ao da política. Surge então Mitchell Elliott, um empresário da defesa e benfeitor republicano extremamente abastado. Continue na política, sugeriu Elliott ao jovem Beckwith, e deixe tudo comigo. Ao longo dos anos, Elliott enriqueceu os Beckwith com uma série de transações imobiliárias e financeiras. E o homem que concebeu muitos dos esquemas foi o principal advogado de Elliott, e lobista de Washington, Samuel Braxton.

O resto derivava dessa premissa. Pelas oito horas, Susanna escrevera um artigo de quatro mil palavras. Iria mostrá-lo a tom Logan na manhã seguinte. Devido à natureza bastante séria das acusações, Logan teria de o submeter ao crivo do editor geral e do editor chefe do jornal. Depois os advogados iriam analisar uma cópia. Sabia que os dias seguintes seriam longos e difíceis.

Ao artigo faltava um derradeiro elemento: comentários da Casa Branca, de Mitchell Elliott e de Samuel Braxton. Susanna procurou no Rolodex, encontrou o primeiro número de telefone e marcou-o.

- Alatron Defense Systems. - Era uma voz masculina, átona e vagamente militar. - Fala Susanna Dayton, do Washington Post. Gostaria de falar com Mitchell Elliott, por favor.

- Sinto muito, Sra.. Dayton, mas de momento o senhor Elliott não se encontra disponível.

- Importa-se de lhe transmitir um recado?

- com certeza.

- Tem uma caneta à mão? - E claro, Sra. Dayton.

- Gostaria que o senhor Elliott comentasse a seguinte informação contida num artigo que estou a preparar. - Falou durante cinco minutos, sem nunca ser interrompida pelo homem do outro lado da linha. Imaginou que o telefonema estivesse a ser gravado sem o seu consentimento. - Percebeu tudo?

- Sim, Sra. Dayton.

- E vai transmiti-lo ao senhor Elliott?

- É claro.

- Ótimo. Muito obrigada.

Susanna desligou e voltou a procurar no Kolodex. Ainda tinha o número pessoal de Paul Vandenberg, do tempo em que trabalhara na Casa Branca. Marcou o número.

Vandenberg atendeu pessoalmente.

- Senhor Vandenberg, fala Susanna Dayton. Sou jornalista do...

- Sei quem a Sra. é, Sra. Dayton. Não gosto de ser incomodado em casa. O que posso fazer por si?

Será que gostaria de comentar a seguinte informação que está incluída num artigo que redigi para o Post? - Mais uma vez, Susanna falou durante cinco minutos sem interrupção.

- Porque não me envia por fax uma cópia do artigo, para que eu possa analisar com mais cuidado as acusações? - sugeriu Vandenberg, quando Susanna terminou. - Receio não poder fazê-lo, senhor Vandenberg.

- Nesse caso, receio não ter mais nada a dizer-lhe, Sra. Dayton, exceto que produziu um artigo jornalístico desprezível, que não merece ser agraciado com um comentário.

Susanna anotou a citação no bloco de notas.

- Boa noite, Sra. Dayton.

A linha ficou em silêncio. Susanna procurou no Rolodex e encontrou o telefone de casa de Samuel Braxton. Estendia a mão para o telefone quando este tocou.

- Fala Sam Braxton.

- As notícias correm depressa.

- Pelo que sei, está prestes a publicar um artigo que calunia e difama Mitchell Elliott e minha pessoa. Quero que tenha noção das consequências de suas ações.

- Por que não me deixa ler as alegações antes de me ameaçar com um processo?

- Já me resumiram as acusações, Sra. Dayton. Pretende publicar esse relato no jornal de amanhã?

- Ainda não decidimos.

- Vou assumir essa resposta como um não.

Susanna cobriu o bocal e murmurou:

- Raios o partam, Sam Braxton, seu sacana arrogante.

- Por que não nos encontramos pela manhã e discutimos as alegações?

Susanna hesitou. Se discutisse assuntos legais com Braxton sem um advogado do Post a seu lado, Tom Logan acabaria com ela. Ainda assim, queria obter declarações de Braxton.

- É um favor que faz a si mesma, Sra. Dayton. Que mal há?

- Onde?

- Café da manhã no Four Seasons, Georgetown. Às oito.

- Lá nos encontraremos.

- Boa noite, Sra. Dayton.

Susanna tinha mais um telefonema a dar, para Elizabeth Osbourne. Estava prestes a publicar um artigo devastador sobre o homem mais poderoso da firma da amiga. Elizabeth merecia ser avisada. Teclou o número.

- Alô?

- Alô, Elizabeth? Escute, acho que precisamos falar.

 

Quando lhe telefonaram de Colorado Springs, Mark Calahan estava sentado na biblioteca da casa de Kalorama, a rodar os botões de um sofisticado equipamento de áudio. Salvo Susanna Dayton, Calahan sabia mais sobre as alegações presentes no artigo do que qualquer outra pessoa. Colocara sob escuta o telefone de Susanna na redação do Post, na 1th Street, o mesmo no telefone de casa. Instalara microfones na sala de estar e no quarto. Ouvia-a comer. Ouvia-a dormir. Ouvia-a falar com o cachorro. Ouviu-a na cama com um repórter televisivo, depois de um jantar no restaurante 1789, em Georgetown. Entrava na casa com regularidade e passava em revista os arquivos do computador. Um antigo criptoanalista da NSA, também a serviço de Mitchell Elliott, quebrara o código pueril de Susanna, o que permitira que Calahan lesse os arquivos à vontade. Só lhe faltava uma coisa: o produto final. - Entre na casa dela o mais depressa que puder. Temos que saber ao certo o que temos - ordenou Elliott.

- Sim, senhor.

- E quero que seja você a tratar disso. Não quero fracasso.

Calahan desligou o telefone e voltou a concentrar-se no equipamento. Aumentou os níveis de áudio dos transmissores no interior da casa de Susanna Dayton. Algo lhe chamou a atenção. Vestiu um blusão de couro preto e correu para a noite.

Dirigiu rapidamente através do noroeste de Washington, de Kalorama para Georgetown, e estacionou atrás da van de vigilância, em Volta Place. Bateu à porta traseira e o técnico deixou-o entrar. Dois minutos mais tarde, avistou Susanna Dayton a sair de Pomander Walk, vestida com um anoraque e calças de lycra, o cão a seu lado.

Calahan esperou até que ela desaparecesse de vista. Saiu da van, atravessou Volta Place e entrou em Pomander Walk. Possuía uma cópia da chave da porta. Segundos depois, tinha entrado.

Susanna atravessou a Wisconsin Avenue e correu para leste, ao longo da P Street. Era tarde e estava escuro, e combinara correr com Elizabeth pela manhã, mas estivera fechada dentro de casa o dia todo e precisava de fazer alguma coisa para aliviar o stresse. Doía-lhe o pescoço de olhar para a telado computador. Os olhos ardiam-lhe. Mas, depois de pouco mais de um quilômetro, sentiu a transpiração por baixo da gola alta. Foi dominada pela magia da corrida e a tensão do dia deixou-lhe lentamente o corpo.

Esforçou-se ainda mais, voando sobre o passeio de tijolo da P Street, passando à frente das grandes casas iluminadas. As patas de Carson ressoavam ritmadamente a seu lado. Passou por uma loja de conveniência, depois por um pequeno café. Jack e a nova esposa estavam sentados em bancos altos junto à montra, a falar bem próximos um do outro. Quando passou à frente deles, Susanna fitou-os como uma idiota. Jack levantou a cabeça e cruzaram o olhar. Depois a esposa viu-a.

Humilhada, Susanna desviou o olhar e correu mais depressa. Estúpida! Grande estúpida! Por que não olhaste para o outro lado? E que raio estavam eles a fazer em Georgetown? Fora por isso que Jack se mudara para Bethesda, para não andarem sempre a esbarrar um no outro. Deus do céu, porque não se limitara ela a olhar para o outro lado? Porque se deixara fitá-los como uma adolescente com uma paixoneta? E porque lhe batia o coração descompassado? A resposta era simples. Ainda amava Jack e nunca deixaria de o amar.

As lágrimas toldaram-lhe a visão. Correu ainda mais depressa. Carson esforçou-se por acompanhá-la. Os pés ressoavam furiosamente nos tijolos. Oh, meu Deus, por que estava ele ali sentado? Porra para ti, Jack. Porra! Não viu a raiz da árvore que se erguera um pouco do passeio. Não se apercebeu do pedaço de tijolo partido que se levantara. Sentiu uma pontada de dor no tornozelo e viu o chão saltar para ela nas trevas.

Susanna ficou inerte no chão, os olhos fechados, a arquejar. Sentia-se como se tivesse levado um coice na barriga. Tentou abrir os olhos, mas não conseguiu.

Por fim, sentiu alguém sacudir-lhe o ombro, chamando-a pelo nome. Abriu os olhos e viu Jack ajoelhado a seu lado.

- Susanna, você está bem? Consegue me ouvir?

Voltou a fechar os olhos.

- Que diabo está fazendo em Georgetown? - perguntou.

- Sharon e eu tivemos um jantar. Minha nossa Sra., não sabia que tinha de te avisar com antecedência.

- Não, fiquei sobressaltada, só isso.

- Lembra da Sharon, não?

Estava de pé, atrás de Jack, um espanto de vestido formal e casaco curto pretos, que exibiam um par de pernas fenomenal. Era criminosamente magra. O casaco estava desabotoado, revelando um par de seios grandes e redondos. Fazia o tipo de Jack: loura, olhos azuis, grandes seios, cabeça oca.

- Gostaria de poder dizer que é um prazer vê-la, Sharon, mas estaria mentindo - declarou.

- Vamos para seu lado. Damos carona a você?

- Não, obrigada. Preferia ficar morrendo na rua.

Jack segurou-lhe a mão. Carson soltou um rosnado profundo. :

- Não faz mal, Carson. Ele é mau, mas inofensivo.

Susanna levantou-se.

- Vem ali um táxi. Jack, faz alguma coisa de útil e chama. Jack dirigiu-se à estrada e acenou ao táxi, que parou junto ao passeio. Susanna coxeou até o carro e entrou, seguida pelo cão.

- Até à vista, Jack, Sharon.

Fechou a porta e o táxi arrancou. Recostou-se no banco traseiro, agarrada ao tornozelo, a cabeça apoiada no couro frio do assento. Chorou baixinho. Carson lambeu-lhe a mão. Porque teve ele de me ver assim, meu Deus? Logo agora, porquê? O táxi parou entre Volta Place e Pomander Walk. Susanna procurou no bolso da frente do anoraque e tirou uma nota de cinco dólares, que entregou ao taxista.

- Precisa de ajuda? - indagou o homem.

- Não, eu fico bem, obrigada.

Quando Mark Calahan subiu as escadas e entrou no quarto do primeiro andar que Susanna utilizava como gabinete, o computador estava ainda ligado. Sentou-se, retirou umo disquete do bolso do casaco e inseriu-a na drive do computador. Já conhecia bem o sistema, as diretorias onde ela guardava os apontamentos e as cópias. Encontrou o atalho para o artigo e clicou no ícone. O software de encriptação solicitou a palavra-chave. Calahan introduziu-a e o artigo surgiu na tela.

Calahan não se deu ao trabalho de ler. Leria mais tarde, quando dispusesse de mais tempo. Voltou a fechar o arquivo e digitou o comando para o copiar para o disquete. Mais uma vez, o software pediu a chave, que Calahan voltou a fornecer.

Uma vez dentro da casa, decidiu aproveitar a oportunidade para recolher mais informações. Calahan seguira várias das corridas de Susanna, que nunca duravam menos de trinta minutos. Tinha tempo de sobra. Três blocos de notas estavam ao lado do teclado. Abriu a capa do primeiro. As folhas estavam cheias com os gatafunhos esquerdinos de Susanna. Tirou uma microcâmara do bolso, acendeu a luz do abajur na mesa e começou a fotografar.

Estava na metade do segundo bloco quando ouviu a chave ser introduzida na fechadura da porta da rua. Praguejou em silêncio, apagou a luz e puxou da cintura uma pistola 9mm com silenciador.

As dores no tornozelo direito de Susanna eram lancinantes. Fechou a porta e sentou-se no divã da sala. Descalçou o sapato e a peúga e observou o ferimento. O tornozelo estava inchado e roxo. Coxeou até a cozinha, encheu um saco de plástico com gelo e tirou uma garrafa de cerveja do frigorífico. O analgésico estava no armário dos medicamentos da casa de banho. Coxeou escadas acima e ao longo do corredor, apoiada ao corrimão para se equilibrar. Entrou na casa de banho, pousou a cerveja no lavatório e abriu o armário. Encontrou o analgésico e engoliu dois comprimidos com cerveja. Fechou a porta do armário.

No espelho viu o reflexo de um homem atrás de si.

Susanna abriu a boca para gritar, mas uma mão enluvada tapou-lhe a boca, abafando qualquer som.

- Cala-te, cabra, se não mato-te - disse o homem por entre os dentes cerrados. Susanna debateu-se ainda mais. Apoiou o peso no tornozelo ferido, levantou o pé esquerdo e puxou-o atrás contra a canela do indivíduo, tal como aprendera nas aulas de autodefesa urbana. O homem gemeu de dor e afrouxou o aperto. Susanna girou para a direita e atacou com esse cotovelo, acertando na face do atacante.

O homem largou-a e Susanna fugiu.

Cambaleou até o corredor, e depois até o gabinete de trabalho. Ao levar a mão ao telefone, apercebeu-se de que o indivíduo estivera a mexer no computador e nos blocos de notas. Levantou o receptor.

O homem apareceu na entrada e apontou-lhe uma arma.

- Larga a merda do telefone.

- Quem é você?

- Larga o telefone e não te faço mal.

Carson subiu as escadas a correr, a ladrar furiosamente. Agachou-se no corredor, com os dentes arreganhados ao intruso. O homem ergueu calmamente a arma e disparou duas vezes contra o cão. Carson ganiu uma vez e ficou em silêncio.

- Cabrão! Cabrão de merda! Quem é você? Foi Elliott que o enviou? Diga, porra! Foi Mitchell Elliott que o enviou?

- Larga o telefone. Já!

Susanna baixou o olhar e marcou o nove e o um.

O primeiro tiro acertou-lhe na cabeça antes de conseguir marcar o último dígito. Caiu para trás, ainda agarrada ao receptor, ainda consciente. Olhou para cima. O homem agigantava-se sobre ela, a arma mais uma vez apontada para a cabeça.

- Na cara não - implorou. - Pelo amor de Deus, não me dê um tiro na cara. A expressão de fúria do homem suavizou-se por um instante. Baixou a arma alguns graus e o cano apontou ao peito. Susanna fechou os olhos. A arma emitiu dois sons breves. Susanna sentiu apenas um momento de dor lancinante e depois viu um clarão de luz brilhante. Em seguida, apenas escuridão.

Calahan baixou-se, retirou-lhe o receptor da mão e voltou a colocá-lo no descanso. A morte fora rápida, mas não completamente silenciosa. Tinha de agir depressa. A polícia iria dar a volta à casa. Se descobrissem vestígios de que a mulher estava a ser vigiada, talvez associassem a morte a Elliott. A limpeza demorou menos de cinco minutos. Ao sair da casa, Calahan empunhava os blocos de notas, os dois microfones do quarto, o microfone do telefone, a bolsa de Susanna e o computador portátil.

Saiu de Pomander Walk, atravessou Volta Place e entrou na van de vigilância. Mais tarde iria buscar o carro. Enquanto se afastava a alta velocidade, marcou o número privado de Mitchell Elliott no celular. - Receio que nos tenha surgido um pequeno problema, senhor Elliott. Daqui a cinco minutos ligo-lhe, a partir de uma linha segura.

Calahan desligou e atirou o telefone contra o para-brisa.

- Raios partam, porque chegou ela mais cedo? Cabra de merda!


BRÉLÉS, FRANÇA

Delaroche decidiu que precisava de uma mulher.

Chegou a essa conclusão depois de ver o conteúdo do disco uma segunda vez, agora no computador da casa de Brélés. Dois dos três alvos que restavam eram conhecidos mulherengos. Delaroche conhecia os seus hábitos, onde comiam e bebiam, sabia qual a zona onde caçavam. Mesmo assim, seria difícil aproximar-se desses alvos.

Uma mulher tornaria as coisas mais fáceis.

Delaroche precisava de uma mulher.

Tinha mais um dia para gastar em Brélés. Quando terminou com os arquivos, foi andar de bicicleta. O tempo estava bom: limpo, para Novembro, com vento fraco vindo do mar. Sabia que passaria bastante tempo sem bicicleta, por isso fez por se levar ao limite. Pedalou para o interior ao longo de alguns quilômetros, até as colinas arborizadas da Finistère, regressando então à beira-mar. Fez uma pausa nas ruínas em Pointe de Saint-Mathieu e depois dirigiu-se a norte, ao longo da costa, de volta a Brélés.

Dedicou o início da tarde à preparação. Limpou e oleou as suas duas melhores armas, uma Beretta de 9 mm e a Glock, e confirmou várias vezes os mecanismos de disparo e os silenciadores. Tinha uma terceira arma que mantinha presa ao tornozelo, num coldre de velcro, uma pequena Browning automática concebida para ser guardada numa bolsa de mulher. No caso de uma pistola não ser adequada, levaria uma faca, um punhal sólido com lâmina dupla de quinze centímetros e sistema automático.

De seguida reuniu os passaportes falsos, francês, italiano, holandês, espanhol, sueco, egípcio e americano, e organizou as finanças. Tinha os duzentos mil francos da galeria de Paris, e em Zurique levantaria o meio milhão de dólares. Seria mais do que suficiente para financiar a missão. Saiu ainda de dia e dirigiu-se à aldeia. Comprou pão na boulangerie e salsicha, queijo e patê a Mademoiselle Plauché. Didier e os amigos bebiam vinho no café. Acenou a Delaroche para que se lhes juntasse. Num gesto fora do comum, o convite foi aceite. Pediu mais vinho e comeu pão com azeitonas até o pôr do sol. Nessa noite, tomou uma refeição simples no terraço de pedra com vista para o mar. Concordara em matar outros três homens em quatro semanas. Apenas um louco aceitaria tal coisa. Teria sorte se sobrevivesse à missão. Mesmo que vivesse, talvez não pudesse regressar a Brélés.

Delaroche sempre matara sem paixão mas, pela primeira vez em muito tempo, não se recordava quando, sentia uma excitação que lhe percorria o corpo. Era semelhante à sensação que tivera com dezesseis anos, na noite em que matara pela primeira vez.

Levantou os pratos e lavou-os na cozinha. Depois passou a hora seguinte a vasculhar a casa e a queimar tudo o que poderia sugerir a sua existência. Delaroche apanhou o comboio da manhã de Brest para Paris, e o comboio do meio-dia de Paris para Zurique. Chegou uma hora depois de o banco ter fechado. Deixou o pequeno saco na estação e cambiou alguns francos franceses num bureau de change.

Percorreu uma rua cintilante, ladeada por lojas iluminadas e exclusivas. Numa loja da Gucci, utilizou dinheiro vivo para comprar uma pequena mala preta para documentos. Disse ao empregado de balcão que não precisava de saco e, momentos depois, estava de volta ao passeio, com a mala dependurada do braço direito. Quando chegou à entrada austera do banco, nevava ligeiramente. A única indicação da natureza do estabelecimento era a pequena placa dourada ao lado da porta. Delaroche pressionou o botão da campainha e aguardou enquanto o segurança o inspecionava através da lente da câmara de vídeo instalada por cima da porta.

A tranca da porta abriu e pôde entrar numa pequena antecâmara de segurança. Pegou num telefone preto e anunciou que tinha um encontro com Herr Becker. Este chegou momentos depois, imaculadamente vestido, um palmo mais baixo do que Delaroche, e com uma cabeça calva que brilhava na luz fluorescente.

Delaroche seguiu-o ao longo de um corredor silencioso e debilmente iluminado, forrado com carpete bege. Becker levou-o para outra sala de segurança e trancou a porta por onde entraram. Delaroche sentia-se claustrofóbico. Becker abriu um pequeno cofre de onde retirou o dinheiro. Delaroche fumou enquanto Becker contou as notas.

A transação demorou menos de dez minutos a ser concluída. Delaroche assinou o recibo pelo dinheiro e Becker ajudou-o a guardá-lo na pasta.

Na sala de entrada, Becker olhou para a rua.

- Todo o cuidado é pouco, Monsieur Delaroche - disse. - Andam ladrões por aí. - Obrigado, Herr Becker, julgo poder tomar conta de mim próprio. Tenha uma boa noite.

- Igualmente, Monsieur Delaroche.

Delaroche não quis andar muito com o dinheiro, por isso apanhou um táxi até a estação. Levantou o saco do cacifo e comprou um bilhete de primeira classe num comboio noturno para Amsterdam.

Delaroche chegou à Centraalstation de Amsterdam bem cedo na manhã seguinte. Atravessou rapidamente o hall apinhado, os olhos orlados de vermelho pela noite mal dormida, e saiu para o sol brilhante. A visão das bicicletas surpreendeu-o: milhares delas, filas e filas de bicicletas.

Delaroche apanhou um táxi até o Hotel Ambassade, no Central Canal Ring, e registrou-se como Senor Arminana, um empresário espanhol. Passou uma hora ao telefone, mudando de língua para o caso de a telefonista do hotel estar a ouvir a conversa, e utilizando o léxico codificado do submundo do crime. Dormiu um pouco e, ao fim da manhã, estava sentado à janela de um restaurante cheio de fumo, a pouca distância do hotel.

Lá estava a livraria, do outro lado de uma praça movimentada. O estabelecimento granjeara a reputação bem merecida de snobismo, pois especializara-se em literatura e em filosofia, e recusava-se a vender ficção ou thrillers comerciais. O empregado do hotel comentou que certa vez o gerente expulsara à força de braços uma mulher que se atrevera a perguntar pelo novo livro de um famoso escritor americano de romances.

Era o lugar perfeito para Astrid. Avistou-a por duas vezes a arrumar livros na montra, a dar sugestões a um cliente que estava obviamente mais interessado nela do que em qualquer livro que pudesse estar a ser recomendado.

Astrid tinha esse efeito sobre os homens, sempre assim fora.

Era por isso que Delaroche viajara até Amsterdam.

Nascera Astrid Meyer, na vila de Kassel, perto da fronteira da Alemanha Oriental. Quando o pai abandonou a família, em 1967, a mãe voltara a utilizar o seu nome de solteira, que era Lizbet Vogel.

Após o divórcio, Lizbet instalou-se numa casa à beira de um lago, nas montanhas suíças, nos arredores de Berna. Perto do final da guerra, em Julho de 1944, a família fugiu da Alemanha e procurou refúgio numa aldeia próxima. Foi aí, sozinha nas montanhas com a mãe, que teve início o fascínio de Astrid Meyer pelo avô, Kurt Vogel.

Fumador inveterado durante toda a vida, Vogel morreu de cancro dos pulmões em 1949, dez anos antes de Astrid nascer. No fim da vida, Gertrude, a esposa, tentara afastá-lo das montanhas, mas Vogel acreditava que o ar alpino seria a sua salvação. Morreu em casa, sem conseguir respirar.

Trude Vogel pouco sabia acerca do trabalho do marido durante a guerra, mas o que sabia contou a Lizbet e esta transmitiu-o a Astrid. Abandonara uma carreira legal promissora em 1935 para se juntar à Abwehr, os serviços secretos alemães. Fora bastante próximo do chefe da Abwehr, Wilhelm Canaris, executado por traição pelos Nazis, em Abril de 1945. Enganara Trude durante anos, dizendo-lhe que era o conselheiro legal de Canaris. Mais tarde, admitiria a verdade, que recrutara agentes que eram enviados para Inglaterra, para espiar os britânicos.

Lizbet recordava-se da noite.

O pai mudara a família para a Bavária, pois Berlim já não era segura. Lembrava-se do pai a chegar a casa, muito tarde, recordava-se da sua presença no quarto, enquadrado pela luz tênue que entrava pela porta. Mais tarde, recordava-se do som da mãe e do pai a falarem em voz baixa na cozinha, e do cheiro do jantar do pai. E depois ouviu o barulho de louça a partir-se, o som da mãe a arquejar. Ela e Nicole, a irmã gémea, rastejaram até o alto das escadas e olharam para o rés-do-chão. Lá em baixo, na cozinha, viram os pais e dois homens com as fardas pretas da SS. Não reconheceram um dos homens. O outro era Heinrich Himmler, o homem mais poderoso da Alemanha, logo a seguir a Adolf Hitler.

Durante anos, Lizbet Vogel acreditara que o pai fora um nazi, aliado de Himmler e das SS, um criminoso de guerra que escolhera morrer nas montanhas da Suíça, em vez de enfrentar a justiça na sua pátria. Concluiu que a mãe, em segredo, acreditava no mesmo. Quando a mãe morreu, Lizbet contou a história a Astrid, que cresceu a acreditar que o avô fora um nazi.

Então, durante uma tarde de Outubro de 1970, um homem telefonou para a casa e perguntou se poderia fazer uma visita. Chamava-se Werner Ulbricht, e trabalhara com Kurt Vogel na Abwehr, durante a guerra. Disse saber a verdade acerca do trabalho de Vogel. Lizbet pediu-lhe que lá fosse. Chegou uma hora depois. Era magro, pálido como farinha, apoiava-se numa bengala e usava uma pala negra sobre um olho.

Caminharam durante algum tempo, Werner Ulbricht, Lizbet e Astrid, e depois sentaram-se na margem relvada do lago e beberam café de um termo. Apesar do frio outonal no ar, o rosto de Ulbricht estava coberto de suor devido ao esforço. Descansou um pouco enquanto bebia café, e depois contou-lhes a história.

Kurt Vogel não era nazi. Odiava-os profundamente. Entrou para a Abwehr com a condição de não ser obrigado a aderir ao Partido, e Canaris teve todo o prazer em fazer-lhe a vontade. Não era conselheiro legal de Canaris. Era um angariador de agentes, e muito bom: meticuloso, brilhante, implacável, à sua maneira. Um dos seus agentes na Grã-Bretanha fora uma mulher. Juntos, tinham descoberto o mais importante segredo da guerra: a data e o local da invasão. Também descobriram que os britânicos estavam embrenhados numa fraude maciça para ocultar a verdade. Mas, em Fevereiro de 1944, Hitler despediu Canaris e colocou a Abwehr sob as ordens de Himmler e das SS. Vogel guardou a informação e juntou-se aos conspiradores anti-Hitler da Schware Kapelle, a Orquestra Negra. Quando o golpe de de julho terminou em desastre, muitos dos elementos da Schware Kapelle foram presos e executados. Vogel fugiu para a Suíça.

Quando Ulbricht concluiu a narrativa, os olhos de Lizbet estavam marejados de lágrimas. Fitou o lago e observou o vento a agitar a superfície. - Quem era o outro homem que foi com Himmler a casa da minha mãe? - perguntou. - Era Walter Schellenberg, um oficial de alta patente das SS. Assumiu a Abwehr quando Canaris foi despedido. O seu pai enganou-o quanto à invasão. -- E a mulher que era agente dele...? - indagou Lizbet, com a voz fraquejando. - Estava apaixonado por ela? A mãe sempre pensou que ele estava apaixonado por outra mulher.

- Foi há muito tempo.

- Diga-me a verdade, Herr Ulbricht.

- Sim, ele a amava muito.

- Como se chamava?

- Anna Katerina von Steiner. O pai obrigou-a a tornar-se agente. Nunca regressou da Inglaterra.

A obsessão de Astrid pelo avô teve início nessa tarde. O seu avô, aliado de Wilhelm Canaris, um bravo resistente da Schware Kapelle que tentou livrar a Alemanha de Hitler! No sótão, encontrou uma arca com os pertences que a mãe guardara: velhos livros de direito e algumas fotografias antigas, cheias de rachas com a idade, peças de roupa. Observou-as horas a fio. Quando teve idade para isso, chegou a imitar a aparência do avô: o cabelo espetado que parecia ter sido cortado por ele, os óculos com lentes de cristal de rocha, os severos ternos de agente funerário. Tentou visualizar a agente chamada Anna Katerina von Steiner, a mulher que ele amara. Astrid não encontrou vestígios dela nos documentos do avô, por isso compôs um retrato mental: bela, corajosa, implacável, violenta.

Com dezoito anos, Astrid regressou à Alemanha para frequentar a universidade em Munique e envolveu-se de imediato com a política de esquerda. Acreditava que os Nazis ainda governavam a Alemanha. Acreditava que os Americanos eram ocupadores. Acreditava que os industriais escravizavam os trabalhadores. Imaginava o que o avô, o grande Kurt Vogel, teria feito. Iria juntar-se à resistência, é claro.

Em 1979, abandonou os estudos na universidade e aderiu à Fação do Exército Vermelho. Os líderes disseram-lhe que teria de abdicar do nome verdadeiro e assumir um nom de guerre. Escolheu Anna Steiner e desapareceu no mundo do terrorismo.

Morava numa casa-barco no Prinsengracht. Às três da tarde saiu da livraria, pegou na bicicleta e cruzou a praça. Delaroche pediu a conta.

Caminhou durante algum tempo, a empurrar a bicicleta, sem pressas. Delaroche seguiu-a calmamente. Pouco mudara desde a última vez que a vira, anos antes. Era alta e um pouco desajeitada, com pernas bonitas mas pouco graciosas e mãos compridas que pareciam buscar eternamente um repouso confortável. O rosto pertencia a outra época: tez pálida luminosa, maçãs do rosto largas, um nariz grande, olhos da cor da água dos lagos das montanhas. O cabelo sempre mudara de acordo com o estado de espírito e com a política adoptada, mas agora, no início da meia-idade, regressara ao estado natural: comprido, louro, preso com uma simples mola preta.

Delaroche seguiu-a para norte, ao longo do Keizersgracht. Astrid cruzou o canal em Reestraat, ao que voltou a dirigir-se a norte ao longo do Prinsengracht. Entrou na sombra da Westerkerk, onde se situa o túmulo anônimo de Rembrandt. Delaroche estugou o passo e reduziu a distância que os separava. Ao ouvir os passos, Astrid virou-se rapidamente, a mão na bolsa e alarme no rosto.

Delaroche segurou-lhe o braço com gentileza.

- Sou eu, Astrid. Não tenha medo.

O Krista tinha treze metros de comprimento, com uma casa de leme na popa, uma proa elegante e uma pintura verde e branca nova.

Estava atracado ao lado de uma barca quadrada e, para subir a bordo, Astrid e Delaroche tiveram de atravessar o convés de ré do vizinho. O interior estava limpo e era surpreendentemente espaçoso, com uma cozinha, um salão e um quarto na proa. A luz débil do final da tarde entrava por um par de claraboias e por uma fileira de vigias ao longo do talabardão.

Delaroche instalou-se no salão, observando Astrid a fazer café na cozinha. Falavam holandês, pois fazia-se passar por uma divorciada de Roterdão e não queria que os vizinhos a ouvissem a falar em alemão. Tal como todos os habitantes da cidade, era obcecada com a bicicleta. Já lhe tinham roubado quatro desde que chegara a Amsterdam. Contou a Delaroche sobre o dia em que passeava ao longo do Singel e passou por um homem que vendia bicicletas usadas. Entre elas, Astrid viu uma das suas bicicletas desaparecidas. Disse ao homem que lhe pertencia e exigiu que a devolvesse. O indivíduo replicou que ela estava maluca. Astrid espreitou por baixo do selim e encontrou a placa com o nome que lá colocara. Ele chamou-lhe mentirosa. Astrid agarrou na bicicleta e declarou que ia levá-la. O homem tentou detê-la. Ela atacou com um golpe lateral do cotovelo, fraturando-lhe a laringe, e depois partiu-lhe o queixo com um pontapé à meia volta. Levantou a bicicleta e afastou-se ao som das palmas, elevada ao estatuto de heroína de todos os habitantes de Amsterdam que já tinham perdido uma bicicleta no mercado negro.

Levou o café para o salão e sentou-se à frente de Delaroche. Soltou a mola do cabelo e deixou que este lhe caísse sobre os ombros. Era uma mulher bastante atraente que aprendera a esconder a beleza para se fundir com o ambiente que a rodeava. Delaroche permitiu-se um momento a apreciá-la.

- E o que te traz a Amsterdam, Jean-Paul? Negócios ou prazer?

- És tu, Astrid. Preciso da tua ajuda.

Abanou lentamente a cabeça e acendeu um cigarro. Delaroche imaginara que pudesse não estar disposta a trabalhar com ele. Matara com frequência e pagara um preço muito elevado por isso, uma vida passada a fugir a todas as forças policiais e serviços secretos do Ocidente. Conseguira acomodar-se tanto quanto possível, e agora Delaroche pedia-lhe que abrisse mão de tudo isso.

- Há muito tempo que deixei esse mundo, Jean-Paul. Estou cansada de matar.

Não gosto tanto de o fazer como tu.

- Eu não gosto de matar. Apenas o faço porque me pagam e porque não sei fazer mais nada. Em tempos foste muito boa.

- Matava porque acreditava em alguma coisa. Há uma grande diferença. E vê só o que consegui - contrapôs, apontando para o que a rodeava. - Bem, imagino que pudesse ser pior. Podia estar em Damasco. Que tempos terríveis.

Delaroche ouvira dizer que ela passara dois anos escondida na Síria, cortesia de Hafez al-Assad e dos seus serviços secretos, e outros dois anos na Líbia, como convidada de Mu'ammar Khadafi.

- Estou oferecendo a liberdade, a oportunidade de largar tudo para trás e dinheiro suficiente para passar o resto da vida num lugar confortável. Quer ouvir mais?

Astrid apagou o cigarro e acendeu outro de imediato.

- Raios te partam.

Delaroche levantou-se.

- Imagino que seja um sim - disse.

- Quantas pessoas vamos matar?

- Volto daqui a meia hora.

Regressou ao hotel, fez as malas e pagou a conta. Trinta minutos depois, descia pela escotilha do Krista, com o pequeno saco de viagem e uma pasta de nylon com o computador portátil. Voltaram a instalar-se no salão, Delaroche ao computador, Astrid sentada numa otomana. Delaroche percorreu os alvos, um a um. Astrid manteve-se imóvel como uma estátua, as pernas cruzadas por baixo do corpo, uma mão comprida a apoiar o queixo, a outra com um cigarro. Não disse nada, não fez perguntas, pois, tal como Delaroche, tinha uma memória prodigiosa.

- Se me ajudares, pago-te um milhão de dólares - adiantou Delaroche, ao concluir as informações. - E ajudo-te a instalares-te num sítio seguro e um pouco mais agradável do que Damasco. - Quem te contratou?

- Não sei.

Astrid ergueu uma sobrancelha.

- Nem parece teu, Jean-Paul. Devem estar a pagar-te muito dinheiro. - Puxou uma passa do cigarro e soprou uma espiral de fumo para o teto. - Leva-me a jantar. Tenho fome.

Tinham sido amantes, há muito tempo, quando Delaroche ajudou a Fação do

Exército Vermelho com um assassinato particularmente difícil. Regressaram ao

Krista depois do jantar num pequeno restaurante francês com vista para o Herengracht. Delaroche deitou-se na cama. Astrid sentou-se a seu lado e despiu-se em silêncio.

Tinham passado muitos meses desde que levara um homem para a sua cama e, da primeira vez, amou-o rapidamente. Depois acendeu velas, e juntos fumaram cigarros e beberam vinho, com a chuva a martelar na claraboia por cima dos seus corpos. Fez amor com ele uma segunda vez muito lentamente, envolvendo-lhe o corpo com os braços e as pernas compridas, tocando-lhe como se fosse feito de cristal. Astrid gostava de ficar por cima. Gostava de controlar. Não confiava em ninguém, especialmente nos amantes. Pressionou-lhe o corpo durante muito tempo, beijando-lhe a boca, fitando-lhe os olhos. Depois ajoelhou-se, as pernas abertas sobre o corpo do parceiro, e foi como se Delaroche já lá não estivesse. Astrid brincou com o cabelo, afagou os mamilos dos seios pequenos e arrebitados. Depois fechou os olhos e lançou a cabeça para trás. Implorou-lhe que chegasse dentro dela. Quando ele o fez, Astrid estremeceu várias vezes e depois tombou sobre o peito dele, o corpo úmido com a transpiração.

Momentos depois, deitou-se de costas e fitou a chuva a escorrer na claraboia. -- Promete-me uma coisa, Jean-Paul Delaroche - disse-lhe. Promete-me que não me matas quando já não precisares de mim.

- Prometo que não te mato.

Astrid apoiou-se no cotovelo, olhou-o nos olhos e beijou-lhe os lábios.

- Tem visto Arbatov?

- Sim, em Roscoff, há uns dias.

- Como está ele? - perguntou Astrid.

- Como sempre - respondeu Delaroche.


WASHINGTON, D. C.

Naquela manhã fria, Elizabeth Osbourne aguardava à esquina das ruas 34th e M, a correr sem sair do sítio, a soprar as mãos para as aquecer. Olhou para o relógio. Susanna estava cinco minutos atrasada. A amiga tinha muitos defeitos, mas a falta de pontualidade não se incluía na lista. Atravessou a rua e dirigiu-se a um telefone público, onde marcou o número da casa de Susanna. O atendedor de chamadas disparou.

- Susanna, é a Elizabeth. Atende, se aí estiveres. Estou à tua espera à esquina. Vou dar-te mais alguns minutos, mas depois tenho de me ir embora. Volto a ligar-te do trabalho.

Ligou para a extensão de Susanna, no Post. Foi o voice mail quem atendeu.

Elizabeth desligou sem deixar mensagem.

Olhou para a 34th Street, mas não viu sinais de Susanna, nem de Carson. Telefonou para casa e confirmou se Susanna deixara alguma mensagem no gravador de chamadas. A máquina disse-lhe que tinha uma mensagem. Marcou o código de acesso, mas era apenas Max, a dar-lhe conta de que um almoço tinha sido cancelado.

Desligou a pensar: Raios partam, onde é que ela está'?

Pensou no telefonema de Susanna da noite anterior. Estava prestes a publicar um grande artigo sobre Mitchell Elliott e Samuel Braxton. Talvez estivesse ao telefone, a finalizar a peça. Talvez estivesse a falar com os editores.

Virou-se e correu a 34th Street acima. Virou à direita em Volta Place e depois novamente à direita para Pomander Walk. Subiu os degraus da casa de Susanna e tocou à campainha. Ninguém respondeu.

Bateu com o punho na porta de madeira. Voltou a não ter resposta. Do interior não se ouvia nada. Carson estava sempre alerta. Regra geral, começava a ladrar antes de Elizabeth bater à porta. Se o cão estivesse lá dentro, por essa altura já estaria a ladrar.

Virou-se e viu luzes na casa de Harry Scanlon. Cruzou o acesso e bateu à porta. Scanlon veio abrir de roupão.

- Lamento incomodá-lo, Harry, mas a Susanna e eu tínhamos combinado uma corrida e ela deixou-me pendurada. Não é do feitio dela. Estou preocupada. Ainda tem a chave?

- Claro, espere só um instante.

Scanlon desapareceu dentro de casa e regressou momentos depois com uma chave. - Eu ajudo-a - ofereceu-se.

Dirigiram-se à porta da casa de Susanna. Scanlon enfiou a chave na fechadura e abriu a porta.

- Susanna! - chamou Elizabeth. Não houve resposta.

Deu uma vista de olhos à sala e à cozinha. Tudo parecia normal. Começou a subir as escadas, sempre a chamar por Susanna, com Scanlon atrás dela.

Quando chegou ao patamar, viu o cão.

- Ai, meu Deus! Susanna! Susanna!

Passou por cima do corpo do animal e espreitou para a casa de banho. Os mosaicos brancos estavam cobertos de vidros da garrafa de cerveja que caíra e se partira. Elizabeth deu mais alguns passos pelo corredor e olhou para o gabinete de trabalho.

Virou-se e gritou.

Elizabeth estava sentada nos degraus da casa de Harry Scanlon, com um cobertor de lã pelos ombros. Meia dúzia de carros da polícia, com as luzes vermelhas e azuis a brilhar, entupiam Volta Place. A van forense já chegara e os técnicos reviravam o interior da casa de Susanna. Tentou falar com Michael, mas este não atendeu o telefone.

Ditou à telefonista um recado urgente e o telefone de Harry Scanlon.

Bolas, Michael, preciso de ti, pensou.

Elizabeth aconchegou-se mais com o cobertor, mas não conseguia parar de tremer. Fechou os olhos, mas viu o corpo lacerado de Susanna no chão, e viu o sangue. Meu Deus, tanto sangue! Apercebeu-se de que alguém a chamava. Abriu os olhos e viu à sua frente um afro-americano de pele clara e olhos de um verde profundo. O distintivo da polícia estava pendurado do paletó do terno azul.

- Senhora Osbourne, sou o detective Richardson, dos Homicídios. Pelo que sei, foi a Sra. quem encontrou o corpo.

- É verdade.

- A que horas?

- Entre as sete e um quarto e as sete e vinte, se não estou em erro.

- Conhecia a vítima?

A vítima, pensou Elizabeth. Susanna já perdera o nome. Agora não passava da vítima.

- Éramos muito amigas, Detetive. Conhecia-a há vinte anos. Tínhamos combinado ir correr esta manhã. Como não apareceu, vim à procura dela. O vizinho tinha a chave e entrei em casa dela.

- Reparou em alguma coisa fora do normal?

- Tirando o corpo, não.

- Sinto muito, Sra. Osbourne. Onde trabalhava ela?

- Era jornalista do The Washington Post.

- Bem me parecia que conhecia o nome. Trabalhou na Casa Branca durante algum tempo, certo? Costumava participar naquele programa da mesa redonda.

Elizabeth aquiesceu.

- Pode parecer-lhe uma pergunta estranha, mas sabe de alguém que a quisesse matar?

- Ninguém.

- Passava-se alguma coisa anormal na vida dela?

- Não.

- Namorados zangados? Amantes abandonados?

Elizabeth abanou a cabeça.

- Marido?

- Voltou a casar-se.

- Como era a relação entre os dois?

- Trabalho com ele, Detetive. É associado na minha firma. Pode ser um monte de esterco, mas não é um assassino.

- Não encontramos a bolsa dela. Sabe se tinha alguma?

- Sim, deixava-a sempre em cima da bancada da cozinha.

- Não está lá.

- Quem fez isto?

- Não fazemos ideia. Ao que parece, tinha alguém dentro de casa e ela o surpreendeu. Estava vestida com roupa de corrida, mas sem um dos tênis. Parece que torceu o tornozelo. O cão estava preso.

- E a mataram.

- Nesta cidade há muitas pessoas que preferem matar a deixar uma testemunha que as possa identificar mais tarde. - O tom da voz do detective era casual. Levou a mão ao ombro de Elizabeth. Lamento imenso, Sra. Osbourne. Fique com o meu cartão. Se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, diga-me. Elizabeth ouviu o telefone tocando dentro da casa. Harry Scanlon surgiu na porta, os olhos vermelhos. - É o Michael - indicou.

Elizabeth levantou-se e entrou, sem grande equilíbrio.

- Michael, vem para casa depressa. Preciso de você.

- O que aconteceu? Por que você está na casa do Harry?

- Susanna morreu. Foi morta dentro de casa. Fui eu que a encontrei. Ai meu Deus, Michael... - As lágrimas embargaram sua voz. - Por favor, Michael, vem depressa para casa.

- Fique aí. Vou buscá-la.

- Não. Vá para casa. Preciso andar. Preciso pegar ar.

Olhou pela janela e viu o corpo de Susanna, enrolado num lençol branco, sendo retirado de maca. Mantivera a compostura até aquele momento, mas ver Susanna daquela forma roubou-lhe as últimas forças.

- Elizabeth, você está aí? Elizabeth, fale comigo.

- Eles a estão levando. Ai, meu Deus, pobre Susanna! Estou só pensando no que ela deve ter sofrido antes de morrer. Não consigo deixar de pensar nisso.

- Saia daí. Vá para casa. Vai se sentir um pouco melhor. Acredite.

- Ande depressa.

- Sim.

Elizabeth desligou o telefone. Scanlon tinha um disquete na mão. - Bem, acho que ela já não precisa dissto. - Fez uma pausa e os olhos encheram-se de lágrimas. - Céus, nem acredito que disse isto.

- O que é?

Scanlon explicou o sistema que usavam, como Susanna fazia sempre cópias do trabalho e as deixava em sua caixa do correio.

- Era paranoica.

- Eu sei. Na faculdade de Direito, guardava as coisas na geladeira, porque tinha lido em algum lugar que geladeiras resistem a incêndios. - Elizabeth sorriu com a recordação. - Sinto tanta falta dela. Nem acredito que isto esteja acontecendo.

Scanlon pousou o disquete na bancada da cozinha.

- Encontrei-a ontem à noite, quando cheguei a casa. Ela deve tê-la deixado quando foi correr. É engraçado, sempre pensei que ela era maluca por correr à noite, mas foi morta dentro de casa.

Elizabeth pensou no telefonema de Susanna na noite anterior. Passara o dia a trabalhar num artigo importante. O que ela escrevera deveria estar naquela disquete.

- Posso ficar com ele? - perguntou Elizabeth.

- Claro, mas não vai conseguir ler o que está aí.

- Por quê?

- Porque ela usava software de encriptação. É como lhe digo, ela era paranoica com o trabalho.

- Não sabe a senha?

- Não, nunca me disse. Imaginava que tivesse dito a você.

Elizabeth abanou a cabeça.

- E os editores do Post?

- Nem pensar. Ela não confiava em ninguém, muito menos nas pessoas com quem trabalhava.

- Vou ficar com ele - declarou Elizabeth. - Tenho um amigo que entende um pouco dessas coisas.

Elizabeth mostrou o disquete a Michael quando estavam na cama, cercados pelos lençóis desalinhados. Michael acendeu um cigarro e revirou o disquete na mão. Elizabeth deitou a cabeça na barriga bronzeada do marido e percorreu os pêlos escuros do peito dele com o dedo. Sentia-se culpada por terem feito amor numa altura dessas. Quando chegou a casa queria estar perto dele. Queria abraçá-lo e nunca o perder de vista. Estava com medo, aterrorizada com o que acontecera à amiga, e não queria soltá-lo. Abraçou-o. Beijou-lhe os lábios, os olhos e o nariz. Despiu-o e fez amor com ele, lentamente, gentilmente, como se desejasse que nunca chegasse ao fim. Agora estava deitada ao seu lado, a ver a chuva a escorrer pelas janelas do quarto.

- O Harry diz que está protegida.

- Isso não é problema. Só precisamos de descobrir a palavra-passe.

- E como pretendes fazer isso?

- As pessoas são preguiçosas. Usam datas de nascimento, endereços, todo tipo de palavras e números que possam lembrar com facilidade. Conhece Susanna melhor do que ninguém.

- Precisa de software especial?

- Tenho no meu computador.

- Vamos.

Vestiram os roupões e percorreram o corredor até o gabinete de Michael, que se sentou à secretária. Elizabeth ficou atrás dele, as mãos agarradas aos ombros do marido. - Data de nascimento?

- 17 de novembro de 1957.

Michael introduziu a versão numérica: 17-11-57. Na tela surgiu:

ACESSO NEGADO PALAVRA-CHAVE INCORRETA

- Data de nascimento ao contrário - disse Michael. O computador deu a mesma resposta.

Endereço... Endereço ao contrário... Número de telefone... Número de telefone ao contrário... Telefone do trabalho... Telefone do trabalho ao contrário... Nome... Nome ao contrário... Nome do meio... Nome do meio ao contrário... Sobrenome... Sobrenome ao contrário...

- Podemos ficar aqui eternamente - comentou Elizabeth.

- Eternamente, não.

- Pensei que tivesse dito que ia ser fácil.

- Disse que não era problema. Nomes dos pais?

- Maria e Carmine.

- Maria e Carmine?

- Ela é italiana.

- Ela era italiana.

Michael trabalhou durante as duas horas seguintes. Descobriu mais sobre a vida de Susanna do que julgara possível: namorados, cidade natal, banco, filme preferido, livro predileto. Tentou tudo, para a frente, para trás, de lado, e nada resultou.

- Como se chamava o cão?

- Carson.

- Por que Carson?

Elizabeth sorriu.

- Porque tinha insônia e adorava The Tonight Show.

Michael digitou CARSON. Nada. Experimentou JOHNNY. Nada. Tentou DOC e ED. Nada.

- Tinha gravado os últimos dois programas. Estava sempre revendo.

- Quem foi o convidado do último programa?

- Foi só Johnny, lembra? Foi só ele falando com o público.

- E no anterior?

- Bette Middler. Ela adorava a Bette Middler.

Michael escreveu BETTE. Nada. MIDDLER. Nada. Escreveu os nomes ao contrário.

Nada.

Bateu com a palma da mão na mesa. - Sai da frente - disse Elizabeth.

Inclinou-se sobre o ombro do marido, escreveu THE ROSE e pressionou a tecla ENTER. O computador hesitou durante alguns segundos e a última coisa que Susanna Dayton escrevera apareceu na tela.

Meu Deus - exclamou Michael.

 


AMSTERDAM

 

A casa flutuante no Prinsengracht assumira a aparência de uma sala de operações militares. Delaroche chegou a pensar brevemente em regressar a Brélés, mas era uma aldeia, com a normal tendência das aldeias para os mexericos, e sabia que a presença de uma loura alta iria fazer despertar o interesse de Didier e dos seus compinchas. Além disso, o Krista garantia uma atmosfera descontraída e reservada onde planear os assassinatos. Nas paredes afixou mapas de grande escala das ruas das cidades onde iria levar a cabo as mortes: Londres, Cairo, Washington. Levantava-se cedo todas as manhãs e trabalhava enquanto Astrid dormia. Depois passavam duas horas juntos, a falar e a planear, até que ela se dirigia à livraria, às dez horas.

À tarde, as paredes começavam a oprimi-lo e Delaroche levava emprestada a terrível bicicleta de Astrid e pedalava através das ruelas estreitas à volta do canal. Encontrou uma loja de material de pintura, comprou um pequeno estojo de aguarelas e pintou vários belos quadros das pontes, dos barcos e das casas de fachadas triangulares sobranceiras aos canais. No quarto dia, uma frente fria começou a soprar, vinda do mar do Norte. Nos dois dias seguintes, o Krista encheu-se com os gritos divertidos de centenas de patinadores que deslizavam sobre a superfície gelada do Prinsengracht.

Todas as noites ia buscar Astrid à livraria e levava-a a um restaurante diferente. Depois passeavam ao longo dos canais batidos pelo vento e bebiam cerveja De Konmck nos bares impregnados do odor a cannabis de Leidseplein.

Fez amor com ele duas noites seguidas, e depois rejeitou-o outras duas. Astrid tinha um sono agitado, atormentado por pesadelos. Na véspera da partida acordou em pânico, alagada em suor, à procura da pequena Browning automática que mantinha sempre no chão, ao lado da cama. Poderia ter matado Delaroche, caso este não lhe tivesse retirado a arma das mãos, antes que ela a destravasse. Fez amor com ele loucamente e implorou-lhe que nunca a deixasse.

A manhã seguinte acordou gelada e cinzenta. Fizeram as malas em silêncio e trancaram o Krista com um cadeado. Delaroche destruiu os quadros. Astrid telefonou para a livraria. Surgira-lhe uma emergência familiar e precisava de alguns dias de folga. Iria manter-se em contato.

Foram de táxi até a Centraalstation e apanharam o comboio da manhã para a vila de Hoek van Holland. Seguiram mais uma vez de táxi para o terminal dos ferries e tomaram um pequeno-almoço tardio de pão e ovos num pequeno restaurante à beira da água. Uma hora depois embarcaram no ferry para Harwich, na Grã-Bretanha, do outro lado do mar do Norte.

A travessia costumava demorar seis horas, com bom tempo, oito ou mais, com o mar revolto. Nesse dia, as águas eram fustigadas por uma tempestade gelada vinda do mar da Noruega. Astrid, propensa a enjoos, passou grande parte da viagem na casa de banho, vomitando com violência, sempre a maldizer o nome de Delaroche. Este estava no convés, ao ar gélido, a observar as ondas que rebentavam na proa do ferry.

Pouco antes de chegarem, Astrid mudou a aparência. Apanhou o cabelo louro e cobriu a cabeça com uma peruca preta que lhe dava pelos ombros. Delaroche envergou um boné de basebol com o nome de um cigarro americano e, apesar do mau tempo, os óculos-de-sol Ray-Ban.

A Comunidade Europeia tornou mais fácil a vida do terrorista internacional pois, uma vez no interior de um Estado membro, a passagem para outro é feita quase sem riscos. Delaroche e Astrid entraram no Reino Unido com passaportes holandeses, fazendo-se passar por turistas solteiros, tendo apenas de se submeter a uma inspeção superficial dos documentos, levada a cabo por um agente britânico enfadado. Mesmo assim, Delaroche sabia que as forças de segurança britânicas gravavam em vídeo todos os passageiros que entravam no país, independentemente do passaporte apresentado. Sabia que ele e Astrid tinham acabado de deixar as primeiras pegadas.

Quando Delaroche e Astrid embarcaram no comboio na estação de Harwich, a noite tombara já sobre a costa inglesa. Noventa minutos depois, chegavam a Londres. Como base de operações, Delaroche escolheu um pequeno apartamento de serviço em South Kensington. Alugou-o por uma semana a uma empresa que se especializava em casas para turistas. A primeira ação foi cancelar o aspeto de "serviço" do negócio. Não precisava de uma empregada a meter o nariz nas suas coisas. O apartamento era modesto mas confortável, com uma cozinha totalmente funcional, uma sala grande e um quarto separado. A linha telefônica era direta, sem telefonistas envolvidas, e a casa tinha janelas grandes que davam para a rua.

Não perderam tempo. O alvo era um agente do MI6 chamado Colin Yardley, um antigo operacional de campo de cinquenta e quatro anos que servira na União Soviética, no Oriente Médio e, nos últimos tempos, em Paris, e que aguardava a reforma compulsiva a fazer serviço de secretária na sede. Enquadrava-se no perfil de muitos agentes dos serviços secretos no fim da carreira: esgotado, amargo, divorciado. Bebia demasiado e envolvia-se com inúmeras mulheres. O Departamento de Pessoal do MI6 dissera-lhe, sem rodeios, para acabar com isso. Yardley dissera aos lacaios do Pessoal que se danassem. Estava tudo no relatório de Delaroche. Seria fácil matá-lo. O desafio era matá-lo da forma correta.

Apesar dos anos passados em campo, desde que regressara a Londres Yardley tornara-se preguiçoso e descuidado. Apanhava todas as noites um táxi desde a sede do MI6 à beira rio até um restaurante e bar em Sloane Square. Era aí o seu terreno de caça: jovens atraídas pela sua boa aparência madura, divorciadas abastadas do West End, esposas aborrecidas em busca de uma noite de sexo anônimo. Chegou poucos minutos depois das seis e instalou-se no seu lugar habitual no bar.

Astrid Vogel estava à sua espera.

Não era a mesma mulher que Delaroche vira na livraria de Amsterdam dez dias antes. Passara a tarde na Harrod's e nas lojas resplandecentes de Bond Street, armada com uma boa provisão do dinheiro de Delaroche. Usava agora um vestido preto, meias pretas, um relógio de ouro e uma fiada dupla de pérolas ao pescoço. A mola preta simples desaparecera-lhe do cabelo, que fora aparado e penteado por um estilista italiano de um salão em Knightsbridge. Caía-lhe agora à volta do rosto e do pescoço. Astrid sabia disfarçar a sua beleza natural, mas também sabia como chamar a atenção quando necessário.

Delaroche estava sentado num banco em Sloane Square, fingindo ler um exemplar do The Evening Standard comprado numa banca perto da estação de metro da praça. Observou o desenrolar dos acontecimentos no interior do restaurante como uma pantomima. Astrid sentada sozinha no bar, o cigarro eterno entre os dedos compridos e magros. Yardley, alto, grisalho, distinto, pergunta se o lugar ao seu lado está livre. À frente dele surge de imediato uma bebida, o habitual, e, pela sua expressão, julga que ela ficou impressionada. Acena ao empregado para que este sirva à Sra. outro copo de vinho branco. Astrid, grata, vira o corpo para o encarar, uma perna comprida cruzada de modo sugestivo sobre a outra, a saia bem subida na coxa. Já lhe pertence. A mulher solitária e assustada da casa flutuante de Amsterdam desapareceu. É uma holandesa decidida e cosmopolita cujo marido ganha dinheiro e ignora-a demasiado e, sim, pode acender-me o cigarro, querido.

Após uma hora, ela levanta-se e veste o casaco. Apertam as mãos de modo formal.

Ela permite que os dedos permaneçam um instante a mais nos dele. Pergunta-lhe onde está hospedada? No Dorchester. Pode dar-lhe boleia? Não, não é necessário. Pode chamar-lhe um táxi? Não, ela trata disso. Poderão encontrar-se novamente, antes que deixe Londres? Volte amanhã à noite e, se tiver sorte, querido, estarei aqui.

Cruzou rapidamente a praça, passando por Delaroche, embrenhado na leitura do jornal. Dirigiu-se a norte, subindo Sloane Street.

Delaroche viu Yardley chamar um táxi e entrar para o carro. Levantou-se e atravessou a praça até Sloane Street.

- Como correu?

- Se deixasse, tinha-me fodido ali mesmo no bar.

- Quer dizer que se mostrou interessado?

- Convidou-me para ir a casa dele, para uma bebida e caril de take-away. Disse-lhe que o meu marido poderia ficar zangado se eu não estivesse no hotel quando a reunião acabasse.

- Ótimo, não quero que pense que és uma prostituta. Além disso, não pode ser tão estúpido como parece. E quanto a amanhã à noite?

- Deixei bastante claro que voltaria ao bar.

- Ele volta.

- Por favor, Jean-Paul, não quero que ele me beije. O hálito dele cheira a merda.

- Essa parte da operação fica nas tuas mãos.

- Meu Deus, espero que não tente beijar-me. Se tentar, juro que sou eu que o mato.

Na noite seguinte, Yardley chegou primeiro. De vigia no banco de Sloane Square, Delaroche reprimiu uma gargalhada ao ver o tão bem treinado agente dos serviços secretos britânicos lançar uma série de olhares ansiosos na direção da porta. Depois de meia hora, Delaroche decidiu que Yardley já esperara tempo suficiente pela sua recompensa. Fez sinal a Astrid, que estava sentada à janela de um bar do outro lado da praça. Cinco minutos depois entrava no restaurante, diretamente para os braços de Colin Yardley.

Provocou-o. Brincou com ele. Bebia-lhe cada palavra. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. Permitiu que lhe pagasse demasiados copos de Sancerre. Inclinou-se para a frente, para que ele pudesse espreitar-lhe pela blusa e ver que não trazia sutiã. Afagou-lhe a barriga da perna com a ponta do caro sapato Bruno Magli. Tentou ir-se embora por várias vezes - o meu marido vai perguntar-me onde andei, querido - mas ele fazia sinal ao empregado do bar, que trazia outro copo de Sancerre. Ela não tinha força de vontade para se afastar daquele homem tão interessante, e seja um querido e peça outro maço de Marlboro Light 100s, por favor. Astrid, a sedutora. Astrid, a necessitada. Astrid, a holandesa faminta por sexo, que faria tudo pela atenção de um inglês de meia-idade, com um terno de Savile Row e uma casa dispendiosa. Delaroche apreciou o trabalho dela a partir da praça. Sentiu outra coisa: uma pontada de ternura. Levou a mão ao casaco e sentiu a coronha da Glock.

A parte seguinte correu de acordo com o planeado. Astrid inclinou-se para a frente e murmurou-lhe ao ouvido. Yardley pagou a conta e foi buscar os casacos.

Dois minutos depois, entravam para um táxi.

Delaroche observou-os a afastarem-se. Levantou-se e seguiu-os lentamente, através de Sloane Square, para oeste, ao longo da King's Road. Não ficou alarmado quando perdeu o táxi de vista. Sabia exatamente para onde iam, para a casa de Yardley, em Wellington Square.

Fá-lo entrar em casa, Astrid. Diz-lhe que tens pressa. Que o teu marido vai perder a cabeça se te demorares. Leva-o diretamente para a cama. Não te preocupes com a porta. Eu trato da porta.

Delaroche virou à esquerda em King's Road e entrou na calma de Wellington Square. O ruído do trânsito da hora de ponta reduziu-se para um ronco abafado. Começou a chover ao de leve. Delaroche atravessou rapidamente a praça, a gola erguida, as mãos enfiadas nos bolsos.

A casa de Yardley estava às escuras, perfeito. A fechadura da porta da rua não levantou grande problema e, dali a poucos segundos, estava no interior da casa. Ouviu o som de vozes no andar de cima, no quarto. Astrid desempenhara bem o seu papel.

Quando Delaroche entrou no quarto, encontrou Yardley encostado à cabeceira da cama, de camisa e peúgas, a masturbar-se enquanto Astrid executava um striptease lento aos pés da cama. Por um momento, Delaroche chegou a ter pena do homem. Ia sofrer uma morte humilhante.

Delaroche retirou a Glock da cintura das calças e entrou no quarto. O alarme surgiu de imediato no rosto de Yardley. Astrid parou de dançar e afastou-se.

Delaroche ocupou o lugar deixado vago aos pés da cama. Depois ergueu o braço e alvejou Colin Yardley rapidamente, três vezes no rosto.

O corpo tombou da cama para o chão. Astrid avançou, deu um pontapé na cabeça de Yardley com a ponta do sapato Bruno Magli e cuspiu-lhe no rosto. Astrid, a revolucionária.

Delaroche informou a agência imobiliária que teria de cancelar as férias em Londres devido a uma emergência familiar. Antes de deixar o apartamento, ligou o computador portátil e enviou uma mensagem codificada aos empregadores, dizendo-lhes que a missão fora cumprida e que deveriam transferir os fundos determinados para a conta específica em Zurique. Apanhou com Astrid um comboio noturno para Dover e passaram a noite num hotel pitoresco. De manhã apanharam o primeiro ferry para Calais, onde alugaram um Renault, e seguiram para norte, ao longo da costa do Canal. A noite estavam de volta ao Krista, no calmo Prinsengracht em Amsterdam.

O corpo de Colin Yardley foi encontrado no início dessa tarde, quando Delaroche e Astrid passavam da França para a Bélgica. A Segurança do MI6 ficou alarmada, pois Yardley não se apresentara ao serviço e ninguém atendia os repetidos telefonemas para sua casa em Wellington Square. Uma equipe do MI6 arrombou a porta pouco depois da uma da tarde e encontraram o corpo no quarto do primeiro andar. A Polícia, contudo, apenas foi informada da morte às quatro e quinze. A BBC noticiou a morte de um homem não identificado nas Nine O'Clock News. Quando a ITN iniciou a transmissão das dez, o cadáver tinha nome e profissão: Colin Yardley, um quadro médio do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Durante o programa telefonaram para a redação. Quem ligou disse que a morte de Yardley fora levada a cabo pelo Provisional Irish Republican Army. Foi apresentado o código de reconhecimento especial como prova de que a reivindicação era autêntica.

Pela manhã, os repórteres da BBC tinham descoberto a verdadeira ocupação de Yardley: agente dos Serviços Secretos de Espionagem, o MI6.

Jean-Paul Delaroche escutou as notícias a bordo do Krista. Quando terminaram desligou o rádio e dedicou-se aos mapas e ao computador, preparando a morte seguinte.

Telefonou para Zurique. Herr Becker confirmou que, nessa manhã, fora efetuada para a sua conta uma transferência de um milhão de dólares. Delaroche indicou-lhe que deveria transferir o dinheiro para quatro contas das Baamas, um quarto de milhão para cada.

O sol despontou ao meio-dia. Levou emprestada a bicicleta de Astrid e passou o resto da tarde a pintar nas margens do rio Amstel, até que a imagem do rosto desfeito de Yardley lhe desapareceu da consciência.

 


MCLEAN, VIRGÍNIA

 

- Não sei por que Carter precisa te enviar a Londres. Por que diabos não manda outra pessoa?

Elizabeth foi buscar Michael na sede e estava dando carona até o Dulles Airport, a trinta quilômetros de Washington, no extremo leste da periferia urbana do norte da Virgínia. Eram 19 horas. Tecnicamente, a hora do rush já acabara, mas o trânsito continuava engarrafado no Capital Beltway. Quando estava tensa, Elizabeth tinha a tendência de colar na traseira dos outros veículos. Assim, viajavam a meio metro do para-choque de um Ford Explorer verde, que se deslocava a setenta quilômetros por hora.

- Pensei que tinha explicado nossa situação, Michael. Achava que ele tinha concordado em deixar você trabalhar em Nova York. Pensei que ele fosse aliviar por uma ou duas semanas.

Talvez devesse ter levado um carro da Agência até o aeroporto, pensou Michael. Não tinha vontade de discutir com a mulher antes de embarcar num voo internacional. Não que fosse supersticioso, nem tampouco receava voar, era simplesmente realista.

- É só um dia - garantiu. - Ida e volta, com algumas reuniões pelo meio. - Se é uma coisa tão rotineira, por que não enviou o Carter outra pessoa? Elizabeth não era litigante, exercia direito na calma das sombras empresariais, mas era mestre na arte do contra-interrogatório. Esmurrou a buzina. Michael sabia que acabara de ser declarado testemunha hostil.

- Um oficial da espionagem britânica foi assassinado em Londres, ontem à noite - replicou Michael calmamente. - Pode ter alguma coisa a ver com um caso no qual já trabalho há muito tempo.

- Li sobre isso no Post desta manhã. O IRA reivindicou a responsabilidade. Desde quando tens alguma coisa a ver com o IRA? Pensei que o teu currículo incluía exclusivamente terrorismo árabe.

- É verdade, mas julgamos que possa haver uma ligação.

Michael esperava que ela ignorasse o assunto. A viagem a Londres fora sua ideia, não de Carter, que queria o trabalho de ligação feito por um agente da Estação de Londres. Michael convencera Carter a enviá-lo.

- Daqui a dois dias vão recolher-me os óvulos. Nessa altura vão fertilizá-los com esperma. Preferia que fosse o teu, Michael.

- Eu volto. Não te preocupes. E, se por acaso houver algum problema, temos um trunfo na manga. Congelado.

Devido à natureza do seu trabalho, e à possibilidade de uma viagem inesperada, os médicos do Cornell Medical Center tinham recomendado que se congelasse algum do esperma de Michael.

- Gostaria que lá estivesses para me dar apoio emocional, Michael - disse Elizabeth. - Pensei que os agentes de casos fossem bons nessas coisas. O mínimo que podes fazer é estar comigo. - E vou lá estar. Prometo.

- Cuidado com aquilo que prometes, Michael.

Saiu da Beltway, entrando na estrada de acesso a Dulles. O trânsito reduziu de intensidade e Elizabeth acelerou até os cem. A lua cheia pairava sobre os campos de Virgínia, amortalhada por uma camada transparente de nuvens. Michael acendeu um cigarro e entreabriu o vidro da janela. Elizabeth conduzia com agressividade, mudando de faixa sem abrir o pisca, colando-se ao carro da frente, fazendo sinais de luzes a quem se atrevesse a conduzir a menos de cento e dez na faixa de ultrapassagem. Michael sabia o verdadeiro motivo do mau humor de Elizabeth. Ia para Londres investigar um ato de terrorismo, e a esposa sabia que isso levaria a que pensasse no assassinato de Sarah. O seu orgulho impedia-a de o admitir, mas os sentimentos estavam bem patentes na expressão ansiosa do rosto. Ficaria ainda mais perturbada se Michael lhe contasse a verdade: Que suspeitava que Sarah e o agente britânico tinham sido assassinados pelo mesmo homem. - Entreguei ao tom Logan o material do disquete da Susanna informou Elizabeth. - Ele vai publicar o artigo?

- Diz que não pode, sem antes confirmar os pormenores. Diz que as acusações são demasiado explosivas para serem editadas antes de serem analisadas pelos advogados. E, uma vez que a jornalista que redigiu a história está morta, não pode haver uma investigação profunda.

- Que vai ele fazer?

- Designou uma equipe dos melhores jornalistas para confirmarem os dados. Infelizmente, a Susanna não vai ser de grande ajuda no túmulo. Os apontamentos não contêm muitas pistas sobre a identidade das fontes. Por isso, a equipe do Logan tem de começar praticamente do zero.

- Isso pode demorar muito.

- Susanna precisou de três meses para fazê-lo sozinha.

Chegaram a Dulles. Elizabeth dirigiu-se às partidas e parou junto ao passeio. Michael saiu e tirou uma mala de roupa da bagageira. Fechou-a e aproximou-se da porta do condutor do Mercedes. Elizabeth baixara o vidro e tinha a cabeça de fora, à espera de um beijo de despedida.

- Tem cuidado, Michael.

- Eu tenho.

Esperou que as luzes de presença desaparecessem na escuridão e depois entrou no terminal.

Michael acordou quando o avião atravessou a camada de nuvens e deu início à descida para a manhã cinzenta de Londres. A Estação de Londres oferecera-se para lhe enviar um carro, mas Michael queria envolver-se o menos possível com os ingleses, por isso apanhou um táxi. Baixou o vidro. Gostava da sensação do ar frio no rosto, apesar do fedor a fumo dos tubos de escape. Londres fora a sua casa durante oito anos. Fizera mil vezes o percurso entre Heathrow e o centro da cidade. Os lúgubres subúrbios que passavam por ele eram-lhe mais familiares do que Arlington, ou do que Chevy Chase.

Registrou-se no hotel, um estabelecimento modesto e independente em Knightsbridge, com vista para Hyde Park. Gostava do sitio, pois cada quarto possuía uma pequena sala de estar anexa ao quarto de dormir. Pediu um pequeno-almoço inglês completo e foi debicando a comida até serem horas de ligar a Elizabeth. Acordou-a e travaram uma conversa desconexa antes que ela voltasse a adormecer.

Michael sentia-se cansado, por isso dormiu até o início da tarde. Quando acordou, vestiu um moletom impermeável. Pendurou o sinal não INCOMODAR na porta e enfiou um pedaço minúsculo de papel entre a porta e a lateral. Se ainda lá estivesse ao regressar, provavelmente ninguém teria entrado no quarto. Caso tivesse desaparecido, alguém lá teria estado.

Correu pelos caminhos de Hyde Park debaixo de nuvens plúmbeas, carregadas de chuva. O céu abriu dez minutos depois de ter iniciado o treino. Os londrinos que passavam, abrigados pelos guarda-chuvas fustigados pelo vento, fitavam-no como se fosse um louco em fuga. Após quinze minutos ficou ofegante e começou a andar. Conseguira manter a forma física ao longo dos anos, apesar de ser fumante, mas agora os cigarros cobravam seu preço. E Elizabeth tinha razão: estava ficando com barriga.

Regressou correndo ao hotel. O papel caiu ao chão quando abriu a porta do quarto. Tomou uma ducha e vestiu um terno completo azul-marinho. Apanhou um táxi até Grosvenor Square e exibiu a identificação ao Marine de guarda à entrada. Michael sentia-se desconfortável nas embaixadas. Nunca deixara de ser um NOC. Quando se encontrava sedeado em Londres, apenas ia à embaixada em situações de emergência, e sempre "às escuras", o que significava que entrava pelo estacionamento subterrâneo, nos fundos de uma van. Gostava de não ter ido ali, mas as regras do Centro exigiam uma visita de cortesia ao chefe de estação local.

O chefe de pessoal de Londres era um homem chamado Wheaton, um anglófilo assumido de bigode fino, terno riscado de Savile Row e o hábito irritante de apertar uma bola de tênis sempre que não sabia o que dizer. Wheaton pertencia à velha guarda: Princeton, Moscou, cinco anos como chefe do gabinete russo antes de assumir o seu posto definitivo em Londres. Disse ter conhecido o pai de Michael, mas não disse que gostara dele. Também deixou bem claro que não acreditava que a Estação de Londres precisasse de ajuda do CTCNT, o Counterterrorist Center (Centro Contraterrorista) para aquele caso. Michael prometeu deixá-lo a par de tudo o que descobrisse. Wheaton disse educadamente a Michael que gostaria de o ver longe da cidade o mais depressa possível. O táxi deixou Michael no terraço georgiano branco de Eaton Place. Helen e Graham Seymour possuíam uma casa agradável e, da rua, Michel podia vê-los como atores num palco de vários níveis: Graham no andar de cima, na sala, Helen abaixo do nível da rua, na cozinha. Desceu as escadas e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen desviou a atenção dos cozinhados e exibiu um sorriso rasgado.

Abriu a porta e beijou-lhe a face.

- Jesus, Michael, há tanto tempo. - Serviu vinho Sancerre num copo e colocou-o na mão dele. - Graham está lá em cima. Vão pôr a conversa em dia enquanto acabo o jantar.

Quando Michael entrou na sala, Graham Seymour remexia na lareira a gás. A sala tinha painéis e soalho de madeira, com uma série de tapetes orientais e decorações do Oriente Médio muito finos. Graham levantou-se, sorriu e estendeu a mão. Viam-se um ao outro da forma que apenas os homens de constituição idêntica conseguem. Graham Seymour era o negativo de Michael. Este tinha pele cor de azeitona e Graham era pálido. Michael tinha cabelo escuro e olhos verdes, e Graham era louro e de olhos cinzentos. Michael vestia terno marinho e Graham estava pronto para um safari, com calças e camisa caqui.

Sentaram-se e falaram sobre os velhos tempos. Tinham percursos de vida quase idênticos. À semelhança de Michael, também o pai de Graham trabalhara para os serviços secretos: na operação Double Cross do MI5 durante a guerra, e depois no MI6, durante vinte e cinco anos. Tal como Michael, também Graham seguiu o pai de comissão em comissão, e entrou para os Serviços Secretos logo após se ter formado em Cambridge. Ao longo dos anos, os dois homens tinham trabalhado em conjunto, embora Graham sempre tivesse operado com cobertura oficial. Desenvolveram respeito profissional e uma amizade pessoal. Com efeito, eram mais chegados do que ambos os serviços gostariam.

O cheiro do cozinhado de Helen chegou até a sala.

- O que está ela a fazer? - perguntou Michael, à cautela.

- Paella - respondeu Graham, com um franzir de cenho. - Talvez devesses ir à farmácia antes que feche.

- Eu fico bem.

- Dizes isso agora, mas nunca provaste a paella da Helen.

- É assim tão má?

- Não quero estragar a surpresa. Talvez seja melhor beberes mais um pouco de vinho.

Graham desceu à cozinha e regressou momentos depois com copos cheios de Bordéus branco.

- Fala-me sobre o Colin Yardley. Graham fez um esgar.

- Aconteceu uma coisa estranha há dois meses. Um traficante de armas chamado Farouk Khalifa decidiu instalar-se em Paris. Descobrimos o caso e informamos os nossos amigos franceses, que colocaram o senhor Khalifa sob vigilância. - Foi um gesto simpático por parte dos franceses. Ele vende armas a pessoas de que não gostamos.

- É um homem mau.

- É um homem muito mau. Abriu o bazar e começou a receber clientes. Os franceses fotografam toda a gente que entra e sai.

- Estou vendo o filme.

- Em Setembro, um homem faz uma visita ao senhor Khalifa. Os franceses não conseguem identificá-lo, mas desconfiam que seja britânico, por isso enviam-nos uma cópia da fotografia por fax seguro.

- Colin Yardley?

- Em carne e osso.

- A chefia confrontou-o. Exigiram saber por que raio se tinha encontrado com um tipo como o Khalifa. O Yardley inventou uma treta qualquer sobre estar aborrecido com o trabalho de secretária, e andar ansioso por voltar ao trabalho de campo. Trabalhou em Paris durante algum tempo. Disse que andava por conta própria. A chefia não ficou nada satisfeita, e isto é um eufemismo. Yardley foi repreendido com veemência.

- Cristo.

- Pois adivinha lá qual é a arma que o Farouk Khalifa tem em grande abundância. - Segundo as nossas informações, são mísseis Stinger. - Michael bebeu um pouco de vinho. -- Imagino que os teus serviços não tenham transmitido essas informações aos meus. Graham abanou a cabeça.

- Ficamos um pouco embaraçados com o assunto. Compreende, não, Michael? A chefia queria esquecer o caso, por isso desapareceram com ele.

Helen surgiu no alto das escadas.

- O jantar está pronto.

- Que maravilha - proclamou Graham, com um pouco de entusiasmo a mais. - Bem, imagino que o vídeo tenha de esperar.

Helen Seymour fazia pratos elaborados, mas terríveis. Acreditava que "cozinha inglesa" era um oximoro, e especializara-se na comida do Mediterrâneo: italiana, grega, espanhola, norte-africana. Naquela noite serviu uma paella horrorosa de peixe cru e camarão queimado, tão picante que Michael sentiu a garganta seca, à medida que empurrava garfada após garfada para a boca. Terminou corajosamente e Helen insistiu em que repetisse. Graham reprimiu uma gargalhada enquanto a esposa servia duas colheradas enormes no prato estendido de Michael.

- Está divino, não está? - ronronou Helen. - Acho que também vou me servir de mais um pouco.

- Você se excedeu mais uma vez, querida - elogiou Graham.

Havia muito que aprendera a lidar com a comida exótica da mulher. Comprava sanduíches e hambúrgueres quando saía do trabalho e devorava-os ao descer para o metrô. Há três anos exibia uma súbita devoção por pão. Helen fazia variedades novas e diferentes todas as noites, que Graham comia em grandes quantidades. Ganhara barriga por excesso de hidratos de carbono à noite. Marcava telefonemas importantes para a hora do jantar e fingia serem inesperados. À semelhança de uma criança impertinente, tornara-se perito em distribuir a comida pelo prato, criando assim a ilusão do consumo. Durante algum tempo, Graham recusara-se a permitir que Helen cozinhasse para os convidados. Em vez disso, iam a restaurantes. Agora sentia prazer em ter amigos para jantar, tal como um condenado se reconforta com companhia nas últimas horas antes da morte. Graham mergulhou um naco de pão espanhol num prato de azeite virgem e enfiou-o na boca.

- Helen, Michael e eu temos de trabalhar mais um pouco. Importa-se que levemos o café para a sala?

- É claro que não. Levo a sobremesa daqui a pouco. - Virou-se para Michael, com um sorriso arrebatador nos lábios. - Oh, Michael, fico tão contente por ter gostado da paella.

- Helen, não me lembro da última vez que tive uma refeição destas.

Graham engasgou-se com um pedaço de pão.

Michael saiu do banheiro.

- Você está bem, camarada? - perguntou Graham. - Parece enjoado.

- Minha nossa Sra., como consegue comer assim todas as noites?

- Está pronto para ver um filme?

- Claro.

Sentaram-se no sofá da sala. Graham pegou o controle remoto que estava em cima da mesa de apoio.

- O senhor Yardley tinha outro problema - indicou. - Gostava de mulheres.

- Os serviços também sabiam disso?

- Sim, o Departamento de Pessoal pediu para ter calma. Ele respondeu que se danassem. Era solteiro, faltavam-lhe poucos anos para a aposentadoria, e ia divertir-se.

- Boa atitude.

- Os serviços encontraram o corpo. Entramos antes da polícia e revistamos a casa. Descobrimos que o adorável Colin Yardley tinha instalado no quarto um sistema secreto de gravação de vídeo para gravar as conquistas e vê-las quando quisesse. Tinha uma bela coleção. Os vigilantes usavam-na para aliviar o aborrecimento entre missões.

Graham apontou o comando ao reprodutor de vídeo e teclou PLAY. A câmara estava instalada em algum lugafr acima da cabeceira da cama. Yardley estava deitado, nu, masturbando-se lentamente enquanto uma mulher alta executava um striptease provocante. Desabotoou a blusa, passou as mãos pelos seios e enfiou-as por dentro do sutien.

Graham imobilizou a imagem.

- Quem é ela? - perguntou Michael.

- Acho que é Astrid Vogel.

- Segundo as nossas informações, ela está morando em Damasco.

- Nós achamos o mesmo. Na verdade, acreditamos que tenha deixado a Facção do Exército Vermelho de vez, o que torna o seu envolvimento neste caso ainda mais intrigante. - Graham acionou o comando e a imagem ganhou vida. - Esta é a melhor parte. Não vou estragar o fim.

O striptease de Astrid Vogel tornou-se mais intenso. Tinha as mãos entre as pernas e a cabeça inclinada para trás, fingindo êxtase.

- Ela é boa - comentou Graham. - Muito boa.

Helen entrou com uma travessa de café e tarte de maçã.

- Mas que maravilha. Deixo-os sozinhos dez minutos e vocês alugam um filme pornográfico.

Pousou a travessa na mesa de apoio, os olhos fixos na tela.

- Quem é aquela criatura?

- Uma antiga assassina do Baader-Meinhof chamada Astrid Vogel.

Uma expressão de terror cruzou o rosto de Yardley. Graham parou o vídeo.

- Esta parte é bem sangrenta, querida. Talvez fosse melhor ir lá para baixo.

Helen sentou-se no divã.

- Como queira - disse Graham e recomeçou o vídeo.

Uma figura escura penetrou no quarto, as feições ocultas por boné e óculos de sol. Levou a mão atrás das costas, puxou de uma arma com silenciador e alvejou Colin Yardley três vezes no rosto. A mulher avançou, deu um pontapé no cadáver e cuspiu-lhe em cima.

Graham parou a fita.

- Meu Deus do céu - disse Helen.

- É ele - garantiu Michael.

- Como sabe? Está sempre de cara tapada.

- Não preciso ver a cara. Já o vi empunhando uma pistola. É ele, Graham. Apostaria minha vida. É ele.

- Sei que nem preciso de dizer, Michael, mas as regras são as habituais. A informação que te dei serve apenas para uso pessoal. Não pode partilhá-la com outro elemento do teu serviço, nem com qualquer outro serviço.

- Se te ajudar a dormir melhor, até assino uma cópia da Lei dos Agentes Secretos.

Michael ergueu a gola do casaco e enfiou as mãos nos bolsos. A chuva parara e queria andar. Graham acedera em acompanhá-lo até meio caminho. Vaguearam pelos sossegados vales georgianos de Belgravia, tendo como único ruído de fundo o ronco distante do trânsito noturno de King's Road.

- Quero falar com Drozdov - disse Michael.

- Não podes falar com o Drozdov. Não está ao teu alcance. Além do mais, ele diz que deixou de falar e que pretende passar o resto dos dias em paz. - Tenho uma teoria sobre o assassino que matou Yardley e quero que ele me dê a sua opinião.

- O Drozdov é o nosso desertor. Já partilhamos as informações com você. Se tentares falar com ele, vais ficar em maus lençóis, tanto pela tua parte como pela nossa.

- Por isso mesmo, vai ser uma conversa oficiosa.

- O que tem em mente? Estás pensando em cruzar com ele e dizer: "Ei, você não é Ivan Drozdov, o antigo assassino do KGB? Importa-se que lhe faça umas perguntas?" Tome juízo, Michael.

- Tinha pensado em utilizar uma abordagem um pouco mais sutil.

- Se descobrirem, nego qualquer envolvimento. Até te acuso de ser espião russo.

- Não esperaria menos do que isso.

- Ele está morando em Cotswolds. Numa aldeiazinha chamada Aston Magna. Toma chá e lê os jornais todas as manhãs num café de Moreton, a poucos quilômetros de distância.

- Conheço bem a região - disse Michael.

- É o homem com os cães corgis e a bengala nodosa. Parece mais inglês do que o príncipe Philip. Não há como errar.

Graham Seymour acompanhou Michael até Sloane Street antes de se despedir e regressar a Eaton Place. Michael deveria ter seguido em direção ao norte, até Hyde Park e seu hotel, mas, em vez disso, quando Graham desapareceu encaminhou-se para o sul, para Sloane Square.

Atravessou a praça e perambulou pelas sossegadas ruas secundárias de Chelsea, até chegar à Represa, virada para o Tamisa. As luzes brilhavam nas casas de luxo sobranceiras. O passeio cintilava com a névoa do rio. Michael tinha a zona só para si, não fosse um homem calvo e baixo que se apressava pela rua, as mãos enfiadas nos bolsos do oleado puído, a coxear como um soldadinho de chumbo que já não presta para brincar.

Apoiou-se à barreira, olhou para o rio e depois virou-se e fitou Battersea Bridge e as luzes brilhantes de Albert Bridge, mais além. Podia ver Sarah a dirigir-se a ele, através das trevas e da neblina, o cabelo negro puxado para trás, a saia a dançar à volta das botas de camurça. Sorria-lhe como se fosse a pessoa mais importante à face da terra, como se tivesse passado o dia a pensar nele. Era o mesmo sorriso que lhe oferecia sempre que ele entrava no apartamento, sempre que se encontravam para uma bebida no bar, ou para um espresso, no restaurante preferido.

Pensou na última vez que estiveram juntos. Fora na tarde anterior, quando passara pelo apartamento e a encontrara no chão, com um maiô branco, o corpo magro dobrado sobre as longas pernas nuas. Recordou como ela se levantara e lhe beijara a boca, como baixara o maiô dos ombros para que ele lhe tocasse nos seios. Mais tarde, na cama, confessara ter fantasiado que fazia amor com ele para aliviar o enfado dos exercícios de alongamento. Que ficava sempre terrivelmente tensa e que tinha de resolver o problema sozinha, pois ele estava a trabalhar.

Nesse momento sentiu-se completamente apaixonado. Fez amor com ela uma última vez. Ela ficou deitada de costas, imóvel, os olhos fechados, o rosto passivo, tanto tempo quanto conseguiu, até que o prazer físico foi demasiado e abriu os olhos e a boca, puxou-o para si e beijou-o até chegarem juntos. Foi essa imagem, e a visão dela a flutuar na sua direção à luz da Represa de Chelsea, que foi estilhaçada pelo homem com a arma.

Recordou o rosto dela a explodir, o corpo a dissolver-se à frente dos seus olhos. Recordou o assassino: tez pálida, cabelo muito curto, nariz fino. Viu mais uma vez a forma como sacou a pistola da cintura, o modo como o braço se levantou, como disparou três vezes sem hesitar. Michael correu para ela, mesmo sabendo que estava morta. Por vezes, desejava ter perseguido o assassino, embora soubesse que tal provavelmente lhe teria custado a vida. Em vez disso, ajoelhou-se a seu lado e abraçou-a, a cabeça dela apertada contra o peito para não lhe ver o rosto desfeito.

Começou a chover. Apanhou um táxi de volta ao hotel. Despiu-se, deitou-se e telefonou a Elizabeth. Ela deve ter percebido algo na voz do marido, pois soluçou quando se despediu e desligou. Michael sentiu uma pontada de culpa, como se tivesse acabado de traí-la.


LONDRES

Bem cedo na manhã seguinte, Michael deixou o hotel e alugou um Rover sedan metalizado numa agência da Hertz, a norte de Marble Arch. Entrou na A40 perto de Paddington Station e seguiu para oeste, contra o fluxo da hora de ponta. Ainda estava escuro e chovia ao de leve. Michael ligou o rádio e escutou as notícias das seis na BBC. Enquanto atravessava os subúrbios a noroeste de Londres, a A40 entrou na M40. A luz macilenta da alvorada foi surgindo à medida que ele subia as elevações suaves de Chilterns. O mapa fornecido pela Hertz estava fechado, em cima do banco do passageiro. Michael não precisava dele, pois conhecia bem as estradas.

A família de Sarah possuíra uma grande casa de campo em Cotswolds, na aldeia de Chipping Campden. Muros de pedra calcária, cobertos de clematite e de heras diversas, cercavam a casa. Michael passara aí vários fins-de-semana com ela, durante os meses em que estiveram juntos. O campo alterava-a, levando-a a despir a farda de couro preto do clã do Soho. Usava calças de ganga desbotadas e blusas no Inverno, e vestidos leves no Verão. De manhã, percorriam os caminhos nos arredores da aldeia, através de pastos repletos de ovelhas e de faisões. À tarde, faziam amor. No Verão, com o tempo quente, faziam amor no jardim, ocultos pelo calcário e pelas flores. Sarah preferia fazê-lo ao ar livre. Gostava da sensação de Michael dentro dela e do sol na pele clara. Desejava, em segredo, que as pessoas os vissem. Queria que o mundo soubesse como era o seu ato de amor. Queria que todos os invejassem.

Dançava, servia de modelo, lia muitos livros. Por vezes representava. Às vezes fotografava. As suas cores políticas eram atrozes e tão flexíveis como o seu corpo esguio. Era trabalhista e comunista. Era verde e anarquista. Vivia no Soho, num quarto atulhado de roupas de segunda mão e maiôs, em cima de um restaurante libanês que servia comida para fora. Ouvia os Clash e os Stones. Ouvia gravações do oceano e de sons da floresta e cantos gregorianos. Era vegetariana e o cheiro do borrego assado do restaurante deixava-a enojada. Para disfarçar o cheiro, queimava incenso e acendia velas. Da primeira vez que levou Michael para a cama, este teve a sensação incômoda de estar a fazer amor numa igreja católica.

Apresentou-o a um mundo que ele não conhecia. Levou-o a festas bizarras e a teatro experimental. Levou-o a sessões de leitura e a ver exposições. Escolheu-lhe roupas diferentes. Não dormia, a menos que primeiro fizesse amor com ele. Adorava olhar para os seus corpos à luz das velas.

- Olha só para nós - dizia. - Sou tão pálida e você tão moreno. Sou o bem e você o mal.

O trabalho dele enfadava-a e ela nunca lhe fazia perguntas. A noção de alguém correr o mundo a vender coisas parecia baralhá-la. Apenas lhe perguntava onde ia e quando regressava.

Adrian Carter era o agente de controle de Michael. Este tinha a obrigação de mencionar a relação que mantinha com Sarah a Carter e ao Departamento de Pessoal, mas eles iriam revolver-lhe o passado, investigar as tendências políticas, o trabalho, os amigos, os amantes, e talvez descobrissem coisas que Michael preferia não saber. Manteve a Agência ignorante da existência de Sarah e esta da Agência. Receava que ela o abandonasse, caso descobrisse a verdade. Tinha medo que tecesse comentários com os amigos, o que poria em perigo o seu disfarce em Londres. Estava a mentir aos patrões e à amante. Sentia-se feliz e desolado ao mesmo tempo.

Aproximava-se de Oxford. Uma van comercial Ford branca seguia-o desde há trinta quilômetros, mantendo-se sempre três ou quatro carros atrás. Era possível que a Ford se limitasse a viajar na mesma direção, mas Michael fora treinado a não acreditar em coincidências. Abrandou e deixou que o trânsito o ultrapassasse.

A Ford permaneceu à mesma distância.

Aproximou-se de uma área de serviço. Saiu da auto-estrada e estacionou perto do restaurante. A Ford seguiu-o e entrou na bomba de gasolina. O condutor saiu e fingiu ver a pressão do pneu do lado do passageiro, enquanto observava o Rover. Michael interrogou-se quem o poderia estar a seguir. Wheaton, da Estação de Londres? Graham Seymour e o MI6?

Entrou no restaurante, pediu café e uma sanduíche de bacon e ovo frito, e foi ao banheiro. Foi buscar a comida, pagou e saiu. A Ford continuava na bomba de gasolina, com o condutor a preparar-se para ver a pressão do pneu traseiro.

Michael dirigiu-se a um telefone público e ligou para o hotel onde estava hospedado. Disse à recepcionista que deixara um par de botões de punho valiosos na casa de banho. Ditou-lhe uma morada falsa em Miami, que ela prontamente anotou, enquanto Michael observava a Ford. Desligou e regressou ao Rover. Ligou o motor e afastou-se, entrando no trânsito da auto-estrada. Olhou para o espelho retrovisor enquanto comia o sanduíche.

Lá estava a Ford, três carros atrás.

O monovolume seguiu Michael até Moreton-in-Marsh, uma aldeia grande segundo os padrões de Gloucestershire, que abarcava o cruzamento da A44 e da A429. Parou num estacionamento em frente a uma série de lojas e saiu. A Ford estacionou a cinquenta metros dele. O restaurante ficava ao lado de um talho, com faisões pendurados à porta. Michael pensou em Sarah, à sua frente com um prato de feijão com arroz e puré de abóbora, a fitá-lo enquanto ele arrancava a carne dos ossos de um faisão assado. Entrou no restaurante e pediu café e um bolo à jovem rechonchuda ao balcão.

Michael reconheceu Ivan Drozdov das fotografias da Agência. Era calvo, salvo por uma franja grisalha, e o corpo alto estava debruçado sobre uma pilha de matutinos. Tinha os óculos de leitura dourados na ponta do nariz e semicerrava os olhos contra o fumo do cigarro preso aos lábios finos. Vestia uma blusa cinzenta de gola alta e um blusão verde com gola de bombazina. Um par de corgis idênticos lambiam-se ao lado das botas Wellington sujas com lama úmida.

Michael levou a comida para a mesa ao lado e sentou-se. Drozdov ergueu brevemente o olhar, sorriu e regressou aos jornais. Passaram alguns minutos, com Michael a beber café e Drozdov a ler o The Times e a fumar.

Por fim, sem levantar os olhos, Drozdov disse:

- Será que vai falar, ou vai ficar aí sentado, a incomodar-me os cães? - Chamo-me Cari Blackburn, e estava a pensar se poderíamos falar um pouco - replicou Michael, surpreendido.

- Na verdade, o seu nome é Michael Osbourne. Trabalha para o Centro de Contraterrorismo da CIA, em Langley, na Virgínia. Já foi agente de campo, até que a sua amante foi assassinada em Londres e a Agência levou-o para a sede.

Drozdov dobrou cuidadosamente o jornal e deu pedaços de bolo aos cães. - Se quiser falar, podemos ir dar um passeio - indicou. - Mas não volte a mentir-me. É insultuoso e eu reajo mal aos insultos.

- Tem noção de que está sendo vigiado, senhor Osbourne?

Caminhavam ao longo de um trilha na direção da aldeia de Aston Magna, onde Drozdov se instalara quando a União Soviética se desmoronara e a ameaça de morte por parte dos seus antigos mestres do KGB desaparecera. Era um palmo mais alto do que Michael e, tal como muitos homens altos, inclinava-se ligeiramente para se encolher. Andava com lentidão, as mãos atrás das costas, a cabeça baixa, como se procurasse algo perdido. Os cães seguiam alguns metros à frente, como se fossem contravigilância. Michael, que por natureza andava depressa, esforçava-se por acompanhar o passo desajeitado de Drozdov. Interrogou-se como teria o idoso avistado quem o seguia, pois Michael não o vira a olhar.

- Dois homens - indicou Drozdov. - Uma van Ford branca.

- Avistei-os na M-40, alguns quilômetros fora de Londres.

- Alguém sabe que veio falar comigo?

- Não - mentiu Michael. - Não vim como representante da CIA, e não pedi autorização aos ingleses. É um assunto pessoal.

- Colocou-se numa posição bastante difícil, senhor Osbourne. Se fizer alguma coisa de que eu não goste, basta-me pegar o telefone e falar com o meu agente de ligação do MI-6, para que fique em maus lençóis.

- Eu sei. Obviamente, peço que não o faça, por cortesia profissional.

- Deve ser muito importante.

- É, sim.

- Imagino que aqueles homens na van branca tenham um microfone de longo alcance. Talvez devêssemos ir para algum sítio onde não nos possam seguir. Entraram num caminho que contornava um campo de erva seca. À distância, as colinas erguiam-se até as nuvens baixas. Um rebanho de ovelhas baliu-lhes do outro lado de uma vedação. Drozdov afagou-lhes a lã espessa das cabeças ao passarem por elas. O caminho estava enlameado devido à chuva que caíra durante a noite e, depois de alguns passos, os sapatos italianos de camurça de Michael ficaram arruinados. Virou-se e olhou para trás. A van regressava a Moreton.

- Julgo que já podemos falar, senhor Osbourne. Os seus amigos parecem ter desistido.

Michael passou dez minutos a falar. Percorreu a lista de assassinatos e os atentados terroristas. O ministro espanhol em Madrid. O oficial da polícia francesa em Paris. O executivo da BMW em Francoforte. O oficial da OLP em Tunes. O empresário israelense em Londres. Drozdov ouviu com atenção, por vezes aquiescendo, outras vezes resmungando baixinho. Os cães correram pelo prado e afugentaram faisões.

- E o que quer saber, ao certo? - perguntou Drozdov, quando Michael acabou de falar.

- Quero saber se foi o KGB que eliminou esses alvos. Drozdov assobiou para chamar os cães.

- Merece um elogio, senhor Osbourne. Falhou uns quantos, mas é um belo começo.

- Portanto, os atentados foram levados a cabo pelo KGB?

- Sim, foram.

- Foi sempre o mesmo homem?

- Sempre.

- Como se chama?

- Não tinha nome, senhor Osbourne. Apenas um nome de código.

- Qual era o nome de código?

Drozdov hesitou. Desertara, traíra seu serviço, mas revelar nomes de código era o equivalente em espionagem à quebra da omertà da Máfia. - Outubro, senhor Osbourne. O nome de código era Outubro - acabou por dizer.

O sol apareceu brevemente entre as nuvens, aquecendo o campo. Michael desabotoou o casaco e acendeu um cigarro. Drozdov imitou-o, a testa franzida enquanto fumava, como se procurasse a melhor forma de começar a narrativa. Michael já lidara com muitos agentes. Sabia quando devia forçar e quando era preferível esperar e ouvir. Não tinha como pressionar Drozdov, que apenas falaria se quisesse.

- Ao contrário do que se pensa no Ocidente, não éramos muito bons a matar pessoas - acabou Drozdov por dizer. - Sim, no interior da União Soviética éramos muito eficientes. Mas fora do bloco soviético, no Ocidente, éramos terríveis no que dizia respeito a assuntos sujos. Um dos nossos melhores assassinos, Nikolai Khokhlov, mudou de ideias quando estava a tentar matar um líder da resistência ucraniana e desertou. Tentamos matá-lo e também fracassamos. Durante muito tempo, o Politburo desistiu do assassinato como ferramenta do ofício. Drozdov largou a beata do cigarro para a lama e pisou-a com a ponta da bota. - Isso mudou no final dos anos 60. Olhamos para o Ocidente e vimos conflitos internos um pouco por toda a parte: os irlandeses, os bascos, os Baader-Meinhof alemães, os palestinos. Além disso, tínhamos também os nossos próprios problemas para resolver, os dissidentes, os desertores, sabe como é. Tal como sabe, os assassinatos eram geridos pelo Departamento Cinco do Primeiro

Diretorado Principal. O Departamento Cinco queria um assassino muito bem treinado, com base permanente no Ocidente, que levasse a cabo mortes em cima da hora. Esse assassino era o Outubro.

- Quem é ele? - indagou Michael.

- Entrei para o Departamento Cinco depois de ele estar integrado no Ocidente. O seu arquivo não revelava nada sobre a verdadeira identidade. Havia boatos, é claro. Dizia-se que era filho ilegítimo de uma patente bastante elevada do KGB: de um general, ou talvez do próprio presidente. Não passavam de boatos.

Foi acolhido muito novo pelo KGB e recebeu uma educação e um treino intensivos. Em 8, ainda adolescente, foi enviado para o Ocidente através da Checoslováquia, fazendo-se passar por refugiado. Acabou por se mudar para Paris. Fingiu-se um jovem desalojado e foi recebido por um orfanato católico. Ao longo dos anos desenvolveu uma identidade francesa à prova de tudo. Frequentou escolas francesas, tinha um passaporte francês, tudo. Até cumpriu o serviço militar no exército francês.

- E depois começou a matar.

- Acima de tudo, era utilizado para promover a instabilidade no Ocidente, para levantar problemas aos governos ocidentais. Matava de ambos os lados do muro. Agitava as águas, por assim dizer. Lançava achas para a fogueira. E era muito bom no que fazia. Orgulhava-se de nunca ter falhado uma única missão. Não utilizava as ferramentas que lhe púnhamos à disposição para lhe facilitar o trabalho, as balas com ponta de cianeto, ou as armas que libertavam gás venenoso. Desenvolveu o seu método de matar muito próprio.

- Três tiros no rosto.

- Brutal, eficaz, bastante dramático.

Michael vira os resultados em primeira-mão. Não precisava que Drozdov descrevesse o efeito do método do assassino.

- Ele tinha um agente responsável? - perguntou Michael, com um tom de voz sereno.

- Sim, apenas trabalhava com um agente, um homem chamado Mikhail Arbatov. Cheguei a tentar substituir Arbatov, mas o Outubro ameaçou matar o novo elemento. Arbatov era o mais próximo que o Outubro tinha de uma família. Só confiava em Arbatov e, mesmo assim, apenas o suficiente.

- Há pouco tempo foi assassinado em Paris um Mikhail Arbatov.

- Sim, li sobre isso. A polícia disse que deve ter sido morto por delinquentes.

O relato do jornal descreve-o como sendo um diplomata russo aposentado a viver em Paris. Se há uma coisa que aprendi nesta vida, senhor Osbourne, é que não se pode acreditar em tudo o que se Le nos jornais.

- Quem matou Arbatov?

- O Outubro, é claro.

- Por quê?

- É uma boa pergunta. Talvez Arbatov soubesse demasiado sobre alguma coisa.

Quando o Outubro se sente ameaçado, mata. É a única coisa que sabe fazer.

Exceto pintar. Dizem que tem bastante talento.

- Começou a trabalhar por conta própria? Agora é assassino profissional?

- Dos melhores do mundo, bastante procurado. Arbatov era o seu agente. Enriqueceram bastante em conjunto. Ouvi dizer que havia muita inveja pela forma como Arbatov se aproveitara dos talentos do Outubro. Arbatov tinha muitos inimigos, muita gente que lhe desejava mal. Mas, se está à procura de quem o matou, talvez começasse pelo Outubro.

O sol voltou a desaparecer e as nuvens engrossaram, negras com a promessa de chuva. Passaram por uma mansão de pedra calcária, cercada por relvados amplos. Michael contou-lhe sobre Colin Yardley. Sobre a gravação vídeo da morte. Sobre Astrid Vogel.

Drozdov abanou lentamente a cabeça.

- Imaginaria que alguém com o ofício de Yardley soubesse os perigos de ter uma câmara no quarto. Tenho de admitir que é uma das consequências da velhice que não me incomodam. O eterno desejo pelo corpo da mulher deixou-me finalmente em paz. Tenho os meus cães, os meus livros, e a minha paisagem bucólica de Cotswolds.

Michael riu em silêncio.

Em tempos trabalhou com a Fação do Exército Vermelho. Foi durante essa missão que conheceu Astrid Vogel. Ela passou muitos anos escondida, em Tripoli, em Damasco, nas montanhas Shouf. Pagou muito caro pelo idealismo. Houve qualquer coisa que a voltou a atrair para este mundo. Imagino que tenha sido o dinheiro. - Porque iria o Outubro matar Colin Yardley?

Talvez devesse reformular essa pergunta: O que fez Colin Yardley para que alguém contratasse o melhor assassino do mundo para o matar? Talvez tenha adquirido um míssil Stinger a um traficante de armas do mercado negro chamado Farouk Khalifa, após o que o entregou aos homens que abateram o Voo 002, pensou Michael.

Começou a chuviscar e o tempo arrefeceu. Os cães rodearam as botas de Drozdov, ansiosos por voltar a casa, para junto da lareira. À frente deles surgiu a aldeia de Aston Magna, um aglomerado de casas espalhadas à volta do cruzamento de duas estradas secundárias.

- Oferecia-lhe boleia de volta a Moreton, mas não conduzo desculpou-se Drozdov. - Obrigado, mas vou a pé.

- Sinto muito pelos sapatos - indicou, apontando a bengala ao calçado arruinado de Michael. - Não foi uma muito boa escolha para uma caminhada através de Cotswolds, no inverno.

- Um pequeno preço a pagar pela ajuda que me deu.

Michael parou de andar. Drozdov continuou mais alguns metros, após o que se deteve e virou-se.

- Houve uma morte que ainda não referiu - comentou. O assassinato de Sarah Randolph. Imagino que não tenha a ver com o caso em que está envolvido neste momento. Admiro o seu profissionalismo, senhor Osbourne.

Michael não disse nada, limitando-se a aguardar.

Ela era uma comunista empenhada, uma revolucionária - explicou, abrindo os braços e olhando o céu. - Que Deus nos proteja dos idealistas. A sua Sarah era amiga dos oprimidos do mundo: dos irlandeses, dos árabes, dos bascos. Trabalhou de bom grado para a minha agência. Conhecíamos a verdadeira identidade do Michael. Sabíamos que enviava agentes de infiltração contra as organizações guerrilheiras próximas da nossa causa. Queríamos saber mais acerca dos seus movimentos, por isso colocamos Sarah Randolph no seu caminho. Michael sentiu a cabeça às voltas. O coração acelerou. Tinha dificuldade em ouvir. Drozdov parecia estar a afastar-se dele, a transformar-se numa linha vertical ao fundo de um túnel comprido e escuro. Tentou recuperar o controle das emoções. Receava que Drozdov se apercebesse e se calasse. Queria ouvir tudo. Depois de tantos anos, queria a verdade, por mais dolorosa que fosse.

- Sarah Randolph cometeu um erro terrível - continuou Drozdov. - Apaixonou-se pelo alvo. Disse aos agentes de ligação que pretendia desistir. Ameaçou contar-lhe tudo. Ameaçou entregar-se à polícia e confessar. O oficial de controle decidiu que ela era demasiado instável para prosseguir com a missão. O Centro de Moscou quis eliminá-la, e eu fiquei encarregue do caso. Talvez lhe deva um pedido de desculpas, mas imagino que compreenda que não foi nada pessoal.

Michael debateu-se para tirar um cigarro do maço e levá-lo aos lábios. As mãos tremiam-lhe. Drozdov acercou-se e acendeu o cigarro com um isqueiro de prata com bastante uso.

- Julguei que merecia a verdade, senhor Osbourne, razão pela qual lhe contei tudo o resto. Mas acabou. Faz parte do passado, tal como a Guerra Fria. Regresse à sua esposa e esqueça Sarah Randolph. Ela nunca foi real. E, faça o que fizer, mantenha-se alerta - acrescentou, com os lábios junto ao ouvido de Michael. - Se for atrás do Outubro e cometer um erro que seja, ele mata-o tão depressa que nem vai dar por isso.

Michael regressou a Moreton sob chuva intensa. Quando chegou à aldeia, estava ensopado até os ossos e dormente com o frio. Dirigiu-se ao Rover no estacionamento e fingiu deixar cair as chaves ao tentar abrir a porta. Pôs-se de gatas e perscrutou rapidamente a parte inferior da carroçaria. Não avistou nada de invulgar, por isso entrou e ligou o motor. Colocou o aquecimento no máximo, fechou os olhos e apoiou a testa no volante. Não sabia se a devia odiar por lhe ter mentido, se amá-la ainda mais, por ter querido desistir e ter acabado por pagar com a vida. Imagens dela percorreram-lhe a mente. Sarah a flutuar na sua direção, a sorrir, uma saia comprida sobre botas de camurça. A pele luminosa, de um tom dourado à luz das velas. O corpo arqueado na direção do seu. O rosto esfacelado!

Esmurrou o painel e arrancou com o carro, os pneus a derraparem no pavimento molhado. A van Ford branca seguiu-o até Michael devolver o Rover no

Aeroporto de Heathrow.

Michael apanhou o ônibus do serviço de aluguer de carros até o Terminal

Quatro e correu para o interior. A fila para o check-in no balcão da TransAtlantic Airlines era interminável, por isso procurou um telefone e ligou para o gabinete de Elizabeth. Foi o secretário, Max Lewis, quem atendeu e pediu a Michael que aguardasse, enquanto ia chamar Elizabeth a uma reunião. Michael pensou no que lhe dizer. Decidiu não lhe contar nada, por enquanto. Era um assunto demasiado complicado, demasiado emocional, para discutir ao telefone. Elizabeth atendeu.

- Estou no aeroporto. Vou apanhar o avião daqui a pouco, e queria apenas dizer que te amo - disse Michael.

- Está tudo bem, Michael? Pareces incomodado com alguma coisa.

- Foi uma manhã muito comprida, só isso. Conto-te tudo quando chegar a casa, logo à noite. Como te sentes? Estás pronta para amanhã?

- O mais possível. Neste momento estou a tentar não pensar muito nisso. Tenho uma pilha de coisas para despachar ainda hoje, e isso ajuda.

Michael virou-se para confirmar se a fila para o check-in tinha reduzido. Uma centena de pessoas aguardava em fila, como refugiados num centro de processamento, a bagagem aos pés, os rostos exasperados. Três jovens entraram no terminal. Todos usavam um boné de basebol. Todos seguravam um saco de couro preto. Estavam vestidos de modo informal, com calças de ganga e sapatos de tênis, cabelo escuro por baixo dos bonés, pele cor de azeitona.

Michael observou-os. Deixou de ouvir o que Elizabeth estava a dizer. Os três homens pararam e pousaram os sacos. Agacharam-se ao lado dos sacos e abriram-nos.

- Espera um pouco, Elizabeth - disse Michael. - Michael, o que foi?

Michael não respondeu, limitou-se a observar.

- Responde-me, Michael, que raio! O que se passa?

Em uníssono, os homens levaram as mãos às palas dos bonés e os rostos desapareceram atrás de véus de seda negra.

- Baixem-se! Baixem-se! - bradou Michael. Largou o receptor.

Os homens levantaram-se, de armas automáticas e granadas em riste.

- Armas! Armas! Baixem-se! - gritou Michael.

Os terroristas lançaram granadas para a multidão e começaram a disparar.

Michael correu na direção deles, aos berros.

Na baixa de Washington, Elizabeth gritava para o telefone. Ouviu Michael a gritar, depois tiros, finalmente explosões. Depois a linha ficou em silêncio. - Ai, meu Deus, Michael! Michael!

Procurou o controle remoto, ligou o televisor do gabinete e sintonizou a CNN. Estava a meio de uma qualquer reportagem idiota sobre os benefícios dos abacates para a saúde.

Percorreu o gabinete. Mordeu as unhas. Max sentou-se ao seu lado e esperou, dando-lhe a mão. Dez minutos depois, Elizabeth mandou-o embora e fez algo que não fazia há vinte anos.

Fechou os olhos, juntou as mãos e rezou.


LONDRES

No gabinete de primeiro andar da sua casa em St. John's Wood, o Diretor telefonou a Mitchell Elliott a partir de uma linha segura.

- Creio que o senhor Osbourne pode revelar-se um problema, senhor Elliott. Ontem à noite teve uma conversa interessante com um homem do Serviço de Espionagem, a qual escutamos com um microfone direcional localizado na rua. Esta manhã encontrou-se com um certo Ivan Drozdov, um desertor da KGB que em tempos supervisionou as atividades do nosso assassino. Do outro lado da linha, Elliott suspirou profundamente.

- Escusado será dizer que ele sabe muita coisa, e provavelmente desconfia de muito mais - continuou o Diretor. - O nosso senhor Osbourne é um adversário bastante valoroso. Na minha opinião, não o devemos menosprezá-lo.

- Não o menosprezo, Diretor. Pode ter a certeza disso.

- O que se passa no seu lado?

O Osbourne e a mulher encontraram umo disquete com os apontamentos de Susanna Dayton e uma cópia do artigo. Ao que parece, conseguiram quebrar o código de segurança. Entregaram o material aos editores do Washington Post.

- Um desenvolvimento infeliz - comentou o diretor, tossicando. - Parece-me que a Sra. Osbourne também se encontra em posição de criar problemas. - Já a mandei vigiar.

- Espero que desta vez seus homens se comportem de uma forma mais profissional. No presente estado dos acontecimentos, não precisamos que a melhor amiga de Susanna Dayton também apareça morta. Já o marido, é outro caso. Durante a carreira fez a sua dose de inimigos. Seria ocasional, caso um desses inimigos aparecesse e se vingasse. - Quanto a isso não há problema.

- Tem a bênção da Sociedade, senhor Elliott.

- Obrigado, Diretor.

- Enquanto este assunto se mantiver no campo do financiamento político, imagino que se consiga proteger. Vai ser embaraçoso e sujo, é claro. Talvez lhe surja uma multa pesada, alguma especulação desconfortável por parte dos meios de comunicação, mas o seu projeto vai sobreviver. Contudo, se o senhor Osbourne descobrir algo que se aproxime da verdade... Bem, creio que não preciso de explicar-lhe as consequências.

- É claro que não, Diretor. E quanto a Ivan Drozdov, o desertor? Representa algum problema?

- Não tenho certeza, mas não estou disposto a correr riscos. O assunto Drozdov está neste momento sendo tratado.

- Uma jogada sábia.

- Também achei. Boa tarde, senhor Elliott.

Em Aston Magna, Ivan Drozdov estava sentado à lareira, a ler à luz fraca que entrava pelas portas de correr, quando ouviu bater. Os corgis saltaram do cesto e correram até a porta da casa, a ladrar em fúria. Drozdov seguiu-os lentamente, as pernas rígidas por ter estado sentado. Abriu a porta e viu um jovem de macacão azul, o rosto como o de um menino do coro.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Drozdov. O rapaz puxou de uma arma com silênciador.

- Faça as pazes com Deus - indicou. Drozdov retesou-se.

- Sou ateu - replicou calmamente.

- É uma pena - retorquiu o jovem.

Ergueu a pistola e alvejou Drozdov duas vezes no coração.


AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

 

O pistoleiro mais próximo de Michael disparava furiosamente para a multidão. Avistou Michael a investir, apontou a arma automática e disparou. Michael atirou-se para trás de um quiosque de câmbio, com balas a fazerem ricochete no chão a seu lado. Duas pessoas agachavam-se com ele, uma mulher que gritava em alemão e um padre francês que murmurava o Pai-nosso.

O terrorista perdeu o interesse em Michael e voltou a apontar a arma aos passageiros indefesos. Michael espreitou por trás do quiosque. O ataque começara há menos de quinze segundos, mas para Michael, agachado por trás do quiosque, parecia uma eternidade. O chão estava coberto de mortos e de moribundos, e de pessoas aterrorizadas que tentavam em vão proteger-se atrás de bagagens e de balcões.

Raios partam! Onde está a força de segurança? pensou Michael.

Um dos atacantes fez uma pausa para recarregar. Levou a mão à mala, retirou a cavilha de outra granada e atirou-a para trás do balcão da TransAtlantic. O edifício estremeceu com o abalo. Michael viu um par de corpos a serem lançados pelo ar, os membros despedaçados. O ar tresandava com o cheiro de fumo e de sangue. Os gritos das vítimas quase abafavam o matraquear das armas automáticas.

Michael desejou ter uma arma. Olhou para a direita. Quatro agentes da força antiterrorista da polícia britânica assumiam posições de disparo atrás de outro balcão. Dois deles levantaram-se, apontaram e dispararam. A cabeça de um dos pistoleiros explodiu numa nuvem cor-de-rosa de sangue e de massa encefálica. Os dois terroristas restantes responderam ao fogo e alvejaram um dos agentes. Os policiais ergueram-se por detrás da barreira, armas disparando. Um segundo pistoleiro tombou, o corpo perfurado pelas balas.

O último terrorista desistiu da luta. Recuou até a porta, sem nunca deixar de disparar. Atravessou a porta automática, com vidros a estilhaçarem-se à sua volta.

Michael podia ver um quarto elemento da equipe ao volante do carro de fuga, um Audi metalizado. Levantou-se, passou por uma série de portas paralelas e correu pelo corredor de embarque, saltando por cima de viajantes e de funcionários do aeroporto deitados no chão.

O terrorista ao volante acelerava nervosamente o motor. Meia dúzia de seguranças corria pelo terminal, as armas em riste. Michael corria agora pelo passeio, as mãos estendidas.

O último pistoleiro encontrava-se a vinte metros de distância, prestes a entrar para o carro. O condutor escancarou a porta traseira. O terrorista estava quase a entrar para o carro quando ergueu o olhar e viu Michael a correr na sua direção. Virou-se e tentou empunhar a arma automática.

Michael baixou o ombro e derrubou o pistoleiro. O impacto fez com que o atacante largasse a arma.

Michael agarrou o homem pelo pescoço e golpeou-o brutalmente no rosto. O primeiro murro partiu-lhe o nariz, o segundo fraturou-lhe o malar e deixou-o inconsciente.

O terrorista ao volante abriu a porta e começou a sair do carro, a pistola automática na mão enluvada. Michael procurou freneticamente a metralhadora caída. Agarrou-a e disparou através do para-brisa do Audi. O pistoleiro ainda conseguiu disparar dois tiros ao acaso, antes de cair no passeio, sem vida. Com o coração aos saltos, Michael viu um lampejo de uma cor escura e aquilo que pensou ser uma arma. Girou sobre o joelho e apontou a um dos agentes de segurança ingleses.

- Largue a arma com calma, amigo - disse calmamente o policial. - Já acabou tudo. Largue a arma.

Wheaton, o Chefe da Estação de Londres da CIA, foi buscar Michael ao Aeroporto de Heathrow e levou-o para a cidade no banco de trás de um sedan do governo, conduzido por um motorista. Michael encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos. Fora interrogado durante uma hora por um oficial da polícia britânica e por dois homens do MI5. Durante algum tempo, Michael manteve a cobertura: um empresário americano que regressava a Nova York após uma breve reunião em Londres. Por fim, chegou alguém da embaixada. Michael pediu para falar com Wheaton, e este telefonou para a polícia e contou a verdade.

Michael nunca matara ninguém e não estava preparado para a reação que teve. Nos momentos que seguiram o combate, sentiu uma satisfação selvagem, um entusiasmo estranho que se assemelhava à sede de sangue. Os terroristas eram homens malignos que tinham chacinado pessoas inocentes. Mereciam uma morte violenta e dolorosa. Estava satisfeito por ter eliminado um deles e por ter esmurrado o rosto do outro. Passara a sua carreira a perseguir terroristas, usando apenas o seu inteleto e o seu talento para as armas. Finalmente pudera utilizar os punhos e uma arma, com efeito, uma arma que servira para massacrar pessoas inocentes. Sentia-se bem.

Começava agora a ser dominado pela exaustão, que lhe pressionava o peito e lhe fazia latejar a cabeça. Com a adrenalina eliminada das veias, as mãos já não lhe tremiam. Era acometido por ondas de náusea. Fechou os olhos e viu sangue a voar, cabeças a explodir, gritos e o matraquear das armas automáticas. Viu o condutor de fuga a tombar para trás, sentiu a arma a recuar-lhe na mão. Tirara uma vida. Uma vida de alguém mau, mas uma vida, não obstante. Já não se sentia bem. Sentia-se sujo.

Michael esfregava a mão direita.

- Talvez devesse ver o que se passa - comentou Wheaton, como se Michael sofresse de uma lesão antiga. Michael ignorou-o.

- Qual o número de baixas?

- Trinta e seis mortos, mais de cinquenta feridos, alguns com bastante gravidade. Os ingleses esperam que o número de mortes aumente.

Americanos?

- Pelo menos vinte dos mortos são americanos. A maior parte das pessoas que aguardava pelo check-in pretendia embarcar no voo para Nova York. Os restantes mortos são ingleses. Já agora, falei com a sua esposa. Ela sabe que está bem.

Michael lembrou-se de como a deixara. Num momento estavam a falar, no outro largara o telefone e começara a gritar. Interrogou-se o que teria escutado Elizabeth. Teria ouvido tudo, as explosões, os tiros, os gritos, ou teria a linha sido cortada? Imaginou-a no gabinete, preocupadíssima, e sentiu-se mal.

Queria desesperadamente falar com ela, mas não à frente de Wheaton.

Tinham entrado em Londres e seguiam a leste de Cromwell Road.

- Como é óbvio, as hienas da mídia estão ansiosas por falar com você - avisou Wheaton. - As testemunhas contaram-lhes sobre o herói de fato que matou um dos terroristas e subjugou outro. A polícia está a dizer-lhes que o homem deseja permanecer anônimo, pois receia uma retaliação por parte da Espada de Gaza. Por agora ainda acreditam, mas sabe Deus quantos policiais de Londres têm conhecimento da verdade. Basta que um deles dê com a língua nos dentes para termos um problema bastante sério.

- A Espada de Gaza já reivindicou o atentado?

- Enviaram um fax para o The Times há alguns minutos. Os ingleses estão a analisá-lo e já enviamos uma cópia para o CTC de Langley. Parece autêntico.

Deve ser revelado aos media em breve.

- Uma vingança pelos ataques aéreos aos campos de treino?

- É claro.

Dirigiram-se para norte por Park Lane, depois por Mayfair, para Grosvenor Square. O carro encaminhou-se para a entrada principal da embaixada americana. Michael gostaria que pudessem utilizar uma entrada subterrânea, mas talvez já não fizesse grande diferença. Saiu do carro. Sentia-se tonto e doía-lhe o joelho. Devia tê-lo magoado durante o confronto, mas a adrenalina ocultara a dor até aquele momento. Os Marines colocaram-se em sentido e fizeram continência quando Michael entrou no complexo da embaixada, com Wheaton a seu lado. O embaixador e os adidos aguardavam, com os restantes funcionários da grande embaixada atrás deles. O embaixador começou a aplaudir, sendo imitado pelos outros. Michael passara toda a carreira a trabalhar nas sombras. Os louvores eram atribuídos em segredo. Quando tinha um dia bom no gabinete, não podia contar a ninguém, nem mesmo a Elizabeth. Agora, os aplausos dos membros da embaixada envolviam-no e sentiu um arrepio na nuca.

O embaixador avançou e levou a mão ao ombro de Michael.

- Imagino que neste momento não tenha grande vontade de celebrar, mas quero que saiba que estamos muito orgulhosos de si.

- Obrigado, senhor embaixador. Fico muito grato.

- Há mais alguém que deseja falar com você. Siga-me, por favor.

Quando Michael entrou na sala de comunicações, entre Wheaton e o embaixador, podia ver o selo presidencial na tela maior. O embaixador pegou um telefone, murmurou algumas palavras para o bocal e desligou. Segundos depois, o selo presidencial dissolveu-se e James Beckwith apareceu, sentado numa poltrona branca, ao lado da lareira da Sala Oval, vestindo uma camisa e uma blusa de lã.

- Michael, não há palavras que possam expressar a gratidão e o orgulho que sentimos - começou o Presidente a dizer. - Pondo em risco a sua própria integridade física, dominou sozinho um terrorista da Espada de Gaza e matou outro. A sua ação poderá ter salvo inúmeras vidas e desferiu um rude golpe nesse bando de covardes. Vou insistir para que receba a mais alta das condecorações. Apenas gostaria de a poder colocar pessoalmente no seu peito, à frente da nação, pois hoje o seu país ficaria bastante orgulhoso de si. Michael esboçou um sorriso.

- Estou habituado a trabalhar em segredo, Senhor Presidente, e, se não se importar, prefiro continuar assim. Beckwith exibiu um sorriso rasgado.

- Já imaginava que assim fosse. Além disso, é demasiado valioso para ser desperdiçado numa fotografia oportunista. Graças ao meu chefe de gabinete, já tenho quanto baste.

A câmara fez um plano mais alargado, revelando os outros homens sentados à volta do Presidente: o Chefe de Gabinete Vandenberg, o diretor da CIA Clark, o Conselheiro para a Segurança Nacional Bristol. Num dos extremos da tela estava um homem pequeno de terno de grife que lhe assentava mal, as mãos cruzadas sobre o colo, o rosto pouco visível, como qualquer bom espião que se preze. Michael soube de imediato que se tratava de Adrian Carter.

- Peço desculpa por interrompê-lo, Senhor Presidente - disse Michael. - Será que a câmara poderia deslocar-se um pouco para a esquerda? Não consigo ver aquele homem minúsculo sentado no divã.

A câmara moveu-se, revelando o rosto de Carter. Como já era habitual, parecia com sono e enfadado, mesmo estando sentado na Sala Oval, com o Presidente e a respectiva equipe de segurança nacional à sua volta.

- Ora vejam só, como é que deixaram entrar na Sala Oval um bronco como o Adrian Carter? - gracejou Michael. - Tenha cuidado, Senhor Presidente. Ele rouba cinzeiros e toalhas de hotel. Se fosse a si, punha-o sob vigilância. -Já tirou uma dúzia de pacotes de M&M presidenciais - replicou Beckwith, claramente divertido. Carter acabou finalmente por sorrir.

- Se vais começar a agir como uma espécie de herói americano, fico com o estômago às voltas. Lembra-te de que estou com você desde o início, Michael. Sei onde os corpos estão enterrados, literalmente. Se fosse a ti, tinha cuidado.

- Michael, precisamos de falar sobre outra coisa - disse Beckwith, quando as gargalhadas esmoreceram. - Vou deixar que o Carter e o diretor Clark o informem dos pormenores.

- Vou ser direto, Michael - começou Clark.

O diretor da CIA era um político, um antigo senador do New Hampshire que se orgulhava do fato de falar como uma pessoa normal. Como resultado, o léxico do mundo da espionagem deixava-o constantemente baralhado. Era alto e magro, com caracóis grisalhos rebeldes e usava laço. Parecia mais adequado a uma posição catedrática em Dartmouth do que à direção de Langley.

- Por mais estúpido que pareça, a Espada de Gaza gostaria de se encontrar connosco - Clark pigarreou. - Deixe-me ser mais específico. A espada de Gaza não se quer encontrar connosco, quer encontrar-se com você.

Como fizeram o pedido?

. Através da nossa embaixada em Damasco, há cerca de uma hora. ?- Porquê eu?

- Ao que parece, sabem exatamente quem é, e qual o seu trabalho. Dizem que se querem encontrar com o homem que mais sabe acerca do grupo, e essa pessoa é o Michael.

- Como irá processar-se o encontro?

- Amanhã de manhã, no primeiro ferry entre Dover e Calais. Querem que espere no convés, a meio do barco, e o representante deles fará a abordagem. Sem observadores, sem aparelhos de gravação, sem câmaras. Se virem alguma coisa de que não gostam, o encontro fica sem efeito.

- Quem vai ser o representante deles?

- Muhammad Awad.

- O Awad é o segundo membro mais importante da organização. O simples fato de o quererem colocar a bordo de um ferry e cara a cara com um agente da CIA é notável.

- Por isso mesmo, deve ser bom demais para ser verdade interveio Carter, enquanto a câmara fazia uma panorâmica para captar a sua imagem. - Não gosto disto. Vai contra todas as nossas regras quanto a encontros deste gênero. Somos nós que controlamos o local. Nós estabelecemos as condições. Mais do que ninguém, devia saber disso.

- Imagino que seja contra este encontro - disse Michael.

- Cento e dez por cento.

- Gostaria de ouvir sua reação, Michael - adiantou Beckwith.

- Adrian tem razão, Senhor Presidente. Em geral, não nos encontramos com terroristas de renome em situações como esta. A doutrina da Agência diz que somos nós a controlar o encontro: a data, o local, as regras básicas. Posto isto, creio que neste caso devemos esquecer as regras.

- E se o objetivo for assassiná-lo?

Se a Espada de Gaza me quisesse morto, haveria formas muito mais simples de o fazer, e não preparar um encontro elaborado, a bordo ao ferry entre Dover e Calais. Receio bem que bastaria enviarem um atirador para Washington, que esperasse à porta da sede.

- Bem visto - admitiu Clark.

- Julgo que apenas querem falar - continuou Michael. - E julgo que seríamos tolos se não escutássemos o que eles têm a dizer.

- Não concordo, Michael - discordou Carter. - Estamos a falar de um dos piores grupos terroristas em atividade. Eles falam todos os dias com as suas ações. Muito sinceramente, estou-me borrifando para aquilo que podem ter para dizer. - Carter olhou para Beckwith e disse: - Sinto muito pela linguagem, Senhor Presidente.

- Eu avisei-o de que ele não era uma pessoa decente, Senhor Presidente - disse Michael.

O conselheiro para a Segurança Nacional William Bristol esperou que as gargalhadas esmorecessem.

- Acho que vou apoiar o Michael, Senhor Presidente. É verdade, Muhammad Awad é um terrorista perigoso que não merece uma audiência só porque a pede. No entanto, muito sinceramente, gostaria de ouvir o que tem a dizer. Este encontro pode ser proveitoso. Certamente poderá dar à CIA informações preciosas sobre os elementos e sobre a maneira de pensar do grupo. E concordo com o Michael noutro ponto: se a Espada de Gaza o quiser matar, há maneiras mais fáceis de o conseguir.

O Presidente dirigiu-se a Vandenberg. - Qual é a sua opinião, Paul?

Detesto ir contra si, Bill, pois a política externa é a sua especialidade e não minha, mas julgo que não temos nada a ganhar com um encontro com o líder de um bando de vilões sanguinários como a Espada de Gaza. O Adrian tem razão: a Espada de Gaza fala com ações e não com palavras. E temos de pensar noutra coisa. Não gostaria de ter de explicar ao povo americano por que motivo nos encontramos com Muhammad Awad numa altura como esta. A forma como tem lidado com a crise tem sido exemplar e os Americanos já o recompensaram. Não gostaria de ver essa boa vontade desperdiçada só porque um terrorista como Muhammad Awad quis trocar dois dedos de conversa.

Beckwith caiu num silêncio pensativo. Michael sabia que não era bom sinal. Nunca estivera na presença do Presidente, mas já ouvira histórias sobre o poder de Paul Vandenberg. Se este não quisesse que o encontro tivesse lugar, provavelmente o encontro não se realizaria.

Por fim, Beckwith olhou para a câmara e dirigiu-se a Michael em Londres, e não aos homens sentados à sua volta.

- Michael, se estiver disposto a avançar com isto, gostaria de saber o que Muhammad Awad tem a dizer. Sei que vai comportar riscos, e sei que o Michael é casado.

- Vou encontrar-me com ele - respondeu Michael simplesmente.

Muito bem - declarou Beckwith. - Desejo-lhe muito boa sorte. Falamos amanhã. Depois, a imagem de Washington desvaneceu-se.

LONDRES

O embaixador permitiu que Michael utilizasse o seu gabinete para telefonar a Elizabeth, em Washington. Michael ligou para o número privado, mas foi Max, o secretário, quem atendeu. Mostrou-se aliviado ao ouvir a voz de Michael e depois explicou que Elizabeth já partira para Nova York e que poderia ser contatada mais tarde, no apartamento do pai na Quinta Avenida. Michael sentiu uma pontada de fúria momentânea - como podia ela ter saído do gabinete sem esperar para lhe ouvir a voz? - mas depois sentiu-se um tolo. Saíra mais cedo do trabalho pois de manhã iria extrair e fertilizar os óvulos no Cornell Medical Center, em Nova York. Durante a confusão do atentado, Michael esquecera-se completamente. E concordara em encontrar-se com Muhammad Awad no meio do Canal da Mancha, o que atrasaria a sua chegada a Nova York mais dois dias. Elizabeth ficaria furiosa, e com toda a razão. Michael disse a Max que lhe telefonaria mais tarde para Nova York e desligou.

Na verdade, Michael ficou aliviado por não ter falado com Elizabeth. Não queria ter uma conversa como aquela numa linha monitorizada da embaixada. Dirigiu-se ao gabinete de Wheaton e encontrou-o sentado à secretária, a apertar uma bola de tênis, um Dunhill entre os lábios exangues.

- Perdi a mala em Heathrow - explicou Michael. - Tenho de fazer umas compras antes que as lojas fechem.

Por acaso, não pode ir - contrapôs Wheaton com desdém. Para começar, não gostava que Michael estivesse a trabalhar no seu território. O fato de Michael ser a coqueluche do momento também não ajudava. - O Carter quer vê-lo quieto e seguro. Temos uma casa de segurança perto de Paddington Station. Vai ver que é muito confortável.

Michael resmungou consigo mesmo. As casas de segurança da Agência eram o equivalente na espionagem a um hotel barato. Conhecia muito bem o apartamento de Paddington Station. Utilizara-o ao longo dos anos para esconder vários agentes de penetração assustados. A última coisa que ele queria era passar lá a noite como hóspede e não como ama-seca. Michael sabia que não valia a pena resistir. Ia encontrar-se com Muhammad Awad contra a vontade de Carter e não queria enfurecê-lo ainda mais, reclamando por ter de passar uma noite na casa de segurança de Paddington.

Continuo a precisar de roupa - insistiu Michael.

- Faça uma lista e eu mando alguém comprar.

- Preciso de apanhar ar. Preciso de fazer alguma coisa. Se tiver de passar as próximas doze horas trancado numa casa de segurança a ver televisão, vou dar em louco.

Claramente irritado, Wheaton levantou o receptor do telefone interno e murmurou algumas palavras ininteligíveis para o bocal. Momentos depois surgiram dois agentes à porta, vestidos com ternos cinza-claro idênticos.

- Cavalheiros, o senhor Osbourne gostaria de passar a tarde no Harrods.

Garantam que não lhe acontece nada.

- Porque não envia um par de Marines fardados? - queixou-se Michael. - E, já agora, a Marks and Spencer serve perfeitamente.

Apanharam um táxi para Oxford Street, um dos agentes sentado ao lado de Michael no banco, o outro apertado num banco desdobrável. Michael entrou na Marks & Spencer e comprou dois pares de calças de bombazina, dois pulôveres de algodão, uma blusa cinzenta de lã, roupa interior e peúgas, e um casaco verde impermeável. Os vigilantes seguiram-no, enquanto reviravam pilhas de blusas e fileiras de ternos como um par de comunistas na sua primeira viagem ao Ocidente capitalista. De seguida entrou numa drogaria e comprou artigos de higiene: lâminas e creme de barbear, pasta e escova de dentes,

desodorizante. Queria andar, por isso levou as compras ao longo de Oxford Street, a olhar para as montras como um empresário enfadado a matar tempo, sempre com o instinto a fazê-lo olhar para trás, em busca de perseguidores. Não viu ninguém, salvo os homens da Agência, vinte metros mais atrás.

Chuviscava. O lusco-fusco caiu como um véu. Michael abriu caminho por entre a multidão que entrava e saía da estação de metro de Tottenham Court Road. Adorava o cheiro do final de tarde de Outono em Londres. Chuva no passeio. Gases dos escapes. Cerveja e cigarros nos pubs. Lembrava-se de noites como aquela, em que saía do gabinete com o seu terno azul e o sobretudo creme de um vendedor, dirigindo-se ao Soho para se encontrar com Sarah no café, ou no bar que ela frequentava, cercada por bailarinos, por escritores, ou por atores. Michael era um estranho nesse mundo, um símbolo da convenção e de tudo o que desprezavam, mas, na presença deles, Sarah apenas tinha olhos para si. Ignorava as regras românticas do clã. Dava-lhe a mão. Beijava-lhe os lábios. Partilhava intimidades sussurradas e recusava-se a divulgá-las, quando interrogada.

Ao atravessar Shaftesbury Avenue, Michael interrogou-se quanto disso seria verdade, e o que não passaria de invenção. Tê-lo-ia amado? Teria representado desde o início? Porque teria pedido aos russos para desistir? Imaginou Sarah no apartamento caótico, o corpo a subir ao seu encontro à luz das velas, o cabelo longo a cair-lhe sobre os seios. Sentiu o aroma do cabelo, do hálito, saboreou o sal na pele translúcida. O ato de amar fora religioso. Caso fosse mentira, Sarah Randolph era a melhor agente que alguma vez encontrara. Interrogou-se se ela teria descoberto algo valioso. Talvez devesse tê-la declarado ao Departamento de Pessoal. Eles teriam investigado os seus antecedentes, tê-la-iam colocado sob vigilância, descobririam os encontros que mantinha com o controlador russo, e tudo poderia ter sido evitado. Pensou no que diria a Elizabeth. Promete que nunca vais mentir-me, Michael. Podes ocultar-me coisas, mas nunca me mintas. Quem me dera poder contar-te a verdade, pensou, mas nem eu sei qual é.

Michael sentou-se num banco em Leicester Square e esperou que os vigilantes se juntassem a ele. Apanharam um táxi até a casa de segurança, localizada num prédio branco ofensivo, com vista para Paddington Station. O interior era pior do que o recordado por Michael: mobília reles manchada, cortinados cheios de pó, copos e pratos de plástico numa cozinha em estado de sítio. O fedor dos quartos lembrava-lhe a residência universitária em Dartmouth. Wheaton abastecera o frigorífico com carnes frias e cerveja encomendadas à loja Sainsbury's. Michael tomou uma ducha e vestiu uma muda da roupa nova. Quando voltou à sala, os agentes comiam sanduíches e viam futebol inglês numa televisão de imagem instável. A cena tinha algo que o deprimia. Precisava de telefonar a Elizabeth, em Nova York, mas sabia que iriam brigar, algo que não queria fazer com a Agência à escuta.

- Vou sair - anunciou Michael.

- O Wheaton diz que tem de ficar aqui - avisou um dos homens, com a boca cheia de presunto, queijo cheddar e pão francês.

- Não quero saber daquilo que o Wheaton diz. Não vou passar a noite aqui sentado com dois palhaços. - Michael fez uma pausa.

- Muito bem, podemos ir juntos, ou posso livrar-me de vocês em cinco minutos, e depois explicam ao Wheaton o que se passou.

Seguiram de carro até Belgravia e estacionaram à frente da casa dos Seymour, em Eaton Place. Os guardas esperaram no seda" da Agência. A rua brilhava com a chuva e com a luz das fachadas de marfim do terraço georgiano. Pelas janelas, Michael pôde ver Helen na cozinha, concentrada no desastre culinário dessa noite, e Graham no andar de cima, na sala, a ler o jornal. Percorreu os degraus, molhados da chuva, e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen veio abrir e beijou-lhe a face.

- Que surpresa maravilhosa - exclamou.

- Importas-te que venha incomodar?

- É claro que não. Estou a fazer bouillabaisse.

Tens que chegue para mais um? - perguntou Michael, com o estômago instintivamente a dar uma volta.

- Mas é claro, meu querido - ronronou Helen. - Vai lá acima beber alguma coisa com o Graham. Este atentado em Heathrow deixou-o muito perturbado. Ai, meu Deus, foi uma coisa tão horrível.

- Eu sei - garantiu Michael. - Infelizmente, estava lá.

- Estás a brincar! - exclamou Helen. Depois olhou para a expressão de Michael. - O, não estás a brincar, pois não, Michael? Estás com um ar terrível, coitadinho. A bouillabaisse vai fazer-te sentir melhor.

Quando Michael entrou na sala, Graham ergueu o olhar.

- Ora vejam só, o herói de Heathrow. - Pousou o The Evening Standard, cuja manchete proclamava TERROR NO TERMINAL QUATRO.

Uma travessa com brie e com patê estava em cima da mesa de centro, ao lado de uma fatia grossa de pão. Graham já devorara metade. Michael barrou um pedaço de pão com queijo e olhou desconfiado para o patê.

- Não te preocupes, meu caro. Comprei-o numa loja de Sloane Square. Ela tem vindo a ameaçar que vai aprender a fazê-lo em casa. Não tarda muito vai começar a cozer pão, e nessa altura estou perdido.

Em fundo, Michael podia ouvir as notícias da BBC na aparelhagem alemã de Graham. Este tinha um ótimo ouvido e poderia ter sido um pianista sinfônico, caso os serviços secretos não lhe tivessem deitado a mão. O seu talento atrofiara ao longo dos anos, como acontece com uma segunda língua que não se fala. Utilizava o Steinway de cauda uma ou duas vezes por semana, enquanto Helen assassinava o jantar, e escutava outros a tocar música. Michael ouviu uma testemunha a descrever o viajante de terno azul que matara um terrorista e incapacitara outro.

- Tenho de telefonar à Elizabeth, e não quero metade da Estação de Londres a ouvir a conversa. Importas-te que use o teu telefone? Graham apontou para o telefone em cima da mesa de apoio.

- Preciso de um pouco mais de privacidade. Ela não vai gostar do que tenho para lhe dizer.

- O quarto fica ao fundo do corredor.

Michael sentou-se na beira da cama, pegou no telefone e marcou o número.

Elizabeth atendeu ao primeiro toque, o tom de voz agitado.

Meu Deus, Michael, onde tens estado? Estou preocupadíssima.

Não queria que a conversa começasse dessa forma. O primeiro instinto foi culpar a Agência, mas Elizabeth há muito que perdera a paciência para desculpas sobre as exigências únicas do seu trabalho.

- O Wheaton disse-me que tinha falado com você. Quando pude usar um telefone, já tinhas partido para Nova York. Além disso, queria um aparelho sem escutas.

- Onde estás?

- com a Helen e o Graham.

Elizabeth passara bastante tempo com os Seymour e gostava bastante do casal. Dois anos antes, numa altura em que Graham estivera em Washington para um trabalho de ligação contraterrorista, os quatro tinham passado um fim-de-semana prolongado na casa de Shelter Island.

- Porque não estás a caminho de casa? A extração está marcada para as dez da manhã. Preciso que aqui estejas.

- Já não há mais voos. Não vou conseguir chegar a tempo.

- Michael, trabalhas para a Central Intelligence Agency. Eles conseguem desencantar um avião. Diz-lhes quais são as circunstâncias. De certeza que vão ser compreensivos.

- Não é assim tão simples. Além disso, custa dezenas de milhar de dólares. Não vão fazer isso por mim.

Elizabeth suspirou profundamente. Michael ouviu o isqueiro barato e ela parou de falar o tempo suficiente para acender outro cigarro Benson & Hedges. - Tenho passado o dia a ver a CNN - disse, mudando de assunto de repente. - Falaram sobre uma testemunha que disse que um passageiro prendeu um dos terroristas e abateu outro com a arma dele. O homem que descreveram era muito parecido com você. - O que te disse o Wheaton?

- Ah não, Michael, não vou deixar que vocês acertem as agulhas com a história que andam a contar. O que aconteceu? Quero a verdade.

Michael contou-lhe.

Meu Deus do céu! Não podias ficar escondido e esperar que resolvessem as coisas? Tinhas de te aventurar? De te armar em herói e arriscar a vida?

- Não me estive a armar em herói, Elizabeth. Reagi a uma situação. Fiz aquilo para que me treinaram e devo ter conseguido salvar algumas vidas. - Então parabéns. O que queres que eu faça? - A voz tremia com a emoção. - Que me levante e seja a primeira a aplaudir por quase ter feito de mim uma viúva?

- Eu não fiz quase de ti uma viúva.

- Michael, eu ouvi um estranho na televisão dizendo que um terrorista te apontou uma arma e que você conseguiu matá-lo antes que ele te matasse. Não me minta.

- Não foi assim tão dramático.

- Então por que o matou?

- Porque não tinha alternativa. - Michael hesitou. - E porque merecia morrer. Há vinte anos que persigo pessoas como estas, mas nunca as tinha visto em ação. Hoje tive essa oportunidade. Foi pior do que imaginei.

Michael não estava em busca de compreensão, mas as suas palavras atenuaram a ira da esposa.

- Oh, sinto tanto. Mas como está você, afinal de contas? - perguntou Elizabeth.

- Estou bem. Quase quebrei a mão esmurrando o cara, e devo ter batido como o joelho em algum lugar, porque dói como o diabo. Mas de resto estou bem.

- É bem feito - replicou, ao que acrescentou rapidamente -, mas vou dar beijinhos em todo lugar, quando chegar em casa, amanhã.

Michael hesitou. Elizabeth tinha o radar em potência máxima.

- Você volta amanhã, não volta?

- Surgiu um imprevisto. Tenho de passar aqui mais um dia.

- "Surgiu um imprevisto." Então, Michael, consegue fazer melhor do que isso.

- É verdade. Quem me dera poder dizer do que se trata, mas não posso.

- Seja o que for, por que não pode ser outra pessoa a tratar do assunto?

- Porque só eu é que posso. - Michael fez uma pausa. - Mas há uma coisa que posso dizer: foi o Presidente em pessoa que me deu as ordens.

- Não me interessa quem te deu as ordens! - retorquiu Elizabeth. - Prometeu que voltaria a tempo. Agora quebra essa promessa.

- Elizabeth, o caso não está nas minhas mãos.

- Uma porra! Está tudo nas suas mãos. Você faz exatamente o que quer. Sempre fez.

- É só mais um dia e depois regresso. Vou direto a Nova York. Chego a tempo da implantação.

- Michael, não quero que se incomode. Por que não fica em Londres mais um dia ou dois? Vai ao teatro, ou algo assim.

- Isso não é justo, Elizabeth, e não está ajudando.

- Pode crer que não é justo.

- Não posso fazer nada.

- Faça o que fizer, Michael, não precisa voltar às pressas por minha causa, pois não sei se quero te ver.

- O que está a dizendo?

- Não sei o que estou dizendo. Estou zangada, magoada e desapontada com você. E estou com medo, e nem acredito que você vai me obrigar a passar por isso sozinha.

- Não tenho escolha, Elizabeth. É o meu trabalho. Não tenho escolha.

- Tem sim, Michael. Tem escolha. E isso é o que mais me assusta.

Ficou em silêncio por um instante, o zumbido da ligação por satélite era o único som em linha. Michael esgotara o que dizer. Queria dizer que a amava, o quanto lamentava, mas isso parecia tolo.

- Quando estávamos ao telefone, em Heathrow, antes do ataque - disse Elizabeth, por fim -, disse que queria contar uma coisa.

Michael filtrou a confusão e a violência do atentado em Heathrow e percebeu que estivera prestes a contar o que descobrira sobre Sarah. Não queria piorar a situação dizendo a Elizabeth que investigara a morte da antiga amante.

- Não me lembro do que estávamos falando - disse.

Elizabeth suspirou.

- Meu Deus, que péssimo mentiroso. Sempre pensei que os espiões fossem bons em enganar as pessoas. - Fez uma pausa, à espera que o marido dissesse alguma coisa, mas ele não tinha mais nada a dizer. - Boa sorte amanhã, para aquilo que vai fazer. Eu te amo.

A ligação caiu. Michael voltou a ligar rapidamente mas, quando o telefone começou a chamar, apenas ouviu o ruído irritante do sinal de ocupado. Voltou a tentar mas nada conseguiu, por isso desligou o telefone e desceu para enfrentar o jantar de Helen.

- Talvez fosse melhor pedir a Carter para enviar outra pessoa - sugeriu Graham.

Estavam sentados lá fora, no jardim, em volta de uma mesa de ferro forjado, fumando os cigarros de Graham. A chuva parara e a Lua ia brilhando através dos farrapos de nuvens.

- Não podemos enviar mais ninguém. Eles pediram que fosse eu. Conhecem o meu rosto. Se tentarmos enviar outra pessoa, vai tudo por água abaixo.

- Já pensou que pode cair direitinho numa armadilha? Vivemos tempos perigosos. A Espada de Gaza pode querer abater um homem dos serviços, sobretudo depois do que fez hoje em Heathrow.

- Não ganham nada em me matar. Sabe tão bem quanto eu que eles não matam indiscriminadamente. Fazem por uma razão e só quando acreditam que isso poderá promover sua causa.

- Imagino que Elizabeth não esteja nada satisfeita com a situação.

- Você pode imaginar. Ela não sabe o que vou fazer amanhã, mas não anda contente. - Michael contou tudo. Mesmo que a natureza do seu trabalho por vezes exigisse discrição profissional, havia muito poucos segredos pessoais entre eles.

- Espero que saiba o que está fazendo, companheiro. Parece bem grave.

- Neste momento não preciso de um conselheiro matrimonial. Sei que estou me arriscando, mas quero ouvir o que o Awad tem a dizer.

- Minha experiência com esses sacanas sugere que não vai dizer nada de útil.

- Não me arriscaria se não tivesse alguma coisa para nos dizer.

- Por que não apanhas o filho da mãe e o mete na prisão? Ou melhor ainda, trata do seu desaparecimento conveniente.

- É tentador, mas nós não funcionamos assim. Além disso, o único resultado seria uma resposta com mais violência.

- Não podem fazer nada mais violento do que o atentado de hoje, meu caro.

Uma sirene uivou na direção de Sloane Square. Sem querer, Michael pensou em Sarah.

- Chegou a encontrar o nosso amigo Drozdov? - perguntou Graham.

Michael anuiu.

- Disse alguma coisa de útil?

- Na verdade, foi bem útil. Sabia quem eu era. Disse por que Sarah foi morta.

Michael contou-lhe a história.

- Valha-me Deus, lamento, Michael. Sei o quanto ela significava para você - garantiu Graham.

Michael acendeu outro cigarro.

- Não disse a ninguém de sua equipe que eu estava pensndo em fazer uma visita a Drozdov, não?

- Está brincando? Os manda-chuvas me esfolariam vivo se descobrissem. Por que pergunta?

- Porque dois brucutus num Ford branco me seguiram até Heathrow.

- Não eram nossos. Talvez Wheaton tenha posto você sob vigilância.

- Já pensei nessa possibilidade.

- É um filho da mãe, esse seu Wheaton. Os cavalheiros na suíte executiva de Vauxhall Cross mal podem esperar pelo regresso dele a Langley para a dança da vitória em volta da sede.

- Ele contou ao SIS sobre o encontro de amanhã com Awad?

- Que eu saiba não, e eu faria parte da lista de aviso, se uma coisa dessas acontecesse.

- E não vai contar nada a sua equipe, certo, Graham?

- Claro que não. As regras habituais se aplicam, meu caro.

Graham jogou o cigarro num canteiro agora seco. - Não quer alugar um copiloto experiente?

- Quando foi a última vez que fez trabalho de campo?

- Já faz algum tempo. E você também. Mas há coisas que não se esquecem. Se fosse você, neste momento desejaria ter alguém me protegendo.


WASHINGTON, D. C.


Paul Vandenberg ligou os televisores do gabinete e viu, em simultâneo, a abertura dos noticiários dos três canais de televisão. Cada um deles dedicou todo o primeiro bloco à emissão do ataque em Heathrow. Houve reportagens em direto de Londres, da Casa Branca e do Oriente Médio, e reportagens de fundo sobre a Espada de Gaza. O tom dos jornalistas era, regra geral, positivo, embora fontes diplomáticas europeias anônimas culpassem os Estados Unidos por atacarem as bases da Espada de Gaza. Vandenberg não se preocupava com as críticas dos europeus. O Congresso encontrava-se do seu lado. Até mesmo alguns dos democratas mais pacifistas, como Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith, tinham prometido apoio, e o New York Times e o Washington Post tinham concedido suas bênçãos editoriais. Ainda assim, os vinte civis americanos que regressavam a casa em caixões minaram necessariamente algum apoio da opinião pública em relação aos atos do Presidente.

O noticiário abandonou o assunto e transmitiu o resto das notícias do dia. Vandenberg levantou-se e preparou um copo de vodka com água tônica, o qual bebeu enquanto arrumava a secretária e trancava os documentos importantes.

Às sete e dez, a secretária espreitou à porta.

- Boa noite, senhor Vandenberg.

- Boa noite, Margaret.

Tem uma chamada. Um tal detective Steve Richardson, da Polícia Metropolitana de D.C.

- Ele disse do que se trata? - Não, senhor. Quer que pergunte?

- Não, vá para casa, Margaret. Eu trato do assunto. Vandenberg baixou o som dos televisores, carregou na luz a piscar do telefone multilinhas e pegou no receptor.

- Fala Paul Vandenberg - disse com brusquidão, adicionando intencionalmente uma nota de autoridade ao tom de voz.

- Boa noite, senhor Vandenberg. Peço desculpa por incomodá-lo tão tarde, mas isto vai demorar apenas um ou dois minutos.

- Posso saber do que se trata?

- Do assassinato de uma jornalista do Washington Post, chamada Susanna Dayton.

Tinha conhecimento da sua morte, senhor Vandenberg?

- Claro. Na verdade, falei com ela nessa noite.

- Bem, é por isso que estamos a telefonar. Sabe...

- Foram consultar os registros telefônicos e descobriram que eu fui uma das últimas pessoas com quem ela falou, e agora querem saber o tema da nossa conversa.

- Já tinha ouvido dizer que era um homem esperto, senhor Vandenberg.

- De onde está a telefonar?

- Para dizer a verdade, estou mesmo do outro lado da rua, em Lafayette Park.

- Ótimo, porque não falamos cara a cara?

- Eu conheço-o. Tenho-o visto na televisão ao longo dos anos.

- Parece que a televisão serve para alguma coisa.

Cinco minutos depois, Vandenberg atravessava o Portão Noroeste da Casa Branca, cruzando a alameda pedestre que antigamente fora a Pennsylvania Avenue. O carro aguardava no Acesso Executivo, no interior do recinto. A noite caíra e, com ela, viera uma chuva miudinha e fria. Vandenberg caminhava pelo Lafayette Park num passo rápido de marcha, a gola virada para cima a fim de se proteger do frio, os braços a baloiçar ao lado do corpo. Dois sem-abrigo aproximaram-se e pediram-lhe dinheiro. Vandenberg passou por eles a toda velocidade, sem sequer se aperceber da sua presença. O detetive Richardson levantou-se do banco onde estava sentado e caminhou na direção dele, de mão estendida.

- Ela telefonou para que eu comentasse uma reportagem em que estava trabalhando - adiantou Vandenberg, tomando de imediato a iniciativa. - Era um artigo de investigação complexo e eu recomendei que fosse ao gabinete de imprensa da Casa Branca.

- Lembra-se de algum pormenor da história?

Quer dizer que não havia nenhuma gravação, pensou Vandenberg.

- Nem tanto. Era alguma coisa sobre as atividades de angariação de fundos do Presidente. Não me pareceu muito grave e, sinceramente, num domingo à noite, não queria muito falar naquilo. Por isso, mandei-a procurar quem de direito.

- Telefonou ao secretário de imprensa para informar do telefonema?

- Não, não telefonei.

- Posso saber por quê?

- Porque não achei que fosse necessário.

- Conhece um homem chamado Mitchell Elliott?

- Claro - respondeu Vandenberg. - Antes de entrar para a política, trabalhei para a Alatron Defense Systems e Mitchell Elliott é um dos apoiadores políticos mais chegados do Presidente. Encontramo-nos com muita frequência e falamos com regularidade.

- Sabia que Susanna Dayton também telefonou para Mitchell Elliott nessa noite? Na verdade, isso aconteceu momentos antes de falar com você.

- Sim, sei que ela telefonou para Mitchell Elliott.

- Posso perguntar como sabe disso?

- Porque Elliott e eu falamos posteriormente.

- Lembra-se sobre o que falaram?

- Não realmente. Foi uma conversa muito breve. Discutimos as alegações da Sra. Dayton e ambos chegamos à conclusão de que eram disparates sem fundamento que não mereciam comentário.

- Falou com Elliott mas não com o secretário de imprensa da Casa Branca?

- Sim, exatamente.

Richardson fechou o bloco de notas a fim de sinalizar que a entrevista terminara.

- Faz alguma ideia de quem assassinou a mulher?

Richardson abanou a cabeça. - Neste momento, estamos tratando do caso como um assalto que deu errado. Lamento tê-lo incomodado, senhor Vandenberg, mas tínhamos de confirmar. Espero que compreenda.

- Claro, detetive.

Richardson entregou-lhe seu cartão.

- Caso se lembre de mais alguma coisa, por favor, não hesite em ligar. - Não gosto de receber telefonemas da polícia de Washington para o meu gabinete na Casa Branca, Mitchell.

Os dois homens caminhavam lado a lado no seu ponto de encontro habitual, Hans Point, ao longo do Washington Channel. Mark Calahan deambulava alguns passos atrás, à procura de algum sinal de vigilância.

- A polícia de Washington não me faz sentir lá muito nervoso, Paul - respondeu Elliott calmamente. - Acho que a última vez que prenderam alguém por assassínio foi em 1950.

- Diga-me só uma coisa, Mitchell. Diga-me que não teve absolutamente nada a ver com a morte daquela mulher.

Pararam de andar. Mitchell Elliott virou-se para encarar Vandenberg, mas não disse nada.

- Ponha a mão sobre uma Bíblia imaginária, Mitchell - disse Vandenberg -, e jure por esse seu Deus que o Calahan ou outro dos seus rufiões não mataram Susanna Dayton.

- Sabe que não posso fazer isso, Paul - recusou Elliott calmamente.

- Seu sacana - murmurou Vandenberg. - O que aconteceu?

- Nós a pusemos sob vigilância total, física e áudio - explicou Elliott. - Entramos na casa dela para fazer algumas tarefas domésticas e ela nos surpreendeu.

- Ela surpreendeu vocês! Valha-me Deus, Mitchell! Sabe o que está dizendo?

- Sei exatamente o que estou dizendo. Um dos meus homens cometeu um assassínio infeliz. O chefe de gabinete da Casa Branca é agora cúmplice por encobrimento de assassinato.

- Seu filho da mãe! Como se atreve a fazer isto com o Presidente!

- Fale baixo, Paul. Nunca se sabe quem pode estar na escuta. E eu não fiz nada ao Presidente, porque não há como sermos ligados ao assassinato de Susanna Dayton. Se não perder a cabeça e fizer alguma coisa estúpida, nada vai acontecer.

Vandenberg lançou um olhar furioso a Calahan, que retribuiu, sem pestanejar.

Virou-se e começou a andar. Uma chuva suave flutuava sobre o rio.

- Tenho mais uma pergunta, Mitchell.

- Quer saber quem é que realmente abateu aquele avião.

Vandenberg olhou para Mitchell em silêncio.

- Limite-se a dizer suas deixas e faça seu trabalho, Paul. Não faça muitas perguntas.

- Agora, Mitchell! Diga-me agora!

Elliott virou-se para Calahan.

- Mark, o senhor Vandenberg não está se sentindo nada bem neste momento. Acompanhe-o até o carro. Boa noite, Paul. Falaremos em breve.

O carro com motorista de Vandenberg saiu de Hans Point e seguiu a alameda, contornando Tidal Basin. O Jefferson Memorial brilhava suavemente nas águas, com o reflexo tornado indistinto pela chuva. O carro virou para a Independence Avenue, passou pelo altaneiro Washington Monument e virou para Potomac

Parkway. Vandenberg olhou para o Lincoln Memorial.

Meu Deus, o que foi que eu fiz - pensou.

Precisava de uma bebida. Nunca na sua vida tinha precisado de uma bebida, mas agora sentia mesmo necessidade. Fechou os olhos. A mão direita tremia-lhe, por isso cobriu-a com a esquerda e fitou o rio que fluía sob a ponte.

LONDRES

Na manhã seguinte, Michael levantou-se antes de amanhecer e vestiu-se sem fazer barulho no quarto horrível da casa de segurança. Estava tudo silencioso exceto pelo ronco do trânsito matutino perto de Paddington Station e pela tagarelice dos guarda-costas de Wheaton no quarto ao lado. Bebeu um café instantâneo abjeto por uma caneca lascada, mas ignorou um prato de croissants duros. Regra geral, Michael estava calmo antes de um encontro, mas agora sentia-se nervoso e irritadiço, tal como se sentira quando era um recruta calouro, enviado para o campo pela primeira vez, depois do curso de treino na Quinta. Era raro fumar antes do meio-dia, mas já ia no segundo cigarro. Dormira pouco, agitado na cama de solteiro encovada, perturbado pela zanga com Elizabeth. Em grande parte, o seu casamento sempre fora calmo, livre das discussões e tensão constantes que afligiam tantos casamentos da Agência. Pequenas altercações abalavam-nos profundamente. Uma batalha como a da véspera, com ameaças de vingança, era-lhes estranha.

Vestiu um colete à prova de bala por cima da blusa de gola alta fina e enfiou uma blusa de lã cinzenta. Pegou no telefone e marcou uma última vez o número do apartamento na Quinta Avenida. Continuava ocupado. Pousou o receptor no descanso e saiu. Wheaton estava à espera lá em baixo, na beira, no banco traseiro de um sedan anônimo da Agência. Foram até Charing Cross, Wheaton discursando monotonamente sobre as regras para o encontro com a intensidade de alguém que passara uma carreira em segurança, preso a uma secretária.

- Se não for o Awad, em nenhuma circunstância deve prosseguir com o encontro - avisou Wheaton. - Espere que o barco chegue a Calais e nós tiramo-lo de lá. - Não estou a entrar em território inimigo - disse Michael. Se o Awad não aparecer, apanho o próximo ferry para a Grã-Bretanha.

- Permaneça alerta - continuou Wheaton, ignorando o comentário de Michael. - A última coisa de que precisamos é que vá de encontro a um verdadeiro crente da Espada de Gaza com uma chave de madeira em volta do pescoço. Regra geral, os membros da espada de Gaza., e muitos outros terroristas islâmicos, usavam uma chave de madeira por baixo da roupa durante missões suicidas, pois acreditavam que os seus atos seriam recompensados com o martírio e um lugar no céu.

- Carter não quer que vá desprotegido - indicou Wheaton. Abriu uma pequena mala e retirou de lá de dentro uma potente

pistola automática Browning com um carregador de quinze balas, a arma regulamentar da Agência.

- O que devo fazer com isto? - perguntou Michael. Como muitos agentes de casos, podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que levara uma arma no cumprimento do dever. Raramente um agente de casos disparava para resolver um problema. Sacar de uma arma em legítima defesa era o derradeiro sinal de fracasso. Significava que o agente fora traído por um dos seus, ou que fora completamente descuidado.

- Não vamos mandá-lo para aquele ferry para que seja assassinado ou feito refém - insistiu Wheaton. - Caso se aperceba de que está a cair numa armadilha, riposte. Vai lá estar sozinho.

Michael colocou o carregador na coronha e puxou a culatra, introduzindo a primeira bala. Accionou a trava de segurança e enfiou a arma no cós das calças, por baixo da blusa.

Wheaton deixou Michael na estação. Michael comprou um bilhete de primeira classe para Dover e um molho de jornais matutinos, e depois foi à procura da plataforma. Entrou no comboio com cinco minutos de antecedência e avançou pelo corredor apinhado. Encontrou um lugar num compartimento com dois homens de negócios que já estavam a martelar nos computadores portáteis. No momento em que o comboio saía da estação, uma mulher entrou no compartimento. Tinha cabelo comprido e escuro, olhos escuros e pele pálida. Michael pensou que se parecia vagamente com Sarah.

Durante quase uma hora, o comboio avançou ruidosamente pelos subúrbios do Sudeste de Londres e depois entrou na terra de cultivo ondeada de Kent. No bar, Michael comprou café e umo sanduíche de presunto e queijo. Regressou ao compartimento e sentou-se. Os homens de negócios estavam em mangas de camisa e suspensórios, olhando para um relatório de lucros como se fosse um texto sagrado. A mulher não abriu a boca durante toda a viagem. Fumava um cigarro atrás do outro, até que o compartimento ficou a parecer uma câmara de gás. Os atraentes olhos castanhos acompanhavam o campo verde-acinzentado de Kent. A mão comprida encontrava-se sugestivamente pousada sobre uma coxa escondida por umas meias austeras.

O comboio chegou a Dover e Michael saiu do compartimento. A moça colocou um saco de pele ao ombro e seguiu-o. Era alta, tão alta como Sarah, mas não possuía a sua graciosidade, nem a agilidade física felina. Trazia vestido um casaco de pele preto, que lhe dava pelas coxas, e botas da tropa pretas que ressoavam quando andava.

Michael apressou-se a sair da estação e a dirigir-se ao terminal dos ferrys. Comprou um bilhete e entrou para o barco, um ferry multiuso com centro e trinta metros, capaz de transportar 1300 passageiros e 280 carros. Entrou para a área dos bancos dos passageiros no convés principal e sentou-se junto a uma janela, a bombordo. Olhou em frente e viu Graham Seymour sentado no centro do convés, vestido com calças de ganga e uma blusa cinzenta Venice Beach, e um estojo de guitarra nas mãos. Michael desviou rapidamente o olhar. A moça do comboio entrou, sentou-se diretamente atrás de Michael e começou de imediato a fumar.

Enquanto o ferry sulcava as águas, Michael lia os jornais. Dover desapareceu por trás de uma cortina de chuva. De minutos a minutos, Michael olhava para o parapeito a bombordo, pois era aí, a meio do navio, que Awad iria aparecer. Foi uma vez até o bar, o que lhe permitiu perscrutar o rosto de todos os que se encontravam sentados na área de passageiros. Comprou chá escuro servido num copo de papel muito fino e levou-o para o seu lugar. Não reconheceu ninguém, a não ser Graham e a moça do comboio, que estava absorta numa revista de moda de Paris.

Passou meia hora. A chuva parou, mas agora, bem no meio do Canal, o vento aumentava de intensidade e as ondas encrespadas lançavam-se em direção à ampla proa do ferry. A moça levantou-se, comprou café no bar e depois sentou-se ao lado de Michael. Acendeu outro cigarro e, por instantes, beberricou o café em silêncio.

- Ali está ele, junto ao parapeito, de gabardina cinzenta - indiciou, um vestígio de Beirute no seu inglês. - Aproxime-se dele devagar. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. E não tente armar-se em herói outra vez, senhor Osbourne. Estou bem armada e Ibrahim tem cinco quilos de Semtex atados ao corpo.

Michael achou que o rosto lhe era vagamente familiar, como um amigo de adolescência que se materializa na meia-idade, gordo e a ficar calvo. Vira aquele rosto muitas vezes, mas nunca de perto e, decerto, nunca pessoalmente. Vira o perfil do lado direito, indistinto, num instantâneo tirado pelos fotógrafos do MI5 durante uma das visitas de Awad a Londres. O rosto desfocado capturado pelos serviços franceses durante uma escala em Marselha. A velha fotografia israelense do jovem Awad: atirador de pedras, perito no fabrico de cocktails Molotov, criança guerreira da Intifada que quase espancou até a morte um colono de Brooklyn com um pedaço do seu adorado Hebron. A foto israelense era de valor limitado, pois a Shin Bet apanhara-o primeiro e deixara-o quase irreconhecível com equimoses e inchaços.

Michael e a sua presa ficaram lado a lado no parapeito durante um longo momento, cada um com o olhar fito no seu ponto privado das águas em turbilhão do Canal, como amantes zangados sem nada mais a dizer. Michael virou-se e olhou mais uma vez para Awad. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. Por um instante, interrogou-se se o homem seria mesmo Muhammad Awad. As entediantes advertências de Wheaton ecoavam na mente de Michael como anúncios de embarque num aeroporto.

A Michael, o homem a seu lado parecia o irmão mais velho e mais próspero de Awad. Estava vestido para fazer negócios, com um dispendioso sobretudo cinzento e um terno de bom gosto, com duas fileiras de botões, visível por baixo. As feições tinham sido alteradas por cirurgia plástica. Como resultado, a aparência árabe fora apagada e tinha sido criado algo de origem nacional incerta: um espanhol, um francês ou talvez um grego. O nariz palestino proeminente desaparecera, tendo sido substituído pelo nariz estreito e aquilino de um aristocrata do norte de Itália. As maçãs do rosto tinham sido realçadas, a testa suavizada, o queixo tornado quadrado e os olhos castanhos eram agora de um verde-claro, graças a lentes de contato. Tinham-lhe sido arrancados os dentes molares, a fim de lhe dar as faces felinas de um supermodelo.

A vida de Muhammad Awad assemelhava-se a um panfleto da literatura revolucionária palestina radical. Michael conhecia-a bem, pois compilara a biografia e o currículo de Awad para o Centro, com a ajuda da Mossad, do Shin Bet, do MI6 e de metade dos serviços de segurança da Europa. O avô fora arrancado aos seus olivais e laranjais nos arredores de Jerusalém em 1948 e enviado para o exílio na Jordânia. Segundo a lenda de Awad, no ano seguinte morreu de desgosto, conservando ainda o neto as chaves da sua casa em Israel no bolso. Outro ramo do clã Awad foi massacrado em Deir Yassin. Em 1967, a família foi expulsa novamente, desta vez para campos de refugiados no Líbano. O pai de Awad nunca trabalhou, limitava-se a ficar sentado nos campos, a contar histórias sobre como tinha sido a sua vida em pequeno, cuidando das azeitonas e das laranjas com o pai. O paraíso perdido. Nos anos 80, o jovem Muhammad Awad foi doutrinado no Islão radical do sul do Líbano e em Beirute. Juntou-se ao Hezbollah. Juntou-se ao Hamas. Recebeu treino no Irã e na Síria: armas leves, tácticas de infiltração, contra-espionagem, fabrico de bombas. Quando Arafat apertou a mão de Rabin na Casa Branca, Awad sentiu-se ultrajado. Quando as forças de segurança de Arafat começaram a perseguir o Hamas, a mando de Israel, Awad jurou vingança. Juntamente com cinquenta dos melhores guerrilheiros do Hamas, formou a Espada de Gaza, o grupo terrorista palestino mais mortífero desde o Setembro Negro.

Rajadas de vento assolavam o convés. Awad levou a mão ao interior do casaco. Michael hesitou, mas resistiu à tentação de pegar na Browning.

- Calma, senhor Browning - disse Awad. - Só me apeteceu fumar. Além disso, se quisesse matá-lo, o senhor já estaria morto.

O inglês era perfeito, com um leve sotaque irreconhecível por um ouvido destreinado. Os cigarros que foi buscar ao bolso do peito eram Dunhill sem filtro.

- Sei que fuma Marlboro Lights, mas talvez estes sirvam, sim? A sua esposa fuma Benson and Hedges, não é? Chama-se Elizabeth Cannon-Osbourne e exerce advocacia numa daquelas firmas importantes de Washington. O senhor vive na N Street, em Georgetown. Está a ver, senhor Osbourne, temos os nossos próprios serviços secretos e de segurança. E recebemos muitas ajudas dos nossos amigos em Damasco e em Teerã, claro está.

Michael aceitou o Dunhill e virou-se a favor do vento para o acender. Quando Awad levantou a mão para acender o seu próprio cigarro, Michael viu o detonador na palma da mão direita.

- Já percebi, Ibrahim - disse Michael.

- Sei que foi uma demonstração entediante, mas só a fiz para enfatizar que não desejo qualquer mal nem a si, nem à sua família. O senhor não é meu inimigo e não tenho tempo nem recursos para lutar contra si. - Então para que os explosivos presos à cintura?

- Num negócio como este, é preciso tomar precauções.

- Nunca me pareceu do tipo suicida.

Awad sorriu e soprou o fumo pelas narinas esculpidas.

- Sempre acreditei que era mais útil a Alá vivo do que morto. Além disso, não temos falta de voluntários para missões de martírio. Creio que passou algum tempo no Líbano quando era criança. Sabe as condições em que vive o nosso povo. A opressão pode gerar loucura, senhor Osbourne. Há miúdos que preferem morrer a passar uma vida inteira acorrentados.

Michael olhou para o lado esquerdo e viu a mulher do comboio encostada ao parapeito, a seis metros de distância, a fumar, os olhos vagueando pelo ferry.

- Pensei que acreditassem que o lugar de uma mulher era em casa, oculta por um chador - comentou Michael, olhando para a moça.

- É uma pena, mas por vezes este negócio exige os serviços de uma mulher talentosa. Para os objetivos desta conversa, ela chama-se Odette. É palestina e muito boa a manejar a arma. Os velhos serviços de segurança da Alemanha Ocidental davam ordens para abater primeiro as mulheres. No caso de Odette, esse seria, de fato, um excelente conselho.

- Agora já nos apresentamos todos - disse Michael -, que tal irmos diretos ao assunto? Porque quis conversar?

- O ataque de ontem em Heathrow foi obra da Espada de Gaza. Organizamos o ataque para vingar os vossos ataques aéreos ridículos contra os nossos amigos na Líbia, na Síria e no Irã. Ontem o senhor foi o herói, senhor Osbourne. A sua presença foi coincidência, garanto-lhe. Sinceramente, quem me dera que os tivesse morto aos dois. Os homens detidos deixam-me sempre um pouco nervoso. - Na verdade, o interrogatório está a correr muito bem - afiançou Michael, incapaz de resistir à oportunidade de brincar com Awad.

- Ouvi dizer que estava a fornecer uma tremenda quantidade de informação sobre a vossa estrutura organizacional e tácticas.

- Boa tentativa - afirmou Awad. - A nossa organização é altamente compartimentada, por isso os estragos que ele pode fazer são mínimos.

- Continue a acreditar nisso, Ibrahim. Vai ajudá-lo a dormir à noite. Quer dizer que pediu para falar comigo para reivindicar a responsabilidade pelo ataque terrorista em Heathrow?

- Preferimos utilizar o termo ação militar.

- Não há nada de militar em matar civis desarmados. Isso é terrorismo, puro e simples.

- O terrorista de um homem é um lutador pela liberdade de outro, mas não vamos entrar agora nessa discussão tola. Não há tempo. Os vossos ataques aéreos às nossas bases foram ridículos, pois não existia qualquer justificação para eles. A Espada de Gaza não disparou o míssil que fez cair o Voo Zero-Zero-Dois. Michael desconfiava que assim fosse, mas não ia demonstrá-lo em frente de Muhammad Awad.

O corpo de Hassan Mahmoud, um dos seus melhores agentes operacionais, foi encontrado no barco do qual o míssil foi disparado - declarou Michael, a voz baixa mas trêmula de emoção. O tubo de lançamento estava ao lado do corpo. Foi recebida em Bruxelas uma reivindicação válida.

O rosto de Awad contraiu-se. Deu uma longa baforada no Dunhill e jogou a guimba na água. Michael desviou o olhar de Awad e viu um iate a motor seguindo o ferry, atrás de um véu de névoa.

- Hassan Mahmoud deixou de ser membro da Espada de Gaza há quase um ano. Era um maldito de um psicopata que não aceitava a disciplina de uma organização como a nossa. Descobrimos que conspirava em segredo para assassinar Arafat, por isso o expulsamos. Teve sorte em não ter sido morto. Pensando em retrospectiva, devíamos tê-lo feito.

Awad acendeu outro cigarro.

- Mahmoud mudou-se para o Cairo e juntou-se aos fundamentalistas egípcios, al-Gama'at Ismalyya. - Awad levou novamente a mão ao bolso e, desta vez, fez aparecer um envelope. Abriu-o, retirou do seu interior três fotografias e entregou-as a Michael. - Foram-me dadas por um amigo dentro dos serviços de segurança egípcios. Esse homem é Hassam Mahmoud. Se pesquisar esta fotografia nos seus arquivos, descobrirá que este homem é Eric Stoltenberg. Creio que reconhece o nome.

Michael reconhecia-o, de fato. Eric Stoltenberg trabalhara para o Ministério da Segurança Interna da Alemanha de Leste, melhor conhecido como o Stasi. Trabalhava para o Departamento XXII, que conduzia operações de apoio levadas a cabo pelo Stasi a movimentos de libertação nacional por todo o mundo. O seu portfólio incluía terroristas conhecidos, como Abu Nidal, Carlos, o Chacal, e grupos como o IRA e a ETA espanhola. Michael examinou as fotografias: dois homens sentados a uma mesa de tampo cromado, no Groppi's Café, um de cabelo e pele escuros, o outro louro e de pele clara, ambos com óculos-de-sol.

Michael estendeu as fotografias a Awad.

- Fique com elas - disse Awad. - São uma oferta minha.

- Elas não provam nada.

- Como provavelmente será do seu conhecimento, Eric Stoltenberg teve de arranjar trabalho noutro lado - continuou Awad, ignorando o comentário de Michael. - Depois da queda do Muro, os alemães queriam a sua cabeça porque ele ajudou os líbios a bombardear o clube noturno LaBelle, em Berlim Ocidental, em 1986. Desde aí que Stoltenberg tem vivido no estrangeiro, utilizando os antigos contatos da Stasi para fazer dinheiro seja de que maneira for: segurança, contrabando, esse tipo de coisas. Há pouco tempo, ganhou uma bela quantia e não escondeu isso lá muito bem.

O iate aproximara-se mais do ferry. Michael olhou para Awad.

- Mahmoud realizou o ataque e Stoltenberg deu uma ajuda com a logística: o Stinger, os barcos, a rota de fuga. - Michael brandiu as fotografias. - Isto é tudo mentira, pois tem medo que voltemos a atacar.

Awad sorriu com um charme considerável.

- Boa tentativa, senhor Osbourne, mas o senhor conhece a Espada de Gaza melhor do que isso. Sabe que não tínhamos qualquer motivo para fazer explodir um avião americano e sabe que outra pessoa o fez. No entanto, não tem provas. Se eu estivesse no seu lugar, procuraria mais perto de casa.

- Está a dizer que sabe quem é o culpado?

- Não, estou apenas a dizer que deve fazer a si mesmo algumas perguntas simples. Quem ganharia mais com isso? Quem teria motivos para fazer uma coisa daquelas e manter a sua identidade secreta? Os homens que o fizeram têm muito dinheiro, e recursos enormes ao seu dispor. Juro-lhe que não fomos nós. Se os Estados Unidos não retaliarem por causa de Heathrow, isto acaba aqui. Mas se voltarem a atingir-nos, não teremos outra alternativa a não ser ripostar. É essa a natureza do jogo.

O iate encontrava-se agora a cinquenta metros a bombordo do ferry. Michael viu dois homens no alto da ponte volante e um terceiro perto da proa. Olhou para a esquerda, na direção da mulher, e viu-a de olhos muito abertos, retirando uma pequena arma automática da mala. Deu meia volta e olhou para lá de Awad, para o parapeito a bombordo, e viu um homem muito bem constituído de cócoras, de arma em punho, a cabeça coberta por uma balaclava.

Michael agarrou Awad pelos ombros e gritou: - Abaixe-se!

Duas balas atravessaram o peito de Awad e cravaram-se no colete à prova de balas de Michael. Awad caiu sobre o convés. Michael meteu a mão no casaco para pegar a Browning, mas a moça palestina adiantou-se, arma apontada nos braços estendidos, as pernas afastadas. Disparou duas vezes com rapidez, derrubando o atirador encapuzado.

Awad jazia no convés e lançou um olhar irado a Michael, a boca cheia de sangue. Ergueu a mão direita, mostrando a Michael o detonador. Michael lançou-se pela porta para o interior da área de passageiros. Graham Seymour estava lá, de arma na mão. Michael agarrou-o pela camisa e puxou-o para o chão no momento em que a bomba explodia e estilhaços de vidro voaram por cima das suas cabeças. Durante alguns segundos, reinou um silêncio quase absoluto. Depois os feridos começaram a gemer e a gritar.

Michael levantou-se com dificuldade, os sapatos a escorregar sobre os estilhaços de vidro, e correu para o convés. A força da explosão desfizera Awad. Odette, a mulher palestina, jazia no convés, sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. O atirador encapuzado devia estar a usar um colete à prova de bala, pois conseguiu saltar por cima do parapeito e o iate avançava na sua direção. Encontrava-se um homem na ponte volante e dois no convés, à popa. Michael ergueu a Browning e abriu fogo sobre a embarcação. Os dois homens na popa pegaram em armas automáticas e responderam ao fogo. Michael lançou-se para o chão, em busca de abrigo.

Odette levantara-se e estava sentada, com as costas apoiadas no parapeito. Empunhava uma arma na mão esticada, apontada a Michael, o rosto muito calmo.

Michael rolou sobre o corpo quando ela disparou o primeiro tiro. A bala atingiu o convés, falhando-o. Ela disparou mais duas vezes enquanto Michael rastejava desesperadamente em busca de proteção. De repente, o corpo dela tremeu com violência e caiu para a frente. Graham Seymour saiu para o convés, de arma na mão, e ajoelhou-se ao lado dela. Olhou para Michael e abanou a cabeça.

Michael levantou-se e correu para o parapeito. O iate baloiçava nas águas agitadas. Os dois homens à popa estavam a retirar o atirador do mar. Michael ergueu a arma, mas era um tiro impossível. O avanço do ferry fazia com que estivesse já a cerca de cem metros do iate. Depois de o atirador estar a bordo, em segurança, o iate deu meia volta e desapareceu por detrás de uma cortina de nevoeiro.


NOVA YORK

 

 

O programa de fertilização in vitro no Cornell Medical Center possuía uma natureza de linha de montagem que fazia lembrar a Elizabeth os tribunais criminais de qualquer grande cidade. Sentou-se no banco de madeira lascado no corredor à porta da sala de operações, rodeada por outras doentes, enquanto os técnicos cirandavam por ali em silêncio, com batas e máscaras. Só Elizabeth estava sozinha. As outras quatro mulheres tinham os maridos a apertar-lhes as mãos e olhavam para Elizabeth como se ela fosse uma solteirona que decidira ter uma criança com o esperma que pedira emprestado ao marido da melhor amiga. Apoiou de propósito o queixo na mão esquerda para mostrar a aliança de casamento e um anel de noivado com um diamante de dois quilates. Imaginou o que as outras mulheres estariam a pensar. Será que o marido estava atrasado? Será que se divorciara há pouco tempo? Seria ele demasiado ocupado para estar com ela numa altura daquelas?

Elizabeth sentiu os olhos começarem a ficar marejados. Estava a utilizar cada pedacinho de autocontrole que tinha para não chorar. As portas duplas da sala de operações abriram-se. De lá saiu uma marquesa empurrada por dois técnicos, sobre a qual jazia uma mulher sedada. Outra foi levada lá para dentro, vinda do vestiário que existia ali perto, para tomar o seu lugar em cima da mesa. O marido foi enviado para uma sala pequena e escura com copos de plástico e revistas Playboy.

Na parede estava pendurada uma pequena televisão, silenciosamente sintonizada, sem som, na CNN. O ecrã mostrava uma reportagem ao vivo sobre um ferry soltando fumaçao no Canal da Mancha.

Não, pensou Elizabeth, não é possível. Levantou-se, foi até a televisão e aumentou o som.

- ... Sete pessoas mortas... Parece ser obra do grupo terrorista islâmico conhecido como a Espada de Gaza... Segundo ataque em dois dias... Acredita-se terem sido os responsáveis pelo terrível atentado terrorista de ontem no Aeroporto de Heathrow, em Londres...

Meu Deus, pensou, isto não pode estar acontecendo!

Voltou a sentar-se no banco e revirou a mala à procura do celular e da agenda telefônica. Michael dera-lhe um número especial a ser usado apenas em emergências extremas. Folheou as páginas desenfreadamente, sentindo os olhares das outras doentes, e encontrou o número.

Marcou-o, carregando com violência nas teclas, enquanto caminhava para um local mais reservado junto às escadas. Após um toque, uma calma voz masculina disse:

- Alô?

- Meu nome é Elizabeth Osbourne. Meu marido é Michael Osbourne.

Ouviu o som das teclas de um computador.

- Como conseguiu este número? - perguntou a voz.

- Michael me deu.

- Em que posso ajudar?

- Quero falar com meu marido.

- O seu número de telefone, por favor.

Elizabeth deu o número do celular e voltou a ouvir o som do teclado novamente.

- Alguém vai lhe telefonar.

Um dos técnicos apareceu nas escadas.

- A Sra. é a próxima, Sra. Osbourne. Precisamos que entre agora.

- Quero saber se ele estava naquele ferry-boat no Canal - disse Elizabeth ao homem com quem falava ao telefone:

- Alguém lhe telefonará - voltou a dizer a voz, exasperante com a falta de emoção. Era como falar com uma máquina.

- Que diabo, responda! Ele estava naquele barco?

- Alguém vai telefonar - repetiu.

- Lamento, Sra. Osbourne - insistiu o técnico -, mas agora precisa mesmo entrar.

- Está dizendo que ele está no barco?

- Por favor, desligue e mantenha este número desocupado.

Em seguida, a linha ficou muda.

Uma enfermeira acompanhou Elizabeth a um pequeno vestiário e deu-lhe uma bata esterilizada. Elizabeth agarrava com força no celular. - Receio que tenha de deixar isso aqui - avisou a enfermeira.

- Não posso - respondeu Elizabeth. - Estou à espera de um telefonema muito importante.

A enfermeira olhou para ela com uma expressão incrédula.

- Já vi muitas mulheres do Tipo-A neste programa, Sra. Osbourne, mas não há dúvida de que a Sra. bate todas as outras aos pontos. Vai sofrer uma intervenção cirúrgica ali dentro. Não é altura para fazer telefonemas de trabalho.

- Não é um telefonema de trabalho. É uma emergência.

- Não interessa. Daqui a três minutos, vai estar a dormir como um bebê.

Elizabeth vestiu a bata. Toca, raios partam. Toca!

Subiu para a marquesa e a enfermeira empurrou-a até a sala de cirurgia. A equipe operatória estava à espera. O seu médico baixou a máscara e ofereceu-lhe um sorriso agradável.

- Parece-me um pouco nervosa, Elizabeth. Está tudo bem?

- Estou ótima, doutor Melman. - Ainda bem. Então vamos começar.

Acenou com a cabeça para o anestesista e, segundos mais tarde, Elizabeth sentia-se a flutuar para um sono agradável.

CALAIS, FRANÇA

O porto fervilhava de luzes de emergência azuis e vermelhas à medida que o ferry se aproximava da costa francesa. Michael estava de pé na ponte, rodeado pelo capitão e pelos oficiais, a fumar um cigarro atrás do outro, enquanto via a linha da costa avizinhar-se. Ora sentia um frio de morrer, ora um calor de abrasar. O peito doía-lhe muito, como se alguém muito forte lhe tivesse dado um par de murros. Graham Seymour estava do outro lado da ponte, rodeado pelo seu próprio grupo de elementos da tripulação. Estavam mais ou menos detidos. Michael dissera ao capitão que ele e Graham eram agentes dos Estados Unidos e da Inglaterra e que alguém de Londres estaria à espera do ferry em Calais, onde tudo lhes seria explicado. O capitão ficou desconfiado, tal como Michael ficaria no seu lugar.

Michael fechou os olhos e o filme desenrolou-se mais uma vez. Assistiu a tudo como se fossem imagens de um noticiário, ele próprio como um ator em palco. Viu o atirador aproximar-se e Odette à procura da arma, os olhos alucinados.

O homem de balaclava com a arma não pertencia à Espada de Gaza e Muhammad Awad não era o alvo. O alvo era Michael. Awad limitara-se a estar no caminho. Voltou a fechar os olhos e pensou nos dois homens dentro do iate. Lentamente, os rostos foram-se tornando mais nítidos, como se estivesse a focá-los com a lente de longo alcance de uma câmara de vigilância. Viu os homens dispararem contra si a partir do convés de ré. Tinha a sensação incômoda de já os ter visto de relance noutro lado qualquer: num restaurante, numa festa ou na farmácia em

Oxford Street. Ou teria sido numa estação de gasolina na M40 em Oxfordshire, a fingir estar a encher o pneu traseiro de um monovolume Ford branco? O ferry atracou em Calais. Michael e Seymour foram guiados para longe das equipes de televisão e dos jornalistas aos gritos até um gabinete no interior do terminal. Wheaton e uma dúzia de oficiais diplomáticos e da Agência aguardavam-nos. Tinham vindo de Londres de helicóptero, cortesia da Marinha Real.

- Quem é este? - perguntou Wheaton, olhando para Graham, que se esquecera do estojo da guitarra mas assemelhava-se, ainda assim, a um estudante maduro, com as suas calças de ganga e a blusa Venice Beach.

Seymour sorriu e estendeu a mão.

- Graham Seymour, SIS.

- Graham quem, o quê? - perguntou Wheaton, incrédulo.

- Ouviu-o bem - confirmou Michael. - É um amigo meu. Por coincidência, encontrava-se a bordo do ferry.

- Mentiras!

- Bem, valeu a pena tentar, Michael - disse Graham.

- Comece a falar, vamos!

- Vá bardamerda - exclamou Michael, despindo a blusa e revelando duas balas cravadas no colete. - Porque não voltamos para Londres e fazemos lá o relatório?

- sugeriu, já mais calmo.

- Porque os franceses querem falar com você primeiro.

- Oh, meu Deus - suspirou Graham. - Eu não posso falar com os malditos dos franciús.

- Bem, uma vez que acaba de chegar à jurisdição deles, creio que vai ter de o fazer.

- O que é que lhes vamos dizer? - perguntou Michael.

- A verdade - respondeu Wheaton. - E rezar para que tenham o bom senso de ficarem de bico calado.

Em Nova York, Elizabeth estava deitada, a dormir na sala de recobro, quando o celular tocou suavemente. Uma enfermeira deu um passo em frente e estava prestes a desligá-lo quando Elizabeth acordou e disse:

- Não, espere. .-} Colocou o celular de encontro ao ouvido, de olhos fechados, e atendeu.

- Estou?

- Elizabeth - disse a voz. - É a Elizabeth Osbourne? - Sim - crocitou" ela, a voz rouca devido à anestesia.

- Daqui fala Adrian Carter. - Adrian, onde é que ele está?

- Ele está bem.'Está a regressar a Londres neste momento.

- A regressar a Londres? Onde é que esteve?

Na linha fez-se silêncio. Elizabeth estava agora completamente desperta. - Raios partam, Adrian - exclamou -, ele estava naquele ferry? Carter hesitou e depois respondeu.

- Sim, Elizabeth. Ele estava numa missão e alguma coisa correu mal. Ficaremos a saber mais pormenores quando ele chegar à embaixada de Londres. - Está ferido?

Ele está ótimo.

- Graças a Deus.

- Telefono-te quando souber mais.

Ao anoitecer, o helicóptero pousou num heliporto da Thameside em West Londres. Dois carros da embaixada aguardavam-nos. Wheaton e Michael entraram no primeiro, os autômatos de Wheaton seguiram no segundo. Viraram para Vauxhall Bridge e passaram pelo feio edifício moderno que funcionava como sede do MI6. Lá se foi a toca disfarçada de George Smiley em Cambridge Circus, pensou Michael. Agora, a sede dos Serviços chegara mesmo a aparecer num filme do James Bond.

Daqui a alguns minutos, o seu amigo Graham Seymour vai ter uma recepção agreste naquele edifício - informou Wheaton. - Falei com o Diretor-Geral de Calais. Nem é preciso dizer que ele não ficou satisfeito. Também me deu uma notícia que terá de esperar até estarmos atrás de portas fechadas. Michael ignorou o comentário. Wheaton parecia sempre retirar demasiado prazer da infelicidade profissional dos colegas. Subira através do direktorado soviético, quando o pai de Michael era um alto comando em Langley, e trabalhara em Istambul e Roma. A sua tarefa era recrutar oficiais do KGB e diplomatas soviéticos, mas revelou-se de tal forma incapaz que depressa recebeu uma série de relatórios sobre a sua inaptidão deplorável, um deles redigido pelo pai de Michael. Wheaton foi transferido para a sede, onde prosperou na atmosfera falsa e oligárquica de Langley. Michael sabia que Wheaton lhe guardava rancor por causa do pai, ainda que o péssimo relatório de aptidão provavelmente lhe tivesse acabado por salvar a carreira. Chegaram a Grosvenor Square. Wheaton e Michael entraram na embaixada lado a lado, com os homens de Wheaton no seu encalço. Michael tinha a estranha sensação de estar preso. Wheaton dirigiu-se de imediato à sala segura de teleconferências. Assim que Wheaton e Michael se sentaram nas sumptuosas cadeiras de pele preta, Carter e Monica Tyler apareceram no ecrã.

- Fico contente por ver que está bem, Michael - disse Monica.

- Passou uns dias bastante desgastantes. Temos muito que falar, por isso vamos começar pela pergunta óbvia. O que correu mal?

Durante dez minutos, Michael relatou cuidadosamente o que acontecera a bordo do ferry: Awad, a moça palestina chamada Odette, o iate e o atirador. Descreveu o tiroteio, as balas a atravessarem o corpo de Awad, cravando-se no seu colete. Descreveu a explosão e a forma como os homens no barco cobriram a fuga do atirador, com disparos. Por fim, descreveu a última batalha com Odette e como Graham Seymour a matara a tiro.

- Para começar, o que estava Graham Seymour, um agente do MI-Seis, a fazer naquele barco?

Michael sabia que, naquela altura do campeonato, pouco ou nada poderia ganhar ao mentir.

- É meu amigo. Conheço-o há muito tempo. Quis alguém de confiança a proteger-me a retaguarda.

Isso não interessa - contrapôs Monica, com uma paciência experiente. Monica, regra geral, não gostava de operações de campo, nem dos agentes que as realizavam. - O Michael incluiu um agente dos serviços de outro país sem a autorização dos seus superiores na sede.

- Ele trabalha para os ingleses, não para os iranianos. E se ele não estivesse lá, neste momento eu estaria morto.

Monica franziu o cenho de irritação, o que tornou claro que não iria deixar-se levar por argumentos baseados na emoção.

- Se estava tão preocupado com a sua segurança - disse ela, num tom de voz inexpressivo -, devia ter-nos pedido reforços a nós.

- Não quis ir para lá seguido de um pelotão, que Awad e a sua equipe pudessem detectar a quilômetros de distância. - Essa era apenas parte da verdade. - Queria o menor número possível de pessoas de Londres e da sede envolvidas na operação. Trabalhara no terreno, trabalhara na sede e sabia que Langley vertia como uma peneira.

- Parece que Awad e a respectiva equipe identificaram o seu bom amigo Graham Seymour - declarou Monica com um tom de desdém.

- Porque diz isso? - quis saber Michael. Wheaton remexeu-se desconfortavelmente na cadeira e Carter, a seis mil e quatrocentos quilômetros de distância, em Langley, fez a mesma coisa. Monica Tyler não aceitava bem perguntas do pessoal, mesmo quando se tratava de agentes superiores, como Michael. Tinha a certeza da convicção que resulta da ingenuidade. - Por que outra razão um dos seus atiradores tentaria matá-lo? E por que outra razão Awad faria explodir uma bomba presa ao corpo?

- Está a partir do princípio de que o atirador pertencia à Espada de Gaza. Penso que essa suposição está errada. O atirador não fez qualquer tentativa de poupar a vida de Awad. Ele tentou matar-me eliminando Awad primeiro. A mulher esteve atrás de mim o tempo todo. Se quisessem matar-me, ela poderia tê-lo feito e eu nem sequer teria tempo de agir. E quando o tiroteio começou, ela foi atrás do atirador primeiro, não de mim.

- Mas acabou por ir atrás de si.

- Sim, mas só depois de Awad detonar os explosivos. Acho que ela pensou que o atirador era dos nossos.

- Viu o rosto dele?

- Não, tinha a cabeça coberta por uma balaclava.

Monica inclinou-se e segredou ao ouvido de Carter. Este levantou as mãos e passou-as pela cabeça e pelo rosto. Michael percebeu que estava a explicar a Monica o que era uma balaclava. Monica ficou em silêncio por alguns instantes, observando as mãos, e depois continuou.

- O que lhe disse Awad antes de os problemas começarem? Michael narrou a conversa, não omitindo qualquer pormenor.

Fora treinado para memorizar grandes quantidades de informação e, quando trabalhava no campo, possuía uma capacidade lendária para reproduzir transcrições quase textuais de encontros com agentes. Carter costumava chamar-lhe "o Dictafone humano". Michael contou-lhes tudo o que Awad dissera, sobre Heathrow, sobre os ataques aéreos, sobre a expulsão de Hassan Mahmoud do grupo, com uma omissão notória. Não lhes falou nas fotografias do encontro de Mahmoud com Eric Stoltenberg, no Cairo.

- Acha que ele estava a dizer a verdade? - perguntou Monica.

- Sim, acho que sim - respondeu Michael, sem qualquer hesitação. - Sempre fui céptico no que diz respeito à reivindicação da Espada de Gaza. Não fiz segredo disso. Mas se não foi a Espada de Gaza, quem foi? E por que fariam uma reivindicação falsa?

E quem diabo tentou matar Muhammad Awad e a mim, a bordo daquele ferry?

Carter e Monica conferenciaram baixinho por um instante. Wheaton lançou a

Michael um olhar professoral por cima dos óculos de leitura em forma de meia-lua, como se Michael acabasse de dar a resposta errada a uma pergunta crucial num exame oral.

- Há outra coisa sobre a qual temos de conversar com você, Michael - disse Monica. Em seguida, acrescentou muito séria: - É de natureza muito grave. - Algo no tom de voz enervou Michael de imediato.

- Esta manhã, um agente do SIS britânico fez uma visita a um desertor chamado Ivan Drozdov. Parece que Drozdov faltou à apresentação semanal, algo que nunca faz, e o SIS ficou preocupado. O agente arrombou a casa dele e encontrou-o morto. A tiro. O SIS e a polícia local deram logo início às investigações. Ontem, Drozdov foi visto num café local com um homem que condiz com a sua descrição. O SIS gostaria de saber se esteve com ele ontem. E, para dizer a verdade, nós também.

- Sabe que a resposta é sim, porque me colocou sob vigilância desde que deixei Londres até regressar a Heathrow.

- Se estava sob vigilância, não foi ordenada por mim, nem por ninguém na sede - ripostou Monica.

- Não foi a Estação de Londres - garantiu Wheaton.

- Por que raios se foi encontrar com Drozdov sem a nossa autorização, ou a autorização do SIS? - inquiriu Monica. - E já agora, sobre o que falaram?

- Era um assunto pessoal - respondeu Michael. No monitor, via Adrian Carter olhar para o céu, soprando através dos lábios franzidos. - Drozdov trabalhou para o Departamento Cinco do Primeiro Direktorado do KGB, os assassinos. Tenho trabalhado em algo há vários meses e quis discutir o assunto com ele. Garanto-lhe que estava vivo e bem de saúde quando saí de lá.

- Fico satisfeita por achar que isso é divertido, Michael, porque nós não pensamos que assim seja - retorquiu Monica. - Quero-o no primeiro voo de regresso a Washington amanhã de manhã. Considere-se de licença administrativa enquanto aguarda uma investigação de sua conduta nesta questão.

A tela ficou vazia. Sem dizer uma palavra, Wheaton estendeu a mão. Michael enfiou a mão por baixo da camisa e entregou-lhe a Browning carregada. Wheaton quisera que Michael permanecesse na casa de segurança durante a sua última noite em Londres, mas Michael dissera-lhe em termos bastante claros para se ir lixar e regressara ao pequeno hotel em Knightsbridge, com vista para o parque. No início do serão, ao sair para o passeio molhado pela chuva, avistou de imediato dois sentinelas de Wheaton dormitando num Rover estacionado. Ao fazer compras para Elizabeth na Harrods, localizou mais dois.

Ao caminhar para o sul, em Sloane Street, divisou um quinto espião a pé.

Também havia dois homens num Ford, desta vez azul-escuro.

Quem são vocês? Quem os contratou? Se não foi Wheaton, quem foi? Não foi difícil despistá-los, ainda que fossem profissionais. Michael estava em vantagem, pois treinara com eles na Quinta e conhecia as suas tácticas.

Durante uma hora, deambulou pelo West End sob a chuva leve, a pé, de ônibus, de táxi, de metro, através de Berkeley Square, Oxford Street, Bond Street, Leicester Square e dos subúrbios do Soho. Acabou no apartamento de Sarah. O take-away libanês transformara-se em vegetariano, um monumento a Sarah, talvez. Bob Marley vibrava através de uma janela semiaberta, com cortinados sujos. A janela de Sarah. Provavelmente, os cortinados de Sarah.

Sarah Randolph cometeu um erro terrível, dissera-lhe Drozdov. Apaixonou-se pela vítima.

Ela fora uma mentira, um mito criado pelos seus inimigos, tragicamente heróica na sua ingenuidade sem limites. Ela traíra-o, mas não era real. Não podia amá-la, nem odiá-la. Só sentia pena dela.

Os sentinelas de Wheaton há muito que tinham desaparecido, por isso apanhou um táxi para Belgravia. Os homens de campo, tal como os ladrões, desenvolvem formas clandestinas de penetrar na sua própria casa para o dia inevitável em que sejam visitados por uma vida inteira de traição. Michael conhecia o método de Graham Seymour: através de uma cavalariça e por cima do muro caiado do jardim, com a ajuda de uma escada de corda deixada para essas ocasiões. Michael usava agora a escada para trepar o muro e caiu pela escuridão, indo aterrar na varanda de pedra de Graham. Este respondeu à pequena pancada nas portas de correr armado com uma das facas de cozinha de Helen, fabricadas na Suíça. Falaram no primeiro andar, na sala de visitas, o casaco ensopado de Michael a fumegar junto à lareira a gás, a aparelhagem alemã de Graham a troar Rachmaninoff para abafar a conversa.

Conversaram durante quase uma hora. Falaram sobre o que acontecera no ferry. Falaram sobre Sarah. Sobre Colin Yardley e Astrid Vogel, e o homem na escuridão que disparou três balas contra o rosto de Yardley. Sobre os homens no iate e no Ford: o monovolume branco e agora o azul. Michael precisava de dinheiro. Helen era rica e Graham tinha sempre guardado no cofre um ou dois milhares para emergências. Passaportes não eram problema.

Ao longo dos anos, Michael utilizara os seus contatos nos serviços aliados para reunir uma coleção de documentos de viagem falsos. Podia viajar como francês ou espanhol, grego ou alemão. Até como israelense. Telefona a Elizabeth, pediu Michael. Diz-lhe que lhe explico tudo quando voltar. Cuidado com o que dizes ao telefone. Não lhe digas para onde vou, nem o que ando a fazer. Diz-lhe que a amo. Diz-lhe que tenha cuidado. Comeram penne puttanesca e salada, e beberam vinho tinto. Helen e Graham conversaram como se Michael não estivesse ali. Michael sentia-se como se assistisse a um drama horrível na televisão. Devorou dois pratos de massa, que estava surpreendentemente boa.

Depois do jantar, Graham anunciou de repente que queria ver um filme novo que estava no cinema de Leicester Square. Helen concordou de forma entusiástica. Arrumaram a loiça e saíram. Na sala de visitas às escuras, Michael viu-os entrar para o BMW de Graham e arrancarem. Ouviu um motor de carro a ser ligado algures na escuridão. Michael observou-o enquanto deslizava para a rua silenciosa, com os faróis apagados.

Saiu pelas portas de correr, atravessou o jardim, trepou o muro e desceu pelo outro lado, pela escada de corda. Apanhou um táxi em King's Road e foi para a Waterloo Station. Comprou um bilhete para Roma com o dinheiro do cofre de Graham. O comboio partia dali a uma hora. Wheaton, se fosse inteligente, estaria a vigiar os aeroportos e as estações de comboio.

Michael comprou um chapéu impermeável num quiosque e puxou-o para a testa. Saiu e esperou à chuva. Cinco minutos antes da hora de o comboio partir, voltou a entrar na estação e dirigiu-se rapidamente à plataforma. Subiu para o comboio e depressa encontrou um compartimento vazio. Ficou sentado sozinho na semiobscuridade durante muito tempo, a escutar o barulho rítmico do comboio, a olhar para o seu reflexo no vidro, a pensar em tudo. Depois, quando o comboio saiu do túnel do Canal e avançou a toda a velocidade para sul, atravessando a França em direção a Paris, mergulhou num sono leve e sem sonhos.

LONDRES

O Diretor via as notícias das dez na ITN à medida que o Jaguar metalizado com motorista avançava a ronronar através das ruas do West End. Jantara mal no seu clube Mayfair (borrego demasiado passado), onde os restantes membros acreditavam que era um capitalista internacional aventureiro e bem sucedido, o que, até certo ponto, era uma descrição exata do seu trabalho. Meia dúzia desconfiava que, outrora, fizera um ou dois biscates para os Serviços Secretos. Um ou dois sabiam a verdade: que, na verdade, fora o diretor-geral, o lendário C, dos Serviços Secretos. Graças a Deus que lá trabalhara nos velhos tempos, quando a Agência oficialmente não existia e os diretores tinham o bom senso de manter os nomes e as fotografias afastados dos jornais. Imaginem só, o chefe dos Serviços a conceder uma entrevista ao The Guardian: uma heresia, uma loucura. O Diretor acreditava que os espiões e os serviços secretos se assemelhavam muito a ratazanas e a baratas. É melhor fingir que não existem. Ajuda uma sociedade livre a dormir melhor à noite.

O ataque ao ferry que fazia a travessia Dover-Calais dominava as notícias. O Diretor estava furioso, embora o rosto tranquilo não revelasse nada a não ser insolência enfadada. Após uma vida inteira nas sombras, a sua dissimulação era uma arte. Era estreito de cabeça e de ancas, com cabelo cor de arenito a ficar grisalho e mãos brancas de cirurgião que pareciam estar sempre a segurar um cigarro aceso de um comprimento adequado para um anúncio numa revista cara. Os olhos tinham a cor da água do mar no Inverno, a boca era pequena e cruel.

Vivia sozinho 250 em St. John's Wood com um rapaz da Sociedade que o protegia e uma moça bonita que tratava da papelada e cuidava dele. Nunca casara, não tinha filhos, nem familiares conhecidos. Os engraçadinhos nos Serviços costumavam dizer que tinha sido encontrado no início da meia-idade, dentro de um cesto, nas margens do Tamisa, vestido com um terno de riscas brancas, gravata Guarás e sapatos feitos à mão.

Desligou a televisão e olhou pela janela, observando a noite londrina passar. Não havia nada que detestasse mais do que o fracasso, nem mesmo a traição. Esta exigia inteligência e inexorabilidade, o fracasso apenas estupidez ou falta de concentração. Tinham sido dados todos os recursos necessários aos homens que enviara naquela missão no ferry para garantir o sucesso e, contudo, eles tinham falhado. Michael Osbourne era obviamente um adversário digno de respeito, um homem de talento, inteligência e engenho. Osbourne era bom, o seu assassino teria de ser melhor.

O carro parou à porta da casa. O motorista, um antigo membro de elite dos

Comandos Especiais Aerotransportados, acompanhou o Diretor até a porta, esperando que este entrasse. A moça estava à espera, uma jamaicana escultural cor de café chamada Daphne. Trazia vestida uma blusa branca, desabotoada até a elevação dos seios fartos, e uma saia preta que lhe dava pelo meio das coxas nuas. O cabelo castanho-alourado caía-lhe sobre os ombros quadrados.

- O senhor Elliott está ao telefone do Colorado, senhor - informou ela. Havia uma nota do ritmo melodioso da índia Oriental na sua voz, tendo o Diretor gasto milhares de libras em terapia da fala para o eliminar. Eram permitidos nomes dentro da residência Mayfair, pois era revistada regularmente em busca de escutas, e as paredes eram impermeáveis a microfones direcionais exteriores.

O Diretor foi para o escritório e carregou na luz intermitente do seu telefone preto multilinhas. Daphne entrou, despejou um centímetro de scotch de trinta anos para dentro de um copo e entregou-lho. Permaneceu no escritório enquanto a conversa decorria, pois não existiam segredos entre eles.

- O que é que correu mal? - perguntou Elliott.

O senhor Awad trouxe proteção, tal como o senhor Osbourne. E, ainda por cima, ele é mesmo bom.

- Tem de ser eliminado, sobretudo depois do que ficou a saber esta manhã, naquele ferry.

- Sei muito bem disso, senhor Elliott.

- Quando tenciona realizar outro ataque?

- O mais depressa possível - respondeu o Diretor, interrompendo-se para um gole de scotch. - Mas quero fazer uma substituição. O Osbourne é bastante bom. Assim sendo, o adversário tem de ser excelente. Gostaria de atribuir a tarefa ao Outubro.

- O preço dele é muito elevado.

- Tal como o que está em jogo neste ponto dos acontecimentos, senhor Elliott. Não me parece que seja altura para arengar sobre um ou dois milhões a mais, não acha?

- Não, tem razão.

- Vou preparar um dossiê detalhado sobre Osbourne e enviá-lo ao Outubro, por correio eletrônico codificado. Se ele optar por aceitar o alvo, o jogo vai recomeçar, e prevejo que o senhor Osbourne seja eliminado em breve.

- Espero que sim - afirmou Elliott.

- Conte com isso, senhor Elliott. Boa noite.

O Diretor pousou o receptor. Daphne colocou-se atrás dele e esfregou-lhe os ombros.

- Vai precisar de mais alguma coisa esta noite, senhor?

- Não, Daphne, vou apenas tratar de alguma papelada e depois vou deitar-me. - Muito bem, senhor - disse ela e saiu.

O Diretor trabalhou no escritório durante vinte minutos, terminando o scotch e vendo as notícias americanas sobre a explosão no ferry através do sistema de satélite. Desligou a televisão e subiu as escadas, dirigindo-se à suíte. Daphne encontrava-se deitada de costas na cama, blusa desabotoada, uma perna comprida cruzada sobre a outra, enrolando uma madeixa de cabelo no indicador fino.

O Diretor despiu-se silenciosamente e vestiu um roupão de seda. Alguns homens abastados divertiam-se com cavalos, ou carros. O Diretor tinha a sua Daphne. Ela despira-se. As roupas estavam a seu lado, na cama. Acariciava gentilmente os mamilos, a barriga, o alto das coxas. Daphne era uma provocadora, até consigo mesma. O Diretor entrou para a cama e fez deslizar um dedo pelo pescoço da jovem.

- Alguma coisa, meu amor? - perguntou ela.

- Não, minha flor.

A capacidade do Diretor para fazer amor com uma mulher encontrava-se gravemente comprometida, consequência, pensava ele, de uma vida inteira de mentiras e traição. Ela fez deslizar a mão por baixo do roupão, tomando-o entre as suas mãos compridas.

- Nada?

- Receio que não, meu amor.

- Que pena - disse ela. - Posso?

- Se quiser.

- O senhor é um tonto. Quer ajudar ou só ver?

- Só ver - respondeu ele, acendendo um cigarro.

Meteu a mão entre as coxas. Arquejou com força, lançou a cabeça para trás e fechou os olhos. Durante os dez minutos seguintes, tomou-a da única forma possível, com os olhos, mas, passado algum tempo, a sua mente começou a vaguear. Pensou em Michael Osbourne. No assassínio fracassado no ferry. No homem chamado Outubro. Seria uma luta interessante. Um deles não iria sobreviver. Se fosse Osbourne a morrer, a Sociedade subsistiria e Mitchell Elliott ganharia os seus bilhões. Se fosse Outubro... O Diretor estremeceu com esse pensamento. Trabalhara muito e durante demasiado tempo para que tudo ruísse. Estava demasiado em jogo, investira-se demasiado, para que agora terminasse em fracasso.

Voltou a fitar Daphne e encontrou os seus olhos castanhos fixos nele. Tinha o olhar direto e aberto de uma criança.

- Esteve longe durante alguns minutos - comentou.

A surpresa atravessou-lhe o rosto. Daphne despojava-o de todas as suas velhas defesas.

- Eu também olho, sabe. Quero saber se estou a fazê-lo feliz.

- Fazes-me muito feliz.

- Está tudo bem, amor? ?

- Está tudo ótimo.

- Tem certeza?

- Sim, certeza absoluta.


CONTINUA

WASHINGTON, D. C.

Susanna Dayton passou a tarde de domingo trabalhando do meio-dia às oito, sem interrupção, salvo para abrir a porta no meio da tarde para uma entrega. Tom Logan, o editor do Post, exigira mais, e ela o encontrara. O artigo era inatacável. Possuía documentos imobiliários e bancários reais que corroboravam as acusações mais graves. Tinha fontes humanas duplas e triplas que corroboravam as restantes. Nenhum dos mencionados no artigo poderia pôr em causa o que era dito. Os fatos falavam por si, e Susanna estava na posse dos fatos.

O dia foi gasto em escrever. Trabalhou em casa, pois não queria distrações. O artigo estava repleto de informações: números, nomes, datas, locais, pessoas. O desafio de Susanna era transformá-lo numa história interessante. Começou com uma breve descrição da personagem central, James Beckwith, um jovem procurador, um talento promissor sem fortuna pessoal, que poderia auferir no setor privado um rendimento bastante superior ao da política. Surge então Mitchell Elliott, um empresário da defesa e benfeitor republicano extremamente abastado. Continue na política, sugeriu Elliott ao jovem Beckwith, e deixe tudo comigo. Ao longo dos anos, Elliott enriqueceu os Beckwith com uma série de transações imobiliárias e financeiras. E o homem que concebeu muitos dos esquemas foi o principal advogado de Elliott, e lobista de Washington, Samuel Braxton.

O resto derivava dessa premissa. Pelas oito horas, Susanna escrevera um artigo de quatro mil palavras. Iria mostrá-lo a tom Logan na manhã seguinte. Devido à natureza bastante séria das acusações, Logan teria de o submeter ao crivo do editor geral e do editor chefe do jornal. Depois os advogados iriam analisar uma cópia. Sabia que os dias seguintes seriam longos e difíceis.

Ao artigo faltava um derradeiro elemento: comentários da Casa Branca, de Mitchell Elliott e de Samuel Braxton. Susanna procurou no Rolodex, encontrou o primeiro número de telefone e marcou-o.

- Alatron Defense Systems. - Era uma voz masculina, átona e vagamente militar. - Fala Susanna Dayton, do Washington Post. Gostaria de falar com Mitchell Elliott, por favor.

- Sinto muito, Sra.. Dayton, mas de momento o senhor Elliott não se encontra disponível.

- Importa-se de lhe transmitir um recado?

- com certeza.

- Tem uma caneta à mão? - E claro, Sra. Dayton.

- Gostaria que o senhor Elliott comentasse a seguinte informação contida num artigo que estou a preparar. - Falou durante cinco minutos, sem nunca ser interrompida pelo homem do outro lado da linha. Imaginou que o telefonema estivesse a ser gravado sem o seu consentimento. - Percebeu tudo?

- Sim, Sra. Dayton.

- E vai transmiti-lo ao senhor Elliott?

- É claro.

- Ótimo. Muito obrigada.

Susanna desligou e voltou a procurar no Kolodex. Ainda tinha o número pessoal de Paul Vandenberg, do tempo em que trabalhara na Casa Branca. Marcou o número.

Vandenberg atendeu pessoalmente.

- Senhor Vandenberg, fala Susanna Dayton. Sou jornalista do...

- Sei quem a Sra. é, Sra. Dayton. Não gosto de ser incomodado em casa. O que posso fazer por si?

Será que gostaria de comentar a seguinte informação que está incluída num artigo que redigi para o Post? - Mais uma vez, Susanna falou durante cinco minutos sem interrupção.

- Porque não me envia por fax uma cópia do artigo, para que eu possa analisar com mais cuidado as acusações? - sugeriu Vandenberg, quando Susanna terminou. - Receio não poder fazê-lo, senhor Vandenberg.

- Nesse caso, receio não ter mais nada a dizer-lhe, Sra. Dayton, exceto que produziu um artigo jornalístico desprezível, que não merece ser agraciado com um comentário.

Susanna anotou a citação no bloco de notas.

- Boa noite, Sra. Dayton.

A linha ficou em silêncio. Susanna procurou no Rolodex e encontrou o telefone de casa de Samuel Braxton. Estendia a mão para o telefone quando este tocou.

- Fala Sam Braxton.

- As notícias correm depressa.

- Pelo que sei, está prestes a publicar um artigo que calunia e difama Mitchell Elliott e minha pessoa. Quero que tenha noção das consequências de suas ações.

- Por que não me deixa ler as alegações antes de me ameaçar com um processo?

- Já me resumiram as acusações, Sra. Dayton. Pretende publicar esse relato no jornal de amanhã?

- Ainda não decidimos.

- Vou assumir essa resposta como um não.

Susanna cobriu o bocal e murmurou:

- Raios o partam, Sam Braxton, seu sacana arrogante.

- Por que não nos encontramos pela manhã e discutimos as alegações?

Susanna hesitou. Se discutisse assuntos legais com Braxton sem um advogado do Post a seu lado, Tom Logan acabaria com ela. Ainda assim, queria obter declarações de Braxton.

- É um favor que faz a si mesma, Sra. Dayton. Que mal há?

- Onde?

- Café da manhã no Four Seasons, Georgetown. Às oito.

- Lá nos encontraremos.

- Boa noite, Sra. Dayton.

Susanna tinha mais um telefonema a dar, para Elizabeth Osbourne. Estava prestes a publicar um artigo devastador sobre o homem mais poderoso da firma da amiga. Elizabeth merecia ser avisada. Teclou o número.

- Alô?

- Alô, Elizabeth? Escute, acho que precisamos falar.

 

Quando lhe telefonaram de Colorado Springs, Mark Calahan estava sentado na biblioteca da casa de Kalorama, a rodar os botões de um sofisticado equipamento de áudio. Salvo Susanna Dayton, Calahan sabia mais sobre as alegações presentes no artigo do que qualquer outra pessoa. Colocara sob escuta o telefone de Susanna na redação do Post, na 1th Street, o mesmo no telefone de casa. Instalara microfones na sala de estar e no quarto. Ouvia-a comer. Ouvia-a dormir. Ouvia-a falar com o cachorro. Ouviu-a na cama com um repórter televisivo, depois de um jantar no restaurante 1789, em Georgetown. Entrava na casa com regularidade e passava em revista os arquivos do computador. Um antigo criptoanalista da NSA, também a serviço de Mitchell Elliott, quebrara o código pueril de Susanna, o que permitira que Calahan lesse os arquivos à vontade. Só lhe faltava uma coisa: o produto final. - Entre na casa dela o mais depressa que puder. Temos que saber ao certo o que temos - ordenou Elliott.

- Sim, senhor.

- E quero que seja você a tratar disso. Não quero fracasso.

Calahan desligou o telefone e voltou a concentrar-se no equipamento. Aumentou os níveis de áudio dos transmissores no interior da casa de Susanna Dayton. Algo lhe chamou a atenção. Vestiu um blusão de couro preto e correu para a noite.

Dirigiu rapidamente através do noroeste de Washington, de Kalorama para Georgetown, e estacionou atrás da van de vigilância, em Volta Place. Bateu à porta traseira e o técnico deixou-o entrar. Dois minutos mais tarde, avistou Susanna Dayton a sair de Pomander Walk, vestida com um anoraque e calças de lycra, o cão a seu lado.

Calahan esperou até que ela desaparecesse de vista. Saiu da van, atravessou Volta Place e entrou em Pomander Walk. Possuía uma cópia da chave da porta. Segundos depois, tinha entrado.

Susanna atravessou a Wisconsin Avenue e correu para leste, ao longo da P Street. Era tarde e estava escuro, e combinara correr com Elizabeth pela manhã, mas estivera fechada dentro de casa o dia todo e precisava de fazer alguma coisa para aliviar o stresse. Doía-lhe o pescoço de olhar para a telado computador. Os olhos ardiam-lhe. Mas, depois de pouco mais de um quilômetro, sentiu a transpiração por baixo da gola alta. Foi dominada pela magia da corrida e a tensão do dia deixou-lhe lentamente o corpo.

Esforçou-se ainda mais, voando sobre o passeio de tijolo da P Street, passando à frente das grandes casas iluminadas. As patas de Carson ressoavam ritmadamente a seu lado. Passou por uma loja de conveniência, depois por um pequeno café. Jack e a nova esposa estavam sentados em bancos altos junto à montra, a falar bem próximos um do outro. Quando passou à frente deles, Susanna fitou-os como uma idiota. Jack levantou a cabeça e cruzaram o olhar. Depois a esposa viu-a.

Humilhada, Susanna desviou o olhar e correu mais depressa. Estúpida! Grande estúpida! Por que não olhaste para o outro lado? E que raio estavam eles a fazer em Georgetown? Fora por isso que Jack se mudara para Bethesda, para não andarem sempre a esbarrar um no outro. Deus do céu, porque não se limitara ela a olhar para o outro lado? Porque se deixara fitá-los como uma adolescente com uma paixoneta? E porque lhe batia o coração descompassado? A resposta era simples. Ainda amava Jack e nunca deixaria de o amar.

As lágrimas toldaram-lhe a visão. Correu ainda mais depressa. Carson esforçou-se por acompanhá-la. Os pés ressoavam furiosamente nos tijolos. Oh, meu Deus, por que estava ele ali sentado? Porra para ti, Jack. Porra! Não viu a raiz da árvore que se erguera um pouco do passeio. Não se apercebeu do pedaço de tijolo partido que se levantara. Sentiu uma pontada de dor no tornozelo e viu o chão saltar para ela nas trevas.

Susanna ficou inerte no chão, os olhos fechados, a arquejar. Sentia-se como se tivesse levado um coice na barriga. Tentou abrir os olhos, mas não conseguiu.

Por fim, sentiu alguém sacudir-lhe o ombro, chamando-a pelo nome. Abriu os olhos e viu Jack ajoelhado a seu lado.

- Susanna, você está bem? Consegue me ouvir?

Voltou a fechar os olhos.

- Que diabo está fazendo em Georgetown? - perguntou.

- Sharon e eu tivemos um jantar. Minha nossa Sra., não sabia que tinha de te avisar com antecedência.

- Não, fiquei sobressaltada, só isso.

- Lembra da Sharon, não?

Estava de pé, atrás de Jack, um espanto de vestido formal e casaco curto pretos, que exibiam um par de pernas fenomenal. Era criminosamente magra. O casaco estava desabotoado, revelando um par de seios grandes e redondos. Fazia o tipo de Jack: loura, olhos azuis, grandes seios, cabeça oca.

- Gostaria de poder dizer que é um prazer vê-la, Sharon, mas estaria mentindo - declarou.

- Vamos para seu lado. Damos carona a você?

- Não, obrigada. Preferia ficar morrendo na rua.

Jack segurou-lhe a mão. Carson soltou um rosnado profundo. :

- Não faz mal, Carson. Ele é mau, mas inofensivo.

Susanna levantou-se.

- Vem ali um táxi. Jack, faz alguma coisa de útil e chama. Jack dirigiu-se à estrada e acenou ao táxi, que parou junto ao passeio. Susanna coxeou até o carro e entrou, seguida pelo cão.

- Até à vista, Jack, Sharon.

Fechou a porta e o táxi arrancou. Recostou-se no banco traseiro, agarrada ao tornozelo, a cabeça apoiada no couro frio do assento. Chorou baixinho. Carson lambeu-lhe a mão. Porque teve ele de me ver assim, meu Deus? Logo agora, porquê? O táxi parou entre Volta Place e Pomander Walk. Susanna procurou no bolso da frente do anoraque e tirou uma nota de cinco dólares, que entregou ao taxista.

- Precisa de ajuda? - indagou o homem.

- Não, eu fico bem, obrigada.

Quando Mark Calahan subiu as escadas e entrou no quarto do primeiro andar que Susanna utilizava como gabinete, o computador estava ainda ligado. Sentou-se, retirou umo disquete do bolso do casaco e inseriu-a na drive do computador. Já conhecia bem o sistema, as diretorias onde ela guardava os apontamentos e as cópias. Encontrou o atalho para o artigo e clicou no ícone. O software de encriptação solicitou a palavra-chave. Calahan introduziu-a e o artigo surgiu na tela.

Calahan não se deu ao trabalho de ler. Leria mais tarde, quando dispusesse de mais tempo. Voltou a fechar o arquivo e digitou o comando para o copiar para o disquete. Mais uma vez, o software pediu a chave, que Calahan voltou a fornecer.

Uma vez dentro da casa, decidiu aproveitar a oportunidade para recolher mais informações. Calahan seguira várias das corridas de Susanna, que nunca duravam menos de trinta minutos. Tinha tempo de sobra. Três blocos de notas estavam ao lado do teclado. Abriu a capa do primeiro. As folhas estavam cheias com os gatafunhos esquerdinos de Susanna. Tirou uma microcâmara do bolso, acendeu a luz do abajur na mesa e começou a fotografar.

Estava na metade do segundo bloco quando ouviu a chave ser introduzida na fechadura da porta da rua. Praguejou em silêncio, apagou a luz e puxou da cintura uma pistola 9mm com silenciador.

As dores no tornozelo direito de Susanna eram lancinantes. Fechou a porta e sentou-se no divã da sala. Descalçou o sapato e a peúga e observou o ferimento. O tornozelo estava inchado e roxo. Coxeou até a cozinha, encheu um saco de plástico com gelo e tirou uma garrafa de cerveja do frigorífico. O analgésico estava no armário dos medicamentos da casa de banho. Coxeou escadas acima e ao longo do corredor, apoiada ao corrimão para se equilibrar. Entrou na casa de banho, pousou a cerveja no lavatório e abriu o armário. Encontrou o analgésico e engoliu dois comprimidos com cerveja. Fechou a porta do armário.

No espelho viu o reflexo de um homem atrás de si.

Susanna abriu a boca para gritar, mas uma mão enluvada tapou-lhe a boca, abafando qualquer som.

- Cala-te, cabra, se não mato-te - disse o homem por entre os dentes cerrados. Susanna debateu-se ainda mais. Apoiou o peso no tornozelo ferido, levantou o pé esquerdo e puxou-o atrás contra a canela do indivíduo, tal como aprendera nas aulas de autodefesa urbana. O homem gemeu de dor e afrouxou o aperto. Susanna girou para a direita e atacou com esse cotovelo, acertando na face do atacante.

O homem largou-a e Susanna fugiu.

Cambaleou até o corredor, e depois até o gabinete de trabalho. Ao levar a mão ao telefone, apercebeu-se de que o indivíduo estivera a mexer no computador e nos blocos de notas. Levantou o receptor.

O homem apareceu na entrada e apontou-lhe uma arma.

- Larga a merda do telefone.

- Quem é você?

- Larga o telefone e não te faço mal.

Carson subiu as escadas a correr, a ladrar furiosamente. Agachou-se no corredor, com os dentes arreganhados ao intruso. O homem ergueu calmamente a arma e disparou duas vezes contra o cão. Carson ganiu uma vez e ficou em silêncio.

- Cabrão! Cabrão de merda! Quem é você? Foi Elliott que o enviou? Diga, porra! Foi Mitchell Elliott que o enviou?

- Larga o telefone. Já!

Susanna baixou o olhar e marcou o nove e o um.

O primeiro tiro acertou-lhe na cabeça antes de conseguir marcar o último dígito. Caiu para trás, ainda agarrada ao receptor, ainda consciente. Olhou para cima. O homem agigantava-se sobre ela, a arma mais uma vez apontada para a cabeça.

- Na cara não - implorou. - Pelo amor de Deus, não me dê um tiro na cara. A expressão de fúria do homem suavizou-se por um instante. Baixou a arma alguns graus e o cano apontou ao peito. Susanna fechou os olhos. A arma emitiu dois sons breves. Susanna sentiu apenas um momento de dor lancinante e depois viu um clarão de luz brilhante. Em seguida, apenas escuridão.

Calahan baixou-se, retirou-lhe o receptor da mão e voltou a colocá-lo no descanso. A morte fora rápida, mas não completamente silenciosa. Tinha de agir depressa. A polícia iria dar a volta à casa. Se descobrissem vestígios de que a mulher estava a ser vigiada, talvez associassem a morte a Elliott. A limpeza demorou menos de cinco minutos. Ao sair da casa, Calahan empunhava os blocos de notas, os dois microfones do quarto, o microfone do telefone, a bolsa de Susanna e o computador portátil.

Saiu de Pomander Walk, atravessou Volta Place e entrou na van de vigilância. Mais tarde iria buscar o carro. Enquanto se afastava a alta velocidade, marcou o número privado de Mitchell Elliott no celular. - Receio que nos tenha surgido um pequeno problema, senhor Elliott. Daqui a cinco minutos ligo-lhe, a partir de uma linha segura.

Calahan desligou e atirou o telefone contra o para-brisa.

- Raios partam, porque chegou ela mais cedo? Cabra de merda!


BRÉLÉS, FRANÇA

Delaroche decidiu que precisava de uma mulher.

Chegou a essa conclusão depois de ver o conteúdo do disco uma segunda vez, agora no computador da casa de Brélés. Dois dos três alvos que restavam eram conhecidos mulherengos. Delaroche conhecia os seus hábitos, onde comiam e bebiam, sabia qual a zona onde caçavam. Mesmo assim, seria difícil aproximar-se desses alvos.

Uma mulher tornaria as coisas mais fáceis.

Delaroche precisava de uma mulher.

Tinha mais um dia para gastar em Brélés. Quando terminou com os arquivos, foi andar de bicicleta. O tempo estava bom: limpo, para Novembro, com vento fraco vindo do mar. Sabia que passaria bastante tempo sem bicicleta, por isso fez por se levar ao limite. Pedalou para o interior ao longo de alguns quilômetros, até as colinas arborizadas da Finistère, regressando então à beira-mar. Fez uma pausa nas ruínas em Pointe de Saint-Mathieu e depois dirigiu-se a norte, ao longo da costa, de volta a Brélés.

Dedicou o início da tarde à preparação. Limpou e oleou as suas duas melhores armas, uma Beretta de 9 mm e a Glock, e confirmou várias vezes os mecanismos de disparo e os silenciadores. Tinha uma terceira arma que mantinha presa ao tornozelo, num coldre de velcro, uma pequena Browning automática concebida para ser guardada numa bolsa de mulher. No caso de uma pistola não ser adequada, levaria uma faca, um punhal sólido com lâmina dupla de quinze centímetros e sistema automático.

De seguida reuniu os passaportes falsos, francês, italiano, holandês, espanhol, sueco, egípcio e americano, e organizou as finanças. Tinha os duzentos mil francos da galeria de Paris, e em Zurique levantaria o meio milhão de dólares. Seria mais do que suficiente para financiar a missão. Saiu ainda de dia e dirigiu-se à aldeia. Comprou pão na boulangerie e salsicha, queijo e patê a Mademoiselle Plauché. Didier e os amigos bebiam vinho no café. Acenou a Delaroche para que se lhes juntasse. Num gesto fora do comum, o convite foi aceite. Pediu mais vinho e comeu pão com azeitonas até o pôr do sol. Nessa noite, tomou uma refeição simples no terraço de pedra com vista para o mar. Concordara em matar outros três homens em quatro semanas. Apenas um louco aceitaria tal coisa. Teria sorte se sobrevivesse à missão. Mesmo que vivesse, talvez não pudesse regressar a Brélés.

Delaroche sempre matara sem paixão mas, pela primeira vez em muito tempo, não se recordava quando, sentia uma excitação que lhe percorria o corpo. Era semelhante à sensação que tivera com dezesseis anos, na noite em que matara pela primeira vez.

Levantou os pratos e lavou-os na cozinha. Depois passou a hora seguinte a vasculhar a casa e a queimar tudo o que poderia sugerir a sua existência. Delaroche apanhou o comboio da manhã de Brest para Paris, e o comboio do meio-dia de Paris para Zurique. Chegou uma hora depois de o banco ter fechado. Deixou o pequeno saco na estação e cambiou alguns francos franceses num bureau de change.

Percorreu uma rua cintilante, ladeada por lojas iluminadas e exclusivas. Numa loja da Gucci, utilizou dinheiro vivo para comprar uma pequena mala preta para documentos. Disse ao empregado de balcão que não precisava de saco e, momentos depois, estava de volta ao passeio, com a mala dependurada do braço direito. Quando chegou à entrada austera do banco, nevava ligeiramente. A única indicação da natureza do estabelecimento era a pequena placa dourada ao lado da porta. Delaroche pressionou o botão da campainha e aguardou enquanto o segurança o inspecionava através da lente da câmara de vídeo instalada por cima da porta.

A tranca da porta abriu e pôde entrar numa pequena antecâmara de segurança. Pegou num telefone preto e anunciou que tinha um encontro com Herr Becker. Este chegou momentos depois, imaculadamente vestido, um palmo mais baixo do que Delaroche, e com uma cabeça calva que brilhava na luz fluorescente.

Delaroche seguiu-o ao longo de um corredor silencioso e debilmente iluminado, forrado com carpete bege. Becker levou-o para outra sala de segurança e trancou a porta por onde entraram. Delaroche sentia-se claustrofóbico. Becker abriu um pequeno cofre de onde retirou o dinheiro. Delaroche fumou enquanto Becker contou as notas.

A transação demorou menos de dez minutos a ser concluída. Delaroche assinou o recibo pelo dinheiro e Becker ajudou-o a guardá-lo na pasta.

Na sala de entrada, Becker olhou para a rua.

- Todo o cuidado é pouco, Monsieur Delaroche - disse. - Andam ladrões por aí. - Obrigado, Herr Becker, julgo poder tomar conta de mim próprio. Tenha uma boa noite.

- Igualmente, Monsieur Delaroche.

Delaroche não quis andar muito com o dinheiro, por isso apanhou um táxi até a estação. Levantou o saco do cacifo e comprou um bilhete de primeira classe num comboio noturno para Amsterdam.

Delaroche chegou à Centraalstation de Amsterdam bem cedo na manhã seguinte. Atravessou rapidamente o hall apinhado, os olhos orlados de vermelho pela noite mal dormida, e saiu para o sol brilhante. A visão das bicicletas surpreendeu-o: milhares delas, filas e filas de bicicletas.

Delaroche apanhou um táxi até o Hotel Ambassade, no Central Canal Ring, e registrou-se como Senor Arminana, um empresário espanhol. Passou uma hora ao telefone, mudando de língua para o caso de a telefonista do hotel estar a ouvir a conversa, e utilizando o léxico codificado do submundo do crime. Dormiu um pouco e, ao fim da manhã, estava sentado à janela de um restaurante cheio de fumo, a pouca distância do hotel.

Lá estava a livraria, do outro lado de uma praça movimentada. O estabelecimento granjeara a reputação bem merecida de snobismo, pois especializara-se em literatura e em filosofia, e recusava-se a vender ficção ou thrillers comerciais. O empregado do hotel comentou que certa vez o gerente expulsara à força de braços uma mulher que se atrevera a perguntar pelo novo livro de um famoso escritor americano de romances.

Era o lugar perfeito para Astrid. Avistou-a por duas vezes a arrumar livros na montra, a dar sugestões a um cliente que estava obviamente mais interessado nela do que em qualquer livro que pudesse estar a ser recomendado.

Astrid tinha esse efeito sobre os homens, sempre assim fora.

Era por isso que Delaroche viajara até Amsterdam.

Nascera Astrid Meyer, na vila de Kassel, perto da fronteira da Alemanha Oriental. Quando o pai abandonou a família, em 1967, a mãe voltara a utilizar o seu nome de solteira, que era Lizbet Vogel.

Após o divórcio, Lizbet instalou-se numa casa à beira de um lago, nas montanhas suíças, nos arredores de Berna. Perto do final da guerra, em Julho de 1944, a família fugiu da Alemanha e procurou refúgio numa aldeia próxima. Foi aí, sozinha nas montanhas com a mãe, que teve início o fascínio de Astrid Meyer pelo avô, Kurt Vogel.

Fumador inveterado durante toda a vida, Vogel morreu de cancro dos pulmões em 1949, dez anos antes de Astrid nascer. No fim da vida, Gertrude, a esposa, tentara afastá-lo das montanhas, mas Vogel acreditava que o ar alpino seria a sua salvação. Morreu em casa, sem conseguir respirar.

Trude Vogel pouco sabia acerca do trabalho do marido durante a guerra, mas o que sabia contou a Lizbet e esta transmitiu-o a Astrid. Abandonara uma carreira legal promissora em 1935 para se juntar à Abwehr, os serviços secretos alemães. Fora bastante próximo do chefe da Abwehr, Wilhelm Canaris, executado por traição pelos Nazis, em Abril de 1945. Enganara Trude durante anos, dizendo-lhe que era o conselheiro legal de Canaris. Mais tarde, admitiria a verdade, que recrutara agentes que eram enviados para Inglaterra, para espiar os britânicos.

Lizbet recordava-se da noite.

O pai mudara a família para a Bavária, pois Berlim já não era segura. Lembrava-se do pai a chegar a casa, muito tarde, recordava-se da sua presença no quarto, enquadrado pela luz tênue que entrava pela porta. Mais tarde, recordava-se do som da mãe e do pai a falarem em voz baixa na cozinha, e do cheiro do jantar do pai. E depois ouviu o barulho de louça a partir-se, o som da mãe a arquejar. Ela e Nicole, a irmã gémea, rastejaram até o alto das escadas e olharam para o rés-do-chão. Lá em baixo, na cozinha, viram os pais e dois homens com as fardas pretas da SS. Não reconheceram um dos homens. O outro era Heinrich Himmler, o homem mais poderoso da Alemanha, logo a seguir a Adolf Hitler.

Durante anos, Lizbet Vogel acreditara que o pai fora um nazi, aliado de Himmler e das SS, um criminoso de guerra que escolhera morrer nas montanhas da Suíça, em vez de enfrentar a justiça na sua pátria. Concluiu que a mãe, em segredo, acreditava no mesmo. Quando a mãe morreu, Lizbet contou a história a Astrid, que cresceu a acreditar que o avô fora um nazi.

Então, durante uma tarde de Outubro de 1970, um homem telefonou para a casa e perguntou se poderia fazer uma visita. Chamava-se Werner Ulbricht, e trabalhara com Kurt Vogel na Abwehr, durante a guerra. Disse saber a verdade acerca do trabalho de Vogel. Lizbet pediu-lhe que lá fosse. Chegou uma hora depois. Era magro, pálido como farinha, apoiava-se numa bengala e usava uma pala negra sobre um olho.

Caminharam durante algum tempo, Werner Ulbricht, Lizbet e Astrid, e depois sentaram-se na margem relvada do lago e beberam café de um termo. Apesar do frio outonal no ar, o rosto de Ulbricht estava coberto de suor devido ao esforço. Descansou um pouco enquanto bebia café, e depois contou-lhes a história.

Kurt Vogel não era nazi. Odiava-os profundamente. Entrou para a Abwehr com a condição de não ser obrigado a aderir ao Partido, e Canaris teve todo o prazer em fazer-lhe a vontade. Não era conselheiro legal de Canaris. Era um angariador de agentes, e muito bom: meticuloso, brilhante, implacável, à sua maneira. Um dos seus agentes na Grã-Bretanha fora uma mulher. Juntos, tinham descoberto o mais importante segredo da guerra: a data e o local da invasão. Também descobriram que os britânicos estavam embrenhados numa fraude maciça para ocultar a verdade. Mas, em Fevereiro de 1944, Hitler despediu Canaris e colocou a Abwehr sob as ordens de Himmler e das SS. Vogel guardou a informação e juntou-se aos conspiradores anti-Hitler da Schware Kapelle, a Orquestra Negra. Quando o golpe de de julho terminou em desastre, muitos dos elementos da Schware Kapelle foram presos e executados. Vogel fugiu para a Suíça.

Quando Ulbricht concluiu a narrativa, os olhos de Lizbet estavam marejados de lágrimas. Fitou o lago e observou o vento a agitar a superfície. - Quem era o outro homem que foi com Himmler a casa da minha mãe? - perguntou. - Era Walter Schellenberg, um oficial de alta patente das SS. Assumiu a Abwehr quando Canaris foi despedido. O seu pai enganou-o quanto à invasão. -- E a mulher que era agente dele...? - indagou Lizbet, com a voz fraquejando. - Estava apaixonado por ela? A mãe sempre pensou que ele estava apaixonado por outra mulher.

- Foi há muito tempo.

- Diga-me a verdade, Herr Ulbricht.

- Sim, ele a amava muito.

- Como se chamava?

- Anna Katerina von Steiner. O pai obrigou-a a tornar-se agente. Nunca regressou da Inglaterra.

A obsessão de Astrid pelo avô teve início nessa tarde. O seu avô, aliado de Wilhelm Canaris, um bravo resistente da Schware Kapelle que tentou livrar a Alemanha de Hitler! No sótão, encontrou uma arca com os pertences que a mãe guardara: velhos livros de direito e algumas fotografias antigas, cheias de rachas com a idade, peças de roupa. Observou-as horas a fio. Quando teve idade para isso, chegou a imitar a aparência do avô: o cabelo espetado que parecia ter sido cortado por ele, os óculos com lentes de cristal de rocha, os severos ternos de agente funerário. Tentou visualizar a agente chamada Anna Katerina von Steiner, a mulher que ele amara. Astrid não encontrou vestígios dela nos documentos do avô, por isso compôs um retrato mental: bela, corajosa, implacável, violenta.

Com dezoito anos, Astrid regressou à Alemanha para frequentar a universidade em Munique e envolveu-se de imediato com a política de esquerda. Acreditava que os Nazis ainda governavam a Alemanha. Acreditava que os Americanos eram ocupadores. Acreditava que os industriais escravizavam os trabalhadores. Imaginava o que o avô, o grande Kurt Vogel, teria feito. Iria juntar-se à resistência, é claro.

Em 1979, abandonou os estudos na universidade e aderiu à Fação do Exército Vermelho. Os líderes disseram-lhe que teria de abdicar do nome verdadeiro e assumir um nom de guerre. Escolheu Anna Steiner e desapareceu no mundo do terrorismo.

Morava numa casa-barco no Prinsengracht. Às três da tarde saiu da livraria, pegou na bicicleta e cruzou a praça. Delaroche pediu a conta.

Caminhou durante algum tempo, a empurrar a bicicleta, sem pressas. Delaroche seguiu-a calmamente. Pouco mudara desde a última vez que a vira, anos antes. Era alta e um pouco desajeitada, com pernas bonitas mas pouco graciosas e mãos compridas que pareciam buscar eternamente um repouso confortável. O rosto pertencia a outra época: tez pálida luminosa, maçãs do rosto largas, um nariz grande, olhos da cor da água dos lagos das montanhas. O cabelo sempre mudara de acordo com o estado de espírito e com a política adoptada, mas agora, no início da meia-idade, regressara ao estado natural: comprido, louro, preso com uma simples mola preta.

Delaroche seguiu-a para norte, ao longo do Keizersgracht. Astrid cruzou o canal em Reestraat, ao que voltou a dirigir-se a norte ao longo do Prinsengracht. Entrou na sombra da Westerkerk, onde se situa o túmulo anônimo de Rembrandt. Delaroche estugou o passo e reduziu a distância que os separava. Ao ouvir os passos, Astrid virou-se rapidamente, a mão na bolsa e alarme no rosto.

Delaroche segurou-lhe o braço com gentileza.

- Sou eu, Astrid. Não tenha medo.

O Krista tinha treze metros de comprimento, com uma casa de leme na popa, uma proa elegante e uma pintura verde e branca nova.

Estava atracado ao lado de uma barca quadrada e, para subir a bordo, Astrid e Delaroche tiveram de atravessar o convés de ré do vizinho. O interior estava limpo e era surpreendentemente espaçoso, com uma cozinha, um salão e um quarto na proa. A luz débil do final da tarde entrava por um par de claraboias e por uma fileira de vigias ao longo do talabardão.

Delaroche instalou-se no salão, observando Astrid a fazer café na cozinha. Falavam holandês, pois fazia-se passar por uma divorciada de Roterdão e não queria que os vizinhos a ouvissem a falar em alemão. Tal como todos os habitantes da cidade, era obcecada com a bicicleta. Já lhe tinham roubado quatro desde que chegara a Amsterdam. Contou a Delaroche sobre o dia em que passeava ao longo do Singel e passou por um homem que vendia bicicletas usadas. Entre elas, Astrid viu uma das suas bicicletas desaparecidas. Disse ao homem que lhe pertencia e exigiu que a devolvesse. O indivíduo replicou que ela estava maluca. Astrid espreitou por baixo do selim e encontrou a placa com o nome que lá colocara. Ele chamou-lhe mentirosa. Astrid agarrou na bicicleta e declarou que ia levá-la. O homem tentou detê-la. Ela atacou com um golpe lateral do cotovelo, fraturando-lhe a laringe, e depois partiu-lhe o queixo com um pontapé à meia volta. Levantou a bicicleta e afastou-se ao som das palmas, elevada ao estatuto de heroína de todos os habitantes de Amsterdam que já tinham perdido uma bicicleta no mercado negro.

Levou o café para o salão e sentou-se à frente de Delaroche. Soltou a mola do cabelo e deixou que este lhe caísse sobre os ombros. Era uma mulher bastante atraente que aprendera a esconder a beleza para se fundir com o ambiente que a rodeava. Delaroche permitiu-se um momento a apreciá-la.

- E o que te traz a Amsterdam, Jean-Paul? Negócios ou prazer?

- És tu, Astrid. Preciso da tua ajuda.

Abanou lentamente a cabeça e acendeu um cigarro. Delaroche imaginara que pudesse não estar disposta a trabalhar com ele. Matara com frequência e pagara um preço muito elevado por isso, uma vida passada a fugir a todas as forças policiais e serviços secretos do Ocidente. Conseguira acomodar-se tanto quanto possível, e agora Delaroche pedia-lhe que abrisse mão de tudo isso.

- Há muito tempo que deixei esse mundo, Jean-Paul. Estou cansada de matar.

Não gosto tanto de o fazer como tu.

- Eu não gosto de matar. Apenas o faço porque me pagam e porque não sei fazer mais nada. Em tempos foste muito boa.

- Matava porque acreditava em alguma coisa. Há uma grande diferença. E vê só o que consegui - contrapôs, apontando para o que a rodeava. - Bem, imagino que pudesse ser pior. Podia estar em Damasco. Que tempos terríveis.

Delaroche ouvira dizer que ela passara dois anos escondida na Síria, cortesia de Hafez al-Assad e dos seus serviços secretos, e outros dois anos na Líbia, como convidada de Mu'ammar Khadafi.

- Estou oferecendo a liberdade, a oportunidade de largar tudo para trás e dinheiro suficiente para passar o resto da vida num lugar confortável. Quer ouvir mais?

Astrid apagou o cigarro e acendeu outro de imediato.

- Raios te partam.

Delaroche levantou-se.

- Imagino que seja um sim - disse.

- Quantas pessoas vamos matar?

- Volto daqui a meia hora.

Regressou ao hotel, fez as malas e pagou a conta. Trinta minutos depois, descia pela escotilha do Krista, com o pequeno saco de viagem e uma pasta de nylon com o computador portátil. Voltaram a instalar-se no salão, Delaroche ao computador, Astrid sentada numa otomana. Delaroche percorreu os alvos, um a um. Astrid manteve-se imóvel como uma estátua, as pernas cruzadas por baixo do corpo, uma mão comprida a apoiar o queixo, a outra com um cigarro. Não disse nada, não fez perguntas, pois, tal como Delaroche, tinha uma memória prodigiosa.

- Se me ajudares, pago-te um milhão de dólares - adiantou Delaroche, ao concluir as informações. - E ajudo-te a instalares-te num sítio seguro e um pouco mais agradável do que Damasco. - Quem te contratou?

- Não sei.

Astrid ergueu uma sobrancelha.

- Nem parece teu, Jean-Paul. Devem estar a pagar-te muito dinheiro. - Puxou uma passa do cigarro e soprou uma espiral de fumo para o teto. - Leva-me a jantar. Tenho fome.

Tinham sido amantes, há muito tempo, quando Delaroche ajudou a Fação do

Exército Vermelho com um assassinato particularmente difícil. Regressaram ao

Krista depois do jantar num pequeno restaurante francês com vista para o Herengracht. Delaroche deitou-se na cama. Astrid sentou-se a seu lado e despiu-se em silêncio.

Tinham passado muitos meses desde que levara um homem para a sua cama e, da primeira vez, amou-o rapidamente. Depois acendeu velas, e juntos fumaram cigarros e beberam vinho, com a chuva a martelar na claraboia por cima dos seus corpos. Fez amor com ele uma segunda vez muito lentamente, envolvendo-lhe o corpo com os braços e as pernas compridas, tocando-lhe como se fosse feito de cristal. Astrid gostava de ficar por cima. Gostava de controlar. Não confiava em ninguém, especialmente nos amantes. Pressionou-lhe o corpo durante muito tempo, beijando-lhe a boca, fitando-lhe os olhos. Depois ajoelhou-se, as pernas abertas sobre o corpo do parceiro, e foi como se Delaroche já lá não estivesse. Astrid brincou com o cabelo, afagou os mamilos dos seios pequenos e arrebitados. Depois fechou os olhos e lançou a cabeça para trás. Implorou-lhe que chegasse dentro dela. Quando ele o fez, Astrid estremeceu várias vezes e depois tombou sobre o peito dele, o corpo úmido com a transpiração.

Momentos depois, deitou-se de costas e fitou a chuva a escorrer na claraboia. -- Promete-me uma coisa, Jean-Paul Delaroche - disse-lhe. Promete-me que não me matas quando já não precisares de mim.

- Prometo que não te mato.

Astrid apoiou-se no cotovelo, olhou-o nos olhos e beijou-lhe os lábios.

- Tem visto Arbatov?

- Sim, em Roscoff, há uns dias.

- Como está ele? - perguntou Astrid.

- Como sempre - respondeu Delaroche.


WASHINGTON, D. C.

Naquela manhã fria, Elizabeth Osbourne aguardava à esquina das ruas 34th e M, a correr sem sair do sítio, a soprar as mãos para as aquecer. Olhou para o relógio. Susanna estava cinco minutos atrasada. A amiga tinha muitos defeitos, mas a falta de pontualidade não se incluía na lista. Atravessou a rua e dirigiu-se a um telefone público, onde marcou o número da casa de Susanna. O atendedor de chamadas disparou.

- Susanna, é a Elizabeth. Atende, se aí estiveres. Estou à tua espera à esquina. Vou dar-te mais alguns minutos, mas depois tenho de me ir embora. Volto a ligar-te do trabalho.

Ligou para a extensão de Susanna, no Post. Foi o voice mail quem atendeu.

Elizabeth desligou sem deixar mensagem.

Olhou para a 34th Street, mas não viu sinais de Susanna, nem de Carson. Telefonou para casa e confirmou se Susanna deixara alguma mensagem no gravador de chamadas. A máquina disse-lhe que tinha uma mensagem. Marcou o código de acesso, mas era apenas Max, a dar-lhe conta de que um almoço tinha sido cancelado.

Desligou a pensar: Raios partam, onde é que ela está'?

Pensou no telefonema de Susanna da noite anterior. Estava prestes a publicar um grande artigo sobre Mitchell Elliott e Samuel Braxton. Talvez estivesse ao telefone, a finalizar a peça. Talvez estivesse a falar com os editores.

Virou-se e correu a 34th Street acima. Virou à direita em Volta Place e depois novamente à direita para Pomander Walk. Subiu os degraus da casa de Susanna e tocou à campainha. Ninguém respondeu.

Bateu com o punho na porta de madeira. Voltou a não ter resposta. Do interior não se ouvia nada. Carson estava sempre alerta. Regra geral, começava a ladrar antes de Elizabeth bater à porta. Se o cão estivesse lá dentro, por essa altura já estaria a ladrar.

Virou-se e viu luzes na casa de Harry Scanlon. Cruzou o acesso e bateu à porta. Scanlon veio abrir de roupão.

- Lamento incomodá-lo, Harry, mas a Susanna e eu tínhamos combinado uma corrida e ela deixou-me pendurada. Não é do feitio dela. Estou preocupada. Ainda tem a chave?

- Claro, espere só um instante.

Scanlon desapareceu dentro de casa e regressou momentos depois com uma chave. - Eu ajudo-a - ofereceu-se.

Dirigiram-se à porta da casa de Susanna. Scanlon enfiou a chave na fechadura e abriu a porta.

- Susanna! - chamou Elizabeth. Não houve resposta.

Deu uma vista de olhos à sala e à cozinha. Tudo parecia normal. Começou a subir as escadas, sempre a chamar por Susanna, com Scanlon atrás dela.

Quando chegou ao patamar, viu o cão.

- Ai, meu Deus! Susanna! Susanna!

Passou por cima do corpo do animal e espreitou para a casa de banho. Os mosaicos brancos estavam cobertos de vidros da garrafa de cerveja que caíra e se partira. Elizabeth deu mais alguns passos pelo corredor e olhou para o gabinete de trabalho.

Virou-se e gritou.

Elizabeth estava sentada nos degraus da casa de Harry Scanlon, com um cobertor de lã pelos ombros. Meia dúzia de carros da polícia, com as luzes vermelhas e azuis a brilhar, entupiam Volta Place. A van forense já chegara e os técnicos reviravam o interior da casa de Susanna. Tentou falar com Michael, mas este não atendeu o telefone.

Ditou à telefonista um recado urgente e o telefone de Harry Scanlon.

Bolas, Michael, preciso de ti, pensou.

Elizabeth aconchegou-se mais com o cobertor, mas não conseguia parar de tremer. Fechou os olhos, mas viu o corpo lacerado de Susanna no chão, e viu o sangue. Meu Deus, tanto sangue! Apercebeu-se de que alguém a chamava. Abriu os olhos e viu à sua frente um afro-americano de pele clara e olhos de um verde profundo. O distintivo da polícia estava pendurado do paletó do terno azul.

- Senhora Osbourne, sou o detective Richardson, dos Homicídios. Pelo que sei, foi a Sra. quem encontrou o corpo.

- É verdade.

- A que horas?

- Entre as sete e um quarto e as sete e vinte, se não estou em erro.

- Conhecia a vítima?

A vítima, pensou Elizabeth. Susanna já perdera o nome. Agora não passava da vítima.

- Éramos muito amigas, Detetive. Conhecia-a há vinte anos. Tínhamos combinado ir correr esta manhã. Como não apareceu, vim à procura dela. O vizinho tinha a chave e entrei em casa dela.

- Reparou em alguma coisa fora do normal?

- Tirando o corpo, não.

- Sinto muito, Sra. Osbourne. Onde trabalhava ela?

- Era jornalista do The Washington Post.

- Bem me parecia que conhecia o nome. Trabalhou na Casa Branca durante algum tempo, certo? Costumava participar naquele programa da mesa redonda.

Elizabeth aquiesceu.

- Pode parecer-lhe uma pergunta estranha, mas sabe de alguém que a quisesse matar?

- Ninguém.

- Passava-se alguma coisa anormal na vida dela?

- Não.

- Namorados zangados? Amantes abandonados?

Elizabeth abanou a cabeça.

- Marido?

- Voltou a casar-se.

- Como era a relação entre os dois?

- Trabalho com ele, Detetive. É associado na minha firma. Pode ser um monte de esterco, mas não é um assassino.

- Não encontramos a bolsa dela. Sabe se tinha alguma?

- Sim, deixava-a sempre em cima da bancada da cozinha.

- Não está lá.

- Quem fez isto?

- Não fazemos ideia. Ao que parece, tinha alguém dentro de casa e ela o surpreendeu. Estava vestida com roupa de corrida, mas sem um dos tênis. Parece que torceu o tornozelo. O cão estava preso.

- E a mataram.

- Nesta cidade há muitas pessoas que preferem matar a deixar uma testemunha que as possa identificar mais tarde. - O tom da voz do detective era casual. Levou a mão ao ombro de Elizabeth. Lamento imenso, Sra. Osbourne. Fique com o meu cartão. Se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, diga-me. Elizabeth ouviu o telefone tocando dentro da casa. Harry Scanlon surgiu na porta, os olhos vermelhos. - É o Michael - indicou.

Elizabeth levantou-se e entrou, sem grande equilíbrio.

- Michael, vem para casa depressa. Preciso de você.

- O que aconteceu? Por que você está na casa do Harry?

- Susanna morreu. Foi morta dentro de casa. Fui eu que a encontrei. Ai meu Deus, Michael... - As lágrimas embargaram sua voz. - Por favor, Michael, vem depressa para casa.

- Fique aí. Vou buscá-la.

- Não. Vá para casa. Preciso andar. Preciso pegar ar.

Olhou pela janela e viu o corpo de Susanna, enrolado num lençol branco, sendo retirado de maca. Mantivera a compostura até aquele momento, mas ver Susanna daquela forma roubou-lhe as últimas forças.

- Elizabeth, você está aí? Elizabeth, fale comigo.

- Eles a estão levando. Ai, meu Deus, pobre Susanna! Estou só pensando no que ela deve ter sofrido antes de morrer. Não consigo deixar de pensar nisso.

- Saia daí. Vá para casa. Vai se sentir um pouco melhor. Acredite.

- Ande depressa.

- Sim.

Elizabeth desligou o telefone. Scanlon tinha um disquete na mão. - Bem, acho que ela já não precisa dissto. - Fez uma pausa e os olhos encheram-se de lágrimas. - Céus, nem acredito que disse isto.

- O que é?

Scanlon explicou o sistema que usavam, como Susanna fazia sempre cópias do trabalho e as deixava em sua caixa do correio.

- Era paranoica.

- Eu sei. Na faculdade de Direito, guardava as coisas na geladeira, porque tinha lido em algum lugar que geladeiras resistem a incêndios. - Elizabeth sorriu com a recordação. - Sinto tanta falta dela. Nem acredito que isto esteja acontecendo.

Scanlon pousou o disquete na bancada da cozinha.

- Encontrei-a ontem à noite, quando cheguei a casa. Ela deve tê-la deixado quando foi correr. É engraçado, sempre pensei que ela era maluca por correr à noite, mas foi morta dentro de casa.

Elizabeth pensou no telefonema de Susanna na noite anterior. Passara o dia a trabalhar num artigo importante. O que ela escrevera deveria estar naquela disquete.

- Posso ficar com ele? - perguntou Elizabeth.

- Claro, mas não vai conseguir ler o que está aí.

- Por quê?

- Porque ela usava software de encriptação. É como lhe digo, ela era paranoica com o trabalho.

- Não sabe a senha?

- Não, nunca me disse. Imaginava que tivesse dito a você.

Elizabeth abanou a cabeça.

- E os editores do Post?

- Nem pensar. Ela não confiava em ninguém, muito menos nas pessoas com quem trabalhava.

- Vou ficar com ele - declarou Elizabeth. - Tenho um amigo que entende um pouco dessas coisas.

Elizabeth mostrou o disquete a Michael quando estavam na cama, cercados pelos lençóis desalinhados. Michael acendeu um cigarro e revirou o disquete na mão. Elizabeth deitou a cabeça na barriga bronzeada do marido e percorreu os pêlos escuros do peito dele com o dedo. Sentia-se culpada por terem feito amor numa altura dessas. Quando chegou a casa queria estar perto dele. Queria abraçá-lo e nunca o perder de vista. Estava com medo, aterrorizada com o que acontecera à amiga, e não queria soltá-lo. Abraçou-o. Beijou-lhe os lábios, os olhos e o nariz. Despiu-o e fez amor com ele, lentamente, gentilmente, como se desejasse que nunca chegasse ao fim. Agora estava deitada ao seu lado, a ver a chuva a escorrer pelas janelas do quarto.

- O Harry diz que está protegida.

- Isso não é problema. Só precisamos de descobrir a palavra-passe.

- E como pretendes fazer isso?

- As pessoas são preguiçosas. Usam datas de nascimento, endereços, todo tipo de palavras e números que possam lembrar com facilidade. Conhece Susanna melhor do que ninguém.

- Precisa de software especial?

- Tenho no meu computador.

- Vamos.

Vestiram os roupões e percorreram o corredor até o gabinete de Michael, que se sentou à secretária. Elizabeth ficou atrás dele, as mãos agarradas aos ombros do marido. - Data de nascimento?

- 17 de novembro de 1957.

Michael introduziu a versão numérica: 17-11-57. Na tela surgiu:

ACESSO NEGADO PALAVRA-CHAVE INCORRETA

- Data de nascimento ao contrário - disse Michael. O computador deu a mesma resposta.

Endereço... Endereço ao contrário... Número de telefone... Número de telefone ao contrário... Telefone do trabalho... Telefone do trabalho ao contrário... Nome... Nome ao contrário... Nome do meio... Nome do meio ao contrário... Sobrenome... Sobrenome ao contrário...

- Podemos ficar aqui eternamente - comentou Elizabeth.

- Eternamente, não.

- Pensei que tivesse dito que ia ser fácil.

- Disse que não era problema. Nomes dos pais?

- Maria e Carmine.

- Maria e Carmine?

- Ela é italiana.

- Ela era italiana.

Michael trabalhou durante as duas horas seguintes. Descobriu mais sobre a vida de Susanna do que julgara possível: namorados, cidade natal, banco, filme preferido, livro predileto. Tentou tudo, para a frente, para trás, de lado, e nada resultou.

- Como se chamava o cão?

- Carson.

- Por que Carson?

Elizabeth sorriu.

- Porque tinha insônia e adorava The Tonight Show.

Michael digitou CARSON. Nada. Experimentou JOHNNY. Nada. Tentou DOC e ED. Nada.

- Tinha gravado os últimos dois programas. Estava sempre revendo.

- Quem foi o convidado do último programa?

- Foi só Johnny, lembra? Foi só ele falando com o público.

- E no anterior?

- Bette Middler. Ela adorava a Bette Middler.

Michael escreveu BETTE. Nada. MIDDLER. Nada. Escreveu os nomes ao contrário.

Nada.

Bateu com a palma da mão na mesa. - Sai da frente - disse Elizabeth.

Inclinou-se sobre o ombro do marido, escreveu THE ROSE e pressionou a tecla ENTER. O computador hesitou durante alguns segundos e a última coisa que Susanna Dayton escrevera apareceu na tela.

Meu Deus - exclamou Michael.

 


AMSTERDAM

 

A casa flutuante no Prinsengracht assumira a aparência de uma sala de operações militares. Delaroche chegou a pensar brevemente em regressar a Brélés, mas era uma aldeia, com a normal tendência das aldeias para os mexericos, e sabia que a presença de uma loura alta iria fazer despertar o interesse de Didier e dos seus compinchas. Além disso, o Krista garantia uma atmosfera descontraída e reservada onde planear os assassinatos. Nas paredes afixou mapas de grande escala das ruas das cidades onde iria levar a cabo as mortes: Londres, Cairo, Washington. Levantava-se cedo todas as manhãs e trabalhava enquanto Astrid dormia. Depois passavam duas horas juntos, a falar e a planear, até que ela se dirigia à livraria, às dez horas.

À tarde, as paredes começavam a oprimi-lo e Delaroche levava emprestada a terrível bicicleta de Astrid e pedalava através das ruelas estreitas à volta do canal. Encontrou uma loja de material de pintura, comprou um pequeno estojo de aguarelas e pintou vários belos quadros das pontes, dos barcos e das casas de fachadas triangulares sobranceiras aos canais. No quarto dia, uma frente fria começou a soprar, vinda do mar do Norte. Nos dois dias seguintes, o Krista encheu-se com os gritos divertidos de centenas de patinadores que deslizavam sobre a superfície gelada do Prinsengracht.

Todas as noites ia buscar Astrid à livraria e levava-a a um restaurante diferente. Depois passeavam ao longo dos canais batidos pelo vento e bebiam cerveja De Konmck nos bares impregnados do odor a cannabis de Leidseplein.

Fez amor com ele duas noites seguidas, e depois rejeitou-o outras duas. Astrid tinha um sono agitado, atormentado por pesadelos. Na véspera da partida acordou em pânico, alagada em suor, à procura da pequena Browning automática que mantinha sempre no chão, ao lado da cama. Poderia ter matado Delaroche, caso este não lhe tivesse retirado a arma das mãos, antes que ela a destravasse. Fez amor com ele loucamente e implorou-lhe que nunca a deixasse.

A manhã seguinte acordou gelada e cinzenta. Fizeram as malas em silêncio e trancaram o Krista com um cadeado. Delaroche destruiu os quadros. Astrid telefonou para a livraria. Surgira-lhe uma emergência familiar e precisava de alguns dias de folga. Iria manter-se em contato.

Foram de táxi até a Centraalstation e apanharam o comboio da manhã para a vila de Hoek van Holland. Seguiram mais uma vez de táxi para o terminal dos ferries e tomaram um pequeno-almoço tardio de pão e ovos num pequeno restaurante à beira da água. Uma hora depois embarcaram no ferry para Harwich, na Grã-Bretanha, do outro lado do mar do Norte.

A travessia costumava demorar seis horas, com bom tempo, oito ou mais, com o mar revolto. Nesse dia, as águas eram fustigadas por uma tempestade gelada vinda do mar da Noruega. Astrid, propensa a enjoos, passou grande parte da viagem na casa de banho, vomitando com violência, sempre a maldizer o nome de Delaroche. Este estava no convés, ao ar gélido, a observar as ondas que rebentavam na proa do ferry.

Pouco antes de chegarem, Astrid mudou a aparência. Apanhou o cabelo louro e cobriu a cabeça com uma peruca preta que lhe dava pelos ombros. Delaroche envergou um boné de basebol com o nome de um cigarro americano e, apesar do mau tempo, os óculos-de-sol Ray-Ban.

A Comunidade Europeia tornou mais fácil a vida do terrorista internacional pois, uma vez no interior de um Estado membro, a passagem para outro é feita quase sem riscos. Delaroche e Astrid entraram no Reino Unido com passaportes holandeses, fazendo-se passar por turistas solteiros, tendo apenas de se submeter a uma inspeção superficial dos documentos, levada a cabo por um agente britânico enfadado. Mesmo assim, Delaroche sabia que as forças de segurança britânicas gravavam em vídeo todos os passageiros que entravam no país, independentemente do passaporte apresentado. Sabia que ele e Astrid tinham acabado de deixar as primeiras pegadas.

Quando Delaroche e Astrid embarcaram no comboio na estação de Harwich, a noite tombara já sobre a costa inglesa. Noventa minutos depois, chegavam a Londres. Como base de operações, Delaroche escolheu um pequeno apartamento de serviço em South Kensington. Alugou-o por uma semana a uma empresa que se especializava em casas para turistas. A primeira ação foi cancelar o aspeto de "serviço" do negócio. Não precisava de uma empregada a meter o nariz nas suas coisas. O apartamento era modesto mas confortável, com uma cozinha totalmente funcional, uma sala grande e um quarto separado. A linha telefônica era direta, sem telefonistas envolvidas, e a casa tinha janelas grandes que davam para a rua.

Não perderam tempo. O alvo era um agente do MI6 chamado Colin Yardley, um antigo operacional de campo de cinquenta e quatro anos que servira na União Soviética, no Oriente Médio e, nos últimos tempos, em Paris, e que aguardava a reforma compulsiva a fazer serviço de secretária na sede. Enquadrava-se no perfil de muitos agentes dos serviços secretos no fim da carreira: esgotado, amargo, divorciado. Bebia demasiado e envolvia-se com inúmeras mulheres. O Departamento de Pessoal do MI6 dissera-lhe, sem rodeios, para acabar com isso. Yardley dissera aos lacaios do Pessoal que se danassem. Estava tudo no relatório de Delaroche. Seria fácil matá-lo. O desafio era matá-lo da forma correta.

Apesar dos anos passados em campo, desde que regressara a Londres Yardley tornara-se preguiçoso e descuidado. Apanhava todas as noites um táxi desde a sede do MI6 à beira rio até um restaurante e bar em Sloane Square. Era aí o seu terreno de caça: jovens atraídas pela sua boa aparência madura, divorciadas abastadas do West End, esposas aborrecidas em busca de uma noite de sexo anônimo. Chegou poucos minutos depois das seis e instalou-se no seu lugar habitual no bar.

Astrid Vogel estava à sua espera.

Não era a mesma mulher que Delaroche vira na livraria de Amsterdam dez dias antes. Passara a tarde na Harrod's e nas lojas resplandecentes de Bond Street, armada com uma boa provisão do dinheiro de Delaroche. Usava agora um vestido preto, meias pretas, um relógio de ouro e uma fiada dupla de pérolas ao pescoço. A mola preta simples desaparecera-lhe do cabelo, que fora aparado e penteado por um estilista italiano de um salão em Knightsbridge. Caía-lhe agora à volta do rosto e do pescoço. Astrid sabia disfarçar a sua beleza natural, mas também sabia como chamar a atenção quando necessário.

Delaroche estava sentado num banco em Sloane Square, fingindo ler um exemplar do The Evening Standard comprado numa banca perto da estação de metro da praça. Observou o desenrolar dos acontecimentos no interior do restaurante como uma pantomima. Astrid sentada sozinha no bar, o cigarro eterno entre os dedos compridos e magros. Yardley, alto, grisalho, distinto, pergunta se o lugar ao seu lado está livre. À frente dele surge de imediato uma bebida, o habitual, e, pela sua expressão, julga que ela ficou impressionada. Acena ao empregado para que este sirva à Sra. outro copo de vinho branco. Astrid, grata, vira o corpo para o encarar, uma perna comprida cruzada de modo sugestivo sobre a outra, a saia bem subida na coxa. Já lhe pertence. A mulher solitária e assustada da casa flutuante de Amsterdam desapareceu. É uma holandesa decidida e cosmopolita cujo marido ganha dinheiro e ignora-a demasiado e, sim, pode acender-me o cigarro, querido.

Após uma hora, ela levanta-se e veste o casaco. Apertam as mãos de modo formal.

Ela permite que os dedos permaneçam um instante a mais nos dele. Pergunta-lhe onde está hospedada? No Dorchester. Pode dar-lhe boleia? Não, não é necessário. Pode chamar-lhe um táxi? Não, ela trata disso. Poderão encontrar-se novamente, antes que deixe Londres? Volte amanhã à noite e, se tiver sorte, querido, estarei aqui.

Cruzou rapidamente a praça, passando por Delaroche, embrenhado na leitura do jornal. Dirigiu-se a norte, subindo Sloane Street.

Delaroche viu Yardley chamar um táxi e entrar para o carro. Levantou-se e atravessou a praça até Sloane Street.

- Como correu?

- Se deixasse, tinha-me fodido ali mesmo no bar.

- Quer dizer que se mostrou interessado?

- Convidou-me para ir a casa dele, para uma bebida e caril de take-away. Disse-lhe que o meu marido poderia ficar zangado se eu não estivesse no hotel quando a reunião acabasse.

- Ótimo, não quero que pense que és uma prostituta. Além disso, não pode ser tão estúpido como parece. E quanto a amanhã à noite?

- Deixei bastante claro que voltaria ao bar.

- Ele volta.

- Por favor, Jean-Paul, não quero que ele me beije. O hálito dele cheira a merda.

- Essa parte da operação fica nas tuas mãos.

- Meu Deus, espero que não tente beijar-me. Se tentar, juro que sou eu que o mato.

Na noite seguinte, Yardley chegou primeiro. De vigia no banco de Sloane Square, Delaroche reprimiu uma gargalhada ao ver o tão bem treinado agente dos serviços secretos britânicos lançar uma série de olhares ansiosos na direção da porta. Depois de meia hora, Delaroche decidiu que Yardley já esperara tempo suficiente pela sua recompensa. Fez sinal a Astrid, que estava sentada à janela de um bar do outro lado da praça. Cinco minutos depois entrava no restaurante, diretamente para os braços de Colin Yardley.

Provocou-o. Brincou com ele. Bebia-lhe cada palavra. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. Permitiu que lhe pagasse demasiados copos de Sancerre. Inclinou-se para a frente, para que ele pudesse espreitar-lhe pela blusa e ver que não trazia sutiã. Afagou-lhe a barriga da perna com a ponta do caro sapato Bruno Magli. Tentou ir-se embora por várias vezes - o meu marido vai perguntar-me onde andei, querido - mas ele fazia sinal ao empregado do bar, que trazia outro copo de Sancerre. Ela não tinha força de vontade para se afastar daquele homem tão interessante, e seja um querido e peça outro maço de Marlboro Light 100s, por favor. Astrid, a sedutora. Astrid, a necessitada. Astrid, a holandesa faminta por sexo, que faria tudo pela atenção de um inglês de meia-idade, com um terno de Savile Row e uma casa dispendiosa. Delaroche apreciou o trabalho dela a partir da praça. Sentiu outra coisa: uma pontada de ternura. Levou a mão ao casaco e sentiu a coronha da Glock.

A parte seguinte correu de acordo com o planeado. Astrid inclinou-se para a frente e murmurou-lhe ao ouvido. Yardley pagou a conta e foi buscar os casacos.

Dois minutos depois, entravam para um táxi.

Delaroche observou-os a afastarem-se. Levantou-se e seguiu-os lentamente, através de Sloane Square, para oeste, ao longo da King's Road. Não ficou alarmado quando perdeu o táxi de vista. Sabia exatamente para onde iam, para a casa de Yardley, em Wellington Square.

Fá-lo entrar em casa, Astrid. Diz-lhe que tens pressa. Que o teu marido vai perder a cabeça se te demorares. Leva-o diretamente para a cama. Não te preocupes com a porta. Eu trato da porta.

Delaroche virou à esquerda em King's Road e entrou na calma de Wellington Square. O ruído do trânsito da hora de ponta reduziu-se para um ronco abafado. Começou a chover ao de leve. Delaroche atravessou rapidamente a praça, a gola erguida, as mãos enfiadas nos bolsos.

A casa de Yardley estava às escuras, perfeito. A fechadura da porta da rua não levantou grande problema e, dali a poucos segundos, estava no interior da casa. Ouviu o som de vozes no andar de cima, no quarto. Astrid desempenhara bem o seu papel.

Quando Delaroche entrou no quarto, encontrou Yardley encostado à cabeceira da cama, de camisa e peúgas, a masturbar-se enquanto Astrid executava um striptease lento aos pés da cama. Por um momento, Delaroche chegou a ter pena do homem. Ia sofrer uma morte humilhante.

Delaroche retirou a Glock da cintura das calças e entrou no quarto. O alarme surgiu de imediato no rosto de Yardley. Astrid parou de dançar e afastou-se.

Delaroche ocupou o lugar deixado vago aos pés da cama. Depois ergueu o braço e alvejou Colin Yardley rapidamente, três vezes no rosto.

O corpo tombou da cama para o chão. Astrid avançou, deu um pontapé na cabeça de Yardley com a ponta do sapato Bruno Magli e cuspiu-lhe no rosto. Astrid, a revolucionária.

Delaroche informou a agência imobiliária que teria de cancelar as férias em Londres devido a uma emergência familiar. Antes de deixar o apartamento, ligou o computador portátil e enviou uma mensagem codificada aos empregadores, dizendo-lhes que a missão fora cumprida e que deveriam transferir os fundos determinados para a conta específica em Zurique. Apanhou com Astrid um comboio noturno para Dover e passaram a noite num hotel pitoresco. De manhã apanharam o primeiro ferry para Calais, onde alugaram um Renault, e seguiram para norte, ao longo da costa do Canal. A noite estavam de volta ao Krista, no calmo Prinsengracht em Amsterdam.

O corpo de Colin Yardley foi encontrado no início dessa tarde, quando Delaroche e Astrid passavam da França para a Bélgica. A Segurança do MI6 ficou alarmada, pois Yardley não se apresentara ao serviço e ninguém atendia os repetidos telefonemas para sua casa em Wellington Square. Uma equipe do MI6 arrombou a porta pouco depois da uma da tarde e encontraram o corpo no quarto do primeiro andar. A Polícia, contudo, apenas foi informada da morte às quatro e quinze. A BBC noticiou a morte de um homem não identificado nas Nine O'Clock News. Quando a ITN iniciou a transmissão das dez, o cadáver tinha nome e profissão: Colin Yardley, um quadro médio do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Durante o programa telefonaram para a redação. Quem ligou disse que a morte de Yardley fora levada a cabo pelo Provisional Irish Republican Army. Foi apresentado o código de reconhecimento especial como prova de que a reivindicação era autêntica.

Pela manhã, os repórteres da BBC tinham descoberto a verdadeira ocupação de Yardley: agente dos Serviços Secretos de Espionagem, o MI6.

Jean-Paul Delaroche escutou as notícias a bordo do Krista. Quando terminaram desligou o rádio e dedicou-se aos mapas e ao computador, preparando a morte seguinte.

Telefonou para Zurique. Herr Becker confirmou que, nessa manhã, fora efetuada para a sua conta uma transferência de um milhão de dólares. Delaroche indicou-lhe que deveria transferir o dinheiro para quatro contas das Baamas, um quarto de milhão para cada.

O sol despontou ao meio-dia. Levou emprestada a bicicleta de Astrid e passou o resto da tarde a pintar nas margens do rio Amstel, até que a imagem do rosto desfeito de Yardley lhe desapareceu da consciência.

 


MCLEAN, VIRGÍNIA

 

- Não sei por que Carter precisa te enviar a Londres. Por que diabos não manda outra pessoa?

Elizabeth foi buscar Michael na sede e estava dando carona até o Dulles Airport, a trinta quilômetros de Washington, no extremo leste da periferia urbana do norte da Virgínia. Eram 19 horas. Tecnicamente, a hora do rush já acabara, mas o trânsito continuava engarrafado no Capital Beltway. Quando estava tensa, Elizabeth tinha a tendência de colar na traseira dos outros veículos. Assim, viajavam a meio metro do para-choque de um Ford Explorer verde, que se deslocava a setenta quilômetros por hora.

- Pensei que tinha explicado nossa situação, Michael. Achava que ele tinha concordado em deixar você trabalhar em Nova York. Pensei que ele fosse aliviar por uma ou duas semanas.

Talvez devesse ter levado um carro da Agência até o aeroporto, pensou Michael. Não tinha vontade de discutir com a mulher antes de embarcar num voo internacional. Não que fosse supersticioso, nem tampouco receava voar, era simplesmente realista.

- É só um dia - garantiu. - Ida e volta, com algumas reuniões pelo meio. - Se é uma coisa tão rotineira, por que não enviou o Carter outra pessoa? Elizabeth não era litigante, exercia direito na calma das sombras empresariais, mas era mestre na arte do contra-interrogatório. Esmurrou a buzina. Michael sabia que acabara de ser declarado testemunha hostil.

- Um oficial da espionagem britânica foi assassinado em Londres, ontem à noite - replicou Michael calmamente. - Pode ter alguma coisa a ver com um caso no qual já trabalho há muito tempo.

- Li sobre isso no Post desta manhã. O IRA reivindicou a responsabilidade. Desde quando tens alguma coisa a ver com o IRA? Pensei que o teu currículo incluía exclusivamente terrorismo árabe.

- É verdade, mas julgamos que possa haver uma ligação.

Michael esperava que ela ignorasse o assunto. A viagem a Londres fora sua ideia, não de Carter, que queria o trabalho de ligação feito por um agente da Estação de Londres. Michael convencera Carter a enviá-lo.

- Daqui a dois dias vão recolher-me os óvulos. Nessa altura vão fertilizá-los com esperma. Preferia que fosse o teu, Michael.

- Eu volto. Não te preocupes. E, se por acaso houver algum problema, temos um trunfo na manga. Congelado.

Devido à natureza do seu trabalho, e à possibilidade de uma viagem inesperada, os médicos do Cornell Medical Center tinham recomendado que se congelasse algum do esperma de Michael.

- Gostaria que lá estivesses para me dar apoio emocional, Michael - disse Elizabeth. - Pensei que os agentes de casos fossem bons nessas coisas. O mínimo que podes fazer é estar comigo. - E vou lá estar. Prometo.

- Cuidado com aquilo que prometes, Michael.

Saiu da Beltway, entrando na estrada de acesso a Dulles. O trânsito reduziu de intensidade e Elizabeth acelerou até os cem. A lua cheia pairava sobre os campos de Virgínia, amortalhada por uma camada transparente de nuvens. Michael acendeu um cigarro e entreabriu o vidro da janela. Elizabeth conduzia com agressividade, mudando de faixa sem abrir o pisca, colando-se ao carro da frente, fazendo sinais de luzes a quem se atrevesse a conduzir a menos de cento e dez na faixa de ultrapassagem. Michael sabia o verdadeiro motivo do mau humor de Elizabeth. Ia para Londres investigar um ato de terrorismo, e a esposa sabia que isso levaria a que pensasse no assassinato de Sarah. O seu orgulho impedia-a de o admitir, mas os sentimentos estavam bem patentes na expressão ansiosa do rosto. Ficaria ainda mais perturbada se Michael lhe contasse a verdade: Que suspeitava que Sarah e o agente britânico tinham sido assassinados pelo mesmo homem. - Entreguei ao tom Logan o material do disquete da Susanna informou Elizabeth. - Ele vai publicar o artigo?

- Diz que não pode, sem antes confirmar os pormenores. Diz que as acusações são demasiado explosivas para serem editadas antes de serem analisadas pelos advogados. E, uma vez que a jornalista que redigiu a história está morta, não pode haver uma investigação profunda.

- Que vai ele fazer?

- Designou uma equipe dos melhores jornalistas para confirmarem os dados. Infelizmente, a Susanna não vai ser de grande ajuda no túmulo. Os apontamentos não contêm muitas pistas sobre a identidade das fontes. Por isso, a equipe do Logan tem de começar praticamente do zero.

- Isso pode demorar muito.

- Susanna precisou de três meses para fazê-lo sozinha.

Chegaram a Dulles. Elizabeth dirigiu-se às partidas e parou junto ao passeio. Michael saiu e tirou uma mala de roupa da bagageira. Fechou-a e aproximou-se da porta do condutor do Mercedes. Elizabeth baixara o vidro e tinha a cabeça de fora, à espera de um beijo de despedida.

- Tem cuidado, Michael.

- Eu tenho.

Esperou que as luzes de presença desaparecessem na escuridão e depois entrou no terminal.

Michael acordou quando o avião atravessou a camada de nuvens e deu início à descida para a manhã cinzenta de Londres. A Estação de Londres oferecera-se para lhe enviar um carro, mas Michael queria envolver-se o menos possível com os ingleses, por isso apanhou um táxi. Baixou o vidro. Gostava da sensação do ar frio no rosto, apesar do fedor a fumo dos tubos de escape. Londres fora a sua casa durante oito anos. Fizera mil vezes o percurso entre Heathrow e o centro da cidade. Os lúgubres subúrbios que passavam por ele eram-lhe mais familiares do que Arlington, ou do que Chevy Chase.

Registrou-se no hotel, um estabelecimento modesto e independente em Knightsbridge, com vista para Hyde Park. Gostava do sitio, pois cada quarto possuía uma pequena sala de estar anexa ao quarto de dormir. Pediu um pequeno-almoço inglês completo e foi debicando a comida até serem horas de ligar a Elizabeth. Acordou-a e travaram uma conversa desconexa antes que ela voltasse a adormecer.

Michael sentia-se cansado, por isso dormiu até o início da tarde. Quando acordou, vestiu um moletom impermeável. Pendurou o sinal não INCOMODAR na porta e enfiou um pedaço minúsculo de papel entre a porta e a lateral. Se ainda lá estivesse ao regressar, provavelmente ninguém teria entrado no quarto. Caso tivesse desaparecido, alguém lá teria estado.

Correu pelos caminhos de Hyde Park debaixo de nuvens plúmbeas, carregadas de chuva. O céu abriu dez minutos depois de ter iniciado o treino. Os londrinos que passavam, abrigados pelos guarda-chuvas fustigados pelo vento, fitavam-no como se fosse um louco em fuga. Após quinze minutos ficou ofegante e começou a andar. Conseguira manter a forma física ao longo dos anos, apesar de ser fumante, mas agora os cigarros cobravam seu preço. E Elizabeth tinha razão: estava ficando com barriga.

Regressou correndo ao hotel. O papel caiu ao chão quando abriu a porta do quarto. Tomou uma ducha e vestiu um terno completo azul-marinho. Apanhou um táxi até Grosvenor Square e exibiu a identificação ao Marine de guarda à entrada. Michael sentia-se desconfortável nas embaixadas. Nunca deixara de ser um NOC. Quando se encontrava sedeado em Londres, apenas ia à embaixada em situações de emergência, e sempre "às escuras", o que significava que entrava pelo estacionamento subterrâneo, nos fundos de uma van. Gostava de não ter ido ali, mas as regras do Centro exigiam uma visita de cortesia ao chefe de estação local.

O chefe de pessoal de Londres era um homem chamado Wheaton, um anglófilo assumido de bigode fino, terno riscado de Savile Row e o hábito irritante de apertar uma bola de tênis sempre que não sabia o que dizer. Wheaton pertencia à velha guarda: Princeton, Moscou, cinco anos como chefe do gabinete russo antes de assumir o seu posto definitivo em Londres. Disse ter conhecido o pai de Michael, mas não disse que gostara dele. Também deixou bem claro que não acreditava que a Estação de Londres precisasse de ajuda do CTCNT, o Counterterrorist Center (Centro Contraterrorista) para aquele caso. Michael prometeu deixá-lo a par de tudo o que descobrisse. Wheaton disse educadamente a Michael que gostaria de o ver longe da cidade o mais depressa possível. O táxi deixou Michael no terraço georgiano branco de Eaton Place. Helen e Graham Seymour possuíam uma casa agradável e, da rua, Michel podia vê-los como atores num palco de vários níveis: Graham no andar de cima, na sala, Helen abaixo do nível da rua, na cozinha. Desceu as escadas e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen desviou a atenção dos cozinhados e exibiu um sorriso rasgado.

Abriu a porta e beijou-lhe a face.

- Jesus, Michael, há tanto tempo. - Serviu vinho Sancerre num copo e colocou-o na mão dele. - Graham está lá em cima. Vão pôr a conversa em dia enquanto acabo o jantar.

Quando Michael entrou na sala, Graham Seymour remexia na lareira a gás. A sala tinha painéis e soalho de madeira, com uma série de tapetes orientais e decorações do Oriente Médio muito finos. Graham levantou-se, sorriu e estendeu a mão. Viam-se um ao outro da forma que apenas os homens de constituição idêntica conseguem. Graham Seymour era o negativo de Michael. Este tinha pele cor de azeitona e Graham era pálido. Michael tinha cabelo escuro e olhos verdes, e Graham era louro e de olhos cinzentos. Michael vestia terno marinho e Graham estava pronto para um safari, com calças e camisa caqui.

Sentaram-se e falaram sobre os velhos tempos. Tinham percursos de vida quase idênticos. À semelhança de Michael, também o pai de Graham trabalhara para os serviços secretos: na operação Double Cross do MI5 durante a guerra, e depois no MI6, durante vinte e cinco anos. Tal como Michael, também Graham seguiu o pai de comissão em comissão, e entrou para os Serviços Secretos logo após se ter formado em Cambridge. Ao longo dos anos, os dois homens tinham trabalhado em conjunto, embora Graham sempre tivesse operado com cobertura oficial. Desenvolveram respeito profissional e uma amizade pessoal. Com efeito, eram mais chegados do que ambos os serviços gostariam.

O cheiro do cozinhado de Helen chegou até a sala.

- O que está ela a fazer? - perguntou Michael, à cautela.

- Paella - respondeu Graham, com um franzir de cenho. - Talvez devesses ir à farmácia antes que feche.

- Eu fico bem.

- Dizes isso agora, mas nunca provaste a paella da Helen.

- É assim tão má?

- Não quero estragar a surpresa. Talvez seja melhor beberes mais um pouco de vinho.

Graham desceu à cozinha e regressou momentos depois com copos cheios de Bordéus branco.

- Fala-me sobre o Colin Yardley. Graham fez um esgar.

- Aconteceu uma coisa estranha há dois meses. Um traficante de armas chamado Farouk Khalifa decidiu instalar-se em Paris. Descobrimos o caso e informamos os nossos amigos franceses, que colocaram o senhor Khalifa sob vigilância. - Foi um gesto simpático por parte dos franceses. Ele vende armas a pessoas de que não gostamos.

- É um homem mau.

- É um homem muito mau. Abriu o bazar e começou a receber clientes. Os franceses fotografam toda a gente que entra e sai.

- Estou vendo o filme.

- Em Setembro, um homem faz uma visita ao senhor Khalifa. Os franceses não conseguem identificá-lo, mas desconfiam que seja britânico, por isso enviam-nos uma cópia da fotografia por fax seguro.

- Colin Yardley?

- Em carne e osso.

- A chefia confrontou-o. Exigiram saber por que raio se tinha encontrado com um tipo como o Khalifa. O Yardley inventou uma treta qualquer sobre estar aborrecido com o trabalho de secretária, e andar ansioso por voltar ao trabalho de campo. Trabalhou em Paris durante algum tempo. Disse que andava por conta própria. A chefia não ficou nada satisfeita, e isto é um eufemismo. Yardley foi repreendido com veemência.

- Cristo.

- Pois adivinha lá qual é a arma que o Farouk Khalifa tem em grande abundância. - Segundo as nossas informações, são mísseis Stinger. - Michael bebeu um pouco de vinho. -- Imagino que os teus serviços não tenham transmitido essas informações aos meus. Graham abanou a cabeça.

- Ficamos um pouco embaraçados com o assunto. Compreende, não, Michael? A chefia queria esquecer o caso, por isso desapareceram com ele.

Helen surgiu no alto das escadas.

- O jantar está pronto.

- Que maravilha - proclamou Graham, com um pouco de entusiasmo a mais. - Bem, imagino que o vídeo tenha de esperar.

Helen Seymour fazia pratos elaborados, mas terríveis. Acreditava que "cozinha inglesa" era um oximoro, e especializara-se na comida do Mediterrâneo: italiana, grega, espanhola, norte-africana. Naquela noite serviu uma paella horrorosa de peixe cru e camarão queimado, tão picante que Michael sentiu a garganta seca, à medida que empurrava garfada após garfada para a boca. Terminou corajosamente e Helen insistiu em que repetisse. Graham reprimiu uma gargalhada enquanto a esposa servia duas colheradas enormes no prato estendido de Michael.

- Está divino, não está? - ronronou Helen. - Acho que também vou me servir de mais um pouco.

- Você se excedeu mais uma vez, querida - elogiou Graham.

Havia muito que aprendera a lidar com a comida exótica da mulher. Comprava sanduíches e hambúrgueres quando saía do trabalho e devorava-os ao descer para o metrô. Há três anos exibia uma súbita devoção por pão. Helen fazia variedades novas e diferentes todas as noites, que Graham comia em grandes quantidades. Ganhara barriga por excesso de hidratos de carbono à noite. Marcava telefonemas importantes para a hora do jantar e fingia serem inesperados. À semelhança de uma criança impertinente, tornara-se perito em distribuir a comida pelo prato, criando assim a ilusão do consumo. Durante algum tempo, Graham recusara-se a permitir que Helen cozinhasse para os convidados. Em vez disso, iam a restaurantes. Agora sentia prazer em ter amigos para jantar, tal como um condenado se reconforta com companhia nas últimas horas antes da morte. Graham mergulhou um naco de pão espanhol num prato de azeite virgem e enfiou-o na boca.

- Helen, Michael e eu temos de trabalhar mais um pouco. Importa-se que levemos o café para a sala?

- É claro que não. Levo a sobremesa daqui a pouco. - Virou-se para Michael, com um sorriso arrebatador nos lábios. - Oh, Michael, fico tão contente por ter gostado da paella.

- Helen, não me lembro da última vez que tive uma refeição destas.

Graham engasgou-se com um pedaço de pão.

Michael saiu do banheiro.

- Você está bem, camarada? - perguntou Graham. - Parece enjoado.

- Minha nossa Sra., como consegue comer assim todas as noites?

- Está pronto para ver um filme?

- Claro.

Sentaram-se no sofá da sala. Graham pegou o controle remoto que estava em cima da mesa de apoio.

- O senhor Yardley tinha outro problema - indicou. - Gostava de mulheres.

- Os serviços também sabiam disso?

- Sim, o Departamento de Pessoal pediu para ter calma. Ele respondeu que se danassem. Era solteiro, faltavam-lhe poucos anos para a aposentadoria, e ia divertir-se.

- Boa atitude.

- Os serviços encontraram o corpo. Entramos antes da polícia e revistamos a casa. Descobrimos que o adorável Colin Yardley tinha instalado no quarto um sistema secreto de gravação de vídeo para gravar as conquistas e vê-las quando quisesse. Tinha uma bela coleção. Os vigilantes usavam-na para aliviar o aborrecimento entre missões.

Graham apontou o comando ao reprodutor de vídeo e teclou PLAY. A câmara estava instalada em algum lugafr acima da cabeceira da cama. Yardley estava deitado, nu, masturbando-se lentamente enquanto uma mulher alta executava um striptease provocante. Desabotoou a blusa, passou as mãos pelos seios e enfiou-as por dentro do sutien.

Graham imobilizou a imagem.

- Quem é ela? - perguntou Michael.

- Acho que é Astrid Vogel.

- Segundo as nossas informações, ela está morando em Damasco.

- Nós achamos o mesmo. Na verdade, acreditamos que tenha deixado a Facção do Exército Vermelho de vez, o que torna o seu envolvimento neste caso ainda mais intrigante. - Graham acionou o comando e a imagem ganhou vida. - Esta é a melhor parte. Não vou estragar o fim.

O striptease de Astrid Vogel tornou-se mais intenso. Tinha as mãos entre as pernas e a cabeça inclinada para trás, fingindo êxtase.

- Ela é boa - comentou Graham. - Muito boa.

Helen entrou com uma travessa de café e tarte de maçã.

- Mas que maravilha. Deixo-os sozinhos dez minutos e vocês alugam um filme pornográfico.

Pousou a travessa na mesa de apoio, os olhos fixos na tela.

- Quem é aquela criatura?

- Uma antiga assassina do Baader-Meinhof chamada Astrid Vogel.

Uma expressão de terror cruzou o rosto de Yardley. Graham parou o vídeo.

- Esta parte é bem sangrenta, querida. Talvez fosse melhor ir lá para baixo.

Helen sentou-se no divã.

- Como queira - disse Graham e recomeçou o vídeo.

Uma figura escura penetrou no quarto, as feições ocultas por boné e óculos de sol. Levou a mão atrás das costas, puxou de uma arma com silenciador e alvejou Colin Yardley três vezes no rosto. A mulher avançou, deu um pontapé no cadáver e cuspiu-lhe em cima.

Graham parou a fita.

- Meu Deus do céu - disse Helen.

- É ele - garantiu Michael.

- Como sabe? Está sempre de cara tapada.

- Não preciso ver a cara. Já o vi empunhando uma pistola. É ele, Graham. Apostaria minha vida. É ele.

- Sei que nem preciso de dizer, Michael, mas as regras são as habituais. A informação que te dei serve apenas para uso pessoal. Não pode partilhá-la com outro elemento do teu serviço, nem com qualquer outro serviço.

- Se te ajudar a dormir melhor, até assino uma cópia da Lei dos Agentes Secretos.

Michael ergueu a gola do casaco e enfiou as mãos nos bolsos. A chuva parara e queria andar. Graham acedera em acompanhá-lo até meio caminho. Vaguearam pelos sossegados vales georgianos de Belgravia, tendo como único ruído de fundo o ronco distante do trânsito noturno de King's Road.

- Quero falar com Drozdov - disse Michael.

- Não podes falar com o Drozdov. Não está ao teu alcance. Além do mais, ele diz que deixou de falar e que pretende passar o resto dos dias em paz. - Tenho uma teoria sobre o assassino que matou Yardley e quero que ele me dê a sua opinião.

- O Drozdov é o nosso desertor. Já partilhamos as informações com você. Se tentares falar com ele, vais ficar em maus lençóis, tanto pela tua parte como pela nossa.

- Por isso mesmo, vai ser uma conversa oficiosa.

- O que tem em mente? Estás pensando em cruzar com ele e dizer: "Ei, você não é Ivan Drozdov, o antigo assassino do KGB? Importa-se que lhe faça umas perguntas?" Tome juízo, Michael.

- Tinha pensado em utilizar uma abordagem um pouco mais sutil.

- Se descobrirem, nego qualquer envolvimento. Até te acuso de ser espião russo.

- Não esperaria menos do que isso.

- Ele está morando em Cotswolds. Numa aldeiazinha chamada Aston Magna. Toma chá e lê os jornais todas as manhãs num café de Moreton, a poucos quilômetros de distância.

- Conheço bem a região - disse Michael.

- É o homem com os cães corgis e a bengala nodosa. Parece mais inglês do que o príncipe Philip. Não há como errar.

Graham Seymour acompanhou Michael até Sloane Street antes de se despedir e regressar a Eaton Place. Michael deveria ter seguido em direção ao norte, até Hyde Park e seu hotel, mas, em vez disso, quando Graham desapareceu encaminhou-se para o sul, para Sloane Square.

Atravessou a praça e perambulou pelas sossegadas ruas secundárias de Chelsea, até chegar à Represa, virada para o Tamisa. As luzes brilhavam nas casas de luxo sobranceiras. O passeio cintilava com a névoa do rio. Michael tinha a zona só para si, não fosse um homem calvo e baixo que se apressava pela rua, as mãos enfiadas nos bolsos do oleado puído, a coxear como um soldadinho de chumbo que já não presta para brincar.

Apoiou-se à barreira, olhou para o rio e depois virou-se e fitou Battersea Bridge e as luzes brilhantes de Albert Bridge, mais além. Podia ver Sarah a dirigir-se a ele, através das trevas e da neblina, o cabelo negro puxado para trás, a saia a dançar à volta das botas de camurça. Sorria-lhe como se fosse a pessoa mais importante à face da terra, como se tivesse passado o dia a pensar nele. Era o mesmo sorriso que lhe oferecia sempre que ele entrava no apartamento, sempre que se encontravam para uma bebida no bar, ou para um espresso, no restaurante preferido.

Pensou na última vez que estiveram juntos. Fora na tarde anterior, quando passara pelo apartamento e a encontrara no chão, com um maiô branco, o corpo magro dobrado sobre as longas pernas nuas. Recordou como ela se levantara e lhe beijara a boca, como baixara o maiô dos ombros para que ele lhe tocasse nos seios. Mais tarde, na cama, confessara ter fantasiado que fazia amor com ele para aliviar o enfado dos exercícios de alongamento. Que ficava sempre terrivelmente tensa e que tinha de resolver o problema sozinha, pois ele estava a trabalhar.

Nesse momento sentiu-se completamente apaixonado. Fez amor com ela uma última vez. Ela ficou deitada de costas, imóvel, os olhos fechados, o rosto passivo, tanto tempo quanto conseguiu, até que o prazer físico foi demasiado e abriu os olhos e a boca, puxou-o para si e beijou-o até chegarem juntos. Foi essa imagem, e a visão dela a flutuar na sua direção à luz da Represa de Chelsea, que foi estilhaçada pelo homem com a arma.

Recordou o rosto dela a explodir, o corpo a dissolver-se à frente dos seus olhos. Recordou o assassino: tez pálida, cabelo muito curto, nariz fino. Viu mais uma vez a forma como sacou a pistola da cintura, o modo como o braço se levantou, como disparou três vezes sem hesitar. Michael correu para ela, mesmo sabendo que estava morta. Por vezes, desejava ter perseguido o assassino, embora soubesse que tal provavelmente lhe teria custado a vida. Em vez disso, ajoelhou-se a seu lado e abraçou-a, a cabeça dela apertada contra o peito para não lhe ver o rosto desfeito.

Começou a chover. Apanhou um táxi de volta ao hotel. Despiu-se, deitou-se e telefonou a Elizabeth. Ela deve ter percebido algo na voz do marido, pois soluçou quando se despediu e desligou. Michael sentiu uma pontada de culpa, como se tivesse acabado de traí-la.


LONDRES

Bem cedo na manhã seguinte, Michael deixou o hotel e alugou um Rover sedan metalizado numa agência da Hertz, a norte de Marble Arch. Entrou na A40 perto de Paddington Station e seguiu para oeste, contra o fluxo da hora de ponta. Ainda estava escuro e chovia ao de leve. Michael ligou o rádio e escutou as notícias das seis na BBC. Enquanto atravessava os subúrbios a noroeste de Londres, a A40 entrou na M40. A luz macilenta da alvorada foi surgindo à medida que ele subia as elevações suaves de Chilterns. O mapa fornecido pela Hertz estava fechado, em cima do banco do passageiro. Michael não precisava dele, pois conhecia bem as estradas.

A família de Sarah possuíra uma grande casa de campo em Cotswolds, na aldeia de Chipping Campden. Muros de pedra calcária, cobertos de clematite e de heras diversas, cercavam a casa. Michael passara aí vários fins-de-semana com ela, durante os meses em que estiveram juntos. O campo alterava-a, levando-a a despir a farda de couro preto do clã do Soho. Usava calças de ganga desbotadas e blusas no Inverno, e vestidos leves no Verão. De manhã, percorriam os caminhos nos arredores da aldeia, através de pastos repletos de ovelhas e de faisões. À tarde, faziam amor. No Verão, com o tempo quente, faziam amor no jardim, ocultos pelo calcário e pelas flores. Sarah preferia fazê-lo ao ar livre. Gostava da sensação de Michael dentro dela e do sol na pele clara. Desejava, em segredo, que as pessoas os vissem. Queria que o mundo soubesse como era o seu ato de amor. Queria que todos os invejassem.

Dançava, servia de modelo, lia muitos livros. Por vezes representava. Às vezes fotografava. As suas cores políticas eram atrozes e tão flexíveis como o seu corpo esguio. Era trabalhista e comunista. Era verde e anarquista. Vivia no Soho, num quarto atulhado de roupas de segunda mão e maiôs, em cima de um restaurante libanês que servia comida para fora. Ouvia os Clash e os Stones. Ouvia gravações do oceano e de sons da floresta e cantos gregorianos. Era vegetariana e o cheiro do borrego assado do restaurante deixava-a enojada. Para disfarçar o cheiro, queimava incenso e acendia velas. Da primeira vez que levou Michael para a cama, este teve a sensação incômoda de estar a fazer amor numa igreja católica.

Apresentou-o a um mundo que ele não conhecia. Levou-o a festas bizarras e a teatro experimental. Levou-o a sessões de leitura e a ver exposições. Escolheu-lhe roupas diferentes. Não dormia, a menos que primeiro fizesse amor com ele. Adorava olhar para os seus corpos à luz das velas.

- Olha só para nós - dizia. - Sou tão pálida e você tão moreno. Sou o bem e você o mal.

O trabalho dele enfadava-a e ela nunca lhe fazia perguntas. A noção de alguém correr o mundo a vender coisas parecia baralhá-la. Apenas lhe perguntava onde ia e quando regressava.

Adrian Carter era o agente de controle de Michael. Este tinha a obrigação de mencionar a relação que mantinha com Sarah a Carter e ao Departamento de Pessoal, mas eles iriam revolver-lhe o passado, investigar as tendências políticas, o trabalho, os amigos, os amantes, e talvez descobrissem coisas que Michael preferia não saber. Manteve a Agência ignorante da existência de Sarah e esta da Agência. Receava que ela o abandonasse, caso descobrisse a verdade. Tinha medo que tecesse comentários com os amigos, o que poria em perigo o seu disfarce em Londres. Estava a mentir aos patrões e à amante. Sentia-se feliz e desolado ao mesmo tempo.

Aproximava-se de Oxford. Uma van comercial Ford branca seguia-o desde há trinta quilômetros, mantendo-se sempre três ou quatro carros atrás. Era possível que a Ford se limitasse a viajar na mesma direção, mas Michael fora treinado a não acreditar em coincidências. Abrandou e deixou que o trânsito o ultrapassasse.

A Ford permaneceu à mesma distância.

Aproximou-se de uma área de serviço. Saiu da auto-estrada e estacionou perto do restaurante. A Ford seguiu-o e entrou na bomba de gasolina. O condutor saiu e fingiu ver a pressão do pneu do lado do passageiro, enquanto observava o Rover. Michael interrogou-se quem o poderia estar a seguir. Wheaton, da Estação de Londres? Graham Seymour e o MI6?

Entrou no restaurante, pediu café e uma sanduíche de bacon e ovo frito, e foi ao banheiro. Foi buscar a comida, pagou e saiu. A Ford continuava na bomba de gasolina, com o condutor a preparar-se para ver a pressão do pneu traseiro.

Michael dirigiu-se a um telefone público e ligou para o hotel onde estava hospedado. Disse à recepcionista que deixara um par de botões de punho valiosos na casa de banho. Ditou-lhe uma morada falsa em Miami, que ela prontamente anotou, enquanto Michael observava a Ford. Desligou e regressou ao Rover. Ligou o motor e afastou-se, entrando no trânsito da auto-estrada. Olhou para o espelho retrovisor enquanto comia o sanduíche.

Lá estava a Ford, três carros atrás.

O monovolume seguiu Michael até Moreton-in-Marsh, uma aldeia grande segundo os padrões de Gloucestershire, que abarcava o cruzamento da A44 e da A429. Parou num estacionamento em frente a uma série de lojas e saiu. A Ford estacionou a cinquenta metros dele. O restaurante ficava ao lado de um talho, com faisões pendurados à porta. Michael pensou em Sarah, à sua frente com um prato de feijão com arroz e puré de abóbora, a fitá-lo enquanto ele arrancava a carne dos ossos de um faisão assado. Entrou no restaurante e pediu café e um bolo à jovem rechonchuda ao balcão.

Michael reconheceu Ivan Drozdov das fotografias da Agência. Era calvo, salvo por uma franja grisalha, e o corpo alto estava debruçado sobre uma pilha de matutinos. Tinha os óculos de leitura dourados na ponta do nariz e semicerrava os olhos contra o fumo do cigarro preso aos lábios finos. Vestia uma blusa cinzenta de gola alta e um blusão verde com gola de bombazina. Um par de corgis idênticos lambiam-se ao lado das botas Wellington sujas com lama úmida.

Michael levou a comida para a mesa ao lado e sentou-se. Drozdov ergueu brevemente o olhar, sorriu e regressou aos jornais. Passaram alguns minutos, com Michael a beber café e Drozdov a ler o The Times e a fumar.

Por fim, sem levantar os olhos, Drozdov disse:

- Será que vai falar, ou vai ficar aí sentado, a incomodar-me os cães? - Chamo-me Cari Blackburn, e estava a pensar se poderíamos falar um pouco - replicou Michael, surpreendido.

- Na verdade, o seu nome é Michael Osbourne. Trabalha para o Centro de Contraterrorismo da CIA, em Langley, na Virgínia. Já foi agente de campo, até que a sua amante foi assassinada em Londres e a Agência levou-o para a sede.

Drozdov dobrou cuidadosamente o jornal e deu pedaços de bolo aos cães. - Se quiser falar, podemos ir dar um passeio - indicou. - Mas não volte a mentir-me. É insultuoso e eu reajo mal aos insultos.

- Tem noção de que está sendo vigiado, senhor Osbourne?

Caminhavam ao longo de um trilha na direção da aldeia de Aston Magna, onde Drozdov se instalara quando a União Soviética se desmoronara e a ameaça de morte por parte dos seus antigos mestres do KGB desaparecera. Era um palmo mais alto do que Michael e, tal como muitos homens altos, inclinava-se ligeiramente para se encolher. Andava com lentidão, as mãos atrás das costas, a cabeça baixa, como se procurasse algo perdido. Os cães seguiam alguns metros à frente, como se fossem contravigilância. Michael, que por natureza andava depressa, esforçava-se por acompanhar o passo desajeitado de Drozdov. Interrogou-se como teria o idoso avistado quem o seguia, pois Michael não o vira a olhar.

- Dois homens - indicou Drozdov. - Uma van Ford branca.

- Avistei-os na M-40, alguns quilômetros fora de Londres.

- Alguém sabe que veio falar comigo?

- Não - mentiu Michael. - Não vim como representante da CIA, e não pedi autorização aos ingleses. É um assunto pessoal.

- Colocou-se numa posição bastante difícil, senhor Osbourne. Se fizer alguma coisa de que eu não goste, basta-me pegar o telefone e falar com o meu agente de ligação do MI-6, para que fique em maus lençóis.

- Eu sei. Obviamente, peço que não o faça, por cortesia profissional.

- Deve ser muito importante.

- É, sim.

- Imagino que aqueles homens na van branca tenham um microfone de longo alcance. Talvez devêssemos ir para algum sítio onde não nos possam seguir. Entraram num caminho que contornava um campo de erva seca. À distância, as colinas erguiam-se até as nuvens baixas. Um rebanho de ovelhas baliu-lhes do outro lado de uma vedação. Drozdov afagou-lhes a lã espessa das cabeças ao passarem por elas. O caminho estava enlameado devido à chuva que caíra durante a noite e, depois de alguns passos, os sapatos italianos de camurça de Michael ficaram arruinados. Virou-se e olhou para trás. A van regressava a Moreton.

- Julgo que já podemos falar, senhor Osbourne. Os seus amigos parecem ter desistido.

Michael passou dez minutos a falar. Percorreu a lista de assassinatos e os atentados terroristas. O ministro espanhol em Madrid. O oficial da polícia francesa em Paris. O executivo da BMW em Francoforte. O oficial da OLP em Tunes. O empresário israelense em Londres. Drozdov ouviu com atenção, por vezes aquiescendo, outras vezes resmungando baixinho. Os cães correram pelo prado e afugentaram faisões.

- E o que quer saber, ao certo? - perguntou Drozdov, quando Michael acabou de falar.

- Quero saber se foi o KGB que eliminou esses alvos. Drozdov assobiou para chamar os cães.

- Merece um elogio, senhor Osbourne. Falhou uns quantos, mas é um belo começo.

- Portanto, os atentados foram levados a cabo pelo KGB?

- Sim, foram.

- Foi sempre o mesmo homem?

- Sempre.

- Como se chama?

- Não tinha nome, senhor Osbourne. Apenas um nome de código.

- Qual era o nome de código?

Drozdov hesitou. Desertara, traíra seu serviço, mas revelar nomes de código era o equivalente em espionagem à quebra da omertà da Máfia. - Outubro, senhor Osbourne. O nome de código era Outubro - acabou por dizer.

O sol apareceu brevemente entre as nuvens, aquecendo o campo. Michael desabotoou o casaco e acendeu um cigarro. Drozdov imitou-o, a testa franzida enquanto fumava, como se procurasse a melhor forma de começar a narrativa. Michael já lidara com muitos agentes. Sabia quando devia forçar e quando era preferível esperar e ouvir. Não tinha como pressionar Drozdov, que apenas falaria se quisesse.

- Ao contrário do que se pensa no Ocidente, não éramos muito bons a matar pessoas - acabou Drozdov por dizer. - Sim, no interior da União Soviética éramos muito eficientes. Mas fora do bloco soviético, no Ocidente, éramos terríveis no que dizia respeito a assuntos sujos. Um dos nossos melhores assassinos, Nikolai Khokhlov, mudou de ideias quando estava a tentar matar um líder da resistência ucraniana e desertou. Tentamos matá-lo e também fracassamos. Durante muito tempo, o Politburo desistiu do assassinato como ferramenta do ofício. Drozdov largou a beata do cigarro para a lama e pisou-a com a ponta da bota. - Isso mudou no final dos anos 60. Olhamos para o Ocidente e vimos conflitos internos um pouco por toda a parte: os irlandeses, os bascos, os Baader-Meinhof alemães, os palestinos. Além disso, tínhamos também os nossos próprios problemas para resolver, os dissidentes, os desertores, sabe como é. Tal como sabe, os assassinatos eram geridos pelo Departamento Cinco do Primeiro

Diretorado Principal. O Departamento Cinco queria um assassino muito bem treinado, com base permanente no Ocidente, que levasse a cabo mortes em cima da hora. Esse assassino era o Outubro.

- Quem é ele? - indagou Michael.

- Entrei para o Departamento Cinco depois de ele estar integrado no Ocidente. O seu arquivo não revelava nada sobre a verdadeira identidade. Havia boatos, é claro. Dizia-se que era filho ilegítimo de uma patente bastante elevada do KGB: de um general, ou talvez do próprio presidente. Não passavam de boatos.

Foi acolhido muito novo pelo KGB e recebeu uma educação e um treino intensivos. Em 8, ainda adolescente, foi enviado para o Ocidente através da Checoslováquia, fazendo-se passar por refugiado. Acabou por se mudar para Paris. Fingiu-se um jovem desalojado e foi recebido por um orfanato católico. Ao longo dos anos desenvolveu uma identidade francesa à prova de tudo. Frequentou escolas francesas, tinha um passaporte francês, tudo. Até cumpriu o serviço militar no exército francês.

- E depois começou a matar.

- Acima de tudo, era utilizado para promover a instabilidade no Ocidente, para levantar problemas aos governos ocidentais. Matava de ambos os lados do muro. Agitava as águas, por assim dizer. Lançava achas para a fogueira. E era muito bom no que fazia. Orgulhava-se de nunca ter falhado uma única missão. Não utilizava as ferramentas que lhe púnhamos à disposição para lhe facilitar o trabalho, as balas com ponta de cianeto, ou as armas que libertavam gás venenoso. Desenvolveu o seu método de matar muito próprio.

- Três tiros no rosto.

- Brutal, eficaz, bastante dramático.

Michael vira os resultados em primeira-mão. Não precisava que Drozdov descrevesse o efeito do método do assassino.

- Ele tinha um agente responsável? - perguntou Michael, com um tom de voz sereno.

- Sim, apenas trabalhava com um agente, um homem chamado Mikhail Arbatov. Cheguei a tentar substituir Arbatov, mas o Outubro ameaçou matar o novo elemento. Arbatov era o mais próximo que o Outubro tinha de uma família. Só confiava em Arbatov e, mesmo assim, apenas o suficiente.

- Há pouco tempo foi assassinado em Paris um Mikhail Arbatov.

- Sim, li sobre isso. A polícia disse que deve ter sido morto por delinquentes.

O relato do jornal descreve-o como sendo um diplomata russo aposentado a viver em Paris. Se há uma coisa que aprendi nesta vida, senhor Osbourne, é que não se pode acreditar em tudo o que se Le nos jornais.

- Quem matou Arbatov?

- O Outubro, é claro.

- Por quê?

- É uma boa pergunta. Talvez Arbatov soubesse demasiado sobre alguma coisa.

Quando o Outubro se sente ameaçado, mata. É a única coisa que sabe fazer.

Exceto pintar. Dizem que tem bastante talento.

- Começou a trabalhar por conta própria? Agora é assassino profissional?

- Dos melhores do mundo, bastante procurado. Arbatov era o seu agente. Enriqueceram bastante em conjunto. Ouvi dizer que havia muita inveja pela forma como Arbatov se aproveitara dos talentos do Outubro. Arbatov tinha muitos inimigos, muita gente que lhe desejava mal. Mas, se está à procura de quem o matou, talvez começasse pelo Outubro.

O sol voltou a desaparecer e as nuvens engrossaram, negras com a promessa de chuva. Passaram por uma mansão de pedra calcária, cercada por relvados amplos. Michael contou-lhe sobre Colin Yardley. Sobre a gravação vídeo da morte. Sobre Astrid Vogel.

Drozdov abanou lentamente a cabeça.

- Imaginaria que alguém com o ofício de Yardley soubesse os perigos de ter uma câmara no quarto. Tenho de admitir que é uma das consequências da velhice que não me incomodam. O eterno desejo pelo corpo da mulher deixou-me finalmente em paz. Tenho os meus cães, os meus livros, e a minha paisagem bucólica de Cotswolds.

Michael riu em silêncio.

Em tempos trabalhou com a Fação do Exército Vermelho. Foi durante essa missão que conheceu Astrid Vogel. Ela passou muitos anos escondida, em Tripoli, em Damasco, nas montanhas Shouf. Pagou muito caro pelo idealismo. Houve qualquer coisa que a voltou a atrair para este mundo. Imagino que tenha sido o dinheiro. - Porque iria o Outubro matar Colin Yardley?

Talvez devesse reformular essa pergunta: O que fez Colin Yardley para que alguém contratasse o melhor assassino do mundo para o matar? Talvez tenha adquirido um míssil Stinger a um traficante de armas do mercado negro chamado Farouk Khalifa, após o que o entregou aos homens que abateram o Voo 002, pensou Michael.

Começou a chuviscar e o tempo arrefeceu. Os cães rodearam as botas de Drozdov, ansiosos por voltar a casa, para junto da lareira. À frente deles surgiu a aldeia de Aston Magna, um aglomerado de casas espalhadas à volta do cruzamento de duas estradas secundárias.

- Oferecia-lhe boleia de volta a Moreton, mas não conduzo desculpou-se Drozdov. - Obrigado, mas vou a pé.

- Sinto muito pelos sapatos - indicou, apontando a bengala ao calçado arruinado de Michael. - Não foi uma muito boa escolha para uma caminhada através de Cotswolds, no inverno.

- Um pequeno preço a pagar pela ajuda que me deu.

Michael parou de andar. Drozdov continuou mais alguns metros, após o que se deteve e virou-se.

- Houve uma morte que ainda não referiu - comentou. O assassinato de Sarah Randolph. Imagino que não tenha a ver com o caso em que está envolvido neste momento. Admiro o seu profissionalismo, senhor Osbourne.

Michael não disse nada, limitando-se a aguardar.

Ela era uma comunista empenhada, uma revolucionária - explicou, abrindo os braços e olhando o céu. - Que Deus nos proteja dos idealistas. A sua Sarah era amiga dos oprimidos do mundo: dos irlandeses, dos árabes, dos bascos. Trabalhou de bom grado para a minha agência. Conhecíamos a verdadeira identidade do Michael. Sabíamos que enviava agentes de infiltração contra as organizações guerrilheiras próximas da nossa causa. Queríamos saber mais acerca dos seus movimentos, por isso colocamos Sarah Randolph no seu caminho. Michael sentiu a cabeça às voltas. O coração acelerou. Tinha dificuldade em ouvir. Drozdov parecia estar a afastar-se dele, a transformar-se numa linha vertical ao fundo de um túnel comprido e escuro. Tentou recuperar o controle das emoções. Receava que Drozdov se apercebesse e se calasse. Queria ouvir tudo. Depois de tantos anos, queria a verdade, por mais dolorosa que fosse.

- Sarah Randolph cometeu um erro terrível - continuou Drozdov. - Apaixonou-se pelo alvo. Disse aos agentes de ligação que pretendia desistir. Ameaçou contar-lhe tudo. Ameaçou entregar-se à polícia e confessar. O oficial de controle decidiu que ela era demasiado instável para prosseguir com a missão. O Centro de Moscou quis eliminá-la, e eu fiquei encarregue do caso. Talvez lhe deva um pedido de desculpas, mas imagino que compreenda que não foi nada pessoal.

Michael debateu-se para tirar um cigarro do maço e levá-lo aos lábios. As mãos tremiam-lhe. Drozdov acercou-se e acendeu o cigarro com um isqueiro de prata com bastante uso.

- Julguei que merecia a verdade, senhor Osbourne, razão pela qual lhe contei tudo o resto. Mas acabou. Faz parte do passado, tal como a Guerra Fria. Regresse à sua esposa e esqueça Sarah Randolph. Ela nunca foi real. E, faça o que fizer, mantenha-se alerta - acrescentou, com os lábios junto ao ouvido de Michael. - Se for atrás do Outubro e cometer um erro que seja, ele mata-o tão depressa que nem vai dar por isso.

Michael regressou a Moreton sob chuva intensa. Quando chegou à aldeia, estava ensopado até os ossos e dormente com o frio. Dirigiu-se ao Rover no estacionamento e fingiu deixar cair as chaves ao tentar abrir a porta. Pôs-se de gatas e perscrutou rapidamente a parte inferior da carroçaria. Não avistou nada de invulgar, por isso entrou e ligou o motor. Colocou o aquecimento no máximo, fechou os olhos e apoiou a testa no volante. Não sabia se a devia odiar por lhe ter mentido, se amá-la ainda mais, por ter querido desistir e ter acabado por pagar com a vida. Imagens dela percorreram-lhe a mente. Sarah a flutuar na sua direção, a sorrir, uma saia comprida sobre botas de camurça. A pele luminosa, de um tom dourado à luz das velas. O corpo arqueado na direção do seu. O rosto esfacelado!

Esmurrou o painel e arrancou com o carro, os pneus a derraparem no pavimento molhado. A van Ford branca seguiu-o até Michael devolver o Rover no

Aeroporto de Heathrow.

Michael apanhou o ônibus do serviço de aluguer de carros até o Terminal

Quatro e correu para o interior. A fila para o check-in no balcão da TransAtlantic Airlines era interminável, por isso procurou um telefone e ligou para o gabinete de Elizabeth. Foi o secretário, Max Lewis, quem atendeu e pediu a Michael que aguardasse, enquanto ia chamar Elizabeth a uma reunião. Michael pensou no que lhe dizer. Decidiu não lhe contar nada, por enquanto. Era um assunto demasiado complicado, demasiado emocional, para discutir ao telefone. Elizabeth atendeu.

- Estou no aeroporto. Vou apanhar o avião daqui a pouco, e queria apenas dizer que te amo - disse Michael.

- Está tudo bem, Michael? Pareces incomodado com alguma coisa.

- Foi uma manhã muito comprida, só isso. Conto-te tudo quando chegar a casa, logo à noite. Como te sentes? Estás pronta para amanhã?

- O mais possível. Neste momento estou a tentar não pensar muito nisso. Tenho uma pilha de coisas para despachar ainda hoje, e isso ajuda.

Michael virou-se para confirmar se a fila para o check-in tinha reduzido. Uma centena de pessoas aguardava em fila, como refugiados num centro de processamento, a bagagem aos pés, os rostos exasperados. Três jovens entraram no terminal. Todos usavam um boné de basebol. Todos seguravam um saco de couro preto. Estavam vestidos de modo informal, com calças de ganga e sapatos de tênis, cabelo escuro por baixo dos bonés, pele cor de azeitona.

Michael observou-os. Deixou de ouvir o que Elizabeth estava a dizer. Os três homens pararam e pousaram os sacos. Agacharam-se ao lado dos sacos e abriram-nos.

- Espera um pouco, Elizabeth - disse Michael. - Michael, o que foi?

Michael não respondeu, limitou-se a observar.

- Responde-me, Michael, que raio! O que se passa?

Em uníssono, os homens levaram as mãos às palas dos bonés e os rostos desapareceram atrás de véus de seda negra.

- Baixem-se! Baixem-se! - bradou Michael. Largou o receptor.

Os homens levantaram-se, de armas automáticas e granadas em riste.

- Armas! Armas! Baixem-se! - gritou Michael.

Os terroristas lançaram granadas para a multidão e começaram a disparar.

Michael correu na direção deles, aos berros.

Na baixa de Washington, Elizabeth gritava para o telefone. Ouviu Michael a gritar, depois tiros, finalmente explosões. Depois a linha ficou em silêncio. - Ai, meu Deus, Michael! Michael!

Procurou o controle remoto, ligou o televisor do gabinete e sintonizou a CNN. Estava a meio de uma qualquer reportagem idiota sobre os benefícios dos abacates para a saúde.

Percorreu o gabinete. Mordeu as unhas. Max sentou-se ao seu lado e esperou, dando-lhe a mão. Dez minutos depois, Elizabeth mandou-o embora e fez algo que não fazia há vinte anos.

Fechou os olhos, juntou as mãos e rezou.


LONDRES

No gabinete de primeiro andar da sua casa em St. John's Wood, o Diretor telefonou a Mitchell Elliott a partir de uma linha segura.

- Creio que o senhor Osbourne pode revelar-se um problema, senhor Elliott. Ontem à noite teve uma conversa interessante com um homem do Serviço de Espionagem, a qual escutamos com um microfone direcional localizado na rua. Esta manhã encontrou-se com um certo Ivan Drozdov, um desertor da KGB que em tempos supervisionou as atividades do nosso assassino. Do outro lado da linha, Elliott suspirou profundamente.

- Escusado será dizer que ele sabe muita coisa, e provavelmente desconfia de muito mais - continuou o Diretor. - O nosso senhor Osbourne é um adversário bastante valoroso. Na minha opinião, não o devemos menosprezá-lo.

- Não o menosprezo, Diretor. Pode ter a certeza disso.

- O que se passa no seu lado?

O Osbourne e a mulher encontraram umo disquete com os apontamentos de Susanna Dayton e uma cópia do artigo. Ao que parece, conseguiram quebrar o código de segurança. Entregaram o material aos editores do Washington Post.

- Um desenvolvimento infeliz - comentou o diretor, tossicando. - Parece-me que a Sra. Osbourne também se encontra em posição de criar problemas. - Já a mandei vigiar.

- Espero que desta vez seus homens se comportem de uma forma mais profissional. No presente estado dos acontecimentos, não precisamos que a melhor amiga de Susanna Dayton também apareça morta. Já o marido, é outro caso. Durante a carreira fez a sua dose de inimigos. Seria ocasional, caso um desses inimigos aparecesse e se vingasse. - Quanto a isso não há problema.

- Tem a bênção da Sociedade, senhor Elliott.

- Obrigado, Diretor.

- Enquanto este assunto se mantiver no campo do financiamento político, imagino que se consiga proteger. Vai ser embaraçoso e sujo, é claro. Talvez lhe surja uma multa pesada, alguma especulação desconfortável por parte dos meios de comunicação, mas o seu projeto vai sobreviver. Contudo, se o senhor Osbourne descobrir algo que se aproxime da verdade... Bem, creio que não preciso de explicar-lhe as consequências.

- É claro que não, Diretor. E quanto a Ivan Drozdov, o desertor? Representa algum problema?

- Não tenho certeza, mas não estou disposto a correr riscos. O assunto Drozdov está neste momento sendo tratado.

- Uma jogada sábia.

- Também achei. Boa tarde, senhor Elliott.

Em Aston Magna, Ivan Drozdov estava sentado à lareira, a ler à luz fraca que entrava pelas portas de correr, quando ouviu bater. Os corgis saltaram do cesto e correram até a porta da casa, a ladrar em fúria. Drozdov seguiu-os lentamente, as pernas rígidas por ter estado sentado. Abriu a porta e viu um jovem de macacão azul, o rosto como o de um menino do coro.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Drozdov. O rapaz puxou de uma arma com silênciador.

- Faça as pazes com Deus - indicou. Drozdov retesou-se.

- Sou ateu - replicou calmamente.

- É uma pena - retorquiu o jovem.

Ergueu a pistola e alvejou Drozdov duas vezes no coração.


AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

 

O pistoleiro mais próximo de Michael disparava furiosamente para a multidão. Avistou Michael a investir, apontou a arma automática e disparou. Michael atirou-se para trás de um quiosque de câmbio, com balas a fazerem ricochete no chão a seu lado. Duas pessoas agachavam-se com ele, uma mulher que gritava em alemão e um padre francês que murmurava o Pai-nosso.

O terrorista perdeu o interesse em Michael e voltou a apontar a arma aos passageiros indefesos. Michael espreitou por trás do quiosque. O ataque começara há menos de quinze segundos, mas para Michael, agachado por trás do quiosque, parecia uma eternidade. O chão estava coberto de mortos e de moribundos, e de pessoas aterrorizadas que tentavam em vão proteger-se atrás de bagagens e de balcões.

Raios partam! Onde está a força de segurança? pensou Michael.

Um dos atacantes fez uma pausa para recarregar. Levou a mão à mala, retirou a cavilha de outra granada e atirou-a para trás do balcão da TransAtlantic. O edifício estremeceu com o abalo. Michael viu um par de corpos a serem lançados pelo ar, os membros despedaçados. O ar tresandava com o cheiro de fumo e de sangue. Os gritos das vítimas quase abafavam o matraquear das armas automáticas.

Michael desejou ter uma arma. Olhou para a direita. Quatro agentes da força antiterrorista da polícia britânica assumiam posições de disparo atrás de outro balcão. Dois deles levantaram-se, apontaram e dispararam. A cabeça de um dos pistoleiros explodiu numa nuvem cor-de-rosa de sangue e de massa encefálica. Os dois terroristas restantes responderam ao fogo e alvejaram um dos agentes. Os policiais ergueram-se por detrás da barreira, armas disparando. Um segundo pistoleiro tombou, o corpo perfurado pelas balas.

O último terrorista desistiu da luta. Recuou até a porta, sem nunca deixar de disparar. Atravessou a porta automática, com vidros a estilhaçarem-se à sua volta.

Michael podia ver um quarto elemento da equipe ao volante do carro de fuga, um Audi metalizado. Levantou-se, passou por uma série de portas paralelas e correu pelo corredor de embarque, saltando por cima de viajantes e de funcionários do aeroporto deitados no chão.

O terrorista ao volante acelerava nervosamente o motor. Meia dúzia de seguranças corria pelo terminal, as armas em riste. Michael corria agora pelo passeio, as mãos estendidas.

O último pistoleiro encontrava-se a vinte metros de distância, prestes a entrar para o carro. O condutor escancarou a porta traseira. O terrorista estava quase a entrar para o carro quando ergueu o olhar e viu Michael a correr na sua direção. Virou-se e tentou empunhar a arma automática.

Michael baixou o ombro e derrubou o pistoleiro. O impacto fez com que o atacante largasse a arma.

Michael agarrou o homem pelo pescoço e golpeou-o brutalmente no rosto. O primeiro murro partiu-lhe o nariz, o segundo fraturou-lhe o malar e deixou-o inconsciente.

O terrorista ao volante abriu a porta e começou a sair do carro, a pistola automática na mão enluvada. Michael procurou freneticamente a metralhadora caída. Agarrou-a e disparou através do para-brisa do Audi. O pistoleiro ainda conseguiu disparar dois tiros ao acaso, antes de cair no passeio, sem vida. Com o coração aos saltos, Michael viu um lampejo de uma cor escura e aquilo que pensou ser uma arma. Girou sobre o joelho e apontou a um dos agentes de segurança ingleses.

- Largue a arma com calma, amigo - disse calmamente o policial. - Já acabou tudo. Largue a arma.

Wheaton, o Chefe da Estação de Londres da CIA, foi buscar Michael ao Aeroporto de Heathrow e levou-o para a cidade no banco de trás de um sedan do governo, conduzido por um motorista. Michael encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos. Fora interrogado durante uma hora por um oficial da polícia britânica e por dois homens do MI5. Durante algum tempo, Michael manteve a cobertura: um empresário americano que regressava a Nova York após uma breve reunião em Londres. Por fim, chegou alguém da embaixada. Michael pediu para falar com Wheaton, e este telefonou para a polícia e contou a verdade.

Michael nunca matara ninguém e não estava preparado para a reação que teve. Nos momentos que seguiram o combate, sentiu uma satisfação selvagem, um entusiasmo estranho que se assemelhava à sede de sangue. Os terroristas eram homens malignos que tinham chacinado pessoas inocentes. Mereciam uma morte violenta e dolorosa. Estava satisfeito por ter eliminado um deles e por ter esmurrado o rosto do outro. Passara a sua carreira a perseguir terroristas, usando apenas o seu inteleto e o seu talento para as armas. Finalmente pudera utilizar os punhos e uma arma, com efeito, uma arma que servira para massacrar pessoas inocentes. Sentia-se bem.

Começava agora a ser dominado pela exaustão, que lhe pressionava o peito e lhe fazia latejar a cabeça. Com a adrenalina eliminada das veias, as mãos já não lhe tremiam. Era acometido por ondas de náusea. Fechou os olhos e viu sangue a voar, cabeças a explodir, gritos e o matraquear das armas automáticas. Viu o condutor de fuga a tombar para trás, sentiu a arma a recuar-lhe na mão. Tirara uma vida. Uma vida de alguém mau, mas uma vida, não obstante. Já não se sentia bem. Sentia-se sujo.

Michael esfregava a mão direita.

- Talvez devesse ver o que se passa - comentou Wheaton, como se Michael sofresse de uma lesão antiga. Michael ignorou-o.

- Qual o número de baixas?

- Trinta e seis mortos, mais de cinquenta feridos, alguns com bastante gravidade. Os ingleses esperam que o número de mortes aumente.

Americanos?

- Pelo menos vinte dos mortos são americanos. A maior parte das pessoas que aguardava pelo check-in pretendia embarcar no voo para Nova York. Os restantes mortos são ingleses. Já agora, falei com a sua esposa. Ela sabe que está bem.

Michael lembrou-se de como a deixara. Num momento estavam a falar, no outro largara o telefone e começara a gritar. Interrogou-se o que teria escutado Elizabeth. Teria ouvido tudo, as explosões, os tiros, os gritos, ou teria a linha sido cortada? Imaginou-a no gabinete, preocupadíssima, e sentiu-se mal.

Queria desesperadamente falar com ela, mas não à frente de Wheaton.

Tinham entrado em Londres e seguiam a leste de Cromwell Road.

- Como é óbvio, as hienas da mídia estão ansiosas por falar com você - avisou Wheaton. - As testemunhas contaram-lhes sobre o herói de fato que matou um dos terroristas e subjugou outro. A polícia está a dizer-lhes que o homem deseja permanecer anônimo, pois receia uma retaliação por parte da Espada de Gaza. Por agora ainda acreditam, mas sabe Deus quantos policiais de Londres têm conhecimento da verdade. Basta que um deles dê com a língua nos dentes para termos um problema bastante sério.

- A Espada de Gaza já reivindicou o atentado?

- Enviaram um fax para o The Times há alguns minutos. Os ingleses estão a analisá-lo e já enviamos uma cópia para o CTC de Langley. Parece autêntico.

Deve ser revelado aos media em breve.

- Uma vingança pelos ataques aéreos aos campos de treino?

- É claro.

Dirigiram-se para norte por Park Lane, depois por Mayfair, para Grosvenor Square. O carro encaminhou-se para a entrada principal da embaixada americana. Michael gostaria que pudessem utilizar uma entrada subterrânea, mas talvez já não fizesse grande diferença. Saiu do carro. Sentia-se tonto e doía-lhe o joelho. Devia tê-lo magoado durante o confronto, mas a adrenalina ocultara a dor até aquele momento. Os Marines colocaram-se em sentido e fizeram continência quando Michael entrou no complexo da embaixada, com Wheaton a seu lado. O embaixador e os adidos aguardavam, com os restantes funcionários da grande embaixada atrás deles. O embaixador começou a aplaudir, sendo imitado pelos outros. Michael passara toda a carreira a trabalhar nas sombras. Os louvores eram atribuídos em segredo. Quando tinha um dia bom no gabinete, não podia contar a ninguém, nem mesmo a Elizabeth. Agora, os aplausos dos membros da embaixada envolviam-no e sentiu um arrepio na nuca.

O embaixador avançou e levou a mão ao ombro de Michael.

- Imagino que neste momento não tenha grande vontade de celebrar, mas quero que saiba que estamos muito orgulhosos de si.

- Obrigado, senhor embaixador. Fico muito grato.

- Há mais alguém que deseja falar com você. Siga-me, por favor.

Quando Michael entrou na sala de comunicações, entre Wheaton e o embaixador, podia ver o selo presidencial na tela maior. O embaixador pegou um telefone, murmurou algumas palavras para o bocal e desligou. Segundos depois, o selo presidencial dissolveu-se e James Beckwith apareceu, sentado numa poltrona branca, ao lado da lareira da Sala Oval, vestindo uma camisa e uma blusa de lã.

- Michael, não há palavras que possam expressar a gratidão e o orgulho que sentimos - começou o Presidente a dizer. - Pondo em risco a sua própria integridade física, dominou sozinho um terrorista da Espada de Gaza e matou outro. A sua ação poderá ter salvo inúmeras vidas e desferiu um rude golpe nesse bando de covardes. Vou insistir para que receba a mais alta das condecorações. Apenas gostaria de a poder colocar pessoalmente no seu peito, à frente da nação, pois hoje o seu país ficaria bastante orgulhoso de si. Michael esboçou um sorriso.

- Estou habituado a trabalhar em segredo, Senhor Presidente, e, se não se importar, prefiro continuar assim. Beckwith exibiu um sorriso rasgado.

- Já imaginava que assim fosse. Além disso, é demasiado valioso para ser desperdiçado numa fotografia oportunista. Graças ao meu chefe de gabinete, já tenho quanto baste.

A câmara fez um plano mais alargado, revelando os outros homens sentados à volta do Presidente: o Chefe de Gabinete Vandenberg, o diretor da CIA Clark, o Conselheiro para a Segurança Nacional Bristol. Num dos extremos da tela estava um homem pequeno de terno de grife que lhe assentava mal, as mãos cruzadas sobre o colo, o rosto pouco visível, como qualquer bom espião que se preze. Michael soube de imediato que se tratava de Adrian Carter.

- Peço desculpa por interrompê-lo, Senhor Presidente - disse Michael. - Será que a câmara poderia deslocar-se um pouco para a esquerda? Não consigo ver aquele homem minúsculo sentado no divã.

A câmara moveu-se, revelando o rosto de Carter. Como já era habitual, parecia com sono e enfadado, mesmo estando sentado na Sala Oval, com o Presidente e a respectiva equipe de segurança nacional à sua volta.

- Ora vejam só, como é que deixaram entrar na Sala Oval um bronco como o Adrian Carter? - gracejou Michael. - Tenha cuidado, Senhor Presidente. Ele rouba cinzeiros e toalhas de hotel. Se fosse a si, punha-o sob vigilância. -Já tirou uma dúzia de pacotes de M&M presidenciais - replicou Beckwith, claramente divertido. Carter acabou finalmente por sorrir.

- Se vais começar a agir como uma espécie de herói americano, fico com o estômago às voltas. Lembra-te de que estou com você desde o início, Michael. Sei onde os corpos estão enterrados, literalmente. Se fosse a ti, tinha cuidado.

- Michael, precisamos de falar sobre outra coisa - disse Beckwith, quando as gargalhadas esmoreceram. - Vou deixar que o Carter e o diretor Clark o informem dos pormenores.

- Vou ser direto, Michael - começou Clark.

O diretor da CIA era um político, um antigo senador do New Hampshire que se orgulhava do fato de falar como uma pessoa normal. Como resultado, o léxico do mundo da espionagem deixava-o constantemente baralhado. Era alto e magro, com caracóis grisalhos rebeldes e usava laço. Parecia mais adequado a uma posição catedrática em Dartmouth do que à direção de Langley.

- Por mais estúpido que pareça, a Espada de Gaza gostaria de se encontrar connosco - Clark pigarreou. - Deixe-me ser mais específico. A espada de Gaza não se quer encontrar connosco, quer encontrar-se com você.

Como fizeram o pedido?

. Através da nossa embaixada em Damasco, há cerca de uma hora. ?- Porquê eu?

- Ao que parece, sabem exatamente quem é, e qual o seu trabalho. Dizem que se querem encontrar com o homem que mais sabe acerca do grupo, e essa pessoa é o Michael.

- Como irá processar-se o encontro?

- Amanhã de manhã, no primeiro ferry entre Dover e Calais. Querem que espere no convés, a meio do barco, e o representante deles fará a abordagem. Sem observadores, sem aparelhos de gravação, sem câmaras. Se virem alguma coisa de que não gostam, o encontro fica sem efeito.

- Quem vai ser o representante deles?

- Muhammad Awad.

- O Awad é o segundo membro mais importante da organização. O simples fato de o quererem colocar a bordo de um ferry e cara a cara com um agente da CIA é notável.

- Por isso mesmo, deve ser bom demais para ser verdade interveio Carter, enquanto a câmara fazia uma panorâmica para captar a sua imagem. - Não gosto disto. Vai contra todas as nossas regras quanto a encontros deste gênero. Somos nós que controlamos o local. Nós estabelecemos as condições. Mais do que ninguém, devia saber disso.

- Imagino que seja contra este encontro - disse Michael.

- Cento e dez por cento.

- Gostaria de ouvir sua reação, Michael - adiantou Beckwith.

- Adrian tem razão, Senhor Presidente. Em geral, não nos encontramos com terroristas de renome em situações como esta. A doutrina da Agência diz que somos nós a controlar o encontro: a data, o local, as regras básicas. Posto isto, creio que neste caso devemos esquecer as regras.

- E se o objetivo for assassiná-lo?

Se a Espada de Gaza me quisesse morto, haveria formas muito mais simples de o fazer, e não preparar um encontro elaborado, a bordo ao ferry entre Dover e Calais. Receio bem que bastaria enviarem um atirador para Washington, que esperasse à porta da sede.

- Bem visto - admitiu Clark.

- Julgo que apenas querem falar - continuou Michael. - E julgo que seríamos tolos se não escutássemos o que eles têm a dizer.

- Não concordo, Michael - discordou Carter. - Estamos a falar de um dos piores grupos terroristas em atividade. Eles falam todos os dias com as suas ações. Muito sinceramente, estou-me borrifando para aquilo que podem ter para dizer. - Carter olhou para Beckwith e disse: - Sinto muito pela linguagem, Senhor Presidente.

- Eu avisei-o de que ele não era uma pessoa decente, Senhor Presidente - disse Michael.

O conselheiro para a Segurança Nacional William Bristol esperou que as gargalhadas esmorecessem.

- Acho que vou apoiar o Michael, Senhor Presidente. É verdade, Muhammad Awad é um terrorista perigoso que não merece uma audiência só porque a pede. No entanto, muito sinceramente, gostaria de ouvir o que tem a dizer. Este encontro pode ser proveitoso. Certamente poderá dar à CIA informações preciosas sobre os elementos e sobre a maneira de pensar do grupo. E concordo com o Michael noutro ponto: se a Espada de Gaza o quiser matar, há maneiras mais fáceis de o conseguir.

O Presidente dirigiu-se a Vandenberg. - Qual é a sua opinião, Paul?

Detesto ir contra si, Bill, pois a política externa é a sua especialidade e não minha, mas julgo que não temos nada a ganhar com um encontro com o líder de um bando de vilões sanguinários como a Espada de Gaza. O Adrian tem razão: a Espada de Gaza fala com ações e não com palavras. E temos de pensar noutra coisa. Não gostaria de ter de explicar ao povo americano por que motivo nos encontramos com Muhammad Awad numa altura como esta. A forma como tem lidado com a crise tem sido exemplar e os Americanos já o recompensaram. Não gostaria de ver essa boa vontade desperdiçada só porque um terrorista como Muhammad Awad quis trocar dois dedos de conversa.

Beckwith caiu num silêncio pensativo. Michael sabia que não era bom sinal. Nunca estivera na presença do Presidente, mas já ouvira histórias sobre o poder de Paul Vandenberg. Se este não quisesse que o encontro tivesse lugar, provavelmente o encontro não se realizaria.

Por fim, Beckwith olhou para a câmara e dirigiu-se a Michael em Londres, e não aos homens sentados à sua volta.

- Michael, se estiver disposto a avançar com isto, gostaria de saber o que Muhammad Awad tem a dizer. Sei que vai comportar riscos, e sei que o Michael é casado.

- Vou encontrar-me com ele - respondeu Michael simplesmente.

Muito bem - declarou Beckwith. - Desejo-lhe muito boa sorte. Falamos amanhã. Depois, a imagem de Washington desvaneceu-se.

LONDRES

O embaixador permitiu que Michael utilizasse o seu gabinete para telefonar a Elizabeth, em Washington. Michael ligou para o número privado, mas foi Max, o secretário, quem atendeu. Mostrou-se aliviado ao ouvir a voz de Michael e depois explicou que Elizabeth já partira para Nova York e que poderia ser contatada mais tarde, no apartamento do pai na Quinta Avenida. Michael sentiu uma pontada de fúria momentânea - como podia ela ter saído do gabinete sem esperar para lhe ouvir a voz? - mas depois sentiu-se um tolo. Saíra mais cedo do trabalho pois de manhã iria extrair e fertilizar os óvulos no Cornell Medical Center, em Nova York. Durante a confusão do atentado, Michael esquecera-se completamente. E concordara em encontrar-se com Muhammad Awad no meio do Canal da Mancha, o que atrasaria a sua chegada a Nova York mais dois dias. Elizabeth ficaria furiosa, e com toda a razão. Michael disse a Max que lhe telefonaria mais tarde para Nova York e desligou.

Na verdade, Michael ficou aliviado por não ter falado com Elizabeth. Não queria ter uma conversa como aquela numa linha monitorizada da embaixada. Dirigiu-se ao gabinete de Wheaton e encontrou-o sentado à secretária, a apertar uma bola de tênis, um Dunhill entre os lábios exangues.

- Perdi a mala em Heathrow - explicou Michael. - Tenho de fazer umas compras antes que as lojas fechem.

Por acaso, não pode ir - contrapôs Wheaton com desdém. Para começar, não gostava que Michael estivesse a trabalhar no seu território. O fato de Michael ser a coqueluche do momento também não ajudava. - O Carter quer vê-lo quieto e seguro. Temos uma casa de segurança perto de Paddington Station. Vai ver que é muito confortável.

Michael resmungou consigo mesmo. As casas de segurança da Agência eram o equivalente na espionagem a um hotel barato. Conhecia muito bem o apartamento de Paddington Station. Utilizara-o ao longo dos anos para esconder vários agentes de penetração assustados. A última coisa que ele queria era passar lá a noite como hóspede e não como ama-seca. Michael sabia que não valia a pena resistir. Ia encontrar-se com Muhammad Awad contra a vontade de Carter e não queria enfurecê-lo ainda mais, reclamando por ter de passar uma noite na casa de segurança de Paddington.

Continuo a precisar de roupa - insistiu Michael.

- Faça uma lista e eu mando alguém comprar.

- Preciso de apanhar ar. Preciso de fazer alguma coisa. Se tiver de passar as próximas doze horas trancado numa casa de segurança a ver televisão, vou dar em louco.

Claramente irritado, Wheaton levantou o receptor do telefone interno e murmurou algumas palavras ininteligíveis para o bocal. Momentos depois surgiram dois agentes à porta, vestidos com ternos cinza-claro idênticos.

- Cavalheiros, o senhor Osbourne gostaria de passar a tarde no Harrods.

Garantam que não lhe acontece nada.

- Porque não envia um par de Marines fardados? - queixou-se Michael. - E, já agora, a Marks and Spencer serve perfeitamente.

Apanharam um táxi para Oxford Street, um dos agentes sentado ao lado de Michael no banco, o outro apertado num banco desdobrável. Michael entrou na Marks & Spencer e comprou dois pares de calças de bombazina, dois pulôveres de algodão, uma blusa cinzenta de lã, roupa interior e peúgas, e um casaco verde impermeável. Os vigilantes seguiram-no, enquanto reviravam pilhas de blusas e fileiras de ternos como um par de comunistas na sua primeira viagem ao Ocidente capitalista. De seguida entrou numa drogaria e comprou artigos de higiene: lâminas e creme de barbear, pasta e escova de dentes,

desodorizante. Queria andar, por isso levou as compras ao longo de Oxford Street, a olhar para as montras como um empresário enfadado a matar tempo, sempre com o instinto a fazê-lo olhar para trás, em busca de perseguidores. Não viu ninguém, salvo os homens da Agência, vinte metros mais atrás.

Chuviscava. O lusco-fusco caiu como um véu. Michael abriu caminho por entre a multidão que entrava e saía da estação de metro de Tottenham Court Road. Adorava o cheiro do final de tarde de Outono em Londres. Chuva no passeio. Gases dos escapes. Cerveja e cigarros nos pubs. Lembrava-se de noites como aquela, em que saía do gabinete com o seu terno azul e o sobretudo creme de um vendedor, dirigindo-se ao Soho para se encontrar com Sarah no café, ou no bar que ela frequentava, cercada por bailarinos, por escritores, ou por atores. Michael era um estranho nesse mundo, um símbolo da convenção e de tudo o que desprezavam, mas, na presença deles, Sarah apenas tinha olhos para si. Ignorava as regras românticas do clã. Dava-lhe a mão. Beijava-lhe os lábios. Partilhava intimidades sussurradas e recusava-se a divulgá-las, quando interrogada.

Ao atravessar Shaftesbury Avenue, Michael interrogou-se quanto disso seria verdade, e o que não passaria de invenção. Tê-lo-ia amado? Teria representado desde o início? Porque teria pedido aos russos para desistir? Imaginou Sarah no apartamento caótico, o corpo a subir ao seu encontro à luz das velas, o cabelo longo a cair-lhe sobre os seios. Sentiu o aroma do cabelo, do hálito, saboreou o sal na pele translúcida. O ato de amar fora religioso. Caso fosse mentira, Sarah Randolph era a melhor agente que alguma vez encontrara. Interrogou-se se ela teria descoberto algo valioso. Talvez devesse tê-la declarado ao Departamento de Pessoal. Eles teriam investigado os seus antecedentes, tê-la-iam colocado sob vigilância, descobririam os encontros que mantinha com o controlador russo, e tudo poderia ter sido evitado. Pensou no que diria a Elizabeth. Promete que nunca vais mentir-me, Michael. Podes ocultar-me coisas, mas nunca me mintas. Quem me dera poder contar-te a verdade, pensou, mas nem eu sei qual é.

Michael sentou-se num banco em Leicester Square e esperou que os vigilantes se juntassem a ele. Apanharam um táxi até a casa de segurança, localizada num prédio branco ofensivo, com vista para Paddington Station. O interior era pior do que o recordado por Michael: mobília reles manchada, cortinados cheios de pó, copos e pratos de plástico numa cozinha em estado de sítio. O fedor dos quartos lembrava-lhe a residência universitária em Dartmouth. Wheaton abastecera o frigorífico com carnes frias e cerveja encomendadas à loja Sainsbury's. Michael tomou uma ducha e vestiu uma muda da roupa nova. Quando voltou à sala, os agentes comiam sanduíches e viam futebol inglês numa televisão de imagem instável. A cena tinha algo que o deprimia. Precisava de telefonar a Elizabeth, em Nova York, mas sabia que iriam brigar, algo que não queria fazer com a Agência à escuta.

- Vou sair - anunciou Michael.

- O Wheaton diz que tem de ficar aqui - avisou um dos homens, com a boca cheia de presunto, queijo cheddar e pão francês.

- Não quero saber daquilo que o Wheaton diz. Não vou passar a noite aqui sentado com dois palhaços. - Michael fez uma pausa.

- Muito bem, podemos ir juntos, ou posso livrar-me de vocês em cinco minutos, e depois explicam ao Wheaton o que se passou.

Seguiram de carro até Belgravia e estacionaram à frente da casa dos Seymour, em Eaton Place. Os guardas esperaram no seda" da Agência. A rua brilhava com a chuva e com a luz das fachadas de marfim do terraço georgiano. Pelas janelas, Michael pôde ver Helen na cozinha, concentrada no desastre culinário dessa noite, e Graham no andar de cima, na sala, a ler o jornal. Percorreu os degraus, molhados da chuva, e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen veio abrir e beijou-lhe a face.

- Que surpresa maravilhosa - exclamou.

- Importas-te que venha incomodar?

- É claro que não. Estou a fazer bouillabaisse.

Tens que chegue para mais um? - perguntou Michael, com o estômago instintivamente a dar uma volta.

- Mas é claro, meu querido - ronronou Helen. - Vai lá acima beber alguma coisa com o Graham. Este atentado em Heathrow deixou-o muito perturbado. Ai, meu Deus, foi uma coisa tão horrível.

- Eu sei - garantiu Michael. - Infelizmente, estava lá.

- Estás a brincar! - exclamou Helen. Depois olhou para a expressão de Michael. - O, não estás a brincar, pois não, Michael? Estás com um ar terrível, coitadinho. A bouillabaisse vai fazer-te sentir melhor.

Quando Michael entrou na sala, Graham ergueu o olhar.

- Ora vejam só, o herói de Heathrow. - Pousou o The Evening Standard, cuja manchete proclamava TERROR NO TERMINAL QUATRO.

Uma travessa com brie e com patê estava em cima da mesa de centro, ao lado de uma fatia grossa de pão. Graham já devorara metade. Michael barrou um pedaço de pão com queijo e olhou desconfiado para o patê.

- Não te preocupes, meu caro. Comprei-o numa loja de Sloane Square. Ela tem vindo a ameaçar que vai aprender a fazê-lo em casa. Não tarda muito vai começar a cozer pão, e nessa altura estou perdido.

Em fundo, Michael podia ouvir as notícias da BBC na aparelhagem alemã de Graham. Este tinha um ótimo ouvido e poderia ter sido um pianista sinfônico, caso os serviços secretos não lhe tivessem deitado a mão. O seu talento atrofiara ao longo dos anos, como acontece com uma segunda língua que não se fala. Utilizava o Steinway de cauda uma ou duas vezes por semana, enquanto Helen assassinava o jantar, e escutava outros a tocar música. Michael ouviu uma testemunha a descrever o viajante de terno azul que matara um terrorista e incapacitara outro.

- Tenho de telefonar à Elizabeth, e não quero metade da Estação de Londres a ouvir a conversa. Importas-te que use o teu telefone? Graham apontou para o telefone em cima da mesa de apoio.

- Preciso de um pouco mais de privacidade. Ela não vai gostar do que tenho para lhe dizer.

- O quarto fica ao fundo do corredor.

Michael sentou-se na beira da cama, pegou no telefone e marcou o número.

Elizabeth atendeu ao primeiro toque, o tom de voz agitado.

Meu Deus, Michael, onde tens estado? Estou preocupadíssima.

Não queria que a conversa começasse dessa forma. O primeiro instinto foi culpar a Agência, mas Elizabeth há muito que perdera a paciência para desculpas sobre as exigências únicas do seu trabalho.

- O Wheaton disse-me que tinha falado com você. Quando pude usar um telefone, já tinhas partido para Nova York. Além disso, queria um aparelho sem escutas.

- Onde estás?

- com a Helen e o Graham.

Elizabeth passara bastante tempo com os Seymour e gostava bastante do casal. Dois anos antes, numa altura em que Graham estivera em Washington para um trabalho de ligação contraterrorista, os quatro tinham passado um fim-de-semana prolongado na casa de Shelter Island.

- Porque não estás a caminho de casa? A extração está marcada para as dez da manhã. Preciso que aqui estejas.

- Já não há mais voos. Não vou conseguir chegar a tempo.

- Michael, trabalhas para a Central Intelligence Agency. Eles conseguem desencantar um avião. Diz-lhes quais são as circunstâncias. De certeza que vão ser compreensivos.

- Não é assim tão simples. Além disso, custa dezenas de milhar de dólares. Não vão fazer isso por mim.

Elizabeth suspirou profundamente. Michael ouviu o isqueiro barato e ela parou de falar o tempo suficiente para acender outro cigarro Benson & Hedges. - Tenho passado o dia a ver a CNN - disse, mudando de assunto de repente. - Falaram sobre uma testemunha que disse que um passageiro prendeu um dos terroristas e abateu outro com a arma dele. O homem que descreveram era muito parecido com você. - O que te disse o Wheaton?

- Ah não, Michael, não vou deixar que vocês acertem as agulhas com a história que andam a contar. O que aconteceu? Quero a verdade.

Michael contou-lhe.

Meu Deus do céu! Não podias ficar escondido e esperar que resolvessem as coisas? Tinhas de te aventurar? De te armar em herói e arriscar a vida?

- Não me estive a armar em herói, Elizabeth. Reagi a uma situação. Fiz aquilo para que me treinaram e devo ter conseguido salvar algumas vidas. - Então parabéns. O que queres que eu faça? - A voz tremia com a emoção. - Que me levante e seja a primeira a aplaudir por quase ter feito de mim uma viúva?

- Eu não fiz quase de ti uma viúva.

- Michael, eu ouvi um estranho na televisão dizendo que um terrorista te apontou uma arma e que você conseguiu matá-lo antes que ele te matasse. Não me minta.

- Não foi assim tão dramático.

- Então por que o matou?

- Porque não tinha alternativa. - Michael hesitou. - E porque merecia morrer. Há vinte anos que persigo pessoas como estas, mas nunca as tinha visto em ação. Hoje tive essa oportunidade. Foi pior do que imaginei.

Michael não estava em busca de compreensão, mas as suas palavras atenuaram a ira da esposa.

- Oh, sinto tanto. Mas como está você, afinal de contas? - perguntou Elizabeth.

- Estou bem. Quase quebrei a mão esmurrando o cara, e devo ter batido como o joelho em algum lugar, porque dói como o diabo. Mas de resto estou bem.

- É bem feito - replicou, ao que acrescentou rapidamente -, mas vou dar beijinhos em todo lugar, quando chegar em casa, amanhã.

Michael hesitou. Elizabeth tinha o radar em potência máxima.

- Você volta amanhã, não volta?

- Surgiu um imprevisto. Tenho de passar aqui mais um dia.

- "Surgiu um imprevisto." Então, Michael, consegue fazer melhor do que isso.

- É verdade. Quem me dera poder dizer do que se trata, mas não posso.

- Seja o que for, por que não pode ser outra pessoa a tratar do assunto?

- Porque só eu é que posso. - Michael fez uma pausa. - Mas há uma coisa que posso dizer: foi o Presidente em pessoa que me deu as ordens.

- Não me interessa quem te deu as ordens! - retorquiu Elizabeth. - Prometeu que voltaria a tempo. Agora quebra essa promessa.

- Elizabeth, o caso não está nas minhas mãos.

- Uma porra! Está tudo nas suas mãos. Você faz exatamente o que quer. Sempre fez.

- É só mais um dia e depois regresso. Vou direto a Nova York. Chego a tempo da implantação.

- Michael, não quero que se incomode. Por que não fica em Londres mais um dia ou dois? Vai ao teatro, ou algo assim.

- Isso não é justo, Elizabeth, e não está ajudando.

- Pode crer que não é justo.

- Não posso fazer nada.

- Faça o que fizer, Michael, não precisa voltar às pressas por minha causa, pois não sei se quero te ver.

- O que está a dizendo?

- Não sei o que estou dizendo. Estou zangada, magoada e desapontada com você. E estou com medo, e nem acredito que você vai me obrigar a passar por isso sozinha.

- Não tenho escolha, Elizabeth. É o meu trabalho. Não tenho escolha.

- Tem sim, Michael. Tem escolha. E isso é o que mais me assusta.

Ficou em silêncio por um instante, o zumbido da ligação por satélite era o único som em linha. Michael esgotara o que dizer. Queria dizer que a amava, o quanto lamentava, mas isso parecia tolo.

- Quando estávamos ao telefone, em Heathrow, antes do ataque - disse Elizabeth, por fim -, disse que queria contar uma coisa.

Michael filtrou a confusão e a violência do atentado em Heathrow e percebeu que estivera prestes a contar o que descobrira sobre Sarah. Não queria piorar a situação dizendo a Elizabeth que investigara a morte da antiga amante.

- Não me lembro do que estávamos falando - disse.

Elizabeth suspirou.

- Meu Deus, que péssimo mentiroso. Sempre pensei que os espiões fossem bons em enganar as pessoas. - Fez uma pausa, à espera que o marido dissesse alguma coisa, mas ele não tinha mais nada a dizer. - Boa sorte amanhã, para aquilo que vai fazer. Eu te amo.

A ligação caiu. Michael voltou a ligar rapidamente mas, quando o telefone começou a chamar, apenas ouviu o ruído irritante do sinal de ocupado. Voltou a tentar mas nada conseguiu, por isso desligou o telefone e desceu para enfrentar o jantar de Helen.

- Talvez fosse melhor pedir a Carter para enviar outra pessoa - sugeriu Graham.

Estavam sentados lá fora, no jardim, em volta de uma mesa de ferro forjado, fumando os cigarros de Graham. A chuva parara e a Lua ia brilhando através dos farrapos de nuvens.

- Não podemos enviar mais ninguém. Eles pediram que fosse eu. Conhecem o meu rosto. Se tentarmos enviar outra pessoa, vai tudo por água abaixo.

- Já pensou que pode cair direitinho numa armadilha? Vivemos tempos perigosos. A Espada de Gaza pode querer abater um homem dos serviços, sobretudo depois do que fez hoje em Heathrow.

- Não ganham nada em me matar. Sabe tão bem quanto eu que eles não matam indiscriminadamente. Fazem por uma razão e só quando acreditam que isso poderá promover sua causa.

- Imagino que Elizabeth não esteja nada satisfeita com a situação.

- Você pode imaginar. Ela não sabe o que vou fazer amanhã, mas não anda contente. - Michael contou tudo. Mesmo que a natureza do seu trabalho por vezes exigisse discrição profissional, havia muito poucos segredos pessoais entre eles.

- Espero que saiba o que está fazendo, companheiro. Parece bem grave.

- Neste momento não preciso de um conselheiro matrimonial. Sei que estou me arriscando, mas quero ouvir o que o Awad tem a dizer.

- Minha experiência com esses sacanas sugere que não vai dizer nada de útil.

- Não me arriscaria se não tivesse alguma coisa para nos dizer.

- Por que não apanhas o filho da mãe e o mete na prisão? Ou melhor ainda, trata do seu desaparecimento conveniente.

- É tentador, mas nós não funcionamos assim. Além disso, o único resultado seria uma resposta com mais violência.

- Não podem fazer nada mais violento do que o atentado de hoje, meu caro.

Uma sirene uivou na direção de Sloane Square. Sem querer, Michael pensou em Sarah.

- Chegou a encontrar o nosso amigo Drozdov? - perguntou Graham.

Michael anuiu.

- Disse alguma coisa de útil?

- Na verdade, foi bem útil. Sabia quem eu era. Disse por que Sarah foi morta.

Michael contou-lhe a história.

- Valha-me Deus, lamento, Michael. Sei o quanto ela significava para você - garantiu Graham.

Michael acendeu outro cigarro.

- Não disse a ninguém de sua equipe que eu estava pensndo em fazer uma visita a Drozdov, não?

- Está brincando? Os manda-chuvas me esfolariam vivo se descobrissem. Por que pergunta?

- Porque dois brucutus num Ford branco me seguiram até Heathrow.

- Não eram nossos. Talvez Wheaton tenha posto você sob vigilância.

- Já pensei nessa possibilidade.

- É um filho da mãe, esse seu Wheaton. Os cavalheiros na suíte executiva de Vauxhall Cross mal podem esperar pelo regresso dele a Langley para a dança da vitória em volta da sede.

- Ele contou ao SIS sobre o encontro de amanhã com Awad?

- Que eu saiba não, e eu faria parte da lista de aviso, se uma coisa dessas acontecesse.

- E não vai contar nada a sua equipe, certo, Graham?

- Claro que não. As regras habituais se aplicam, meu caro.

Graham jogou o cigarro num canteiro agora seco. - Não quer alugar um copiloto experiente?

- Quando foi a última vez que fez trabalho de campo?

- Já faz algum tempo. E você também. Mas há coisas que não se esquecem. Se fosse você, neste momento desejaria ter alguém me protegendo.


WASHINGTON, D. C.


Paul Vandenberg ligou os televisores do gabinete e viu, em simultâneo, a abertura dos noticiários dos três canais de televisão. Cada um deles dedicou todo o primeiro bloco à emissão do ataque em Heathrow. Houve reportagens em direto de Londres, da Casa Branca e do Oriente Médio, e reportagens de fundo sobre a Espada de Gaza. O tom dos jornalistas era, regra geral, positivo, embora fontes diplomáticas europeias anônimas culpassem os Estados Unidos por atacarem as bases da Espada de Gaza. Vandenberg não se preocupava com as críticas dos europeus. O Congresso encontrava-se do seu lado. Até mesmo alguns dos democratas mais pacifistas, como Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith, tinham prometido apoio, e o New York Times e o Washington Post tinham concedido suas bênçãos editoriais. Ainda assim, os vinte civis americanos que regressavam a casa em caixões minaram necessariamente algum apoio da opinião pública em relação aos atos do Presidente.

O noticiário abandonou o assunto e transmitiu o resto das notícias do dia. Vandenberg levantou-se e preparou um copo de vodka com água tônica, o qual bebeu enquanto arrumava a secretária e trancava os documentos importantes.

Às sete e dez, a secretária espreitou à porta.

- Boa noite, senhor Vandenberg.

- Boa noite, Margaret.

Tem uma chamada. Um tal detective Steve Richardson, da Polícia Metropolitana de D.C.

- Ele disse do que se trata? - Não, senhor. Quer que pergunte?

- Não, vá para casa, Margaret. Eu trato do assunto. Vandenberg baixou o som dos televisores, carregou na luz a piscar do telefone multilinhas e pegou no receptor.

- Fala Paul Vandenberg - disse com brusquidão, adicionando intencionalmente uma nota de autoridade ao tom de voz.

- Boa noite, senhor Vandenberg. Peço desculpa por incomodá-lo tão tarde, mas isto vai demorar apenas um ou dois minutos.

- Posso saber do que se trata?

- Do assassinato de uma jornalista do Washington Post, chamada Susanna Dayton.

Tinha conhecimento da sua morte, senhor Vandenberg?

- Claro. Na verdade, falei com ela nessa noite.

- Bem, é por isso que estamos a telefonar. Sabe...

- Foram consultar os registros telefônicos e descobriram que eu fui uma das últimas pessoas com quem ela falou, e agora querem saber o tema da nossa conversa.

- Já tinha ouvido dizer que era um homem esperto, senhor Vandenberg.

- De onde está a telefonar?

- Para dizer a verdade, estou mesmo do outro lado da rua, em Lafayette Park.

- Ótimo, porque não falamos cara a cara?

- Eu conheço-o. Tenho-o visto na televisão ao longo dos anos.

- Parece que a televisão serve para alguma coisa.

Cinco minutos depois, Vandenberg atravessava o Portão Noroeste da Casa Branca, cruzando a alameda pedestre que antigamente fora a Pennsylvania Avenue. O carro aguardava no Acesso Executivo, no interior do recinto. A noite caíra e, com ela, viera uma chuva miudinha e fria. Vandenberg caminhava pelo Lafayette Park num passo rápido de marcha, a gola virada para cima a fim de se proteger do frio, os braços a baloiçar ao lado do corpo. Dois sem-abrigo aproximaram-se e pediram-lhe dinheiro. Vandenberg passou por eles a toda velocidade, sem sequer se aperceber da sua presença. O detetive Richardson levantou-se do banco onde estava sentado e caminhou na direção dele, de mão estendida.

- Ela telefonou para que eu comentasse uma reportagem em que estava trabalhando - adiantou Vandenberg, tomando de imediato a iniciativa. - Era um artigo de investigação complexo e eu recomendei que fosse ao gabinete de imprensa da Casa Branca.

- Lembra-se de algum pormenor da história?

Quer dizer que não havia nenhuma gravação, pensou Vandenberg.

- Nem tanto. Era alguma coisa sobre as atividades de angariação de fundos do Presidente. Não me pareceu muito grave e, sinceramente, num domingo à noite, não queria muito falar naquilo. Por isso, mandei-a procurar quem de direito.

- Telefonou ao secretário de imprensa para informar do telefonema?

- Não, não telefonei.

- Posso saber por quê?

- Porque não achei que fosse necessário.

- Conhece um homem chamado Mitchell Elliott?

- Claro - respondeu Vandenberg. - Antes de entrar para a política, trabalhei para a Alatron Defense Systems e Mitchell Elliott é um dos apoiadores políticos mais chegados do Presidente. Encontramo-nos com muita frequência e falamos com regularidade.

- Sabia que Susanna Dayton também telefonou para Mitchell Elliott nessa noite? Na verdade, isso aconteceu momentos antes de falar com você.

- Sim, sei que ela telefonou para Mitchell Elliott.

- Posso perguntar como sabe disso?

- Porque Elliott e eu falamos posteriormente.

- Lembra-se sobre o que falaram?

- Não realmente. Foi uma conversa muito breve. Discutimos as alegações da Sra. Dayton e ambos chegamos à conclusão de que eram disparates sem fundamento que não mereciam comentário.

- Falou com Elliott mas não com o secretário de imprensa da Casa Branca?

- Sim, exatamente.

Richardson fechou o bloco de notas a fim de sinalizar que a entrevista terminara.

- Faz alguma ideia de quem assassinou a mulher?

Richardson abanou a cabeça. - Neste momento, estamos tratando do caso como um assalto que deu errado. Lamento tê-lo incomodado, senhor Vandenberg, mas tínhamos de confirmar. Espero que compreenda.

- Claro, detetive.

Richardson entregou-lhe seu cartão.

- Caso se lembre de mais alguma coisa, por favor, não hesite em ligar. - Não gosto de receber telefonemas da polícia de Washington para o meu gabinete na Casa Branca, Mitchell.

Os dois homens caminhavam lado a lado no seu ponto de encontro habitual, Hans Point, ao longo do Washington Channel. Mark Calahan deambulava alguns passos atrás, à procura de algum sinal de vigilância.

- A polícia de Washington não me faz sentir lá muito nervoso, Paul - respondeu Elliott calmamente. - Acho que a última vez que prenderam alguém por assassínio foi em 1950.

- Diga-me só uma coisa, Mitchell. Diga-me que não teve absolutamente nada a ver com a morte daquela mulher.

Pararam de andar. Mitchell Elliott virou-se para encarar Vandenberg, mas não disse nada.

- Ponha a mão sobre uma Bíblia imaginária, Mitchell - disse Vandenberg -, e jure por esse seu Deus que o Calahan ou outro dos seus rufiões não mataram Susanna Dayton.

- Sabe que não posso fazer isso, Paul - recusou Elliott calmamente.

- Seu sacana - murmurou Vandenberg. - O que aconteceu?

- Nós a pusemos sob vigilância total, física e áudio - explicou Elliott. - Entramos na casa dela para fazer algumas tarefas domésticas e ela nos surpreendeu.

- Ela surpreendeu vocês! Valha-me Deus, Mitchell! Sabe o que está dizendo?

- Sei exatamente o que estou dizendo. Um dos meus homens cometeu um assassínio infeliz. O chefe de gabinete da Casa Branca é agora cúmplice por encobrimento de assassinato.

- Seu filho da mãe! Como se atreve a fazer isto com o Presidente!

- Fale baixo, Paul. Nunca se sabe quem pode estar na escuta. E eu não fiz nada ao Presidente, porque não há como sermos ligados ao assassinato de Susanna Dayton. Se não perder a cabeça e fizer alguma coisa estúpida, nada vai acontecer.

Vandenberg lançou um olhar furioso a Calahan, que retribuiu, sem pestanejar.

Virou-se e começou a andar. Uma chuva suave flutuava sobre o rio.

- Tenho mais uma pergunta, Mitchell.

- Quer saber quem é que realmente abateu aquele avião.

Vandenberg olhou para Mitchell em silêncio.

- Limite-se a dizer suas deixas e faça seu trabalho, Paul. Não faça muitas perguntas.

- Agora, Mitchell! Diga-me agora!

Elliott virou-se para Calahan.

- Mark, o senhor Vandenberg não está se sentindo nada bem neste momento. Acompanhe-o até o carro. Boa noite, Paul. Falaremos em breve.

O carro com motorista de Vandenberg saiu de Hans Point e seguiu a alameda, contornando Tidal Basin. O Jefferson Memorial brilhava suavemente nas águas, com o reflexo tornado indistinto pela chuva. O carro virou para a Independence Avenue, passou pelo altaneiro Washington Monument e virou para Potomac

Parkway. Vandenberg olhou para o Lincoln Memorial.

Meu Deus, o que foi que eu fiz - pensou.

Precisava de uma bebida. Nunca na sua vida tinha precisado de uma bebida, mas agora sentia mesmo necessidade. Fechou os olhos. A mão direita tremia-lhe, por isso cobriu-a com a esquerda e fitou o rio que fluía sob a ponte.

LONDRES

Na manhã seguinte, Michael levantou-se antes de amanhecer e vestiu-se sem fazer barulho no quarto horrível da casa de segurança. Estava tudo silencioso exceto pelo ronco do trânsito matutino perto de Paddington Station e pela tagarelice dos guarda-costas de Wheaton no quarto ao lado. Bebeu um café instantâneo abjeto por uma caneca lascada, mas ignorou um prato de croissants duros. Regra geral, Michael estava calmo antes de um encontro, mas agora sentia-se nervoso e irritadiço, tal como se sentira quando era um recruta calouro, enviado para o campo pela primeira vez, depois do curso de treino na Quinta. Era raro fumar antes do meio-dia, mas já ia no segundo cigarro. Dormira pouco, agitado na cama de solteiro encovada, perturbado pela zanga com Elizabeth. Em grande parte, o seu casamento sempre fora calmo, livre das discussões e tensão constantes que afligiam tantos casamentos da Agência. Pequenas altercações abalavam-nos profundamente. Uma batalha como a da véspera, com ameaças de vingança, era-lhes estranha.

Vestiu um colete à prova de bala por cima da blusa de gola alta fina e enfiou uma blusa de lã cinzenta. Pegou no telefone e marcou uma última vez o número do apartamento na Quinta Avenida. Continuava ocupado. Pousou o receptor no descanso e saiu. Wheaton estava à espera lá em baixo, na beira, no banco traseiro de um sedan anônimo da Agência. Foram até Charing Cross, Wheaton discursando monotonamente sobre as regras para o encontro com a intensidade de alguém que passara uma carreira em segurança, preso a uma secretária.

- Se não for o Awad, em nenhuma circunstância deve prosseguir com o encontro - avisou Wheaton. - Espere que o barco chegue a Calais e nós tiramo-lo de lá. - Não estou a entrar em território inimigo - disse Michael. Se o Awad não aparecer, apanho o próximo ferry para a Grã-Bretanha.

- Permaneça alerta - continuou Wheaton, ignorando o comentário de Michael. - A última coisa de que precisamos é que vá de encontro a um verdadeiro crente da Espada de Gaza com uma chave de madeira em volta do pescoço. Regra geral, os membros da espada de Gaza., e muitos outros terroristas islâmicos, usavam uma chave de madeira por baixo da roupa durante missões suicidas, pois acreditavam que os seus atos seriam recompensados com o martírio e um lugar no céu.

- Carter não quer que vá desprotegido - indicou Wheaton. Abriu uma pequena mala e retirou de lá de dentro uma potente

pistola automática Browning com um carregador de quinze balas, a arma regulamentar da Agência.

- O que devo fazer com isto? - perguntou Michael. Como muitos agentes de casos, podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que levara uma arma no cumprimento do dever. Raramente um agente de casos disparava para resolver um problema. Sacar de uma arma em legítima defesa era o derradeiro sinal de fracasso. Significava que o agente fora traído por um dos seus, ou que fora completamente descuidado.

- Não vamos mandá-lo para aquele ferry para que seja assassinado ou feito refém - insistiu Wheaton. - Caso se aperceba de que está a cair numa armadilha, riposte. Vai lá estar sozinho.

Michael colocou o carregador na coronha e puxou a culatra, introduzindo a primeira bala. Accionou a trava de segurança e enfiou a arma no cós das calças, por baixo da blusa.

Wheaton deixou Michael na estação. Michael comprou um bilhete de primeira classe para Dover e um molho de jornais matutinos, e depois foi à procura da plataforma. Entrou no comboio com cinco minutos de antecedência e avançou pelo corredor apinhado. Encontrou um lugar num compartimento com dois homens de negócios que já estavam a martelar nos computadores portáteis. No momento em que o comboio saía da estação, uma mulher entrou no compartimento. Tinha cabelo comprido e escuro, olhos escuros e pele pálida. Michael pensou que se parecia vagamente com Sarah.

Durante quase uma hora, o comboio avançou ruidosamente pelos subúrbios do Sudeste de Londres e depois entrou na terra de cultivo ondeada de Kent. No bar, Michael comprou café e umo sanduíche de presunto e queijo. Regressou ao compartimento e sentou-se. Os homens de negócios estavam em mangas de camisa e suspensórios, olhando para um relatório de lucros como se fosse um texto sagrado. A mulher não abriu a boca durante toda a viagem. Fumava um cigarro atrás do outro, até que o compartimento ficou a parecer uma câmara de gás. Os atraentes olhos castanhos acompanhavam o campo verde-acinzentado de Kent. A mão comprida encontrava-se sugestivamente pousada sobre uma coxa escondida por umas meias austeras.

O comboio chegou a Dover e Michael saiu do compartimento. A moça colocou um saco de pele ao ombro e seguiu-o. Era alta, tão alta como Sarah, mas não possuía a sua graciosidade, nem a agilidade física felina. Trazia vestido um casaco de pele preto, que lhe dava pelas coxas, e botas da tropa pretas que ressoavam quando andava.

Michael apressou-se a sair da estação e a dirigir-se ao terminal dos ferrys. Comprou um bilhete e entrou para o barco, um ferry multiuso com centro e trinta metros, capaz de transportar 1300 passageiros e 280 carros. Entrou para a área dos bancos dos passageiros no convés principal e sentou-se junto a uma janela, a bombordo. Olhou em frente e viu Graham Seymour sentado no centro do convés, vestido com calças de ganga e uma blusa cinzenta Venice Beach, e um estojo de guitarra nas mãos. Michael desviou rapidamente o olhar. A moça do comboio entrou, sentou-se diretamente atrás de Michael e começou de imediato a fumar.

Enquanto o ferry sulcava as águas, Michael lia os jornais. Dover desapareceu por trás de uma cortina de chuva. De minutos a minutos, Michael olhava para o parapeito a bombordo, pois era aí, a meio do navio, que Awad iria aparecer. Foi uma vez até o bar, o que lhe permitiu perscrutar o rosto de todos os que se encontravam sentados na área de passageiros. Comprou chá escuro servido num copo de papel muito fino e levou-o para o seu lugar. Não reconheceu ninguém, a não ser Graham e a moça do comboio, que estava absorta numa revista de moda de Paris.

Passou meia hora. A chuva parou, mas agora, bem no meio do Canal, o vento aumentava de intensidade e as ondas encrespadas lançavam-se em direção à ampla proa do ferry. A moça levantou-se, comprou café no bar e depois sentou-se ao lado de Michael. Acendeu outro cigarro e, por instantes, beberricou o café em silêncio.

- Ali está ele, junto ao parapeito, de gabardina cinzenta - indiciou, um vestígio de Beirute no seu inglês. - Aproxime-se dele devagar. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. E não tente armar-se em herói outra vez, senhor Osbourne. Estou bem armada e Ibrahim tem cinco quilos de Semtex atados ao corpo.

Michael achou que o rosto lhe era vagamente familiar, como um amigo de adolescência que se materializa na meia-idade, gordo e a ficar calvo. Vira aquele rosto muitas vezes, mas nunca de perto e, decerto, nunca pessoalmente. Vira o perfil do lado direito, indistinto, num instantâneo tirado pelos fotógrafos do MI5 durante uma das visitas de Awad a Londres. O rosto desfocado capturado pelos serviços franceses durante uma escala em Marselha. A velha fotografia israelense do jovem Awad: atirador de pedras, perito no fabrico de cocktails Molotov, criança guerreira da Intifada que quase espancou até a morte um colono de Brooklyn com um pedaço do seu adorado Hebron. A foto israelense era de valor limitado, pois a Shin Bet apanhara-o primeiro e deixara-o quase irreconhecível com equimoses e inchaços.

Michael e a sua presa ficaram lado a lado no parapeito durante um longo momento, cada um com o olhar fito no seu ponto privado das águas em turbilhão do Canal, como amantes zangados sem nada mais a dizer. Michael virou-se e olhou mais uma vez para Awad. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. Por um instante, interrogou-se se o homem seria mesmo Muhammad Awad. As entediantes advertências de Wheaton ecoavam na mente de Michael como anúncios de embarque num aeroporto.

A Michael, o homem a seu lado parecia o irmão mais velho e mais próspero de Awad. Estava vestido para fazer negócios, com um dispendioso sobretudo cinzento e um terno de bom gosto, com duas fileiras de botões, visível por baixo. As feições tinham sido alteradas por cirurgia plástica. Como resultado, a aparência árabe fora apagada e tinha sido criado algo de origem nacional incerta: um espanhol, um francês ou talvez um grego. O nariz palestino proeminente desaparecera, tendo sido substituído pelo nariz estreito e aquilino de um aristocrata do norte de Itália. As maçãs do rosto tinham sido realçadas, a testa suavizada, o queixo tornado quadrado e os olhos castanhos eram agora de um verde-claro, graças a lentes de contato. Tinham-lhe sido arrancados os dentes molares, a fim de lhe dar as faces felinas de um supermodelo.

A vida de Muhammad Awad assemelhava-se a um panfleto da literatura revolucionária palestina radical. Michael conhecia-a bem, pois compilara a biografia e o currículo de Awad para o Centro, com a ajuda da Mossad, do Shin Bet, do MI6 e de metade dos serviços de segurança da Europa. O avô fora arrancado aos seus olivais e laranjais nos arredores de Jerusalém em 1948 e enviado para o exílio na Jordânia. Segundo a lenda de Awad, no ano seguinte morreu de desgosto, conservando ainda o neto as chaves da sua casa em Israel no bolso. Outro ramo do clã Awad foi massacrado em Deir Yassin. Em 1967, a família foi expulsa novamente, desta vez para campos de refugiados no Líbano. O pai de Awad nunca trabalhou, limitava-se a ficar sentado nos campos, a contar histórias sobre como tinha sido a sua vida em pequeno, cuidando das azeitonas e das laranjas com o pai. O paraíso perdido. Nos anos 80, o jovem Muhammad Awad foi doutrinado no Islão radical do sul do Líbano e em Beirute. Juntou-se ao Hezbollah. Juntou-se ao Hamas. Recebeu treino no Irã e na Síria: armas leves, tácticas de infiltração, contra-espionagem, fabrico de bombas. Quando Arafat apertou a mão de Rabin na Casa Branca, Awad sentiu-se ultrajado. Quando as forças de segurança de Arafat começaram a perseguir o Hamas, a mando de Israel, Awad jurou vingança. Juntamente com cinquenta dos melhores guerrilheiros do Hamas, formou a Espada de Gaza, o grupo terrorista palestino mais mortífero desde o Setembro Negro.

Rajadas de vento assolavam o convés. Awad levou a mão ao interior do casaco. Michael hesitou, mas resistiu à tentação de pegar na Browning.

- Calma, senhor Browning - disse Awad. - Só me apeteceu fumar. Além disso, se quisesse matá-lo, o senhor já estaria morto.

O inglês era perfeito, com um leve sotaque irreconhecível por um ouvido destreinado. Os cigarros que foi buscar ao bolso do peito eram Dunhill sem filtro.

- Sei que fuma Marlboro Lights, mas talvez estes sirvam, sim? A sua esposa fuma Benson and Hedges, não é? Chama-se Elizabeth Cannon-Osbourne e exerce advocacia numa daquelas firmas importantes de Washington. O senhor vive na N Street, em Georgetown. Está a ver, senhor Osbourne, temos os nossos próprios serviços secretos e de segurança. E recebemos muitas ajudas dos nossos amigos em Damasco e em Teerã, claro está.

Michael aceitou o Dunhill e virou-se a favor do vento para o acender. Quando Awad levantou a mão para acender o seu próprio cigarro, Michael viu o detonador na palma da mão direita.

- Já percebi, Ibrahim - disse Michael.

- Sei que foi uma demonstração entediante, mas só a fiz para enfatizar que não desejo qualquer mal nem a si, nem à sua família. O senhor não é meu inimigo e não tenho tempo nem recursos para lutar contra si. - Então para que os explosivos presos à cintura?

- Num negócio como este, é preciso tomar precauções.

- Nunca me pareceu do tipo suicida.

Awad sorriu e soprou o fumo pelas narinas esculpidas.

- Sempre acreditei que era mais útil a Alá vivo do que morto. Além disso, não temos falta de voluntários para missões de martírio. Creio que passou algum tempo no Líbano quando era criança. Sabe as condições em que vive o nosso povo. A opressão pode gerar loucura, senhor Osbourne. Há miúdos que preferem morrer a passar uma vida inteira acorrentados.

Michael olhou para o lado esquerdo e viu a mulher do comboio encostada ao parapeito, a seis metros de distância, a fumar, os olhos vagueando pelo ferry.

- Pensei que acreditassem que o lugar de uma mulher era em casa, oculta por um chador - comentou Michael, olhando para a moça.

- É uma pena, mas por vezes este negócio exige os serviços de uma mulher talentosa. Para os objetivos desta conversa, ela chama-se Odette. É palestina e muito boa a manejar a arma. Os velhos serviços de segurança da Alemanha Ocidental davam ordens para abater primeiro as mulheres. No caso de Odette, esse seria, de fato, um excelente conselho.

- Agora já nos apresentamos todos - disse Michael -, que tal irmos diretos ao assunto? Porque quis conversar?

- O ataque de ontem em Heathrow foi obra da Espada de Gaza. Organizamos o ataque para vingar os vossos ataques aéreos ridículos contra os nossos amigos na Líbia, na Síria e no Irã. Ontem o senhor foi o herói, senhor Osbourne. A sua presença foi coincidência, garanto-lhe. Sinceramente, quem me dera que os tivesse morto aos dois. Os homens detidos deixam-me sempre um pouco nervoso. - Na verdade, o interrogatório está a correr muito bem - afiançou Michael, incapaz de resistir à oportunidade de brincar com Awad.

- Ouvi dizer que estava a fornecer uma tremenda quantidade de informação sobre a vossa estrutura organizacional e tácticas.

- Boa tentativa - afirmou Awad. - A nossa organização é altamente compartimentada, por isso os estragos que ele pode fazer são mínimos.

- Continue a acreditar nisso, Ibrahim. Vai ajudá-lo a dormir à noite. Quer dizer que pediu para falar comigo para reivindicar a responsabilidade pelo ataque terrorista em Heathrow?

- Preferimos utilizar o termo ação militar.

- Não há nada de militar em matar civis desarmados. Isso é terrorismo, puro e simples.

- O terrorista de um homem é um lutador pela liberdade de outro, mas não vamos entrar agora nessa discussão tola. Não há tempo. Os vossos ataques aéreos às nossas bases foram ridículos, pois não existia qualquer justificação para eles. A Espada de Gaza não disparou o míssil que fez cair o Voo Zero-Zero-Dois. Michael desconfiava que assim fosse, mas não ia demonstrá-lo em frente de Muhammad Awad.

O corpo de Hassan Mahmoud, um dos seus melhores agentes operacionais, foi encontrado no barco do qual o míssil foi disparado - declarou Michael, a voz baixa mas trêmula de emoção. O tubo de lançamento estava ao lado do corpo. Foi recebida em Bruxelas uma reivindicação válida.

O rosto de Awad contraiu-se. Deu uma longa baforada no Dunhill e jogou a guimba na água. Michael desviou o olhar de Awad e viu um iate a motor seguindo o ferry, atrás de um véu de névoa.

- Hassan Mahmoud deixou de ser membro da Espada de Gaza há quase um ano. Era um maldito de um psicopata que não aceitava a disciplina de uma organização como a nossa. Descobrimos que conspirava em segredo para assassinar Arafat, por isso o expulsamos. Teve sorte em não ter sido morto. Pensando em retrospectiva, devíamos tê-lo feito.

Awad acendeu outro cigarro.

- Mahmoud mudou-se para o Cairo e juntou-se aos fundamentalistas egípcios, al-Gama'at Ismalyya. - Awad levou novamente a mão ao bolso e, desta vez, fez aparecer um envelope. Abriu-o, retirou do seu interior três fotografias e entregou-as a Michael. - Foram-me dadas por um amigo dentro dos serviços de segurança egípcios. Esse homem é Hassam Mahmoud. Se pesquisar esta fotografia nos seus arquivos, descobrirá que este homem é Eric Stoltenberg. Creio que reconhece o nome.

Michael reconhecia-o, de fato. Eric Stoltenberg trabalhara para o Ministério da Segurança Interna da Alemanha de Leste, melhor conhecido como o Stasi. Trabalhava para o Departamento XXII, que conduzia operações de apoio levadas a cabo pelo Stasi a movimentos de libertação nacional por todo o mundo. O seu portfólio incluía terroristas conhecidos, como Abu Nidal, Carlos, o Chacal, e grupos como o IRA e a ETA espanhola. Michael examinou as fotografias: dois homens sentados a uma mesa de tampo cromado, no Groppi's Café, um de cabelo e pele escuros, o outro louro e de pele clara, ambos com óculos-de-sol.

Michael estendeu as fotografias a Awad.

- Fique com elas - disse Awad. - São uma oferta minha.

- Elas não provam nada.

- Como provavelmente será do seu conhecimento, Eric Stoltenberg teve de arranjar trabalho noutro lado - continuou Awad, ignorando o comentário de Michael. - Depois da queda do Muro, os alemães queriam a sua cabeça porque ele ajudou os líbios a bombardear o clube noturno LaBelle, em Berlim Ocidental, em 1986. Desde aí que Stoltenberg tem vivido no estrangeiro, utilizando os antigos contatos da Stasi para fazer dinheiro seja de que maneira for: segurança, contrabando, esse tipo de coisas. Há pouco tempo, ganhou uma bela quantia e não escondeu isso lá muito bem.

O iate aproximara-se mais do ferry. Michael olhou para Awad.

- Mahmoud realizou o ataque e Stoltenberg deu uma ajuda com a logística: o Stinger, os barcos, a rota de fuga. - Michael brandiu as fotografias. - Isto é tudo mentira, pois tem medo que voltemos a atacar.

Awad sorriu com um charme considerável.

- Boa tentativa, senhor Osbourne, mas o senhor conhece a Espada de Gaza melhor do que isso. Sabe que não tínhamos qualquer motivo para fazer explodir um avião americano e sabe que outra pessoa o fez. No entanto, não tem provas. Se eu estivesse no seu lugar, procuraria mais perto de casa.

- Está a dizer que sabe quem é o culpado?

- Não, estou apenas a dizer que deve fazer a si mesmo algumas perguntas simples. Quem ganharia mais com isso? Quem teria motivos para fazer uma coisa daquelas e manter a sua identidade secreta? Os homens que o fizeram têm muito dinheiro, e recursos enormes ao seu dispor. Juro-lhe que não fomos nós. Se os Estados Unidos não retaliarem por causa de Heathrow, isto acaba aqui. Mas se voltarem a atingir-nos, não teremos outra alternativa a não ser ripostar. É essa a natureza do jogo.

O iate encontrava-se agora a cinquenta metros a bombordo do ferry. Michael viu dois homens no alto da ponte volante e um terceiro perto da proa. Olhou para a esquerda, na direção da mulher, e viu-a de olhos muito abertos, retirando uma pequena arma automática da mala. Deu meia volta e olhou para lá de Awad, para o parapeito a bombordo, e viu um homem muito bem constituído de cócoras, de arma em punho, a cabeça coberta por uma balaclava.

Michael agarrou Awad pelos ombros e gritou: - Abaixe-se!

Duas balas atravessaram o peito de Awad e cravaram-se no colete à prova de balas de Michael. Awad caiu sobre o convés. Michael meteu a mão no casaco para pegar a Browning, mas a moça palestina adiantou-se, arma apontada nos braços estendidos, as pernas afastadas. Disparou duas vezes com rapidez, derrubando o atirador encapuzado.

Awad jazia no convés e lançou um olhar irado a Michael, a boca cheia de sangue. Ergueu a mão direita, mostrando a Michael o detonador. Michael lançou-se pela porta para o interior da área de passageiros. Graham Seymour estava lá, de arma na mão. Michael agarrou-o pela camisa e puxou-o para o chão no momento em que a bomba explodia e estilhaços de vidro voaram por cima das suas cabeças. Durante alguns segundos, reinou um silêncio quase absoluto. Depois os feridos começaram a gemer e a gritar.

Michael levantou-se com dificuldade, os sapatos a escorregar sobre os estilhaços de vidro, e correu para o convés. A força da explosão desfizera Awad. Odette, a mulher palestina, jazia no convés, sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. O atirador encapuzado devia estar a usar um colete à prova de bala, pois conseguiu saltar por cima do parapeito e o iate avançava na sua direção. Encontrava-se um homem na ponte volante e dois no convés, à popa. Michael ergueu a Browning e abriu fogo sobre a embarcação. Os dois homens na popa pegaram em armas automáticas e responderam ao fogo. Michael lançou-se para o chão, em busca de abrigo.

Odette levantara-se e estava sentada, com as costas apoiadas no parapeito. Empunhava uma arma na mão esticada, apontada a Michael, o rosto muito calmo.

Michael rolou sobre o corpo quando ela disparou o primeiro tiro. A bala atingiu o convés, falhando-o. Ela disparou mais duas vezes enquanto Michael rastejava desesperadamente em busca de proteção. De repente, o corpo dela tremeu com violência e caiu para a frente. Graham Seymour saiu para o convés, de arma na mão, e ajoelhou-se ao lado dela. Olhou para Michael e abanou a cabeça.

Michael levantou-se e correu para o parapeito. O iate baloiçava nas águas agitadas. Os dois homens à popa estavam a retirar o atirador do mar. Michael ergueu a arma, mas era um tiro impossível. O avanço do ferry fazia com que estivesse já a cerca de cem metros do iate. Depois de o atirador estar a bordo, em segurança, o iate deu meia volta e desapareceu por detrás de uma cortina de nevoeiro.


NOVA YORK

 

 

O programa de fertilização in vitro no Cornell Medical Center possuía uma natureza de linha de montagem que fazia lembrar a Elizabeth os tribunais criminais de qualquer grande cidade. Sentou-se no banco de madeira lascado no corredor à porta da sala de operações, rodeada por outras doentes, enquanto os técnicos cirandavam por ali em silêncio, com batas e máscaras. Só Elizabeth estava sozinha. As outras quatro mulheres tinham os maridos a apertar-lhes as mãos e olhavam para Elizabeth como se ela fosse uma solteirona que decidira ter uma criança com o esperma que pedira emprestado ao marido da melhor amiga. Apoiou de propósito o queixo na mão esquerda para mostrar a aliança de casamento e um anel de noivado com um diamante de dois quilates. Imaginou o que as outras mulheres estariam a pensar. Será que o marido estava atrasado? Será que se divorciara há pouco tempo? Seria ele demasiado ocupado para estar com ela numa altura daquelas?

Elizabeth sentiu os olhos começarem a ficar marejados. Estava a utilizar cada pedacinho de autocontrole que tinha para não chorar. As portas duplas da sala de operações abriram-se. De lá saiu uma marquesa empurrada por dois técnicos, sobre a qual jazia uma mulher sedada. Outra foi levada lá para dentro, vinda do vestiário que existia ali perto, para tomar o seu lugar em cima da mesa. O marido foi enviado para uma sala pequena e escura com copos de plástico e revistas Playboy.

Na parede estava pendurada uma pequena televisão, silenciosamente sintonizada, sem som, na CNN. O ecrã mostrava uma reportagem ao vivo sobre um ferry soltando fumaçao no Canal da Mancha.

Não, pensou Elizabeth, não é possível. Levantou-se, foi até a televisão e aumentou o som.

- ... Sete pessoas mortas... Parece ser obra do grupo terrorista islâmico conhecido como a Espada de Gaza... Segundo ataque em dois dias... Acredita-se terem sido os responsáveis pelo terrível atentado terrorista de ontem no Aeroporto de Heathrow, em Londres...

Meu Deus, pensou, isto não pode estar acontecendo!

Voltou a sentar-se no banco e revirou a mala à procura do celular e da agenda telefônica. Michael dera-lhe um número especial a ser usado apenas em emergências extremas. Folheou as páginas desenfreadamente, sentindo os olhares das outras doentes, e encontrou o número.

Marcou-o, carregando com violência nas teclas, enquanto caminhava para um local mais reservado junto às escadas. Após um toque, uma calma voz masculina disse:

- Alô?

- Meu nome é Elizabeth Osbourne. Meu marido é Michael Osbourne.

Ouviu o som das teclas de um computador.

- Como conseguiu este número? - perguntou a voz.

- Michael me deu.

- Em que posso ajudar?

- Quero falar com meu marido.

- O seu número de telefone, por favor.

Elizabeth deu o número do celular e voltou a ouvir o som do teclado novamente.

- Alguém vai lhe telefonar.

Um dos técnicos apareceu nas escadas.

- A Sra. é a próxima, Sra. Osbourne. Precisamos que entre agora.

- Quero saber se ele estava naquele ferry-boat no Canal - disse Elizabeth ao homem com quem falava ao telefone:

- Alguém lhe telefonará - voltou a dizer a voz, exasperante com a falta de emoção. Era como falar com uma máquina.

- Que diabo, responda! Ele estava naquele barco?

- Alguém vai telefonar - repetiu.

- Lamento, Sra. Osbourne - insistiu o técnico -, mas agora precisa mesmo entrar.

- Está dizendo que ele está no barco?

- Por favor, desligue e mantenha este número desocupado.

Em seguida, a linha ficou muda.

Uma enfermeira acompanhou Elizabeth a um pequeno vestiário e deu-lhe uma bata esterilizada. Elizabeth agarrava com força no celular. - Receio que tenha de deixar isso aqui - avisou a enfermeira.

- Não posso - respondeu Elizabeth. - Estou à espera de um telefonema muito importante.

A enfermeira olhou para ela com uma expressão incrédula.

- Já vi muitas mulheres do Tipo-A neste programa, Sra. Osbourne, mas não há dúvida de que a Sra. bate todas as outras aos pontos. Vai sofrer uma intervenção cirúrgica ali dentro. Não é altura para fazer telefonemas de trabalho.

- Não é um telefonema de trabalho. É uma emergência.

- Não interessa. Daqui a três minutos, vai estar a dormir como um bebê.

Elizabeth vestiu a bata. Toca, raios partam. Toca!

Subiu para a marquesa e a enfermeira empurrou-a até a sala de cirurgia. A equipe operatória estava à espera. O seu médico baixou a máscara e ofereceu-lhe um sorriso agradável.

- Parece-me um pouco nervosa, Elizabeth. Está tudo bem?

- Estou ótima, doutor Melman. - Ainda bem. Então vamos começar.

Acenou com a cabeça para o anestesista e, segundos mais tarde, Elizabeth sentia-se a flutuar para um sono agradável.

CALAIS, FRANÇA

O porto fervilhava de luzes de emergência azuis e vermelhas à medida que o ferry se aproximava da costa francesa. Michael estava de pé na ponte, rodeado pelo capitão e pelos oficiais, a fumar um cigarro atrás do outro, enquanto via a linha da costa avizinhar-se. Ora sentia um frio de morrer, ora um calor de abrasar. O peito doía-lhe muito, como se alguém muito forte lhe tivesse dado um par de murros. Graham Seymour estava do outro lado da ponte, rodeado pelo seu próprio grupo de elementos da tripulação. Estavam mais ou menos detidos. Michael dissera ao capitão que ele e Graham eram agentes dos Estados Unidos e da Inglaterra e que alguém de Londres estaria à espera do ferry em Calais, onde tudo lhes seria explicado. O capitão ficou desconfiado, tal como Michael ficaria no seu lugar.

Michael fechou os olhos e o filme desenrolou-se mais uma vez. Assistiu a tudo como se fossem imagens de um noticiário, ele próprio como um ator em palco. Viu o atirador aproximar-se e Odette à procura da arma, os olhos alucinados.

O homem de balaclava com a arma não pertencia à Espada de Gaza e Muhammad Awad não era o alvo. O alvo era Michael. Awad limitara-se a estar no caminho. Voltou a fechar os olhos e pensou nos dois homens dentro do iate. Lentamente, os rostos foram-se tornando mais nítidos, como se estivesse a focá-los com a lente de longo alcance de uma câmara de vigilância. Viu os homens dispararem contra si a partir do convés de ré. Tinha a sensação incômoda de já os ter visto de relance noutro lado qualquer: num restaurante, numa festa ou na farmácia em

Oxford Street. Ou teria sido numa estação de gasolina na M40 em Oxfordshire, a fingir estar a encher o pneu traseiro de um monovolume Ford branco? O ferry atracou em Calais. Michael e Seymour foram guiados para longe das equipes de televisão e dos jornalistas aos gritos até um gabinete no interior do terminal. Wheaton e uma dúzia de oficiais diplomáticos e da Agência aguardavam-nos. Tinham vindo de Londres de helicóptero, cortesia da Marinha Real.

- Quem é este? - perguntou Wheaton, olhando para Graham, que se esquecera do estojo da guitarra mas assemelhava-se, ainda assim, a um estudante maduro, com as suas calças de ganga e a blusa Venice Beach.

Seymour sorriu e estendeu a mão.

- Graham Seymour, SIS.

- Graham quem, o quê? - perguntou Wheaton, incrédulo.

- Ouviu-o bem - confirmou Michael. - É um amigo meu. Por coincidência, encontrava-se a bordo do ferry.

- Mentiras!

- Bem, valeu a pena tentar, Michael - disse Graham.

- Comece a falar, vamos!

- Vá bardamerda - exclamou Michael, despindo a blusa e revelando duas balas cravadas no colete. - Porque não voltamos para Londres e fazemos lá o relatório?

- sugeriu, já mais calmo.

- Porque os franceses querem falar com você primeiro.

- Oh, meu Deus - suspirou Graham. - Eu não posso falar com os malditos dos franciús.

- Bem, uma vez que acaba de chegar à jurisdição deles, creio que vai ter de o fazer.

- O que é que lhes vamos dizer? - perguntou Michael.

- A verdade - respondeu Wheaton. - E rezar para que tenham o bom senso de ficarem de bico calado.

Em Nova York, Elizabeth estava deitada, a dormir na sala de recobro, quando o celular tocou suavemente. Uma enfermeira deu um passo em frente e estava prestes a desligá-lo quando Elizabeth acordou e disse:

- Não, espere. .-} Colocou o celular de encontro ao ouvido, de olhos fechados, e atendeu.

- Estou?

- Elizabeth - disse a voz. - É a Elizabeth Osbourne? - Sim - crocitou" ela, a voz rouca devido à anestesia.

- Daqui fala Adrian Carter. - Adrian, onde é que ele está?

- Ele está bem.'Está a regressar a Londres neste momento.

- A regressar a Londres? Onde é que esteve?

Na linha fez-se silêncio. Elizabeth estava agora completamente desperta. - Raios partam, Adrian - exclamou -, ele estava naquele ferry? Carter hesitou e depois respondeu.

- Sim, Elizabeth. Ele estava numa missão e alguma coisa correu mal. Ficaremos a saber mais pormenores quando ele chegar à embaixada de Londres. - Está ferido?

Ele está ótimo.

- Graças a Deus.

- Telefono-te quando souber mais.

Ao anoitecer, o helicóptero pousou num heliporto da Thameside em West Londres. Dois carros da embaixada aguardavam-nos. Wheaton e Michael entraram no primeiro, os autômatos de Wheaton seguiram no segundo. Viraram para Vauxhall Bridge e passaram pelo feio edifício moderno que funcionava como sede do MI6. Lá se foi a toca disfarçada de George Smiley em Cambridge Circus, pensou Michael. Agora, a sede dos Serviços chegara mesmo a aparecer num filme do James Bond.

Daqui a alguns minutos, o seu amigo Graham Seymour vai ter uma recepção agreste naquele edifício - informou Wheaton. - Falei com o Diretor-Geral de Calais. Nem é preciso dizer que ele não ficou satisfeito. Também me deu uma notícia que terá de esperar até estarmos atrás de portas fechadas. Michael ignorou o comentário. Wheaton parecia sempre retirar demasiado prazer da infelicidade profissional dos colegas. Subira através do direktorado soviético, quando o pai de Michael era um alto comando em Langley, e trabalhara em Istambul e Roma. A sua tarefa era recrutar oficiais do KGB e diplomatas soviéticos, mas revelou-se de tal forma incapaz que depressa recebeu uma série de relatórios sobre a sua inaptidão deplorável, um deles redigido pelo pai de Michael. Wheaton foi transferido para a sede, onde prosperou na atmosfera falsa e oligárquica de Langley. Michael sabia que Wheaton lhe guardava rancor por causa do pai, ainda que o péssimo relatório de aptidão provavelmente lhe tivesse acabado por salvar a carreira. Chegaram a Grosvenor Square. Wheaton e Michael entraram na embaixada lado a lado, com os homens de Wheaton no seu encalço. Michael tinha a estranha sensação de estar preso. Wheaton dirigiu-se de imediato à sala segura de teleconferências. Assim que Wheaton e Michael se sentaram nas sumptuosas cadeiras de pele preta, Carter e Monica Tyler apareceram no ecrã.

- Fico contente por ver que está bem, Michael - disse Monica.

- Passou uns dias bastante desgastantes. Temos muito que falar, por isso vamos começar pela pergunta óbvia. O que correu mal?

Durante dez minutos, Michael relatou cuidadosamente o que acontecera a bordo do ferry: Awad, a moça palestina chamada Odette, o iate e o atirador. Descreveu o tiroteio, as balas a atravessarem o corpo de Awad, cravando-se no seu colete. Descreveu a explosão e a forma como os homens no barco cobriram a fuga do atirador, com disparos. Por fim, descreveu a última batalha com Odette e como Graham Seymour a matara a tiro.

- Para começar, o que estava Graham Seymour, um agente do MI-Seis, a fazer naquele barco?

Michael sabia que, naquela altura do campeonato, pouco ou nada poderia ganhar ao mentir.

- É meu amigo. Conheço-o há muito tempo. Quis alguém de confiança a proteger-me a retaguarda.

Isso não interessa - contrapôs Monica, com uma paciência experiente. Monica, regra geral, não gostava de operações de campo, nem dos agentes que as realizavam. - O Michael incluiu um agente dos serviços de outro país sem a autorização dos seus superiores na sede.

- Ele trabalha para os ingleses, não para os iranianos. E se ele não estivesse lá, neste momento eu estaria morto.

Monica franziu o cenho de irritação, o que tornou claro que não iria deixar-se levar por argumentos baseados na emoção.

- Se estava tão preocupado com a sua segurança - disse ela, num tom de voz inexpressivo -, devia ter-nos pedido reforços a nós.

- Não quis ir para lá seguido de um pelotão, que Awad e a sua equipe pudessem detectar a quilômetros de distância. - Essa era apenas parte da verdade. - Queria o menor número possível de pessoas de Londres e da sede envolvidas na operação. Trabalhara no terreno, trabalhara na sede e sabia que Langley vertia como uma peneira.

- Parece que Awad e a respectiva equipe identificaram o seu bom amigo Graham Seymour - declarou Monica com um tom de desdém.

- Porque diz isso? - quis saber Michael. Wheaton remexeu-se desconfortavelmente na cadeira e Carter, a seis mil e quatrocentos quilômetros de distância, em Langley, fez a mesma coisa. Monica Tyler não aceitava bem perguntas do pessoal, mesmo quando se tratava de agentes superiores, como Michael. Tinha a certeza da convicção que resulta da ingenuidade. - Por que outra razão um dos seus atiradores tentaria matá-lo? E por que outra razão Awad faria explodir uma bomba presa ao corpo?

- Está a partir do princípio de que o atirador pertencia à Espada de Gaza. Penso que essa suposição está errada. O atirador não fez qualquer tentativa de poupar a vida de Awad. Ele tentou matar-me eliminando Awad primeiro. A mulher esteve atrás de mim o tempo todo. Se quisessem matar-me, ela poderia tê-lo feito e eu nem sequer teria tempo de agir. E quando o tiroteio começou, ela foi atrás do atirador primeiro, não de mim.

- Mas acabou por ir atrás de si.

- Sim, mas só depois de Awad detonar os explosivos. Acho que ela pensou que o atirador era dos nossos.

- Viu o rosto dele?

- Não, tinha a cabeça coberta por uma balaclava.

Monica inclinou-se e segredou ao ouvido de Carter. Este levantou as mãos e passou-as pela cabeça e pelo rosto. Michael percebeu que estava a explicar a Monica o que era uma balaclava. Monica ficou em silêncio por alguns instantes, observando as mãos, e depois continuou.

- O que lhe disse Awad antes de os problemas começarem? Michael narrou a conversa, não omitindo qualquer pormenor.

Fora treinado para memorizar grandes quantidades de informação e, quando trabalhava no campo, possuía uma capacidade lendária para reproduzir transcrições quase textuais de encontros com agentes. Carter costumava chamar-lhe "o Dictafone humano". Michael contou-lhes tudo o que Awad dissera, sobre Heathrow, sobre os ataques aéreos, sobre a expulsão de Hassan Mahmoud do grupo, com uma omissão notória. Não lhes falou nas fotografias do encontro de Mahmoud com Eric Stoltenberg, no Cairo.

- Acha que ele estava a dizer a verdade? - perguntou Monica.

- Sim, acho que sim - respondeu Michael, sem qualquer hesitação. - Sempre fui céptico no que diz respeito à reivindicação da Espada de Gaza. Não fiz segredo disso. Mas se não foi a Espada de Gaza, quem foi? E por que fariam uma reivindicação falsa?

E quem diabo tentou matar Muhammad Awad e a mim, a bordo daquele ferry?

Carter e Monica conferenciaram baixinho por um instante. Wheaton lançou a

Michael um olhar professoral por cima dos óculos de leitura em forma de meia-lua, como se Michael acabasse de dar a resposta errada a uma pergunta crucial num exame oral.

- Há outra coisa sobre a qual temos de conversar com você, Michael - disse Monica. Em seguida, acrescentou muito séria: - É de natureza muito grave. - Algo no tom de voz enervou Michael de imediato.

- Esta manhã, um agente do SIS britânico fez uma visita a um desertor chamado Ivan Drozdov. Parece que Drozdov faltou à apresentação semanal, algo que nunca faz, e o SIS ficou preocupado. O agente arrombou a casa dele e encontrou-o morto. A tiro. O SIS e a polícia local deram logo início às investigações. Ontem, Drozdov foi visto num café local com um homem que condiz com a sua descrição. O SIS gostaria de saber se esteve com ele ontem. E, para dizer a verdade, nós também.

- Sabe que a resposta é sim, porque me colocou sob vigilância desde que deixei Londres até regressar a Heathrow.

- Se estava sob vigilância, não foi ordenada por mim, nem por ninguém na sede - ripostou Monica.

- Não foi a Estação de Londres - garantiu Wheaton.

- Por que raios se foi encontrar com Drozdov sem a nossa autorização, ou a autorização do SIS? - inquiriu Monica. - E já agora, sobre o que falaram?

- Era um assunto pessoal - respondeu Michael. No monitor, via Adrian Carter olhar para o céu, soprando através dos lábios franzidos. - Drozdov trabalhou para o Departamento Cinco do Primeiro Direktorado do KGB, os assassinos. Tenho trabalhado em algo há vários meses e quis discutir o assunto com ele. Garanto-lhe que estava vivo e bem de saúde quando saí de lá.

- Fico satisfeita por achar que isso é divertido, Michael, porque nós não pensamos que assim seja - retorquiu Monica. - Quero-o no primeiro voo de regresso a Washington amanhã de manhã. Considere-se de licença administrativa enquanto aguarda uma investigação de sua conduta nesta questão.

A tela ficou vazia. Sem dizer uma palavra, Wheaton estendeu a mão. Michael enfiou a mão por baixo da camisa e entregou-lhe a Browning carregada. Wheaton quisera que Michael permanecesse na casa de segurança durante a sua última noite em Londres, mas Michael dissera-lhe em termos bastante claros para se ir lixar e regressara ao pequeno hotel em Knightsbridge, com vista para o parque. No início do serão, ao sair para o passeio molhado pela chuva, avistou de imediato dois sentinelas de Wheaton dormitando num Rover estacionado. Ao fazer compras para Elizabeth na Harrods, localizou mais dois.

Ao caminhar para o sul, em Sloane Street, divisou um quinto espião a pé.

Também havia dois homens num Ford, desta vez azul-escuro.

Quem são vocês? Quem os contratou? Se não foi Wheaton, quem foi? Não foi difícil despistá-los, ainda que fossem profissionais. Michael estava em vantagem, pois treinara com eles na Quinta e conhecia as suas tácticas.

Durante uma hora, deambulou pelo West End sob a chuva leve, a pé, de ônibus, de táxi, de metro, através de Berkeley Square, Oxford Street, Bond Street, Leicester Square e dos subúrbios do Soho. Acabou no apartamento de Sarah. O take-away libanês transformara-se em vegetariano, um monumento a Sarah, talvez. Bob Marley vibrava através de uma janela semiaberta, com cortinados sujos. A janela de Sarah. Provavelmente, os cortinados de Sarah.

Sarah Randolph cometeu um erro terrível, dissera-lhe Drozdov. Apaixonou-se pela vítima.

Ela fora uma mentira, um mito criado pelos seus inimigos, tragicamente heróica na sua ingenuidade sem limites. Ela traíra-o, mas não era real. Não podia amá-la, nem odiá-la. Só sentia pena dela.

Os sentinelas de Wheaton há muito que tinham desaparecido, por isso apanhou um táxi para Belgravia. Os homens de campo, tal como os ladrões, desenvolvem formas clandestinas de penetrar na sua própria casa para o dia inevitável em que sejam visitados por uma vida inteira de traição. Michael conhecia o método de Graham Seymour: através de uma cavalariça e por cima do muro caiado do jardim, com a ajuda de uma escada de corda deixada para essas ocasiões. Michael usava agora a escada para trepar o muro e caiu pela escuridão, indo aterrar na varanda de pedra de Graham. Este respondeu à pequena pancada nas portas de correr armado com uma das facas de cozinha de Helen, fabricadas na Suíça. Falaram no primeiro andar, na sala de visitas, o casaco ensopado de Michael a fumegar junto à lareira a gás, a aparelhagem alemã de Graham a troar Rachmaninoff para abafar a conversa.

Conversaram durante quase uma hora. Falaram sobre o que acontecera no ferry. Falaram sobre Sarah. Sobre Colin Yardley e Astrid Vogel, e o homem na escuridão que disparou três balas contra o rosto de Yardley. Sobre os homens no iate e no Ford: o monovolume branco e agora o azul. Michael precisava de dinheiro. Helen era rica e Graham tinha sempre guardado no cofre um ou dois milhares para emergências. Passaportes não eram problema.

Ao longo dos anos, Michael utilizara os seus contatos nos serviços aliados para reunir uma coleção de documentos de viagem falsos. Podia viajar como francês ou espanhol, grego ou alemão. Até como israelense. Telefona a Elizabeth, pediu Michael. Diz-lhe que lhe explico tudo quando voltar. Cuidado com o que dizes ao telefone. Não lhe digas para onde vou, nem o que ando a fazer. Diz-lhe que a amo. Diz-lhe que tenha cuidado. Comeram penne puttanesca e salada, e beberam vinho tinto. Helen e Graham conversaram como se Michael não estivesse ali. Michael sentia-se como se assistisse a um drama horrível na televisão. Devorou dois pratos de massa, que estava surpreendentemente boa.

Depois do jantar, Graham anunciou de repente que queria ver um filme novo que estava no cinema de Leicester Square. Helen concordou de forma entusiástica. Arrumaram a loiça e saíram. Na sala de visitas às escuras, Michael viu-os entrar para o BMW de Graham e arrancarem. Ouviu um motor de carro a ser ligado algures na escuridão. Michael observou-o enquanto deslizava para a rua silenciosa, com os faróis apagados.

Saiu pelas portas de correr, atravessou o jardim, trepou o muro e desceu pelo outro lado, pela escada de corda. Apanhou um táxi em King's Road e foi para a Waterloo Station. Comprou um bilhete para Roma com o dinheiro do cofre de Graham. O comboio partia dali a uma hora. Wheaton, se fosse inteligente, estaria a vigiar os aeroportos e as estações de comboio.

Michael comprou um chapéu impermeável num quiosque e puxou-o para a testa. Saiu e esperou à chuva. Cinco minutos antes da hora de o comboio partir, voltou a entrar na estação e dirigiu-se rapidamente à plataforma. Subiu para o comboio e depressa encontrou um compartimento vazio. Ficou sentado sozinho na semiobscuridade durante muito tempo, a escutar o barulho rítmico do comboio, a olhar para o seu reflexo no vidro, a pensar em tudo. Depois, quando o comboio saiu do túnel do Canal e avançou a toda a velocidade para sul, atravessando a França em direção a Paris, mergulhou num sono leve e sem sonhos.

LONDRES

O Diretor via as notícias das dez na ITN à medida que o Jaguar metalizado com motorista avançava a ronronar através das ruas do West End. Jantara mal no seu clube Mayfair (borrego demasiado passado), onde os restantes membros acreditavam que era um capitalista internacional aventureiro e bem sucedido, o que, até certo ponto, era uma descrição exata do seu trabalho. Meia dúzia desconfiava que, outrora, fizera um ou dois biscates para os Serviços Secretos. Um ou dois sabiam a verdade: que, na verdade, fora o diretor-geral, o lendário C, dos Serviços Secretos. Graças a Deus que lá trabalhara nos velhos tempos, quando a Agência oficialmente não existia e os diretores tinham o bom senso de manter os nomes e as fotografias afastados dos jornais. Imaginem só, o chefe dos Serviços a conceder uma entrevista ao The Guardian: uma heresia, uma loucura. O Diretor acreditava que os espiões e os serviços secretos se assemelhavam muito a ratazanas e a baratas. É melhor fingir que não existem. Ajuda uma sociedade livre a dormir melhor à noite.

O ataque ao ferry que fazia a travessia Dover-Calais dominava as notícias. O Diretor estava furioso, embora o rosto tranquilo não revelasse nada a não ser insolência enfadada. Após uma vida inteira nas sombras, a sua dissimulação era uma arte. Era estreito de cabeça e de ancas, com cabelo cor de arenito a ficar grisalho e mãos brancas de cirurgião que pareciam estar sempre a segurar um cigarro aceso de um comprimento adequado para um anúncio numa revista cara. Os olhos tinham a cor da água do mar no Inverno, a boca era pequena e cruel.

Vivia sozinho 250 em St. John's Wood com um rapaz da Sociedade que o protegia e uma moça bonita que tratava da papelada e cuidava dele. Nunca casara, não tinha filhos, nem familiares conhecidos. Os engraçadinhos nos Serviços costumavam dizer que tinha sido encontrado no início da meia-idade, dentro de um cesto, nas margens do Tamisa, vestido com um terno de riscas brancas, gravata Guarás e sapatos feitos à mão.

Desligou a televisão e olhou pela janela, observando a noite londrina passar. Não havia nada que detestasse mais do que o fracasso, nem mesmo a traição. Esta exigia inteligência e inexorabilidade, o fracasso apenas estupidez ou falta de concentração. Tinham sido dados todos os recursos necessários aos homens que enviara naquela missão no ferry para garantir o sucesso e, contudo, eles tinham falhado. Michael Osbourne era obviamente um adversário digno de respeito, um homem de talento, inteligência e engenho. Osbourne era bom, o seu assassino teria de ser melhor.

O carro parou à porta da casa. O motorista, um antigo membro de elite dos

Comandos Especiais Aerotransportados, acompanhou o Diretor até a porta, esperando que este entrasse. A moça estava à espera, uma jamaicana escultural cor de café chamada Daphne. Trazia vestida uma blusa branca, desabotoada até a elevação dos seios fartos, e uma saia preta que lhe dava pelo meio das coxas nuas. O cabelo castanho-alourado caía-lhe sobre os ombros quadrados.

- O senhor Elliott está ao telefone do Colorado, senhor - informou ela. Havia uma nota do ritmo melodioso da índia Oriental na sua voz, tendo o Diretor gasto milhares de libras em terapia da fala para o eliminar. Eram permitidos nomes dentro da residência Mayfair, pois era revistada regularmente em busca de escutas, e as paredes eram impermeáveis a microfones direcionais exteriores.

O Diretor foi para o escritório e carregou na luz intermitente do seu telefone preto multilinhas. Daphne entrou, despejou um centímetro de scotch de trinta anos para dentro de um copo e entregou-lho. Permaneceu no escritório enquanto a conversa decorria, pois não existiam segredos entre eles.

- O que é que correu mal? - perguntou Elliott.

O senhor Awad trouxe proteção, tal como o senhor Osbourne. E, ainda por cima, ele é mesmo bom.

- Tem de ser eliminado, sobretudo depois do que ficou a saber esta manhã, naquele ferry.

- Sei muito bem disso, senhor Elliott.

- Quando tenciona realizar outro ataque?

- O mais depressa possível - respondeu o Diretor, interrompendo-se para um gole de scotch. - Mas quero fazer uma substituição. O Osbourne é bastante bom. Assim sendo, o adversário tem de ser excelente. Gostaria de atribuir a tarefa ao Outubro.

- O preço dele é muito elevado.

- Tal como o que está em jogo neste ponto dos acontecimentos, senhor Elliott. Não me parece que seja altura para arengar sobre um ou dois milhões a mais, não acha?

- Não, tem razão.

- Vou preparar um dossiê detalhado sobre Osbourne e enviá-lo ao Outubro, por correio eletrônico codificado. Se ele optar por aceitar o alvo, o jogo vai recomeçar, e prevejo que o senhor Osbourne seja eliminado em breve.

- Espero que sim - afirmou Elliott.

- Conte com isso, senhor Elliott. Boa noite.

O Diretor pousou o receptor. Daphne colocou-se atrás dele e esfregou-lhe os ombros.

- Vai precisar de mais alguma coisa esta noite, senhor?

- Não, Daphne, vou apenas tratar de alguma papelada e depois vou deitar-me. - Muito bem, senhor - disse ela e saiu.

O Diretor trabalhou no escritório durante vinte minutos, terminando o scotch e vendo as notícias americanas sobre a explosão no ferry através do sistema de satélite. Desligou a televisão e subiu as escadas, dirigindo-se à suíte. Daphne encontrava-se deitada de costas na cama, blusa desabotoada, uma perna comprida cruzada sobre a outra, enrolando uma madeixa de cabelo no indicador fino.

O Diretor despiu-se silenciosamente e vestiu um roupão de seda. Alguns homens abastados divertiam-se com cavalos, ou carros. O Diretor tinha a sua Daphne. Ela despira-se. As roupas estavam a seu lado, na cama. Acariciava gentilmente os mamilos, a barriga, o alto das coxas. Daphne era uma provocadora, até consigo mesma. O Diretor entrou para a cama e fez deslizar um dedo pelo pescoço da jovem.

- Alguma coisa, meu amor? - perguntou ela.

- Não, minha flor.

A capacidade do Diretor para fazer amor com uma mulher encontrava-se gravemente comprometida, consequência, pensava ele, de uma vida inteira de mentiras e traição. Ela fez deslizar a mão por baixo do roupão, tomando-o entre as suas mãos compridas.

- Nada?

- Receio que não, meu amor.

- Que pena - disse ela. - Posso?

- Se quiser.

- O senhor é um tonto. Quer ajudar ou só ver?

- Só ver - respondeu ele, acendendo um cigarro.

Meteu a mão entre as coxas. Arquejou com força, lançou a cabeça para trás e fechou os olhos. Durante os dez minutos seguintes, tomou-a da única forma possível, com os olhos, mas, passado algum tempo, a sua mente começou a vaguear. Pensou em Michael Osbourne. No assassínio fracassado no ferry. No homem chamado Outubro. Seria uma luta interessante. Um deles não iria sobreviver. Se fosse Osbourne a morrer, a Sociedade subsistiria e Mitchell Elliott ganharia os seus bilhões. Se fosse Outubro... O Diretor estremeceu com esse pensamento. Trabalhara muito e durante demasiado tempo para que tudo ruísse. Estava demasiado em jogo, investira-se demasiado, para que agora terminasse em fracasso.

Voltou a fitar Daphne e encontrou os seus olhos castanhos fixos nele. Tinha o olhar direto e aberto de uma criança.

- Esteve longe durante alguns minutos - comentou.

A surpresa atravessou-lhe o rosto. Daphne despojava-o de todas as suas velhas defesas.

- Eu também olho, sabe. Quero saber se estou a fazê-lo feliz.

- Fazes-me muito feliz.

- Está tudo bem, amor? ?

- Está tudo ótimo.

- Tem certeza?

- Sim, certeza absoluta.


CONTINUA

WASHINGTON, D. C.

Susanna Dayton passou a tarde de domingo trabalhando do meio-dia às oito, sem interrupção, salvo para abrir a porta no meio da tarde para uma entrega. Tom Logan, o editor do Post, exigira mais, e ela o encontrara. O artigo era inatacável. Possuía documentos imobiliários e bancários reais que corroboravam as acusações mais graves. Tinha fontes humanas duplas e triplas que corroboravam as restantes. Nenhum dos mencionados no artigo poderia pôr em causa o que era dito. Os fatos falavam por si, e Susanna estava na posse dos fatos.

O dia foi gasto em escrever. Trabalhou em casa, pois não queria distrações. O artigo estava repleto de informações: números, nomes, datas, locais, pessoas. O desafio de Susanna era transformá-lo numa história interessante. Começou com uma breve descrição da personagem central, James Beckwith, um jovem procurador, um talento promissor sem fortuna pessoal, que poderia auferir no setor privado um rendimento bastante superior ao da política. Surge então Mitchell Elliott, um empresário da defesa e benfeitor republicano extremamente abastado. Continue na política, sugeriu Elliott ao jovem Beckwith, e deixe tudo comigo. Ao longo dos anos, Elliott enriqueceu os Beckwith com uma série de transações imobiliárias e financeiras. E o homem que concebeu muitos dos esquemas foi o principal advogado de Elliott, e lobista de Washington, Samuel Braxton.

O resto derivava dessa premissa. Pelas oito horas, Susanna escrevera um artigo de quatro mil palavras. Iria mostrá-lo a tom Logan na manhã seguinte. Devido à natureza bastante séria das acusações, Logan teria de o submeter ao crivo do editor geral e do editor chefe do jornal. Depois os advogados iriam analisar uma cópia. Sabia que os dias seguintes seriam longos e difíceis.

Ao artigo faltava um derradeiro elemento: comentários da Casa Branca, de Mitchell Elliott e de Samuel Braxton. Susanna procurou no Rolodex, encontrou o primeiro número de telefone e marcou-o.

- Alatron Defense Systems. - Era uma voz masculina, átona e vagamente militar. - Fala Susanna Dayton, do Washington Post. Gostaria de falar com Mitchell Elliott, por favor.

- Sinto muito, Sra.. Dayton, mas de momento o senhor Elliott não se encontra disponível.

- Importa-se de lhe transmitir um recado?

- com certeza.

- Tem uma caneta à mão? - E claro, Sra. Dayton.

- Gostaria que o senhor Elliott comentasse a seguinte informação contida num artigo que estou a preparar. - Falou durante cinco minutos, sem nunca ser interrompida pelo homem do outro lado da linha. Imaginou que o telefonema estivesse a ser gravado sem o seu consentimento. - Percebeu tudo?

- Sim, Sra. Dayton.

- E vai transmiti-lo ao senhor Elliott?

- É claro.

- Ótimo. Muito obrigada.

Susanna desligou e voltou a procurar no Kolodex. Ainda tinha o número pessoal de Paul Vandenberg, do tempo em que trabalhara na Casa Branca. Marcou o número.

Vandenberg atendeu pessoalmente.

- Senhor Vandenberg, fala Susanna Dayton. Sou jornalista do...

- Sei quem a Sra. é, Sra. Dayton. Não gosto de ser incomodado em casa. O que posso fazer por si?

Será que gostaria de comentar a seguinte informação que está incluída num artigo que redigi para o Post? - Mais uma vez, Susanna falou durante cinco minutos sem interrupção.

- Porque não me envia por fax uma cópia do artigo, para que eu possa analisar com mais cuidado as acusações? - sugeriu Vandenberg, quando Susanna terminou. - Receio não poder fazê-lo, senhor Vandenberg.

- Nesse caso, receio não ter mais nada a dizer-lhe, Sra. Dayton, exceto que produziu um artigo jornalístico desprezível, que não merece ser agraciado com um comentário.

Susanna anotou a citação no bloco de notas.

- Boa noite, Sra. Dayton.

A linha ficou em silêncio. Susanna procurou no Rolodex e encontrou o telefone de casa de Samuel Braxton. Estendia a mão para o telefone quando este tocou.

- Fala Sam Braxton.

- As notícias correm depressa.

- Pelo que sei, está prestes a publicar um artigo que calunia e difama Mitchell Elliott e minha pessoa. Quero que tenha noção das consequências de suas ações.

- Por que não me deixa ler as alegações antes de me ameaçar com um processo?

- Já me resumiram as acusações, Sra. Dayton. Pretende publicar esse relato no jornal de amanhã?

- Ainda não decidimos.

- Vou assumir essa resposta como um não.

Susanna cobriu o bocal e murmurou:

- Raios o partam, Sam Braxton, seu sacana arrogante.

- Por que não nos encontramos pela manhã e discutimos as alegações?

Susanna hesitou. Se discutisse assuntos legais com Braxton sem um advogado do Post a seu lado, Tom Logan acabaria com ela. Ainda assim, queria obter declarações de Braxton.

- É um favor que faz a si mesma, Sra. Dayton. Que mal há?

- Onde?

- Café da manhã no Four Seasons, Georgetown. Às oito.

- Lá nos encontraremos.

- Boa noite, Sra. Dayton.

Susanna tinha mais um telefonema a dar, para Elizabeth Osbourne. Estava prestes a publicar um artigo devastador sobre o homem mais poderoso da firma da amiga. Elizabeth merecia ser avisada. Teclou o número.

- Alô?

- Alô, Elizabeth? Escute, acho que precisamos falar.

 

Quando lhe telefonaram de Colorado Springs, Mark Calahan estava sentado na biblioteca da casa de Kalorama, a rodar os botões de um sofisticado equipamento de áudio. Salvo Susanna Dayton, Calahan sabia mais sobre as alegações presentes no artigo do que qualquer outra pessoa. Colocara sob escuta o telefone de Susanna na redação do Post, na 1th Street, o mesmo no telefone de casa. Instalara microfones na sala de estar e no quarto. Ouvia-a comer. Ouvia-a dormir. Ouvia-a falar com o cachorro. Ouviu-a na cama com um repórter televisivo, depois de um jantar no restaurante 1789, em Georgetown. Entrava na casa com regularidade e passava em revista os arquivos do computador. Um antigo criptoanalista da NSA, também a serviço de Mitchell Elliott, quebrara o código pueril de Susanna, o que permitira que Calahan lesse os arquivos à vontade. Só lhe faltava uma coisa: o produto final. - Entre na casa dela o mais depressa que puder. Temos que saber ao certo o que temos - ordenou Elliott.

- Sim, senhor.

- E quero que seja você a tratar disso. Não quero fracasso.

Calahan desligou o telefone e voltou a concentrar-se no equipamento. Aumentou os níveis de áudio dos transmissores no interior da casa de Susanna Dayton. Algo lhe chamou a atenção. Vestiu um blusão de couro preto e correu para a noite.

Dirigiu rapidamente através do noroeste de Washington, de Kalorama para Georgetown, e estacionou atrás da van de vigilância, em Volta Place. Bateu à porta traseira e o técnico deixou-o entrar. Dois minutos mais tarde, avistou Susanna Dayton a sair de Pomander Walk, vestida com um anoraque e calças de lycra, o cão a seu lado.

Calahan esperou até que ela desaparecesse de vista. Saiu da van, atravessou Volta Place e entrou em Pomander Walk. Possuía uma cópia da chave da porta. Segundos depois, tinha entrado.

Susanna atravessou a Wisconsin Avenue e correu para leste, ao longo da P Street. Era tarde e estava escuro, e combinara correr com Elizabeth pela manhã, mas estivera fechada dentro de casa o dia todo e precisava de fazer alguma coisa para aliviar o stresse. Doía-lhe o pescoço de olhar para a telado computador. Os olhos ardiam-lhe. Mas, depois de pouco mais de um quilômetro, sentiu a transpiração por baixo da gola alta. Foi dominada pela magia da corrida e a tensão do dia deixou-lhe lentamente o corpo.

Esforçou-se ainda mais, voando sobre o passeio de tijolo da P Street, passando à frente das grandes casas iluminadas. As patas de Carson ressoavam ritmadamente a seu lado. Passou por uma loja de conveniência, depois por um pequeno café. Jack e a nova esposa estavam sentados em bancos altos junto à montra, a falar bem próximos um do outro. Quando passou à frente deles, Susanna fitou-os como uma idiota. Jack levantou a cabeça e cruzaram o olhar. Depois a esposa viu-a.

Humilhada, Susanna desviou o olhar e correu mais depressa. Estúpida! Grande estúpida! Por que não olhaste para o outro lado? E que raio estavam eles a fazer em Georgetown? Fora por isso que Jack se mudara para Bethesda, para não andarem sempre a esbarrar um no outro. Deus do céu, porque não se limitara ela a olhar para o outro lado? Porque se deixara fitá-los como uma adolescente com uma paixoneta? E porque lhe batia o coração descompassado? A resposta era simples. Ainda amava Jack e nunca deixaria de o amar.

As lágrimas toldaram-lhe a visão. Correu ainda mais depressa. Carson esforçou-se por acompanhá-la. Os pés ressoavam furiosamente nos tijolos. Oh, meu Deus, por que estava ele ali sentado? Porra para ti, Jack. Porra! Não viu a raiz da árvore que se erguera um pouco do passeio. Não se apercebeu do pedaço de tijolo partido que se levantara. Sentiu uma pontada de dor no tornozelo e viu o chão saltar para ela nas trevas.

Susanna ficou inerte no chão, os olhos fechados, a arquejar. Sentia-se como se tivesse levado um coice na barriga. Tentou abrir os olhos, mas não conseguiu.

Por fim, sentiu alguém sacudir-lhe o ombro, chamando-a pelo nome. Abriu os olhos e viu Jack ajoelhado a seu lado.

- Susanna, você está bem? Consegue me ouvir?

Voltou a fechar os olhos.

- Que diabo está fazendo em Georgetown? - perguntou.

- Sharon e eu tivemos um jantar. Minha nossa Sra., não sabia que tinha de te avisar com antecedência.

- Não, fiquei sobressaltada, só isso.

- Lembra da Sharon, não?

Estava de pé, atrás de Jack, um espanto de vestido formal e casaco curto pretos, que exibiam um par de pernas fenomenal. Era criminosamente magra. O casaco estava desabotoado, revelando um par de seios grandes e redondos. Fazia o tipo de Jack: loura, olhos azuis, grandes seios, cabeça oca.

- Gostaria de poder dizer que é um prazer vê-la, Sharon, mas estaria mentindo - declarou.

- Vamos para seu lado. Damos carona a você?

- Não, obrigada. Preferia ficar morrendo na rua.

Jack segurou-lhe a mão. Carson soltou um rosnado profundo. :

- Não faz mal, Carson. Ele é mau, mas inofensivo.

Susanna levantou-se.

- Vem ali um táxi. Jack, faz alguma coisa de útil e chama. Jack dirigiu-se à estrada e acenou ao táxi, que parou junto ao passeio. Susanna coxeou até o carro e entrou, seguida pelo cão.

- Até à vista, Jack, Sharon.

Fechou a porta e o táxi arrancou. Recostou-se no banco traseiro, agarrada ao tornozelo, a cabeça apoiada no couro frio do assento. Chorou baixinho. Carson lambeu-lhe a mão. Porque teve ele de me ver assim, meu Deus? Logo agora, porquê? O táxi parou entre Volta Place e Pomander Walk. Susanna procurou no bolso da frente do anoraque e tirou uma nota de cinco dólares, que entregou ao taxista.

- Precisa de ajuda? - indagou o homem.

- Não, eu fico bem, obrigada.

Quando Mark Calahan subiu as escadas e entrou no quarto do primeiro andar que Susanna utilizava como gabinete, o computador estava ainda ligado. Sentou-se, retirou umo disquete do bolso do casaco e inseriu-a na drive do computador. Já conhecia bem o sistema, as diretorias onde ela guardava os apontamentos e as cópias. Encontrou o atalho para o artigo e clicou no ícone. O software de encriptação solicitou a palavra-chave. Calahan introduziu-a e o artigo surgiu na tela.

Calahan não se deu ao trabalho de ler. Leria mais tarde, quando dispusesse de mais tempo. Voltou a fechar o arquivo e digitou o comando para o copiar para o disquete. Mais uma vez, o software pediu a chave, que Calahan voltou a fornecer.

Uma vez dentro da casa, decidiu aproveitar a oportunidade para recolher mais informações. Calahan seguira várias das corridas de Susanna, que nunca duravam menos de trinta minutos. Tinha tempo de sobra. Três blocos de notas estavam ao lado do teclado. Abriu a capa do primeiro. As folhas estavam cheias com os gatafunhos esquerdinos de Susanna. Tirou uma microcâmara do bolso, acendeu a luz do abajur na mesa e começou a fotografar.

Estava na metade do segundo bloco quando ouviu a chave ser introduzida na fechadura da porta da rua. Praguejou em silêncio, apagou a luz e puxou da cintura uma pistola 9mm com silenciador.

As dores no tornozelo direito de Susanna eram lancinantes. Fechou a porta e sentou-se no divã da sala. Descalçou o sapato e a peúga e observou o ferimento. O tornozelo estava inchado e roxo. Coxeou até a cozinha, encheu um saco de plástico com gelo e tirou uma garrafa de cerveja do frigorífico. O analgésico estava no armário dos medicamentos da casa de banho. Coxeou escadas acima e ao longo do corredor, apoiada ao corrimão para se equilibrar. Entrou na casa de banho, pousou a cerveja no lavatório e abriu o armário. Encontrou o analgésico e engoliu dois comprimidos com cerveja. Fechou a porta do armário.

No espelho viu o reflexo de um homem atrás de si.

Susanna abriu a boca para gritar, mas uma mão enluvada tapou-lhe a boca, abafando qualquer som.

- Cala-te, cabra, se não mato-te - disse o homem por entre os dentes cerrados. Susanna debateu-se ainda mais. Apoiou o peso no tornozelo ferido, levantou o pé esquerdo e puxou-o atrás contra a canela do indivíduo, tal como aprendera nas aulas de autodefesa urbana. O homem gemeu de dor e afrouxou o aperto. Susanna girou para a direita e atacou com esse cotovelo, acertando na face do atacante.

O homem largou-a e Susanna fugiu.

Cambaleou até o corredor, e depois até o gabinete de trabalho. Ao levar a mão ao telefone, apercebeu-se de que o indivíduo estivera a mexer no computador e nos blocos de notas. Levantou o receptor.

O homem apareceu na entrada e apontou-lhe uma arma.

- Larga a merda do telefone.

- Quem é você?

- Larga o telefone e não te faço mal.

Carson subiu as escadas a correr, a ladrar furiosamente. Agachou-se no corredor, com os dentes arreganhados ao intruso. O homem ergueu calmamente a arma e disparou duas vezes contra o cão. Carson ganiu uma vez e ficou em silêncio.

- Cabrão! Cabrão de merda! Quem é você? Foi Elliott que o enviou? Diga, porra! Foi Mitchell Elliott que o enviou?

- Larga o telefone. Já!

Susanna baixou o olhar e marcou o nove e o um.

O primeiro tiro acertou-lhe na cabeça antes de conseguir marcar o último dígito. Caiu para trás, ainda agarrada ao receptor, ainda consciente. Olhou para cima. O homem agigantava-se sobre ela, a arma mais uma vez apontada para a cabeça.

- Na cara não - implorou. - Pelo amor de Deus, não me dê um tiro na cara. A expressão de fúria do homem suavizou-se por um instante. Baixou a arma alguns graus e o cano apontou ao peito. Susanna fechou os olhos. A arma emitiu dois sons breves. Susanna sentiu apenas um momento de dor lancinante e depois viu um clarão de luz brilhante. Em seguida, apenas escuridão.

Calahan baixou-se, retirou-lhe o receptor da mão e voltou a colocá-lo no descanso. A morte fora rápida, mas não completamente silenciosa. Tinha de agir depressa. A polícia iria dar a volta à casa. Se descobrissem vestígios de que a mulher estava a ser vigiada, talvez associassem a morte a Elliott. A limpeza demorou menos de cinco minutos. Ao sair da casa, Calahan empunhava os blocos de notas, os dois microfones do quarto, o microfone do telefone, a bolsa de Susanna e o computador portátil.

Saiu de Pomander Walk, atravessou Volta Place e entrou na van de vigilância. Mais tarde iria buscar o carro. Enquanto se afastava a alta velocidade, marcou o número privado de Mitchell Elliott no celular. - Receio que nos tenha surgido um pequeno problema, senhor Elliott. Daqui a cinco minutos ligo-lhe, a partir de uma linha segura.

Calahan desligou e atirou o telefone contra o para-brisa.

- Raios partam, porque chegou ela mais cedo? Cabra de merda!


BRÉLÉS, FRANÇA

Delaroche decidiu que precisava de uma mulher.

Chegou a essa conclusão depois de ver o conteúdo do disco uma segunda vez, agora no computador da casa de Brélés. Dois dos três alvos que restavam eram conhecidos mulherengos. Delaroche conhecia os seus hábitos, onde comiam e bebiam, sabia qual a zona onde caçavam. Mesmo assim, seria difícil aproximar-se desses alvos.

Uma mulher tornaria as coisas mais fáceis.

Delaroche precisava de uma mulher.

Tinha mais um dia para gastar em Brélés. Quando terminou com os arquivos, foi andar de bicicleta. O tempo estava bom: limpo, para Novembro, com vento fraco vindo do mar. Sabia que passaria bastante tempo sem bicicleta, por isso fez por se levar ao limite. Pedalou para o interior ao longo de alguns quilômetros, até as colinas arborizadas da Finistère, regressando então à beira-mar. Fez uma pausa nas ruínas em Pointe de Saint-Mathieu e depois dirigiu-se a norte, ao longo da costa, de volta a Brélés.

Dedicou o início da tarde à preparação. Limpou e oleou as suas duas melhores armas, uma Beretta de 9 mm e a Glock, e confirmou várias vezes os mecanismos de disparo e os silenciadores. Tinha uma terceira arma que mantinha presa ao tornozelo, num coldre de velcro, uma pequena Browning automática concebida para ser guardada numa bolsa de mulher. No caso de uma pistola não ser adequada, levaria uma faca, um punhal sólido com lâmina dupla de quinze centímetros e sistema automático.

De seguida reuniu os passaportes falsos, francês, italiano, holandês, espanhol, sueco, egípcio e americano, e organizou as finanças. Tinha os duzentos mil francos da galeria de Paris, e em Zurique levantaria o meio milhão de dólares. Seria mais do que suficiente para financiar a missão. Saiu ainda de dia e dirigiu-se à aldeia. Comprou pão na boulangerie e salsicha, queijo e patê a Mademoiselle Plauché. Didier e os amigos bebiam vinho no café. Acenou a Delaroche para que se lhes juntasse. Num gesto fora do comum, o convite foi aceite. Pediu mais vinho e comeu pão com azeitonas até o pôr do sol. Nessa noite, tomou uma refeição simples no terraço de pedra com vista para o mar. Concordara em matar outros três homens em quatro semanas. Apenas um louco aceitaria tal coisa. Teria sorte se sobrevivesse à missão. Mesmo que vivesse, talvez não pudesse regressar a Brélés.

Delaroche sempre matara sem paixão mas, pela primeira vez em muito tempo, não se recordava quando, sentia uma excitação que lhe percorria o corpo. Era semelhante à sensação que tivera com dezesseis anos, na noite em que matara pela primeira vez.

Levantou os pratos e lavou-os na cozinha. Depois passou a hora seguinte a vasculhar a casa e a queimar tudo o que poderia sugerir a sua existência. Delaroche apanhou o comboio da manhã de Brest para Paris, e o comboio do meio-dia de Paris para Zurique. Chegou uma hora depois de o banco ter fechado. Deixou o pequeno saco na estação e cambiou alguns francos franceses num bureau de change.

Percorreu uma rua cintilante, ladeada por lojas iluminadas e exclusivas. Numa loja da Gucci, utilizou dinheiro vivo para comprar uma pequena mala preta para documentos. Disse ao empregado de balcão que não precisava de saco e, momentos depois, estava de volta ao passeio, com a mala dependurada do braço direito. Quando chegou à entrada austera do banco, nevava ligeiramente. A única indicação da natureza do estabelecimento era a pequena placa dourada ao lado da porta. Delaroche pressionou o botão da campainha e aguardou enquanto o segurança o inspecionava através da lente da câmara de vídeo instalada por cima da porta.

A tranca da porta abriu e pôde entrar numa pequena antecâmara de segurança. Pegou num telefone preto e anunciou que tinha um encontro com Herr Becker. Este chegou momentos depois, imaculadamente vestido, um palmo mais baixo do que Delaroche, e com uma cabeça calva que brilhava na luz fluorescente.

Delaroche seguiu-o ao longo de um corredor silencioso e debilmente iluminado, forrado com carpete bege. Becker levou-o para outra sala de segurança e trancou a porta por onde entraram. Delaroche sentia-se claustrofóbico. Becker abriu um pequeno cofre de onde retirou o dinheiro. Delaroche fumou enquanto Becker contou as notas.

A transação demorou menos de dez minutos a ser concluída. Delaroche assinou o recibo pelo dinheiro e Becker ajudou-o a guardá-lo na pasta.

Na sala de entrada, Becker olhou para a rua.

- Todo o cuidado é pouco, Monsieur Delaroche - disse. - Andam ladrões por aí. - Obrigado, Herr Becker, julgo poder tomar conta de mim próprio. Tenha uma boa noite.

- Igualmente, Monsieur Delaroche.

Delaroche não quis andar muito com o dinheiro, por isso apanhou um táxi até a estação. Levantou o saco do cacifo e comprou um bilhete de primeira classe num comboio noturno para Amsterdam.

Delaroche chegou à Centraalstation de Amsterdam bem cedo na manhã seguinte. Atravessou rapidamente o hall apinhado, os olhos orlados de vermelho pela noite mal dormida, e saiu para o sol brilhante. A visão das bicicletas surpreendeu-o: milhares delas, filas e filas de bicicletas.

Delaroche apanhou um táxi até o Hotel Ambassade, no Central Canal Ring, e registrou-se como Senor Arminana, um empresário espanhol. Passou uma hora ao telefone, mudando de língua para o caso de a telefonista do hotel estar a ouvir a conversa, e utilizando o léxico codificado do submundo do crime. Dormiu um pouco e, ao fim da manhã, estava sentado à janela de um restaurante cheio de fumo, a pouca distância do hotel.

Lá estava a livraria, do outro lado de uma praça movimentada. O estabelecimento granjeara a reputação bem merecida de snobismo, pois especializara-se em literatura e em filosofia, e recusava-se a vender ficção ou thrillers comerciais. O empregado do hotel comentou que certa vez o gerente expulsara à força de braços uma mulher que se atrevera a perguntar pelo novo livro de um famoso escritor americano de romances.

Era o lugar perfeito para Astrid. Avistou-a por duas vezes a arrumar livros na montra, a dar sugestões a um cliente que estava obviamente mais interessado nela do que em qualquer livro que pudesse estar a ser recomendado.

Astrid tinha esse efeito sobre os homens, sempre assim fora.

Era por isso que Delaroche viajara até Amsterdam.

Nascera Astrid Meyer, na vila de Kassel, perto da fronteira da Alemanha Oriental. Quando o pai abandonou a família, em 1967, a mãe voltara a utilizar o seu nome de solteira, que era Lizbet Vogel.

Após o divórcio, Lizbet instalou-se numa casa à beira de um lago, nas montanhas suíças, nos arredores de Berna. Perto do final da guerra, em Julho de 1944, a família fugiu da Alemanha e procurou refúgio numa aldeia próxima. Foi aí, sozinha nas montanhas com a mãe, que teve início o fascínio de Astrid Meyer pelo avô, Kurt Vogel.

Fumador inveterado durante toda a vida, Vogel morreu de cancro dos pulmões em 1949, dez anos antes de Astrid nascer. No fim da vida, Gertrude, a esposa, tentara afastá-lo das montanhas, mas Vogel acreditava que o ar alpino seria a sua salvação. Morreu em casa, sem conseguir respirar.

Trude Vogel pouco sabia acerca do trabalho do marido durante a guerra, mas o que sabia contou a Lizbet e esta transmitiu-o a Astrid. Abandonara uma carreira legal promissora em 1935 para se juntar à Abwehr, os serviços secretos alemães. Fora bastante próximo do chefe da Abwehr, Wilhelm Canaris, executado por traição pelos Nazis, em Abril de 1945. Enganara Trude durante anos, dizendo-lhe que era o conselheiro legal de Canaris. Mais tarde, admitiria a verdade, que recrutara agentes que eram enviados para Inglaterra, para espiar os britânicos.

Lizbet recordava-se da noite.

O pai mudara a família para a Bavária, pois Berlim já não era segura. Lembrava-se do pai a chegar a casa, muito tarde, recordava-se da sua presença no quarto, enquadrado pela luz tênue que entrava pela porta. Mais tarde, recordava-se do som da mãe e do pai a falarem em voz baixa na cozinha, e do cheiro do jantar do pai. E depois ouviu o barulho de louça a partir-se, o som da mãe a arquejar. Ela e Nicole, a irmã gémea, rastejaram até o alto das escadas e olharam para o rés-do-chão. Lá em baixo, na cozinha, viram os pais e dois homens com as fardas pretas da SS. Não reconheceram um dos homens. O outro era Heinrich Himmler, o homem mais poderoso da Alemanha, logo a seguir a Adolf Hitler.

Durante anos, Lizbet Vogel acreditara que o pai fora um nazi, aliado de Himmler e das SS, um criminoso de guerra que escolhera morrer nas montanhas da Suíça, em vez de enfrentar a justiça na sua pátria. Concluiu que a mãe, em segredo, acreditava no mesmo. Quando a mãe morreu, Lizbet contou a história a Astrid, que cresceu a acreditar que o avô fora um nazi.

Então, durante uma tarde de Outubro de 1970, um homem telefonou para a casa e perguntou se poderia fazer uma visita. Chamava-se Werner Ulbricht, e trabalhara com Kurt Vogel na Abwehr, durante a guerra. Disse saber a verdade acerca do trabalho de Vogel. Lizbet pediu-lhe que lá fosse. Chegou uma hora depois. Era magro, pálido como farinha, apoiava-se numa bengala e usava uma pala negra sobre um olho.

Caminharam durante algum tempo, Werner Ulbricht, Lizbet e Astrid, e depois sentaram-se na margem relvada do lago e beberam café de um termo. Apesar do frio outonal no ar, o rosto de Ulbricht estava coberto de suor devido ao esforço. Descansou um pouco enquanto bebia café, e depois contou-lhes a história.

Kurt Vogel não era nazi. Odiava-os profundamente. Entrou para a Abwehr com a condição de não ser obrigado a aderir ao Partido, e Canaris teve todo o prazer em fazer-lhe a vontade. Não era conselheiro legal de Canaris. Era um angariador de agentes, e muito bom: meticuloso, brilhante, implacável, à sua maneira. Um dos seus agentes na Grã-Bretanha fora uma mulher. Juntos, tinham descoberto o mais importante segredo da guerra: a data e o local da invasão. Também descobriram que os britânicos estavam embrenhados numa fraude maciça para ocultar a verdade. Mas, em Fevereiro de 1944, Hitler despediu Canaris e colocou a Abwehr sob as ordens de Himmler e das SS. Vogel guardou a informação e juntou-se aos conspiradores anti-Hitler da Schware Kapelle, a Orquestra Negra. Quando o golpe de de julho terminou em desastre, muitos dos elementos da Schware Kapelle foram presos e executados. Vogel fugiu para a Suíça.

Quando Ulbricht concluiu a narrativa, os olhos de Lizbet estavam marejados de lágrimas. Fitou o lago e observou o vento a agitar a superfície. - Quem era o outro homem que foi com Himmler a casa da minha mãe? - perguntou. - Era Walter Schellenberg, um oficial de alta patente das SS. Assumiu a Abwehr quando Canaris foi despedido. O seu pai enganou-o quanto à invasão. -- E a mulher que era agente dele...? - indagou Lizbet, com a voz fraquejando. - Estava apaixonado por ela? A mãe sempre pensou que ele estava apaixonado por outra mulher.

- Foi há muito tempo.

- Diga-me a verdade, Herr Ulbricht.

- Sim, ele a amava muito.

- Como se chamava?

- Anna Katerina von Steiner. O pai obrigou-a a tornar-se agente. Nunca regressou da Inglaterra.

A obsessão de Astrid pelo avô teve início nessa tarde. O seu avô, aliado de Wilhelm Canaris, um bravo resistente da Schware Kapelle que tentou livrar a Alemanha de Hitler! No sótão, encontrou uma arca com os pertences que a mãe guardara: velhos livros de direito e algumas fotografias antigas, cheias de rachas com a idade, peças de roupa. Observou-as horas a fio. Quando teve idade para isso, chegou a imitar a aparência do avô: o cabelo espetado que parecia ter sido cortado por ele, os óculos com lentes de cristal de rocha, os severos ternos de agente funerário. Tentou visualizar a agente chamada Anna Katerina von Steiner, a mulher que ele amara. Astrid não encontrou vestígios dela nos documentos do avô, por isso compôs um retrato mental: bela, corajosa, implacável, violenta.

Com dezoito anos, Astrid regressou à Alemanha para frequentar a universidade em Munique e envolveu-se de imediato com a política de esquerda. Acreditava que os Nazis ainda governavam a Alemanha. Acreditava que os Americanos eram ocupadores. Acreditava que os industriais escravizavam os trabalhadores. Imaginava o que o avô, o grande Kurt Vogel, teria feito. Iria juntar-se à resistência, é claro.

Em 1979, abandonou os estudos na universidade e aderiu à Fação do Exército Vermelho. Os líderes disseram-lhe que teria de abdicar do nome verdadeiro e assumir um nom de guerre. Escolheu Anna Steiner e desapareceu no mundo do terrorismo.

Morava numa casa-barco no Prinsengracht. Às três da tarde saiu da livraria, pegou na bicicleta e cruzou a praça. Delaroche pediu a conta.

Caminhou durante algum tempo, a empurrar a bicicleta, sem pressas. Delaroche seguiu-a calmamente. Pouco mudara desde a última vez que a vira, anos antes. Era alta e um pouco desajeitada, com pernas bonitas mas pouco graciosas e mãos compridas que pareciam buscar eternamente um repouso confortável. O rosto pertencia a outra época: tez pálida luminosa, maçãs do rosto largas, um nariz grande, olhos da cor da água dos lagos das montanhas. O cabelo sempre mudara de acordo com o estado de espírito e com a política adoptada, mas agora, no início da meia-idade, regressara ao estado natural: comprido, louro, preso com uma simples mola preta.

Delaroche seguiu-a para norte, ao longo do Keizersgracht. Astrid cruzou o canal em Reestraat, ao que voltou a dirigir-se a norte ao longo do Prinsengracht. Entrou na sombra da Westerkerk, onde se situa o túmulo anônimo de Rembrandt. Delaroche estugou o passo e reduziu a distância que os separava. Ao ouvir os passos, Astrid virou-se rapidamente, a mão na bolsa e alarme no rosto.

Delaroche segurou-lhe o braço com gentileza.

- Sou eu, Astrid. Não tenha medo.

O Krista tinha treze metros de comprimento, com uma casa de leme na popa, uma proa elegante e uma pintura verde e branca nova.

Estava atracado ao lado de uma barca quadrada e, para subir a bordo, Astrid e Delaroche tiveram de atravessar o convés de ré do vizinho. O interior estava limpo e era surpreendentemente espaçoso, com uma cozinha, um salão e um quarto na proa. A luz débil do final da tarde entrava por um par de claraboias e por uma fileira de vigias ao longo do talabardão.

Delaroche instalou-se no salão, observando Astrid a fazer café na cozinha. Falavam holandês, pois fazia-se passar por uma divorciada de Roterdão e não queria que os vizinhos a ouvissem a falar em alemão. Tal como todos os habitantes da cidade, era obcecada com a bicicleta. Já lhe tinham roubado quatro desde que chegara a Amsterdam. Contou a Delaroche sobre o dia em que passeava ao longo do Singel e passou por um homem que vendia bicicletas usadas. Entre elas, Astrid viu uma das suas bicicletas desaparecidas. Disse ao homem que lhe pertencia e exigiu que a devolvesse. O indivíduo replicou que ela estava maluca. Astrid espreitou por baixo do selim e encontrou a placa com o nome que lá colocara. Ele chamou-lhe mentirosa. Astrid agarrou na bicicleta e declarou que ia levá-la. O homem tentou detê-la. Ela atacou com um golpe lateral do cotovelo, fraturando-lhe a laringe, e depois partiu-lhe o queixo com um pontapé à meia volta. Levantou a bicicleta e afastou-se ao som das palmas, elevada ao estatuto de heroína de todos os habitantes de Amsterdam que já tinham perdido uma bicicleta no mercado negro.

Levou o café para o salão e sentou-se à frente de Delaroche. Soltou a mola do cabelo e deixou que este lhe caísse sobre os ombros. Era uma mulher bastante atraente que aprendera a esconder a beleza para se fundir com o ambiente que a rodeava. Delaroche permitiu-se um momento a apreciá-la.

- E o que te traz a Amsterdam, Jean-Paul? Negócios ou prazer?

- És tu, Astrid. Preciso da tua ajuda.

Abanou lentamente a cabeça e acendeu um cigarro. Delaroche imaginara que pudesse não estar disposta a trabalhar com ele. Matara com frequência e pagara um preço muito elevado por isso, uma vida passada a fugir a todas as forças policiais e serviços secretos do Ocidente. Conseguira acomodar-se tanto quanto possível, e agora Delaroche pedia-lhe que abrisse mão de tudo isso.

- Há muito tempo que deixei esse mundo, Jean-Paul. Estou cansada de matar.

Não gosto tanto de o fazer como tu.

- Eu não gosto de matar. Apenas o faço porque me pagam e porque não sei fazer mais nada. Em tempos foste muito boa.

- Matava porque acreditava em alguma coisa. Há uma grande diferença. E vê só o que consegui - contrapôs, apontando para o que a rodeava. - Bem, imagino que pudesse ser pior. Podia estar em Damasco. Que tempos terríveis.

Delaroche ouvira dizer que ela passara dois anos escondida na Síria, cortesia de Hafez al-Assad e dos seus serviços secretos, e outros dois anos na Líbia, como convidada de Mu'ammar Khadafi.

- Estou oferecendo a liberdade, a oportunidade de largar tudo para trás e dinheiro suficiente para passar o resto da vida num lugar confortável. Quer ouvir mais?

Astrid apagou o cigarro e acendeu outro de imediato.

- Raios te partam.

Delaroche levantou-se.

- Imagino que seja um sim - disse.

- Quantas pessoas vamos matar?

- Volto daqui a meia hora.

Regressou ao hotel, fez as malas e pagou a conta. Trinta minutos depois, descia pela escotilha do Krista, com o pequeno saco de viagem e uma pasta de nylon com o computador portátil. Voltaram a instalar-se no salão, Delaroche ao computador, Astrid sentada numa otomana. Delaroche percorreu os alvos, um a um. Astrid manteve-se imóvel como uma estátua, as pernas cruzadas por baixo do corpo, uma mão comprida a apoiar o queixo, a outra com um cigarro. Não disse nada, não fez perguntas, pois, tal como Delaroche, tinha uma memória prodigiosa.

- Se me ajudares, pago-te um milhão de dólares - adiantou Delaroche, ao concluir as informações. - E ajudo-te a instalares-te num sítio seguro e um pouco mais agradável do que Damasco. - Quem te contratou?

- Não sei.

Astrid ergueu uma sobrancelha.

- Nem parece teu, Jean-Paul. Devem estar a pagar-te muito dinheiro. - Puxou uma passa do cigarro e soprou uma espiral de fumo para o teto. - Leva-me a jantar. Tenho fome.

Tinham sido amantes, há muito tempo, quando Delaroche ajudou a Fação do

Exército Vermelho com um assassinato particularmente difícil. Regressaram ao

Krista depois do jantar num pequeno restaurante francês com vista para o Herengracht. Delaroche deitou-se na cama. Astrid sentou-se a seu lado e despiu-se em silêncio.

Tinham passado muitos meses desde que levara um homem para a sua cama e, da primeira vez, amou-o rapidamente. Depois acendeu velas, e juntos fumaram cigarros e beberam vinho, com a chuva a martelar na claraboia por cima dos seus corpos. Fez amor com ele uma segunda vez muito lentamente, envolvendo-lhe o corpo com os braços e as pernas compridas, tocando-lhe como se fosse feito de cristal. Astrid gostava de ficar por cima. Gostava de controlar. Não confiava em ninguém, especialmente nos amantes. Pressionou-lhe o corpo durante muito tempo, beijando-lhe a boca, fitando-lhe os olhos. Depois ajoelhou-se, as pernas abertas sobre o corpo do parceiro, e foi como se Delaroche já lá não estivesse. Astrid brincou com o cabelo, afagou os mamilos dos seios pequenos e arrebitados. Depois fechou os olhos e lançou a cabeça para trás. Implorou-lhe que chegasse dentro dela. Quando ele o fez, Astrid estremeceu várias vezes e depois tombou sobre o peito dele, o corpo úmido com a transpiração.

Momentos depois, deitou-se de costas e fitou a chuva a escorrer na claraboia. -- Promete-me uma coisa, Jean-Paul Delaroche - disse-lhe. Promete-me que não me matas quando já não precisares de mim.

- Prometo que não te mato.

Astrid apoiou-se no cotovelo, olhou-o nos olhos e beijou-lhe os lábios.

- Tem visto Arbatov?

- Sim, em Roscoff, há uns dias.

- Como está ele? - perguntou Astrid.

- Como sempre - respondeu Delaroche.


WASHINGTON, D. C.

Naquela manhã fria, Elizabeth Osbourne aguardava à esquina das ruas 34th e M, a correr sem sair do sítio, a soprar as mãos para as aquecer. Olhou para o relógio. Susanna estava cinco minutos atrasada. A amiga tinha muitos defeitos, mas a falta de pontualidade não se incluía na lista. Atravessou a rua e dirigiu-se a um telefone público, onde marcou o número da casa de Susanna. O atendedor de chamadas disparou.

- Susanna, é a Elizabeth. Atende, se aí estiveres. Estou à tua espera à esquina. Vou dar-te mais alguns minutos, mas depois tenho de me ir embora. Volto a ligar-te do trabalho.

Ligou para a extensão de Susanna, no Post. Foi o voice mail quem atendeu.

Elizabeth desligou sem deixar mensagem.

Olhou para a 34th Street, mas não viu sinais de Susanna, nem de Carson. Telefonou para casa e confirmou se Susanna deixara alguma mensagem no gravador de chamadas. A máquina disse-lhe que tinha uma mensagem. Marcou o código de acesso, mas era apenas Max, a dar-lhe conta de que um almoço tinha sido cancelado.

Desligou a pensar: Raios partam, onde é que ela está'?

Pensou no telefonema de Susanna da noite anterior. Estava prestes a publicar um grande artigo sobre Mitchell Elliott e Samuel Braxton. Talvez estivesse ao telefone, a finalizar a peça. Talvez estivesse a falar com os editores.

Virou-se e correu a 34th Street acima. Virou à direita em Volta Place e depois novamente à direita para Pomander Walk. Subiu os degraus da casa de Susanna e tocou à campainha. Ninguém respondeu.

Bateu com o punho na porta de madeira. Voltou a não ter resposta. Do interior não se ouvia nada. Carson estava sempre alerta. Regra geral, começava a ladrar antes de Elizabeth bater à porta. Se o cão estivesse lá dentro, por essa altura já estaria a ladrar.

Virou-se e viu luzes na casa de Harry Scanlon. Cruzou o acesso e bateu à porta. Scanlon veio abrir de roupão.

- Lamento incomodá-lo, Harry, mas a Susanna e eu tínhamos combinado uma corrida e ela deixou-me pendurada. Não é do feitio dela. Estou preocupada. Ainda tem a chave?

- Claro, espere só um instante.

Scanlon desapareceu dentro de casa e regressou momentos depois com uma chave. - Eu ajudo-a - ofereceu-se.

Dirigiram-se à porta da casa de Susanna. Scanlon enfiou a chave na fechadura e abriu a porta.

- Susanna! - chamou Elizabeth. Não houve resposta.

Deu uma vista de olhos à sala e à cozinha. Tudo parecia normal. Começou a subir as escadas, sempre a chamar por Susanna, com Scanlon atrás dela.

Quando chegou ao patamar, viu o cão.

- Ai, meu Deus! Susanna! Susanna!

Passou por cima do corpo do animal e espreitou para a casa de banho. Os mosaicos brancos estavam cobertos de vidros da garrafa de cerveja que caíra e se partira. Elizabeth deu mais alguns passos pelo corredor e olhou para o gabinete de trabalho.

Virou-se e gritou.

Elizabeth estava sentada nos degraus da casa de Harry Scanlon, com um cobertor de lã pelos ombros. Meia dúzia de carros da polícia, com as luzes vermelhas e azuis a brilhar, entupiam Volta Place. A van forense já chegara e os técnicos reviravam o interior da casa de Susanna. Tentou falar com Michael, mas este não atendeu o telefone.

Ditou à telefonista um recado urgente e o telefone de Harry Scanlon.

Bolas, Michael, preciso de ti, pensou.

Elizabeth aconchegou-se mais com o cobertor, mas não conseguia parar de tremer. Fechou os olhos, mas viu o corpo lacerado de Susanna no chão, e viu o sangue. Meu Deus, tanto sangue! Apercebeu-se de que alguém a chamava. Abriu os olhos e viu à sua frente um afro-americano de pele clara e olhos de um verde profundo. O distintivo da polícia estava pendurado do paletó do terno azul.

- Senhora Osbourne, sou o detective Richardson, dos Homicídios. Pelo que sei, foi a Sra. quem encontrou o corpo.

- É verdade.

- A que horas?

- Entre as sete e um quarto e as sete e vinte, se não estou em erro.

- Conhecia a vítima?

A vítima, pensou Elizabeth. Susanna já perdera o nome. Agora não passava da vítima.

- Éramos muito amigas, Detetive. Conhecia-a há vinte anos. Tínhamos combinado ir correr esta manhã. Como não apareceu, vim à procura dela. O vizinho tinha a chave e entrei em casa dela.

- Reparou em alguma coisa fora do normal?

- Tirando o corpo, não.

- Sinto muito, Sra. Osbourne. Onde trabalhava ela?

- Era jornalista do The Washington Post.

- Bem me parecia que conhecia o nome. Trabalhou na Casa Branca durante algum tempo, certo? Costumava participar naquele programa da mesa redonda.

Elizabeth aquiesceu.

- Pode parecer-lhe uma pergunta estranha, mas sabe de alguém que a quisesse matar?

- Ninguém.

- Passava-se alguma coisa anormal na vida dela?

- Não.

- Namorados zangados? Amantes abandonados?

Elizabeth abanou a cabeça.

- Marido?

- Voltou a casar-se.

- Como era a relação entre os dois?

- Trabalho com ele, Detetive. É associado na minha firma. Pode ser um monte de esterco, mas não é um assassino.

- Não encontramos a bolsa dela. Sabe se tinha alguma?

- Sim, deixava-a sempre em cima da bancada da cozinha.

- Não está lá.

- Quem fez isto?

- Não fazemos ideia. Ao que parece, tinha alguém dentro de casa e ela o surpreendeu. Estava vestida com roupa de corrida, mas sem um dos tênis. Parece que torceu o tornozelo. O cão estava preso.

- E a mataram.

- Nesta cidade há muitas pessoas que preferem matar a deixar uma testemunha que as possa identificar mais tarde. - O tom da voz do detective era casual. Levou a mão ao ombro de Elizabeth. Lamento imenso, Sra. Osbourne. Fique com o meu cartão. Se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, diga-me. Elizabeth ouviu o telefone tocando dentro da casa. Harry Scanlon surgiu na porta, os olhos vermelhos. - É o Michael - indicou.

Elizabeth levantou-se e entrou, sem grande equilíbrio.

- Michael, vem para casa depressa. Preciso de você.

- O que aconteceu? Por que você está na casa do Harry?

- Susanna morreu. Foi morta dentro de casa. Fui eu que a encontrei. Ai meu Deus, Michael... - As lágrimas embargaram sua voz. - Por favor, Michael, vem depressa para casa.

- Fique aí. Vou buscá-la.

- Não. Vá para casa. Preciso andar. Preciso pegar ar.

Olhou pela janela e viu o corpo de Susanna, enrolado num lençol branco, sendo retirado de maca. Mantivera a compostura até aquele momento, mas ver Susanna daquela forma roubou-lhe as últimas forças.

- Elizabeth, você está aí? Elizabeth, fale comigo.

- Eles a estão levando. Ai, meu Deus, pobre Susanna! Estou só pensando no que ela deve ter sofrido antes de morrer. Não consigo deixar de pensar nisso.

- Saia daí. Vá para casa. Vai se sentir um pouco melhor. Acredite.

- Ande depressa.

- Sim.

Elizabeth desligou o telefone. Scanlon tinha um disquete na mão. - Bem, acho que ela já não precisa dissto. - Fez uma pausa e os olhos encheram-se de lágrimas. - Céus, nem acredito que disse isto.

- O que é?

Scanlon explicou o sistema que usavam, como Susanna fazia sempre cópias do trabalho e as deixava em sua caixa do correio.

- Era paranoica.

- Eu sei. Na faculdade de Direito, guardava as coisas na geladeira, porque tinha lido em algum lugar que geladeiras resistem a incêndios. - Elizabeth sorriu com a recordação. - Sinto tanta falta dela. Nem acredito que isto esteja acontecendo.

Scanlon pousou o disquete na bancada da cozinha.

- Encontrei-a ontem à noite, quando cheguei a casa. Ela deve tê-la deixado quando foi correr. É engraçado, sempre pensei que ela era maluca por correr à noite, mas foi morta dentro de casa.

Elizabeth pensou no telefonema de Susanna na noite anterior. Passara o dia a trabalhar num artigo importante. O que ela escrevera deveria estar naquela disquete.

- Posso ficar com ele? - perguntou Elizabeth.

- Claro, mas não vai conseguir ler o que está aí.

- Por quê?

- Porque ela usava software de encriptação. É como lhe digo, ela era paranoica com o trabalho.

- Não sabe a senha?

- Não, nunca me disse. Imaginava que tivesse dito a você.

Elizabeth abanou a cabeça.

- E os editores do Post?

- Nem pensar. Ela não confiava em ninguém, muito menos nas pessoas com quem trabalhava.

- Vou ficar com ele - declarou Elizabeth. - Tenho um amigo que entende um pouco dessas coisas.

Elizabeth mostrou o disquete a Michael quando estavam na cama, cercados pelos lençóis desalinhados. Michael acendeu um cigarro e revirou o disquete na mão. Elizabeth deitou a cabeça na barriga bronzeada do marido e percorreu os pêlos escuros do peito dele com o dedo. Sentia-se culpada por terem feito amor numa altura dessas. Quando chegou a casa queria estar perto dele. Queria abraçá-lo e nunca o perder de vista. Estava com medo, aterrorizada com o que acontecera à amiga, e não queria soltá-lo. Abraçou-o. Beijou-lhe os lábios, os olhos e o nariz. Despiu-o e fez amor com ele, lentamente, gentilmente, como se desejasse que nunca chegasse ao fim. Agora estava deitada ao seu lado, a ver a chuva a escorrer pelas janelas do quarto.

- O Harry diz que está protegida.

- Isso não é problema. Só precisamos de descobrir a palavra-passe.

- E como pretendes fazer isso?

- As pessoas são preguiçosas. Usam datas de nascimento, endereços, todo tipo de palavras e números que possam lembrar com facilidade. Conhece Susanna melhor do que ninguém.

- Precisa de software especial?

- Tenho no meu computador.

- Vamos.

Vestiram os roupões e percorreram o corredor até o gabinete de Michael, que se sentou à secretária. Elizabeth ficou atrás dele, as mãos agarradas aos ombros do marido. - Data de nascimento?

- 17 de novembro de 1957.

Michael introduziu a versão numérica: 17-11-57. Na tela surgiu:

ACESSO NEGADO PALAVRA-CHAVE INCORRETA

- Data de nascimento ao contrário - disse Michael. O computador deu a mesma resposta.

Endereço... Endereço ao contrário... Número de telefone... Número de telefone ao contrário... Telefone do trabalho... Telefone do trabalho ao contrário... Nome... Nome ao contrário... Nome do meio... Nome do meio ao contrário... Sobrenome... Sobrenome ao contrário...

- Podemos ficar aqui eternamente - comentou Elizabeth.

- Eternamente, não.

- Pensei que tivesse dito que ia ser fácil.

- Disse que não era problema. Nomes dos pais?

- Maria e Carmine.

- Maria e Carmine?

- Ela é italiana.

- Ela era italiana.

Michael trabalhou durante as duas horas seguintes. Descobriu mais sobre a vida de Susanna do que julgara possível: namorados, cidade natal, banco, filme preferido, livro predileto. Tentou tudo, para a frente, para trás, de lado, e nada resultou.

- Como se chamava o cão?

- Carson.

- Por que Carson?

Elizabeth sorriu.

- Porque tinha insônia e adorava The Tonight Show.

Michael digitou CARSON. Nada. Experimentou JOHNNY. Nada. Tentou DOC e ED. Nada.

- Tinha gravado os últimos dois programas. Estava sempre revendo.

- Quem foi o convidado do último programa?

- Foi só Johnny, lembra? Foi só ele falando com o público.

- E no anterior?

- Bette Middler. Ela adorava a Bette Middler.

Michael escreveu BETTE. Nada. MIDDLER. Nada. Escreveu os nomes ao contrário.

Nada.

Bateu com a palma da mão na mesa. - Sai da frente - disse Elizabeth.

Inclinou-se sobre o ombro do marido, escreveu THE ROSE e pressionou a tecla ENTER. O computador hesitou durante alguns segundos e a última coisa que Susanna Dayton escrevera apareceu na tela.

Meu Deus - exclamou Michael.

 


AMSTERDAM

 

A casa flutuante no Prinsengracht assumira a aparência de uma sala de operações militares. Delaroche chegou a pensar brevemente em regressar a Brélés, mas era uma aldeia, com a normal tendência das aldeias para os mexericos, e sabia que a presença de uma loura alta iria fazer despertar o interesse de Didier e dos seus compinchas. Além disso, o Krista garantia uma atmosfera descontraída e reservada onde planear os assassinatos. Nas paredes afixou mapas de grande escala das ruas das cidades onde iria levar a cabo as mortes: Londres, Cairo, Washington. Levantava-se cedo todas as manhãs e trabalhava enquanto Astrid dormia. Depois passavam duas horas juntos, a falar e a planear, até que ela se dirigia à livraria, às dez horas.

À tarde, as paredes começavam a oprimi-lo e Delaroche levava emprestada a terrível bicicleta de Astrid e pedalava através das ruelas estreitas à volta do canal. Encontrou uma loja de material de pintura, comprou um pequeno estojo de aguarelas e pintou vários belos quadros das pontes, dos barcos e das casas de fachadas triangulares sobranceiras aos canais. No quarto dia, uma frente fria começou a soprar, vinda do mar do Norte. Nos dois dias seguintes, o Krista encheu-se com os gritos divertidos de centenas de patinadores que deslizavam sobre a superfície gelada do Prinsengracht.

Todas as noites ia buscar Astrid à livraria e levava-a a um restaurante diferente. Depois passeavam ao longo dos canais batidos pelo vento e bebiam cerveja De Konmck nos bares impregnados do odor a cannabis de Leidseplein.

Fez amor com ele duas noites seguidas, e depois rejeitou-o outras duas. Astrid tinha um sono agitado, atormentado por pesadelos. Na véspera da partida acordou em pânico, alagada em suor, à procura da pequena Browning automática que mantinha sempre no chão, ao lado da cama. Poderia ter matado Delaroche, caso este não lhe tivesse retirado a arma das mãos, antes que ela a destravasse. Fez amor com ele loucamente e implorou-lhe que nunca a deixasse.

A manhã seguinte acordou gelada e cinzenta. Fizeram as malas em silêncio e trancaram o Krista com um cadeado. Delaroche destruiu os quadros. Astrid telefonou para a livraria. Surgira-lhe uma emergência familiar e precisava de alguns dias de folga. Iria manter-se em contato.

Foram de táxi até a Centraalstation e apanharam o comboio da manhã para a vila de Hoek van Holland. Seguiram mais uma vez de táxi para o terminal dos ferries e tomaram um pequeno-almoço tardio de pão e ovos num pequeno restaurante à beira da água. Uma hora depois embarcaram no ferry para Harwich, na Grã-Bretanha, do outro lado do mar do Norte.

A travessia costumava demorar seis horas, com bom tempo, oito ou mais, com o mar revolto. Nesse dia, as águas eram fustigadas por uma tempestade gelada vinda do mar da Noruega. Astrid, propensa a enjoos, passou grande parte da viagem na casa de banho, vomitando com violência, sempre a maldizer o nome de Delaroche. Este estava no convés, ao ar gélido, a observar as ondas que rebentavam na proa do ferry.

Pouco antes de chegarem, Astrid mudou a aparência. Apanhou o cabelo louro e cobriu a cabeça com uma peruca preta que lhe dava pelos ombros. Delaroche envergou um boné de basebol com o nome de um cigarro americano e, apesar do mau tempo, os óculos-de-sol Ray-Ban.

A Comunidade Europeia tornou mais fácil a vida do terrorista internacional pois, uma vez no interior de um Estado membro, a passagem para outro é feita quase sem riscos. Delaroche e Astrid entraram no Reino Unido com passaportes holandeses, fazendo-se passar por turistas solteiros, tendo apenas de se submeter a uma inspeção superficial dos documentos, levada a cabo por um agente britânico enfadado. Mesmo assim, Delaroche sabia que as forças de segurança britânicas gravavam em vídeo todos os passageiros que entravam no país, independentemente do passaporte apresentado. Sabia que ele e Astrid tinham acabado de deixar as primeiras pegadas.

Quando Delaroche e Astrid embarcaram no comboio na estação de Harwich, a noite tombara já sobre a costa inglesa. Noventa minutos depois, chegavam a Londres. Como base de operações, Delaroche escolheu um pequeno apartamento de serviço em South Kensington. Alugou-o por uma semana a uma empresa que se especializava em casas para turistas. A primeira ação foi cancelar o aspeto de "serviço" do negócio. Não precisava de uma empregada a meter o nariz nas suas coisas. O apartamento era modesto mas confortável, com uma cozinha totalmente funcional, uma sala grande e um quarto separado. A linha telefônica era direta, sem telefonistas envolvidas, e a casa tinha janelas grandes que davam para a rua.

Não perderam tempo. O alvo era um agente do MI6 chamado Colin Yardley, um antigo operacional de campo de cinquenta e quatro anos que servira na União Soviética, no Oriente Médio e, nos últimos tempos, em Paris, e que aguardava a reforma compulsiva a fazer serviço de secretária na sede. Enquadrava-se no perfil de muitos agentes dos serviços secretos no fim da carreira: esgotado, amargo, divorciado. Bebia demasiado e envolvia-se com inúmeras mulheres. O Departamento de Pessoal do MI6 dissera-lhe, sem rodeios, para acabar com isso. Yardley dissera aos lacaios do Pessoal que se danassem. Estava tudo no relatório de Delaroche. Seria fácil matá-lo. O desafio era matá-lo da forma correta.

Apesar dos anos passados em campo, desde que regressara a Londres Yardley tornara-se preguiçoso e descuidado. Apanhava todas as noites um táxi desde a sede do MI6 à beira rio até um restaurante e bar em Sloane Square. Era aí o seu terreno de caça: jovens atraídas pela sua boa aparência madura, divorciadas abastadas do West End, esposas aborrecidas em busca de uma noite de sexo anônimo. Chegou poucos minutos depois das seis e instalou-se no seu lugar habitual no bar.

Astrid Vogel estava à sua espera.

Não era a mesma mulher que Delaroche vira na livraria de Amsterdam dez dias antes. Passara a tarde na Harrod's e nas lojas resplandecentes de Bond Street, armada com uma boa provisão do dinheiro de Delaroche. Usava agora um vestido preto, meias pretas, um relógio de ouro e uma fiada dupla de pérolas ao pescoço. A mola preta simples desaparecera-lhe do cabelo, que fora aparado e penteado por um estilista italiano de um salão em Knightsbridge. Caía-lhe agora à volta do rosto e do pescoço. Astrid sabia disfarçar a sua beleza natural, mas também sabia como chamar a atenção quando necessário.

Delaroche estava sentado num banco em Sloane Square, fingindo ler um exemplar do The Evening Standard comprado numa banca perto da estação de metro da praça. Observou o desenrolar dos acontecimentos no interior do restaurante como uma pantomima. Astrid sentada sozinha no bar, o cigarro eterno entre os dedos compridos e magros. Yardley, alto, grisalho, distinto, pergunta se o lugar ao seu lado está livre. À frente dele surge de imediato uma bebida, o habitual, e, pela sua expressão, julga que ela ficou impressionada. Acena ao empregado para que este sirva à Sra. outro copo de vinho branco. Astrid, grata, vira o corpo para o encarar, uma perna comprida cruzada de modo sugestivo sobre a outra, a saia bem subida na coxa. Já lhe pertence. A mulher solitária e assustada da casa flutuante de Amsterdam desapareceu. É uma holandesa decidida e cosmopolita cujo marido ganha dinheiro e ignora-a demasiado e, sim, pode acender-me o cigarro, querido.

Após uma hora, ela levanta-se e veste o casaco. Apertam as mãos de modo formal.

Ela permite que os dedos permaneçam um instante a mais nos dele. Pergunta-lhe onde está hospedada? No Dorchester. Pode dar-lhe boleia? Não, não é necessário. Pode chamar-lhe um táxi? Não, ela trata disso. Poderão encontrar-se novamente, antes que deixe Londres? Volte amanhã à noite e, se tiver sorte, querido, estarei aqui.

Cruzou rapidamente a praça, passando por Delaroche, embrenhado na leitura do jornal. Dirigiu-se a norte, subindo Sloane Street.

Delaroche viu Yardley chamar um táxi e entrar para o carro. Levantou-se e atravessou a praça até Sloane Street.

- Como correu?

- Se deixasse, tinha-me fodido ali mesmo no bar.

- Quer dizer que se mostrou interessado?

- Convidou-me para ir a casa dele, para uma bebida e caril de take-away. Disse-lhe que o meu marido poderia ficar zangado se eu não estivesse no hotel quando a reunião acabasse.

- Ótimo, não quero que pense que és uma prostituta. Além disso, não pode ser tão estúpido como parece. E quanto a amanhã à noite?

- Deixei bastante claro que voltaria ao bar.

- Ele volta.

- Por favor, Jean-Paul, não quero que ele me beije. O hálito dele cheira a merda.

- Essa parte da operação fica nas tuas mãos.

- Meu Deus, espero que não tente beijar-me. Se tentar, juro que sou eu que o mato.

Na noite seguinte, Yardley chegou primeiro. De vigia no banco de Sloane Square, Delaroche reprimiu uma gargalhada ao ver o tão bem treinado agente dos serviços secretos britânicos lançar uma série de olhares ansiosos na direção da porta. Depois de meia hora, Delaroche decidiu que Yardley já esperara tempo suficiente pela sua recompensa. Fez sinal a Astrid, que estava sentada à janela de um bar do outro lado da praça. Cinco minutos depois entrava no restaurante, diretamente para os braços de Colin Yardley.

Provocou-o. Brincou com ele. Bebia-lhe cada palavra. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. Permitiu que lhe pagasse demasiados copos de Sancerre. Inclinou-se para a frente, para que ele pudesse espreitar-lhe pela blusa e ver que não trazia sutiã. Afagou-lhe a barriga da perna com a ponta do caro sapato Bruno Magli. Tentou ir-se embora por várias vezes - o meu marido vai perguntar-me onde andei, querido - mas ele fazia sinal ao empregado do bar, que trazia outro copo de Sancerre. Ela não tinha força de vontade para se afastar daquele homem tão interessante, e seja um querido e peça outro maço de Marlboro Light 100s, por favor. Astrid, a sedutora. Astrid, a necessitada. Astrid, a holandesa faminta por sexo, que faria tudo pela atenção de um inglês de meia-idade, com um terno de Savile Row e uma casa dispendiosa. Delaroche apreciou o trabalho dela a partir da praça. Sentiu outra coisa: uma pontada de ternura. Levou a mão ao casaco e sentiu a coronha da Glock.

A parte seguinte correu de acordo com o planeado. Astrid inclinou-se para a frente e murmurou-lhe ao ouvido. Yardley pagou a conta e foi buscar os casacos.

Dois minutos depois, entravam para um táxi.

Delaroche observou-os a afastarem-se. Levantou-se e seguiu-os lentamente, através de Sloane Square, para oeste, ao longo da King's Road. Não ficou alarmado quando perdeu o táxi de vista. Sabia exatamente para onde iam, para a casa de Yardley, em Wellington Square.

Fá-lo entrar em casa, Astrid. Diz-lhe que tens pressa. Que o teu marido vai perder a cabeça se te demorares. Leva-o diretamente para a cama. Não te preocupes com a porta. Eu trato da porta.

Delaroche virou à esquerda em King's Road e entrou na calma de Wellington Square. O ruído do trânsito da hora de ponta reduziu-se para um ronco abafado. Começou a chover ao de leve. Delaroche atravessou rapidamente a praça, a gola erguida, as mãos enfiadas nos bolsos.

A casa de Yardley estava às escuras, perfeito. A fechadura da porta da rua não levantou grande problema e, dali a poucos segundos, estava no interior da casa. Ouviu o som de vozes no andar de cima, no quarto. Astrid desempenhara bem o seu papel.

Quando Delaroche entrou no quarto, encontrou Yardley encostado à cabeceira da cama, de camisa e peúgas, a masturbar-se enquanto Astrid executava um striptease lento aos pés da cama. Por um momento, Delaroche chegou a ter pena do homem. Ia sofrer uma morte humilhante.

Delaroche retirou a Glock da cintura das calças e entrou no quarto. O alarme surgiu de imediato no rosto de Yardley. Astrid parou de dançar e afastou-se.

Delaroche ocupou o lugar deixado vago aos pés da cama. Depois ergueu o braço e alvejou Colin Yardley rapidamente, três vezes no rosto.

O corpo tombou da cama para o chão. Astrid avançou, deu um pontapé na cabeça de Yardley com a ponta do sapato Bruno Magli e cuspiu-lhe no rosto. Astrid, a revolucionária.

Delaroche informou a agência imobiliária que teria de cancelar as férias em Londres devido a uma emergência familiar. Antes de deixar o apartamento, ligou o computador portátil e enviou uma mensagem codificada aos empregadores, dizendo-lhes que a missão fora cumprida e que deveriam transferir os fundos determinados para a conta específica em Zurique. Apanhou com Astrid um comboio noturno para Dover e passaram a noite num hotel pitoresco. De manhã apanharam o primeiro ferry para Calais, onde alugaram um Renault, e seguiram para norte, ao longo da costa do Canal. A noite estavam de volta ao Krista, no calmo Prinsengracht em Amsterdam.

O corpo de Colin Yardley foi encontrado no início dessa tarde, quando Delaroche e Astrid passavam da França para a Bélgica. A Segurança do MI6 ficou alarmada, pois Yardley não se apresentara ao serviço e ninguém atendia os repetidos telefonemas para sua casa em Wellington Square. Uma equipe do MI6 arrombou a porta pouco depois da uma da tarde e encontraram o corpo no quarto do primeiro andar. A Polícia, contudo, apenas foi informada da morte às quatro e quinze. A BBC noticiou a morte de um homem não identificado nas Nine O'Clock News. Quando a ITN iniciou a transmissão das dez, o cadáver tinha nome e profissão: Colin Yardley, um quadro médio do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Durante o programa telefonaram para a redação. Quem ligou disse que a morte de Yardley fora levada a cabo pelo Provisional Irish Republican Army. Foi apresentado o código de reconhecimento especial como prova de que a reivindicação era autêntica.

Pela manhã, os repórteres da BBC tinham descoberto a verdadeira ocupação de Yardley: agente dos Serviços Secretos de Espionagem, o MI6.

Jean-Paul Delaroche escutou as notícias a bordo do Krista. Quando terminaram desligou o rádio e dedicou-se aos mapas e ao computador, preparando a morte seguinte.

Telefonou para Zurique. Herr Becker confirmou que, nessa manhã, fora efetuada para a sua conta uma transferência de um milhão de dólares. Delaroche indicou-lhe que deveria transferir o dinheiro para quatro contas das Baamas, um quarto de milhão para cada.

O sol despontou ao meio-dia. Levou emprestada a bicicleta de Astrid e passou o resto da tarde a pintar nas margens do rio Amstel, até que a imagem do rosto desfeito de Yardley lhe desapareceu da consciência.

 


MCLEAN, VIRGÍNIA

 

- Não sei por que Carter precisa te enviar a Londres. Por que diabos não manda outra pessoa?

Elizabeth foi buscar Michael na sede e estava dando carona até o Dulles Airport, a trinta quilômetros de Washington, no extremo leste da periferia urbana do norte da Virgínia. Eram 19 horas. Tecnicamente, a hora do rush já acabara, mas o trânsito continuava engarrafado no Capital Beltway. Quando estava tensa, Elizabeth tinha a tendência de colar na traseira dos outros veículos. Assim, viajavam a meio metro do para-choque de um Ford Explorer verde, que se deslocava a setenta quilômetros por hora.

- Pensei que tinha explicado nossa situação, Michael. Achava que ele tinha concordado em deixar você trabalhar em Nova York. Pensei que ele fosse aliviar por uma ou duas semanas.

Talvez devesse ter levado um carro da Agência até o aeroporto, pensou Michael. Não tinha vontade de discutir com a mulher antes de embarcar num voo internacional. Não que fosse supersticioso, nem tampouco receava voar, era simplesmente realista.

- É só um dia - garantiu. - Ida e volta, com algumas reuniões pelo meio. - Se é uma coisa tão rotineira, por que não enviou o Carter outra pessoa? Elizabeth não era litigante, exercia direito na calma das sombras empresariais, mas era mestre na arte do contra-interrogatório. Esmurrou a buzina. Michael sabia que acabara de ser declarado testemunha hostil.

- Um oficial da espionagem britânica foi assassinado em Londres, ontem à noite - replicou Michael calmamente. - Pode ter alguma coisa a ver com um caso no qual já trabalho há muito tempo.

- Li sobre isso no Post desta manhã. O IRA reivindicou a responsabilidade. Desde quando tens alguma coisa a ver com o IRA? Pensei que o teu currículo incluía exclusivamente terrorismo árabe.

- É verdade, mas julgamos que possa haver uma ligação.

Michael esperava que ela ignorasse o assunto. A viagem a Londres fora sua ideia, não de Carter, que queria o trabalho de ligação feito por um agente da Estação de Londres. Michael convencera Carter a enviá-lo.

- Daqui a dois dias vão recolher-me os óvulos. Nessa altura vão fertilizá-los com esperma. Preferia que fosse o teu, Michael.

- Eu volto. Não te preocupes. E, se por acaso houver algum problema, temos um trunfo na manga. Congelado.

Devido à natureza do seu trabalho, e à possibilidade de uma viagem inesperada, os médicos do Cornell Medical Center tinham recomendado que se congelasse algum do esperma de Michael.

- Gostaria que lá estivesses para me dar apoio emocional, Michael - disse Elizabeth. - Pensei que os agentes de casos fossem bons nessas coisas. O mínimo que podes fazer é estar comigo. - E vou lá estar. Prometo.

- Cuidado com aquilo que prometes, Michael.

Saiu da Beltway, entrando na estrada de acesso a Dulles. O trânsito reduziu de intensidade e Elizabeth acelerou até os cem. A lua cheia pairava sobre os campos de Virgínia, amortalhada por uma camada transparente de nuvens. Michael acendeu um cigarro e entreabriu o vidro da janela. Elizabeth conduzia com agressividade, mudando de faixa sem abrir o pisca, colando-se ao carro da frente, fazendo sinais de luzes a quem se atrevesse a conduzir a menos de cento e dez na faixa de ultrapassagem. Michael sabia o verdadeiro motivo do mau humor de Elizabeth. Ia para Londres investigar um ato de terrorismo, e a esposa sabia que isso levaria a que pensasse no assassinato de Sarah. O seu orgulho impedia-a de o admitir, mas os sentimentos estavam bem patentes na expressão ansiosa do rosto. Ficaria ainda mais perturbada se Michael lhe contasse a verdade: Que suspeitava que Sarah e o agente britânico tinham sido assassinados pelo mesmo homem. - Entreguei ao tom Logan o material do disquete da Susanna informou Elizabeth. - Ele vai publicar o artigo?

- Diz que não pode, sem antes confirmar os pormenores. Diz que as acusações são demasiado explosivas para serem editadas antes de serem analisadas pelos advogados. E, uma vez que a jornalista que redigiu a história está morta, não pode haver uma investigação profunda.

- Que vai ele fazer?

- Designou uma equipe dos melhores jornalistas para confirmarem os dados. Infelizmente, a Susanna não vai ser de grande ajuda no túmulo. Os apontamentos não contêm muitas pistas sobre a identidade das fontes. Por isso, a equipe do Logan tem de começar praticamente do zero.

- Isso pode demorar muito.

- Susanna precisou de três meses para fazê-lo sozinha.

Chegaram a Dulles. Elizabeth dirigiu-se às partidas e parou junto ao passeio. Michael saiu e tirou uma mala de roupa da bagageira. Fechou-a e aproximou-se da porta do condutor do Mercedes. Elizabeth baixara o vidro e tinha a cabeça de fora, à espera de um beijo de despedida.

- Tem cuidado, Michael.

- Eu tenho.

Esperou que as luzes de presença desaparecessem na escuridão e depois entrou no terminal.

Michael acordou quando o avião atravessou a camada de nuvens e deu início à descida para a manhã cinzenta de Londres. A Estação de Londres oferecera-se para lhe enviar um carro, mas Michael queria envolver-se o menos possível com os ingleses, por isso apanhou um táxi. Baixou o vidro. Gostava da sensação do ar frio no rosto, apesar do fedor a fumo dos tubos de escape. Londres fora a sua casa durante oito anos. Fizera mil vezes o percurso entre Heathrow e o centro da cidade. Os lúgubres subúrbios que passavam por ele eram-lhe mais familiares do que Arlington, ou do que Chevy Chase.

Registrou-se no hotel, um estabelecimento modesto e independente em Knightsbridge, com vista para Hyde Park. Gostava do sitio, pois cada quarto possuía uma pequena sala de estar anexa ao quarto de dormir. Pediu um pequeno-almoço inglês completo e foi debicando a comida até serem horas de ligar a Elizabeth. Acordou-a e travaram uma conversa desconexa antes que ela voltasse a adormecer.

Michael sentia-se cansado, por isso dormiu até o início da tarde. Quando acordou, vestiu um moletom impermeável. Pendurou o sinal não INCOMODAR na porta e enfiou um pedaço minúsculo de papel entre a porta e a lateral. Se ainda lá estivesse ao regressar, provavelmente ninguém teria entrado no quarto. Caso tivesse desaparecido, alguém lá teria estado.

Correu pelos caminhos de Hyde Park debaixo de nuvens plúmbeas, carregadas de chuva. O céu abriu dez minutos depois de ter iniciado o treino. Os londrinos que passavam, abrigados pelos guarda-chuvas fustigados pelo vento, fitavam-no como se fosse um louco em fuga. Após quinze minutos ficou ofegante e começou a andar. Conseguira manter a forma física ao longo dos anos, apesar de ser fumante, mas agora os cigarros cobravam seu preço. E Elizabeth tinha razão: estava ficando com barriga.

Regressou correndo ao hotel. O papel caiu ao chão quando abriu a porta do quarto. Tomou uma ducha e vestiu um terno completo azul-marinho. Apanhou um táxi até Grosvenor Square e exibiu a identificação ao Marine de guarda à entrada. Michael sentia-se desconfortável nas embaixadas. Nunca deixara de ser um NOC. Quando se encontrava sedeado em Londres, apenas ia à embaixada em situações de emergência, e sempre "às escuras", o que significava que entrava pelo estacionamento subterrâneo, nos fundos de uma van. Gostava de não ter ido ali, mas as regras do Centro exigiam uma visita de cortesia ao chefe de estação local.

O chefe de pessoal de Londres era um homem chamado Wheaton, um anglófilo assumido de bigode fino, terno riscado de Savile Row e o hábito irritante de apertar uma bola de tênis sempre que não sabia o que dizer. Wheaton pertencia à velha guarda: Princeton, Moscou, cinco anos como chefe do gabinete russo antes de assumir o seu posto definitivo em Londres. Disse ter conhecido o pai de Michael, mas não disse que gostara dele. Também deixou bem claro que não acreditava que a Estação de Londres precisasse de ajuda do CTCNT, o Counterterrorist Center (Centro Contraterrorista) para aquele caso. Michael prometeu deixá-lo a par de tudo o que descobrisse. Wheaton disse educadamente a Michael que gostaria de o ver longe da cidade o mais depressa possível. O táxi deixou Michael no terraço georgiano branco de Eaton Place. Helen e Graham Seymour possuíam uma casa agradável e, da rua, Michel podia vê-los como atores num palco de vários níveis: Graham no andar de cima, na sala, Helen abaixo do nível da rua, na cozinha. Desceu as escadas e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen desviou a atenção dos cozinhados e exibiu um sorriso rasgado.

Abriu a porta e beijou-lhe a face.

- Jesus, Michael, há tanto tempo. - Serviu vinho Sancerre num copo e colocou-o na mão dele. - Graham está lá em cima. Vão pôr a conversa em dia enquanto acabo o jantar.

Quando Michael entrou na sala, Graham Seymour remexia na lareira a gás. A sala tinha painéis e soalho de madeira, com uma série de tapetes orientais e decorações do Oriente Médio muito finos. Graham levantou-se, sorriu e estendeu a mão. Viam-se um ao outro da forma que apenas os homens de constituição idêntica conseguem. Graham Seymour era o negativo de Michael. Este tinha pele cor de azeitona e Graham era pálido. Michael tinha cabelo escuro e olhos verdes, e Graham era louro e de olhos cinzentos. Michael vestia terno marinho e Graham estava pronto para um safari, com calças e camisa caqui.

Sentaram-se e falaram sobre os velhos tempos. Tinham percursos de vida quase idênticos. À semelhança de Michael, também o pai de Graham trabalhara para os serviços secretos: na operação Double Cross do MI5 durante a guerra, e depois no MI6, durante vinte e cinco anos. Tal como Michael, também Graham seguiu o pai de comissão em comissão, e entrou para os Serviços Secretos logo após se ter formado em Cambridge. Ao longo dos anos, os dois homens tinham trabalhado em conjunto, embora Graham sempre tivesse operado com cobertura oficial. Desenvolveram respeito profissional e uma amizade pessoal. Com efeito, eram mais chegados do que ambos os serviços gostariam.

O cheiro do cozinhado de Helen chegou até a sala.

- O que está ela a fazer? - perguntou Michael, à cautela.

- Paella - respondeu Graham, com um franzir de cenho. - Talvez devesses ir à farmácia antes que feche.

- Eu fico bem.

- Dizes isso agora, mas nunca provaste a paella da Helen.

- É assim tão má?

- Não quero estragar a surpresa. Talvez seja melhor beberes mais um pouco de vinho.

Graham desceu à cozinha e regressou momentos depois com copos cheios de Bordéus branco.

- Fala-me sobre o Colin Yardley. Graham fez um esgar.

- Aconteceu uma coisa estranha há dois meses. Um traficante de armas chamado Farouk Khalifa decidiu instalar-se em Paris. Descobrimos o caso e informamos os nossos amigos franceses, que colocaram o senhor Khalifa sob vigilância. - Foi um gesto simpático por parte dos franceses. Ele vende armas a pessoas de que não gostamos.

- É um homem mau.

- É um homem muito mau. Abriu o bazar e começou a receber clientes. Os franceses fotografam toda a gente que entra e sai.

- Estou vendo o filme.

- Em Setembro, um homem faz uma visita ao senhor Khalifa. Os franceses não conseguem identificá-lo, mas desconfiam que seja britânico, por isso enviam-nos uma cópia da fotografia por fax seguro.

- Colin Yardley?

- Em carne e osso.

- A chefia confrontou-o. Exigiram saber por que raio se tinha encontrado com um tipo como o Khalifa. O Yardley inventou uma treta qualquer sobre estar aborrecido com o trabalho de secretária, e andar ansioso por voltar ao trabalho de campo. Trabalhou em Paris durante algum tempo. Disse que andava por conta própria. A chefia não ficou nada satisfeita, e isto é um eufemismo. Yardley foi repreendido com veemência.

- Cristo.

- Pois adivinha lá qual é a arma que o Farouk Khalifa tem em grande abundância. - Segundo as nossas informações, são mísseis Stinger. - Michael bebeu um pouco de vinho. -- Imagino que os teus serviços não tenham transmitido essas informações aos meus. Graham abanou a cabeça.

- Ficamos um pouco embaraçados com o assunto. Compreende, não, Michael? A chefia queria esquecer o caso, por isso desapareceram com ele.

Helen surgiu no alto das escadas.

- O jantar está pronto.

- Que maravilha - proclamou Graham, com um pouco de entusiasmo a mais. - Bem, imagino que o vídeo tenha de esperar.

Helen Seymour fazia pratos elaborados, mas terríveis. Acreditava que "cozinha inglesa" era um oximoro, e especializara-se na comida do Mediterrâneo: italiana, grega, espanhola, norte-africana. Naquela noite serviu uma paella horrorosa de peixe cru e camarão queimado, tão picante que Michael sentiu a garganta seca, à medida que empurrava garfada após garfada para a boca. Terminou corajosamente e Helen insistiu em que repetisse. Graham reprimiu uma gargalhada enquanto a esposa servia duas colheradas enormes no prato estendido de Michael.

- Está divino, não está? - ronronou Helen. - Acho que também vou me servir de mais um pouco.

- Você se excedeu mais uma vez, querida - elogiou Graham.

Havia muito que aprendera a lidar com a comida exótica da mulher. Comprava sanduíches e hambúrgueres quando saía do trabalho e devorava-os ao descer para o metrô. Há três anos exibia uma súbita devoção por pão. Helen fazia variedades novas e diferentes todas as noites, que Graham comia em grandes quantidades. Ganhara barriga por excesso de hidratos de carbono à noite. Marcava telefonemas importantes para a hora do jantar e fingia serem inesperados. À semelhança de uma criança impertinente, tornara-se perito em distribuir a comida pelo prato, criando assim a ilusão do consumo. Durante algum tempo, Graham recusara-se a permitir que Helen cozinhasse para os convidados. Em vez disso, iam a restaurantes. Agora sentia prazer em ter amigos para jantar, tal como um condenado se reconforta com companhia nas últimas horas antes da morte. Graham mergulhou um naco de pão espanhol num prato de azeite virgem e enfiou-o na boca.

- Helen, Michael e eu temos de trabalhar mais um pouco. Importa-se que levemos o café para a sala?

- É claro que não. Levo a sobremesa daqui a pouco. - Virou-se para Michael, com um sorriso arrebatador nos lábios. - Oh, Michael, fico tão contente por ter gostado da paella.

- Helen, não me lembro da última vez que tive uma refeição destas.

Graham engasgou-se com um pedaço de pão.

Michael saiu do banheiro.

- Você está bem, camarada? - perguntou Graham. - Parece enjoado.

- Minha nossa Sra., como consegue comer assim todas as noites?

- Está pronto para ver um filme?

- Claro.

Sentaram-se no sofá da sala. Graham pegou o controle remoto que estava em cima da mesa de apoio.

- O senhor Yardley tinha outro problema - indicou. - Gostava de mulheres.

- Os serviços também sabiam disso?

- Sim, o Departamento de Pessoal pediu para ter calma. Ele respondeu que se danassem. Era solteiro, faltavam-lhe poucos anos para a aposentadoria, e ia divertir-se.

- Boa atitude.

- Os serviços encontraram o corpo. Entramos antes da polícia e revistamos a casa. Descobrimos que o adorável Colin Yardley tinha instalado no quarto um sistema secreto de gravação de vídeo para gravar as conquistas e vê-las quando quisesse. Tinha uma bela coleção. Os vigilantes usavam-na para aliviar o aborrecimento entre missões.

Graham apontou o comando ao reprodutor de vídeo e teclou PLAY. A câmara estava instalada em algum lugafr acima da cabeceira da cama. Yardley estava deitado, nu, masturbando-se lentamente enquanto uma mulher alta executava um striptease provocante. Desabotoou a blusa, passou as mãos pelos seios e enfiou-as por dentro do sutien.

Graham imobilizou a imagem.

- Quem é ela? - perguntou Michael.

- Acho que é Astrid Vogel.

- Segundo as nossas informações, ela está morando em Damasco.

- Nós achamos o mesmo. Na verdade, acreditamos que tenha deixado a Facção do Exército Vermelho de vez, o que torna o seu envolvimento neste caso ainda mais intrigante. - Graham acionou o comando e a imagem ganhou vida. - Esta é a melhor parte. Não vou estragar o fim.

O striptease de Astrid Vogel tornou-se mais intenso. Tinha as mãos entre as pernas e a cabeça inclinada para trás, fingindo êxtase.

- Ela é boa - comentou Graham. - Muito boa.

Helen entrou com uma travessa de café e tarte de maçã.

- Mas que maravilha. Deixo-os sozinhos dez minutos e vocês alugam um filme pornográfico.

Pousou a travessa na mesa de apoio, os olhos fixos na tela.

- Quem é aquela criatura?

- Uma antiga assassina do Baader-Meinhof chamada Astrid Vogel.

Uma expressão de terror cruzou o rosto de Yardley. Graham parou o vídeo.

- Esta parte é bem sangrenta, querida. Talvez fosse melhor ir lá para baixo.

Helen sentou-se no divã.

- Como queira - disse Graham e recomeçou o vídeo.

Uma figura escura penetrou no quarto, as feições ocultas por boné e óculos de sol. Levou a mão atrás das costas, puxou de uma arma com silenciador e alvejou Colin Yardley três vezes no rosto. A mulher avançou, deu um pontapé no cadáver e cuspiu-lhe em cima.

Graham parou a fita.

- Meu Deus do céu - disse Helen.

- É ele - garantiu Michael.

- Como sabe? Está sempre de cara tapada.

- Não preciso ver a cara. Já o vi empunhando uma pistola. É ele, Graham. Apostaria minha vida. É ele.

- Sei que nem preciso de dizer, Michael, mas as regras são as habituais. A informação que te dei serve apenas para uso pessoal. Não pode partilhá-la com outro elemento do teu serviço, nem com qualquer outro serviço.

- Se te ajudar a dormir melhor, até assino uma cópia da Lei dos Agentes Secretos.

Michael ergueu a gola do casaco e enfiou as mãos nos bolsos. A chuva parara e queria andar. Graham acedera em acompanhá-lo até meio caminho. Vaguearam pelos sossegados vales georgianos de Belgravia, tendo como único ruído de fundo o ronco distante do trânsito noturno de King's Road.

- Quero falar com Drozdov - disse Michael.

- Não podes falar com o Drozdov. Não está ao teu alcance. Além do mais, ele diz que deixou de falar e que pretende passar o resto dos dias em paz. - Tenho uma teoria sobre o assassino que matou Yardley e quero que ele me dê a sua opinião.

- O Drozdov é o nosso desertor. Já partilhamos as informações com você. Se tentares falar com ele, vais ficar em maus lençóis, tanto pela tua parte como pela nossa.

- Por isso mesmo, vai ser uma conversa oficiosa.

- O que tem em mente? Estás pensando em cruzar com ele e dizer: "Ei, você não é Ivan Drozdov, o antigo assassino do KGB? Importa-se que lhe faça umas perguntas?" Tome juízo, Michael.

- Tinha pensado em utilizar uma abordagem um pouco mais sutil.

- Se descobrirem, nego qualquer envolvimento. Até te acuso de ser espião russo.

- Não esperaria menos do que isso.

- Ele está morando em Cotswolds. Numa aldeiazinha chamada Aston Magna. Toma chá e lê os jornais todas as manhãs num café de Moreton, a poucos quilômetros de distância.

- Conheço bem a região - disse Michael.

- É o homem com os cães corgis e a bengala nodosa. Parece mais inglês do que o príncipe Philip. Não há como errar.

Graham Seymour acompanhou Michael até Sloane Street antes de se despedir e regressar a Eaton Place. Michael deveria ter seguido em direção ao norte, até Hyde Park e seu hotel, mas, em vez disso, quando Graham desapareceu encaminhou-se para o sul, para Sloane Square.

Atravessou a praça e perambulou pelas sossegadas ruas secundárias de Chelsea, até chegar à Represa, virada para o Tamisa. As luzes brilhavam nas casas de luxo sobranceiras. O passeio cintilava com a névoa do rio. Michael tinha a zona só para si, não fosse um homem calvo e baixo que se apressava pela rua, as mãos enfiadas nos bolsos do oleado puído, a coxear como um soldadinho de chumbo que já não presta para brincar.

Apoiou-se à barreira, olhou para o rio e depois virou-se e fitou Battersea Bridge e as luzes brilhantes de Albert Bridge, mais além. Podia ver Sarah a dirigir-se a ele, através das trevas e da neblina, o cabelo negro puxado para trás, a saia a dançar à volta das botas de camurça. Sorria-lhe como se fosse a pessoa mais importante à face da terra, como se tivesse passado o dia a pensar nele. Era o mesmo sorriso que lhe oferecia sempre que ele entrava no apartamento, sempre que se encontravam para uma bebida no bar, ou para um espresso, no restaurante preferido.

Pensou na última vez que estiveram juntos. Fora na tarde anterior, quando passara pelo apartamento e a encontrara no chão, com um maiô branco, o corpo magro dobrado sobre as longas pernas nuas. Recordou como ela se levantara e lhe beijara a boca, como baixara o maiô dos ombros para que ele lhe tocasse nos seios. Mais tarde, na cama, confessara ter fantasiado que fazia amor com ele para aliviar o enfado dos exercícios de alongamento. Que ficava sempre terrivelmente tensa e que tinha de resolver o problema sozinha, pois ele estava a trabalhar.

Nesse momento sentiu-se completamente apaixonado. Fez amor com ela uma última vez. Ela ficou deitada de costas, imóvel, os olhos fechados, o rosto passivo, tanto tempo quanto conseguiu, até que o prazer físico foi demasiado e abriu os olhos e a boca, puxou-o para si e beijou-o até chegarem juntos. Foi essa imagem, e a visão dela a flutuar na sua direção à luz da Represa de Chelsea, que foi estilhaçada pelo homem com a arma.

Recordou o rosto dela a explodir, o corpo a dissolver-se à frente dos seus olhos. Recordou o assassino: tez pálida, cabelo muito curto, nariz fino. Viu mais uma vez a forma como sacou a pistola da cintura, o modo como o braço se levantou, como disparou três vezes sem hesitar. Michael correu para ela, mesmo sabendo que estava morta. Por vezes, desejava ter perseguido o assassino, embora soubesse que tal provavelmente lhe teria custado a vida. Em vez disso, ajoelhou-se a seu lado e abraçou-a, a cabeça dela apertada contra o peito para não lhe ver o rosto desfeito.

Começou a chover. Apanhou um táxi de volta ao hotel. Despiu-se, deitou-se e telefonou a Elizabeth. Ela deve ter percebido algo na voz do marido, pois soluçou quando se despediu e desligou. Michael sentiu uma pontada de culpa, como se tivesse acabado de traí-la.


LONDRES

Bem cedo na manhã seguinte, Michael deixou o hotel e alugou um Rover sedan metalizado numa agência da Hertz, a norte de Marble Arch. Entrou na A40 perto de Paddington Station e seguiu para oeste, contra o fluxo da hora de ponta. Ainda estava escuro e chovia ao de leve. Michael ligou o rádio e escutou as notícias das seis na BBC. Enquanto atravessava os subúrbios a noroeste de Londres, a A40 entrou na M40. A luz macilenta da alvorada foi surgindo à medida que ele subia as elevações suaves de Chilterns. O mapa fornecido pela Hertz estava fechado, em cima do banco do passageiro. Michael não precisava dele, pois conhecia bem as estradas.

A família de Sarah possuíra uma grande casa de campo em Cotswolds, na aldeia de Chipping Campden. Muros de pedra calcária, cobertos de clematite e de heras diversas, cercavam a casa. Michael passara aí vários fins-de-semana com ela, durante os meses em que estiveram juntos. O campo alterava-a, levando-a a despir a farda de couro preto do clã do Soho. Usava calças de ganga desbotadas e blusas no Inverno, e vestidos leves no Verão. De manhã, percorriam os caminhos nos arredores da aldeia, através de pastos repletos de ovelhas e de faisões. À tarde, faziam amor. No Verão, com o tempo quente, faziam amor no jardim, ocultos pelo calcário e pelas flores. Sarah preferia fazê-lo ao ar livre. Gostava da sensação de Michael dentro dela e do sol na pele clara. Desejava, em segredo, que as pessoas os vissem. Queria que o mundo soubesse como era o seu ato de amor. Queria que todos os invejassem.

Dançava, servia de modelo, lia muitos livros. Por vezes representava. Às vezes fotografava. As suas cores políticas eram atrozes e tão flexíveis como o seu corpo esguio. Era trabalhista e comunista. Era verde e anarquista. Vivia no Soho, num quarto atulhado de roupas de segunda mão e maiôs, em cima de um restaurante libanês que servia comida para fora. Ouvia os Clash e os Stones. Ouvia gravações do oceano e de sons da floresta e cantos gregorianos. Era vegetariana e o cheiro do borrego assado do restaurante deixava-a enojada. Para disfarçar o cheiro, queimava incenso e acendia velas. Da primeira vez que levou Michael para a cama, este teve a sensação incômoda de estar a fazer amor numa igreja católica.

Apresentou-o a um mundo que ele não conhecia. Levou-o a festas bizarras e a teatro experimental. Levou-o a sessões de leitura e a ver exposições. Escolheu-lhe roupas diferentes. Não dormia, a menos que primeiro fizesse amor com ele. Adorava olhar para os seus corpos à luz das velas.

- Olha só para nós - dizia. - Sou tão pálida e você tão moreno. Sou o bem e você o mal.

O trabalho dele enfadava-a e ela nunca lhe fazia perguntas. A noção de alguém correr o mundo a vender coisas parecia baralhá-la. Apenas lhe perguntava onde ia e quando regressava.

Adrian Carter era o agente de controle de Michael. Este tinha a obrigação de mencionar a relação que mantinha com Sarah a Carter e ao Departamento de Pessoal, mas eles iriam revolver-lhe o passado, investigar as tendências políticas, o trabalho, os amigos, os amantes, e talvez descobrissem coisas que Michael preferia não saber. Manteve a Agência ignorante da existência de Sarah e esta da Agência. Receava que ela o abandonasse, caso descobrisse a verdade. Tinha medo que tecesse comentários com os amigos, o que poria em perigo o seu disfarce em Londres. Estava a mentir aos patrões e à amante. Sentia-se feliz e desolado ao mesmo tempo.

Aproximava-se de Oxford. Uma van comercial Ford branca seguia-o desde há trinta quilômetros, mantendo-se sempre três ou quatro carros atrás. Era possível que a Ford se limitasse a viajar na mesma direção, mas Michael fora treinado a não acreditar em coincidências. Abrandou e deixou que o trânsito o ultrapassasse.

A Ford permaneceu à mesma distância.

Aproximou-se de uma área de serviço. Saiu da auto-estrada e estacionou perto do restaurante. A Ford seguiu-o e entrou na bomba de gasolina. O condutor saiu e fingiu ver a pressão do pneu do lado do passageiro, enquanto observava o Rover. Michael interrogou-se quem o poderia estar a seguir. Wheaton, da Estação de Londres? Graham Seymour e o MI6?

Entrou no restaurante, pediu café e uma sanduíche de bacon e ovo frito, e foi ao banheiro. Foi buscar a comida, pagou e saiu. A Ford continuava na bomba de gasolina, com o condutor a preparar-se para ver a pressão do pneu traseiro.

Michael dirigiu-se a um telefone público e ligou para o hotel onde estava hospedado. Disse à recepcionista que deixara um par de botões de punho valiosos na casa de banho. Ditou-lhe uma morada falsa em Miami, que ela prontamente anotou, enquanto Michael observava a Ford. Desligou e regressou ao Rover. Ligou o motor e afastou-se, entrando no trânsito da auto-estrada. Olhou para o espelho retrovisor enquanto comia o sanduíche.

Lá estava a Ford, três carros atrás.

O monovolume seguiu Michael até Moreton-in-Marsh, uma aldeia grande segundo os padrões de Gloucestershire, que abarcava o cruzamento da A44 e da A429. Parou num estacionamento em frente a uma série de lojas e saiu. A Ford estacionou a cinquenta metros dele. O restaurante ficava ao lado de um talho, com faisões pendurados à porta. Michael pensou em Sarah, à sua frente com um prato de feijão com arroz e puré de abóbora, a fitá-lo enquanto ele arrancava a carne dos ossos de um faisão assado. Entrou no restaurante e pediu café e um bolo à jovem rechonchuda ao balcão.

Michael reconheceu Ivan Drozdov das fotografias da Agência. Era calvo, salvo por uma franja grisalha, e o corpo alto estava debruçado sobre uma pilha de matutinos. Tinha os óculos de leitura dourados na ponta do nariz e semicerrava os olhos contra o fumo do cigarro preso aos lábios finos. Vestia uma blusa cinzenta de gola alta e um blusão verde com gola de bombazina. Um par de corgis idênticos lambiam-se ao lado das botas Wellington sujas com lama úmida.

Michael levou a comida para a mesa ao lado e sentou-se. Drozdov ergueu brevemente o olhar, sorriu e regressou aos jornais. Passaram alguns minutos, com Michael a beber café e Drozdov a ler o The Times e a fumar.

Por fim, sem levantar os olhos, Drozdov disse:

- Será que vai falar, ou vai ficar aí sentado, a incomodar-me os cães? - Chamo-me Cari Blackburn, e estava a pensar se poderíamos falar um pouco - replicou Michael, surpreendido.

- Na verdade, o seu nome é Michael Osbourne. Trabalha para o Centro de Contraterrorismo da CIA, em Langley, na Virgínia. Já foi agente de campo, até que a sua amante foi assassinada em Londres e a Agência levou-o para a sede.

Drozdov dobrou cuidadosamente o jornal e deu pedaços de bolo aos cães. - Se quiser falar, podemos ir dar um passeio - indicou. - Mas não volte a mentir-me. É insultuoso e eu reajo mal aos insultos.

- Tem noção de que está sendo vigiado, senhor Osbourne?

Caminhavam ao longo de um trilha na direção da aldeia de Aston Magna, onde Drozdov se instalara quando a União Soviética se desmoronara e a ameaça de morte por parte dos seus antigos mestres do KGB desaparecera. Era um palmo mais alto do que Michael e, tal como muitos homens altos, inclinava-se ligeiramente para se encolher. Andava com lentidão, as mãos atrás das costas, a cabeça baixa, como se procurasse algo perdido. Os cães seguiam alguns metros à frente, como se fossem contravigilância. Michael, que por natureza andava depressa, esforçava-se por acompanhar o passo desajeitado de Drozdov. Interrogou-se como teria o idoso avistado quem o seguia, pois Michael não o vira a olhar.

- Dois homens - indicou Drozdov. - Uma van Ford branca.

- Avistei-os na M-40, alguns quilômetros fora de Londres.

- Alguém sabe que veio falar comigo?

- Não - mentiu Michael. - Não vim como representante da CIA, e não pedi autorização aos ingleses. É um assunto pessoal.

- Colocou-se numa posição bastante difícil, senhor Osbourne. Se fizer alguma coisa de que eu não goste, basta-me pegar o telefone e falar com o meu agente de ligação do MI-6, para que fique em maus lençóis.

- Eu sei. Obviamente, peço que não o faça, por cortesia profissional.

- Deve ser muito importante.

- É, sim.

- Imagino que aqueles homens na van branca tenham um microfone de longo alcance. Talvez devêssemos ir para algum sítio onde não nos possam seguir. Entraram num caminho que contornava um campo de erva seca. À distância, as colinas erguiam-se até as nuvens baixas. Um rebanho de ovelhas baliu-lhes do outro lado de uma vedação. Drozdov afagou-lhes a lã espessa das cabeças ao passarem por elas. O caminho estava enlameado devido à chuva que caíra durante a noite e, depois de alguns passos, os sapatos italianos de camurça de Michael ficaram arruinados. Virou-se e olhou para trás. A van regressava a Moreton.

- Julgo que já podemos falar, senhor Osbourne. Os seus amigos parecem ter desistido.

Michael passou dez minutos a falar. Percorreu a lista de assassinatos e os atentados terroristas. O ministro espanhol em Madrid. O oficial da polícia francesa em Paris. O executivo da BMW em Francoforte. O oficial da OLP em Tunes. O empresário israelense em Londres. Drozdov ouviu com atenção, por vezes aquiescendo, outras vezes resmungando baixinho. Os cães correram pelo prado e afugentaram faisões.

- E o que quer saber, ao certo? - perguntou Drozdov, quando Michael acabou de falar.

- Quero saber se foi o KGB que eliminou esses alvos. Drozdov assobiou para chamar os cães.

- Merece um elogio, senhor Osbourne. Falhou uns quantos, mas é um belo começo.

- Portanto, os atentados foram levados a cabo pelo KGB?

- Sim, foram.

- Foi sempre o mesmo homem?

- Sempre.

- Como se chama?

- Não tinha nome, senhor Osbourne. Apenas um nome de código.

- Qual era o nome de código?

Drozdov hesitou. Desertara, traíra seu serviço, mas revelar nomes de código era o equivalente em espionagem à quebra da omertà da Máfia. - Outubro, senhor Osbourne. O nome de código era Outubro - acabou por dizer.

O sol apareceu brevemente entre as nuvens, aquecendo o campo. Michael desabotoou o casaco e acendeu um cigarro. Drozdov imitou-o, a testa franzida enquanto fumava, como se procurasse a melhor forma de começar a narrativa. Michael já lidara com muitos agentes. Sabia quando devia forçar e quando era preferível esperar e ouvir. Não tinha como pressionar Drozdov, que apenas falaria se quisesse.

- Ao contrário do que se pensa no Ocidente, não éramos muito bons a matar pessoas - acabou Drozdov por dizer. - Sim, no interior da União Soviética éramos muito eficientes. Mas fora do bloco soviético, no Ocidente, éramos terríveis no que dizia respeito a assuntos sujos. Um dos nossos melhores assassinos, Nikolai Khokhlov, mudou de ideias quando estava a tentar matar um líder da resistência ucraniana e desertou. Tentamos matá-lo e também fracassamos. Durante muito tempo, o Politburo desistiu do assassinato como ferramenta do ofício. Drozdov largou a beata do cigarro para a lama e pisou-a com a ponta da bota. - Isso mudou no final dos anos 60. Olhamos para o Ocidente e vimos conflitos internos um pouco por toda a parte: os irlandeses, os bascos, os Baader-Meinhof alemães, os palestinos. Além disso, tínhamos também os nossos próprios problemas para resolver, os dissidentes, os desertores, sabe como é. Tal como sabe, os assassinatos eram geridos pelo Departamento Cinco do Primeiro

Diretorado Principal. O Departamento Cinco queria um assassino muito bem treinado, com base permanente no Ocidente, que levasse a cabo mortes em cima da hora. Esse assassino era o Outubro.

- Quem é ele? - indagou Michael.

- Entrei para o Departamento Cinco depois de ele estar integrado no Ocidente. O seu arquivo não revelava nada sobre a verdadeira identidade. Havia boatos, é claro. Dizia-se que era filho ilegítimo de uma patente bastante elevada do KGB: de um general, ou talvez do próprio presidente. Não passavam de boatos.

Foi acolhido muito novo pelo KGB e recebeu uma educação e um treino intensivos. Em 8, ainda adolescente, foi enviado para o Ocidente através da Checoslováquia, fazendo-se passar por refugiado. Acabou por se mudar para Paris. Fingiu-se um jovem desalojado e foi recebido por um orfanato católico. Ao longo dos anos desenvolveu uma identidade francesa à prova de tudo. Frequentou escolas francesas, tinha um passaporte francês, tudo. Até cumpriu o serviço militar no exército francês.

- E depois começou a matar.

- Acima de tudo, era utilizado para promover a instabilidade no Ocidente, para levantar problemas aos governos ocidentais. Matava de ambos os lados do muro. Agitava as águas, por assim dizer. Lançava achas para a fogueira. E era muito bom no que fazia. Orgulhava-se de nunca ter falhado uma única missão. Não utilizava as ferramentas que lhe púnhamos à disposição para lhe facilitar o trabalho, as balas com ponta de cianeto, ou as armas que libertavam gás venenoso. Desenvolveu o seu método de matar muito próprio.

- Três tiros no rosto.

- Brutal, eficaz, bastante dramático.

Michael vira os resultados em primeira-mão. Não precisava que Drozdov descrevesse o efeito do método do assassino.

- Ele tinha um agente responsável? - perguntou Michael, com um tom de voz sereno.

- Sim, apenas trabalhava com um agente, um homem chamado Mikhail Arbatov. Cheguei a tentar substituir Arbatov, mas o Outubro ameaçou matar o novo elemento. Arbatov era o mais próximo que o Outubro tinha de uma família. Só confiava em Arbatov e, mesmo assim, apenas o suficiente.

- Há pouco tempo foi assassinado em Paris um Mikhail Arbatov.

- Sim, li sobre isso. A polícia disse que deve ter sido morto por delinquentes.

O relato do jornal descreve-o como sendo um diplomata russo aposentado a viver em Paris. Se há uma coisa que aprendi nesta vida, senhor Osbourne, é que não se pode acreditar em tudo o que se Le nos jornais.

- Quem matou Arbatov?

- O Outubro, é claro.

- Por quê?

- É uma boa pergunta. Talvez Arbatov soubesse demasiado sobre alguma coisa.

Quando o Outubro se sente ameaçado, mata. É a única coisa que sabe fazer.

Exceto pintar. Dizem que tem bastante talento.

- Começou a trabalhar por conta própria? Agora é assassino profissional?

- Dos melhores do mundo, bastante procurado. Arbatov era o seu agente. Enriqueceram bastante em conjunto. Ouvi dizer que havia muita inveja pela forma como Arbatov se aproveitara dos talentos do Outubro. Arbatov tinha muitos inimigos, muita gente que lhe desejava mal. Mas, se está à procura de quem o matou, talvez começasse pelo Outubro.

O sol voltou a desaparecer e as nuvens engrossaram, negras com a promessa de chuva. Passaram por uma mansão de pedra calcária, cercada por relvados amplos. Michael contou-lhe sobre Colin Yardley. Sobre a gravação vídeo da morte. Sobre Astrid Vogel.

Drozdov abanou lentamente a cabeça.

- Imaginaria que alguém com o ofício de Yardley soubesse os perigos de ter uma câmara no quarto. Tenho de admitir que é uma das consequências da velhice que não me incomodam. O eterno desejo pelo corpo da mulher deixou-me finalmente em paz. Tenho os meus cães, os meus livros, e a minha paisagem bucólica de Cotswolds.

Michael riu em silêncio.

Em tempos trabalhou com a Fação do Exército Vermelho. Foi durante essa missão que conheceu Astrid Vogel. Ela passou muitos anos escondida, em Tripoli, em Damasco, nas montanhas Shouf. Pagou muito caro pelo idealismo. Houve qualquer coisa que a voltou a atrair para este mundo. Imagino que tenha sido o dinheiro. - Porque iria o Outubro matar Colin Yardley?

Talvez devesse reformular essa pergunta: O que fez Colin Yardley para que alguém contratasse o melhor assassino do mundo para o matar? Talvez tenha adquirido um míssil Stinger a um traficante de armas do mercado negro chamado Farouk Khalifa, após o que o entregou aos homens que abateram o Voo 002, pensou Michael.

Começou a chuviscar e o tempo arrefeceu. Os cães rodearam as botas de Drozdov, ansiosos por voltar a casa, para junto da lareira. À frente deles surgiu a aldeia de Aston Magna, um aglomerado de casas espalhadas à volta do cruzamento de duas estradas secundárias.

- Oferecia-lhe boleia de volta a Moreton, mas não conduzo desculpou-se Drozdov. - Obrigado, mas vou a pé.

- Sinto muito pelos sapatos - indicou, apontando a bengala ao calçado arruinado de Michael. - Não foi uma muito boa escolha para uma caminhada através de Cotswolds, no inverno.

- Um pequeno preço a pagar pela ajuda que me deu.

Michael parou de andar. Drozdov continuou mais alguns metros, após o que se deteve e virou-se.

- Houve uma morte que ainda não referiu - comentou. O assassinato de Sarah Randolph. Imagino que não tenha a ver com o caso em que está envolvido neste momento. Admiro o seu profissionalismo, senhor Osbourne.

Michael não disse nada, limitando-se a aguardar.

Ela era uma comunista empenhada, uma revolucionária - explicou, abrindo os braços e olhando o céu. - Que Deus nos proteja dos idealistas. A sua Sarah era amiga dos oprimidos do mundo: dos irlandeses, dos árabes, dos bascos. Trabalhou de bom grado para a minha agência. Conhecíamos a verdadeira identidade do Michael. Sabíamos que enviava agentes de infiltração contra as organizações guerrilheiras próximas da nossa causa. Queríamos saber mais acerca dos seus movimentos, por isso colocamos Sarah Randolph no seu caminho. Michael sentiu a cabeça às voltas. O coração acelerou. Tinha dificuldade em ouvir. Drozdov parecia estar a afastar-se dele, a transformar-se numa linha vertical ao fundo de um túnel comprido e escuro. Tentou recuperar o controle das emoções. Receava que Drozdov se apercebesse e se calasse. Queria ouvir tudo. Depois de tantos anos, queria a verdade, por mais dolorosa que fosse.

- Sarah Randolph cometeu um erro terrível - continuou Drozdov. - Apaixonou-se pelo alvo. Disse aos agentes de ligação que pretendia desistir. Ameaçou contar-lhe tudo. Ameaçou entregar-se à polícia e confessar. O oficial de controle decidiu que ela era demasiado instável para prosseguir com a missão. O Centro de Moscou quis eliminá-la, e eu fiquei encarregue do caso. Talvez lhe deva um pedido de desculpas, mas imagino que compreenda que não foi nada pessoal.

Michael debateu-se para tirar um cigarro do maço e levá-lo aos lábios. As mãos tremiam-lhe. Drozdov acercou-se e acendeu o cigarro com um isqueiro de prata com bastante uso.

- Julguei que merecia a verdade, senhor Osbourne, razão pela qual lhe contei tudo o resto. Mas acabou. Faz parte do passado, tal como a Guerra Fria. Regresse à sua esposa e esqueça Sarah Randolph. Ela nunca foi real. E, faça o que fizer, mantenha-se alerta - acrescentou, com os lábios junto ao ouvido de Michael. - Se for atrás do Outubro e cometer um erro que seja, ele mata-o tão depressa que nem vai dar por isso.

Michael regressou a Moreton sob chuva intensa. Quando chegou à aldeia, estava ensopado até os ossos e dormente com o frio. Dirigiu-se ao Rover no estacionamento e fingiu deixar cair as chaves ao tentar abrir a porta. Pôs-se de gatas e perscrutou rapidamente a parte inferior da carroçaria. Não avistou nada de invulgar, por isso entrou e ligou o motor. Colocou o aquecimento no máximo, fechou os olhos e apoiou a testa no volante. Não sabia se a devia odiar por lhe ter mentido, se amá-la ainda mais, por ter querido desistir e ter acabado por pagar com a vida. Imagens dela percorreram-lhe a mente. Sarah a flutuar na sua direção, a sorrir, uma saia comprida sobre botas de camurça. A pele luminosa, de um tom dourado à luz das velas. O corpo arqueado na direção do seu. O rosto esfacelado!

Esmurrou o painel e arrancou com o carro, os pneus a derraparem no pavimento molhado. A van Ford branca seguiu-o até Michael devolver o Rover no

Aeroporto de Heathrow.

Michael apanhou o ônibus do serviço de aluguer de carros até o Terminal

Quatro e correu para o interior. A fila para o check-in no balcão da TransAtlantic Airlines era interminável, por isso procurou um telefone e ligou para o gabinete de Elizabeth. Foi o secretário, Max Lewis, quem atendeu e pediu a Michael que aguardasse, enquanto ia chamar Elizabeth a uma reunião. Michael pensou no que lhe dizer. Decidiu não lhe contar nada, por enquanto. Era um assunto demasiado complicado, demasiado emocional, para discutir ao telefone. Elizabeth atendeu.

- Estou no aeroporto. Vou apanhar o avião daqui a pouco, e queria apenas dizer que te amo - disse Michael.

- Está tudo bem, Michael? Pareces incomodado com alguma coisa.

- Foi uma manhã muito comprida, só isso. Conto-te tudo quando chegar a casa, logo à noite. Como te sentes? Estás pronta para amanhã?

- O mais possível. Neste momento estou a tentar não pensar muito nisso. Tenho uma pilha de coisas para despachar ainda hoje, e isso ajuda.

Michael virou-se para confirmar se a fila para o check-in tinha reduzido. Uma centena de pessoas aguardava em fila, como refugiados num centro de processamento, a bagagem aos pés, os rostos exasperados. Três jovens entraram no terminal. Todos usavam um boné de basebol. Todos seguravam um saco de couro preto. Estavam vestidos de modo informal, com calças de ganga e sapatos de tênis, cabelo escuro por baixo dos bonés, pele cor de azeitona.

Michael observou-os. Deixou de ouvir o que Elizabeth estava a dizer. Os três homens pararam e pousaram os sacos. Agacharam-se ao lado dos sacos e abriram-nos.

- Espera um pouco, Elizabeth - disse Michael. - Michael, o que foi?

Michael não respondeu, limitou-se a observar.

- Responde-me, Michael, que raio! O que se passa?

Em uníssono, os homens levaram as mãos às palas dos bonés e os rostos desapareceram atrás de véus de seda negra.

- Baixem-se! Baixem-se! - bradou Michael. Largou o receptor.

Os homens levantaram-se, de armas automáticas e granadas em riste.

- Armas! Armas! Baixem-se! - gritou Michael.

Os terroristas lançaram granadas para a multidão e começaram a disparar.

Michael correu na direção deles, aos berros.

Na baixa de Washington, Elizabeth gritava para o telefone. Ouviu Michael a gritar, depois tiros, finalmente explosões. Depois a linha ficou em silêncio. - Ai, meu Deus, Michael! Michael!

Procurou o controle remoto, ligou o televisor do gabinete e sintonizou a CNN. Estava a meio de uma qualquer reportagem idiota sobre os benefícios dos abacates para a saúde.

Percorreu o gabinete. Mordeu as unhas. Max sentou-se ao seu lado e esperou, dando-lhe a mão. Dez minutos depois, Elizabeth mandou-o embora e fez algo que não fazia há vinte anos.

Fechou os olhos, juntou as mãos e rezou.


LONDRES

No gabinete de primeiro andar da sua casa em St. John's Wood, o Diretor telefonou a Mitchell Elliott a partir de uma linha segura.

- Creio que o senhor Osbourne pode revelar-se um problema, senhor Elliott. Ontem à noite teve uma conversa interessante com um homem do Serviço de Espionagem, a qual escutamos com um microfone direcional localizado na rua. Esta manhã encontrou-se com um certo Ivan Drozdov, um desertor da KGB que em tempos supervisionou as atividades do nosso assassino. Do outro lado da linha, Elliott suspirou profundamente.

- Escusado será dizer que ele sabe muita coisa, e provavelmente desconfia de muito mais - continuou o Diretor. - O nosso senhor Osbourne é um adversário bastante valoroso. Na minha opinião, não o devemos menosprezá-lo.

- Não o menosprezo, Diretor. Pode ter a certeza disso.

- O que se passa no seu lado?

O Osbourne e a mulher encontraram umo disquete com os apontamentos de Susanna Dayton e uma cópia do artigo. Ao que parece, conseguiram quebrar o código de segurança. Entregaram o material aos editores do Washington Post.

- Um desenvolvimento infeliz - comentou o diretor, tossicando. - Parece-me que a Sra. Osbourne também se encontra em posição de criar problemas. - Já a mandei vigiar.

- Espero que desta vez seus homens se comportem de uma forma mais profissional. No presente estado dos acontecimentos, não precisamos que a melhor amiga de Susanna Dayton também apareça morta. Já o marido, é outro caso. Durante a carreira fez a sua dose de inimigos. Seria ocasional, caso um desses inimigos aparecesse e se vingasse. - Quanto a isso não há problema.

- Tem a bênção da Sociedade, senhor Elliott.

- Obrigado, Diretor.

- Enquanto este assunto se mantiver no campo do financiamento político, imagino que se consiga proteger. Vai ser embaraçoso e sujo, é claro. Talvez lhe surja uma multa pesada, alguma especulação desconfortável por parte dos meios de comunicação, mas o seu projeto vai sobreviver. Contudo, se o senhor Osbourne descobrir algo que se aproxime da verdade... Bem, creio que não preciso de explicar-lhe as consequências.

- É claro que não, Diretor. E quanto a Ivan Drozdov, o desertor? Representa algum problema?

- Não tenho certeza, mas não estou disposto a correr riscos. O assunto Drozdov está neste momento sendo tratado.

- Uma jogada sábia.

- Também achei. Boa tarde, senhor Elliott.

Em Aston Magna, Ivan Drozdov estava sentado à lareira, a ler à luz fraca que entrava pelas portas de correr, quando ouviu bater. Os corgis saltaram do cesto e correram até a porta da casa, a ladrar em fúria. Drozdov seguiu-os lentamente, as pernas rígidas por ter estado sentado. Abriu a porta e viu um jovem de macacão azul, o rosto como o de um menino do coro.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Drozdov. O rapaz puxou de uma arma com silênciador.

- Faça as pazes com Deus - indicou. Drozdov retesou-se.

- Sou ateu - replicou calmamente.

- É uma pena - retorquiu o jovem.

Ergueu a pistola e alvejou Drozdov duas vezes no coração.


AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

 

O pistoleiro mais próximo de Michael disparava furiosamente para a multidão. Avistou Michael a investir, apontou a arma automática e disparou. Michael atirou-se para trás de um quiosque de câmbio, com balas a fazerem ricochete no chão a seu lado. Duas pessoas agachavam-se com ele, uma mulher que gritava em alemão e um padre francês que murmurava o Pai-nosso.

O terrorista perdeu o interesse em Michael e voltou a apontar a arma aos passageiros indefesos. Michael espreitou por trás do quiosque. O ataque começara há menos de quinze segundos, mas para Michael, agachado por trás do quiosque, parecia uma eternidade. O chão estava coberto de mortos e de moribundos, e de pessoas aterrorizadas que tentavam em vão proteger-se atrás de bagagens e de balcões.

Raios partam! Onde está a força de segurança? pensou Michael.

Um dos atacantes fez uma pausa para recarregar. Levou a mão à mala, retirou a cavilha de outra granada e atirou-a para trás do balcão da TransAtlantic. O edifício estremeceu com o abalo. Michael viu um par de corpos a serem lançados pelo ar, os membros despedaçados. O ar tresandava com o cheiro de fumo e de sangue. Os gritos das vítimas quase abafavam o matraquear das armas automáticas.

Michael desejou ter uma arma. Olhou para a direita. Quatro agentes da força antiterrorista da polícia britânica assumiam posições de disparo atrás de outro balcão. Dois deles levantaram-se, apontaram e dispararam. A cabeça de um dos pistoleiros explodiu numa nuvem cor-de-rosa de sangue e de massa encefálica. Os dois terroristas restantes responderam ao fogo e alvejaram um dos agentes. Os policiais ergueram-se por detrás da barreira, armas disparando. Um segundo pistoleiro tombou, o corpo perfurado pelas balas.

O último terrorista desistiu da luta. Recuou até a porta, sem nunca deixar de disparar. Atravessou a porta automática, com vidros a estilhaçarem-se à sua volta.

Michael podia ver um quarto elemento da equipe ao volante do carro de fuga, um Audi metalizado. Levantou-se, passou por uma série de portas paralelas e correu pelo corredor de embarque, saltando por cima de viajantes e de funcionários do aeroporto deitados no chão.

O terrorista ao volante acelerava nervosamente o motor. Meia dúzia de seguranças corria pelo terminal, as armas em riste. Michael corria agora pelo passeio, as mãos estendidas.

O último pistoleiro encontrava-se a vinte metros de distância, prestes a entrar para o carro. O condutor escancarou a porta traseira. O terrorista estava quase a entrar para o carro quando ergueu o olhar e viu Michael a correr na sua direção. Virou-se e tentou empunhar a arma automática.

Michael baixou o ombro e derrubou o pistoleiro. O impacto fez com que o atacante largasse a arma.

Michael agarrou o homem pelo pescoço e golpeou-o brutalmente no rosto. O primeiro murro partiu-lhe o nariz, o segundo fraturou-lhe o malar e deixou-o inconsciente.

O terrorista ao volante abriu a porta e começou a sair do carro, a pistola automática na mão enluvada. Michael procurou freneticamente a metralhadora caída. Agarrou-a e disparou através do para-brisa do Audi. O pistoleiro ainda conseguiu disparar dois tiros ao acaso, antes de cair no passeio, sem vida. Com o coração aos saltos, Michael viu um lampejo de uma cor escura e aquilo que pensou ser uma arma. Girou sobre o joelho e apontou a um dos agentes de segurança ingleses.

- Largue a arma com calma, amigo - disse calmamente o policial. - Já acabou tudo. Largue a arma.

Wheaton, o Chefe da Estação de Londres da CIA, foi buscar Michael ao Aeroporto de Heathrow e levou-o para a cidade no banco de trás de um sedan do governo, conduzido por um motorista. Michael encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos. Fora interrogado durante uma hora por um oficial da polícia britânica e por dois homens do MI5. Durante algum tempo, Michael manteve a cobertura: um empresário americano que regressava a Nova York após uma breve reunião em Londres. Por fim, chegou alguém da embaixada. Michael pediu para falar com Wheaton, e este telefonou para a polícia e contou a verdade.

Michael nunca matara ninguém e não estava preparado para a reação que teve. Nos momentos que seguiram o combate, sentiu uma satisfação selvagem, um entusiasmo estranho que se assemelhava à sede de sangue. Os terroristas eram homens malignos que tinham chacinado pessoas inocentes. Mereciam uma morte violenta e dolorosa. Estava satisfeito por ter eliminado um deles e por ter esmurrado o rosto do outro. Passara a sua carreira a perseguir terroristas, usando apenas o seu inteleto e o seu talento para as armas. Finalmente pudera utilizar os punhos e uma arma, com efeito, uma arma que servira para massacrar pessoas inocentes. Sentia-se bem.

Começava agora a ser dominado pela exaustão, que lhe pressionava o peito e lhe fazia latejar a cabeça. Com a adrenalina eliminada das veias, as mãos já não lhe tremiam. Era acometido por ondas de náusea. Fechou os olhos e viu sangue a voar, cabeças a explodir, gritos e o matraquear das armas automáticas. Viu o condutor de fuga a tombar para trás, sentiu a arma a recuar-lhe na mão. Tirara uma vida. Uma vida de alguém mau, mas uma vida, não obstante. Já não se sentia bem. Sentia-se sujo.

Michael esfregava a mão direita.

- Talvez devesse ver o que se passa - comentou Wheaton, como se Michael sofresse de uma lesão antiga. Michael ignorou-o.

- Qual o número de baixas?

- Trinta e seis mortos, mais de cinquenta feridos, alguns com bastante gravidade. Os ingleses esperam que o número de mortes aumente.

Americanos?

- Pelo menos vinte dos mortos são americanos. A maior parte das pessoas que aguardava pelo check-in pretendia embarcar no voo para Nova York. Os restantes mortos são ingleses. Já agora, falei com a sua esposa. Ela sabe que está bem.

Michael lembrou-se de como a deixara. Num momento estavam a falar, no outro largara o telefone e começara a gritar. Interrogou-se o que teria escutado Elizabeth. Teria ouvido tudo, as explosões, os tiros, os gritos, ou teria a linha sido cortada? Imaginou-a no gabinete, preocupadíssima, e sentiu-se mal.

Queria desesperadamente falar com ela, mas não à frente de Wheaton.

Tinham entrado em Londres e seguiam a leste de Cromwell Road.

- Como é óbvio, as hienas da mídia estão ansiosas por falar com você - avisou Wheaton. - As testemunhas contaram-lhes sobre o herói de fato que matou um dos terroristas e subjugou outro. A polícia está a dizer-lhes que o homem deseja permanecer anônimo, pois receia uma retaliação por parte da Espada de Gaza. Por agora ainda acreditam, mas sabe Deus quantos policiais de Londres têm conhecimento da verdade. Basta que um deles dê com a língua nos dentes para termos um problema bastante sério.

- A Espada de Gaza já reivindicou o atentado?

- Enviaram um fax para o The Times há alguns minutos. Os ingleses estão a analisá-lo e já enviamos uma cópia para o CTC de Langley. Parece autêntico.

Deve ser revelado aos media em breve.

- Uma vingança pelos ataques aéreos aos campos de treino?

- É claro.

Dirigiram-se para norte por Park Lane, depois por Mayfair, para Grosvenor Square. O carro encaminhou-se para a entrada principal da embaixada americana. Michael gostaria que pudessem utilizar uma entrada subterrânea, mas talvez já não fizesse grande diferença. Saiu do carro. Sentia-se tonto e doía-lhe o joelho. Devia tê-lo magoado durante o confronto, mas a adrenalina ocultara a dor até aquele momento. Os Marines colocaram-se em sentido e fizeram continência quando Michael entrou no complexo da embaixada, com Wheaton a seu lado. O embaixador e os adidos aguardavam, com os restantes funcionários da grande embaixada atrás deles. O embaixador começou a aplaudir, sendo imitado pelos outros. Michael passara toda a carreira a trabalhar nas sombras. Os louvores eram atribuídos em segredo. Quando tinha um dia bom no gabinete, não podia contar a ninguém, nem mesmo a Elizabeth. Agora, os aplausos dos membros da embaixada envolviam-no e sentiu um arrepio na nuca.

O embaixador avançou e levou a mão ao ombro de Michael.

- Imagino que neste momento não tenha grande vontade de celebrar, mas quero que saiba que estamos muito orgulhosos de si.

- Obrigado, senhor embaixador. Fico muito grato.

- Há mais alguém que deseja falar com você. Siga-me, por favor.

Quando Michael entrou na sala de comunicações, entre Wheaton e o embaixador, podia ver o selo presidencial na tela maior. O embaixador pegou um telefone, murmurou algumas palavras para o bocal e desligou. Segundos depois, o selo presidencial dissolveu-se e James Beckwith apareceu, sentado numa poltrona branca, ao lado da lareira da Sala Oval, vestindo uma camisa e uma blusa de lã.

- Michael, não há palavras que possam expressar a gratidão e o orgulho que sentimos - começou o Presidente a dizer. - Pondo em risco a sua própria integridade física, dominou sozinho um terrorista da Espada de Gaza e matou outro. A sua ação poderá ter salvo inúmeras vidas e desferiu um rude golpe nesse bando de covardes. Vou insistir para que receba a mais alta das condecorações. Apenas gostaria de a poder colocar pessoalmente no seu peito, à frente da nação, pois hoje o seu país ficaria bastante orgulhoso de si. Michael esboçou um sorriso.

- Estou habituado a trabalhar em segredo, Senhor Presidente, e, se não se importar, prefiro continuar assim. Beckwith exibiu um sorriso rasgado.

- Já imaginava que assim fosse. Além disso, é demasiado valioso para ser desperdiçado numa fotografia oportunista. Graças ao meu chefe de gabinete, já tenho quanto baste.

A câmara fez um plano mais alargado, revelando os outros homens sentados à volta do Presidente: o Chefe de Gabinete Vandenberg, o diretor da CIA Clark, o Conselheiro para a Segurança Nacional Bristol. Num dos extremos da tela estava um homem pequeno de terno de grife que lhe assentava mal, as mãos cruzadas sobre o colo, o rosto pouco visível, como qualquer bom espião que se preze. Michael soube de imediato que se tratava de Adrian Carter.

- Peço desculpa por interrompê-lo, Senhor Presidente - disse Michael. - Será que a câmara poderia deslocar-se um pouco para a esquerda? Não consigo ver aquele homem minúsculo sentado no divã.

A câmara moveu-se, revelando o rosto de Carter. Como já era habitual, parecia com sono e enfadado, mesmo estando sentado na Sala Oval, com o Presidente e a respectiva equipe de segurança nacional à sua volta.

- Ora vejam só, como é que deixaram entrar na Sala Oval um bronco como o Adrian Carter? - gracejou Michael. - Tenha cuidado, Senhor Presidente. Ele rouba cinzeiros e toalhas de hotel. Se fosse a si, punha-o sob vigilância. -Já tirou uma dúzia de pacotes de M&M presidenciais - replicou Beckwith, claramente divertido. Carter acabou finalmente por sorrir.

- Se vais começar a agir como uma espécie de herói americano, fico com o estômago às voltas. Lembra-te de que estou com você desde o início, Michael. Sei onde os corpos estão enterrados, literalmente. Se fosse a ti, tinha cuidado.

- Michael, precisamos de falar sobre outra coisa - disse Beckwith, quando as gargalhadas esmoreceram. - Vou deixar que o Carter e o diretor Clark o informem dos pormenores.

- Vou ser direto, Michael - começou Clark.

O diretor da CIA era um político, um antigo senador do New Hampshire que se orgulhava do fato de falar como uma pessoa normal. Como resultado, o léxico do mundo da espionagem deixava-o constantemente baralhado. Era alto e magro, com caracóis grisalhos rebeldes e usava laço. Parecia mais adequado a uma posição catedrática em Dartmouth do que à direção de Langley.

- Por mais estúpido que pareça, a Espada de Gaza gostaria de se encontrar connosco - Clark pigarreou. - Deixe-me ser mais específico. A espada de Gaza não se quer encontrar connosco, quer encontrar-se com você.

Como fizeram o pedido?

. Através da nossa embaixada em Damasco, há cerca de uma hora. ?- Porquê eu?

- Ao que parece, sabem exatamente quem é, e qual o seu trabalho. Dizem que se querem encontrar com o homem que mais sabe acerca do grupo, e essa pessoa é o Michael.

- Como irá processar-se o encontro?

- Amanhã de manhã, no primeiro ferry entre Dover e Calais. Querem que espere no convés, a meio do barco, e o representante deles fará a abordagem. Sem observadores, sem aparelhos de gravação, sem câmaras. Se virem alguma coisa de que não gostam, o encontro fica sem efeito.

- Quem vai ser o representante deles?

- Muhammad Awad.

- O Awad é o segundo membro mais importante da organização. O simples fato de o quererem colocar a bordo de um ferry e cara a cara com um agente da CIA é notável.

- Por isso mesmo, deve ser bom demais para ser verdade interveio Carter, enquanto a câmara fazia uma panorâmica para captar a sua imagem. - Não gosto disto. Vai contra todas as nossas regras quanto a encontros deste gênero. Somos nós que controlamos o local. Nós estabelecemos as condições. Mais do que ninguém, devia saber disso.

- Imagino que seja contra este encontro - disse Michael.

- Cento e dez por cento.

- Gostaria de ouvir sua reação, Michael - adiantou Beckwith.

- Adrian tem razão, Senhor Presidente. Em geral, não nos encontramos com terroristas de renome em situações como esta. A doutrina da Agência diz que somos nós a controlar o encontro: a data, o local, as regras básicas. Posto isto, creio que neste caso devemos esquecer as regras.

- E se o objetivo for assassiná-lo?

Se a Espada de Gaza me quisesse morto, haveria formas muito mais simples de o fazer, e não preparar um encontro elaborado, a bordo ao ferry entre Dover e Calais. Receio bem que bastaria enviarem um atirador para Washington, que esperasse à porta da sede.

- Bem visto - admitiu Clark.

- Julgo que apenas querem falar - continuou Michael. - E julgo que seríamos tolos se não escutássemos o que eles têm a dizer.

- Não concordo, Michael - discordou Carter. - Estamos a falar de um dos piores grupos terroristas em atividade. Eles falam todos os dias com as suas ações. Muito sinceramente, estou-me borrifando para aquilo que podem ter para dizer. - Carter olhou para Beckwith e disse: - Sinto muito pela linguagem, Senhor Presidente.

- Eu avisei-o de que ele não era uma pessoa decente, Senhor Presidente - disse Michael.

O conselheiro para a Segurança Nacional William Bristol esperou que as gargalhadas esmorecessem.

- Acho que vou apoiar o Michael, Senhor Presidente. É verdade, Muhammad Awad é um terrorista perigoso que não merece uma audiência só porque a pede. No entanto, muito sinceramente, gostaria de ouvir o que tem a dizer. Este encontro pode ser proveitoso. Certamente poderá dar à CIA informações preciosas sobre os elementos e sobre a maneira de pensar do grupo. E concordo com o Michael noutro ponto: se a Espada de Gaza o quiser matar, há maneiras mais fáceis de o conseguir.

O Presidente dirigiu-se a Vandenberg. - Qual é a sua opinião, Paul?

Detesto ir contra si, Bill, pois a política externa é a sua especialidade e não minha, mas julgo que não temos nada a ganhar com um encontro com o líder de um bando de vilões sanguinários como a Espada de Gaza. O Adrian tem razão: a Espada de Gaza fala com ações e não com palavras. E temos de pensar noutra coisa. Não gostaria de ter de explicar ao povo americano por que motivo nos encontramos com Muhammad Awad numa altura como esta. A forma como tem lidado com a crise tem sido exemplar e os Americanos já o recompensaram. Não gostaria de ver essa boa vontade desperdiçada só porque um terrorista como Muhammad Awad quis trocar dois dedos de conversa.

Beckwith caiu num silêncio pensativo. Michael sabia que não era bom sinal. Nunca estivera na presença do Presidente, mas já ouvira histórias sobre o poder de Paul Vandenberg. Se este não quisesse que o encontro tivesse lugar, provavelmente o encontro não se realizaria.

Por fim, Beckwith olhou para a câmara e dirigiu-se a Michael em Londres, e não aos homens sentados à sua volta.

- Michael, se estiver disposto a avançar com isto, gostaria de saber o que Muhammad Awad tem a dizer. Sei que vai comportar riscos, e sei que o Michael é casado.

- Vou encontrar-me com ele - respondeu Michael simplesmente.

Muito bem - declarou Beckwith. - Desejo-lhe muito boa sorte. Falamos amanhã. Depois, a imagem de Washington desvaneceu-se.

LONDRES

O embaixador permitiu que Michael utilizasse o seu gabinete para telefonar a Elizabeth, em Washington. Michael ligou para o número privado, mas foi Max, o secretário, quem atendeu. Mostrou-se aliviado ao ouvir a voz de Michael e depois explicou que Elizabeth já partira para Nova York e que poderia ser contatada mais tarde, no apartamento do pai na Quinta Avenida. Michael sentiu uma pontada de fúria momentânea - como podia ela ter saído do gabinete sem esperar para lhe ouvir a voz? - mas depois sentiu-se um tolo. Saíra mais cedo do trabalho pois de manhã iria extrair e fertilizar os óvulos no Cornell Medical Center, em Nova York. Durante a confusão do atentado, Michael esquecera-se completamente. E concordara em encontrar-se com Muhammad Awad no meio do Canal da Mancha, o que atrasaria a sua chegada a Nova York mais dois dias. Elizabeth ficaria furiosa, e com toda a razão. Michael disse a Max que lhe telefonaria mais tarde para Nova York e desligou.

Na verdade, Michael ficou aliviado por não ter falado com Elizabeth. Não queria ter uma conversa como aquela numa linha monitorizada da embaixada. Dirigiu-se ao gabinete de Wheaton e encontrou-o sentado à secretária, a apertar uma bola de tênis, um Dunhill entre os lábios exangues.

- Perdi a mala em Heathrow - explicou Michael. - Tenho de fazer umas compras antes que as lojas fechem.

Por acaso, não pode ir - contrapôs Wheaton com desdém. Para começar, não gostava que Michael estivesse a trabalhar no seu território. O fato de Michael ser a coqueluche do momento também não ajudava. - O Carter quer vê-lo quieto e seguro. Temos uma casa de segurança perto de Paddington Station. Vai ver que é muito confortável.

Michael resmungou consigo mesmo. As casas de segurança da Agência eram o equivalente na espionagem a um hotel barato. Conhecia muito bem o apartamento de Paddington Station. Utilizara-o ao longo dos anos para esconder vários agentes de penetração assustados. A última coisa que ele queria era passar lá a noite como hóspede e não como ama-seca. Michael sabia que não valia a pena resistir. Ia encontrar-se com Muhammad Awad contra a vontade de Carter e não queria enfurecê-lo ainda mais, reclamando por ter de passar uma noite na casa de segurança de Paddington.

Continuo a precisar de roupa - insistiu Michael.

- Faça uma lista e eu mando alguém comprar.

- Preciso de apanhar ar. Preciso de fazer alguma coisa. Se tiver de passar as próximas doze horas trancado numa casa de segurança a ver televisão, vou dar em louco.

Claramente irritado, Wheaton levantou o receptor do telefone interno e murmurou algumas palavras ininteligíveis para o bocal. Momentos depois surgiram dois agentes à porta, vestidos com ternos cinza-claro idênticos.

- Cavalheiros, o senhor Osbourne gostaria de passar a tarde no Harrods.

Garantam que não lhe acontece nada.

- Porque não envia um par de Marines fardados? - queixou-se Michael. - E, já agora, a Marks and Spencer serve perfeitamente.

Apanharam um táxi para Oxford Street, um dos agentes sentado ao lado de Michael no banco, o outro apertado num banco desdobrável. Michael entrou na Marks & Spencer e comprou dois pares de calças de bombazina, dois pulôveres de algodão, uma blusa cinzenta de lã, roupa interior e peúgas, e um casaco verde impermeável. Os vigilantes seguiram-no, enquanto reviravam pilhas de blusas e fileiras de ternos como um par de comunistas na sua primeira viagem ao Ocidente capitalista. De seguida entrou numa drogaria e comprou artigos de higiene: lâminas e creme de barbear, pasta e escova de dentes,

desodorizante. Queria andar, por isso levou as compras ao longo de Oxford Street, a olhar para as montras como um empresário enfadado a matar tempo, sempre com o instinto a fazê-lo olhar para trás, em busca de perseguidores. Não viu ninguém, salvo os homens da Agência, vinte metros mais atrás.

Chuviscava. O lusco-fusco caiu como um véu. Michael abriu caminho por entre a multidão que entrava e saía da estação de metro de Tottenham Court Road. Adorava o cheiro do final de tarde de Outono em Londres. Chuva no passeio. Gases dos escapes. Cerveja e cigarros nos pubs. Lembrava-se de noites como aquela, em que saía do gabinete com o seu terno azul e o sobretudo creme de um vendedor, dirigindo-se ao Soho para se encontrar com Sarah no café, ou no bar que ela frequentava, cercada por bailarinos, por escritores, ou por atores. Michael era um estranho nesse mundo, um símbolo da convenção e de tudo o que desprezavam, mas, na presença deles, Sarah apenas tinha olhos para si. Ignorava as regras românticas do clã. Dava-lhe a mão. Beijava-lhe os lábios. Partilhava intimidades sussurradas e recusava-se a divulgá-las, quando interrogada.

Ao atravessar Shaftesbury Avenue, Michael interrogou-se quanto disso seria verdade, e o que não passaria de invenção. Tê-lo-ia amado? Teria representado desde o início? Porque teria pedido aos russos para desistir? Imaginou Sarah no apartamento caótico, o corpo a subir ao seu encontro à luz das velas, o cabelo longo a cair-lhe sobre os seios. Sentiu o aroma do cabelo, do hálito, saboreou o sal na pele translúcida. O ato de amar fora religioso. Caso fosse mentira, Sarah Randolph era a melhor agente que alguma vez encontrara. Interrogou-se se ela teria descoberto algo valioso. Talvez devesse tê-la declarado ao Departamento de Pessoal. Eles teriam investigado os seus antecedentes, tê-la-iam colocado sob vigilância, descobririam os encontros que mantinha com o controlador russo, e tudo poderia ter sido evitado. Pensou no que diria a Elizabeth. Promete que nunca vais mentir-me, Michael. Podes ocultar-me coisas, mas nunca me mintas. Quem me dera poder contar-te a verdade, pensou, mas nem eu sei qual é.

Michael sentou-se num banco em Leicester Square e esperou que os vigilantes se juntassem a ele. Apanharam um táxi até a casa de segurança, localizada num prédio branco ofensivo, com vista para Paddington Station. O interior era pior do que o recordado por Michael: mobília reles manchada, cortinados cheios de pó, copos e pratos de plástico numa cozinha em estado de sítio. O fedor dos quartos lembrava-lhe a residência universitária em Dartmouth. Wheaton abastecera o frigorífico com carnes frias e cerveja encomendadas à loja Sainsbury's. Michael tomou uma ducha e vestiu uma muda da roupa nova. Quando voltou à sala, os agentes comiam sanduíches e viam futebol inglês numa televisão de imagem instável. A cena tinha algo que o deprimia. Precisava de telefonar a Elizabeth, em Nova York, mas sabia que iriam brigar, algo que não queria fazer com a Agência à escuta.

- Vou sair - anunciou Michael.

- O Wheaton diz que tem de ficar aqui - avisou um dos homens, com a boca cheia de presunto, queijo cheddar e pão francês.

- Não quero saber daquilo que o Wheaton diz. Não vou passar a noite aqui sentado com dois palhaços. - Michael fez uma pausa.

- Muito bem, podemos ir juntos, ou posso livrar-me de vocês em cinco minutos, e depois explicam ao Wheaton o que se passou.

Seguiram de carro até Belgravia e estacionaram à frente da casa dos Seymour, em Eaton Place. Os guardas esperaram no seda" da Agência. A rua brilhava com a chuva e com a luz das fachadas de marfim do terraço georgiano. Pelas janelas, Michael pôde ver Helen na cozinha, concentrada no desastre culinário dessa noite, e Graham no andar de cima, na sala, a ler o jornal. Percorreu os degraus, molhados da chuva, e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen veio abrir e beijou-lhe a face.

- Que surpresa maravilhosa - exclamou.

- Importas-te que venha incomodar?

- É claro que não. Estou a fazer bouillabaisse.

Tens que chegue para mais um? - perguntou Michael, com o estômago instintivamente a dar uma volta.

- Mas é claro, meu querido - ronronou Helen. - Vai lá acima beber alguma coisa com o Graham. Este atentado em Heathrow deixou-o muito perturbado. Ai, meu Deus, foi uma coisa tão horrível.

- Eu sei - garantiu Michael. - Infelizmente, estava lá.

- Estás a brincar! - exclamou Helen. Depois olhou para a expressão de Michael. - O, não estás a brincar, pois não, Michael? Estás com um ar terrível, coitadinho. A bouillabaisse vai fazer-te sentir melhor.

Quando Michael entrou na sala, Graham ergueu o olhar.

- Ora vejam só, o herói de Heathrow. - Pousou o The Evening Standard, cuja manchete proclamava TERROR NO TERMINAL QUATRO.

Uma travessa com brie e com patê estava em cima da mesa de centro, ao lado de uma fatia grossa de pão. Graham já devorara metade. Michael barrou um pedaço de pão com queijo e olhou desconfiado para o patê.

- Não te preocupes, meu caro. Comprei-o numa loja de Sloane Square. Ela tem vindo a ameaçar que vai aprender a fazê-lo em casa. Não tarda muito vai começar a cozer pão, e nessa altura estou perdido.

Em fundo, Michael podia ouvir as notícias da BBC na aparelhagem alemã de Graham. Este tinha um ótimo ouvido e poderia ter sido um pianista sinfônico, caso os serviços secretos não lhe tivessem deitado a mão. O seu talento atrofiara ao longo dos anos, como acontece com uma segunda língua que não se fala. Utilizava o Steinway de cauda uma ou duas vezes por semana, enquanto Helen assassinava o jantar, e escutava outros a tocar música. Michael ouviu uma testemunha a descrever o viajante de terno azul que matara um terrorista e incapacitara outro.

- Tenho de telefonar à Elizabeth, e não quero metade da Estação de Londres a ouvir a conversa. Importas-te que use o teu telefone? Graham apontou para o telefone em cima da mesa de apoio.

- Preciso de um pouco mais de privacidade. Ela não vai gostar do que tenho para lhe dizer.

- O quarto fica ao fundo do corredor.

Michael sentou-se na beira da cama, pegou no telefone e marcou o número.

Elizabeth atendeu ao primeiro toque, o tom de voz agitado.

Meu Deus, Michael, onde tens estado? Estou preocupadíssima.

Não queria que a conversa começasse dessa forma. O primeiro instinto foi culpar a Agência, mas Elizabeth há muito que perdera a paciência para desculpas sobre as exigências únicas do seu trabalho.

- O Wheaton disse-me que tinha falado com você. Quando pude usar um telefone, já tinhas partido para Nova York. Além disso, queria um aparelho sem escutas.

- Onde estás?

- com a Helen e o Graham.

Elizabeth passara bastante tempo com os Seymour e gostava bastante do casal. Dois anos antes, numa altura em que Graham estivera em Washington para um trabalho de ligação contraterrorista, os quatro tinham passado um fim-de-semana prolongado na casa de Shelter Island.

- Porque não estás a caminho de casa? A extração está marcada para as dez da manhã. Preciso que aqui estejas.

- Já não há mais voos. Não vou conseguir chegar a tempo.

- Michael, trabalhas para a Central Intelligence Agency. Eles conseguem desencantar um avião. Diz-lhes quais são as circunstâncias. De certeza que vão ser compreensivos.

- Não é assim tão simples. Além disso, custa dezenas de milhar de dólares. Não vão fazer isso por mim.

Elizabeth suspirou profundamente. Michael ouviu o isqueiro barato e ela parou de falar o tempo suficiente para acender outro cigarro Benson & Hedges. - Tenho passado o dia a ver a CNN - disse, mudando de assunto de repente. - Falaram sobre uma testemunha que disse que um passageiro prendeu um dos terroristas e abateu outro com a arma dele. O homem que descreveram era muito parecido com você. - O que te disse o Wheaton?

- Ah não, Michael, não vou deixar que vocês acertem as agulhas com a história que andam a contar. O que aconteceu? Quero a verdade.

Michael contou-lhe.

Meu Deus do céu! Não podias ficar escondido e esperar que resolvessem as coisas? Tinhas de te aventurar? De te armar em herói e arriscar a vida?

- Não me estive a armar em herói, Elizabeth. Reagi a uma situação. Fiz aquilo para que me treinaram e devo ter conseguido salvar algumas vidas. - Então parabéns. O que queres que eu faça? - A voz tremia com a emoção. - Que me levante e seja a primeira a aplaudir por quase ter feito de mim uma viúva?

- Eu não fiz quase de ti uma viúva.

- Michael, eu ouvi um estranho na televisão dizendo que um terrorista te apontou uma arma e que você conseguiu matá-lo antes que ele te matasse. Não me minta.

- Não foi assim tão dramático.

- Então por que o matou?

- Porque não tinha alternativa. - Michael hesitou. - E porque merecia morrer. Há vinte anos que persigo pessoas como estas, mas nunca as tinha visto em ação. Hoje tive essa oportunidade. Foi pior do que imaginei.

Michael não estava em busca de compreensão, mas as suas palavras atenuaram a ira da esposa.

- Oh, sinto tanto. Mas como está você, afinal de contas? - perguntou Elizabeth.

- Estou bem. Quase quebrei a mão esmurrando o cara, e devo ter batido como o joelho em algum lugar, porque dói como o diabo. Mas de resto estou bem.

- É bem feito - replicou, ao que acrescentou rapidamente -, mas vou dar beijinhos em todo lugar, quando chegar em casa, amanhã.

Michael hesitou. Elizabeth tinha o radar em potência máxima.

- Você volta amanhã, não volta?

- Surgiu um imprevisto. Tenho de passar aqui mais um dia.

- "Surgiu um imprevisto." Então, Michael, consegue fazer melhor do que isso.

- É verdade. Quem me dera poder dizer do que se trata, mas não posso.

- Seja o que for, por que não pode ser outra pessoa a tratar do assunto?

- Porque só eu é que posso. - Michael fez uma pausa. - Mas há uma coisa que posso dizer: foi o Presidente em pessoa que me deu as ordens.

- Não me interessa quem te deu as ordens! - retorquiu Elizabeth. - Prometeu que voltaria a tempo. Agora quebra essa promessa.

- Elizabeth, o caso não está nas minhas mãos.

- Uma porra! Está tudo nas suas mãos. Você faz exatamente o que quer. Sempre fez.

- É só mais um dia e depois regresso. Vou direto a Nova York. Chego a tempo da implantação.

- Michael, não quero que se incomode. Por que não fica em Londres mais um dia ou dois? Vai ao teatro, ou algo assim.

- Isso não é justo, Elizabeth, e não está ajudando.

- Pode crer que não é justo.

- Não posso fazer nada.

- Faça o que fizer, Michael, não precisa voltar às pressas por minha causa, pois não sei se quero te ver.

- O que está a dizendo?

- Não sei o que estou dizendo. Estou zangada, magoada e desapontada com você. E estou com medo, e nem acredito que você vai me obrigar a passar por isso sozinha.

- Não tenho escolha, Elizabeth. É o meu trabalho. Não tenho escolha.

- Tem sim, Michael. Tem escolha. E isso é o que mais me assusta.

Ficou em silêncio por um instante, o zumbido da ligação por satélite era o único som em linha. Michael esgotara o que dizer. Queria dizer que a amava, o quanto lamentava, mas isso parecia tolo.

- Quando estávamos ao telefone, em Heathrow, antes do ataque - disse Elizabeth, por fim -, disse que queria contar uma coisa.

Michael filtrou a confusão e a violência do atentado em Heathrow e percebeu que estivera prestes a contar o que descobrira sobre Sarah. Não queria piorar a situação dizendo a Elizabeth que investigara a morte da antiga amante.

- Não me lembro do que estávamos falando - disse.

Elizabeth suspirou.

- Meu Deus, que péssimo mentiroso. Sempre pensei que os espiões fossem bons em enganar as pessoas. - Fez uma pausa, à espera que o marido dissesse alguma coisa, mas ele não tinha mais nada a dizer. - Boa sorte amanhã, para aquilo que vai fazer. Eu te amo.

A ligação caiu. Michael voltou a ligar rapidamente mas, quando o telefone começou a chamar, apenas ouviu o ruído irritante do sinal de ocupado. Voltou a tentar mas nada conseguiu, por isso desligou o telefone e desceu para enfrentar o jantar de Helen.

- Talvez fosse melhor pedir a Carter para enviar outra pessoa - sugeriu Graham.

Estavam sentados lá fora, no jardim, em volta de uma mesa de ferro forjado, fumando os cigarros de Graham. A chuva parara e a Lua ia brilhando através dos farrapos de nuvens.

- Não podemos enviar mais ninguém. Eles pediram que fosse eu. Conhecem o meu rosto. Se tentarmos enviar outra pessoa, vai tudo por água abaixo.

- Já pensou que pode cair direitinho numa armadilha? Vivemos tempos perigosos. A Espada de Gaza pode querer abater um homem dos serviços, sobretudo depois do que fez hoje em Heathrow.

- Não ganham nada em me matar. Sabe tão bem quanto eu que eles não matam indiscriminadamente. Fazem por uma razão e só quando acreditam que isso poderá promover sua causa.

- Imagino que Elizabeth não esteja nada satisfeita com a situação.

- Você pode imaginar. Ela não sabe o que vou fazer amanhã, mas não anda contente. - Michael contou tudo. Mesmo que a natureza do seu trabalho por vezes exigisse discrição profissional, havia muito poucos segredos pessoais entre eles.

- Espero que saiba o que está fazendo, companheiro. Parece bem grave.

- Neste momento não preciso de um conselheiro matrimonial. Sei que estou me arriscando, mas quero ouvir o que o Awad tem a dizer.

- Minha experiência com esses sacanas sugere que não vai dizer nada de útil.

- Não me arriscaria se não tivesse alguma coisa para nos dizer.

- Por que não apanhas o filho da mãe e o mete na prisão? Ou melhor ainda, trata do seu desaparecimento conveniente.

- É tentador, mas nós não funcionamos assim. Além disso, o único resultado seria uma resposta com mais violência.

- Não podem fazer nada mais violento do que o atentado de hoje, meu caro.

Uma sirene uivou na direção de Sloane Square. Sem querer, Michael pensou em Sarah.

- Chegou a encontrar o nosso amigo Drozdov? - perguntou Graham.

Michael anuiu.

- Disse alguma coisa de útil?

- Na verdade, foi bem útil. Sabia quem eu era. Disse por que Sarah foi morta.

Michael contou-lhe a história.

- Valha-me Deus, lamento, Michael. Sei o quanto ela significava para você - garantiu Graham.

Michael acendeu outro cigarro.

- Não disse a ninguém de sua equipe que eu estava pensndo em fazer uma visita a Drozdov, não?

- Está brincando? Os manda-chuvas me esfolariam vivo se descobrissem. Por que pergunta?

- Porque dois brucutus num Ford branco me seguiram até Heathrow.

- Não eram nossos. Talvez Wheaton tenha posto você sob vigilância.

- Já pensei nessa possibilidade.

- É um filho da mãe, esse seu Wheaton. Os cavalheiros na suíte executiva de Vauxhall Cross mal podem esperar pelo regresso dele a Langley para a dança da vitória em volta da sede.

- Ele contou ao SIS sobre o encontro de amanhã com Awad?

- Que eu saiba não, e eu faria parte da lista de aviso, se uma coisa dessas acontecesse.

- E não vai contar nada a sua equipe, certo, Graham?

- Claro que não. As regras habituais se aplicam, meu caro.

Graham jogou o cigarro num canteiro agora seco. - Não quer alugar um copiloto experiente?

- Quando foi a última vez que fez trabalho de campo?

- Já faz algum tempo. E você também. Mas há coisas que não se esquecem. Se fosse você, neste momento desejaria ter alguém me protegendo.


WASHINGTON, D. C.


Paul Vandenberg ligou os televisores do gabinete e viu, em simultâneo, a abertura dos noticiários dos três canais de televisão. Cada um deles dedicou todo o primeiro bloco à emissão do ataque em Heathrow. Houve reportagens em direto de Londres, da Casa Branca e do Oriente Médio, e reportagens de fundo sobre a Espada de Gaza. O tom dos jornalistas era, regra geral, positivo, embora fontes diplomáticas europeias anônimas culpassem os Estados Unidos por atacarem as bases da Espada de Gaza. Vandenberg não se preocupava com as críticas dos europeus. O Congresso encontrava-se do seu lado. Até mesmo alguns dos democratas mais pacifistas, como Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith, tinham prometido apoio, e o New York Times e o Washington Post tinham concedido suas bênçãos editoriais. Ainda assim, os vinte civis americanos que regressavam a casa em caixões minaram necessariamente algum apoio da opinião pública em relação aos atos do Presidente.

O noticiário abandonou o assunto e transmitiu o resto das notícias do dia. Vandenberg levantou-se e preparou um copo de vodka com água tônica, o qual bebeu enquanto arrumava a secretária e trancava os documentos importantes.

Às sete e dez, a secretária espreitou à porta.

- Boa noite, senhor Vandenberg.

- Boa noite, Margaret.

Tem uma chamada. Um tal detective Steve Richardson, da Polícia Metropolitana de D.C.

- Ele disse do que se trata? - Não, senhor. Quer que pergunte?

- Não, vá para casa, Margaret. Eu trato do assunto. Vandenberg baixou o som dos televisores, carregou na luz a piscar do telefone multilinhas e pegou no receptor.

- Fala Paul Vandenberg - disse com brusquidão, adicionando intencionalmente uma nota de autoridade ao tom de voz.

- Boa noite, senhor Vandenberg. Peço desculpa por incomodá-lo tão tarde, mas isto vai demorar apenas um ou dois minutos.

- Posso saber do que se trata?

- Do assassinato de uma jornalista do Washington Post, chamada Susanna Dayton.

Tinha conhecimento da sua morte, senhor Vandenberg?

- Claro. Na verdade, falei com ela nessa noite.

- Bem, é por isso que estamos a telefonar. Sabe...

- Foram consultar os registros telefônicos e descobriram que eu fui uma das últimas pessoas com quem ela falou, e agora querem saber o tema da nossa conversa.

- Já tinha ouvido dizer que era um homem esperto, senhor Vandenberg.

- De onde está a telefonar?

- Para dizer a verdade, estou mesmo do outro lado da rua, em Lafayette Park.

- Ótimo, porque não falamos cara a cara?

- Eu conheço-o. Tenho-o visto na televisão ao longo dos anos.

- Parece que a televisão serve para alguma coisa.

Cinco minutos depois, Vandenberg atravessava o Portão Noroeste da Casa Branca, cruzando a alameda pedestre que antigamente fora a Pennsylvania Avenue. O carro aguardava no Acesso Executivo, no interior do recinto. A noite caíra e, com ela, viera uma chuva miudinha e fria. Vandenberg caminhava pelo Lafayette Park num passo rápido de marcha, a gola virada para cima a fim de se proteger do frio, os braços a baloiçar ao lado do corpo. Dois sem-abrigo aproximaram-se e pediram-lhe dinheiro. Vandenberg passou por eles a toda velocidade, sem sequer se aperceber da sua presença. O detetive Richardson levantou-se do banco onde estava sentado e caminhou na direção dele, de mão estendida.

- Ela telefonou para que eu comentasse uma reportagem em que estava trabalhando - adiantou Vandenberg, tomando de imediato a iniciativa. - Era um artigo de investigação complexo e eu recomendei que fosse ao gabinete de imprensa da Casa Branca.

- Lembra-se de algum pormenor da história?

Quer dizer que não havia nenhuma gravação, pensou Vandenberg.

- Nem tanto. Era alguma coisa sobre as atividades de angariação de fundos do Presidente. Não me pareceu muito grave e, sinceramente, num domingo à noite, não queria muito falar naquilo. Por isso, mandei-a procurar quem de direito.

- Telefonou ao secretário de imprensa para informar do telefonema?

- Não, não telefonei.

- Posso saber por quê?

- Porque não achei que fosse necessário.

- Conhece um homem chamado Mitchell Elliott?

- Claro - respondeu Vandenberg. - Antes de entrar para a política, trabalhei para a Alatron Defense Systems e Mitchell Elliott é um dos apoiadores políticos mais chegados do Presidente. Encontramo-nos com muita frequência e falamos com regularidade.

- Sabia que Susanna Dayton também telefonou para Mitchell Elliott nessa noite? Na verdade, isso aconteceu momentos antes de falar com você.

- Sim, sei que ela telefonou para Mitchell Elliott.

- Posso perguntar como sabe disso?

- Porque Elliott e eu falamos posteriormente.

- Lembra-se sobre o que falaram?

- Não realmente. Foi uma conversa muito breve. Discutimos as alegações da Sra. Dayton e ambos chegamos à conclusão de que eram disparates sem fundamento que não mereciam comentário.

- Falou com Elliott mas não com o secretário de imprensa da Casa Branca?

- Sim, exatamente.

Richardson fechou o bloco de notas a fim de sinalizar que a entrevista terminara.

- Faz alguma ideia de quem assassinou a mulher?

Richardson abanou a cabeça. - Neste momento, estamos tratando do caso como um assalto que deu errado. Lamento tê-lo incomodado, senhor Vandenberg, mas tínhamos de confirmar. Espero que compreenda.

- Claro, detetive.

Richardson entregou-lhe seu cartão.

- Caso se lembre de mais alguma coisa, por favor, não hesite em ligar. - Não gosto de receber telefonemas da polícia de Washington para o meu gabinete na Casa Branca, Mitchell.

Os dois homens caminhavam lado a lado no seu ponto de encontro habitual, Hans Point, ao longo do Washington Channel. Mark Calahan deambulava alguns passos atrás, à procura de algum sinal de vigilância.

- A polícia de Washington não me faz sentir lá muito nervoso, Paul - respondeu Elliott calmamente. - Acho que a última vez que prenderam alguém por assassínio foi em 1950.

- Diga-me só uma coisa, Mitchell. Diga-me que não teve absolutamente nada a ver com a morte daquela mulher.

Pararam de andar. Mitchell Elliott virou-se para encarar Vandenberg, mas não disse nada.

- Ponha a mão sobre uma Bíblia imaginária, Mitchell - disse Vandenberg -, e jure por esse seu Deus que o Calahan ou outro dos seus rufiões não mataram Susanna Dayton.

- Sabe que não posso fazer isso, Paul - recusou Elliott calmamente.

- Seu sacana - murmurou Vandenberg. - O que aconteceu?

- Nós a pusemos sob vigilância total, física e áudio - explicou Elliott. - Entramos na casa dela para fazer algumas tarefas domésticas e ela nos surpreendeu.

- Ela surpreendeu vocês! Valha-me Deus, Mitchell! Sabe o que está dizendo?

- Sei exatamente o que estou dizendo. Um dos meus homens cometeu um assassínio infeliz. O chefe de gabinete da Casa Branca é agora cúmplice por encobrimento de assassinato.

- Seu filho da mãe! Como se atreve a fazer isto com o Presidente!

- Fale baixo, Paul. Nunca se sabe quem pode estar na escuta. E eu não fiz nada ao Presidente, porque não há como sermos ligados ao assassinato de Susanna Dayton. Se não perder a cabeça e fizer alguma coisa estúpida, nada vai acontecer.

Vandenberg lançou um olhar furioso a Calahan, que retribuiu, sem pestanejar.

Virou-se e começou a andar. Uma chuva suave flutuava sobre o rio.

- Tenho mais uma pergunta, Mitchell.

- Quer saber quem é que realmente abateu aquele avião.

Vandenberg olhou para Mitchell em silêncio.

- Limite-se a dizer suas deixas e faça seu trabalho, Paul. Não faça muitas perguntas.

- Agora, Mitchell! Diga-me agora!

Elliott virou-se para Calahan.

- Mark, o senhor Vandenberg não está se sentindo nada bem neste momento. Acompanhe-o até o carro. Boa noite, Paul. Falaremos em breve.

O carro com motorista de Vandenberg saiu de Hans Point e seguiu a alameda, contornando Tidal Basin. O Jefferson Memorial brilhava suavemente nas águas, com o reflexo tornado indistinto pela chuva. O carro virou para a Independence Avenue, passou pelo altaneiro Washington Monument e virou para Potomac

Parkway. Vandenberg olhou para o Lincoln Memorial.

Meu Deus, o que foi que eu fiz - pensou.

Precisava de uma bebida. Nunca na sua vida tinha precisado de uma bebida, mas agora sentia mesmo necessidade. Fechou os olhos. A mão direita tremia-lhe, por isso cobriu-a com a esquerda e fitou o rio que fluía sob a ponte.

LONDRES

Na manhã seguinte, Michael levantou-se antes de amanhecer e vestiu-se sem fazer barulho no quarto horrível da casa de segurança. Estava tudo silencioso exceto pelo ronco do trânsito matutino perto de Paddington Station e pela tagarelice dos guarda-costas de Wheaton no quarto ao lado. Bebeu um café instantâneo abjeto por uma caneca lascada, mas ignorou um prato de croissants duros. Regra geral, Michael estava calmo antes de um encontro, mas agora sentia-se nervoso e irritadiço, tal como se sentira quando era um recruta calouro, enviado para o campo pela primeira vez, depois do curso de treino na Quinta. Era raro fumar antes do meio-dia, mas já ia no segundo cigarro. Dormira pouco, agitado na cama de solteiro encovada, perturbado pela zanga com Elizabeth. Em grande parte, o seu casamento sempre fora calmo, livre das discussões e tensão constantes que afligiam tantos casamentos da Agência. Pequenas altercações abalavam-nos profundamente. Uma batalha como a da véspera, com ameaças de vingança, era-lhes estranha.

Vestiu um colete à prova de bala por cima da blusa de gola alta fina e enfiou uma blusa de lã cinzenta. Pegou no telefone e marcou uma última vez o número do apartamento na Quinta Avenida. Continuava ocupado. Pousou o receptor no descanso e saiu. Wheaton estava à espera lá em baixo, na beira, no banco traseiro de um sedan anônimo da Agência. Foram até Charing Cross, Wheaton discursando monotonamente sobre as regras para o encontro com a intensidade de alguém que passara uma carreira em segurança, preso a uma secretária.

- Se não for o Awad, em nenhuma circunstância deve prosseguir com o encontro - avisou Wheaton. - Espere que o barco chegue a Calais e nós tiramo-lo de lá. - Não estou a entrar em território inimigo - disse Michael. Se o Awad não aparecer, apanho o próximo ferry para a Grã-Bretanha.

- Permaneça alerta - continuou Wheaton, ignorando o comentário de Michael. - A última coisa de que precisamos é que vá de encontro a um verdadeiro crente da Espada de Gaza com uma chave de madeira em volta do pescoço. Regra geral, os membros da espada de Gaza., e muitos outros terroristas islâmicos, usavam uma chave de madeira por baixo da roupa durante missões suicidas, pois acreditavam que os seus atos seriam recompensados com o martírio e um lugar no céu.

- Carter não quer que vá desprotegido - indicou Wheaton. Abriu uma pequena mala e retirou de lá de dentro uma potente

pistola automática Browning com um carregador de quinze balas, a arma regulamentar da Agência.

- O que devo fazer com isto? - perguntou Michael. Como muitos agentes de casos, podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que levara uma arma no cumprimento do dever. Raramente um agente de casos disparava para resolver um problema. Sacar de uma arma em legítima defesa era o derradeiro sinal de fracasso. Significava que o agente fora traído por um dos seus, ou que fora completamente descuidado.

- Não vamos mandá-lo para aquele ferry para que seja assassinado ou feito refém - insistiu Wheaton. - Caso se aperceba de que está a cair numa armadilha, riposte. Vai lá estar sozinho.

Michael colocou o carregador na coronha e puxou a culatra, introduzindo a primeira bala. Accionou a trava de segurança e enfiou a arma no cós das calças, por baixo da blusa.

Wheaton deixou Michael na estação. Michael comprou um bilhete de primeira classe para Dover e um molho de jornais matutinos, e depois foi à procura da plataforma. Entrou no comboio com cinco minutos de antecedência e avançou pelo corredor apinhado. Encontrou um lugar num compartimento com dois homens de negócios que já estavam a martelar nos computadores portáteis. No momento em que o comboio saía da estação, uma mulher entrou no compartimento. Tinha cabelo comprido e escuro, olhos escuros e pele pálida. Michael pensou que se parecia vagamente com Sarah.

Durante quase uma hora, o comboio avançou ruidosamente pelos subúrbios do Sudeste de Londres e depois entrou na terra de cultivo ondeada de Kent. No bar, Michael comprou café e umo sanduíche de presunto e queijo. Regressou ao compartimento e sentou-se. Os homens de negócios estavam em mangas de camisa e suspensórios, olhando para um relatório de lucros como se fosse um texto sagrado. A mulher não abriu a boca durante toda a viagem. Fumava um cigarro atrás do outro, até que o compartimento ficou a parecer uma câmara de gás. Os atraentes olhos castanhos acompanhavam o campo verde-acinzentado de Kent. A mão comprida encontrava-se sugestivamente pousada sobre uma coxa escondida por umas meias austeras.

O comboio chegou a Dover e Michael saiu do compartimento. A moça colocou um saco de pele ao ombro e seguiu-o. Era alta, tão alta como Sarah, mas não possuía a sua graciosidade, nem a agilidade física felina. Trazia vestido um casaco de pele preto, que lhe dava pelas coxas, e botas da tropa pretas que ressoavam quando andava.

Michael apressou-se a sair da estação e a dirigir-se ao terminal dos ferrys. Comprou um bilhete e entrou para o barco, um ferry multiuso com centro e trinta metros, capaz de transportar 1300 passageiros e 280 carros. Entrou para a área dos bancos dos passageiros no convés principal e sentou-se junto a uma janela, a bombordo. Olhou em frente e viu Graham Seymour sentado no centro do convés, vestido com calças de ganga e uma blusa cinzenta Venice Beach, e um estojo de guitarra nas mãos. Michael desviou rapidamente o olhar. A moça do comboio entrou, sentou-se diretamente atrás de Michael e começou de imediato a fumar.

Enquanto o ferry sulcava as águas, Michael lia os jornais. Dover desapareceu por trás de uma cortina de chuva. De minutos a minutos, Michael olhava para o parapeito a bombordo, pois era aí, a meio do navio, que Awad iria aparecer. Foi uma vez até o bar, o que lhe permitiu perscrutar o rosto de todos os que se encontravam sentados na área de passageiros. Comprou chá escuro servido num copo de papel muito fino e levou-o para o seu lugar. Não reconheceu ninguém, a não ser Graham e a moça do comboio, que estava absorta numa revista de moda de Paris.

Passou meia hora. A chuva parou, mas agora, bem no meio do Canal, o vento aumentava de intensidade e as ondas encrespadas lançavam-se em direção à ampla proa do ferry. A moça levantou-se, comprou café no bar e depois sentou-se ao lado de Michael. Acendeu outro cigarro e, por instantes, beberricou o café em silêncio.

- Ali está ele, junto ao parapeito, de gabardina cinzenta - indiciou, um vestígio de Beirute no seu inglês. - Aproxime-se dele devagar. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. E não tente armar-se em herói outra vez, senhor Osbourne. Estou bem armada e Ibrahim tem cinco quilos de Semtex atados ao corpo.

Michael achou que o rosto lhe era vagamente familiar, como um amigo de adolescência que se materializa na meia-idade, gordo e a ficar calvo. Vira aquele rosto muitas vezes, mas nunca de perto e, decerto, nunca pessoalmente. Vira o perfil do lado direito, indistinto, num instantâneo tirado pelos fotógrafos do MI5 durante uma das visitas de Awad a Londres. O rosto desfocado capturado pelos serviços franceses durante uma escala em Marselha. A velha fotografia israelense do jovem Awad: atirador de pedras, perito no fabrico de cocktails Molotov, criança guerreira da Intifada que quase espancou até a morte um colono de Brooklyn com um pedaço do seu adorado Hebron. A foto israelense era de valor limitado, pois a Shin Bet apanhara-o primeiro e deixara-o quase irreconhecível com equimoses e inchaços.

Michael e a sua presa ficaram lado a lado no parapeito durante um longo momento, cada um com o olhar fito no seu ponto privado das águas em turbilhão do Canal, como amantes zangados sem nada mais a dizer. Michael virou-se e olhou mais uma vez para Awad. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. Por um instante, interrogou-se se o homem seria mesmo Muhammad Awad. As entediantes advertências de Wheaton ecoavam na mente de Michael como anúncios de embarque num aeroporto.

A Michael, o homem a seu lado parecia o irmão mais velho e mais próspero de Awad. Estava vestido para fazer negócios, com um dispendioso sobretudo cinzento e um terno de bom gosto, com duas fileiras de botões, visível por baixo. As feições tinham sido alteradas por cirurgia plástica. Como resultado, a aparência árabe fora apagada e tinha sido criado algo de origem nacional incerta: um espanhol, um francês ou talvez um grego. O nariz palestino proeminente desaparecera, tendo sido substituído pelo nariz estreito e aquilino de um aristocrata do norte de Itália. As maçãs do rosto tinham sido realçadas, a testa suavizada, o queixo tornado quadrado e os olhos castanhos eram agora de um verde-claro, graças a lentes de contato. Tinham-lhe sido arrancados os dentes molares, a fim de lhe dar as faces felinas de um supermodelo.

A vida de Muhammad Awad assemelhava-se a um panfleto da literatura revolucionária palestina radical. Michael conhecia-a bem, pois compilara a biografia e o currículo de Awad para o Centro, com a ajuda da Mossad, do Shin Bet, do MI6 e de metade dos serviços de segurança da Europa. O avô fora arrancado aos seus olivais e laranjais nos arredores de Jerusalém em 1948 e enviado para o exílio na Jordânia. Segundo a lenda de Awad, no ano seguinte morreu de desgosto, conservando ainda o neto as chaves da sua casa em Israel no bolso. Outro ramo do clã Awad foi massacrado em Deir Yassin. Em 1967, a família foi expulsa novamente, desta vez para campos de refugiados no Líbano. O pai de Awad nunca trabalhou, limitava-se a ficar sentado nos campos, a contar histórias sobre como tinha sido a sua vida em pequeno, cuidando das azeitonas e das laranjas com o pai. O paraíso perdido. Nos anos 80, o jovem Muhammad Awad foi doutrinado no Islão radical do sul do Líbano e em Beirute. Juntou-se ao Hezbollah. Juntou-se ao Hamas. Recebeu treino no Irã e na Síria: armas leves, tácticas de infiltração, contra-espionagem, fabrico de bombas. Quando Arafat apertou a mão de Rabin na Casa Branca, Awad sentiu-se ultrajado. Quando as forças de segurança de Arafat começaram a perseguir o Hamas, a mando de Israel, Awad jurou vingança. Juntamente com cinquenta dos melhores guerrilheiros do Hamas, formou a Espada de Gaza, o grupo terrorista palestino mais mortífero desde o Setembro Negro.

Rajadas de vento assolavam o convés. Awad levou a mão ao interior do casaco. Michael hesitou, mas resistiu à tentação de pegar na Browning.

- Calma, senhor Browning - disse Awad. - Só me apeteceu fumar. Além disso, se quisesse matá-lo, o senhor já estaria morto.

O inglês era perfeito, com um leve sotaque irreconhecível por um ouvido destreinado. Os cigarros que foi buscar ao bolso do peito eram Dunhill sem filtro.

- Sei que fuma Marlboro Lights, mas talvez estes sirvam, sim? A sua esposa fuma Benson and Hedges, não é? Chama-se Elizabeth Cannon-Osbourne e exerce advocacia numa daquelas firmas importantes de Washington. O senhor vive na N Street, em Georgetown. Está a ver, senhor Osbourne, temos os nossos próprios serviços secretos e de segurança. E recebemos muitas ajudas dos nossos amigos em Damasco e em Teerã, claro está.

Michael aceitou o Dunhill e virou-se a favor do vento para o acender. Quando Awad levantou a mão para acender o seu próprio cigarro, Michael viu o detonador na palma da mão direita.

- Já percebi, Ibrahim - disse Michael.

- Sei que foi uma demonstração entediante, mas só a fiz para enfatizar que não desejo qualquer mal nem a si, nem à sua família. O senhor não é meu inimigo e não tenho tempo nem recursos para lutar contra si. - Então para que os explosivos presos à cintura?

- Num negócio como este, é preciso tomar precauções.

- Nunca me pareceu do tipo suicida.

Awad sorriu e soprou o fumo pelas narinas esculpidas.

- Sempre acreditei que era mais útil a Alá vivo do que morto. Além disso, não temos falta de voluntários para missões de martírio. Creio que passou algum tempo no Líbano quando era criança. Sabe as condições em que vive o nosso povo. A opressão pode gerar loucura, senhor Osbourne. Há miúdos que preferem morrer a passar uma vida inteira acorrentados.

Michael olhou para o lado esquerdo e viu a mulher do comboio encostada ao parapeito, a seis metros de distância, a fumar, os olhos vagueando pelo ferry.

- Pensei que acreditassem que o lugar de uma mulher era em casa, oculta por um chador - comentou Michael, olhando para a moça.

- É uma pena, mas por vezes este negócio exige os serviços de uma mulher talentosa. Para os objetivos desta conversa, ela chama-se Odette. É palestina e muito boa a manejar a arma. Os velhos serviços de segurança da Alemanha Ocidental davam ordens para abater primeiro as mulheres. No caso de Odette, esse seria, de fato, um excelente conselho.

- Agora já nos apresentamos todos - disse Michael -, que tal irmos diretos ao assunto? Porque quis conversar?

- O ataque de ontem em Heathrow foi obra da Espada de Gaza. Organizamos o ataque para vingar os vossos ataques aéreos ridículos contra os nossos amigos na Líbia, na Síria e no Irã. Ontem o senhor foi o herói, senhor Osbourne. A sua presença foi coincidência, garanto-lhe. Sinceramente, quem me dera que os tivesse morto aos dois. Os homens detidos deixam-me sempre um pouco nervoso. - Na verdade, o interrogatório está a correr muito bem - afiançou Michael, incapaz de resistir à oportunidade de brincar com Awad.

- Ouvi dizer que estava a fornecer uma tremenda quantidade de informação sobre a vossa estrutura organizacional e tácticas.

- Boa tentativa - afirmou Awad. - A nossa organização é altamente compartimentada, por isso os estragos que ele pode fazer são mínimos.

- Continue a acreditar nisso, Ibrahim. Vai ajudá-lo a dormir à noite. Quer dizer que pediu para falar comigo para reivindicar a responsabilidade pelo ataque terrorista em Heathrow?

- Preferimos utilizar o termo ação militar.

- Não há nada de militar em matar civis desarmados. Isso é terrorismo, puro e simples.

- O terrorista de um homem é um lutador pela liberdade de outro, mas não vamos entrar agora nessa discussão tola. Não há tempo. Os vossos ataques aéreos às nossas bases foram ridículos, pois não existia qualquer justificação para eles. A Espada de Gaza não disparou o míssil que fez cair o Voo Zero-Zero-Dois. Michael desconfiava que assim fosse, mas não ia demonstrá-lo em frente de Muhammad Awad.

O corpo de Hassan Mahmoud, um dos seus melhores agentes operacionais, foi encontrado no barco do qual o míssil foi disparado - declarou Michael, a voz baixa mas trêmula de emoção. O tubo de lançamento estava ao lado do corpo. Foi recebida em Bruxelas uma reivindicação válida.

O rosto de Awad contraiu-se. Deu uma longa baforada no Dunhill e jogou a guimba na água. Michael desviou o olhar de Awad e viu um iate a motor seguindo o ferry, atrás de um véu de névoa.

- Hassan Mahmoud deixou de ser membro da Espada de Gaza há quase um ano. Era um maldito de um psicopata que não aceitava a disciplina de uma organização como a nossa. Descobrimos que conspirava em segredo para assassinar Arafat, por isso o expulsamos. Teve sorte em não ter sido morto. Pensando em retrospectiva, devíamos tê-lo feito.

Awad acendeu outro cigarro.

- Mahmoud mudou-se para o Cairo e juntou-se aos fundamentalistas egípcios, al-Gama'at Ismalyya. - Awad levou novamente a mão ao bolso e, desta vez, fez aparecer um envelope. Abriu-o, retirou do seu interior três fotografias e entregou-as a Michael. - Foram-me dadas por um amigo dentro dos serviços de segurança egípcios. Esse homem é Hassam Mahmoud. Se pesquisar esta fotografia nos seus arquivos, descobrirá que este homem é Eric Stoltenberg. Creio que reconhece o nome.

Michael reconhecia-o, de fato. Eric Stoltenberg trabalhara para o Ministério da Segurança Interna da Alemanha de Leste, melhor conhecido como o Stasi. Trabalhava para o Departamento XXII, que conduzia operações de apoio levadas a cabo pelo Stasi a movimentos de libertação nacional por todo o mundo. O seu portfólio incluía terroristas conhecidos, como Abu Nidal, Carlos, o Chacal, e grupos como o IRA e a ETA espanhola. Michael examinou as fotografias: dois homens sentados a uma mesa de tampo cromado, no Groppi's Café, um de cabelo e pele escuros, o outro louro e de pele clara, ambos com óculos-de-sol.

Michael estendeu as fotografias a Awad.

- Fique com elas - disse Awad. - São uma oferta minha.

- Elas não provam nada.

- Como provavelmente será do seu conhecimento, Eric Stoltenberg teve de arranjar trabalho noutro lado - continuou Awad, ignorando o comentário de Michael. - Depois da queda do Muro, os alemães queriam a sua cabeça porque ele ajudou os líbios a bombardear o clube noturno LaBelle, em Berlim Ocidental, em 1986. Desde aí que Stoltenberg tem vivido no estrangeiro, utilizando os antigos contatos da Stasi para fazer dinheiro seja de que maneira for: segurança, contrabando, esse tipo de coisas. Há pouco tempo, ganhou uma bela quantia e não escondeu isso lá muito bem.

O iate aproximara-se mais do ferry. Michael olhou para Awad.

- Mahmoud realizou o ataque e Stoltenberg deu uma ajuda com a logística: o Stinger, os barcos, a rota de fuga. - Michael brandiu as fotografias. - Isto é tudo mentira, pois tem medo que voltemos a atacar.

Awad sorriu com um charme considerável.

- Boa tentativa, senhor Osbourne, mas o senhor conhece a Espada de Gaza melhor do que isso. Sabe que não tínhamos qualquer motivo para fazer explodir um avião americano e sabe que outra pessoa o fez. No entanto, não tem provas. Se eu estivesse no seu lugar, procuraria mais perto de casa.

- Está a dizer que sabe quem é o culpado?

- Não, estou apenas a dizer que deve fazer a si mesmo algumas perguntas simples. Quem ganharia mais com isso? Quem teria motivos para fazer uma coisa daquelas e manter a sua identidade secreta? Os homens que o fizeram têm muito dinheiro, e recursos enormes ao seu dispor. Juro-lhe que não fomos nós. Se os Estados Unidos não retaliarem por causa de Heathrow, isto acaba aqui. Mas se voltarem a atingir-nos, não teremos outra alternativa a não ser ripostar. É essa a natureza do jogo.

O iate encontrava-se agora a cinquenta metros a bombordo do ferry. Michael viu dois homens no alto da ponte volante e um terceiro perto da proa. Olhou para a esquerda, na direção da mulher, e viu-a de olhos muito abertos, retirando uma pequena arma automática da mala. Deu meia volta e olhou para lá de Awad, para o parapeito a bombordo, e viu um homem muito bem constituído de cócoras, de arma em punho, a cabeça coberta por uma balaclava.

Michael agarrou Awad pelos ombros e gritou: - Abaixe-se!

Duas balas atravessaram o peito de Awad e cravaram-se no colete à prova de balas de Michael. Awad caiu sobre o convés. Michael meteu a mão no casaco para pegar a Browning, mas a moça palestina adiantou-se, arma apontada nos braços estendidos, as pernas afastadas. Disparou duas vezes com rapidez, derrubando o atirador encapuzado.

Awad jazia no convés e lançou um olhar irado a Michael, a boca cheia de sangue. Ergueu a mão direita, mostrando a Michael o detonador. Michael lançou-se pela porta para o interior da área de passageiros. Graham Seymour estava lá, de arma na mão. Michael agarrou-o pela camisa e puxou-o para o chão no momento em que a bomba explodia e estilhaços de vidro voaram por cima das suas cabeças. Durante alguns segundos, reinou um silêncio quase absoluto. Depois os feridos começaram a gemer e a gritar.

Michael levantou-se com dificuldade, os sapatos a escorregar sobre os estilhaços de vidro, e correu para o convés. A força da explosão desfizera Awad. Odette, a mulher palestina, jazia no convés, sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. O atirador encapuzado devia estar a usar um colete à prova de bala, pois conseguiu saltar por cima do parapeito e o iate avançava na sua direção. Encontrava-se um homem na ponte volante e dois no convés, à popa. Michael ergueu a Browning e abriu fogo sobre a embarcação. Os dois homens na popa pegaram em armas automáticas e responderam ao fogo. Michael lançou-se para o chão, em busca de abrigo.

Odette levantara-se e estava sentada, com as costas apoiadas no parapeito. Empunhava uma arma na mão esticada, apontada a Michael, o rosto muito calmo.

Michael rolou sobre o corpo quando ela disparou o primeiro tiro. A bala atingiu o convés, falhando-o. Ela disparou mais duas vezes enquanto Michael rastejava desesperadamente em busca de proteção. De repente, o corpo dela tremeu com violência e caiu para a frente. Graham Seymour saiu para o convés, de arma na mão, e ajoelhou-se ao lado dela. Olhou para Michael e abanou a cabeça.

Michael levantou-se e correu para o parapeito. O iate baloiçava nas águas agitadas. Os dois homens à popa estavam a retirar o atirador do mar. Michael ergueu a arma, mas era um tiro impossível. O avanço do ferry fazia com que estivesse já a cerca de cem metros do iate. Depois de o atirador estar a bordo, em segurança, o iate deu meia volta e desapareceu por detrás de uma cortina de nevoeiro.


NOVA YORK

 

 

O programa de fertilização in vitro no Cornell Medical Center possuía uma natureza de linha de montagem que fazia lembrar a Elizabeth os tribunais criminais de qualquer grande cidade. Sentou-se no banco de madeira lascado no corredor à porta da sala de operações, rodeada por outras doentes, enquanto os técnicos cirandavam por ali em silêncio, com batas e máscaras. Só Elizabeth estava sozinha. As outras quatro mulheres tinham os maridos a apertar-lhes as mãos e olhavam para Elizabeth como se ela fosse uma solteirona que decidira ter uma criança com o esperma que pedira emprestado ao marido da melhor amiga. Apoiou de propósito o queixo na mão esquerda para mostrar a aliança de casamento e um anel de noivado com um diamante de dois quilates. Imaginou o que as outras mulheres estariam a pensar. Será que o marido estava atrasado? Será que se divorciara há pouco tempo? Seria ele demasiado ocupado para estar com ela numa altura daquelas?

Elizabeth sentiu os olhos começarem a ficar marejados. Estava a utilizar cada pedacinho de autocontrole que tinha para não chorar. As portas duplas da sala de operações abriram-se. De lá saiu uma marquesa empurrada por dois técnicos, sobre a qual jazia uma mulher sedada. Outra foi levada lá para dentro, vinda do vestiário que existia ali perto, para tomar o seu lugar em cima da mesa. O marido foi enviado para uma sala pequena e escura com copos de plástico e revistas Playboy.

Na parede estava pendurada uma pequena televisão, silenciosamente sintonizada, sem som, na CNN. O ecrã mostrava uma reportagem ao vivo sobre um ferry soltando fumaçao no Canal da Mancha.

Não, pensou Elizabeth, não é possível. Levantou-se, foi até a televisão e aumentou o som.

- ... Sete pessoas mortas... Parece ser obra do grupo terrorista islâmico conhecido como a Espada de Gaza... Segundo ataque em dois dias... Acredita-se terem sido os responsáveis pelo terrível atentado terrorista de ontem no Aeroporto de Heathrow, em Londres...

Meu Deus, pensou, isto não pode estar acontecendo!

Voltou a sentar-se no banco e revirou a mala à procura do celular e da agenda telefônica. Michael dera-lhe um número especial a ser usado apenas em emergências extremas. Folheou as páginas desenfreadamente, sentindo os olhares das outras doentes, e encontrou o número.

Marcou-o, carregando com violência nas teclas, enquanto caminhava para um local mais reservado junto às escadas. Após um toque, uma calma voz masculina disse:

- Alô?

- Meu nome é Elizabeth Osbourne. Meu marido é Michael Osbourne.

Ouviu o som das teclas de um computador.

- Como conseguiu este número? - perguntou a voz.

- Michael me deu.

- Em que posso ajudar?

- Quero falar com meu marido.

- O seu número de telefone, por favor.

Elizabeth deu o número do celular e voltou a ouvir o som do teclado novamente.

- Alguém vai lhe telefonar.

Um dos técnicos apareceu nas escadas.

- A Sra. é a próxima, Sra. Osbourne. Precisamos que entre agora.

- Quero saber se ele estava naquele ferry-boat no Canal - disse Elizabeth ao homem com quem falava ao telefone:

- Alguém lhe telefonará - voltou a dizer a voz, exasperante com a falta de emoção. Era como falar com uma máquina.

- Que diabo, responda! Ele estava naquele barco?

- Alguém vai telefonar - repetiu.

- Lamento, Sra. Osbourne - insistiu o técnico -, mas agora precisa mesmo entrar.

- Está dizendo que ele está no barco?

- Por favor, desligue e mantenha este número desocupado.

Em seguida, a linha ficou muda.

Uma enfermeira acompanhou Elizabeth a um pequeno vestiário e deu-lhe uma bata esterilizada. Elizabeth agarrava com força no celular. - Receio que tenha de deixar isso aqui - avisou a enfermeira.

- Não posso - respondeu Elizabeth. - Estou à espera de um telefonema muito importante.

A enfermeira olhou para ela com uma expressão incrédula.

- Já vi muitas mulheres do Tipo-A neste programa, Sra. Osbourne, mas não há dúvida de que a Sra. bate todas as outras aos pontos. Vai sofrer uma intervenção cirúrgica ali dentro. Não é altura para fazer telefonemas de trabalho.

- Não é um telefonema de trabalho. É uma emergência.

- Não interessa. Daqui a três minutos, vai estar a dormir como um bebê.

Elizabeth vestiu a bata. Toca, raios partam. Toca!

Subiu para a marquesa e a enfermeira empurrou-a até a sala de cirurgia. A equipe operatória estava à espera. O seu médico baixou a máscara e ofereceu-lhe um sorriso agradável.

- Parece-me um pouco nervosa, Elizabeth. Está tudo bem?

- Estou ótima, doutor Melman. - Ainda bem. Então vamos começar.

Acenou com a cabeça para o anestesista e, segundos mais tarde, Elizabeth sentia-se a flutuar para um sono agradável.

CALAIS, FRANÇA

O porto fervilhava de luzes de emergência azuis e vermelhas à medida que o ferry se aproximava da costa francesa. Michael estava de pé na ponte, rodeado pelo capitão e pelos oficiais, a fumar um cigarro atrás do outro, enquanto via a linha da costa avizinhar-se. Ora sentia um frio de morrer, ora um calor de abrasar. O peito doía-lhe muito, como se alguém muito forte lhe tivesse dado um par de murros. Graham Seymour estava do outro lado da ponte, rodeado pelo seu próprio grupo de elementos da tripulação. Estavam mais ou menos detidos. Michael dissera ao capitão que ele e Graham eram agentes dos Estados Unidos e da Inglaterra e que alguém de Londres estaria à espera do ferry em Calais, onde tudo lhes seria explicado. O capitão ficou desconfiado, tal como Michael ficaria no seu lugar.

Michael fechou os olhos e o filme desenrolou-se mais uma vez. Assistiu a tudo como se fossem imagens de um noticiário, ele próprio como um ator em palco. Viu o atirador aproximar-se e Odette à procura da arma, os olhos alucinados.

O homem de balaclava com a arma não pertencia à Espada de Gaza e Muhammad Awad não era o alvo. O alvo era Michael. Awad limitara-se a estar no caminho. Voltou a fechar os olhos e pensou nos dois homens dentro do iate. Lentamente, os rostos foram-se tornando mais nítidos, como se estivesse a focá-los com a lente de longo alcance de uma câmara de vigilância. Viu os homens dispararem contra si a partir do convés de ré. Tinha a sensação incômoda de já os ter visto de relance noutro lado qualquer: num restaurante, numa festa ou na farmácia em

Oxford Street. Ou teria sido numa estação de gasolina na M40 em Oxfordshire, a fingir estar a encher o pneu traseiro de um monovolume Ford branco? O ferry atracou em Calais. Michael e Seymour foram guiados para longe das equipes de televisão e dos jornalistas aos gritos até um gabinete no interior do terminal. Wheaton e uma dúzia de oficiais diplomáticos e da Agência aguardavam-nos. Tinham vindo de Londres de helicóptero, cortesia da Marinha Real.

- Quem é este? - perguntou Wheaton, olhando para Graham, que se esquecera do estojo da guitarra mas assemelhava-se, ainda assim, a um estudante maduro, com as suas calças de ganga e a blusa Venice Beach.

Seymour sorriu e estendeu a mão.

- Graham Seymour, SIS.

- Graham quem, o quê? - perguntou Wheaton, incrédulo.

- Ouviu-o bem - confirmou Michael. - É um amigo meu. Por coincidência, encontrava-se a bordo do ferry.

- Mentiras!

- Bem, valeu a pena tentar, Michael - disse Graham.

- Comece a falar, vamos!

- Vá bardamerda - exclamou Michael, despindo a blusa e revelando duas balas cravadas no colete. - Porque não voltamos para Londres e fazemos lá o relatório?

- sugeriu, já mais calmo.

- Porque os franceses querem falar com você primeiro.

- Oh, meu Deus - suspirou Graham. - Eu não posso falar com os malditos dos franciús.

- Bem, uma vez que acaba de chegar à jurisdição deles, creio que vai ter de o fazer.

- O que é que lhes vamos dizer? - perguntou Michael.

- A verdade - respondeu Wheaton. - E rezar para que tenham o bom senso de ficarem de bico calado.

Em Nova York, Elizabeth estava deitada, a dormir na sala de recobro, quando o celular tocou suavemente. Uma enfermeira deu um passo em frente e estava prestes a desligá-lo quando Elizabeth acordou e disse:

- Não, espere. .-} Colocou o celular de encontro ao ouvido, de olhos fechados, e atendeu.

- Estou?

- Elizabeth - disse a voz. - É a Elizabeth Osbourne? - Sim - crocitou" ela, a voz rouca devido à anestesia.

- Daqui fala Adrian Carter. - Adrian, onde é que ele está?

- Ele está bem.'Está a regressar a Londres neste momento.

- A regressar a Londres? Onde é que esteve?

Na linha fez-se silêncio. Elizabeth estava agora completamente desperta. - Raios partam, Adrian - exclamou -, ele estava naquele ferry? Carter hesitou e depois respondeu.

- Sim, Elizabeth. Ele estava numa missão e alguma coisa correu mal. Ficaremos a saber mais pormenores quando ele chegar à embaixada de Londres. - Está ferido?

Ele está ótimo.

- Graças a Deus.

- Telefono-te quando souber mais.

Ao anoitecer, o helicóptero pousou num heliporto da Thameside em West Londres. Dois carros da embaixada aguardavam-nos. Wheaton e Michael entraram no primeiro, os autômatos de Wheaton seguiram no segundo. Viraram para Vauxhall Bridge e passaram pelo feio edifício moderno que funcionava como sede do MI6. Lá se foi a toca disfarçada de George Smiley em Cambridge Circus, pensou Michael. Agora, a sede dos Serviços chegara mesmo a aparecer num filme do James Bond.

Daqui a alguns minutos, o seu amigo Graham Seymour vai ter uma recepção agreste naquele edifício - informou Wheaton. - Falei com o Diretor-Geral de Calais. Nem é preciso dizer que ele não ficou satisfeito. Também me deu uma notícia que terá de esperar até estarmos atrás de portas fechadas. Michael ignorou o comentário. Wheaton parecia sempre retirar demasiado prazer da infelicidade profissional dos colegas. Subira através do direktorado soviético, quando o pai de Michael era um alto comando em Langley, e trabalhara em Istambul e Roma. A sua tarefa era recrutar oficiais do KGB e diplomatas soviéticos, mas revelou-se de tal forma incapaz que depressa recebeu uma série de relatórios sobre a sua inaptidão deplorável, um deles redigido pelo pai de Michael. Wheaton foi transferido para a sede, onde prosperou na atmosfera falsa e oligárquica de Langley. Michael sabia que Wheaton lhe guardava rancor por causa do pai, ainda que o péssimo relatório de aptidão provavelmente lhe tivesse acabado por salvar a carreira. Chegaram a Grosvenor Square. Wheaton e Michael entraram na embaixada lado a lado, com os homens de Wheaton no seu encalço. Michael tinha a estranha sensação de estar preso. Wheaton dirigiu-se de imediato à sala segura de teleconferências. Assim que Wheaton e Michael se sentaram nas sumptuosas cadeiras de pele preta, Carter e Monica Tyler apareceram no ecrã.

- Fico contente por ver que está bem, Michael - disse Monica.

- Passou uns dias bastante desgastantes. Temos muito que falar, por isso vamos começar pela pergunta óbvia. O que correu mal?

Durante dez minutos, Michael relatou cuidadosamente o que acontecera a bordo do ferry: Awad, a moça palestina chamada Odette, o iate e o atirador. Descreveu o tiroteio, as balas a atravessarem o corpo de Awad, cravando-se no seu colete. Descreveu a explosão e a forma como os homens no barco cobriram a fuga do atirador, com disparos. Por fim, descreveu a última batalha com Odette e como Graham Seymour a matara a tiro.

- Para começar, o que estava Graham Seymour, um agente do MI-Seis, a fazer naquele barco?

Michael sabia que, naquela altura do campeonato, pouco ou nada poderia ganhar ao mentir.

- É meu amigo. Conheço-o há muito tempo. Quis alguém de confiança a proteger-me a retaguarda.

Isso não interessa - contrapôs Monica, com uma paciência experiente. Monica, regra geral, não gostava de operações de campo, nem dos agentes que as realizavam. - O Michael incluiu um agente dos serviços de outro país sem a autorização dos seus superiores na sede.

- Ele trabalha para os ingleses, não para os iranianos. E se ele não estivesse lá, neste momento eu estaria morto.

Monica franziu o cenho de irritação, o que tornou claro que não iria deixar-se levar por argumentos baseados na emoção.

- Se estava tão preocupado com a sua segurança - disse ela, num tom de voz inexpressivo -, devia ter-nos pedido reforços a nós.

- Não quis ir para lá seguido de um pelotão, que Awad e a sua equipe pudessem detectar a quilômetros de distância. - Essa era apenas parte da verdade. - Queria o menor número possível de pessoas de Londres e da sede envolvidas na operação. Trabalhara no terreno, trabalhara na sede e sabia que Langley vertia como uma peneira.

- Parece que Awad e a respectiva equipe identificaram o seu bom amigo Graham Seymour - declarou Monica com um tom de desdém.

- Porque diz isso? - quis saber Michael. Wheaton remexeu-se desconfortavelmente na cadeira e Carter, a seis mil e quatrocentos quilômetros de distância, em Langley, fez a mesma coisa. Monica Tyler não aceitava bem perguntas do pessoal, mesmo quando se tratava de agentes superiores, como Michael. Tinha a certeza da convicção que resulta da ingenuidade. - Por que outra razão um dos seus atiradores tentaria matá-lo? E por que outra razão Awad faria explodir uma bomba presa ao corpo?

- Está a partir do princípio de que o atirador pertencia à Espada de Gaza. Penso que essa suposição está errada. O atirador não fez qualquer tentativa de poupar a vida de Awad. Ele tentou matar-me eliminando Awad primeiro. A mulher esteve atrás de mim o tempo todo. Se quisessem matar-me, ela poderia tê-lo feito e eu nem sequer teria tempo de agir. E quando o tiroteio começou, ela foi atrás do atirador primeiro, não de mim.

- Mas acabou por ir atrás de si.

- Sim, mas só depois de Awad detonar os explosivos. Acho que ela pensou que o atirador era dos nossos.

- Viu o rosto dele?

- Não, tinha a cabeça coberta por uma balaclava.

Monica inclinou-se e segredou ao ouvido de Carter. Este levantou as mãos e passou-as pela cabeça e pelo rosto. Michael percebeu que estava a explicar a Monica o que era uma balaclava. Monica ficou em silêncio por alguns instantes, observando as mãos, e depois continuou.

- O que lhe disse Awad antes de os problemas começarem? Michael narrou a conversa, não omitindo qualquer pormenor.

Fora treinado para memorizar grandes quantidades de informação e, quando trabalhava no campo, possuía uma capacidade lendária para reproduzir transcrições quase textuais de encontros com agentes. Carter costumava chamar-lhe "o Dictafone humano". Michael contou-lhes tudo o que Awad dissera, sobre Heathrow, sobre os ataques aéreos, sobre a expulsão de Hassan Mahmoud do grupo, com uma omissão notória. Não lhes falou nas fotografias do encontro de Mahmoud com Eric Stoltenberg, no Cairo.

- Acha que ele estava a dizer a verdade? - perguntou Monica.

- Sim, acho que sim - respondeu Michael, sem qualquer hesitação. - Sempre fui céptico no que diz respeito à reivindicação da Espada de Gaza. Não fiz segredo disso. Mas se não foi a Espada de Gaza, quem foi? E por que fariam uma reivindicação falsa?

E quem diabo tentou matar Muhammad Awad e a mim, a bordo daquele ferry?

Carter e Monica conferenciaram baixinho por um instante. Wheaton lançou a

Michael um olhar professoral por cima dos óculos de leitura em forma de meia-lua, como se Michael acabasse de dar a resposta errada a uma pergunta crucial num exame oral.

- Há outra coisa sobre a qual temos de conversar com você, Michael - disse Monica. Em seguida, acrescentou muito séria: - É de natureza muito grave. - Algo no tom de voz enervou Michael de imediato.

- Esta manhã, um agente do SIS britânico fez uma visita a um desertor chamado Ivan Drozdov. Parece que Drozdov faltou à apresentação semanal, algo que nunca faz, e o SIS ficou preocupado. O agente arrombou a casa dele e encontrou-o morto. A tiro. O SIS e a polícia local deram logo início às investigações. Ontem, Drozdov foi visto num café local com um homem que condiz com a sua descrição. O SIS gostaria de saber se esteve com ele ontem. E, para dizer a verdade, nós também.

- Sabe que a resposta é sim, porque me colocou sob vigilância desde que deixei Londres até regressar a Heathrow.

- Se estava sob vigilância, não foi ordenada por mim, nem por ninguém na sede - ripostou Monica.

- Não foi a Estação de Londres - garantiu Wheaton.

- Por que raios se foi encontrar com Drozdov sem a nossa autorização, ou a autorização do SIS? - inquiriu Monica. - E já agora, sobre o que falaram?

- Era um assunto pessoal - respondeu Michael. No monitor, via Adrian Carter olhar para o céu, soprando através dos lábios franzidos. - Drozdov trabalhou para o Departamento Cinco do Primeiro Direktorado do KGB, os assassinos. Tenho trabalhado em algo há vários meses e quis discutir o assunto com ele. Garanto-lhe que estava vivo e bem de saúde quando saí de lá.

- Fico satisfeita por achar que isso é divertido, Michael, porque nós não pensamos que assim seja - retorquiu Monica. - Quero-o no primeiro voo de regresso a Washington amanhã de manhã. Considere-se de licença administrativa enquanto aguarda uma investigação de sua conduta nesta questão.

A tela ficou vazia. Sem dizer uma palavra, Wheaton estendeu a mão. Michael enfiou a mão por baixo da camisa e entregou-lhe a Browning carregada. Wheaton quisera que Michael permanecesse na casa de segurança durante a sua última noite em Londres, mas Michael dissera-lhe em termos bastante claros para se ir lixar e regressara ao pequeno hotel em Knightsbridge, com vista para o parque. No início do serão, ao sair para o passeio molhado pela chuva, avistou de imediato dois sentinelas de Wheaton dormitando num Rover estacionado. Ao fazer compras para Elizabeth na Harrods, localizou mais dois.

Ao caminhar para o sul, em Sloane Street, divisou um quinto espião a pé.

Também havia dois homens num Ford, desta vez azul-escuro.

Quem são vocês? Quem os contratou? Se não foi Wheaton, quem foi? Não foi difícil despistá-los, ainda que fossem profissionais. Michael estava em vantagem, pois treinara com eles na Quinta e conhecia as suas tácticas.

Durante uma hora, deambulou pelo West End sob a chuva leve, a pé, de ônibus, de táxi, de metro, através de Berkeley Square, Oxford Street, Bond Street, Leicester Square e dos subúrbios do Soho. Acabou no apartamento de Sarah. O take-away libanês transformara-se em vegetariano, um monumento a Sarah, talvez. Bob Marley vibrava através de uma janela semiaberta, com cortinados sujos. A janela de Sarah. Provavelmente, os cortinados de Sarah.

Sarah Randolph cometeu um erro terrível, dissera-lhe Drozdov. Apaixonou-se pela vítima.

Ela fora uma mentira, um mito criado pelos seus inimigos, tragicamente heróica na sua ingenuidade sem limites. Ela traíra-o, mas não era real. Não podia amá-la, nem odiá-la. Só sentia pena dela.

Os sentinelas de Wheaton há muito que tinham desaparecido, por isso apanhou um táxi para Belgravia. Os homens de campo, tal como os ladrões, desenvolvem formas clandestinas de penetrar na sua própria casa para o dia inevitável em que sejam visitados por uma vida inteira de traição. Michael conhecia o método de Graham Seymour: através de uma cavalariça e por cima do muro caiado do jardim, com a ajuda de uma escada de corda deixada para essas ocasiões. Michael usava agora a escada para trepar o muro e caiu pela escuridão, indo aterrar na varanda de pedra de Graham. Este respondeu à pequena pancada nas portas de correr armado com uma das facas de cozinha de Helen, fabricadas na Suíça. Falaram no primeiro andar, na sala de visitas, o casaco ensopado de Michael a fumegar junto à lareira a gás, a aparelhagem alemã de Graham a troar Rachmaninoff para abafar a conversa.

Conversaram durante quase uma hora. Falaram sobre o que acontecera no ferry. Falaram sobre Sarah. Sobre Colin Yardley e Astrid Vogel, e o homem na escuridão que disparou três balas contra o rosto de Yardley. Sobre os homens no iate e no Ford: o monovolume branco e agora o azul. Michael precisava de dinheiro. Helen era rica e Graham tinha sempre guardado no cofre um ou dois milhares para emergências. Passaportes não eram problema.

Ao longo dos anos, Michael utilizara os seus contatos nos serviços aliados para reunir uma coleção de documentos de viagem falsos. Podia viajar como francês ou espanhol, grego ou alemão. Até como israelense. Telefona a Elizabeth, pediu Michael. Diz-lhe que lhe explico tudo quando voltar. Cuidado com o que dizes ao telefone. Não lhe digas para onde vou, nem o que ando a fazer. Diz-lhe que a amo. Diz-lhe que tenha cuidado. Comeram penne puttanesca e salada, e beberam vinho tinto. Helen e Graham conversaram como se Michael não estivesse ali. Michael sentia-se como se assistisse a um drama horrível na televisão. Devorou dois pratos de massa, que estava surpreendentemente boa.

Depois do jantar, Graham anunciou de repente que queria ver um filme novo que estava no cinema de Leicester Square. Helen concordou de forma entusiástica. Arrumaram a loiça e saíram. Na sala de visitas às escuras, Michael viu-os entrar para o BMW de Graham e arrancarem. Ouviu um motor de carro a ser ligado algures na escuridão. Michael observou-o enquanto deslizava para a rua silenciosa, com os faróis apagados.

Saiu pelas portas de correr, atravessou o jardim, trepou o muro e desceu pelo outro lado, pela escada de corda. Apanhou um táxi em King's Road e foi para a Waterloo Station. Comprou um bilhete para Roma com o dinheiro do cofre de Graham. O comboio partia dali a uma hora. Wheaton, se fosse inteligente, estaria a vigiar os aeroportos e as estações de comboio.

Michael comprou um chapéu impermeável num quiosque e puxou-o para a testa. Saiu e esperou à chuva. Cinco minutos antes da hora de o comboio partir, voltou a entrar na estação e dirigiu-se rapidamente à plataforma. Subiu para o comboio e depressa encontrou um compartimento vazio. Ficou sentado sozinho na semiobscuridade durante muito tempo, a escutar o barulho rítmico do comboio, a olhar para o seu reflexo no vidro, a pensar em tudo. Depois, quando o comboio saiu do túnel do Canal e avançou a toda a velocidade para sul, atravessando a França em direção a Paris, mergulhou num sono leve e sem sonhos.

LONDRES

O Diretor via as notícias das dez na ITN à medida que o Jaguar metalizado com motorista avançava a ronronar através das ruas do West End. Jantara mal no seu clube Mayfair (borrego demasiado passado), onde os restantes membros acreditavam que era um capitalista internacional aventureiro e bem sucedido, o que, até certo ponto, era uma descrição exata do seu trabalho. Meia dúzia desconfiava que, outrora, fizera um ou dois biscates para os Serviços Secretos. Um ou dois sabiam a verdade: que, na verdade, fora o diretor-geral, o lendário C, dos Serviços Secretos. Graças a Deus que lá trabalhara nos velhos tempos, quando a Agência oficialmente não existia e os diretores tinham o bom senso de manter os nomes e as fotografias afastados dos jornais. Imaginem só, o chefe dos Serviços a conceder uma entrevista ao The Guardian: uma heresia, uma loucura. O Diretor acreditava que os espiões e os serviços secretos se assemelhavam muito a ratazanas e a baratas. É melhor fingir que não existem. Ajuda uma sociedade livre a dormir melhor à noite.

O ataque ao ferry que fazia a travessia Dover-Calais dominava as notícias. O Diretor estava furioso, embora o rosto tranquilo não revelasse nada a não ser insolência enfadada. Após uma vida inteira nas sombras, a sua dissimulação era uma arte. Era estreito de cabeça e de ancas, com cabelo cor de arenito a ficar grisalho e mãos brancas de cirurgião que pareciam estar sempre a segurar um cigarro aceso de um comprimento adequado para um anúncio numa revista cara. Os olhos tinham a cor da água do mar no Inverno, a boca era pequena e cruel.

Vivia sozinho 250 em St. John's Wood com um rapaz da Sociedade que o protegia e uma moça bonita que tratava da papelada e cuidava dele. Nunca casara, não tinha filhos, nem familiares conhecidos. Os engraçadinhos nos Serviços costumavam dizer que tinha sido encontrado no início da meia-idade, dentro de um cesto, nas margens do Tamisa, vestido com um terno de riscas brancas, gravata Guarás e sapatos feitos à mão.

Desligou a televisão e olhou pela janela, observando a noite londrina passar. Não havia nada que detestasse mais do que o fracasso, nem mesmo a traição. Esta exigia inteligência e inexorabilidade, o fracasso apenas estupidez ou falta de concentração. Tinham sido dados todos os recursos necessários aos homens que enviara naquela missão no ferry para garantir o sucesso e, contudo, eles tinham falhado. Michael Osbourne era obviamente um adversário digno de respeito, um homem de talento, inteligência e engenho. Osbourne era bom, o seu assassino teria de ser melhor.

O carro parou à porta da casa. O motorista, um antigo membro de elite dos

Comandos Especiais Aerotransportados, acompanhou o Diretor até a porta, esperando que este entrasse. A moça estava à espera, uma jamaicana escultural cor de café chamada Daphne. Trazia vestida uma blusa branca, desabotoada até a elevação dos seios fartos, e uma saia preta que lhe dava pelo meio das coxas nuas. O cabelo castanho-alourado caía-lhe sobre os ombros quadrados.

- O senhor Elliott está ao telefone do Colorado, senhor - informou ela. Havia uma nota do ritmo melodioso da índia Oriental na sua voz, tendo o Diretor gasto milhares de libras em terapia da fala para o eliminar. Eram permitidos nomes dentro da residência Mayfair, pois era revistada regularmente em busca de escutas, e as paredes eram impermeáveis a microfones direcionais exteriores.

O Diretor foi para o escritório e carregou na luz intermitente do seu telefone preto multilinhas. Daphne entrou, despejou um centímetro de scotch de trinta anos para dentro de um copo e entregou-lho. Permaneceu no escritório enquanto a conversa decorria, pois não existiam segredos entre eles.

- O que é que correu mal? - perguntou Elliott.

O senhor Awad trouxe proteção, tal como o senhor Osbourne. E, ainda por cima, ele é mesmo bom.

- Tem de ser eliminado, sobretudo depois do que ficou a saber esta manhã, naquele ferry.

- Sei muito bem disso, senhor Elliott.

- Quando tenciona realizar outro ataque?

- O mais depressa possível - respondeu o Diretor, interrompendo-se para um gole de scotch. - Mas quero fazer uma substituição. O Osbourne é bastante bom. Assim sendo, o adversário tem de ser excelente. Gostaria de atribuir a tarefa ao Outubro.

- O preço dele é muito elevado.

- Tal como o que está em jogo neste ponto dos acontecimentos, senhor Elliott. Não me parece que seja altura para arengar sobre um ou dois milhões a mais, não acha?

- Não, tem razão.

- Vou preparar um dossiê detalhado sobre Osbourne e enviá-lo ao Outubro, por correio eletrônico codificado. Se ele optar por aceitar o alvo, o jogo vai recomeçar, e prevejo que o senhor Osbourne seja eliminado em breve.

- Espero que sim - afirmou Elliott.

- Conte com isso, senhor Elliott. Boa noite.

O Diretor pousou o receptor. Daphne colocou-se atrás dele e esfregou-lhe os ombros.

- Vai precisar de mais alguma coisa esta noite, senhor?

- Não, Daphne, vou apenas tratar de alguma papelada e depois vou deitar-me. - Muito bem, senhor - disse ela e saiu.

O Diretor trabalhou no escritório durante vinte minutos, terminando o scotch e vendo as notícias americanas sobre a explosão no ferry através do sistema de satélite. Desligou a televisão e subiu as escadas, dirigindo-se à suíte. Daphne encontrava-se deitada de costas na cama, blusa desabotoada, uma perna comprida cruzada sobre a outra, enrolando uma madeixa de cabelo no indicador fino.

O Diretor despiu-se silenciosamente e vestiu um roupão de seda. Alguns homens abastados divertiam-se com cavalos, ou carros. O Diretor tinha a sua Daphne. Ela despira-se. As roupas estavam a seu lado, na cama. Acariciava gentilmente os mamilos, a barriga, o alto das coxas. Daphne era uma provocadora, até consigo mesma. O Diretor entrou para a cama e fez deslizar um dedo pelo pescoço da jovem.

- Alguma coisa, meu amor? - perguntou ela.

- Não, minha flor.

A capacidade do Diretor para fazer amor com uma mulher encontrava-se gravemente comprometida, consequência, pensava ele, de uma vida inteira de mentiras e traição. Ela fez deslizar a mão por baixo do roupão, tomando-o entre as suas mãos compridas.

- Nada?

- Receio que não, meu amor.

- Que pena - disse ela. - Posso?

- Se quiser.

- O senhor é um tonto. Quer ajudar ou só ver?

- Só ver - respondeu ele, acendendo um cigarro.

Meteu a mão entre as coxas. Arquejou com força, lançou a cabeça para trás e fechou os olhos. Durante os dez minutos seguintes, tomou-a da única forma possível, com os olhos, mas, passado algum tempo, a sua mente começou a vaguear. Pensou em Michael Osbourne. No assassínio fracassado no ferry. No homem chamado Outubro. Seria uma luta interessante. Um deles não iria sobreviver. Se fosse Osbourne a morrer, a Sociedade subsistiria e Mitchell Elliott ganharia os seus bilhões. Se fosse Outubro... O Diretor estremeceu com esse pensamento. Trabalhara muito e durante demasiado tempo para que tudo ruísse. Estava demasiado em jogo, investira-se demasiado, para que agora terminasse em fracasso.

Voltou a fitar Daphne e encontrou os seus olhos castanhos fixos nele. Tinha o olhar direto e aberto de uma criança.

- Esteve longe durante alguns minutos - comentou.

A surpresa atravessou-lhe o rosto. Daphne despojava-o de todas as suas velhas defesas.

- Eu também olho, sabe. Quero saber se estou a fazê-lo feliz.

- Fazes-me muito feliz.

- Está tudo bem, amor? ?

- Está tudo ótimo.

- Tem certeza?

- Sim, certeza absoluta.


CONTINUA

WASHINGTON, D. C.

Susanna Dayton passou a tarde de domingo trabalhando do meio-dia às oito, sem interrupção, salvo para abrir a porta no meio da tarde para uma entrega. Tom Logan, o editor do Post, exigira mais, e ela o encontrara. O artigo era inatacável. Possuía documentos imobiliários e bancários reais que corroboravam as acusações mais graves. Tinha fontes humanas duplas e triplas que corroboravam as restantes. Nenhum dos mencionados no artigo poderia pôr em causa o que era dito. Os fatos falavam por si, e Susanna estava na posse dos fatos.

O dia foi gasto em escrever. Trabalhou em casa, pois não queria distrações. O artigo estava repleto de informações: números, nomes, datas, locais, pessoas. O desafio de Susanna era transformá-lo numa história interessante. Começou com uma breve descrição da personagem central, James Beckwith, um jovem procurador, um talento promissor sem fortuna pessoal, que poderia auferir no setor privado um rendimento bastante superior ao da política. Surge então Mitchell Elliott, um empresário da defesa e benfeitor republicano extremamente abastado. Continue na política, sugeriu Elliott ao jovem Beckwith, e deixe tudo comigo. Ao longo dos anos, Elliott enriqueceu os Beckwith com uma série de transações imobiliárias e financeiras. E o homem que concebeu muitos dos esquemas foi o principal advogado de Elliott, e lobista de Washington, Samuel Braxton.

O resto derivava dessa premissa. Pelas oito horas, Susanna escrevera um artigo de quatro mil palavras. Iria mostrá-lo a tom Logan na manhã seguinte. Devido à natureza bastante séria das acusações, Logan teria de o submeter ao crivo do editor geral e do editor chefe do jornal. Depois os advogados iriam analisar uma cópia. Sabia que os dias seguintes seriam longos e difíceis.

Ao artigo faltava um derradeiro elemento: comentários da Casa Branca, de Mitchell Elliott e de Samuel Braxton. Susanna procurou no Rolodex, encontrou o primeiro número de telefone e marcou-o.

- Alatron Defense Systems. - Era uma voz masculina, átona e vagamente militar. - Fala Susanna Dayton, do Washington Post. Gostaria de falar com Mitchell Elliott, por favor.

- Sinto muito, Sra.. Dayton, mas de momento o senhor Elliott não se encontra disponível.

- Importa-se de lhe transmitir um recado?

- com certeza.

- Tem uma caneta à mão? - E claro, Sra. Dayton.

- Gostaria que o senhor Elliott comentasse a seguinte informação contida num artigo que estou a preparar. - Falou durante cinco minutos, sem nunca ser interrompida pelo homem do outro lado da linha. Imaginou que o telefonema estivesse a ser gravado sem o seu consentimento. - Percebeu tudo?

- Sim, Sra. Dayton.

- E vai transmiti-lo ao senhor Elliott?

- É claro.

- Ótimo. Muito obrigada.

Susanna desligou e voltou a procurar no Kolodex. Ainda tinha o número pessoal de Paul Vandenberg, do tempo em que trabalhara na Casa Branca. Marcou o número.

Vandenberg atendeu pessoalmente.

- Senhor Vandenberg, fala Susanna Dayton. Sou jornalista do...

- Sei quem a Sra. é, Sra. Dayton. Não gosto de ser incomodado em casa. O que posso fazer por si?

Será que gostaria de comentar a seguinte informação que está incluída num artigo que redigi para o Post? - Mais uma vez, Susanna falou durante cinco minutos sem interrupção.

- Porque não me envia por fax uma cópia do artigo, para que eu possa analisar com mais cuidado as acusações? - sugeriu Vandenberg, quando Susanna terminou. - Receio não poder fazê-lo, senhor Vandenberg.

- Nesse caso, receio não ter mais nada a dizer-lhe, Sra. Dayton, exceto que produziu um artigo jornalístico desprezível, que não merece ser agraciado com um comentário.

Susanna anotou a citação no bloco de notas.

- Boa noite, Sra. Dayton.

A linha ficou em silêncio. Susanna procurou no Rolodex e encontrou o telefone de casa de Samuel Braxton. Estendia a mão para o telefone quando este tocou.

- Fala Sam Braxton.

- As notícias correm depressa.

- Pelo que sei, está prestes a publicar um artigo que calunia e difama Mitchell Elliott e minha pessoa. Quero que tenha noção das consequências de suas ações.

- Por que não me deixa ler as alegações antes de me ameaçar com um processo?

- Já me resumiram as acusações, Sra. Dayton. Pretende publicar esse relato no jornal de amanhã?

- Ainda não decidimos.

- Vou assumir essa resposta como um não.

Susanna cobriu o bocal e murmurou:

- Raios o partam, Sam Braxton, seu sacana arrogante.

- Por que não nos encontramos pela manhã e discutimos as alegações?

Susanna hesitou. Se discutisse assuntos legais com Braxton sem um advogado do Post a seu lado, Tom Logan acabaria com ela. Ainda assim, queria obter declarações de Braxton.

- É um favor que faz a si mesma, Sra. Dayton. Que mal há?

- Onde?

- Café da manhã no Four Seasons, Georgetown. Às oito.

- Lá nos encontraremos.

- Boa noite, Sra. Dayton.

Susanna tinha mais um telefonema a dar, para Elizabeth Osbourne. Estava prestes a publicar um artigo devastador sobre o homem mais poderoso da firma da amiga. Elizabeth merecia ser avisada. Teclou o número.

- Alô?

- Alô, Elizabeth? Escute, acho que precisamos falar.

 

Quando lhe telefonaram de Colorado Springs, Mark Calahan estava sentado na biblioteca da casa de Kalorama, a rodar os botões de um sofisticado equipamento de áudio. Salvo Susanna Dayton, Calahan sabia mais sobre as alegações presentes no artigo do que qualquer outra pessoa. Colocara sob escuta o telefone de Susanna na redação do Post, na 1th Street, o mesmo no telefone de casa. Instalara microfones na sala de estar e no quarto. Ouvia-a comer. Ouvia-a dormir. Ouvia-a falar com o cachorro. Ouviu-a na cama com um repórter televisivo, depois de um jantar no restaurante 1789, em Georgetown. Entrava na casa com regularidade e passava em revista os arquivos do computador. Um antigo criptoanalista da NSA, também a serviço de Mitchell Elliott, quebrara o código pueril de Susanna, o que permitira que Calahan lesse os arquivos à vontade. Só lhe faltava uma coisa: o produto final. - Entre na casa dela o mais depressa que puder. Temos que saber ao certo o que temos - ordenou Elliott.

- Sim, senhor.

- E quero que seja você a tratar disso. Não quero fracasso.

Calahan desligou o telefone e voltou a concentrar-se no equipamento. Aumentou os níveis de áudio dos transmissores no interior da casa de Susanna Dayton. Algo lhe chamou a atenção. Vestiu um blusão de couro preto e correu para a noite.

Dirigiu rapidamente através do noroeste de Washington, de Kalorama para Georgetown, e estacionou atrás da van de vigilância, em Volta Place. Bateu à porta traseira e o técnico deixou-o entrar. Dois minutos mais tarde, avistou Susanna Dayton a sair de Pomander Walk, vestida com um anoraque e calças de lycra, o cão a seu lado.

Calahan esperou até que ela desaparecesse de vista. Saiu da van, atravessou Volta Place e entrou em Pomander Walk. Possuía uma cópia da chave da porta. Segundos depois, tinha entrado.

Susanna atravessou a Wisconsin Avenue e correu para leste, ao longo da P Street. Era tarde e estava escuro, e combinara correr com Elizabeth pela manhã, mas estivera fechada dentro de casa o dia todo e precisava de fazer alguma coisa para aliviar o stresse. Doía-lhe o pescoço de olhar para a telado computador. Os olhos ardiam-lhe. Mas, depois de pouco mais de um quilômetro, sentiu a transpiração por baixo da gola alta. Foi dominada pela magia da corrida e a tensão do dia deixou-lhe lentamente o corpo.

Esforçou-se ainda mais, voando sobre o passeio de tijolo da P Street, passando à frente das grandes casas iluminadas. As patas de Carson ressoavam ritmadamente a seu lado. Passou por uma loja de conveniência, depois por um pequeno café. Jack e a nova esposa estavam sentados em bancos altos junto à montra, a falar bem próximos um do outro. Quando passou à frente deles, Susanna fitou-os como uma idiota. Jack levantou a cabeça e cruzaram o olhar. Depois a esposa viu-a.

Humilhada, Susanna desviou o olhar e correu mais depressa. Estúpida! Grande estúpida! Por que não olhaste para o outro lado? E que raio estavam eles a fazer em Georgetown? Fora por isso que Jack se mudara para Bethesda, para não andarem sempre a esbarrar um no outro. Deus do céu, porque não se limitara ela a olhar para o outro lado? Porque se deixara fitá-los como uma adolescente com uma paixoneta? E porque lhe batia o coração descompassado? A resposta era simples. Ainda amava Jack e nunca deixaria de o amar.

As lágrimas toldaram-lhe a visão. Correu ainda mais depressa. Carson esforçou-se por acompanhá-la. Os pés ressoavam furiosamente nos tijolos. Oh, meu Deus, por que estava ele ali sentado? Porra para ti, Jack. Porra! Não viu a raiz da árvore que se erguera um pouco do passeio. Não se apercebeu do pedaço de tijolo partido que se levantara. Sentiu uma pontada de dor no tornozelo e viu o chão saltar para ela nas trevas.

Susanna ficou inerte no chão, os olhos fechados, a arquejar. Sentia-se como se tivesse levado um coice na barriga. Tentou abrir os olhos, mas não conseguiu.

Por fim, sentiu alguém sacudir-lhe o ombro, chamando-a pelo nome. Abriu os olhos e viu Jack ajoelhado a seu lado.

- Susanna, você está bem? Consegue me ouvir?

Voltou a fechar os olhos.

- Que diabo está fazendo em Georgetown? - perguntou.

- Sharon e eu tivemos um jantar. Minha nossa Sra., não sabia que tinha de te avisar com antecedência.

- Não, fiquei sobressaltada, só isso.

- Lembra da Sharon, não?

Estava de pé, atrás de Jack, um espanto de vestido formal e casaco curto pretos, que exibiam um par de pernas fenomenal. Era criminosamente magra. O casaco estava desabotoado, revelando um par de seios grandes e redondos. Fazia o tipo de Jack: loura, olhos azuis, grandes seios, cabeça oca.

- Gostaria de poder dizer que é um prazer vê-la, Sharon, mas estaria mentindo - declarou.

- Vamos para seu lado. Damos carona a você?

- Não, obrigada. Preferia ficar morrendo na rua.

Jack segurou-lhe a mão. Carson soltou um rosnado profundo. :

- Não faz mal, Carson. Ele é mau, mas inofensivo.

Susanna levantou-se.

- Vem ali um táxi. Jack, faz alguma coisa de útil e chama. Jack dirigiu-se à estrada e acenou ao táxi, que parou junto ao passeio. Susanna coxeou até o carro e entrou, seguida pelo cão.

- Até à vista, Jack, Sharon.

Fechou a porta e o táxi arrancou. Recostou-se no banco traseiro, agarrada ao tornozelo, a cabeça apoiada no couro frio do assento. Chorou baixinho. Carson lambeu-lhe a mão. Porque teve ele de me ver assim, meu Deus? Logo agora, porquê? O táxi parou entre Volta Place e Pomander Walk. Susanna procurou no bolso da frente do anoraque e tirou uma nota de cinco dólares, que entregou ao taxista.

- Precisa de ajuda? - indagou o homem.

- Não, eu fico bem, obrigada.

Quando Mark Calahan subiu as escadas e entrou no quarto do primeiro andar que Susanna utilizava como gabinete, o computador estava ainda ligado. Sentou-se, retirou umo disquete do bolso do casaco e inseriu-a na drive do computador. Já conhecia bem o sistema, as diretorias onde ela guardava os apontamentos e as cópias. Encontrou o atalho para o artigo e clicou no ícone. O software de encriptação solicitou a palavra-chave. Calahan introduziu-a e o artigo surgiu na tela.

Calahan não se deu ao trabalho de ler. Leria mais tarde, quando dispusesse de mais tempo. Voltou a fechar o arquivo e digitou o comando para o copiar para o disquete. Mais uma vez, o software pediu a chave, que Calahan voltou a fornecer.

Uma vez dentro da casa, decidiu aproveitar a oportunidade para recolher mais informações. Calahan seguira várias das corridas de Susanna, que nunca duravam menos de trinta minutos. Tinha tempo de sobra. Três blocos de notas estavam ao lado do teclado. Abriu a capa do primeiro. As folhas estavam cheias com os gatafunhos esquerdinos de Susanna. Tirou uma microcâmara do bolso, acendeu a luz do abajur na mesa e começou a fotografar.

Estava na metade do segundo bloco quando ouviu a chave ser introduzida na fechadura da porta da rua. Praguejou em silêncio, apagou a luz e puxou da cintura uma pistola 9mm com silenciador.

As dores no tornozelo direito de Susanna eram lancinantes. Fechou a porta e sentou-se no divã da sala. Descalçou o sapato e a peúga e observou o ferimento. O tornozelo estava inchado e roxo. Coxeou até a cozinha, encheu um saco de plástico com gelo e tirou uma garrafa de cerveja do frigorífico. O analgésico estava no armário dos medicamentos da casa de banho. Coxeou escadas acima e ao longo do corredor, apoiada ao corrimão para se equilibrar. Entrou na casa de banho, pousou a cerveja no lavatório e abriu o armário. Encontrou o analgésico e engoliu dois comprimidos com cerveja. Fechou a porta do armário.

No espelho viu o reflexo de um homem atrás de si.

Susanna abriu a boca para gritar, mas uma mão enluvada tapou-lhe a boca, abafando qualquer som.

- Cala-te, cabra, se não mato-te - disse o homem por entre os dentes cerrados. Susanna debateu-se ainda mais. Apoiou o peso no tornozelo ferido, levantou o pé esquerdo e puxou-o atrás contra a canela do indivíduo, tal como aprendera nas aulas de autodefesa urbana. O homem gemeu de dor e afrouxou o aperto. Susanna girou para a direita e atacou com esse cotovelo, acertando na face do atacante.

O homem largou-a e Susanna fugiu.

Cambaleou até o corredor, e depois até o gabinete de trabalho. Ao levar a mão ao telefone, apercebeu-se de que o indivíduo estivera a mexer no computador e nos blocos de notas. Levantou o receptor.

O homem apareceu na entrada e apontou-lhe uma arma.

- Larga a merda do telefone.

- Quem é você?

- Larga o telefone e não te faço mal.

Carson subiu as escadas a correr, a ladrar furiosamente. Agachou-se no corredor, com os dentes arreganhados ao intruso. O homem ergueu calmamente a arma e disparou duas vezes contra o cão. Carson ganiu uma vez e ficou em silêncio.

- Cabrão! Cabrão de merda! Quem é você? Foi Elliott que o enviou? Diga, porra! Foi Mitchell Elliott que o enviou?

- Larga o telefone. Já!

Susanna baixou o olhar e marcou o nove e o um.

O primeiro tiro acertou-lhe na cabeça antes de conseguir marcar o último dígito. Caiu para trás, ainda agarrada ao receptor, ainda consciente. Olhou para cima. O homem agigantava-se sobre ela, a arma mais uma vez apontada para a cabeça.

- Na cara não - implorou. - Pelo amor de Deus, não me dê um tiro na cara. A expressão de fúria do homem suavizou-se por um instante. Baixou a arma alguns graus e o cano apontou ao peito. Susanna fechou os olhos. A arma emitiu dois sons breves. Susanna sentiu apenas um momento de dor lancinante e depois viu um clarão de luz brilhante. Em seguida, apenas escuridão.

Calahan baixou-se, retirou-lhe o receptor da mão e voltou a colocá-lo no descanso. A morte fora rápida, mas não completamente silenciosa. Tinha de agir depressa. A polícia iria dar a volta à casa. Se descobrissem vestígios de que a mulher estava a ser vigiada, talvez associassem a morte a Elliott. A limpeza demorou menos de cinco minutos. Ao sair da casa, Calahan empunhava os blocos de notas, os dois microfones do quarto, o microfone do telefone, a bolsa de Susanna e o computador portátil.

Saiu de Pomander Walk, atravessou Volta Place e entrou na van de vigilância. Mais tarde iria buscar o carro. Enquanto se afastava a alta velocidade, marcou o número privado de Mitchell Elliott no celular. - Receio que nos tenha surgido um pequeno problema, senhor Elliott. Daqui a cinco minutos ligo-lhe, a partir de uma linha segura.

Calahan desligou e atirou o telefone contra o para-brisa.

- Raios partam, porque chegou ela mais cedo? Cabra de merda!


BRÉLÉS, FRANÇA

Delaroche decidiu que precisava de uma mulher.

Chegou a essa conclusão depois de ver o conteúdo do disco uma segunda vez, agora no computador da casa de Brélés. Dois dos três alvos que restavam eram conhecidos mulherengos. Delaroche conhecia os seus hábitos, onde comiam e bebiam, sabia qual a zona onde caçavam. Mesmo assim, seria difícil aproximar-se desses alvos.

Uma mulher tornaria as coisas mais fáceis.

Delaroche precisava de uma mulher.

Tinha mais um dia para gastar em Brélés. Quando terminou com os arquivos, foi andar de bicicleta. O tempo estava bom: limpo, para Novembro, com vento fraco vindo do mar. Sabia que passaria bastante tempo sem bicicleta, por isso fez por se levar ao limite. Pedalou para o interior ao longo de alguns quilômetros, até as colinas arborizadas da Finistère, regressando então à beira-mar. Fez uma pausa nas ruínas em Pointe de Saint-Mathieu e depois dirigiu-se a norte, ao longo da costa, de volta a Brélés.

Dedicou o início da tarde à preparação. Limpou e oleou as suas duas melhores armas, uma Beretta de 9 mm e a Glock, e confirmou várias vezes os mecanismos de disparo e os silenciadores. Tinha uma terceira arma que mantinha presa ao tornozelo, num coldre de velcro, uma pequena Browning automática concebida para ser guardada numa bolsa de mulher. No caso de uma pistola não ser adequada, levaria uma faca, um punhal sólido com lâmina dupla de quinze centímetros e sistema automático.

De seguida reuniu os passaportes falsos, francês, italiano, holandês, espanhol, sueco, egípcio e americano, e organizou as finanças. Tinha os duzentos mil francos da galeria de Paris, e em Zurique levantaria o meio milhão de dólares. Seria mais do que suficiente para financiar a missão. Saiu ainda de dia e dirigiu-se à aldeia. Comprou pão na boulangerie e salsicha, queijo e patê a Mademoiselle Plauché. Didier e os amigos bebiam vinho no café. Acenou a Delaroche para que se lhes juntasse. Num gesto fora do comum, o convite foi aceite. Pediu mais vinho e comeu pão com azeitonas até o pôr do sol. Nessa noite, tomou uma refeição simples no terraço de pedra com vista para o mar. Concordara em matar outros três homens em quatro semanas. Apenas um louco aceitaria tal coisa. Teria sorte se sobrevivesse à missão. Mesmo que vivesse, talvez não pudesse regressar a Brélés.

Delaroche sempre matara sem paixão mas, pela primeira vez em muito tempo, não se recordava quando, sentia uma excitação que lhe percorria o corpo. Era semelhante à sensação que tivera com dezesseis anos, na noite em que matara pela primeira vez.

Levantou os pratos e lavou-os na cozinha. Depois passou a hora seguinte a vasculhar a casa e a queimar tudo o que poderia sugerir a sua existência. Delaroche apanhou o comboio da manhã de Brest para Paris, e o comboio do meio-dia de Paris para Zurique. Chegou uma hora depois de o banco ter fechado. Deixou o pequeno saco na estação e cambiou alguns francos franceses num bureau de change.

Percorreu uma rua cintilante, ladeada por lojas iluminadas e exclusivas. Numa loja da Gucci, utilizou dinheiro vivo para comprar uma pequena mala preta para documentos. Disse ao empregado de balcão que não precisava de saco e, momentos depois, estava de volta ao passeio, com a mala dependurada do braço direito. Quando chegou à entrada austera do banco, nevava ligeiramente. A única indicação da natureza do estabelecimento era a pequena placa dourada ao lado da porta. Delaroche pressionou o botão da campainha e aguardou enquanto o segurança o inspecionava através da lente da câmara de vídeo instalada por cima da porta.

A tranca da porta abriu e pôde entrar numa pequena antecâmara de segurança. Pegou num telefone preto e anunciou que tinha um encontro com Herr Becker. Este chegou momentos depois, imaculadamente vestido, um palmo mais baixo do que Delaroche, e com uma cabeça calva que brilhava na luz fluorescente.

Delaroche seguiu-o ao longo de um corredor silencioso e debilmente iluminado, forrado com carpete bege. Becker levou-o para outra sala de segurança e trancou a porta por onde entraram. Delaroche sentia-se claustrofóbico. Becker abriu um pequeno cofre de onde retirou o dinheiro. Delaroche fumou enquanto Becker contou as notas.

A transação demorou menos de dez minutos a ser concluída. Delaroche assinou o recibo pelo dinheiro e Becker ajudou-o a guardá-lo na pasta.

Na sala de entrada, Becker olhou para a rua.

- Todo o cuidado é pouco, Monsieur Delaroche - disse. - Andam ladrões por aí. - Obrigado, Herr Becker, julgo poder tomar conta de mim próprio. Tenha uma boa noite.

- Igualmente, Monsieur Delaroche.

Delaroche não quis andar muito com o dinheiro, por isso apanhou um táxi até a estação. Levantou o saco do cacifo e comprou um bilhete de primeira classe num comboio noturno para Amsterdam.

Delaroche chegou à Centraalstation de Amsterdam bem cedo na manhã seguinte. Atravessou rapidamente o hall apinhado, os olhos orlados de vermelho pela noite mal dormida, e saiu para o sol brilhante. A visão das bicicletas surpreendeu-o: milhares delas, filas e filas de bicicletas.

Delaroche apanhou um táxi até o Hotel Ambassade, no Central Canal Ring, e registrou-se como Senor Arminana, um empresário espanhol. Passou uma hora ao telefone, mudando de língua para o caso de a telefonista do hotel estar a ouvir a conversa, e utilizando o léxico codificado do submundo do crime. Dormiu um pouco e, ao fim da manhã, estava sentado à janela de um restaurante cheio de fumo, a pouca distância do hotel.

Lá estava a livraria, do outro lado de uma praça movimentada. O estabelecimento granjeara a reputação bem merecida de snobismo, pois especializara-se em literatura e em filosofia, e recusava-se a vender ficção ou thrillers comerciais. O empregado do hotel comentou que certa vez o gerente expulsara à força de braços uma mulher que se atrevera a perguntar pelo novo livro de um famoso escritor americano de romances.

Era o lugar perfeito para Astrid. Avistou-a por duas vezes a arrumar livros na montra, a dar sugestões a um cliente que estava obviamente mais interessado nela do que em qualquer livro que pudesse estar a ser recomendado.

Astrid tinha esse efeito sobre os homens, sempre assim fora.

Era por isso que Delaroche viajara até Amsterdam.

Nascera Astrid Meyer, na vila de Kassel, perto da fronteira da Alemanha Oriental. Quando o pai abandonou a família, em 1967, a mãe voltara a utilizar o seu nome de solteira, que era Lizbet Vogel.

Após o divórcio, Lizbet instalou-se numa casa à beira de um lago, nas montanhas suíças, nos arredores de Berna. Perto do final da guerra, em Julho de 1944, a família fugiu da Alemanha e procurou refúgio numa aldeia próxima. Foi aí, sozinha nas montanhas com a mãe, que teve início o fascínio de Astrid Meyer pelo avô, Kurt Vogel.

Fumador inveterado durante toda a vida, Vogel morreu de cancro dos pulmões em 1949, dez anos antes de Astrid nascer. No fim da vida, Gertrude, a esposa, tentara afastá-lo das montanhas, mas Vogel acreditava que o ar alpino seria a sua salvação. Morreu em casa, sem conseguir respirar.

Trude Vogel pouco sabia acerca do trabalho do marido durante a guerra, mas o que sabia contou a Lizbet e esta transmitiu-o a Astrid. Abandonara uma carreira legal promissora em 1935 para se juntar à Abwehr, os serviços secretos alemães. Fora bastante próximo do chefe da Abwehr, Wilhelm Canaris, executado por traição pelos Nazis, em Abril de 1945. Enganara Trude durante anos, dizendo-lhe que era o conselheiro legal de Canaris. Mais tarde, admitiria a verdade, que recrutara agentes que eram enviados para Inglaterra, para espiar os britânicos.

Lizbet recordava-se da noite.

O pai mudara a família para a Bavária, pois Berlim já não era segura. Lembrava-se do pai a chegar a casa, muito tarde, recordava-se da sua presença no quarto, enquadrado pela luz tênue que entrava pela porta. Mais tarde, recordava-se do som da mãe e do pai a falarem em voz baixa na cozinha, e do cheiro do jantar do pai. E depois ouviu o barulho de louça a partir-se, o som da mãe a arquejar. Ela e Nicole, a irmã gémea, rastejaram até o alto das escadas e olharam para o rés-do-chão. Lá em baixo, na cozinha, viram os pais e dois homens com as fardas pretas da SS. Não reconheceram um dos homens. O outro era Heinrich Himmler, o homem mais poderoso da Alemanha, logo a seguir a Adolf Hitler.

Durante anos, Lizbet Vogel acreditara que o pai fora um nazi, aliado de Himmler e das SS, um criminoso de guerra que escolhera morrer nas montanhas da Suíça, em vez de enfrentar a justiça na sua pátria. Concluiu que a mãe, em segredo, acreditava no mesmo. Quando a mãe morreu, Lizbet contou a história a Astrid, que cresceu a acreditar que o avô fora um nazi.

Então, durante uma tarde de Outubro de 1970, um homem telefonou para a casa e perguntou se poderia fazer uma visita. Chamava-se Werner Ulbricht, e trabalhara com Kurt Vogel na Abwehr, durante a guerra. Disse saber a verdade acerca do trabalho de Vogel. Lizbet pediu-lhe que lá fosse. Chegou uma hora depois. Era magro, pálido como farinha, apoiava-se numa bengala e usava uma pala negra sobre um olho.

Caminharam durante algum tempo, Werner Ulbricht, Lizbet e Astrid, e depois sentaram-se na margem relvada do lago e beberam café de um termo. Apesar do frio outonal no ar, o rosto de Ulbricht estava coberto de suor devido ao esforço. Descansou um pouco enquanto bebia café, e depois contou-lhes a história.

Kurt Vogel não era nazi. Odiava-os profundamente. Entrou para a Abwehr com a condição de não ser obrigado a aderir ao Partido, e Canaris teve todo o prazer em fazer-lhe a vontade. Não era conselheiro legal de Canaris. Era um angariador de agentes, e muito bom: meticuloso, brilhante, implacável, à sua maneira. Um dos seus agentes na Grã-Bretanha fora uma mulher. Juntos, tinham descoberto o mais importante segredo da guerra: a data e o local da invasão. Também descobriram que os britânicos estavam embrenhados numa fraude maciça para ocultar a verdade. Mas, em Fevereiro de 1944, Hitler despediu Canaris e colocou a Abwehr sob as ordens de Himmler e das SS. Vogel guardou a informação e juntou-se aos conspiradores anti-Hitler da Schware Kapelle, a Orquestra Negra. Quando o golpe de de julho terminou em desastre, muitos dos elementos da Schware Kapelle foram presos e executados. Vogel fugiu para a Suíça.

Quando Ulbricht concluiu a narrativa, os olhos de Lizbet estavam marejados de lágrimas. Fitou o lago e observou o vento a agitar a superfície. - Quem era o outro homem que foi com Himmler a casa da minha mãe? - perguntou. - Era Walter Schellenberg, um oficial de alta patente das SS. Assumiu a Abwehr quando Canaris foi despedido. O seu pai enganou-o quanto à invasão. -- E a mulher que era agente dele...? - indagou Lizbet, com a voz fraquejando. - Estava apaixonado por ela? A mãe sempre pensou que ele estava apaixonado por outra mulher.

- Foi há muito tempo.

- Diga-me a verdade, Herr Ulbricht.

- Sim, ele a amava muito.

- Como se chamava?

- Anna Katerina von Steiner. O pai obrigou-a a tornar-se agente. Nunca regressou da Inglaterra.

A obsessão de Astrid pelo avô teve início nessa tarde. O seu avô, aliado de Wilhelm Canaris, um bravo resistente da Schware Kapelle que tentou livrar a Alemanha de Hitler! No sótão, encontrou uma arca com os pertences que a mãe guardara: velhos livros de direito e algumas fotografias antigas, cheias de rachas com a idade, peças de roupa. Observou-as horas a fio. Quando teve idade para isso, chegou a imitar a aparência do avô: o cabelo espetado que parecia ter sido cortado por ele, os óculos com lentes de cristal de rocha, os severos ternos de agente funerário. Tentou visualizar a agente chamada Anna Katerina von Steiner, a mulher que ele amara. Astrid não encontrou vestígios dela nos documentos do avô, por isso compôs um retrato mental: bela, corajosa, implacável, violenta.

Com dezoito anos, Astrid regressou à Alemanha para frequentar a universidade em Munique e envolveu-se de imediato com a política de esquerda. Acreditava que os Nazis ainda governavam a Alemanha. Acreditava que os Americanos eram ocupadores. Acreditava que os industriais escravizavam os trabalhadores. Imaginava o que o avô, o grande Kurt Vogel, teria feito. Iria juntar-se à resistência, é claro.

Em 1979, abandonou os estudos na universidade e aderiu à Fação do Exército Vermelho. Os líderes disseram-lhe que teria de abdicar do nome verdadeiro e assumir um nom de guerre. Escolheu Anna Steiner e desapareceu no mundo do terrorismo.

Morava numa casa-barco no Prinsengracht. Às três da tarde saiu da livraria, pegou na bicicleta e cruzou a praça. Delaroche pediu a conta.

Caminhou durante algum tempo, a empurrar a bicicleta, sem pressas. Delaroche seguiu-a calmamente. Pouco mudara desde a última vez que a vira, anos antes. Era alta e um pouco desajeitada, com pernas bonitas mas pouco graciosas e mãos compridas que pareciam buscar eternamente um repouso confortável. O rosto pertencia a outra época: tez pálida luminosa, maçãs do rosto largas, um nariz grande, olhos da cor da água dos lagos das montanhas. O cabelo sempre mudara de acordo com o estado de espírito e com a política adoptada, mas agora, no início da meia-idade, regressara ao estado natural: comprido, louro, preso com uma simples mola preta.

Delaroche seguiu-a para norte, ao longo do Keizersgracht. Astrid cruzou o canal em Reestraat, ao que voltou a dirigir-se a norte ao longo do Prinsengracht. Entrou na sombra da Westerkerk, onde se situa o túmulo anônimo de Rembrandt. Delaroche estugou o passo e reduziu a distância que os separava. Ao ouvir os passos, Astrid virou-se rapidamente, a mão na bolsa e alarme no rosto.

Delaroche segurou-lhe o braço com gentileza.

- Sou eu, Astrid. Não tenha medo.

O Krista tinha treze metros de comprimento, com uma casa de leme na popa, uma proa elegante e uma pintura verde e branca nova.

Estava atracado ao lado de uma barca quadrada e, para subir a bordo, Astrid e Delaroche tiveram de atravessar o convés de ré do vizinho. O interior estava limpo e era surpreendentemente espaçoso, com uma cozinha, um salão e um quarto na proa. A luz débil do final da tarde entrava por um par de claraboias e por uma fileira de vigias ao longo do talabardão.

Delaroche instalou-se no salão, observando Astrid a fazer café na cozinha. Falavam holandês, pois fazia-se passar por uma divorciada de Roterdão e não queria que os vizinhos a ouvissem a falar em alemão. Tal como todos os habitantes da cidade, era obcecada com a bicicleta. Já lhe tinham roubado quatro desde que chegara a Amsterdam. Contou a Delaroche sobre o dia em que passeava ao longo do Singel e passou por um homem que vendia bicicletas usadas. Entre elas, Astrid viu uma das suas bicicletas desaparecidas. Disse ao homem que lhe pertencia e exigiu que a devolvesse. O indivíduo replicou que ela estava maluca. Astrid espreitou por baixo do selim e encontrou a placa com o nome que lá colocara. Ele chamou-lhe mentirosa. Astrid agarrou na bicicleta e declarou que ia levá-la. O homem tentou detê-la. Ela atacou com um golpe lateral do cotovelo, fraturando-lhe a laringe, e depois partiu-lhe o queixo com um pontapé à meia volta. Levantou a bicicleta e afastou-se ao som das palmas, elevada ao estatuto de heroína de todos os habitantes de Amsterdam que já tinham perdido uma bicicleta no mercado negro.

Levou o café para o salão e sentou-se à frente de Delaroche. Soltou a mola do cabelo e deixou que este lhe caísse sobre os ombros. Era uma mulher bastante atraente que aprendera a esconder a beleza para se fundir com o ambiente que a rodeava. Delaroche permitiu-se um momento a apreciá-la.

- E o que te traz a Amsterdam, Jean-Paul? Negócios ou prazer?

- És tu, Astrid. Preciso da tua ajuda.

Abanou lentamente a cabeça e acendeu um cigarro. Delaroche imaginara que pudesse não estar disposta a trabalhar com ele. Matara com frequência e pagara um preço muito elevado por isso, uma vida passada a fugir a todas as forças policiais e serviços secretos do Ocidente. Conseguira acomodar-se tanto quanto possível, e agora Delaroche pedia-lhe que abrisse mão de tudo isso.

- Há muito tempo que deixei esse mundo, Jean-Paul. Estou cansada de matar.

Não gosto tanto de o fazer como tu.

- Eu não gosto de matar. Apenas o faço porque me pagam e porque não sei fazer mais nada. Em tempos foste muito boa.

- Matava porque acreditava em alguma coisa. Há uma grande diferença. E vê só o que consegui - contrapôs, apontando para o que a rodeava. - Bem, imagino que pudesse ser pior. Podia estar em Damasco. Que tempos terríveis.

Delaroche ouvira dizer que ela passara dois anos escondida na Síria, cortesia de Hafez al-Assad e dos seus serviços secretos, e outros dois anos na Líbia, como convidada de Mu'ammar Khadafi.

- Estou oferecendo a liberdade, a oportunidade de largar tudo para trás e dinheiro suficiente para passar o resto da vida num lugar confortável. Quer ouvir mais?

Astrid apagou o cigarro e acendeu outro de imediato.

- Raios te partam.

Delaroche levantou-se.

- Imagino que seja um sim - disse.

- Quantas pessoas vamos matar?

- Volto daqui a meia hora.

Regressou ao hotel, fez as malas e pagou a conta. Trinta minutos depois, descia pela escotilha do Krista, com o pequeno saco de viagem e uma pasta de nylon com o computador portátil. Voltaram a instalar-se no salão, Delaroche ao computador, Astrid sentada numa otomana. Delaroche percorreu os alvos, um a um. Astrid manteve-se imóvel como uma estátua, as pernas cruzadas por baixo do corpo, uma mão comprida a apoiar o queixo, a outra com um cigarro. Não disse nada, não fez perguntas, pois, tal como Delaroche, tinha uma memória prodigiosa.

- Se me ajudares, pago-te um milhão de dólares - adiantou Delaroche, ao concluir as informações. - E ajudo-te a instalares-te num sítio seguro e um pouco mais agradável do que Damasco. - Quem te contratou?

- Não sei.

Astrid ergueu uma sobrancelha.

- Nem parece teu, Jean-Paul. Devem estar a pagar-te muito dinheiro. - Puxou uma passa do cigarro e soprou uma espiral de fumo para o teto. - Leva-me a jantar. Tenho fome.

Tinham sido amantes, há muito tempo, quando Delaroche ajudou a Fação do

Exército Vermelho com um assassinato particularmente difícil. Regressaram ao

Krista depois do jantar num pequeno restaurante francês com vista para o Herengracht. Delaroche deitou-se na cama. Astrid sentou-se a seu lado e despiu-se em silêncio.

Tinham passado muitos meses desde que levara um homem para a sua cama e, da primeira vez, amou-o rapidamente. Depois acendeu velas, e juntos fumaram cigarros e beberam vinho, com a chuva a martelar na claraboia por cima dos seus corpos. Fez amor com ele uma segunda vez muito lentamente, envolvendo-lhe o corpo com os braços e as pernas compridas, tocando-lhe como se fosse feito de cristal. Astrid gostava de ficar por cima. Gostava de controlar. Não confiava em ninguém, especialmente nos amantes. Pressionou-lhe o corpo durante muito tempo, beijando-lhe a boca, fitando-lhe os olhos. Depois ajoelhou-se, as pernas abertas sobre o corpo do parceiro, e foi como se Delaroche já lá não estivesse. Astrid brincou com o cabelo, afagou os mamilos dos seios pequenos e arrebitados. Depois fechou os olhos e lançou a cabeça para trás. Implorou-lhe que chegasse dentro dela. Quando ele o fez, Astrid estremeceu várias vezes e depois tombou sobre o peito dele, o corpo úmido com a transpiração.

Momentos depois, deitou-se de costas e fitou a chuva a escorrer na claraboia. -- Promete-me uma coisa, Jean-Paul Delaroche - disse-lhe. Promete-me que não me matas quando já não precisares de mim.

- Prometo que não te mato.

Astrid apoiou-se no cotovelo, olhou-o nos olhos e beijou-lhe os lábios.

- Tem visto Arbatov?

- Sim, em Roscoff, há uns dias.

- Como está ele? - perguntou Astrid.

- Como sempre - respondeu Delaroche.


WASHINGTON, D. C.

Naquela manhã fria, Elizabeth Osbourne aguardava à esquina das ruas 34th e M, a correr sem sair do sítio, a soprar as mãos para as aquecer. Olhou para o relógio. Susanna estava cinco minutos atrasada. A amiga tinha muitos defeitos, mas a falta de pontualidade não se incluía na lista. Atravessou a rua e dirigiu-se a um telefone público, onde marcou o número da casa de Susanna. O atendedor de chamadas disparou.

- Susanna, é a Elizabeth. Atende, se aí estiveres. Estou à tua espera à esquina. Vou dar-te mais alguns minutos, mas depois tenho de me ir embora. Volto a ligar-te do trabalho.

Ligou para a extensão de Susanna, no Post. Foi o voice mail quem atendeu.

Elizabeth desligou sem deixar mensagem.

Olhou para a 34th Street, mas não viu sinais de Susanna, nem de Carson. Telefonou para casa e confirmou se Susanna deixara alguma mensagem no gravador de chamadas. A máquina disse-lhe que tinha uma mensagem. Marcou o código de acesso, mas era apenas Max, a dar-lhe conta de que um almoço tinha sido cancelado.

Desligou a pensar: Raios partam, onde é que ela está'?

Pensou no telefonema de Susanna da noite anterior. Estava prestes a publicar um grande artigo sobre Mitchell Elliott e Samuel Braxton. Talvez estivesse ao telefone, a finalizar a peça. Talvez estivesse a falar com os editores.

Virou-se e correu a 34th Street acima. Virou à direita em Volta Place e depois novamente à direita para Pomander Walk. Subiu os degraus da casa de Susanna e tocou à campainha. Ninguém respondeu.

Bateu com o punho na porta de madeira. Voltou a não ter resposta. Do interior não se ouvia nada. Carson estava sempre alerta. Regra geral, começava a ladrar antes de Elizabeth bater à porta. Se o cão estivesse lá dentro, por essa altura já estaria a ladrar.

Virou-se e viu luzes na casa de Harry Scanlon. Cruzou o acesso e bateu à porta. Scanlon veio abrir de roupão.

- Lamento incomodá-lo, Harry, mas a Susanna e eu tínhamos combinado uma corrida e ela deixou-me pendurada. Não é do feitio dela. Estou preocupada. Ainda tem a chave?

- Claro, espere só um instante.

Scanlon desapareceu dentro de casa e regressou momentos depois com uma chave. - Eu ajudo-a - ofereceu-se.

Dirigiram-se à porta da casa de Susanna. Scanlon enfiou a chave na fechadura e abriu a porta.

- Susanna! - chamou Elizabeth. Não houve resposta.

Deu uma vista de olhos à sala e à cozinha. Tudo parecia normal. Começou a subir as escadas, sempre a chamar por Susanna, com Scanlon atrás dela.

Quando chegou ao patamar, viu o cão.

- Ai, meu Deus! Susanna! Susanna!

Passou por cima do corpo do animal e espreitou para a casa de banho. Os mosaicos brancos estavam cobertos de vidros da garrafa de cerveja que caíra e se partira. Elizabeth deu mais alguns passos pelo corredor e olhou para o gabinete de trabalho.

Virou-se e gritou.

Elizabeth estava sentada nos degraus da casa de Harry Scanlon, com um cobertor de lã pelos ombros. Meia dúzia de carros da polícia, com as luzes vermelhas e azuis a brilhar, entupiam Volta Place. A van forense já chegara e os técnicos reviravam o interior da casa de Susanna. Tentou falar com Michael, mas este não atendeu o telefone.

Ditou à telefonista um recado urgente e o telefone de Harry Scanlon.

Bolas, Michael, preciso de ti, pensou.

Elizabeth aconchegou-se mais com o cobertor, mas não conseguia parar de tremer. Fechou os olhos, mas viu o corpo lacerado de Susanna no chão, e viu o sangue. Meu Deus, tanto sangue! Apercebeu-se de que alguém a chamava. Abriu os olhos e viu à sua frente um afro-americano de pele clara e olhos de um verde profundo. O distintivo da polícia estava pendurado do paletó do terno azul.

- Senhora Osbourne, sou o detective Richardson, dos Homicídios. Pelo que sei, foi a Sra. quem encontrou o corpo.

- É verdade.

- A que horas?

- Entre as sete e um quarto e as sete e vinte, se não estou em erro.

- Conhecia a vítima?

A vítima, pensou Elizabeth. Susanna já perdera o nome. Agora não passava da vítima.

- Éramos muito amigas, Detetive. Conhecia-a há vinte anos. Tínhamos combinado ir correr esta manhã. Como não apareceu, vim à procura dela. O vizinho tinha a chave e entrei em casa dela.

- Reparou em alguma coisa fora do normal?

- Tirando o corpo, não.

- Sinto muito, Sra. Osbourne. Onde trabalhava ela?

- Era jornalista do The Washington Post.

- Bem me parecia que conhecia o nome. Trabalhou na Casa Branca durante algum tempo, certo? Costumava participar naquele programa da mesa redonda.

Elizabeth aquiesceu.

- Pode parecer-lhe uma pergunta estranha, mas sabe de alguém que a quisesse matar?

- Ninguém.

- Passava-se alguma coisa anormal na vida dela?

- Não.

- Namorados zangados? Amantes abandonados?

Elizabeth abanou a cabeça.

- Marido?

- Voltou a casar-se.

- Como era a relação entre os dois?

- Trabalho com ele, Detetive. É associado na minha firma. Pode ser um monte de esterco, mas não é um assassino.

- Não encontramos a bolsa dela. Sabe se tinha alguma?

- Sim, deixava-a sempre em cima da bancada da cozinha.

- Não está lá.

- Quem fez isto?

- Não fazemos ideia. Ao que parece, tinha alguém dentro de casa e ela o surpreendeu. Estava vestida com roupa de corrida, mas sem um dos tênis. Parece que torceu o tornozelo. O cão estava preso.

- E a mataram.

- Nesta cidade há muitas pessoas que preferem matar a deixar uma testemunha que as possa identificar mais tarde. - O tom da voz do detective era casual. Levou a mão ao ombro de Elizabeth. Lamento imenso, Sra. Osbourne. Fique com o meu cartão. Se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, diga-me. Elizabeth ouviu o telefone tocando dentro da casa. Harry Scanlon surgiu na porta, os olhos vermelhos. - É o Michael - indicou.

Elizabeth levantou-se e entrou, sem grande equilíbrio.

- Michael, vem para casa depressa. Preciso de você.

- O que aconteceu? Por que você está na casa do Harry?

- Susanna morreu. Foi morta dentro de casa. Fui eu que a encontrei. Ai meu Deus, Michael... - As lágrimas embargaram sua voz. - Por favor, Michael, vem depressa para casa.

- Fique aí. Vou buscá-la.

- Não. Vá para casa. Preciso andar. Preciso pegar ar.

Olhou pela janela e viu o corpo de Susanna, enrolado num lençol branco, sendo retirado de maca. Mantivera a compostura até aquele momento, mas ver Susanna daquela forma roubou-lhe as últimas forças.

- Elizabeth, você está aí? Elizabeth, fale comigo.

- Eles a estão levando. Ai, meu Deus, pobre Susanna! Estou só pensando no que ela deve ter sofrido antes de morrer. Não consigo deixar de pensar nisso.

- Saia daí. Vá para casa. Vai se sentir um pouco melhor. Acredite.

- Ande depressa.

- Sim.

Elizabeth desligou o telefone. Scanlon tinha um disquete na mão. - Bem, acho que ela já não precisa dissto. - Fez uma pausa e os olhos encheram-se de lágrimas. - Céus, nem acredito que disse isto.

- O que é?

Scanlon explicou o sistema que usavam, como Susanna fazia sempre cópias do trabalho e as deixava em sua caixa do correio.

- Era paranoica.

- Eu sei. Na faculdade de Direito, guardava as coisas na geladeira, porque tinha lido em algum lugar que geladeiras resistem a incêndios. - Elizabeth sorriu com a recordação. - Sinto tanta falta dela. Nem acredito que isto esteja acontecendo.

Scanlon pousou o disquete na bancada da cozinha.

- Encontrei-a ontem à noite, quando cheguei a casa. Ela deve tê-la deixado quando foi correr. É engraçado, sempre pensei que ela era maluca por correr à noite, mas foi morta dentro de casa.

Elizabeth pensou no telefonema de Susanna na noite anterior. Passara o dia a trabalhar num artigo importante. O que ela escrevera deveria estar naquela disquete.

- Posso ficar com ele? - perguntou Elizabeth.

- Claro, mas não vai conseguir ler o que está aí.

- Por quê?

- Porque ela usava software de encriptação. É como lhe digo, ela era paranoica com o trabalho.

- Não sabe a senha?

- Não, nunca me disse. Imaginava que tivesse dito a você.

Elizabeth abanou a cabeça.

- E os editores do Post?

- Nem pensar. Ela não confiava em ninguém, muito menos nas pessoas com quem trabalhava.

- Vou ficar com ele - declarou Elizabeth. - Tenho um amigo que entende um pouco dessas coisas.

Elizabeth mostrou o disquete a Michael quando estavam na cama, cercados pelos lençóis desalinhados. Michael acendeu um cigarro e revirou o disquete na mão. Elizabeth deitou a cabeça na barriga bronzeada do marido e percorreu os pêlos escuros do peito dele com o dedo. Sentia-se culpada por terem feito amor numa altura dessas. Quando chegou a casa queria estar perto dele. Queria abraçá-lo e nunca o perder de vista. Estava com medo, aterrorizada com o que acontecera à amiga, e não queria soltá-lo. Abraçou-o. Beijou-lhe os lábios, os olhos e o nariz. Despiu-o e fez amor com ele, lentamente, gentilmente, como se desejasse que nunca chegasse ao fim. Agora estava deitada ao seu lado, a ver a chuva a escorrer pelas janelas do quarto.

- O Harry diz que está protegida.

- Isso não é problema. Só precisamos de descobrir a palavra-passe.

- E como pretendes fazer isso?

- As pessoas são preguiçosas. Usam datas de nascimento, endereços, todo tipo de palavras e números que possam lembrar com facilidade. Conhece Susanna melhor do que ninguém.

- Precisa de software especial?

- Tenho no meu computador.

- Vamos.

Vestiram os roupões e percorreram o corredor até o gabinete de Michael, que se sentou à secretária. Elizabeth ficou atrás dele, as mãos agarradas aos ombros do marido. - Data de nascimento?

- 17 de novembro de 1957.

Michael introduziu a versão numérica: 17-11-57. Na tela surgiu:

ACESSO NEGADO PALAVRA-CHAVE INCORRETA

- Data de nascimento ao contrário - disse Michael. O computador deu a mesma resposta.

Endereço... Endereço ao contrário... Número de telefone... Número de telefone ao contrário... Telefone do trabalho... Telefone do trabalho ao contrário... Nome... Nome ao contrário... Nome do meio... Nome do meio ao contrário... Sobrenome... Sobrenome ao contrário...

- Podemos ficar aqui eternamente - comentou Elizabeth.

- Eternamente, não.

- Pensei que tivesse dito que ia ser fácil.

- Disse que não era problema. Nomes dos pais?

- Maria e Carmine.

- Maria e Carmine?

- Ela é italiana.

- Ela era italiana.

Michael trabalhou durante as duas horas seguintes. Descobriu mais sobre a vida de Susanna do que julgara possível: namorados, cidade natal, banco, filme preferido, livro predileto. Tentou tudo, para a frente, para trás, de lado, e nada resultou.

- Como se chamava o cão?

- Carson.

- Por que Carson?

Elizabeth sorriu.

- Porque tinha insônia e adorava The Tonight Show.

Michael digitou CARSON. Nada. Experimentou JOHNNY. Nada. Tentou DOC e ED. Nada.

- Tinha gravado os últimos dois programas. Estava sempre revendo.

- Quem foi o convidado do último programa?

- Foi só Johnny, lembra? Foi só ele falando com o público.

- E no anterior?

- Bette Middler. Ela adorava a Bette Middler.

Michael escreveu BETTE. Nada. MIDDLER. Nada. Escreveu os nomes ao contrário.

Nada.

Bateu com a palma da mão na mesa. - Sai da frente - disse Elizabeth.

Inclinou-se sobre o ombro do marido, escreveu THE ROSE e pressionou a tecla ENTER. O computador hesitou durante alguns segundos e a última coisa que Susanna Dayton escrevera apareceu na tela.

Meu Deus - exclamou Michael.

 


AMSTERDAM

 

A casa flutuante no Prinsengracht assumira a aparência de uma sala de operações militares. Delaroche chegou a pensar brevemente em regressar a Brélés, mas era uma aldeia, com a normal tendência das aldeias para os mexericos, e sabia que a presença de uma loura alta iria fazer despertar o interesse de Didier e dos seus compinchas. Além disso, o Krista garantia uma atmosfera descontraída e reservada onde planear os assassinatos. Nas paredes afixou mapas de grande escala das ruas das cidades onde iria levar a cabo as mortes: Londres, Cairo, Washington. Levantava-se cedo todas as manhãs e trabalhava enquanto Astrid dormia. Depois passavam duas horas juntos, a falar e a planear, até que ela se dirigia à livraria, às dez horas.

À tarde, as paredes começavam a oprimi-lo e Delaroche levava emprestada a terrível bicicleta de Astrid e pedalava através das ruelas estreitas à volta do canal. Encontrou uma loja de material de pintura, comprou um pequeno estojo de aguarelas e pintou vários belos quadros das pontes, dos barcos e das casas de fachadas triangulares sobranceiras aos canais. No quarto dia, uma frente fria começou a soprar, vinda do mar do Norte. Nos dois dias seguintes, o Krista encheu-se com os gritos divertidos de centenas de patinadores que deslizavam sobre a superfície gelada do Prinsengracht.

Todas as noites ia buscar Astrid à livraria e levava-a a um restaurante diferente. Depois passeavam ao longo dos canais batidos pelo vento e bebiam cerveja De Konmck nos bares impregnados do odor a cannabis de Leidseplein.

Fez amor com ele duas noites seguidas, e depois rejeitou-o outras duas. Astrid tinha um sono agitado, atormentado por pesadelos. Na véspera da partida acordou em pânico, alagada em suor, à procura da pequena Browning automática que mantinha sempre no chão, ao lado da cama. Poderia ter matado Delaroche, caso este não lhe tivesse retirado a arma das mãos, antes que ela a destravasse. Fez amor com ele loucamente e implorou-lhe que nunca a deixasse.

A manhã seguinte acordou gelada e cinzenta. Fizeram as malas em silêncio e trancaram o Krista com um cadeado. Delaroche destruiu os quadros. Astrid telefonou para a livraria. Surgira-lhe uma emergência familiar e precisava de alguns dias de folga. Iria manter-se em contato.

Foram de táxi até a Centraalstation e apanharam o comboio da manhã para a vila de Hoek van Holland. Seguiram mais uma vez de táxi para o terminal dos ferries e tomaram um pequeno-almoço tardio de pão e ovos num pequeno restaurante à beira da água. Uma hora depois embarcaram no ferry para Harwich, na Grã-Bretanha, do outro lado do mar do Norte.

A travessia costumava demorar seis horas, com bom tempo, oito ou mais, com o mar revolto. Nesse dia, as águas eram fustigadas por uma tempestade gelada vinda do mar da Noruega. Astrid, propensa a enjoos, passou grande parte da viagem na casa de banho, vomitando com violência, sempre a maldizer o nome de Delaroche. Este estava no convés, ao ar gélido, a observar as ondas que rebentavam na proa do ferry.

Pouco antes de chegarem, Astrid mudou a aparência. Apanhou o cabelo louro e cobriu a cabeça com uma peruca preta que lhe dava pelos ombros. Delaroche envergou um boné de basebol com o nome de um cigarro americano e, apesar do mau tempo, os óculos-de-sol Ray-Ban.

A Comunidade Europeia tornou mais fácil a vida do terrorista internacional pois, uma vez no interior de um Estado membro, a passagem para outro é feita quase sem riscos. Delaroche e Astrid entraram no Reino Unido com passaportes holandeses, fazendo-se passar por turistas solteiros, tendo apenas de se submeter a uma inspeção superficial dos documentos, levada a cabo por um agente britânico enfadado. Mesmo assim, Delaroche sabia que as forças de segurança britânicas gravavam em vídeo todos os passageiros que entravam no país, independentemente do passaporte apresentado. Sabia que ele e Astrid tinham acabado de deixar as primeiras pegadas.

Quando Delaroche e Astrid embarcaram no comboio na estação de Harwich, a noite tombara já sobre a costa inglesa. Noventa minutos depois, chegavam a Londres. Como base de operações, Delaroche escolheu um pequeno apartamento de serviço em South Kensington. Alugou-o por uma semana a uma empresa que se especializava em casas para turistas. A primeira ação foi cancelar o aspeto de "serviço" do negócio. Não precisava de uma empregada a meter o nariz nas suas coisas. O apartamento era modesto mas confortável, com uma cozinha totalmente funcional, uma sala grande e um quarto separado. A linha telefônica era direta, sem telefonistas envolvidas, e a casa tinha janelas grandes que davam para a rua.

Não perderam tempo. O alvo era um agente do MI6 chamado Colin Yardley, um antigo operacional de campo de cinquenta e quatro anos que servira na União Soviética, no Oriente Médio e, nos últimos tempos, em Paris, e que aguardava a reforma compulsiva a fazer serviço de secretária na sede. Enquadrava-se no perfil de muitos agentes dos serviços secretos no fim da carreira: esgotado, amargo, divorciado. Bebia demasiado e envolvia-se com inúmeras mulheres. O Departamento de Pessoal do MI6 dissera-lhe, sem rodeios, para acabar com isso. Yardley dissera aos lacaios do Pessoal que se danassem. Estava tudo no relatório de Delaroche. Seria fácil matá-lo. O desafio era matá-lo da forma correta.

Apesar dos anos passados em campo, desde que regressara a Londres Yardley tornara-se preguiçoso e descuidado. Apanhava todas as noites um táxi desde a sede do MI6 à beira rio até um restaurante e bar em Sloane Square. Era aí o seu terreno de caça: jovens atraídas pela sua boa aparência madura, divorciadas abastadas do West End, esposas aborrecidas em busca de uma noite de sexo anônimo. Chegou poucos minutos depois das seis e instalou-se no seu lugar habitual no bar.

Astrid Vogel estava à sua espera.

Não era a mesma mulher que Delaroche vira na livraria de Amsterdam dez dias antes. Passara a tarde na Harrod's e nas lojas resplandecentes de Bond Street, armada com uma boa provisão do dinheiro de Delaroche. Usava agora um vestido preto, meias pretas, um relógio de ouro e uma fiada dupla de pérolas ao pescoço. A mola preta simples desaparecera-lhe do cabelo, que fora aparado e penteado por um estilista italiano de um salão em Knightsbridge. Caía-lhe agora à volta do rosto e do pescoço. Astrid sabia disfarçar a sua beleza natural, mas também sabia como chamar a atenção quando necessário.

Delaroche estava sentado num banco em Sloane Square, fingindo ler um exemplar do The Evening Standard comprado numa banca perto da estação de metro da praça. Observou o desenrolar dos acontecimentos no interior do restaurante como uma pantomima. Astrid sentada sozinha no bar, o cigarro eterno entre os dedos compridos e magros. Yardley, alto, grisalho, distinto, pergunta se o lugar ao seu lado está livre. À frente dele surge de imediato uma bebida, o habitual, e, pela sua expressão, julga que ela ficou impressionada. Acena ao empregado para que este sirva à Sra. outro copo de vinho branco. Astrid, grata, vira o corpo para o encarar, uma perna comprida cruzada de modo sugestivo sobre a outra, a saia bem subida na coxa. Já lhe pertence. A mulher solitária e assustada da casa flutuante de Amsterdam desapareceu. É uma holandesa decidida e cosmopolita cujo marido ganha dinheiro e ignora-a demasiado e, sim, pode acender-me o cigarro, querido.

Após uma hora, ela levanta-se e veste o casaco. Apertam as mãos de modo formal.

Ela permite que os dedos permaneçam um instante a mais nos dele. Pergunta-lhe onde está hospedada? No Dorchester. Pode dar-lhe boleia? Não, não é necessário. Pode chamar-lhe um táxi? Não, ela trata disso. Poderão encontrar-se novamente, antes que deixe Londres? Volte amanhã à noite e, se tiver sorte, querido, estarei aqui.

Cruzou rapidamente a praça, passando por Delaroche, embrenhado na leitura do jornal. Dirigiu-se a norte, subindo Sloane Street.

Delaroche viu Yardley chamar um táxi e entrar para o carro. Levantou-se e atravessou a praça até Sloane Street.

- Como correu?

- Se deixasse, tinha-me fodido ali mesmo no bar.

- Quer dizer que se mostrou interessado?

- Convidou-me para ir a casa dele, para uma bebida e caril de take-away. Disse-lhe que o meu marido poderia ficar zangado se eu não estivesse no hotel quando a reunião acabasse.

- Ótimo, não quero que pense que és uma prostituta. Além disso, não pode ser tão estúpido como parece. E quanto a amanhã à noite?

- Deixei bastante claro que voltaria ao bar.

- Ele volta.

- Por favor, Jean-Paul, não quero que ele me beije. O hálito dele cheira a merda.

- Essa parte da operação fica nas tuas mãos.

- Meu Deus, espero que não tente beijar-me. Se tentar, juro que sou eu que o mato.

Na noite seguinte, Yardley chegou primeiro. De vigia no banco de Sloane Square, Delaroche reprimiu uma gargalhada ao ver o tão bem treinado agente dos serviços secretos britânicos lançar uma série de olhares ansiosos na direção da porta. Depois de meia hora, Delaroche decidiu que Yardley já esperara tempo suficiente pela sua recompensa. Fez sinal a Astrid, que estava sentada à janela de um bar do outro lado da praça. Cinco minutos depois entrava no restaurante, diretamente para os braços de Colin Yardley.

Provocou-o. Brincou com ele. Bebia-lhe cada palavra. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. Permitiu que lhe pagasse demasiados copos de Sancerre. Inclinou-se para a frente, para que ele pudesse espreitar-lhe pela blusa e ver que não trazia sutiã. Afagou-lhe a barriga da perna com a ponta do caro sapato Bruno Magli. Tentou ir-se embora por várias vezes - o meu marido vai perguntar-me onde andei, querido - mas ele fazia sinal ao empregado do bar, que trazia outro copo de Sancerre. Ela não tinha força de vontade para se afastar daquele homem tão interessante, e seja um querido e peça outro maço de Marlboro Light 100s, por favor. Astrid, a sedutora. Astrid, a necessitada. Astrid, a holandesa faminta por sexo, que faria tudo pela atenção de um inglês de meia-idade, com um terno de Savile Row e uma casa dispendiosa. Delaroche apreciou o trabalho dela a partir da praça. Sentiu outra coisa: uma pontada de ternura. Levou a mão ao casaco e sentiu a coronha da Glock.

A parte seguinte correu de acordo com o planeado. Astrid inclinou-se para a frente e murmurou-lhe ao ouvido. Yardley pagou a conta e foi buscar os casacos.

Dois minutos depois, entravam para um táxi.

Delaroche observou-os a afastarem-se. Levantou-se e seguiu-os lentamente, através de Sloane Square, para oeste, ao longo da King's Road. Não ficou alarmado quando perdeu o táxi de vista. Sabia exatamente para onde iam, para a casa de Yardley, em Wellington Square.

Fá-lo entrar em casa, Astrid. Diz-lhe que tens pressa. Que o teu marido vai perder a cabeça se te demorares. Leva-o diretamente para a cama. Não te preocupes com a porta. Eu trato da porta.

Delaroche virou à esquerda em King's Road e entrou na calma de Wellington Square. O ruído do trânsito da hora de ponta reduziu-se para um ronco abafado. Começou a chover ao de leve. Delaroche atravessou rapidamente a praça, a gola erguida, as mãos enfiadas nos bolsos.

A casa de Yardley estava às escuras, perfeito. A fechadura da porta da rua não levantou grande problema e, dali a poucos segundos, estava no interior da casa. Ouviu o som de vozes no andar de cima, no quarto. Astrid desempenhara bem o seu papel.

Quando Delaroche entrou no quarto, encontrou Yardley encostado à cabeceira da cama, de camisa e peúgas, a masturbar-se enquanto Astrid executava um striptease lento aos pés da cama. Por um momento, Delaroche chegou a ter pena do homem. Ia sofrer uma morte humilhante.

Delaroche retirou a Glock da cintura das calças e entrou no quarto. O alarme surgiu de imediato no rosto de Yardley. Astrid parou de dançar e afastou-se.

Delaroche ocupou o lugar deixado vago aos pés da cama. Depois ergueu o braço e alvejou Colin Yardley rapidamente, três vezes no rosto.

O corpo tombou da cama para o chão. Astrid avançou, deu um pontapé na cabeça de Yardley com a ponta do sapato Bruno Magli e cuspiu-lhe no rosto. Astrid, a revolucionária.

Delaroche informou a agência imobiliária que teria de cancelar as férias em Londres devido a uma emergência familiar. Antes de deixar o apartamento, ligou o computador portátil e enviou uma mensagem codificada aos empregadores, dizendo-lhes que a missão fora cumprida e que deveriam transferir os fundos determinados para a conta específica em Zurique. Apanhou com Astrid um comboio noturno para Dover e passaram a noite num hotel pitoresco. De manhã apanharam o primeiro ferry para Calais, onde alugaram um Renault, e seguiram para norte, ao longo da costa do Canal. A noite estavam de volta ao Krista, no calmo Prinsengracht em Amsterdam.

O corpo de Colin Yardley foi encontrado no início dessa tarde, quando Delaroche e Astrid passavam da França para a Bélgica. A Segurança do MI6 ficou alarmada, pois Yardley não se apresentara ao serviço e ninguém atendia os repetidos telefonemas para sua casa em Wellington Square. Uma equipe do MI6 arrombou a porta pouco depois da uma da tarde e encontraram o corpo no quarto do primeiro andar. A Polícia, contudo, apenas foi informada da morte às quatro e quinze. A BBC noticiou a morte de um homem não identificado nas Nine O'Clock News. Quando a ITN iniciou a transmissão das dez, o cadáver tinha nome e profissão: Colin Yardley, um quadro médio do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Durante o programa telefonaram para a redação. Quem ligou disse que a morte de Yardley fora levada a cabo pelo Provisional Irish Republican Army. Foi apresentado o código de reconhecimento especial como prova de que a reivindicação era autêntica.

Pela manhã, os repórteres da BBC tinham descoberto a verdadeira ocupação de Yardley: agente dos Serviços Secretos de Espionagem, o MI6.

Jean-Paul Delaroche escutou as notícias a bordo do Krista. Quando terminaram desligou o rádio e dedicou-se aos mapas e ao computador, preparando a morte seguinte.

Telefonou para Zurique. Herr Becker confirmou que, nessa manhã, fora efetuada para a sua conta uma transferência de um milhão de dólares. Delaroche indicou-lhe que deveria transferir o dinheiro para quatro contas das Baamas, um quarto de milhão para cada.

O sol despontou ao meio-dia. Levou emprestada a bicicleta de Astrid e passou o resto da tarde a pintar nas margens do rio Amstel, até que a imagem do rosto desfeito de Yardley lhe desapareceu da consciência.

 


MCLEAN, VIRGÍNIA

 

- Não sei por que Carter precisa te enviar a Londres. Por que diabos não manda outra pessoa?

Elizabeth foi buscar Michael na sede e estava dando carona até o Dulles Airport, a trinta quilômetros de Washington, no extremo leste da periferia urbana do norte da Virgínia. Eram 19 horas. Tecnicamente, a hora do rush já acabara, mas o trânsito continuava engarrafado no Capital Beltway. Quando estava tensa, Elizabeth tinha a tendência de colar na traseira dos outros veículos. Assim, viajavam a meio metro do para-choque de um Ford Explorer verde, que se deslocava a setenta quilômetros por hora.

- Pensei que tinha explicado nossa situação, Michael. Achava que ele tinha concordado em deixar você trabalhar em Nova York. Pensei que ele fosse aliviar por uma ou duas semanas.

Talvez devesse ter levado um carro da Agência até o aeroporto, pensou Michael. Não tinha vontade de discutir com a mulher antes de embarcar num voo internacional. Não que fosse supersticioso, nem tampouco receava voar, era simplesmente realista.

- É só um dia - garantiu. - Ida e volta, com algumas reuniões pelo meio. - Se é uma coisa tão rotineira, por que não enviou o Carter outra pessoa? Elizabeth não era litigante, exercia direito na calma das sombras empresariais, mas era mestre na arte do contra-interrogatório. Esmurrou a buzina. Michael sabia que acabara de ser declarado testemunha hostil.

- Um oficial da espionagem britânica foi assassinado em Londres, ontem à noite - replicou Michael calmamente. - Pode ter alguma coisa a ver com um caso no qual já trabalho há muito tempo.

- Li sobre isso no Post desta manhã. O IRA reivindicou a responsabilidade. Desde quando tens alguma coisa a ver com o IRA? Pensei que o teu currículo incluía exclusivamente terrorismo árabe.

- É verdade, mas julgamos que possa haver uma ligação.

Michael esperava que ela ignorasse o assunto. A viagem a Londres fora sua ideia, não de Carter, que queria o trabalho de ligação feito por um agente da Estação de Londres. Michael convencera Carter a enviá-lo.

- Daqui a dois dias vão recolher-me os óvulos. Nessa altura vão fertilizá-los com esperma. Preferia que fosse o teu, Michael.

- Eu volto. Não te preocupes. E, se por acaso houver algum problema, temos um trunfo na manga. Congelado.

Devido à natureza do seu trabalho, e à possibilidade de uma viagem inesperada, os médicos do Cornell Medical Center tinham recomendado que se congelasse algum do esperma de Michael.

- Gostaria que lá estivesses para me dar apoio emocional, Michael - disse Elizabeth. - Pensei que os agentes de casos fossem bons nessas coisas. O mínimo que podes fazer é estar comigo. - E vou lá estar. Prometo.

- Cuidado com aquilo que prometes, Michael.

Saiu da Beltway, entrando na estrada de acesso a Dulles. O trânsito reduziu de intensidade e Elizabeth acelerou até os cem. A lua cheia pairava sobre os campos de Virgínia, amortalhada por uma camada transparente de nuvens. Michael acendeu um cigarro e entreabriu o vidro da janela. Elizabeth conduzia com agressividade, mudando de faixa sem abrir o pisca, colando-se ao carro da frente, fazendo sinais de luzes a quem se atrevesse a conduzir a menos de cento e dez na faixa de ultrapassagem. Michael sabia o verdadeiro motivo do mau humor de Elizabeth. Ia para Londres investigar um ato de terrorismo, e a esposa sabia que isso levaria a que pensasse no assassinato de Sarah. O seu orgulho impedia-a de o admitir, mas os sentimentos estavam bem patentes na expressão ansiosa do rosto. Ficaria ainda mais perturbada se Michael lhe contasse a verdade: Que suspeitava que Sarah e o agente britânico tinham sido assassinados pelo mesmo homem. - Entreguei ao tom Logan o material do disquete da Susanna informou Elizabeth. - Ele vai publicar o artigo?

- Diz que não pode, sem antes confirmar os pormenores. Diz que as acusações são demasiado explosivas para serem editadas antes de serem analisadas pelos advogados. E, uma vez que a jornalista que redigiu a história está morta, não pode haver uma investigação profunda.

- Que vai ele fazer?

- Designou uma equipe dos melhores jornalistas para confirmarem os dados. Infelizmente, a Susanna não vai ser de grande ajuda no túmulo. Os apontamentos não contêm muitas pistas sobre a identidade das fontes. Por isso, a equipe do Logan tem de começar praticamente do zero.

- Isso pode demorar muito.

- Susanna precisou de três meses para fazê-lo sozinha.

Chegaram a Dulles. Elizabeth dirigiu-se às partidas e parou junto ao passeio. Michael saiu e tirou uma mala de roupa da bagageira. Fechou-a e aproximou-se da porta do condutor do Mercedes. Elizabeth baixara o vidro e tinha a cabeça de fora, à espera de um beijo de despedida.

- Tem cuidado, Michael.

- Eu tenho.

Esperou que as luzes de presença desaparecessem na escuridão e depois entrou no terminal.

Michael acordou quando o avião atravessou a camada de nuvens e deu início à descida para a manhã cinzenta de Londres. A Estação de Londres oferecera-se para lhe enviar um carro, mas Michael queria envolver-se o menos possível com os ingleses, por isso apanhou um táxi. Baixou o vidro. Gostava da sensação do ar frio no rosto, apesar do fedor a fumo dos tubos de escape. Londres fora a sua casa durante oito anos. Fizera mil vezes o percurso entre Heathrow e o centro da cidade. Os lúgubres subúrbios que passavam por ele eram-lhe mais familiares do que Arlington, ou do que Chevy Chase.

Registrou-se no hotel, um estabelecimento modesto e independente em Knightsbridge, com vista para Hyde Park. Gostava do sitio, pois cada quarto possuía uma pequena sala de estar anexa ao quarto de dormir. Pediu um pequeno-almoço inglês completo e foi debicando a comida até serem horas de ligar a Elizabeth. Acordou-a e travaram uma conversa desconexa antes que ela voltasse a adormecer.

Michael sentia-se cansado, por isso dormiu até o início da tarde. Quando acordou, vestiu um moletom impermeável. Pendurou o sinal não INCOMODAR na porta e enfiou um pedaço minúsculo de papel entre a porta e a lateral. Se ainda lá estivesse ao regressar, provavelmente ninguém teria entrado no quarto. Caso tivesse desaparecido, alguém lá teria estado.

Correu pelos caminhos de Hyde Park debaixo de nuvens plúmbeas, carregadas de chuva. O céu abriu dez minutos depois de ter iniciado o treino. Os londrinos que passavam, abrigados pelos guarda-chuvas fustigados pelo vento, fitavam-no como se fosse um louco em fuga. Após quinze minutos ficou ofegante e começou a andar. Conseguira manter a forma física ao longo dos anos, apesar de ser fumante, mas agora os cigarros cobravam seu preço. E Elizabeth tinha razão: estava ficando com barriga.

Regressou correndo ao hotel. O papel caiu ao chão quando abriu a porta do quarto. Tomou uma ducha e vestiu um terno completo azul-marinho. Apanhou um táxi até Grosvenor Square e exibiu a identificação ao Marine de guarda à entrada. Michael sentia-se desconfortável nas embaixadas. Nunca deixara de ser um NOC. Quando se encontrava sedeado em Londres, apenas ia à embaixada em situações de emergência, e sempre "às escuras", o que significava que entrava pelo estacionamento subterrâneo, nos fundos de uma van. Gostava de não ter ido ali, mas as regras do Centro exigiam uma visita de cortesia ao chefe de estação local.

O chefe de pessoal de Londres era um homem chamado Wheaton, um anglófilo assumido de bigode fino, terno riscado de Savile Row e o hábito irritante de apertar uma bola de tênis sempre que não sabia o que dizer. Wheaton pertencia à velha guarda: Princeton, Moscou, cinco anos como chefe do gabinete russo antes de assumir o seu posto definitivo em Londres. Disse ter conhecido o pai de Michael, mas não disse que gostara dele. Também deixou bem claro que não acreditava que a Estação de Londres precisasse de ajuda do CTCNT, o Counterterrorist Center (Centro Contraterrorista) para aquele caso. Michael prometeu deixá-lo a par de tudo o que descobrisse. Wheaton disse educadamente a Michael que gostaria de o ver longe da cidade o mais depressa possível. O táxi deixou Michael no terraço georgiano branco de Eaton Place. Helen e Graham Seymour possuíam uma casa agradável e, da rua, Michel podia vê-los como atores num palco de vários níveis: Graham no andar de cima, na sala, Helen abaixo do nível da rua, na cozinha. Desceu as escadas e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen desviou a atenção dos cozinhados e exibiu um sorriso rasgado.

Abriu a porta e beijou-lhe a face.

- Jesus, Michael, há tanto tempo. - Serviu vinho Sancerre num copo e colocou-o na mão dele. - Graham está lá em cima. Vão pôr a conversa em dia enquanto acabo o jantar.

Quando Michael entrou na sala, Graham Seymour remexia na lareira a gás. A sala tinha painéis e soalho de madeira, com uma série de tapetes orientais e decorações do Oriente Médio muito finos. Graham levantou-se, sorriu e estendeu a mão. Viam-se um ao outro da forma que apenas os homens de constituição idêntica conseguem. Graham Seymour era o negativo de Michael. Este tinha pele cor de azeitona e Graham era pálido. Michael tinha cabelo escuro e olhos verdes, e Graham era louro e de olhos cinzentos. Michael vestia terno marinho e Graham estava pronto para um safari, com calças e camisa caqui.

Sentaram-se e falaram sobre os velhos tempos. Tinham percursos de vida quase idênticos. À semelhança de Michael, também o pai de Graham trabalhara para os serviços secretos: na operação Double Cross do MI5 durante a guerra, e depois no MI6, durante vinte e cinco anos. Tal como Michael, também Graham seguiu o pai de comissão em comissão, e entrou para os Serviços Secretos logo após se ter formado em Cambridge. Ao longo dos anos, os dois homens tinham trabalhado em conjunto, embora Graham sempre tivesse operado com cobertura oficial. Desenvolveram respeito profissional e uma amizade pessoal. Com efeito, eram mais chegados do que ambos os serviços gostariam.

O cheiro do cozinhado de Helen chegou até a sala.

- O que está ela a fazer? - perguntou Michael, à cautela.

- Paella - respondeu Graham, com um franzir de cenho. - Talvez devesses ir à farmácia antes que feche.

- Eu fico bem.

- Dizes isso agora, mas nunca provaste a paella da Helen.

- É assim tão má?

- Não quero estragar a surpresa. Talvez seja melhor beberes mais um pouco de vinho.

Graham desceu à cozinha e regressou momentos depois com copos cheios de Bordéus branco.

- Fala-me sobre o Colin Yardley. Graham fez um esgar.

- Aconteceu uma coisa estranha há dois meses. Um traficante de armas chamado Farouk Khalifa decidiu instalar-se em Paris. Descobrimos o caso e informamos os nossos amigos franceses, que colocaram o senhor Khalifa sob vigilância. - Foi um gesto simpático por parte dos franceses. Ele vende armas a pessoas de que não gostamos.

- É um homem mau.

- É um homem muito mau. Abriu o bazar e começou a receber clientes. Os franceses fotografam toda a gente que entra e sai.

- Estou vendo o filme.

- Em Setembro, um homem faz uma visita ao senhor Khalifa. Os franceses não conseguem identificá-lo, mas desconfiam que seja britânico, por isso enviam-nos uma cópia da fotografia por fax seguro.

- Colin Yardley?

- Em carne e osso.

- A chefia confrontou-o. Exigiram saber por que raio se tinha encontrado com um tipo como o Khalifa. O Yardley inventou uma treta qualquer sobre estar aborrecido com o trabalho de secretária, e andar ansioso por voltar ao trabalho de campo. Trabalhou em Paris durante algum tempo. Disse que andava por conta própria. A chefia não ficou nada satisfeita, e isto é um eufemismo. Yardley foi repreendido com veemência.

- Cristo.

- Pois adivinha lá qual é a arma que o Farouk Khalifa tem em grande abundância. - Segundo as nossas informações, são mísseis Stinger. - Michael bebeu um pouco de vinho. -- Imagino que os teus serviços não tenham transmitido essas informações aos meus. Graham abanou a cabeça.

- Ficamos um pouco embaraçados com o assunto. Compreende, não, Michael? A chefia queria esquecer o caso, por isso desapareceram com ele.

Helen surgiu no alto das escadas.

- O jantar está pronto.

- Que maravilha - proclamou Graham, com um pouco de entusiasmo a mais. - Bem, imagino que o vídeo tenha de esperar.

Helen Seymour fazia pratos elaborados, mas terríveis. Acreditava que "cozinha inglesa" era um oximoro, e especializara-se na comida do Mediterrâneo: italiana, grega, espanhola, norte-africana. Naquela noite serviu uma paella horrorosa de peixe cru e camarão queimado, tão picante que Michael sentiu a garganta seca, à medida que empurrava garfada após garfada para a boca. Terminou corajosamente e Helen insistiu em que repetisse. Graham reprimiu uma gargalhada enquanto a esposa servia duas colheradas enormes no prato estendido de Michael.

- Está divino, não está? - ronronou Helen. - Acho que também vou me servir de mais um pouco.

- Você se excedeu mais uma vez, querida - elogiou Graham.

Havia muito que aprendera a lidar com a comida exótica da mulher. Comprava sanduíches e hambúrgueres quando saía do trabalho e devorava-os ao descer para o metrô. Há três anos exibia uma súbita devoção por pão. Helen fazia variedades novas e diferentes todas as noites, que Graham comia em grandes quantidades. Ganhara barriga por excesso de hidratos de carbono à noite. Marcava telefonemas importantes para a hora do jantar e fingia serem inesperados. À semelhança de uma criança impertinente, tornara-se perito em distribuir a comida pelo prato, criando assim a ilusão do consumo. Durante algum tempo, Graham recusara-se a permitir que Helen cozinhasse para os convidados. Em vez disso, iam a restaurantes. Agora sentia prazer em ter amigos para jantar, tal como um condenado se reconforta com companhia nas últimas horas antes da morte. Graham mergulhou um naco de pão espanhol num prato de azeite virgem e enfiou-o na boca.

- Helen, Michael e eu temos de trabalhar mais um pouco. Importa-se que levemos o café para a sala?

- É claro que não. Levo a sobremesa daqui a pouco. - Virou-se para Michael, com um sorriso arrebatador nos lábios. - Oh, Michael, fico tão contente por ter gostado da paella.

- Helen, não me lembro da última vez que tive uma refeição destas.

Graham engasgou-se com um pedaço de pão.

Michael saiu do banheiro.

- Você está bem, camarada? - perguntou Graham. - Parece enjoado.

- Minha nossa Sra., como consegue comer assim todas as noites?

- Está pronto para ver um filme?

- Claro.

Sentaram-se no sofá da sala. Graham pegou o controle remoto que estava em cima da mesa de apoio.

- O senhor Yardley tinha outro problema - indicou. - Gostava de mulheres.

- Os serviços também sabiam disso?

- Sim, o Departamento de Pessoal pediu para ter calma. Ele respondeu que se danassem. Era solteiro, faltavam-lhe poucos anos para a aposentadoria, e ia divertir-se.

- Boa atitude.

- Os serviços encontraram o corpo. Entramos antes da polícia e revistamos a casa. Descobrimos que o adorável Colin Yardley tinha instalado no quarto um sistema secreto de gravação de vídeo para gravar as conquistas e vê-las quando quisesse. Tinha uma bela coleção. Os vigilantes usavam-na para aliviar o aborrecimento entre missões.

Graham apontou o comando ao reprodutor de vídeo e teclou PLAY. A câmara estava instalada em algum lugafr acima da cabeceira da cama. Yardley estava deitado, nu, masturbando-se lentamente enquanto uma mulher alta executava um striptease provocante. Desabotoou a blusa, passou as mãos pelos seios e enfiou-as por dentro do sutien.

Graham imobilizou a imagem.

- Quem é ela? - perguntou Michael.

- Acho que é Astrid Vogel.

- Segundo as nossas informações, ela está morando em Damasco.

- Nós achamos o mesmo. Na verdade, acreditamos que tenha deixado a Facção do Exército Vermelho de vez, o que torna o seu envolvimento neste caso ainda mais intrigante. - Graham acionou o comando e a imagem ganhou vida. - Esta é a melhor parte. Não vou estragar o fim.

O striptease de Astrid Vogel tornou-se mais intenso. Tinha as mãos entre as pernas e a cabeça inclinada para trás, fingindo êxtase.

- Ela é boa - comentou Graham. - Muito boa.

Helen entrou com uma travessa de café e tarte de maçã.

- Mas que maravilha. Deixo-os sozinhos dez minutos e vocês alugam um filme pornográfico.

Pousou a travessa na mesa de apoio, os olhos fixos na tela.

- Quem é aquela criatura?

- Uma antiga assassina do Baader-Meinhof chamada Astrid Vogel.

Uma expressão de terror cruzou o rosto de Yardley. Graham parou o vídeo.

- Esta parte é bem sangrenta, querida. Talvez fosse melhor ir lá para baixo.

Helen sentou-se no divã.

- Como queira - disse Graham e recomeçou o vídeo.

Uma figura escura penetrou no quarto, as feições ocultas por boné e óculos de sol. Levou a mão atrás das costas, puxou de uma arma com silenciador e alvejou Colin Yardley três vezes no rosto. A mulher avançou, deu um pontapé no cadáver e cuspiu-lhe em cima.

Graham parou a fita.

- Meu Deus do céu - disse Helen.

- É ele - garantiu Michael.

- Como sabe? Está sempre de cara tapada.

- Não preciso ver a cara. Já o vi empunhando uma pistola. É ele, Graham. Apostaria minha vida. É ele.

- Sei que nem preciso de dizer, Michael, mas as regras são as habituais. A informação que te dei serve apenas para uso pessoal. Não pode partilhá-la com outro elemento do teu serviço, nem com qualquer outro serviço.

- Se te ajudar a dormir melhor, até assino uma cópia da Lei dos Agentes Secretos.

Michael ergueu a gola do casaco e enfiou as mãos nos bolsos. A chuva parara e queria andar. Graham acedera em acompanhá-lo até meio caminho. Vaguearam pelos sossegados vales georgianos de Belgravia, tendo como único ruído de fundo o ronco distante do trânsito noturno de King's Road.

- Quero falar com Drozdov - disse Michael.

- Não podes falar com o Drozdov. Não está ao teu alcance. Além do mais, ele diz que deixou de falar e que pretende passar o resto dos dias em paz. - Tenho uma teoria sobre o assassino que matou Yardley e quero que ele me dê a sua opinião.

- O Drozdov é o nosso desertor. Já partilhamos as informações com você. Se tentares falar com ele, vais ficar em maus lençóis, tanto pela tua parte como pela nossa.

- Por isso mesmo, vai ser uma conversa oficiosa.

- O que tem em mente? Estás pensando em cruzar com ele e dizer: "Ei, você não é Ivan Drozdov, o antigo assassino do KGB? Importa-se que lhe faça umas perguntas?" Tome juízo, Michael.

- Tinha pensado em utilizar uma abordagem um pouco mais sutil.

- Se descobrirem, nego qualquer envolvimento. Até te acuso de ser espião russo.

- Não esperaria menos do que isso.

- Ele está morando em Cotswolds. Numa aldeiazinha chamada Aston Magna. Toma chá e lê os jornais todas as manhãs num café de Moreton, a poucos quilômetros de distância.

- Conheço bem a região - disse Michael.

- É o homem com os cães corgis e a bengala nodosa. Parece mais inglês do que o príncipe Philip. Não há como errar.

Graham Seymour acompanhou Michael até Sloane Street antes de se despedir e regressar a Eaton Place. Michael deveria ter seguido em direção ao norte, até Hyde Park e seu hotel, mas, em vez disso, quando Graham desapareceu encaminhou-se para o sul, para Sloane Square.

Atravessou a praça e perambulou pelas sossegadas ruas secundárias de Chelsea, até chegar à Represa, virada para o Tamisa. As luzes brilhavam nas casas de luxo sobranceiras. O passeio cintilava com a névoa do rio. Michael tinha a zona só para si, não fosse um homem calvo e baixo que se apressava pela rua, as mãos enfiadas nos bolsos do oleado puído, a coxear como um soldadinho de chumbo que já não presta para brincar.

Apoiou-se à barreira, olhou para o rio e depois virou-se e fitou Battersea Bridge e as luzes brilhantes de Albert Bridge, mais além. Podia ver Sarah a dirigir-se a ele, através das trevas e da neblina, o cabelo negro puxado para trás, a saia a dançar à volta das botas de camurça. Sorria-lhe como se fosse a pessoa mais importante à face da terra, como se tivesse passado o dia a pensar nele. Era o mesmo sorriso que lhe oferecia sempre que ele entrava no apartamento, sempre que se encontravam para uma bebida no bar, ou para um espresso, no restaurante preferido.

Pensou na última vez que estiveram juntos. Fora na tarde anterior, quando passara pelo apartamento e a encontrara no chão, com um maiô branco, o corpo magro dobrado sobre as longas pernas nuas. Recordou como ela se levantara e lhe beijara a boca, como baixara o maiô dos ombros para que ele lhe tocasse nos seios. Mais tarde, na cama, confessara ter fantasiado que fazia amor com ele para aliviar o enfado dos exercícios de alongamento. Que ficava sempre terrivelmente tensa e que tinha de resolver o problema sozinha, pois ele estava a trabalhar.

Nesse momento sentiu-se completamente apaixonado. Fez amor com ela uma última vez. Ela ficou deitada de costas, imóvel, os olhos fechados, o rosto passivo, tanto tempo quanto conseguiu, até que o prazer físico foi demasiado e abriu os olhos e a boca, puxou-o para si e beijou-o até chegarem juntos. Foi essa imagem, e a visão dela a flutuar na sua direção à luz da Represa de Chelsea, que foi estilhaçada pelo homem com a arma.

Recordou o rosto dela a explodir, o corpo a dissolver-se à frente dos seus olhos. Recordou o assassino: tez pálida, cabelo muito curto, nariz fino. Viu mais uma vez a forma como sacou a pistola da cintura, o modo como o braço se levantou, como disparou três vezes sem hesitar. Michael correu para ela, mesmo sabendo que estava morta. Por vezes, desejava ter perseguido o assassino, embora soubesse que tal provavelmente lhe teria custado a vida. Em vez disso, ajoelhou-se a seu lado e abraçou-a, a cabeça dela apertada contra o peito para não lhe ver o rosto desfeito.

Começou a chover. Apanhou um táxi de volta ao hotel. Despiu-se, deitou-se e telefonou a Elizabeth. Ela deve ter percebido algo na voz do marido, pois soluçou quando se despediu e desligou. Michael sentiu uma pontada de culpa, como se tivesse acabado de traí-la.


LONDRES

Bem cedo na manhã seguinte, Michael deixou o hotel e alugou um Rover sedan metalizado numa agência da Hertz, a norte de Marble Arch. Entrou na A40 perto de Paddington Station e seguiu para oeste, contra o fluxo da hora de ponta. Ainda estava escuro e chovia ao de leve. Michael ligou o rádio e escutou as notícias das seis na BBC. Enquanto atravessava os subúrbios a noroeste de Londres, a A40 entrou na M40. A luz macilenta da alvorada foi surgindo à medida que ele subia as elevações suaves de Chilterns. O mapa fornecido pela Hertz estava fechado, em cima do banco do passageiro. Michael não precisava dele, pois conhecia bem as estradas.

A família de Sarah possuíra uma grande casa de campo em Cotswolds, na aldeia de Chipping Campden. Muros de pedra calcária, cobertos de clematite e de heras diversas, cercavam a casa. Michael passara aí vários fins-de-semana com ela, durante os meses em que estiveram juntos. O campo alterava-a, levando-a a despir a farda de couro preto do clã do Soho. Usava calças de ganga desbotadas e blusas no Inverno, e vestidos leves no Verão. De manhã, percorriam os caminhos nos arredores da aldeia, através de pastos repletos de ovelhas e de faisões. À tarde, faziam amor. No Verão, com o tempo quente, faziam amor no jardim, ocultos pelo calcário e pelas flores. Sarah preferia fazê-lo ao ar livre. Gostava da sensação de Michael dentro dela e do sol na pele clara. Desejava, em segredo, que as pessoas os vissem. Queria que o mundo soubesse como era o seu ato de amor. Queria que todos os invejassem.

Dançava, servia de modelo, lia muitos livros. Por vezes representava. Às vezes fotografava. As suas cores políticas eram atrozes e tão flexíveis como o seu corpo esguio. Era trabalhista e comunista. Era verde e anarquista. Vivia no Soho, num quarto atulhado de roupas de segunda mão e maiôs, em cima de um restaurante libanês que servia comida para fora. Ouvia os Clash e os Stones. Ouvia gravações do oceano e de sons da floresta e cantos gregorianos. Era vegetariana e o cheiro do borrego assado do restaurante deixava-a enojada. Para disfarçar o cheiro, queimava incenso e acendia velas. Da primeira vez que levou Michael para a cama, este teve a sensação incômoda de estar a fazer amor numa igreja católica.

Apresentou-o a um mundo que ele não conhecia. Levou-o a festas bizarras e a teatro experimental. Levou-o a sessões de leitura e a ver exposições. Escolheu-lhe roupas diferentes. Não dormia, a menos que primeiro fizesse amor com ele. Adorava olhar para os seus corpos à luz das velas.

- Olha só para nós - dizia. - Sou tão pálida e você tão moreno. Sou o bem e você o mal.

O trabalho dele enfadava-a e ela nunca lhe fazia perguntas. A noção de alguém correr o mundo a vender coisas parecia baralhá-la. Apenas lhe perguntava onde ia e quando regressava.

Adrian Carter era o agente de controle de Michael. Este tinha a obrigação de mencionar a relação que mantinha com Sarah a Carter e ao Departamento de Pessoal, mas eles iriam revolver-lhe o passado, investigar as tendências políticas, o trabalho, os amigos, os amantes, e talvez descobrissem coisas que Michael preferia não saber. Manteve a Agência ignorante da existência de Sarah e esta da Agência. Receava que ela o abandonasse, caso descobrisse a verdade. Tinha medo que tecesse comentários com os amigos, o que poria em perigo o seu disfarce em Londres. Estava a mentir aos patrões e à amante. Sentia-se feliz e desolado ao mesmo tempo.

Aproximava-se de Oxford. Uma van comercial Ford branca seguia-o desde há trinta quilômetros, mantendo-se sempre três ou quatro carros atrás. Era possível que a Ford se limitasse a viajar na mesma direção, mas Michael fora treinado a não acreditar em coincidências. Abrandou e deixou que o trânsito o ultrapassasse.

A Ford permaneceu à mesma distância.

Aproximou-se de uma área de serviço. Saiu da auto-estrada e estacionou perto do restaurante. A Ford seguiu-o e entrou na bomba de gasolina. O condutor saiu e fingiu ver a pressão do pneu do lado do passageiro, enquanto observava o Rover. Michael interrogou-se quem o poderia estar a seguir. Wheaton, da Estação de Londres? Graham Seymour e o MI6?

Entrou no restaurante, pediu café e uma sanduíche de bacon e ovo frito, e foi ao banheiro. Foi buscar a comida, pagou e saiu. A Ford continuava na bomba de gasolina, com o condutor a preparar-se para ver a pressão do pneu traseiro.

Michael dirigiu-se a um telefone público e ligou para o hotel onde estava hospedado. Disse à recepcionista que deixara um par de botões de punho valiosos na casa de banho. Ditou-lhe uma morada falsa em Miami, que ela prontamente anotou, enquanto Michael observava a Ford. Desligou e regressou ao Rover. Ligou o motor e afastou-se, entrando no trânsito da auto-estrada. Olhou para o espelho retrovisor enquanto comia o sanduíche.

Lá estava a Ford, três carros atrás.

O monovolume seguiu Michael até Moreton-in-Marsh, uma aldeia grande segundo os padrões de Gloucestershire, que abarcava o cruzamento da A44 e da A429. Parou num estacionamento em frente a uma série de lojas e saiu. A Ford estacionou a cinquenta metros dele. O restaurante ficava ao lado de um talho, com faisões pendurados à porta. Michael pensou em Sarah, à sua frente com um prato de feijão com arroz e puré de abóbora, a fitá-lo enquanto ele arrancava a carne dos ossos de um faisão assado. Entrou no restaurante e pediu café e um bolo à jovem rechonchuda ao balcão.

Michael reconheceu Ivan Drozdov das fotografias da Agência. Era calvo, salvo por uma franja grisalha, e o corpo alto estava debruçado sobre uma pilha de matutinos. Tinha os óculos de leitura dourados na ponta do nariz e semicerrava os olhos contra o fumo do cigarro preso aos lábios finos. Vestia uma blusa cinzenta de gola alta e um blusão verde com gola de bombazina. Um par de corgis idênticos lambiam-se ao lado das botas Wellington sujas com lama úmida.

Michael levou a comida para a mesa ao lado e sentou-se. Drozdov ergueu brevemente o olhar, sorriu e regressou aos jornais. Passaram alguns minutos, com Michael a beber café e Drozdov a ler o The Times e a fumar.

Por fim, sem levantar os olhos, Drozdov disse:

- Será que vai falar, ou vai ficar aí sentado, a incomodar-me os cães? - Chamo-me Cari Blackburn, e estava a pensar se poderíamos falar um pouco - replicou Michael, surpreendido.

- Na verdade, o seu nome é Michael Osbourne. Trabalha para o Centro de Contraterrorismo da CIA, em Langley, na Virgínia. Já foi agente de campo, até que a sua amante foi assassinada em Londres e a Agência levou-o para a sede.

Drozdov dobrou cuidadosamente o jornal e deu pedaços de bolo aos cães. - Se quiser falar, podemos ir dar um passeio - indicou. - Mas não volte a mentir-me. É insultuoso e eu reajo mal aos insultos.

- Tem noção de que está sendo vigiado, senhor Osbourne?

Caminhavam ao longo de um trilha na direção da aldeia de Aston Magna, onde Drozdov se instalara quando a União Soviética se desmoronara e a ameaça de morte por parte dos seus antigos mestres do KGB desaparecera. Era um palmo mais alto do que Michael e, tal como muitos homens altos, inclinava-se ligeiramente para se encolher. Andava com lentidão, as mãos atrás das costas, a cabeça baixa, como se procurasse algo perdido. Os cães seguiam alguns metros à frente, como se fossem contravigilância. Michael, que por natureza andava depressa, esforçava-se por acompanhar o passo desajeitado de Drozdov. Interrogou-se como teria o idoso avistado quem o seguia, pois Michael não o vira a olhar.

- Dois homens - indicou Drozdov. - Uma van Ford branca.

- Avistei-os na M-40, alguns quilômetros fora de Londres.

- Alguém sabe que veio falar comigo?

- Não - mentiu Michael. - Não vim como representante da CIA, e não pedi autorização aos ingleses. É um assunto pessoal.

- Colocou-se numa posição bastante difícil, senhor Osbourne. Se fizer alguma coisa de que eu não goste, basta-me pegar o telefone e falar com o meu agente de ligação do MI-6, para que fique em maus lençóis.

- Eu sei. Obviamente, peço que não o faça, por cortesia profissional.

- Deve ser muito importante.

- É, sim.

- Imagino que aqueles homens na van branca tenham um microfone de longo alcance. Talvez devêssemos ir para algum sítio onde não nos possam seguir. Entraram num caminho que contornava um campo de erva seca. À distância, as colinas erguiam-se até as nuvens baixas. Um rebanho de ovelhas baliu-lhes do outro lado de uma vedação. Drozdov afagou-lhes a lã espessa das cabeças ao passarem por elas. O caminho estava enlameado devido à chuva que caíra durante a noite e, depois de alguns passos, os sapatos italianos de camurça de Michael ficaram arruinados. Virou-se e olhou para trás. A van regressava a Moreton.

- Julgo que já podemos falar, senhor Osbourne. Os seus amigos parecem ter desistido.

Michael passou dez minutos a falar. Percorreu a lista de assassinatos e os atentados terroristas. O ministro espanhol em Madrid. O oficial da polícia francesa em Paris. O executivo da BMW em Francoforte. O oficial da OLP em Tunes. O empresário israelense em Londres. Drozdov ouviu com atenção, por vezes aquiescendo, outras vezes resmungando baixinho. Os cães correram pelo prado e afugentaram faisões.

- E o que quer saber, ao certo? - perguntou Drozdov, quando Michael acabou de falar.

- Quero saber se foi o KGB que eliminou esses alvos. Drozdov assobiou para chamar os cães.

- Merece um elogio, senhor Osbourne. Falhou uns quantos, mas é um belo começo.

- Portanto, os atentados foram levados a cabo pelo KGB?

- Sim, foram.

- Foi sempre o mesmo homem?

- Sempre.

- Como se chama?

- Não tinha nome, senhor Osbourne. Apenas um nome de código.

- Qual era o nome de código?

Drozdov hesitou. Desertara, traíra seu serviço, mas revelar nomes de código era o equivalente em espionagem à quebra da omertà da Máfia. - Outubro, senhor Osbourne. O nome de código era Outubro - acabou por dizer.

O sol apareceu brevemente entre as nuvens, aquecendo o campo. Michael desabotoou o casaco e acendeu um cigarro. Drozdov imitou-o, a testa franzida enquanto fumava, como se procurasse a melhor forma de começar a narrativa. Michael já lidara com muitos agentes. Sabia quando devia forçar e quando era preferível esperar e ouvir. Não tinha como pressionar Drozdov, que apenas falaria se quisesse.

- Ao contrário do que se pensa no Ocidente, não éramos muito bons a matar pessoas - acabou Drozdov por dizer. - Sim, no interior da União Soviética éramos muito eficientes. Mas fora do bloco soviético, no Ocidente, éramos terríveis no que dizia respeito a assuntos sujos. Um dos nossos melhores assassinos, Nikolai Khokhlov, mudou de ideias quando estava a tentar matar um líder da resistência ucraniana e desertou. Tentamos matá-lo e também fracassamos. Durante muito tempo, o Politburo desistiu do assassinato como ferramenta do ofício. Drozdov largou a beata do cigarro para a lama e pisou-a com a ponta da bota. - Isso mudou no final dos anos 60. Olhamos para o Ocidente e vimos conflitos internos um pouco por toda a parte: os irlandeses, os bascos, os Baader-Meinhof alemães, os palestinos. Além disso, tínhamos também os nossos próprios problemas para resolver, os dissidentes, os desertores, sabe como é. Tal como sabe, os assassinatos eram geridos pelo Departamento Cinco do Primeiro

Diretorado Principal. O Departamento Cinco queria um assassino muito bem treinado, com base permanente no Ocidente, que levasse a cabo mortes em cima da hora. Esse assassino era o Outubro.

- Quem é ele? - indagou Michael.

- Entrei para o Departamento Cinco depois de ele estar integrado no Ocidente. O seu arquivo não revelava nada sobre a verdadeira identidade. Havia boatos, é claro. Dizia-se que era filho ilegítimo de uma patente bastante elevada do KGB: de um general, ou talvez do próprio presidente. Não passavam de boatos.

Foi acolhido muito novo pelo KGB e recebeu uma educação e um treino intensivos. Em 8, ainda adolescente, foi enviado para o Ocidente através da Checoslováquia, fazendo-se passar por refugiado. Acabou por se mudar para Paris. Fingiu-se um jovem desalojado e foi recebido por um orfanato católico. Ao longo dos anos desenvolveu uma identidade francesa à prova de tudo. Frequentou escolas francesas, tinha um passaporte francês, tudo. Até cumpriu o serviço militar no exército francês.

- E depois começou a matar.

- Acima de tudo, era utilizado para promover a instabilidade no Ocidente, para levantar problemas aos governos ocidentais. Matava de ambos os lados do muro. Agitava as águas, por assim dizer. Lançava achas para a fogueira. E era muito bom no que fazia. Orgulhava-se de nunca ter falhado uma única missão. Não utilizava as ferramentas que lhe púnhamos à disposição para lhe facilitar o trabalho, as balas com ponta de cianeto, ou as armas que libertavam gás venenoso. Desenvolveu o seu método de matar muito próprio.

- Três tiros no rosto.

- Brutal, eficaz, bastante dramático.

Michael vira os resultados em primeira-mão. Não precisava que Drozdov descrevesse o efeito do método do assassino.

- Ele tinha um agente responsável? - perguntou Michael, com um tom de voz sereno.

- Sim, apenas trabalhava com um agente, um homem chamado Mikhail Arbatov. Cheguei a tentar substituir Arbatov, mas o Outubro ameaçou matar o novo elemento. Arbatov era o mais próximo que o Outubro tinha de uma família. Só confiava em Arbatov e, mesmo assim, apenas o suficiente.

- Há pouco tempo foi assassinado em Paris um Mikhail Arbatov.

- Sim, li sobre isso. A polícia disse que deve ter sido morto por delinquentes.

O relato do jornal descreve-o como sendo um diplomata russo aposentado a viver em Paris. Se há uma coisa que aprendi nesta vida, senhor Osbourne, é que não se pode acreditar em tudo o que se Le nos jornais.

- Quem matou Arbatov?

- O Outubro, é claro.

- Por quê?

- É uma boa pergunta. Talvez Arbatov soubesse demasiado sobre alguma coisa.

Quando o Outubro se sente ameaçado, mata. É a única coisa que sabe fazer.

Exceto pintar. Dizem que tem bastante talento.

- Começou a trabalhar por conta própria? Agora é assassino profissional?

- Dos melhores do mundo, bastante procurado. Arbatov era o seu agente. Enriqueceram bastante em conjunto. Ouvi dizer que havia muita inveja pela forma como Arbatov se aproveitara dos talentos do Outubro. Arbatov tinha muitos inimigos, muita gente que lhe desejava mal. Mas, se está à procura de quem o matou, talvez começasse pelo Outubro.

O sol voltou a desaparecer e as nuvens engrossaram, negras com a promessa de chuva. Passaram por uma mansão de pedra calcária, cercada por relvados amplos. Michael contou-lhe sobre Colin Yardley. Sobre a gravação vídeo da morte. Sobre Astrid Vogel.

Drozdov abanou lentamente a cabeça.

- Imaginaria que alguém com o ofício de Yardley soubesse os perigos de ter uma câmara no quarto. Tenho de admitir que é uma das consequências da velhice que não me incomodam. O eterno desejo pelo corpo da mulher deixou-me finalmente em paz. Tenho os meus cães, os meus livros, e a minha paisagem bucólica de Cotswolds.

Michael riu em silêncio.

Em tempos trabalhou com a Fação do Exército Vermelho. Foi durante essa missão que conheceu Astrid Vogel. Ela passou muitos anos escondida, em Tripoli, em Damasco, nas montanhas Shouf. Pagou muito caro pelo idealismo. Houve qualquer coisa que a voltou a atrair para este mundo. Imagino que tenha sido o dinheiro. - Porque iria o Outubro matar Colin Yardley?

Talvez devesse reformular essa pergunta: O que fez Colin Yardley para que alguém contratasse o melhor assassino do mundo para o matar? Talvez tenha adquirido um míssil Stinger a um traficante de armas do mercado negro chamado Farouk Khalifa, após o que o entregou aos homens que abateram o Voo 002, pensou Michael.

Começou a chuviscar e o tempo arrefeceu. Os cães rodearam as botas de Drozdov, ansiosos por voltar a casa, para junto da lareira. À frente deles surgiu a aldeia de Aston Magna, um aglomerado de casas espalhadas à volta do cruzamento de duas estradas secundárias.

- Oferecia-lhe boleia de volta a Moreton, mas não conduzo desculpou-se Drozdov. - Obrigado, mas vou a pé.

- Sinto muito pelos sapatos - indicou, apontando a bengala ao calçado arruinado de Michael. - Não foi uma muito boa escolha para uma caminhada através de Cotswolds, no inverno.

- Um pequeno preço a pagar pela ajuda que me deu.

Michael parou de andar. Drozdov continuou mais alguns metros, após o que se deteve e virou-se.

- Houve uma morte que ainda não referiu - comentou. O assassinato de Sarah Randolph. Imagino que não tenha a ver com o caso em que está envolvido neste momento. Admiro o seu profissionalismo, senhor Osbourne.

Michael não disse nada, limitando-se a aguardar.

Ela era uma comunista empenhada, uma revolucionária - explicou, abrindo os braços e olhando o céu. - Que Deus nos proteja dos idealistas. A sua Sarah era amiga dos oprimidos do mundo: dos irlandeses, dos árabes, dos bascos. Trabalhou de bom grado para a minha agência. Conhecíamos a verdadeira identidade do Michael. Sabíamos que enviava agentes de infiltração contra as organizações guerrilheiras próximas da nossa causa. Queríamos saber mais acerca dos seus movimentos, por isso colocamos Sarah Randolph no seu caminho. Michael sentiu a cabeça às voltas. O coração acelerou. Tinha dificuldade em ouvir. Drozdov parecia estar a afastar-se dele, a transformar-se numa linha vertical ao fundo de um túnel comprido e escuro. Tentou recuperar o controle das emoções. Receava que Drozdov se apercebesse e se calasse. Queria ouvir tudo. Depois de tantos anos, queria a verdade, por mais dolorosa que fosse.

- Sarah Randolph cometeu um erro terrível - continuou Drozdov. - Apaixonou-se pelo alvo. Disse aos agentes de ligação que pretendia desistir. Ameaçou contar-lhe tudo. Ameaçou entregar-se à polícia e confessar. O oficial de controle decidiu que ela era demasiado instável para prosseguir com a missão. O Centro de Moscou quis eliminá-la, e eu fiquei encarregue do caso. Talvez lhe deva um pedido de desculpas, mas imagino que compreenda que não foi nada pessoal.

Michael debateu-se para tirar um cigarro do maço e levá-lo aos lábios. As mãos tremiam-lhe. Drozdov acercou-se e acendeu o cigarro com um isqueiro de prata com bastante uso.

- Julguei que merecia a verdade, senhor Osbourne, razão pela qual lhe contei tudo o resto. Mas acabou. Faz parte do passado, tal como a Guerra Fria. Regresse à sua esposa e esqueça Sarah Randolph. Ela nunca foi real. E, faça o que fizer, mantenha-se alerta - acrescentou, com os lábios junto ao ouvido de Michael. - Se for atrás do Outubro e cometer um erro que seja, ele mata-o tão depressa que nem vai dar por isso.

Michael regressou a Moreton sob chuva intensa. Quando chegou à aldeia, estava ensopado até os ossos e dormente com o frio. Dirigiu-se ao Rover no estacionamento e fingiu deixar cair as chaves ao tentar abrir a porta. Pôs-se de gatas e perscrutou rapidamente a parte inferior da carroçaria. Não avistou nada de invulgar, por isso entrou e ligou o motor. Colocou o aquecimento no máximo, fechou os olhos e apoiou a testa no volante. Não sabia se a devia odiar por lhe ter mentido, se amá-la ainda mais, por ter querido desistir e ter acabado por pagar com a vida. Imagens dela percorreram-lhe a mente. Sarah a flutuar na sua direção, a sorrir, uma saia comprida sobre botas de camurça. A pele luminosa, de um tom dourado à luz das velas. O corpo arqueado na direção do seu. O rosto esfacelado!

Esmurrou o painel e arrancou com o carro, os pneus a derraparem no pavimento molhado. A van Ford branca seguiu-o até Michael devolver o Rover no

Aeroporto de Heathrow.

Michael apanhou o ônibus do serviço de aluguer de carros até o Terminal

Quatro e correu para o interior. A fila para o check-in no balcão da TransAtlantic Airlines era interminável, por isso procurou um telefone e ligou para o gabinete de Elizabeth. Foi o secretário, Max Lewis, quem atendeu e pediu a Michael que aguardasse, enquanto ia chamar Elizabeth a uma reunião. Michael pensou no que lhe dizer. Decidiu não lhe contar nada, por enquanto. Era um assunto demasiado complicado, demasiado emocional, para discutir ao telefone. Elizabeth atendeu.

- Estou no aeroporto. Vou apanhar o avião daqui a pouco, e queria apenas dizer que te amo - disse Michael.

- Está tudo bem, Michael? Pareces incomodado com alguma coisa.

- Foi uma manhã muito comprida, só isso. Conto-te tudo quando chegar a casa, logo à noite. Como te sentes? Estás pronta para amanhã?

- O mais possível. Neste momento estou a tentar não pensar muito nisso. Tenho uma pilha de coisas para despachar ainda hoje, e isso ajuda.

Michael virou-se para confirmar se a fila para o check-in tinha reduzido. Uma centena de pessoas aguardava em fila, como refugiados num centro de processamento, a bagagem aos pés, os rostos exasperados. Três jovens entraram no terminal. Todos usavam um boné de basebol. Todos seguravam um saco de couro preto. Estavam vestidos de modo informal, com calças de ganga e sapatos de tênis, cabelo escuro por baixo dos bonés, pele cor de azeitona.

Michael observou-os. Deixou de ouvir o que Elizabeth estava a dizer. Os três homens pararam e pousaram os sacos. Agacharam-se ao lado dos sacos e abriram-nos.

- Espera um pouco, Elizabeth - disse Michael. - Michael, o que foi?

Michael não respondeu, limitou-se a observar.

- Responde-me, Michael, que raio! O que se passa?

Em uníssono, os homens levaram as mãos às palas dos bonés e os rostos desapareceram atrás de véus de seda negra.

- Baixem-se! Baixem-se! - bradou Michael. Largou o receptor.

Os homens levantaram-se, de armas automáticas e granadas em riste.

- Armas! Armas! Baixem-se! - gritou Michael.

Os terroristas lançaram granadas para a multidão e começaram a disparar.

Michael correu na direção deles, aos berros.

Na baixa de Washington, Elizabeth gritava para o telefone. Ouviu Michael a gritar, depois tiros, finalmente explosões. Depois a linha ficou em silêncio. - Ai, meu Deus, Michael! Michael!

Procurou o controle remoto, ligou o televisor do gabinete e sintonizou a CNN. Estava a meio de uma qualquer reportagem idiota sobre os benefícios dos abacates para a saúde.

Percorreu o gabinete. Mordeu as unhas. Max sentou-se ao seu lado e esperou, dando-lhe a mão. Dez minutos depois, Elizabeth mandou-o embora e fez algo que não fazia há vinte anos.

Fechou os olhos, juntou as mãos e rezou.


LONDRES

No gabinete de primeiro andar da sua casa em St. John's Wood, o Diretor telefonou a Mitchell Elliott a partir de uma linha segura.

- Creio que o senhor Osbourne pode revelar-se um problema, senhor Elliott. Ontem à noite teve uma conversa interessante com um homem do Serviço de Espionagem, a qual escutamos com um microfone direcional localizado na rua. Esta manhã encontrou-se com um certo Ivan Drozdov, um desertor da KGB que em tempos supervisionou as atividades do nosso assassino. Do outro lado da linha, Elliott suspirou profundamente.

- Escusado será dizer que ele sabe muita coisa, e provavelmente desconfia de muito mais - continuou o Diretor. - O nosso senhor Osbourne é um adversário bastante valoroso. Na minha opinião, não o devemos menosprezá-lo.

- Não o menosprezo, Diretor. Pode ter a certeza disso.

- O que se passa no seu lado?

O Osbourne e a mulher encontraram umo disquete com os apontamentos de Susanna Dayton e uma cópia do artigo. Ao que parece, conseguiram quebrar o código de segurança. Entregaram o material aos editores do Washington Post.

- Um desenvolvimento infeliz - comentou o diretor, tossicando. - Parece-me que a Sra. Osbourne também se encontra em posição de criar problemas. - Já a mandei vigiar.

- Espero que desta vez seus homens se comportem de uma forma mais profissional. No presente estado dos acontecimentos, não precisamos que a melhor amiga de Susanna Dayton também apareça morta. Já o marido, é outro caso. Durante a carreira fez a sua dose de inimigos. Seria ocasional, caso um desses inimigos aparecesse e se vingasse. - Quanto a isso não há problema.

- Tem a bênção da Sociedade, senhor Elliott.

- Obrigado, Diretor.

- Enquanto este assunto se mantiver no campo do financiamento político, imagino que se consiga proteger. Vai ser embaraçoso e sujo, é claro. Talvez lhe surja uma multa pesada, alguma especulação desconfortável por parte dos meios de comunicação, mas o seu projeto vai sobreviver. Contudo, se o senhor Osbourne descobrir algo que se aproxime da verdade... Bem, creio que não preciso de explicar-lhe as consequências.

- É claro que não, Diretor. E quanto a Ivan Drozdov, o desertor? Representa algum problema?

- Não tenho certeza, mas não estou disposto a correr riscos. O assunto Drozdov está neste momento sendo tratado.

- Uma jogada sábia.

- Também achei. Boa tarde, senhor Elliott.

Em Aston Magna, Ivan Drozdov estava sentado à lareira, a ler à luz fraca que entrava pelas portas de correr, quando ouviu bater. Os corgis saltaram do cesto e correram até a porta da casa, a ladrar em fúria. Drozdov seguiu-os lentamente, as pernas rígidas por ter estado sentado. Abriu a porta e viu um jovem de macacão azul, o rosto como o de um menino do coro.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Drozdov. O rapaz puxou de uma arma com silênciador.

- Faça as pazes com Deus - indicou. Drozdov retesou-se.

- Sou ateu - replicou calmamente.

- É uma pena - retorquiu o jovem.

Ergueu a pistola e alvejou Drozdov duas vezes no coração.


AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

 

O pistoleiro mais próximo de Michael disparava furiosamente para a multidão. Avistou Michael a investir, apontou a arma automática e disparou. Michael atirou-se para trás de um quiosque de câmbio, com balas a fazerem ricochete no chão a seu lado. Duas pessoas agachavam-se com ele, uma mulher que gritava em alemão e um padre francês que murmurava o Pai-nosso.

O terrorista perdeu o interesse em Michael e voltou a apontar a arma aos passageiros indefesos. Michael espreitou por trás do quiosque. O ataque começara há menos de quinze segundos, mas para Michael, agachado por trás do quiosque, parecia uma eternidade. O chão estava coberto de mortos e de moribundos, e de pessoas aterrorizadas que tentavam em vão proteger-se atrás de bagagens e de balcões.

Raios partam! Onde está a força de segurança? pensou Michael.

Um dos atacantes fez uma pausa para recarregar. Levou a mão à mala, retirou a cavilha de outra granada e atirou-a para trás do balcão da TransAtlantic. O edifício estremeceu com o abalo. Michael viu um par de corpos a serem lançados pelo ar, os membros despedaçados. O ar tresandava com o cheiro de fumo e de sangue. Os gritos das vítimas quase abafavam o matraquear das armas automáticas.

Michael desejou ter uma arma. Olhou para a direita. Quatro agentes da força antiterrorista da polícia britânica assumiam posições de disparo atrás de outro balcão. Dois deles levantaram-se, apontaram e dispararam. A cabeça de um dos pistoleiros explodiu numa nuvem cor-de-rosa de sangue e de massa encefálica. Os dois terroristas restantes responderam ao fogo e alvejaram um dos agentes. Os policiais ergueram-se por detrás da barreira, armas disparando. Um segundo pistoleiro tombou, o corpo perfurado pelas balas.

O último terrorista desistiu da luta. Recuou até a porta, sem nunca deixar de disparar. Atravessou a porta automática, com vidros a estilhaçarem-se à sua volta.

Michael podia ver um quarto elemento da equipe ao volante do carro de fuga, um Audi metalizado. Levantou-se, passou por uma série de portas paralelas e correu pelo corredor de embarque, saltando por cima de viajantes e de funcionários do aeroporto deitados no chão.

O terrorista ao volante acelerava nervosamente o motor. Meia dúzia de seguranças corria pelo terminal, as armas em riste. Michael corria agora pelo passeio, as mãos estendidas.

O último pistoleiro encontrava-se a vinte metros de distância, prestes a entrar para o carro. O condutor escancarou a porta traseira. O terrorista estava quase a entrar para o carro quando ergueu o olhar e viu Michael a correr na sua direção. Virou-se e tentou empunhar a arma automática.

Michael baixou o ombro e derrubou o pistoleiro. O impacto fez com que o atacante largasse a arma.

Michael agarrou o homem pelo pescoço e golpeou-o brutalmente no rosto. O primeiro murro partiu-lhe o nariz, o segundo fraturou-lhe o malar e deixou-o inconsciente.

O terrorista ao volante abriu a porta e começou a sair do carro, a pistola automática na mão enluvada. Michael procurou freneticamente a metralhadora caída. Agarrou-a e disparou através do para-brisa do Audi. O pistoleiro ainda conseguiu disparar dois tiros ao acaso, antes de cair no passeio, sem vida. Com o coração aos saltos, Michael viu um lampejo de uma cor escura e aquilo que pensou ser uma arma. Girou sobre o joelho e apontou a um dos agentes de segurança ingleses.

- Largue a arma com calma, amigo - disse calmamente o policial. - Já acabou tudo. Largue a arma.

Wheaton, o Chefe da Estação de Londres da CIA, foi buscar Michael ao Aeroporto de Heathrow e levou-o para a cidade no banco de trás de um sedan do governo, conduzido por um motorista. Michael encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos. Fora interrogado durante uma hora por um oficial da polícia britânica e por dois homens do MI5. Durante algum tempo, Michael manteve a cobertura: um empresário americano que regressava a Nova York após uma breve reunião em Londres. Por fim, chegou alguém da embaixada. Michael pediu para falar com Wheaton, e este telefonou para a polícia e contou a verdade.

Michael nunca matara ninguém e não estava preparado para a reação que teve. Nos momentos que seguiram o combate, sentiu uma satisfação selvagem, um entusiasmo estranho que se assemelhava à sede de sangue. Os terroristas eram homens malignos que tinham chacinado pessoas inocentes. Mereciam uma morte violenta e dolorosa. Estava satisfeito por ter eliminado um deles e por ter esmurrado o rosto do outro. Passara a sua carreira a perseguir terroristas, usando apenas o seu inteleto e o seu talento para as armas. Finalmente pudera utilizar os punhos e uma arma, com efeito, uma arma que servira para massacrar pessoas inocentes. Sentia-se bem.

Começava agora a ser dominado pela exaustão, que lhe pressionava o peito e lhe fazia latejar a cabeça. Com a adrenalina eliminada das veias, as mãos já não lhe tremiam. Era acometido por ondas de náusea. Fechou os olhos e viu sangue a voar, cabeças a explodir, gritos e o matraquear das armas automáticas. Viu o condutor de fuga a tombar para trás, sentiu a arma a recuar-lhe na mão. Tirara uma vida. Uma vida de alguém mau, mas uma vida, não obstante. Já não se sentia bem. Sentia-se sujo.

Michael esfregava a mão direita.

- Talvez devesse ver o que se passa - comentou Wheaton, como se Michael sofresse de uma lesão antiga. Michael ignorou-o.

- Qual o número de baixas?

- Trinta e seis mortos, mais de cinquenta feridos, alguns com bastante gravidade. Os ingleses esperam que o número de mortes aumente.

Americanos?

- Pelo menos vinte dos mortos são americanos. A maior parte das pessoas que aguardava pelo check-in pretendia embarcar no voo para Nova York. Os restantes mortos são ingleses. Já agora, falei com a sua esposa. Ela sabe que está bem.

Michael lembrou-se de como a deixara. Num momento estavam a falar, no outro largara o telefone e começara a gritar. Interrogou-se o que teria escutado Elizabeth. Teria ouvido tudo, as explosões, os tiros, os gritos, ou teria a linha sido cortada? Imaginou-a no gabinete, preocupadíssima, e sentiu-se mal.

Queria desesperadamente falar com ela, mas não à frente de Wheaton.

Tinham entrado em Londres e seguiam a leste de Cromwell Road.

- Como é óbvio, as hienas da mídia estão ansiosas por falar com você - avisou Wheaton. - As testemunhas contaram-lhes sobre o herói de fato que matou um dos terroristas e subjugou outro. A polícia está a dizer-lhes que o homem deseja permanecer anônimo, pois receia uma retaliação por parte da Espada de Gaza. Por agora ainda acreditam, mas sabe Deus quantos policiais de Londres têm conhecimento da verdade. Basta que um deles dê com a língua nos dentes para termos um problema bastante sério.

- A Espada de Gaza já reivindicou o atentado?

- Enviaram um fax para o The Times há alguns minutos. Os ingleses estão a analisá-lo e já enviamos uma cópia para o CTC de Langley. Parece autêntico.

Deve ser revelado aos media em breve.

- Uma vingança pelos ataques aéreos aos campos de treino?

- É claro.

Dirigiram-se para norte por Park Lane, depois por Mayfair, para Grosvenor Square. O carro encaminhou-se para a entrada principal da embaixada americana. Michael gostaria que pudessem utilizar uma entrada subterrânea, mas talvez já não fizesse grande diferença. Saiu do carro. Sentia-se tonto e doía-lhe o joelho. Devia tê-lo magoado durante o confronto, mas a adrenalina ocultara a dor até aquele momento. Os Marines colocaram-se em sentido e fizeram continência quando Michael entrou no complexo da embaixada, com Wheaton a seu lado. O embaixador e os adidos aguardavam, com os restantes funcionários da grande embaixada atrás deles. O embaixador começou a aplaudir, sendo imitado pelos outros. Michael passara toda a carreira a trabalhar nas sombras. Os louvores eram atribuídos em segredo. Quando tinha um dia bom no gabinete, não podia contar a ninguém, nem mesmo a Elizabeth. Agora, os aplausos dos membros da embaixada envolviam-no e sentiu um arrepio na nuca.

O embaixador avançou e levou a mão ao ombro de Michael.

- Imagino que neste momento não tenha grande vontade de celebrar, mas quero que saiba que estamos muito orgulhosos de si.

- Obrigado, senhor embaixador. Fico muito grato.

- Há mais alguém que deseja falar com você. Siga-me, por favor.

Quando Michael entrou na sala de comunicações, entre Wheaton e o embaixador, podia ver o selo presidencial na tela maior. O embaixador pegou um telefone, murmurou algumas palavras para o bocal e desligou. Segundos depois, o selo presidencial dissolveu-se e James Beckwith apareceu, sentado numa poltrona branca, ao lado da lareira da Sala Oval, vestindo uma camisa e uma blusa de lã.

- Michael, não há palavras que possam expressar a gratidão e o orgulho que sentimos - começou o Presidente a dizer. - Pondo em risco a sua própria integridade física, dominou sozinho um terrorista da Espada de Gaza e matou outro. A sua ação poderá ter salvo inúmeras vidas e desferiu um rude golpe nesse bando de covardes. Vou insistir para que receba a mais alta das condecorações. Apenas gostaria de a poder colocar pessoalmente no seu peito, à frente da nação, pois hoje o seu país ficaria bastante orgulhoso de si. Michael esboçou um sorriso.

- Estou habituado a trabalhar em segredo, Senhor Presidente, e, se não se importar, prefiro continuar assim. Beckwith exibiu um sorriso rasgado.

- Já imaginava que assim fosse. Além disso, é demasiado valioso para ser desperdiçado numa fotografia oportunista. Graças ao meu chefe de gabinete, já tenho quanto baste.

A câmara fez um plano mais alargado, revelando os outros homens sentados à volta do Presidente: o Chefe de Gabinete Vandenberg, o diretor da CIA Clark, o Conselheiro para a Segurança Nacional Bristol. Num dos extremos da tela estava um homem pequeno de terno de grife que lhe assentava mal, as mãos cruzadas sobre o colo, o rosto pouco visível, como qualquer bom espião que se preze. Michael soube de imediato que se tratava de Adrian Carter.

- Peço desculpa por interrompê-lo, Senhor Presidente - disse Michael. - Será que a câmara poderia deslocar-se um pouco para a esquerda? Não consigo ver aquele homem minúsculo sentado no divã.

A câmara moveu-se, revelando o rosto de Carter. Como já era habitual, parecia com sono e enfadado, mesmo estando sentado na Sala Oval, com o Presidente e a respectiva equipe de segurança nacional à sua volta.

- Ora vejam só, como é que deixaram entrar na Sala Oval um bronco como o Adrian Carter? - gracejou Michael. - Tenha cuidado, Senhor Presidente. Ele rouba cinzeiros e toalhas de hotel. Se fosse a si, punha-o sob vigilância. -Já tirou uma dúzia de pacotes de M&M presidenciais - replicou Beckwith, claramente divertido. Carter acabou finalmente por sorrir.

- Se vais começar a agir como uma espécie de herói americano, fico com o estômago às voltas. Lembra-te de que estou com você desde o início, Michael. Sei onde os corpos estão enterrados, literalmente. Se fosse a ti, tinha cuidado.

- Michael, precisamos de falar sobre outra coisa - disse Beckwith, quando as gargalhadas esmoreceram. - Vou deixar que o Carter e o diretor Clark o informem dos pormenores.

- Vou ser direto, Michael - começou Clark.

O diretor da CIA era um político, um antigo senador do New Hampshire que se orgulhava do fato de falar como uma pessoa normal. Como resultado, o léxico do mundo da espionagem deixava-o constantemente baralhado. Era alto e magro, com caracóis grisalhos rebeldes e usava laço. Parecia mais adequado a uma posição catedrática em Dartmouth do que à direção de Langley.

- Por mais estúpido que pareça, a Espada de Gaza gostaria de se encontrar connosco - Clark pigarreou. - Deixe-me ser mais específico. A espada de Gaza não se quer encontrar connosco, quer encontrar-se com você.

Como fizeram o pedido?

. Através da nossa embaixada em Damasco, há cerca de uma hora. ?- Porquê eu?

- Ao que parece, sabem exatamente quem é, e qual o seu trabalho. Dizem que se querem encontrar com o homem que mais sabe acerca do grupo, e essa pessoa é o Michael.

- Como irá processar-se o encontro?

- Amanhã de manhã, no primeiro ferry entre Dover e Calais. Querem que espere no convés, a meio do barco, e o representante deles fará a abordagem. Sem observadores, sem aparelhos de gravação, sem câmaras. Se virem alguma coisa de que não gostam, o encontro fica sem efeito.

- Quem vai ser o representante deles?

- Muhammad Awad.

- O Awad é o segundo membro mais importante da organização. O simples fato de o quererem colocar a bordo de um ferry e cara a cara com um agente da CIA é notável.

- Por isso mesmo, deve ser bom demais para ser verdade interveio Carter, enquanto a câmara fazia uma panorâmica para captar a sua imagem. - Não gosto disto. Vai contra todas as nossas regras quanto a encontros deste gênero. Somos nós que controlamos o local. Nós estabelecemos as condições. Mais do que ninguém, devia saber disso.

- Imagino que seja contra este encontro - disse Michael.

- Cento e dez por cento.

- Gostaria de ouvir sua reação, Michael - adiantou Beckwith.

- Adrian tem razão, Senhor Presidente. Em geral, não nos encontramos com terroristas de renome em situações como esta. A doutrina da Agência diz que somos nós a controlar o encontro: a data, o local, as regras básicas. Posto isto, creio que neste caso devemos esquecer as regras.

- E se o objetivo for assassiná-lo?

Se a Espada de Gaza me quisesse morto, haveria formas muito mais simples de o fazer, e não preparar um encontro elaborado, a bordo ao ferry entre Dover e Calais. Receio bem que bastaria enviarem um atirador para Washington, que esperasse à porta da sede.

- Bem visto - admitiu Clark.

- Julgo que apenas querem falar - continuou Michael. - E julgo que seríamos tolos se não escutássemos o que eles têm a dizer.

- Não concordo, Michael - discordou Carter. - Estamos a falar de um dos piores grupos terroristas em atividade. Eles falam todos os dias com as suas ações. Muito sinceramente, estou-me borrifando para aquilo que podem ter para dizer. - Carter olhou para Beckwith e disse: - Sinto muito pela linguagem, Senhor Presidente.

- Eu avisei-o de que ele não era uma pessoa decente, Senhor Presidente - disse Michael.

O conselheiro para a Segurança Nacional William Bristol esperou que as gargalhadas esmorecessem.

- Acho que vou apoiar o Michael, Senhor Presidente. É verdade, Muhammad Awad é um terrorista perigoso que não merece uma audiência só porque a pede. No entanto, muito sinceramente, gostaria de ouvir o que tem a dizer. Este encontro pode ser proveitoso. Certamente poderá dar à CIA informações preciosas sobre os elementos e sobre a maneira de pensar do grupo. E concordo com o Michael noutro ponto: se a Espada de Gaza o quiser matar, há maneiras mais fáceis de o conseguir.

O Presidente dirigiu-se a Vandenberg. - Qual é a sua opinião, Paul?

Detesto ir contra si, Bill, pois a política externa é a sua especialidade e não minha, mas julgo que não temos nada a ganhar com um encontro com o líder de um bando de vilões sanguinários como a Espada de Gaza. O Adrian tem razão: a Espada de Gaza fala com ações e não com palavras. E temos de pensar noutra coisa. Não gostaria de ter de explicar ao povo americano por que motivo nos encontramos com Muhammad Awad numa altura como esta. A forma como tem lidado com a crise tem sido exemplar e os Americanos já o recompensaram. Não gostaria de ver essa boa vontade desperdiçada só porque um terrorista como Muhammad Awad quis trocar dois dedos de conversa.

Beckwith caiu num silêncio pensativo. Michael sabia que não era bom sinal. Nunca estivera na presença do Presidente, mas já ouvira histórias sobre o poder de Paul Vandenberg. Se este não quisesse que o encontro tivesse lugar, provavelmente o encontro não se realizaria.

Por fim, Beckwith olhou para a câmara e dirigiu-se a Michael em Londres, e não aos homens sentados à sua volta.

- Michael, se estiver disposto a avançar com isto, gostaria de saber o que Muhammad Awad tem a dizer. Sei que vai comportar riscos, e sei que o Michael é casado.

- Vou encontrar-me com ele - respondeu Michael simplesmente.

Muito bem - declarou Beckwith. - Desejo-lhe muito boa sorte. Falamos amanhã. Depois, a imagem de Washington desvaneceu-se.

LONDRES

O embaixador permitiu que Michael utilizasse o seu gabinete para telefonar a Elizabeth, em Washington. Michael ligou para o número privado, mas foi Max, o secretário, quem atendeu. Mostrou-se aliviado ao ouvir a voz de Michael e depois explicou que Elizabeth já partira para Nova York e que poderia ser contatada mais tarde, no apartamento do pai na Quinta Avenida. Michael sentiu uma pontada de fúria momentânea - como podia ela ter saído do gabinete sem esperar para lhe ouvir a voz? - mas depois sentiu-se um tolo. Saíra mais cedo do trabalho pois de manhã iria extrair e fertilizar os óvulos no Cornell Medical Center, em Nova York. Durante a confusão do atentado, Michael esquecera-se completamente. E concordara em encontrar-se com Muhammad Awad no meio do Canal da Mancha, o que atrasaria a sua chegada a Nova York mais dois dias. Elizabeth ficaria furiosa, e com toda a razão. Michael disse a Max que lhe telefonaria mais tarde para Nova York e desligou.

Na verdade, Michael ficou aliviado por não ter falado com Elizabeth. Não queria ter uma conversa como aquela numa linha monitorizada da embaixada. Dirigiu-se ao gabinete de Wheaton e encontrou-o sentado à secretária, a apertar uma bola de tênis, um Dunhill entre os lábios exangues.

- Perdi a mala em Heathrow - explicou Michael. - Tenho de fazer umas compras antes que as lojas fechem.

Por acaso, não pode ir - contrapôs Wheaton com desdém. Para começar, não gostava que Michael estivesse a trabalhar no seu território. O fato de Michael ser a coqueluche do momento também não ajudava. - O Carter quer vê-lo quieto e seguro. Temos uma casa de segurança perto de Paddington Station. Vai ver que é muito confortável.

Michael resmungou consigo mesmo. As casas de segurança da Agência eram o equivalente na espionagem a um hotel barato. Conhecia muito bem o apartamento de Paddington Station. Utilizara-o ao longo dos anos para esconder vários agentes de penetração assustados. A última coisa que ele queria era passar lá a noite como hóspede e não como ama-seca. Michael sabia que não valia a pena resistir. Ia encontrar-se com Muhammad Awad contra a vontade de Carter e não queria enfurecê-lo ainda mais, reclamando por ter de passar uma noite na casa de segurança de Paddington.

Continuo a precisar de roupa - insistiu Michael.

- Faça uma lista e eu mando alguém comprar.

- Preciso de apanhar ar. Preciso de fazer alguma coisa. Se tiver de passar as próximas doze horas trancado numa casa de segurança a ver televisão, vou dar em louco.

Claramente irritado, Wheaton levantou o receptor do telefone interno e murmurou algumas palavras ininteligíveis para o bocal. Momentos depois surgiram dois agentes à porta, vestidos com ternos cinza-claro idênticos.

- Cavalheiros, o senhor Osbourne gostaria de passar a tarde no Harrods.

Garantam que não lhe acontece nada.

- Porque não envia um par de Marines fardados? - queixou-se Michael. - E, já agora, a Marks and Spencer serve perfeitamente.

Apanharam um táxi para Oxford Street, um dos agentes sentado ao lado de Michael no banco, o outro apertado num banco desdobrável. Michael entrou na Marks & Spencer e comprou dois pares de calças de bombazina, dois pulôveres de algodão, uma blusa cinzenta de lã, roupa interior e peúgas, e um casaco verde impermeável. Os vigilantes seguiram-no, enquanto reviravam pilhas de blusas e fileiras de ternos como um par de comunistas na sua primeira viagem ao Ocidente capitalista. De seguida entrou numa drogaria e comprou artigos de higiene: lâminas e creme de barbear, pasta e escova de dentes,

desodorizante. Queria andar, por isso levou as compras ao longo de Oxford Street, a olhar para as montras como um empresário enfadado a matar tempo, sempre com o instinto a fazê-lo olhar para trás, em busca de perseguidores. Não viu ninguém, salvo os homens da Agência, vinte metros mais atrás.

Chuviscava. O lusco-fusco caiu como um véu. Michael abriu caminho por entre a multidão que entrava e saía da estação de metro de Tottenham Court Road. Adorava o cheiro do final de tarde de Outono em Londres. Chuva no passeio. Gases dos escapes. Cerveja e cigarros nos pubs. Lembrava-se de noites como aquela, em que saía do gabinete com o seu terno azul e o sobretudo creme de um vendedor, dirigindo-se ao Soho para se encontrar com Sarah no café, ou no bar que ela frequentava, cercada por bailarinos, por escritores, ou por atores. Michael era um estranho nesse mundo, um símbolo da convenção e de tudo o que desprezavam, mas, na presença deles, Sarah apenas tinha olhos para si. Ignorava as regras românticas do clã. Dava-lhe a mão. Beijava-lhe os lábios. Partilhava intimidades sussurradas e recusava-se a divulgá-las, quando interrogada.

Ao atravessar Shaftesbury Avenue, Michael interrogou-se quanto disso seria verdade, e o que não passaria de invenção. Tê-lo-ia amado? Teria representado desde o início? Porque teria pedido aos russos para desistir? Imaginou Sarah no apartamento caótico, o corpo a subir ao seu encontro à luz das velas, o cabelo longo a cair-lhe sobre os seios. Sentiu o aroma do cabelo, do hálito, saboreou o sal na pele translúcida. O ato de amar fora religioso. Caso fosse mentira, Sarah Randolph era a melhor agente que alguma vez encontrara. Interrogou-se se ela teria descoberto algo valioso. Talvez devesse tê-la declarado ao Departamento de Pessoal. Eles teriam investigado os seus antecedentes, tê-la-iam colocado sob vigilância, descobririam os encontros que mantinha com o controlador russo, e tudo poderia ter sido evitado. Pensou no que diria a Elizabeth. Promete que nunca vais mentir-me, Michael. Podes ocultar-me coisas, mas nunca me mintas. Quem me dera poder contar-te a verdade, pensou, mas nem eu sei qual é.

Michael sentou-se num banco em Leicester Square e esperou que os vigilantes se juntassem a ele. Apanharam um táxi até a casa de segurança, localizada num prédio branco ofensivo, com vista para Paddington Station. O interior era pior do que o recordado por Michael: mobília reles manchada, cortinados cheios de pó, copos e pratos de plástico numa cozinha em estado de sítio. O fedor dos quartos lembrava-lhe a residência universitária em Dartmouth. Wheaton abastecera o frigorífico com carnes frias e cerveja encomendadas à loja Sainsbury's. Michael tomou uma ducha e vestiu uma muda da roupa nova. Quando voltou à sala, os agentes comiam sanduíches e viam futebol inglês numa televisão de imagem instável. A cena tinha algo que o deprimia. Precisava de telefonar a Elizabeth, em Nova York, mas sabia que iriam brigar, algo que não queria fazer com a Agência à escuta.

- Vou sair - anunciou Michael.

- O Wheaton diz que tem de ficar aqui - avisou um dos homens, com a boca cheia de presunto, queijo cheddar e pão francês.

- Não quero saber daquilo que o Wheaton diz. Não vou passar a noite aqui sentado com dois palhaços. - Michael fez uma pausa.

- Muito bem, podemos ir juntos, ou posso livrar-me de vocês em cinco minutos, e depois explicam ao Wheaton o que se passou.

Seguiram de carro até Belgravia e estacionaram à frente da casa dos Seymour, em Eaton Place. Os guardas esperaram no seda" da Agência. A rua brilhava com a chuva e com a luz das fachadas de marfim do terraço georgiano. Pelas janelas, Michael pôde ver Helen na cozinha, concentrada no desastre culinário dessa noite, e Graham no andar de cima, na sala, a ler o jornal. Percorreu os degraus, molhados da chuva, e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen veio abrir e beijou-lhe a face.

- Que surpresa maravilhosa - exclamou.

- Importas-te que venha incomodar?

- É claro que não. Estou a fazer bouillabaisse.

Tens que chegue para mais um? - perguntou Michael, com o estômago instintivamente a dar uma volta.

- Mas é claro, meu querido - ronronou Helen. - Vai lá acima beber alguma coisa com o Graham. Este atentado em Heathrow deixou-o muito perturbado. Ai, meu Deus, foi uma coisa tão horrível.

- Eu sei - garantiu Michael. - Infelizmente, estava lá.

- Estás a brincar! - exclamou Helen. Depois olhou para a expressão de Michael. - O, não estás a brincar, pois não, Michael? Estás com um ar terrível, coitadinho. A bouillabaisse vai fazer-te sentir melhor.

Quando Michael entrou na sala, Graham ergueu o olhar.

- Ora vejam só, o herói de Heathrow. - Pousou o The Evening Standard, cuja manchete proclamava TERROR NO TERMINAL QUATRO.

Uma travessa com brie e com patê estava em cima da mesa de centro, ao lado de uma fatia grossa de pão. Graham já devorara metade. Michael barrou um pedaço de pão com queijo e olhou desconfiado para o patê.

- Não te preocupes, meu caro. Comprei-o numa loja de Sloane Square. Ela tem vindo a ameaçar que vai aprender a fazê-lo em casa. Não tarda muito vai começar a cozer pão, e nessa altura estou perdido.

Em fundo, Michael podia ouvir as notícias da BBC na aparelhagem alemã de Graham. Este tinha um ótimo ouvido e poderia ter sido um pianista sinfônico, caso os serviços secretos não lhe tivessem deitado a mão. O seu talento atrofiara ao longo dos anos, como acontece com uma segunda língua que não se fala. Utilizava o Steinway de cauda uma ou duas vezes por semana, enquanto Helen assassinava o jantar, e escutava outros a tocar música. Michael ouviu uma testemunha a descrever o viajante de terno azul que matara um terrorista e incapacitara outro.

- Tenho de telefonar à Elizabeth, e não quero metade da Estação de Londres a ouvir a conversa. Importas-te que use o teu telefone? Graham apontou para o telefone em cima da mesa de apoio.

- Preciso de um pouco mais de privacidade. Ela não vai gostar do que tenho para lhe dizer.

- O quarto fica ao fundo do corredor.

Michael sentou-se na beira da cama, pegou no telefone e marcou o número.

Elizabeth atendeu ao primeiro toque, o tom de voz agitado.

Meu Deus, Michael, onde tens estado? Estou preocupadíssima.

Não queria que a conversa começasse dessa forma. O primeiro instinto foi culpar a Agência, mas Elizabeth há muito que perdera a paciência para desculpas sobre as exigências únicas do seu trabalho.

- O Wheaton disse-me que tinha falado com você. Quando pude usar um telefone, já tinhas partido para Nova York. Além disso, queria um aparelho sem escutas.

- Onde estás?

- com a Helen e o Graham.

Elizabeth passara bastante tempo com os Seymour e gostava bastante do casal. Dois anos antes, numa altura em que Graham estivera em Washington para um trabalho de ligação contraterrorista, os quatro tinham passado um fim-de-semana prolongado na casa de Shelter Island.

- Porque não estás a caminho de casa? A extração está marcada para as dez da manhã. Preciso que aqui estejas.

- Já não há mais voos. Não vou conseguir chegar a tempo.

- Michael, trabalhas para a Central Intelligence Agency. Eles conseguem desencantar um avião. Diz-lhes quais são as circunstâncias. De certeza que vão ser compreensivos.

- Não é assim tão simples. Além disso, custa dezenas de milhar de dólares. Não vão fazer isso por mim.

Elizabeth suspirou profundamente. Michael ouviu o isqueiro barato e ela parou de falar o tempo suficiente para acender outro cigarro Benson & Hedges. - Tenho passado o dia a ver a CNN - disse, mudando de assunto de repente. - Falaram sobre uma testemunha que disse que um passageiro prendeu um dos terroristas e abateu outro com a arma dele. O homem que descreveram era muito parecido com você. - O que te disse o Wheaton?

- Ah não, Michael, não vou deixar que vocês acertem as agulhas com a história que andam a contar. O que aconteceu? Quero a verdade.

Michael contou-lhe.

Meu Deus do céu! Não podias ficar escondido e esperar que resolvessem as coisas? Tinhas de te aventurar? De te armar em herói e arriscar a vida?

- Não me estive a armar em herói, Elizabeth. Reagi a uma situação. Fiz aquilo para que me treinaram e devo ter conseguido salvar algumas vidas. - Então parabéns. O que queres que eu faça? - A voz tremia com a emoção. - Que me levante e seja a primeira a aplaudir por quase ter feito de mim uma viúva?

- Eu não fiz quase de ti uma viúva.

- Michael, eu ouvi um estranho na televisão dizendo que um terrorista te apontou uma arma e que você conseguiu matá-lo antes que ele te matasse. Não me minta.

- Não foi assim tão dramático.

- Então por que o matou?

- Porque não tinha alternativa. - Michael hesitou. - E porque merecia morrer. Há vinte anos que persigo pessoas como estas, mas nunca as tinha visto em ação. Hoje tive essa oportunidade. Foi pior do que imaginei.

Michael não estava em busca de compreensão, mas as suas palavras atenuaram a ira da esposa.

- Oh, sinto tanto. Mas como está você, afinal de contas? - perguntou Elizabeth.

- Estou bem. Quase quebrei a mão esmurrando o cara, e devo ter batido como o joelho em algum lugar, porque dói como o diabo. Mas de resto estou bem.

- É bem feito - replicou, ao que acrescentou rapidamente -, mas vou dar beijinhos em todo lugar, quando chegar em casa, amanhã.

Michael hesitou. Elizabeth tinha o radar em potência máxima.

- Você volta amanhã, não volta?

- Surgiu um imprevisto. Tenho de passar aqui mais um dia.

- "Surgiu um imprevisto." Então, Michael, consegue fazer melhor do que isso.

- É verdade. Quem me dera poder dizer do que se trata, mas não posso.

- Seja o que for, por que não pode ser outra pessoa a tratar do assunto?

- Porque só eu é que posso. - Michael fez uma pausa. - Mas há uma coisa que posso dizer: foi o Presidente em pessoa que me deu as ordens.

- Não me interessa quem te deu as ordens! - retorquiu Elizabeth. - Prometeu que voltaria a tempo. Agora quebra essa promessa.

- Elizabeth, o caso não está nas minhas mãos.

- Uma porra! Está tudo nas suas mãos. Você faz exatamente o que quer. Sempre fez.

- É só mais um dia e depois regresso. Vou direto a Nova York. Chego a tempo da implantação.

- Michael, não quero que se incomode. Por que não fica em Londres mais um dia ou dois? Vai ao teatro, ou algo assim.

- Isso não é justo, Elizabeth, e não está ajudando.

- Pode crer que não é justo.

- Não posso fazer nada.

- Faça o que fizer, Michael, não precisa voltar às pressas por minha causa, pois não sei se quero te ver.

- O que está a dizendo?

- Não sei o que estou dizendo. Estou zangada, magoada e desapontada com você. E estou com medo, e nem acredito que você vai me obrigar a passar por isso sozinha.

- Não tenho escolha, Elizabeth. É o meu trabalho. Não tenho escolha.

- Tem sim, Michael. Tem escolha. E isso é o que mais me assusta.

Ficou em silêncio por um instante, o zumbido da ligação por satélite era o único som em linha. Michael esgotara o que dizer. Queria dizer que a amava, o quanto lamentava, mas isso parecia tolo.

- Quando estávamos ao telefone, em Heathrow, antes do ataque - disse Elizabeth, por fim -, disse que queria contar uma coisa.

Michael filtrou a confusão e a violência do atentado em Heathrow e percebeu que estivera prestes a contar o que descobrira sobre Sarah. Não queria piorar a situação dizendo a Elizabeth que investigara a morte da antiga amante.

- Não me lembro do que estávamos falando - disse.

Elizabeth suspirou.

- Meu Deus, que péssimo mentiroso. Sempre pensei que os espiões fossem bons em enganar as pessoas. - Fez uma pausa, à espera que o marido dissesse alguma coisa, mas ele não tinha mais nada a dizer. - Boa sorte amanhã, para aquilo que vai fazer. Eu te amo.

A ligação caiu. Michael voltou a ligar rapidamente mas, quando o telefone começou a chamar, apenas ouviu o ruído irritante do sinal de ocupado. Voltou a tentar mas nada conseguiu, por isso desligou o telefone e desceu para enfrentar o jantar de Helen.

- Talvez fosse melhor pedir a Carter para enviar outra pessoa - sugeriu Graham.

Estavam sentados lá fora, no jardim, em volta de uma mesa de ferro forjado, fumando os cigarros de Graham. A chuva parara e a Lua ia brilhando através dos farrapos de nuvens.

- Não podemos enviar mais ninguém. Eles pediram que fosse eu. Conhecem o meu rosto. Se tentarmos enviar outra pessoa, vai tudo por água abaixo.

- Já pensou que pode cair direitinho numa armadilha? Vivemos tempos perigosos. A Espada de Gaza pode querer abater um homem dos serviços, sobretudo depois do que fez hoje em Heathrow.

- Não ganham nada em me matar. Sabe tão bem quanto eu que eles não matam indiscriminadamente. Fazem por uma razão e só quando acreditam que isso poderá promover sua causa.

- Imagino que Elizabeth não esteja nada satisfeita com a situação.

- Você pode imaginar. Ela não sabe o que vou fazer amanhã, mas não anda contente. - Michael contou tudo. Mesmo que a natureza do seu trabalho por vezes exigisse discrição profissional, havia muito poucos segredos pessoais entre eles.

- Espero que saiba o que está fazendo, companheiro. Parece bem grave.

- Neste momento não preciso de um conselheiro matrimonial. Sei que estou me arriscando, mas quero ouvir o que o Awad tem a dizer.

- Minha experiência com esses sacanas sugere que não vai dizer nada de útil.

- Não me arriscaria se não tivesse alguma coisa para nos dizer.

- Por que não apanhas o filho da mãe e o mete na prisão? Ou melhor ainda, trata do seu desaparecimento conveniente.

- É tentador, mas nós não funcionamos assim. Além disso, o único resultado seria uma resposta com mais violência.

- Não podem fazer nada mais violento do que o atentado de hoje, meu caro.

Uma sirene uivou na direção de Sloane Square. Sem querer, Michael pensou em Sarah.

- Chegou a encontrar o nosso amigo Drozdov? - perguntou Graham.

Michael anuiu.

- Disse alguma coisa de útil?

- Na verdade, foi bem útil. Sabia quem eu era. Disse por que Sarah foi morta.

Michael contou-lhe a história.

- Valha-me Deus, lamento, Michael. Sei o quanto ela significava para você - garantiu Graham.

Michael acendeu outro cigarro.

- Não disse a ninguém de sua equipe que eu estava pensndo em fazer uma visita a Drozdov, não?

- Está brincando? Os manda-chuvas me esfolariam vivo se descobrissem. Por que pergunta?

- Porque dois brucutus num Ford branco me seguiram até Heathrow.

- Não eram nossos. Talvez Wheaton tenha posto você sob vigilância.

- Já pensei nessa possibilidade.

- É um filho da mãe, esse seu Wheaton. Os cavalheiros na suíte executiva de Vauxhall Cross mal podem esperar pelo regresso dele a Langley para a dança da vitória em volta da sede.

- Ele contou ao SIS sobre o encontro de amanhã com Awad?

- Que eu saiba não, e eu faria parte da lista de aviso, se uma coisa dessas acontecesse.

- E não vai contar nada a sua equipe, certo, Graham?

- Claro que não. As regras habituais se aplicam, meu caro.

Graham jogou o cigarro num canteiro agora seco. - Não quer alugar um copiloto experiente?

- Quando foi a última vez que fez trabalho de campo?

- Já faz algum tempo. E você também. Mas há coisas que não se esquecem. Se fosse você, neste momento desejaria ter alguém me protegendo.


WASHINGTON, D. C.


Paul Vandenberg ligou os televisores do gabinete e viu, em simultâneo, a abertura dos noticiários dos três canais de televisão. Cada um deles dedicou todo o primeiro bloco à emissão do ataque em Heathrow. Houve reportagens em direto de Londres, da Casa Branca e do Oriente Médio, e reportagens de fundo sobre a Espada de Gaza. O tom dos jornalistas era, regra geral, positivo, embora fontes diplomáticas europeias anônimas culpassem os Estados Unidos por atacarem as bases da Espada de Gaza. Vandenberg não se preocupava com as críticas dos europeus. O Congresso encontrava-se do seu lado. Até mesmo alguns dos democratas mais pacifistas, como Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith, tinham prometido apoio, e o New York Times e o Washington Post tinham concedido suas bênçãos editoriais. Ainda assim, os vinte civis americanos que regressavam a casa em caixões minaram necessariamente algum apoio da opinião pública em relação aos atos do Presidente.

O noticiário abandonou o assunto e transmitiu o resto das notícias do dia. Vandenberg levantou-se e preparou um copo de vodka com água tônica, o qual bebeu enquanto arrumava a secretária e trancava os documentos importantes.

Às sete e dez, a secretária espreitou à porta.

- Boa noite, senhor Vandenberg.

- Boa noite, Margaret.

Tem uma chamada. Um tal detective Steve Richardson, da Polícia Metropolitana de D.C.

- Ele disse do que se trata? - Não, senhor. Quer que pergunte?

- Não, vá para casa, Margaret. Eu trato do assunto. Vandenberg baixou o som dos televisores, carregou na luz a piscar do telefone multilinhas e pegou no receptor.

- Fala Paul Vandenberg - disse com brusquidão, adicionando intencionalmente uma nota de autoridade ao tom de voz.

- Boa noite, senhor Vandenberg. Peço desculpa por incomodá-lo tão tarde, mas isto vai demorar apenas um ou dois minutos.

- Posso saber do que se trata?

- Do assassinato de uma jornalista do Washington Post, chamada Susanna Dayton.

Tinha conhecimento da sua morte, senhor Vandenberg?

- Claro. Na verdade, falei com ela nessa noite.

- Bem, é por isso que estamos a telefonar. Sabe...

- Foram consultar os registros telefônicos e descobriram que eu fui uma das últimas pessoas com quem ela falou, e agora querem saber o tema da nossa conversa.

- Já tinha ouvido dizer que era um homem esperto, senhor Vandenberg.

- De onde está a telefonar?

- Para dizer a verdade, estou mesmo do outro lado da rua, em Lafayette Park.

- Ótimo, porque não falamos cara a cara?

- Eu conheço-o. Tenho-o visto na televisão ao longo dos anos.

- Parece que a televisão serve para alguma coisa.

Cinco minutos depois, Vandenberg atravessava o Portão Noroeste da Casa Branca, cruzando a alameda pedestre que antigamente fora a Pennsylvania Avenue. O carro aguardava no Acesso Executivo, no interior do recinto. A noite caíra e, com ela, viera uma chuva miudinha e fria. Vandenberg caminhava pelo Lafayette Park num passo rápido de marcha, a gola virada para cima a fim de se proteger do frio, os braços a baloiçar ao lado do corpo. Dois sem-abrigo aproximaram-se e pediram-lhe dinheiro. Vandenberg passou por eles a toda velocidade, sem sequer se aperceber da sua presença. O detetive Richardson levantou-se do banco onde estava sentado e caminhou na direção dele, de mão estendida.

- Ela telefonou para que eu comentasse uma reportagem em que estava trabalhando - adiantou Vandenberg, tomando de imediato a iniciativa. - Era um artigo de investigação complexo e eu recomendei que fosse ao gabinete de imprensa da Casa Branca.

- Lembra-se de algum pormenor da história?

Quer dizer que não havia nenhuma gravação, pensou Vandenberg.

- Nem tanto. Era alguma coisa sobre as atividades de angariação de fundos do Presidente. Não me pareceu muito grave e, sinceramente, num domingo à noite, não queria muito falar naquilo. Por isso, mandei-a procurar quem de direito.

- Telefonou ao secretário de imprensa para informar do telefonema?

- Não, não telefonei.

- Posso saber por quê?

- Porque não achei que fosse necessário.

- Conhece um homem chamado Mitchell Elliott?

- Claro - respondeu Vandenberg. - Antes de entrar para a política, trabalhei para a Alatron Defense Systems e Mitchell Elliott é um dos apoiadores políticos mais chegados do Presidente. Encontramo-nos com muita frequência e falamos com regularidade.

- Sabia que Susanna Dayton também telefonou para Mitchell Elliott nessa noite? Na verdade, isso aconteceu momentos antes de falar com você.

- Sim, sei que ela telefonou para Mitchell Elliott.

- Posso perguntar como sabe disso?

- Porque Elliott e eu falamos posteriormente.

- Lembra-se sobre o que falaram?

- Não realmente. Foi uma conversa muito breve. Discutimos as alegações da Sra. Dayton e ambos chegamos à conclusão de que eram disparates sem fundamento que não mereciam comentário.

- Falou com Elliott mas não com o secretário de imprensa da Casa Branca?

- Sim, exatamente.

Richardson fechou o bloco de notas a fim de sinalizar que a entrevista terminara.

- Faz alguma ideia de quem assassinou a mulher?

Richardson abanou a cabeça. - Neste momento, estamos tratando do caso como um assalto que deu errado. Lamento tê-lo incomodado, senhor Vandenberg, mas tínhamos de confirmar. Espero que compreenda.

- Claro, detetive.

Richardson entregou-lhe seu cartão.

- Caso se lembre de mais alguma coisa, por favor, não hesite em ligar. - Não gosto de receber telefonemas da polícia de Washington para o meu gabinete na Casa Branca, Mitchell.

Os dois homens caminhavam lado a lado no seu ponto de encontro habitual, Hans Point, ao longo do Washington Channel. Mark Calahan deambulava alguns passos atrás, à procura de algum sinal de vigilância.

- A polícia de Washington não me faz sentir lá muito nervoso, Paul - respondeu Elliott calmamente. - Acho que a última vez que prenderam alguém por assassínio foi em 1950.

- Diga-me só uma coisa, Mitchell. Diga-me que não teve absolutamente nada a ver com a morte daquela mulher.

Pararam de andar. Mitchell Elliott virou-se para encarar Vandenberg, mas não disse nada.

- Ponha a mão sobre uma Bíblia imaginária, Mitchell - disse Vandenberg -, e jure por esse seu Deus que o Calahan ou outro dos seus rufiões não mataram Susanna Dayton.

- Sabe que não posso fazer isso, Paul - recusou Elliott calmamente.

- Seu sacana - murmurou Vandenberg. - O que aconteceu?

- Nós a pusemos sob vigilância total, física e áudio - explicou Elliott. - Entramos na casa dela para fazer algumas tarefas domésticas e ela nos surpreendeu.

- Ela surpreendeu vocês! Valha-me Deus, Mitchell! Sabe o que está dizendo?

- Sei exatamente o que estou dizendo. Um dos meus homens cometeu um assassínio infeliz. O chefe de gabinete da Casa Branca é agora cúmplice por encobrimento de assassinato.

- Seu filho da mãe! Como se atreve a fazer isto com o Presidente!

- Fale baixo, Paul. Nunca se sabe quem pode estar na escuta. E eu não fiz nada ao Presidente, porque não há como sermos ligados ao assassinato de Susanna Dayton. Se não perder a cabeça e fizer alguma coisa estúpida, nada vai acontecer.

Vandenberg lançou um olhar furioso a Calahan, que retribuiu, sem pestanejar.

Virou-se e começou a andar. Uma chuva suave flutuava sobre o rio.

- Tenho mais uma pergunta, Mitchell.

- Quer saber quem é que realmente abateu aquele avião.

Vandenberg olhou para Mitchell em silêncio.

- Limite-se a dizer suas deixas e faça seu trabalho, Paul. Não faça muitas perguntas.

- Agora, Mitchell! Diga-me agora!

Elliott virou-se para Calahan.

- Mark, o senhor Vandenberg não está se sentindo nada bem neste momento. Acompanhe-o até o carro. Boa noite, Paul. Falaremos em breve.

O carro com motorista de Vandenberg saiu de Hans Point e seguiu a alameda, contornando Tidal Basin. O Jefferson Memorial brilhava suavemente nas águas, com o reflexo tornado indistinto pela chuva. O carro virou para a Independence Avenue, passou pelo altaneiro Washington Monument e virou para Potomac

Parkway. Vandenberg olhou para o Lincoln Memorial.

Meu Deus, o que foi que eu fiz - pensou.

Precisava de uma bebida. Nunca na sua vida tinha precisado de uma bebida, mas agora sentia mesmo necessidade. Fechou os olhos. A mão direita tremia-lhe, por isso cobriu-a com a esquerda e fitou o rio que fluía sob a ponte.

LONDRES

Na manhã seguinte, Michael levantou-se antes de amanhecer e vestiu-se sem fazer barulho no quarto horrível da casa de segurança. Estava tudo silencioso exceto pelo ronco do trânsito matutino perto de Paddington Station e pela tagarelice dos guarda-costas de Wheaton no quarto ao lado. Bebeu um café instantâneo abjeto por uma caneca lascada, mas ignorou um prato de croissants duros. Regra geral, Michael estava calmo antes de um encontro, mas agora sentia-se nervoso e irritadiço, tal como se sentira quando era um recruta calouro, enviado para o campo pela primeira vez, depois do curso de treino na Quinta. Era raro fumar antes do meio-dia, mas já ia no segundo cigarro. Dormira pouco, agitado na cama de solteiro encovada, perturbado pela zanga com Elizabeth. Em grande parte, o seu casamento sempre fora calmo, livre das discussões e tensão constantes que afligiam tantos casamentos da Agência. Pequenas altercações abalavam-nos profundamente. Uma batalha como a da véspera, com ameaças de vingança, era-lhes estranha.

Vestiu um colete à prova de bala por cima da blusa de gola alta fina e enfiou uma blusa de lã cinzenta. Pegou no telefone e marcou uma última vez o número do apartamento na Quinta Avenida. Continuava ocupado. Pousou o receptor no descanso e saiu. Wheaton estava à espera lá em baixo, na beira, no banco traseiro de um sedan anônimo da Agência. Foram até Charing Cross, Wheaton discursando monotonamente sobre as regras para o encontro com a intensidade de alguém que passara uma carreira em segurança, preso a uma secretária.

- Se não for o Awad, em nenhuma circunstância deve prosseguir com o encontro - avisou Wheaton. - Espere que o barco chegue a Calais e nós tiramo-lo de lá. - Não estou a entrar em território inimigo - disse Michael. Se o Awad não aparecer, apanho o próximo ferry para a Grã-Bretanha.

- Permaneça alerta - continuou Wheaton, ignorando o comentário de Michael. - A última coisa de que precisamos é que vá de encontro a um verdadeiro crente da Espada de Gaza com uma chave de madeira em volta do pescoço. Regra geral, os membros da espada de Gaza., e muitos outros terroristas islâmicos, usavam uma chave de madeira por baixo da roupa durante missões suicidas, pois acreditavam que os seus atos seriam recompensados com o martírio e um lugar no céu.

- Carter não quer que vá desprotegido - indicou Wheaton. Abriu uma pequena mala e retirou de lá de dentro uma potente

pistola automática Browning com um carregador de quinze balas, a arma regulamentar da Agência.

- O que devo fazer com isto? - perguntou Michael. Como muitos agentes de casos, podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que levara uma arma no cumprimento do dever. Raramente um agente de casos disparava para resolver um problema. Sacar de uma arma em legítima defesa era o derradeiro sinal de fracasso. Significava que o agente fora traído por um dos seus, ou que fora completamente descuidado.

- Não vamos mandá-lo para aquele ferry para que seja assassinado ou feito refém - insistiu Wheaton. - Caso se aperceba de que está a cair numa armadilha, riposte. Vai lá estar sozinho.

Michael colocou o carregador na coronha e puxou a culatra, introduzindo a primeira bala. Accionou a trava de segurança e enfiou a arma no cós das calças, por baixo da blusa.

Wheaton deixou Michael na estação. Michael comprou um bilhete de primeira classe para Dover e um molho de jornais matutinos, e depois foi à procura da plataforma. Entrou no comboio com cinco minutos de antecedência e avançou pelo corredor apinhado. Encontrou um lugar num compartimento com dois homens de negócios que já estavam a martelar nos computadores portáteis. No momento em que o comboio saía da estação, uma mulher entrou no compartimento. Tinha cabelo comprido e escuro, olhos escuros e pele pálida. Michael pensou que se parecia vagamente com Sarah.

Durante quase uma hora, o comboio avançou ruidosamente pelos subúrbios do Sudeste de Londres e depois entrou na terra de cultivo ondeada de Kent. No bar, Michael comprou café e umo sanduíche de presunto e queijo. Regressou ao compartimento e sentou-se. Os homens de negócios estavam em mangas de camisa e suspensórios, olhando para um relatório de lucros como se fosse um texto sagrado. A mulher não abriu a boca durante toda a viagem. Fumava um cigarro atrás do outro, até que o compartimento ficou a parecer uma câmara de gás. Os atraentes olhos castanhos acompanhavam o campo verde-acinzentado de Kent. A mão comprida encontrava-se sugestivamente pousada sobre uma coxa escondida por umas meias austeras.

O comboio chegou a Dover e Michael saiu do compartimento. A moça colocou um saco de pele ao ombro e seguiu-o. Era alta, tão alta como Sarah, mas não possuía a sua graciosidade, nem a agilidade física felina. Trazia vestido um casaco de pele preto, que lhe dava pelas coxas, e botas da tropa pretas que ressoavam quando andava.

Michael apressou-se a sair da estação e a dirigir-se ao terminal dos ferrys. Comprou um bilhete e entrou para o barco, um ferry multiuso com centro e trinta metros, capaz de transportar 1300 passageiros e 280 carros. Entrou para a área dos bancos dos passageiros no convés principal e sentou-se junto a uma janela, a bombordo. Olhou em frente e viu Graham Seymour sentado no centro do convés, vestido com calças de ganga e uma blusa cinzenta Venice Beach, e um estojo de guitarra nas mãos. Michael desviou rapidamente o olhar. A moça do comboio entrou, sentou-se diretamente atrás de Michael e começou de imediato a fumar.

Enquanto o ferry sulcava as águas, Michael lia os jornais. Dover desapareceu por trás de uma cortina de chuva. De minutos a minutos, Michael olhava para o parapeito a bombordo, pois era aí, a meio do navio, que Awad iria aparecer. Foi uma vez até o bar, o que lhe permitiu perscrutar o rosto de todos os que se encontravam sentados na área de passageiros. Comprou chá escuro servido num copo de papel muito fino e levou-o para o seu lugar. Não reconheceu ninguém, a não ser Graham e a moça do comboio, que estava absorta numa revista de moda de Paris.

Passou meia hora. A chuva parou, mas agora, bem no meio do Canal, o vento aumentava de intensidade e as ondas encrespadas lançavam-se em direção à ampla proa do ferry. A moça levantou-se, comprou café no bar e depois sentou-se ao lado de Michael. Acendeu outro cigarro e, por instantes, beberricou o café em silêncio.

- Ali está ele, junto ao parapeito, de gabardina cinzenta - indiciou, um vestígio de Beirute no seu inglês. - Aproxime-se dele devagar. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. E não tente armar-se em herói outra vez, senhor Osbourne. Estou bem armada e Ibrahim tem cinco quilos de Semtex atados ao corpo.

Michael achou que o rosto lhe era vagamente familiar, como um amigo de adolescência que se materializa na meia-idade, gordo e a ficar calvo. Vira aquele rosto muitas vezes, mas nunca de perto e, decerto, nunca pessoalmente. Vira o perfil do lado direito, indistinto, num instantâneo tirado pelos fotógrafos do MI5 durante uma das visitas de Awad a Londres. O rosto desfocado capturado pelos serviços franceses durante uma escala em Marselha. A velha fotografia israelense do jovem Awad: atirador de pedras, perito no fabrico de cocktails Molotov, criança guerreira da Intifada que quase espancou até a morte um colono de Brooklyn com um pedaço do seu adorado Hebron. A foto israelense era de valor limitado, pois a Shin Bet apanhara-o primeiro e deixara-o quase irreconhecível com equimoses e inchaços.

Michael e a sua presa ficaram lado a lado no parapeito durante um longo momento, cada um com o olhar fito no seu ponto privado das águas em turbilhão do Canal, como amantes zangados sem nada mais a dizer. Michael virou-se e olhou mais uma vez para Awad. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. Por um instante, interrogou-se se o homem seria mesmo Muhammad Awad. As entediantes advertências de Wheaton ecoavam na mente de Michael como anúncios de embarque num aeroporto.

A Michael, o homem a seu lado parecia o irmão mais velho e mais próspero de Awad. Estava vestido para fazer negócios, com um dispendioso sobretudo cinzento e um terno de bom gosto, com duas fileiras de botões, visível por baixo. As feições tinham sido alteradas por cirurgia plástica. Como resultado, a aparência árabe fora apagada e tinha sido criado algo de origem nacional incerta: um espanhol, um francês ou talvez um grego. O nariz palestino proeminente desaparecera, tendo sido substituído pelo nariz estreito e aquilino de um aristocrata do norte de Itália. As maçãs do rosto tinham sido realçadas, a testa suavizada, o queixo tornado quadrado e os olhos castanhos eram agora de um verde-claro, graças a lentes de contato. Tinham-lhe sido arrancados os dentes molares, a fim de lhe dar as faces felinas de um supermodelo.

A vida de Muhammad Awad assemelhava-se a um panfleto da literatura revolucionária palestina radical. Michael conhecia-a bem, pois compilara a biografia e o currículo de Awad para o Centro, com a ajuda da Mossad, do Shin Bet, do MI6 e de metade dos serviços de segurança da Europa. O avô fora arrancado aos seus olivais e laranjais nos arredores de Jerusalém em 1948 e enviado para o exílio na Jordânia. Segundo a lenda de Awad, no ano seguinte morreu de desgosto, conservando ainda o neto as chaves da sua casa em Israel no bolso. Outro ramo do clã Awad foi massacrado em Deir Yassin. Em 1967, a família foi expulsa novamente, desta vez para campos de refugiados no Líbano. O pai de Awad nunca trabalhou, limitava-se a ficar sentado nos campos, a contar histórias sobre como tinha sido a sua vida em pequeno, cuidando das azeitonas e das laranjas com o pai. O paraíso perdido. Nos anos 80, o jovem Muhammad Awad foi doutrinado no Islão radical do sul do Líbano e em Beirute. Juntou-se ao Hezbollah. Juntou-se ao Hamas. Recebeu treino no Irã e na Síria: armas leves, tácticas de infiltração, contra-espionagem, fabrico de bombas. Quando Arafat apertou a mão de Rabin na Casa Branca, Awad sentiu-se ultrajado. Quando as forças de segurança de Arafat começaram a perseguir o Hamas, a mando de Israel, Awad jurou vingança. Juntamente com cinquenta dos melhores guerrilheiros do Hamas, formou a Espada de Gaza, o grupo terrorista palestino mais mortífero desde o Setembro Negro.

Rajadas de vento assolavam o convés. Awad levou a mão ao interior do casaco. Michael hesitou, mas resistiu à tentação de pegar na Browning.

- Calma, senhor Browning - disse Awad. - Só me apeteceu fumar. Além disso, se quisesse matá-lo, o senhor já estaria morto.

O inglês era perfeito, com um leve sotaque irreconhecível por um ouvido destreinado. Os cigarros que foi buscar ao bolso do peito eram Dunhill sem filtro.

- Sei que fuma Marlboro Lights, mas talvez estes sirvam, sim? A sua esposa fuma Benson and Hedges, não é? Chama-se Elizabeth Cannon-Osbourne e exerce advocacia numa daquelas firmas importantes de Washington. O senhor vive na N Street, em Georgetown. Está a ver, senhor Osbourne, temos os nossos próprios serviços secretos e de segurança. E recebemos muitas ajudas dos nossos amigos em Damasco e em Teerã, claro está.

Michael aceitou o Dunhill e virou-se a favor do vento para o acender. Quando Awad levantou a mão para acender o seu próprio cigarro, Michael viu o detonador na palma da mão direita.

- Já percebi, Ibrahim - disse Michael.

- Sei que foi uma demonstração entediante, mas só a fiz para enfatizar que não desejo qualquer mal nem a si, nem à sua família. O senhor não é meu inimigo e não tenho tempo nem recursos para lutar contra si. - Então para que os explosivos presos à cintura?

- Num negócio como este, é preciso tomar precauções.

- Nunca me pareceu do tipo suicida.

Awad sorriu e soprou o fumo pelas narinas esculpidas.

- Sempre acreditei que era mais útil a Alá vivo do que morto. Além disso, não temos falta de voluntários para missões de martírio. Creio que passou algum tempo no Líbano quando era criança. Sabe as condições em que vive o nosso povo. A opressão pode gerar loucura, senhor Osbourne. Há miúdos que preferem morrer a passar uma vida inteira acorrentados.

Michael olhou para o lado esquerdo e viu a mulher do comboio encostada ao parapeito, a seis metros de distância, a fumar, os olhos vagueando pelo ferry.

- Pensei que acreditassem que o lugar de uma mulher era em casa, oculta por um chador - comentou Michael, olhando para a moça.

- É uma pena, mas por vezes este negócio exige os serviços de uma mulher talentosa. Para os objetivos desta conversa, ela chama-se Odette. É palestina e muito boa a manejar a arma. Os velhos serviços de segurança da Alemanha Ocidental davam ordens para abater primeiro as mulheres. No caso de Odette, esse seria, de fato, um excelente conselho.

- Agora já nos apresentamos todos - disse Michael -, que tal irmos diretos ao assunto? Porque quis conversar?

- O ataque de ontem em Heathrow foi obra da Espada de Gaza. Organizamos o ataque para vingar os vossos ataques aéreos ridículos contra os nossos amigos na Líbia, na Síria e no Irã. Ontem o senhor foi o herói, senhor Osbourne. A sua presença foi coincidência, garanto-lhe. Sinceramente, quem me dera que os tivesse morto aos dois. Os homens detidos deixam-me sempre um pouco nervoso. - Na verdade, o interrogatório está a correr muito bem - afiançou Michael, incapaz de resistir à oportunidade de brincar com Awad.

- Ouvi dizer que estava a fornecer uma tremenda quantidade de informação sobre a vossa estrutura organizacional e tácticas.

- Boa tentativa - afirmou Awad. - A nossa organização é altamente compartimentada, por isso os estragos que ele pode fazer são mínimos.

- Continue a acreditar nisso, Ibrahim. Vai ajudá-lo a dormir à noite. Quer dizer que pediu para falar comigo para reivindicar a responsabilidade pelo ataque terrorista em Heathrow?

- Preferimos utilizar o termo ação militar.

- Não há nada de militar em matar civis desarmados. Isso é terrorismo, puro e simples.

- O terrorista de um homem é um lutador pela liberdade de outro, mas não vamos entrar agora nessa discussão tola. Não há tempo. Os vossos ataques aéreos às nossas bases foram ridículos, pois não existia qualquer justificação para eles. A Espada de Gaza não disparou o míssil que fez cair o Voo Zero-Zero-Dois. Michael desconfiava que assim fosse, mas não ia demonstrá-lo em frente de Muhammad Awad.

O corpo de Hassan Mahmoud, um dos seus melhores agentes operacionais, foi encontrado no barco do qual o míssil foi disparado - declarou Michael, a voz baixa mas trêmula de emoção. O tubo de lançamento estava ao lado do corpo. Foi recebida em Bruxelas uma reivindicação válida.

O rosto de Awad contraiu-se. Deu uma longa baforada no Dunhill e jogou a guimba na água. Michael desviou o olhar de Awad e viu um iate a motor seguindo o ferry, atrás de um véu de névoa.

- Hassan Mahmoud deixou de ser membro da Espada de Gaza há quase um ano. Era um maldito de um psicopata que não aceitava a disciplina de uma organização como a nossa. Descobrimos que conspirava em segredo para assassinar Arafat, por isso o expulsamos. Teve sorte em não ter sido morto. Pensando em retrospectiva, devíamos tê-lo feito.

Awad acendeu outro cigarro.

- Mahmoud mudou-se para o Cairo e juntou-se aos fundamentalistas egípcios, al-Gama'at Ismalyya. - Awad levou novamente a mão ao bolso e, desta vez, fez aparecer um envelope. Abriu-o, retirou do seu interior três fotografias e entregou-as a Michael. - Foram-me dadas por um amigo dentro dos serviços de segurança egípcios. Esse homem é Hassam Mahmoud. Se pesquisar esta fotografia nos seus arquivos, descobrirá que este homem é Eric Stoltenberg. Creio que reconhece o nome.

Michael reconhecia-o, de fato. Eric Stoltenberg trabalhara para o Ministério da Segurança Interna da Alemanha de Leste, melhor conhecido como o Stasi. Trabalhava para o Departamento XXII, que conduzia operações de apoio levadas a cabo pelo Stasi a movimentos de libertação nacional por todo o mundo. O seu portfólio incluía terroristas conhecidos, como Abu Nidal, Carlos, o Chacal, e grupos como o IRA e a ETA espanhola. Michael examinou as fotografias: dois homens sentados a uma mesa de tampo cromado, no Groppi's Café, um de cabelo e pele escuros, o outro louro e de pele clara, ambos com óculos-de-sol.

Michael estendeu as fotografias a Awad.

- Fique com elas - disse Awad. - São uma oferta minha.

- Elas não provam nada.

- Como provavelmente será do seu conhecimento, Eric Stoltenberg teve de arranjar trabalho noutro lado - continuou Awad, ignorando o comentário de Michael. - Depois da queda do Muro, os alemães queriam a sua cabeça porque ele ajudou os líbios a bombardear o clube noturno LaBelle, em Berlim Ocidental, em 1986. Desde aí que Stoltenberg tem vivido no estrangeiro, utilizando os antigos contatos da Stasi para fazer dinheiro seja de que maneira for: segurança, contrabando, esse tipo de coisas. Há pouco tempo, ganhou uma bela quantia e não escondeu isso lá muito bem.

O iate aproximara-se mais do ferry. Michael olhou para Awad.

- Mahmoud realizou o ataque e Stoltenberg deu uma ajuda com a logística: o Stinger, os barcos, a rota de fuga. - Michael brandiu as fotografias. - Isto é tudo mentira, pois tem medo que voltemos a atacar.

Awad sorriu com um charme considerável.

- Boa tentativa, senhor Osbourne, mas o senhor conhece a Espada de Gaza melhor do que isso. Sabe que não tínhamos qualquer motivo para fazer explodir um avião americano e sabe que outra pessoa o fez. No entanto, não tem provas. Se eu estivesse no seu lugar, procuraria mais perto de casa.

- Está a dizer que sabe quem é o culpado?

- Não, estou apenas a dizer que deve fazer a si mesmo algumas perguntas simples. Quem ganharia mais com isso? Quem teria motivos para fazer uma coisa daquelas e manter a sua identidade secreta? Os homens que o fizeram têm muito dinheiro, e recursos enormes ao seu dispor. Juro-lhe que não fomos nós. Se os Estados Unidos não retaliarem por causa de Heathrow, isto acaba aqui. Mas se voltarem a atingir-nos, não teremos outra alternativa a não ser ripostar. É essa a natureza do jogo.

O iate encontrava-se agora a cinquenta metros a bombordo do ferry. Michael viu dois homens no alto da ponte volante e um terceiro perto da proa. Olhou para a esquerda, na direção da mulher, e viu-a de olhos muito abertos, retirando uma pequena arma automática da mala. Deu meia volta e olhou para lá de Awad, para o parapeito a bombordo, e viu um homem muito bem constituído de cócoras, de arma em punho, a cabeça coberta por uma balaclava.

Michael agarrou Awad pelos ombros e gritou: - Abaixe-se!

Duas balas atravessaram o peito de Awad e cravaram-se no colete à prova de balas de Michael. Awad caiu sobre o convés. Michael meteu a mão no casaco para pegar a Browning, mas a moça palestina adiantou-se, arma apontada nos braços estendidos, as pernas afastadas. Disparou duas vezes com rapidez, derrubando o atirador encapuzado.

Awad jazia no convés e lançou um olhar irado a Michael, a boca cheia de sangue. Ergueu a mão direita, mostrando a Michael o detonador. Michael lançou-se pela porta para o interior da área de passageiros. Graham Seymour estava lá, de arma na mão. Michael agarrou-o pela camisa e puxou-o para o chão no momento em que a bomba explodia e estilhaços de vidro voaram por cima das suas cabeças. Durante alguns segundos, reinou um silêncio quase absoluto. Depois os feridos começaram a gemer e a gritar.

Michael levantou-se com dificuldade, os sapatos a escorregar sobre os estilhaços de vidro, e correu para o convés. A força da explosão desfizera Awad. Odette, a mulher palestina, jazia no convés, sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. O atirador encapuzado devia estar a usar um colete à prova de bala, pois conseguiu saltar por cima do parapeito e o iate avançava na sua direção. Encontrava-se um homem na ponte volante e dois no convés, à popa. Michael ergueu a Browning e abriu fogo sobre a embarcação. Os dois homens na popa pegaram em armas automáticas e responderam ao fogo. Michael lançou-se para o chão, em busca de abrigo.

Odette levantara-se e estava sentada, com as costas apoiadas no parapeito. Empunhava uma arma na mão esticada, apontada a Michael, o rosto muito calmo.

Michael rolou sobre o corpo quando ela disparou o primeiro tiro. A bala atingiu o convés, falhando-o. Ela disparou mais duas vezes enquanto Michael rastejava desesperadamente em busca de proteção. De repente, o corpo dela tremeu com violência e caiu para a frente. Graham Seymour saiu para o convés, de arma na mão, e ajoelhou-se ao lado dela. Olhou para Michael e abanou a cabeça.

Michael levantou-se e correu para o parapeito. O iate baloiçava nas águas agitadas. Os dois homens à popa estavam a retirar o atirador do mar. Michael ergueu a arma, mas era um tiro impossível. O avanço do ferry fazia com que estivesse já a cerca de cem metros do iate. Depois de o atirador estar a bordo, em segurança, o iate deu meia volta e desapareceu por detrás de uma cortina de nevoeiro.


NOVA YORK

 

 

O programa de fertilização in vitro no Cornell Medical Center possuía uma natureza de linha de montagem que fazia lembrar a Elizabeth os tribunais criminais de qualquer grande cidade. Sentou-se no banco de madeira lascado no corredor à porta da sala de operações, rodeada por outras doentes, enquanto os técnicos cirandavam por ali em silêncio, com batas e máscaras. Só Elizabeth estava sozinha. As outras quatro mulheres tinham os maridos a apertar-lhes as mãos e olhavam para Elizabeth como se ela fosse uma solteirona que decidira ter uma criança com o esperma que pedira emprestado ao marido da melhor amiga. Apoiou de propósito o queixo na mão esquerda para mostrar a aliança de casamento e um anel de noivado com um diamante de dois quilates. Imaginou o que as outras mulheres estariam a pensar. Será que o marido estava atrasado? Será que se divorciara há pouco tempo? Seria ele demasiado ocupado para estar com ela numa altura daquelas?

Elizabeth sentiu os olhos começarem a ficar marejados. Estava a utilizar cada pedacinho de autocontrole que tinha para não chorar. As portas duplas da sala de operações abriram-se. De lá saiu uma marquesa empurrada por dois técnicos, sobre a qual jazia uma mulher sedada. Outra foi levada lá para dentro, vinda do vestiário que existia ali perto, para tomar o seu lugar em cima da mesa. O marido foi enviado para uma sala pequena e escura com copos de plástico e revistas Playboy.

Na parede estava pendurada uma pequena televisão, silenciosamente sintonizada, sem som, na CNN. O ecrã mostrava uma reportagem ao vivo sobre um ferry soltando fumaçao no Canal da Mancha.

Não, pensou Elizabeth, não é possível. Levantou-se, foi até a televisão e aumentou o som.

- ... Sete pessoas mortas... Parece ser obra do grupo terrorista islâmico conhecido como a Espada de Gaza... Segundo ataque em dois dias... Acredita-se terem sido os responsáveis pelo terrível atentado terrorista de ontem no Aeroporto de Heathrow, em Londres...

Meu Deus, pensou, isto não pode estar acontecendo!

Voltou a sentar-se no banco e revirou a mala à procura do celular e da agenda telefônica. Michael dera-lhe um número especial a ser usado apenas em emergências extremas. Folheou as páginas desenfreadamente, sentindo os olhares das outras doentes, e encontrou o número.

Marcou-o, carregando com violência nas teclas, enquanto caminhava para um local mais reservado junto às escadas. Após um toque, uma calma voz masculina disse:

- Alô?

- Meu nome é Elizabeth Osbourne. Meu marido é Michael Osbourne.

Ouviu o som das teclas de um computador.

- Como conseguiu este número? - perguntou a voz.

- Michael me deu.

- Em que posso ajudar?

- Quero falar com meu marido.

- O seu número de telefone, por favor.

Elizabeth deu o número do celular e voltou a ouvir o som do teclado novamente.

- Alguém vai lhe telefonar.

Um dos técnicos apareceu nas escadas.

- A Sra. é a próxima, Sra. Osbourne. Precisamos que entre agora.

- Quero saber se ele estava naquele ferry-boat no Canal - disse Elizabeth ao homem com quem falava ao telefone:

- Alguém lhe telefonará - voltou a dizer a voz, exasperante com a falta de emoção. Era como falar com uma máquina.

- Que diabo, responda! Ele estava naquele barco?

- Alguém vai telefonar - repetiu.

- Lamento, Sra. Osbourne - insistiu o técnico -, mas agora precisa mesmo entrar.

- Está dizendo que ele está no barco?

- Por favor, desligue e mantenha este número desocupado.

Em seguida, a linha ficou muda.

Uma enfermeira acompanhou Elizabeth a um pequeno vestiário e deu-lhe uma bata esterilizada. Elizabeth agarrava com força no celular. - Receio que tenha de deixar isso aqui - avisou a enfermeira.

- Não posso - respondeu Elizabeth. - Estou à espera de um telefonema muito importante.

A enfermeira olhou para ela com uma expressão incrédula.

- Já vi muitas mulheres do Tipo-A neste programa, Sra. Osbourne, mas não há dúvida de que a Sra. bate todas as outras aos pontos. Vai sofrer uma intervenção cirúrgica ali dentro. Não é altura para fazer telefonemas de trabalho.

- Não é um telefonema de trabalho. É uma emergência.

- Não interessa. Daqui a três minutos, vai estar a dormir como um bebê.

Elizabeth vestiu a bata. Toca, raios partam. Toca!

Subiu para a marquesa e a enfermeira empurrou-a até a sala de cirurgia. A equipe operatória estava à espera. O seu médico baixou a máscara e ofereceu-lhe um sorriso agradável.

- Parece-me um pouco nervosa, Elizabeth. Está tudo bem?

- Estou ótima, doutor Melman. - Ainda bem. Então vamos começar.

Acenou com a cabeça para o anestesista e, segundos mais tarde, Elizabeth sentia-se a flutuar para um sono agradável.

CALAIS, FRANÇA

O porto fervilhava de luzes de emergência azuis e vermelhas à medida que o ferry se aproximava da costa francesa. Michael estava de pé na ponte, rodeado pelo capitão e pelos oficiais, a fumar um cigarro atrás do outro, enquanto via a linha da costa avizinhar-se. Ora sentia um frio de morrer, ora um calor de abrasar. O peito doía-lhe muito, como se alguém muito forte lhe tivesse dado um par de murros. Graham Seymour estava do outro lado da ponte, rodeado pelo seu próprio grupo de elementos da tripulação. Estavam mais ou menos detidos. Michael dissera ao capitão que ele e Graham eram agentes dos Estados Unidos e da Inglaterra e que alguém de Londres estaria à espera do ferry em Calais, onde tudo lhes seria explicado. O capitão ficou desconfiado, tal como Michael ficaria no seu lugar.

Michael fechou os olhos e o filme desenrolou-se mais uma vez. Assistiu a tudo como se fossem imagens de um noticiário, ele próprio como um ator em palco. Viu o atirador aproximar-se e Odette à procura da arma, os olhos alucinados.

O homem de balaclava com a arma não pertencia à Espada de Gaza e Muhammad Awad não era o alvo. O alvo era Michael. Awad limitara-se a estar no caminho. Voltou a fechar os olhos e pensou nos dois homens dentro do iate. Lentamente, os rostos foram-se tornando mais nítidos, como se estivesse a focá-los com a lente de longo alcance de uma câmara de vigilância. Viu os homens dispararem contra si a partir do convés de ré. Tinha a sensação incômoda de já os ter visto de relance noutro lado qualquer: num restaurante, numa festa ou na farmácia em

Oxford Street. Ou teria sido numa estação de gasolina na M40 em Oxfordshire, a fingir estar a encher o pneu traseiro de um monovolume Ford branco? O ferry atracou em Calais. Michael e Seymour foram guiados para longe das equipes de televisão e dos jornalistas aos gritos até um gabinete no interior do terminal. Wheaton e uma dúzia de oficiais diplomáticos e da Agência aguardavam-nos. Tinham vindo de Londres de helicóptero, cortesia da Marinha Real.

- Quem é este? - perguntou Wheaton, olhando para Graham, que se esquecera do estojo da guitarra mas assemelhava-se, ainda assim, a um estudante maduro, com as suas calças de ganga e a blusa Venice Beach.

Seymour sorriu e estendeu a mão.

- Graham Seymour, SIS.

- Graham quem, o quê? - perguntou Wheaton, incrédulo.

- Ouviu-o bem - confirmou Michael. - É um amigo meu. Por coincidência, encontrava-se a bordo do ferry.

- Mentiras!

- Bem, valeu a pena tentar, Michael - disse Graham.

- Comece a falar, vamos!

- Vá bardamerda - exclamou Michael, despindo a blusa e revelando duas balas cravadas no colete. - Porque não voltamos para Londres e fazemos lá o relatório?

- sugeriu, já mais calmo.

- Porque os franceses querem falar com você primeiro.

- Oh, meu Deus - suspirou Graham. - Eu não posso falar com os malditos dos franciús.

- Bem, uma vez que acaba de chegar à jurisdição deles, creio que vai ter de o fazer.

- O que é que lhes vamos dizer? - perguntou Michael.

- A verdade - respondeu Wheaton. - E rezar para que tenham o bom senso de ficarem de bico calado.

Em Nova York, Elizabeth estava deitada, a dormir na sala de recobro, quando o celular tocou suavemente. Uma enfermeira deu um passo em frente e estava prestes a desligá-lo quando Elizabeth acordou e disse:

- Não, espere. .-} Colocou o celular de encontro ao ouvido, de olhos fechados, e atendeu.

- Estou?

- Elizabeth - disse a voz. - É a Elizabeth Osbourne? - Sim - crocitou" ela, a voz rouca devido à anestesia.

- Daqui fala Adrian Carter. - Adrian, onde é que ele está?

- Ele está bem.'Está a regressar a Londres neste momento.

- A regressar a Londres? Onde é que esteve?

Na linha fez-se silêncio. Elizabeth estava agora completamente desperta. - Raios partam, Adrian - exclamou -, ele estava naquele ferry? Carter hesitou e depois respondeu.

- Sim, Elizabeth. Ele estava numa missão e alguma coisa correu mal. Ficaremos a saber mais pormenores quando ele chegar à embaixada de Londres. - Está ferido?

Ele está ótimo.

- Graças a Deus.

- Telefono-te quando souber mais.

Ao anoitecer, o helicóptero pousou num heliporto da Thameside em West Londres. Dois carros da embaixada aguardavam-nos. Wheaton e Michael entraram no primeiro, os autômatos de Wheaton seguiram no segundo. Viraram para Vauxhall Bridge e passaram pelo feio edifício moderno que funcionava como sede do MI6. Lá se foi a toca disfarçada de George Smiley em Cambridge Circus, pensou Michael. Agora, a sede dos Serviços chegara mesmo a aparecer num filme do James Bond.

Daqui a alguns minutos, o seu amigo Graham Seymour vai ter uma recepção agreste naquele edifício - informou Wheaton. - Falei com o Diretor-Geral de Calais. Nem é preciso dizer que ele não ficou satisfeito. Também me deu uma notícia que terá de esperar até estarmos atrás de portas fechadas. Michael ignorou o comentário. Wheaton parecia sempre retirar demasiado prazer da infelicidade profissional dos colegas. Subira através do direktorado soviético, quando o pai de Michael era um alto comando em Langley, e trabalhara em Istambul e Roma. A sua tarefa era recrutar oficiais do KGB e diplomatas soviéticos, mas revelou-se de tal forma incapaz que depressa recebeu uma série de relatórios sobre a sua inaptidão deplorável, um deles redigido pelo pai de Michael. Wheaton foi transferido para a sede, onde prosperou na atmosfera falsa e oligárquica de Langley. Michael sabia que Wheaton lhe guardava rancor por causa do pai, ainda que o péssimo relatório de aptidão provavelmente lhe tivesse acabado por salvar a carreira. Chegaram a Grosvenor Square. Wheaton e Michael entraram na embaixada lado a lado, com os homens de Wheaton no seu encalço. Michael tinha a estranha sensação de estar preso. Wheaton dirigiu-se de imediato à sala segura de teleconferências. Assim que Wheaton e Michael se sentaram nas sumptuosas cadeiras de pele preta, Carter e Monica Tyler apareceram no ecrã.

- Fico contente por ver que está bem, Michael - disse Monica.

- Passou uns dias bastante desgastantes. Temos muito que falar, por isso vamos começar pela pergunta óbvia. O que correu mal?

Durante dez minutos, Michael relatou cuidadosamente o que acontecera a bordo do ferry: Awad, a moça palestina chamada Odette, o iate e o atirador. Descreveu o tiroteio, as balas a atravessarem o corpo de Awad, cravando-se no seu colete. Descreveu a explosão e a forma como os homens no barco cobriram a fuga do atirador, com disparos. Por fim, descreveu a última batalha com Odette e como Graham Seymour a matara a tiro.

- Para começar, o que estava Graham Seymour, um agente do MI-Seis, a fazer naquele barco?

Michael sabia que, naquela altura do campeonato, pouco ou nada poderia ganhar ao mentir.

- É meu amigo. Conheço-o há muito tempo. Quis alguém de confiança a proteger-me a retaguarda.

Isso não interessa - contrapôs Monica, com uma paciência experiente. Monica, regra geral, não gostava de operações de campo, nem dos agentes que as realizavam. - O Michael incluiu um agente dos serviços de outro país sem a autorização dos seus superiores na sede.

- Ele trabalha para os ingleses, não para os iranianos. E se ele não estivesse lá, neste momento eu estaria morto.

Monica franziu o cenho de irritação, o que tornou claro que não iria deixar-se levar por argumentos baseados na emoção.

- Se estava tão preocupado com a sua segurança - disse ela, num tom de voz inexpressivo -, devia ter-nos pedido reforços a nós.

- Não quis ir para lá seguido de um pelotão, que Awad e a sua equipe pudessem detectar a quilômetros de distância. - Essa era apenas parte da verdade. - Queria o menor número possível de pessoas de Londres e da sede envolvidas na operação. Trabalhara no terreno, trabalhara na sede e sabia que Langley vertia como uma peneira.

- Parece que Awad e a respectiva equipe identificaram o seu bom amigo Graham Seymour - declarou Monica com um tom de desdém.

- Porque diz isso? - quis saber Michael. Wheaton remexeu-se desconfortavelmente na cadeira e Carter, a seis mil e quatrocentos quilômetros de distância, em Langley, fez a mesma coisa. Monica Tyler não aceitava bem perguntas do pessoal, mesmo quando se tratava de agentes superiores, como Michael. Tinha a certeza da convicção que resulta da ingenuidade. - Por que outra razão um dos seus atiradores tentaria matá-lo? E por que outra razão Awad faria explodir uma bomba presa ao corpo?

- Está a partir do princípio de que o atirador pertencia à Espada de Gaza. Penso que essa suposição está errada. O atirador não fez qualquer tentativa de poupar a vida de Awad. Ele tentou matar-me eliminando Awad primeiro. A mulher esteve atrás de mim o tempo todo. Se quisessem matar-me, ela poderia tê-lo feito e eu nem sequer teria tempo de agir. E quando o tiroteio começou, ela foi atrás do atirador primeiro, não de mim.

- Mas acabou por ir atrás de si.

- Sim, mas só depois de Awad detonar os explosivos. Acho que ela pensou que o atirador era dos nossos.

- Viu o rosto dele?

- Não, tinha a cabeça coberta por uma balaclava.

Monica inclinou-se e segredou ao ouvido de Carter. Este levantou as mãos e passou-as pela cabeça e pelo rosto. Michael percebeu que estava a explicar a Monica o que era uma balaclava. Monica ficou em silêncio por alguns instantes, observando as mãos, e depois continuou.

- O que lhe disse Awad antes de os problemas começarem? Michael narrou a conversa, não omitindo qualquer pormenor.

Fora treinado para memorizar grandes quantidades de informação e, quando trabalhava no campo, possuía uma capacidade lendária para reproduzir transcrições quase textuais de encontros com agentes. Carter costumava chamar-lhe "o Dictafone humano". Michael contou-lhes tudo o que Awad dissera, sobre Heathrow, sobre os ataques aéreos, sobre a expulsão de Hassan Mahmoud do grupo, com uma omissão notória. Não lhes falou nas fotografias do encontro de Mahmoud com Eric Stoltenberg, no Cairo.

- Acha que ele estava a dizer a verdade? - perguntou Monica.

- Sim, acho que sim - respondeu Michael, sem qualquer hesitação. - Sempre fui céptico no que diz respeito à reivindicação da Espada de Gaza. Não fiz segredo disso. Mas se não foi a Espada de Gaza, quem foi? E por que fariam uma reivindicação falsa?

E quem diabo tentou matar Muhammad Awad e a mim, a bordo daquele ferry?

Carter e Monica conferenciaram baixinho por um instante. Wheaton lançou a

Michael um olhar professoral por cima dos óculos de leitura em forma de meia-lua, como se Michael acabasse de dar a resposta errada a uma pergunta crucial num exame oral.

- Há outra coisa sobre a qual temos de conversar com você, Michael - disse Monica. Em seguida, acrescentou muito séria: - É de natureza muito grave. - Algo no tom de voz enervou Michael de imediato.

- Esta manhã, um agente do SIS britânico fez uma visita a um desertor chamado Ivan Drozdov. Parece que Drozdov faltou à apresentação semanal, algo que nunca faz, e o SIS ficou preocupado. O agente arrombou a casa dele e encontrou-o morto. A tiro. O SIS e a polícia local deram logo início às investigações. Ontem, Drozdov foi visto num café local com um homem que condiz com a sua descrição. O SIS gostaria de saber se esteve com ele ontem. E, para dizer a verdade, nós também.

- Sabe que a resposta é sim, porque me colocou sob vigilância desde que deixei Londres até regressar a Heathrow.

- Se estava sob vigilância, não foi ordenada por mim, nem por ninguém na sede - ripostou Monica.

- Não foi a Estação de Londres - garantiu Wheaton.

- Por que raios se foi encontrar com Drozdov sem a nossa autorização, ou a autorização do SIS? - inquiriu Monica. - E já agora, sobre o que falaram?

- Era um assunto pessoal - respondeu Michael. No monitor, via Adrian Carter olhar para o céu, soprando através dos lábios franzidos. - Drozdov trabalhou para o Departamento Cinco do Primeiro Direktorado do KGB, os assassinos. Tenho trabalhado em algo há vários meses e quis discutir o assunto com ele. Garanto-lhe que estava vivo e bem de saúde quando saí de lá.

- Fico satisfeita por achar que isso é divertido, Michael, porque nós não pensamos que assim seja - retorquiu Monica. - Quero-o no primeiro voo de regresso a Washington amanhã de manhã. Considere-se de licença administrativa enquanto aguarda uma investigação de sua conduta nesta questão.

A tela ficou vazia. Sem dizer uma palavra, Wheaton estendeu a mão. Michael enfiou a mão por baixo da camisa e entregou-lhe a Browning carregada. Wheaton quisera que Michael permanecesse na casa de segurança durante a sua última noite em Londres, mas Michael dissera-lhe em termos bastante claros para se ir lixar e regressara ao pequeno hotel em Knightsbridge, com vista para o parque. No início do serão, ao sair para o passeio molhado pela chuva, avistou de imediato dois sentinelas de Wheaton dormitando num Rover estacionado. Ao fazer compras para Elizabeth na Harrods, localizou mais dois.

Ao caminhar para o sul, em Sloane Street, divisou um quinto espião a pé.

Também havia dois homens num Ford, desta vez azul-escuro.

Quem são vocês? Quem os contratou? Se não foi Wheaton, quem foi? Não foi difícil despistá-los, ainda que fossem profissionais. Michael estava em vantagem, pois treinara com eles na Quinta e conhecia as suas tácticas.

Durante uma hora, deambulou pelo West End sob a chuva leve, a pé, de ônibus, de táxi, de metro, através de Berkeley Square, Oxford Street, Bond Street, Leicester Square e dos subúrbios do Soho. Acabou no apartamento de Sarah. O take-away libanês transformara-se em vegetariano, um monumento a Sarah, talvez. Bob Marley vibrava através de uma janela semiaberta, com cortinados sujos. A janela de Sarah. Provavelmente, os cortinados de Sarah.

Sarah Randolph cometeu um erro terrível, dissera-lhe Drozdov. Apaixonou-se pela vítima.

Ela fora uma mentira, um mito criado pelos seus inimigos, tragicamente heróica na sua ingenuidade sem limites. Ela traíra-o, mas não era real. Não podia amá-la, nem odiá-la. Só sentia pena dela.

Os sentinelas de Wheaton há muito que tinham desaparecido, por isso apanhou um táxi para Belgravia. Os homens de campo, tal como os ladrões, desenvolvem formas clandestinas de penetrar na sua própria casa para o dia inevitável em que sejam visitados por uma vida inteira de traição. Michael conhecia o método de Graham Seymour: através de uma cavalariça e por cima do muro caiado do jardim, com a ajuda de uma escada de corda deixada para essas ocasiões. Michael usava agora a escada para trepar o muro e caiu pela escuridão, indo aterrar na varanda de pedra de Graham. Este respondeu à pequena pancada nas portas de correr armado com uma das facas de cozinha de Helen, fabricadas na Suíça. Falaram no primeiro andar, na sala de visitas, o casaco ensopado de Michael a fumegar junto à lareira a gás, a aparelhagem alemã de Graham a troar Rachmaninoff para abafar a conversa.

Conversaram durante quase uma hora. Falaram sobre o que acontecera no ferry. Falaram sobre Sarah. Sobre Colin Yardley e Astrid Vogel, e o homem na escuridão que disparou três balas contra o rosto de Yardley. Sobre os homens no iate e no Ford: o monovolume branco e agora o azul. Michael precisava de dinheiro. Helen era rica e Graham tinha sempre guardado no cofre um ou dois milhares para emergências. Passaportes não eram problema.

Ao longo dos anos, Michael utilizara os seus contatos nos serviços aliados para reunir uma coleção de documentos de viagem falsos. Podia viajar como francês ou espanhol, grego ou alemão. Até como israelense. Telefona a Elizabeth, pediu Michael. Diz-lhe que lhe explico tudo quando voltar. Cuidado com o que dizes ao telefone. Não lhe digas para onde vou, nem o que ando a fazer. Diz-lhe que a amo. Diz-lhe que tenha cuidado. Comeram penne puttanesca e salada, e beberam vinho tinto. Helen e Graham conversaram como se Michael não estivesse ali. Michael sentia-se como se assistisse a um drama horrível na televisão. Devorou dois pratos de massa, que estava surpreendentemente boa.

Depois do jantar, Graham anunciou de repente que queria ver um filme novo que estava no cinema de Leicester Square. Helen concordou de forma entusiástica. Arrumaram a loiça e saíram. Na sala de visitas às escuras, Michael viu-os entrar para o BMW de Graham e arrancarem. Ouviu um motor de carro a ser ligado algures na escuridão. Michael observou-o enquanto deslizava para a rua silenciosa, com os faróis apagados.

Saiu pelas portas de correr, atravessou o jardim, trepou o muro e desceu pelo outro lado, pela escada de corda. Apanhou um táxi em King's Road e foi para a Waterloo Station. Comprou um bilhete para Roma com o dinheiro do cofre de Graham. O comboio partia dali a uma hora. Wheaton, se fosse inteligente, estaria a vigiar os aeroportos e as estações de comboio.

Michael comprou um chapéu impermeável num quiosque e puxou-o para a testa. Saiu e esperou à chuva. Cinco minutos antes da hora de o comboio partir, voltou a entrar na estação e dirigiu-se rapidamente à plataforma. Subiu para o comboio e depressa encontrou um compartimento vazio. Ficou sentado sozinho na semiobscuridade durante muito tempo, a escutar o barulho rítmico do comboio, a olhar para o seu reflexo no vidro, a pensar em tudo. Depois, quando o comboio saiu do túnel do Canal e avançou a toda a velocidade para sul, atravessando a França em direção a Paris, mergulhou num sono leve e sem sonhos.

LONDRES

O Diretor via as notícias das dez na ITN à medida que o Jaguar metalizado com motorista avançava a ronronar através das ruas do West End. Jantara mal no seu clube Mayfair (borrego demasiado passado), onde os restantes membros acreditavam que era um capitalista internacional aventureiro e bem sucedido, o que, até certo ponto, era uma descrição exata do seu trabalho. Meia dúzia desconfiava que, outrora, fizera um ou dois biscates para os Serviços Secretos. Um ou dois sabiam a verdade: que, na verdade, fora o diretor-geral, o lendário C, dos Serviços Secretos. Graças a Deus que lá trabalhara nos velhos tempos, quando a Agência oficialmente não existia e os diretores tinham o bom senso de manter os nomes e as fotografias afastados dos jornais. Imaginem só, o chefe dos Serviços a conceder uma entrevista ao The Guardian: uma heresia, uma loucura. O Diretor acreditava que os espiões e os serviços secretos se assemelhavam muito a ratazanas e a baratas. É melhor fingir que não existem. Ajuda uma sociedade livre a dormir melhor à noite.

O ataque ao ferry que fazia a travessia Dover-Calais dominava as notícias. O Diretor estava furioso, embora o rosto tranquilo não revelasse nada a não ser insolência enfadada. Após uma vida inteira nas sombras, a sua dissimulação era uma arte. Era estreito de cabeça e de ancas, com cabelo cor de arenito a ficar grisalho e mãos brancas de cirurgião que pareciam estar sempre a segurar um cigarro aceso de um comprimento adequado para um anúncio numa revista cara. Os olhos tinham a cor da água do mar no Inverno, a boca era pequena e cruel.

Vivia sozinho 250 em St. John's Wood com um rapaz da Sociedade que o protegia e uma moça bonita que tratava da papelada e cuidava dele. Nunca casara, não tinha filhos, nem familiares conhecidos. Os engraçadinhos nos Serviços costumavam dizer que tinha sido encontrado no início da meia-idade, dentro de um cesto, nas margens do Tamisa, vestido com um terno de riscas brancas, gravata Guarás e sapatos feitos à mão.

Desligou a televisão e olhou pela janela, observando a noite londrina passar. Não havia nada que detestasse mais do que o fracasso, nem mesmo a traição. Esta exigia inteligência e inexorabilidade, o fracasso apenas estupidez ou falta de concentração. Tinham sido dados todos os recursos necessários aos homens que enviara naquela missão no ferry para garantir o sucesso e, contudo, eles tinham falhado. Michael Osbourne era obviamente um adversário digno de respeito, um homem de talento, inteligência e engenho. Osbourne era bom, o seu assassino teria de ser melhor.

O carro parou à porta da casa. O motorista, um antigo membro de elite dos

Comandos Especiais Aerotransportados, acompanhou o Diretor até a porta, esperando que este entrasse. A moça estava à espera, uma jamaicana escultural cor de café chamada Daphne. Trazia vestida uma blusa branca, desabotoada até a elevação dos seios fartos, e uma saia preta que lhe dava pelo meio das coxas nuas. O cabelo castanho-alourado caía-lhe sobre os ombros quadrados.

- O senhor Elliott está ao telefone do Colorado, senhor - informou ela. Havia uma nota do ritmo melodioso da índia Oriental na sua voz, tendo o Diretor gasto milhares de libras em terapia da fala para o eliminar. Eram permitidos nomes dentro da residência Mayfair, pois era revistada regularmente em busca de escutas, e as paredes eram impermeáveis a microfones direcionais exteriores.

O Diretor foi para o escritório e carregou na luz intermitente do seu telefone preto multilinhas. Daphne entrou, despejou um centímetro de scotch de trinta anos para dentro de um copo e entregou-lho. Permaneceu no escritório enquanto a conversa decorria, pois não existiam segredos entre eles.

- O que é que correu mal? - perguntou Elliott.

O senhor Awad trouxe proteção, tal como o senhor Osbourne. E, ainda por cima, ele é mesmo bom.

- Tem de ser eliminado, sobretudo depois do que ficou a saber esta manhã, naquele ferry.

- Sei muito bem disso, senhor Elliott.

- Quando tenciona realizar outro ataque?

- O mais depressa possível - respondeu o Diretor, interrompendo-se para um gole de scotch. - Mas quero fazer uma substituição. O Osbourne é bastante bom. Assim sendo, o adversário tem de ser excelente. Gostaria de atribuir a tarefa ao Outubro.

- O preço dele é muito elevado.

- Tal como o que está em jogo neste ponto dos acontecimentos, senhor Elliott. Não me parece que seja altura para arengar sobre um ou dois milhões a mais, não acha?

- Não, tem razão.

- Vou preparar um dossiê detalhado sobre Osbourne e enviá-lo ao Outubro, por correio eletrônico codificado. Se ele optar por aceitar o alvo, o jogo vai recomeçar, e prevejo que o senhor Osbourne seja eliminado em breve.

- Espero que sim - afirmou Elliott.

- Conte com isso, senhor Elliott. Boa noite.

O Diretor pousou o receptor. Daphne colocou-se atrás dele e esfregou-lhe os ombros.

- Vai precisar de mais alguma coisa esta noite, senhor?

- Não, Daphne, vou apenas tratar de alguma papelada e depois vou deitar-me. - Muito bem, senhor - disse ela e saiu.

O Diretor trabalhou no escritório durante vinte minutos, terminando o scotch e vendo as notícias americanas sobre a explosão no ferry através do sistema de satélite. Desligou a televisão e subiu as escadas, dirigindo-se à suíte. Daphne encontrava-se deitada de costas na cama, blusa desabotoada, uma perna comprida cruzada sobre a outra, enrolando uma madeixa de cabelo no indicador fino.

O Diretor despiu-se silenciosamente e vestiu um roupão de seda. Alguns homens abastados divertiam-se com cavalos, ou carros. O Diretor tinha a sua Daphne. Ela despira-se. As roupas estavam a seu lado, na cama. Acariciava gentilmente os mamilos, a barriga, o alto das coxas. Daphne era uma provocadora, até consigo mesma. O Diretor entrou para a cama e fez deslizar um dedo pelo pescoço da jovem.

- Alguma coisa, meu amor? - perguntou ela.

- Não, minha flor.

A capacidade do Diretor para fazer amor com uma mulher encontrava-se gravemente comprometida, consequência, pensava ele, de uma vida inteira de mentiras e traição. Ela fez deslizar a mão por baixo do roupão, tomando-o entre as suas mãos compridas.

- Nada?

- Receio que não, meu amor.

- Que pena - disse ela. - Posso?

- Se quiser.

- O senhor é um tonto. Quer ajudar ou só ver?

- Só ver - respondeu ele, acendendo um cigarro.

Meteu a mão entre as coxas. Arquejou com força, lançou a cabeça para trás e fechou os olhos. Durante os dez minutos seguintes, tomou-a da única forma possível, com os olhos, mas, passado algum tempo, a sua mente começou a vaguear. Pensou em Michael Osbourne. No assassínio fracassado no ferry. No homem chamado Outubro. Seria uma luta interessante. Um deles não iria sobreviver. Se fosse Osbourne a morrer, a Sociedade subsistiria e Mitchell Elliott ganharia os seus bilhões. Se fosse Outubro... O Diretor estremeceu com esse pensamento. Trabalhara muito e durante demasiado tempo para que tudo ruísse. Estava demasiado em jogo, investira-se demasiado, para que agora terminasse em fracasso.

Voltou a fitar Daphne e encontrou os seus olhos castanhos fixos nele. Tinha o olhar direto e aberto de uma criança.

- Esteve longe durante alguns minutos - comentou.

A surpresa atravessou-lhe o rosto. Daphne despojava-o de todas as suas velhas defesas.

- Eu também olho, sabe. Quero saber se estou a fazê-lo feliz.

- Fazes-me muito feliz.

- Está tudo bem, amor? ?

- Está tudo ótimo.

- Tem certeza?

- Sim, certeza absoluta.


CONTINUA

WASHINGTON, D. C.

Susanna Dayton passou a tarde de domingo trabalhando do meio-dia às oito, sem interrupção, salvo para abrir a porta no meio da tarde para uma entrega. Tom Logan, o editor do Post, exigira mais, e ela o encontrara. O artigo era inatacável. Possuía documentos imobiliários e bancários reais que corroboravam as acusações mais graves. Tinha fontes humanas duplas e triplas que corroboravam as restantes. Nenhum dos mencionados no artigo poderia pôr em causa o que era dito. Os fatos falavam por si, e Susanna estava na posse dos fatos.

O dia foi gasto em escrever. Trabalhou em casa, pois não queria distrações. O artigo estava repleto de informações: números, nomes, datas, locais, pessoas. O desafio de Susanna era transformá-lo numa história interessante. Começou com uma breve descrição da personagem central, James Beckwith, um jovem procurador, um talento promissor sem fortuna pessoal, que poderia auferir no setor privado um rendimento bastante superior ao da política. Surge então Mitchell Elliott, um empresário da defesa e benfeitor republicano extremamente abastado. Continue na política, sugeriu Elliott ao jovem Beckwith, e deixe tudo comigo. Ao longo dos anos, Elliott enriqueceu os Beckwith com uma série de transações imobiliárias e financeiras. E o homem que concebeu muitos dos esquemas foi o principal advogado de Elliott, e lobista de Washington, Samuel Braxton.

O resto derivava dessa premissa. Pelas oito horas, Susanna escrevera um artigo de quatro mil palavras. Iria mostrá-lo a tom Logan na manhã seguinte. Devido à natureza bastante séria das acusações, Logan teria de o submeter ao crivo do editor geral e do editor chefe do jornal. Depois os advogados iriam analisar uma cópia. Sabia que os dias seguintes seriam longos e difíceis.

Ao artigo faltava um derradeiro elemento: comentários da Casa Branca, de Mitchell Elliott e de Samuel Braxton. Susanna procurou no Rolodex, encontrou o primeiro número de telefone e marcou-o.

- Alatron Defense Systems. - Era uma voz masculina, átona e vagamente militar. - Fala Susanna Dayton, do Washington Post. Gostaria de falar com Mitchell Elliott, por favor.

- Sinto muito, Sra.. Dayton, mas de momento o senhor Elliott não se encontra disponível.

- Importa-se de lhe transmitir um recado?

- com certeza.

- Tem uma caneta à mão? - E claro, Sra. Dayton.

- Gostaria que o senhor Elliott comentasse a seguinte informação contida num artigo que estou a preparar. - Falou durante cinco minutos, sem nunca ser interrompida pelo homem do outro lado da linha. Imaginou que o telefonema estivesse a ser gravado sem o seu consentimento. - Percebeu tudo?

- Sim, Sra. Dayton.

- E vai transmiti-lo ao senhor Elliott?

- É claro.

- Ótimo. Muito obrigada.

Susanna desligou e voltou a procurar no Kolodex. Ainda tinha o número pessoal de Paul Vandenberg, do tempo em que trabalhara na Casa Branca. Marcou o número.

Vandenberg atendeu pessoalmente.

- Senhor Vandenberg, fala Susanna Dayton. Sou jornalista do...

- Sei quem a Sra. é, Sra. Dayton. Não gosto de ser incomodado em casa. O que posso fazer por si?

Será que gostaria de comentar a seguinte informação que está incluída num artigo que redigi para o Post? - Mais uma vez, Susanna falou durante cinco minutos sem interrupção.

- Porque não me envia por fax uma cópia do artigo, para que eu possa analisar com mais cuidado as acusações? - sugeriu Vandenberg, quando Susanna terminou. - Receio não poder fazê-lo, senhor Vandenberg.

- Nesse caso, receio não ter mais nada a dizer-lhe, Sra. Dayton, exceto que produziu um artigo jornalístico desprezível, que não merece ser agraciado com um comentário.

Susanna anotou a citação no bloco de notas.

- Boa noite, Sra. Dayton.

A linha ficou em silêncio. Susanna procurou no Rolodex e encontrou o telefone de casa de Samuel Braxton. Estendia a mão para o telefone quando este tocou.

- Fala Sam Braxton.

- As notícias correm depressa.

- Pelo que sei, está prestes a publicar um artigo que calunia e difama Mitchell Elliott e minha pessoa. Quero que tenha noção das consequências de suas ações.

- Por que não me deixa ler as alegações antes de me ameaçar com um processo?

- Já me resumiram as acusações, Sra. Dayton. Pretende publicar esse relato no jornal de amanhã?

- Ainda não decidimos.

- Vou assumir essa resposta como um não.

Susanna cobriu o bocal e murmurou:

- Raios o partam, Sam Braxton, seu sacana arrogante.

- Por que não nos encontramos pela manhã e discutimos as alegações?

Susanna hesitou. Se discutisse assuntos legais com Braxton sem um advogado do Post a seu lado, Tom Logan acabaria com ela. Ainda assim, queria obter declarações de Braxton.

- É um favor que faz a si mesma, Sra. Dayton. Que mal há?

- Onde?

- Café da manhã no Four Seasons, Georgetown. Às oito.

- Lá nos encontraremos.

- Boa noite, Sra. Dayton.

Susanna tinha mais um telefonema a dar, para Elizabeth Osbourne. Estava prestes a publicar um artigo devastador sobre o homem mais poderoso da firma da amiga. Elizabeth merecia ser avisada. Teclou o número.

- Alô?

- Alô, Elizabeth? Escute, acho que precisamos falar.

 

Quando lhe telefonaram de Colorado Springs, Mark Calahan estava sentado na biblioteca da casa de Kalorama, a rodar os botões de um sofisticado equipamento de áudio. Salvo Susanna Dayton, Calahan sabia mais sobre as alegações presentes no artigo do que qualquer outra pessoa. Colocara sob escuta o telefone de Susanna na redação do Post, na 1th Street, o mesmo no telefone de casa. Instalara microfones na sala de estar e no quarto. Ouvia-a comer. Ouvia-a dormir. Ouvia-a falar com o cachorro. Ouviu-a na cama com um repórter televisivo, depois de um jantar no restaurante 1789, em Georgetown. Entrava na casa com regularidade e passava em revista os arquivos do computador. Um antigo criptoanalista da NSA, também a serviço de Mitchell Elliott, quebrara o código pueril de Susanna, o que permitira que Calahan lesse os arquivos à vontade. Só lhe faltava uma coisa: o produto final. - Entre na casa dela o mais depressa que puder. Temos que saber ao certo o que temos - ordenou Elliott.

- Sim, senhor.

- E quero que seja você a tratar disso. Não quero fracasso.

Calahan desligou o telefone e voltou a concentrar-se no equipamento. Aumentou os níveis de áudio dos transmissores no interior da casa de Susanna Dayton. Algo lhe chamou a atenção. Vestiu um blusão de couro preto e correu para a noite.

Dirigiu rapidamente através do noroeste de Washington, de Kalorama para Georgetown, e estacionou atrás da van de vigilância, em Volta Place. Bateu à porta traseira e o técnico deixou-o entrar. Dois minutos mais tarde, avistou Susanna Dayton a sair de Pomander Walk, vestida com um anoraque e calças de lycra, o cão a seu lado.

Calahan esperou até que ela desaparecesse de vista. Saiu da van, atravessou Volta Place e entrou em Pomander Walk. Possuía uma cópia da chave da porta. Segundos depois, tinha entrado.

Susanna atravessou a Wisconsin Avenue e correu para leste, ao longo da P Street. Era tarde e estava escuro, e combinara correr com Elizabeth pela manhã, mas estivera fechada dentro de casa o dia todo e precisava de fazer alguma coisa para aliviar o stresse. Doía-lhe o pescoço de olhar para a telado computador. Os olhos ardiam-lhe. Mas, depois de pouco mais de um quilômetro, sentiu a transpiração por baixo da gola alta. Foi dominada pela magia da corrida e a tensão do dia deixou-lhe lentamente o corpo.

Esforçou-se ainda mais, voando sobre o passeio de tijolo da P Street, passando à frente das grandes casas iluminadas. As patas de Carson ressoavam ritmadamente a seu lado. Passou por uma loja de conveniência, depois por um pequeno café. Jack e a nova esposa estavam sentados em bancos altos junto à montra, a falar bem próximos um do outro. Quando passou à frente deles, Susanna fitou-os como uma idiota. Jack levantou a cabeça e cruzaram o olhar. Depois a esposa viu-a.

Humilhada, Susanna desviou o olhar e correu mais depressa. Estúpida! Grande estúpida! Por que não olhaste para o outro lado? E que raio estavam eles a fazer em Georgetown? Fora por isso que Jack se mudara para Bethesda, para não andarem sempre a esbarrar um no outro. Deus do céu, porque não se limitara ela a olhar para o outro lado? Porque se deixara fitá-los como uma adolescente com uma paixoneta? E porque lhe batia o coração descompassado? A resposta era simples. Ainda amava Jack e nunca deixaria de o amar.

As lágrimas toldaram-lhe a visão. Correu ainda mais depressa. Carson esforçou-se por acompanhá-la. Os pés ressoavam furiosamente nos tijolos. Oh, meu Deus, por que estava ele ali sentado? Porra para ti, Jack. Porra! Não viu a raiz da árvore que se erguera um pouco do passeio. Não se apercebeu do pedaço de tijolo partido que se levantara. Sentiu uma pontada de dor no tornozelo e viu o chão saltar para ela nas trevas.

Susanna ficou inerte no chão, os olhos fechados, a arquejar. Sentia-se como se tivesse levado um coice na barriga. Tentou abrir os olhos, mas não conseguiu.

Por fim, sentiu alguém sacudir-lhe o ombro, chamando-a pelo nome. Abriu os olhos e viu Jack ajoelhado a seu lado.

- Susanna, você está bem? Consegue me ouvir?

Voltou a fechar os olhos.

- Que diabo está fazendo em Georgetown? - perguntou.

- Sharon e eu tivemos um jantar. Minha nossa Sra., não sabia que tinha de te avisar com antecedência.

- Não, fiquei sobressaltada, só isso.

- Lembra da Sharon, não?

Estava de pé, atrás de Jack, um espanto de vestido formal e casaco curto pretos, que exibiam um par de pernas fenomenal. Era criminosamente magra. O casaco estava desabotoado, revelando um par de seios grandes e redondos. Fazia o tipo de Jack: loura, olhos azuis, grandes seios, cabeça oca.

- Gostaria de poder dizer que é um prazer vê-la, Sharon, mas estaria mentindo - declarou.

- Vamos para seu lado. Damos carona a você?

- Não, obrigada. Preferia ficar morrendo na rua.

Jack segurou-lhe a mão. Carson soltou um rosnado profundo. :

- Não faz mal, Carson. Ele é mau, mas inofensivo.

Susanna levantou-se.

- Vem ali um táxi. Jack, faz alguma coisa de útil e chama. Jack dirigiu-se à estrada e acenou ao táxi, que parou junto ao passeio. Susanna coxeou até o carro e entrou, seguida pelo cão.

- Até à vista, Jack, Sharon.

Fechou a porta e o táxi arrancou. Recostou-se no banco traseiro, agarrada ao tornozelo, a cabeça apoiada no couro frio do assento. Chorou baixinho. Carson lambeu-lhe a mão. Porque teve ele de me ver assim, meu Deus? Logo agora, porquê? O táxi parou entre Volta Place e Pomander Walk. Susanna procurou no bolso da frente do anoraque e tirou uma nota de cinco dólares, que entregou ao taxista.

- Precisa de ajuda? - indagou o homem.

- Não, eu fico bem, obrigada.

Quando Mark Calahan subiu as escadas e entrou no quarto do primeiro andar que Susanna utilizava como gabinete, o computador estava ainda ligado. Sentou-se, retirou umo disquete do bolso do casaco e inseriu-a na drive do computador. Já conhecia bem o sistema, as diretorias onde ela guardava os apontamentos e as cópias. Encontrou o atalho para o artigo e clicou no ícone. O software de encriptação solicitou a palavra-chave. Calahan introduziu-a e o artigo surgiu na tela.

Calahan não se deu ao trabalho de ler. Leria mais tarde, quando dispusesse de mais tempo. Voltou a fechar o arquivo e digitou o comando para o copiar para o disquete. Mais uma vez, o software pediu a chave, que Calahan voltou a fornecer.

Uma vez dentro da casa, decidiu aproveitar a oportunidade para recolher mais informações. Calahan seguira várias das corridas de Susanna, que nunca duravam menos de trinta minutos. Tinha tempo de sobra. Três blocos de notas estavam ao lado do teclado. Abriu a capa do primeiro. As folhas estavam cheias com os gatafunhos esquerdinos de Susanna. Tirou uma microcâmara do bolso, acendeu a luz do abajur na mesa e começou a fotografar.

Estava na metade do segundo bloco quando ouviu a chave ser introduzida na fechadura da porta da rua. Praguejou em silêncio, apagou a luz e puxou da cintura uma pistola 9mm com silenciador.

As dores no tornozelo direito de Susanna eram lancinantes. Fechou a porta e sentou-se no divã da sala. Descalçou o sapato e a peúga e observou o ferimento. O tornozelo estava inchado e roxo. Coxeou até a cozinha, encheu um saco de plástico com gelo e tirou uma garrafa de cerveja do frigorífico. O analgésico estava no armário dos medicamentos da casa de banho. Coxeou escadas acima e ao longo do corredor, apoiada ao corrimão para se equilibrar. Entrou na casa de banho, pousou a cerveja no lavatório e abriu o armário. Encontrou o analgésico e engoliu dois comprimidos com cerveja. Fechou a porta do armário.

No espelho viu o reflexo de um homem atrás de si.

Susanna abriu a boca para gritar, mas uma mão enluvada tapou-lhe a boca, abafando qualquer som.

- Cala-te, cabra, se não mato-te - disse o homem por entre os dentes cerrados. Susanna debateu-se ainda mais. Apoiou o peso no tornozelo ferido, levantou o pé esquerdo e puxou-o atrás contra a canela do indivíduo, tal como aprendera nas aulas de autodefesa urbana. O homem gemeu de dor e afrouxou o aperto. Susanna girou para a direita e atacou com esse cotovelo, acertando na face do atacante.

O homem largou-a e Susanna fugiu.

Cambaleou até o corredor, e depois até o gabinete de trabalho. Ao levar a mão ao telefone, apercebeu-se de que o indivíduo estivera a mexer no computador e nos blocos de notas. Levantou o receptor.

O homem apareceu na entrada e apontou-lhe uma arma.

- Larga a merda do telefone.

- Quem é você?

- Larga o telefone e não te faço mal.

Carson subiu as escadas a correr, a ladrar furiosamente. Agachou-se no corredor, com os dentes arreganhados ao intruso. O homem ergueu calmamente a arma e disparou duas vezes contra o cão. Carson ganiu uma vez e ficou em silêncio.

- Cabrão! Cabrão de merda! Quem é você? Foi Elliott que o enviou? Diga, porra! Foi Mitchell Elliott que o enviou?

- Larga o telefone. Já!

Susanna baixou o olhar e marcou o nove e o um.

O primeiro tiro acertou-lhe na cabeça antes de conseguir marcar o último dígito. Caiu para trás, ainda agarrada ao receptor, ainda consciente. Olhou para cima. O homem agigantava-se sobre ela, a arma mais uma vez apontada para a cabeça.

- Na cara não - implorou. - Pelo amor de Deus, não me dê um tiro na cara. A expressão de fúria do homem suavizou-se por um instante. Baixou a arma alguns graus e o cano apontou ao peito. Susanna fechou os olhos. A arma emitiu dois sons breves. Susanna sentiu apenas um momento de dor lancinante e depois viu um clarão de luz brilhante. Em seguida, apenas escuridão.

Calahan baixou-se, retirou-lhe o receptor da mão e voltou a colocá-lo no descanso. A morte fora rápida, mas não completamente silenciosa. Tinha de agir depressa. A polícia iria dar a volta à casa. Se descobrissem vestígios de que a mulher estava a ser vigiada, talvez associassem a morte a Elliott. A limpeza demorou menos de cinco minutos. Ao sair da casa, Calahan empunhava os blocos de notas, os dois microfones do quarto, o microfone do telefone, a bolsa de Susanna e o computador portátil.

Saiu de Pomander Walk, atravessou Volta Place e entrou na van de vigilância. Mais tarde iria buscar o carro. Enquanto se afastava a alta velocidade, marcou o número privado de Mitchell Elliott no celular. - Receio que nos tenha surgido um pequeno problema, senhor Elliott. Daqui a cinco minutos ligo-lhe, a partir de uma linha segura.

Calahan desligou e atirou o telefone contra o para-brisa.

- Raios partam, porque chegou ela mais cedo? Cabra de merda!


BRÉLÉS, FRANÇA

Delaroche decidiu que precisava de uma mulher.

Chegou a essa conclusão depois de ver o conteúdo do disco uma segunda vez, agora no computador da casa de Brélés. Dois dos três alvos que restavam eram conhecidos mulherengos. Delaroche conhecia os seus hábitos, onde comiam e bebiam, sabia qual a zona onde caçavam. Mesmo assim, seria difícil aproximar-se desses alvos.

Uma mulher tornaria as coisas mais fáceis.

Delaroche precisava de uma mulher.

Tinha mais um dia para gastar em Brélés. Quando terminou com os arquivos, foi andar de bicicleta. O tempo estava bom: limpo, para Novembro, com vento fraco vindo do mar. Sabia que passaria bastante tempo sem bicicleta, por isso fez por se levar ao limite. Pedalou para o interior ao longo de alguns quilômetros, até as colinas arborizadas da Finistère, regressando então à beira-mar. Fez uma pausa nas ruínas em Pointe de Saint-Mathieu e depois dirigiu-se a norte, ao longo da costa, de volta a Brélés.

Dedicou o início da tarde à preparação. Limpou e oleou as suas duas melhores armas, uma Beretta de 9 mm e a Glock, e confirmou várias vezes os mecanismos de disparo e os silenciadores. Tinha uma terceira arma que mantinha presa ao tornozelo, num coldre de velcro, uma pequena Browning automática concebida para ser guardada numa bolsa de mulher. No caso de uma pistola não ser adequada, levaria uma faca, um punhal sólido com lâmina dupla de quinze centímetros e sistema automático.

De seguida reuniu os passaportes falsos, francês, italiano, holandês, espanhol, sueco, egípcio e americano, e organizou as finanças. Tinha os duzentos mil francos da galeria de Paris, e em Zurique levantaria o meio milhão de dólares. Seria mais do que suficiente para financiar a missão. Saiu ainda de dia e dirigiu-se à aldeia. Comprou pão na boulangerie e salsicha, queijo e patê a Mademoiselle Plauché. Didier e os amigos bebiam vinho no café. Acenou a Delaroche para que se lhes juntasse. Num gesto fora do comum, o convite foi aceite. Pediu mais vinho e comeu pão com azeitonas até o pôr do sol. Nessa noite, tomou uma refeição simples no terraço de pedra com vista para o mar. Concordara em matar outros três homens em quatro semanas. Apenas um louco aceitaria tal coisa. Teria sorte se sobrevivesse à missão. Mesmo que vivesse, talvez não pudesse regressar a Brélés.

Delaroche sempre matara sem paixão mas, pela primeira vez em muito tempo, não se recordava quando, sentia uma excitação que lhe percorria o corpo. Era semelhante à sensação que tivera com dezesseis anos, na noite em que matara pela primeira vez.

Levantou os pratos e lavou-os na cozinha. Depois passou a hora seguinte a vasculhar a casa e a queimar tudo o que poderia sugerir a sua existência. Delaroche apanhou o comboio da manhã de Brest para Paris, e o comboio do meio-dia de Paris para Zurique. Chegou uma hora depois de o banco ter fechado. Deixou o pequeno saco na estação e cambiou alguns francos franceses num bureau de change.

Percorreu uma rua cintilante, ladeada por lojas iluminadas e exclusivas. Numa loja da Gucci, utilizou dinheiro vivo para comprar uma pequena mala preta para documentos. Disse ao empregado de balcão que não precisava de saco e, momentos depois, estava de volta ao passeio, com a mala dependurada do braço direito. Quando chegou à entrada austera do banco, nevava ligeiramente. A única indicação da natureza do estabelecimento era a pequena placa dourada ao lado da porta. Delaroche pressionou o botão da campainha e aguardou enquanto o segurança o inspecionava através da lente da câmara de vídeo instalada por cima da porta.

A tranca da porta abriu e pôde entrar numa pequena antecâmara de segurança. Pegou num telefone preto e anunciou que tinha um encontro com Herr Becker. Este chegou momentos depois, imaculadamente vestido, um palmo mais baixo do que Delaroche, e com uma cabeça calva que brilhava na luz fluorescente.

Delaroche seguiu-o ao longo de um corredor silencioso e debilmente iluminado, forrado com carpete bege. Becker levou-o para outra sala de segurança e trancou a porta por onde entraram. Delaroche sentia-se claustrofóbico. Becker abriu um pequeno cofre de onde retirou o dinheiro. Delaroche fumou enquanto Becker contou as notas.

A transação demorou menos de dez minutos a ser concluída. Delaroche assinou o recibo pelo dinheiro e Becker ajudou-o a guardá-lo na pasta.

Na sala de entrada, Becker olhou para a rua.

- Todo o cuidado é pouco, Monsieur Delaroche - disse. - Andam ladrões por aí. - Obrigado, Herr Becker, julgo poder tomar conta de mim próprio. Tenha uma boa noite.

- Igualmente, Monsieur Delaroche.

Delaroche não quis andar muito com o dinheiro, por isso apanhou um táxi até a estação. Levantou o saco do cacifo e comprou um bilhete de primeira classe num comboio noturno para Amsterdam.

Delaroche chegou à Centraalstation de Amsterdam bem cedo na manhã seguinte. Atravessou rapidamente o hall apinhado, os olhos orlados de vermelho pela noite mal dormida, e saiu para o sol brilhante. A visão das bicicletas surpreendeu-o: milhares delas, filas e filas de bicicletas.

Delaroche apanhou um táxi até o Hotel Ambassade, no Central Canal Ring, e registrou-se como Senor Arminana, um empresário espanhol. Passou uma hora ao telefone, mudando de língua para o caso de a telefonista do hotel estar a ouvir a conversa, e utilizando o léxico codificado do submundo do crime. Dormiu um pouco e, ao fim da manhã, estava sentado à janela de um restaurante cheio de fumo, a pouca distância do hotel.

Lá estava a livraria, do outro lado de uma praça movimentada. O estabelecimento granjeara a reputação bem merecida de snobismo, pois especializara-se em literatura e em filosofia, e recusava-se a vender ficção ou thrillers comerciais. O empregado do hotel comentou que certa vez o gerente expulsara à força de braços uma mulher que se atrevera a perguntar pelo novo livro de um famoso escritor americano de romances.

Era o lugar perfeito para Astrid. Avistou-a por duas vezes a arrumar livros na montra, a dar sugestões a um cliente que estava obviamente mais interessado nela do que em qualquer livro que pudesse estar a ser recomendado.

Astrid tinha esse efeito sobre os homens, sempre assim fora.

Era por isso que Delaroche viajara até Amsterdam.

Nascera Astrid Meyer, na vila de Kassel, perto da fronteira da Alemanha Oriental. Quando o pai abandonou a família, em 1967, a mãe voltara a utilizar o seu nome de solteira, que era Lizbet Vogel.

Após o divórcio, Lizbet instalou-se numa casa à beira de um lago, nas montanhas suíças, nos arredores de Berna. Perto do final da guerra, em Julho de 1944, a família fugiu da Alemanha e procurou refúgio numa aldeia próxima. Foi aí, sozinha nas montanhas com a mãe, que teve início o fascínio de Astrid Meyer pelo avô, Kurt Vogel.

Fumador inveterado durante toda a vida, Vogel morreu de cancro dos pulmões em 1949, dez anos antes de Astrid nascer. No fim da vida, Gertrude, a esposa, tentara afastá-lo das montanhas, mas Vogel acreditava que o ar alpino seria a sua salvação. Morreu em casa, sem conseguir respirar.

Trude Vogel pouco sabia acerca do trabalho do marido durante a guerra, mas o que sabia contou a Lizbet e esta transmitiu-o a Astrid. Abandonara uma carreira legal promissora em 1935 para se juntar à Abwehr, os serviços secretos alemães. Fora bastante próximo do chefe da Abwehr, Wilhelm Canaris, executado por traição pelos Nazis, em Abril de 1945. Enganara Trude durante anos, dizendo-lhe que era o conselheiro legal de Canaris. Mais tarde, admitiria a verdade, que recrutara agentes que eram enviados para Inglaterra, para espiar os britânicos.

Lizbet recordava-se da noite.

O pai mudara a família para a Bavária, pois Berlim já não era segura. Lembrava-se do pai a chegar a casa, muito tarde, recordava-se da sua presença no quarto, enquadrado pela luz tênue que entrava pela porta. Mais tarde, recordava-se do som da mãe e do pai a falarem em voz baixa na cozinha, e do cheiro do jantar do pai. E depois ouviu o barulho de louça a partir-se, o som da mãe a arquejar. Ela e Nicole, a irmã gémea, rastejaram até o alto das escadas e olharam para o rés-do-chão. Lá em baixo, na cozinha, viram os pais e dois homens com as fardas pretas da SS. Não reconheceram um dos homens. O outro era Heinrich Himmler, o homem mais poderoso da Alemanha, logo a seguir a Adolf Hitler.

Durante anos, Lizbet Vogel acreditara que o pai fora um nazi, aliado de Himmler e das SS, um criminoso de guerra que escolhera morrer nas montanhas da Suíça, em vez de enfrentar a justiça na sua pátria. Concluiu que a mãe, em segredo, acreditava no mesmo. Quando a mãe morreu, Lizbet contou a história a Astrid, que cresceu a acreditar que o avô fora um nazi.

Então, durante uma tarde de Outubro de 1970, um homem telefonou para a casa e perguntou se poderia fazer uma visita. Chamava-se Werner Ulbricht, e trabalhara com Kurt Vogel na Abwehr, durante a guerra. Disse saber a verdade acerca do trabalho de Vogel. Lizbet pediu-lhe que lá fosse. Chegou uma hora depois. Era magro, pálido como farinha, apoiava-se numa bengala e usava uma pala negra sobre um olho.

Caminharam durante algum tempo, Werner Ulbricht, Lizbet e Astrid, e depois sentaram-se na margem relvada do lago e beberam café de um termo. Apesar do frio outonal no ar, o rosto de Ulbricht estava coberto de suor devido ao esforço. Descansou um pouco enquanto bebia café, e depois contou-lhes a história.

Kurt Vogel não era nazi. Odiava-os profundamente. Entrou para a Abwehr com a condição de não ser obrigado a aderir ao Partido, e Canaris teve todo o prazer em fazer-lhe a vontade. Não era conselheiro legal de Canaris. Era um angariador de agentes, e muito bom: meticuloso, brilhante, implacável, à sua maneira. Um dos seus agentes na Grã-Bretanha fora uma mulher. Juntos, tinham descoberto o mais importante segredo da guerra: a data e o local da invasão. Também descobriram que os britânicos estavam embrenhados numa fraude maciça para ocultar a verdade. Mas, em Fevereiro de 1944, Hitler despediu Canaris e colocou a Abwehr sob as ordens de Himmler e das SS. Vogel guardou a informação e juntou-se aos conspiradores anti-Hitler da Schware Kapelle, a Orquestra Negra. Quando o golpe de de julho terminou em desastre, muitos dos elementos da Schware Kapelle foram presos e executados. Vogel fugiu para a Suíça.

Quando Ulbricht concluiu a narrativa, os olhos de Lizbet estavam marejados de lágrimas. Fitou o lago e observou o vento a agitar a superfície. - Quem era o outro homem que foi com Himmler a casa da minha mãe? - perguntou. - Era Walter Schellenberg, um oficial de alta patente das SS. Assumiu a Abwehr quando Canaris foi despedido. O seu pai enganou-o quanto à invasão. -- E a mulher que era agente dele...? - indagou Lizbet, com a voz fraquejando. - Estava apaixonado por ela? A mãe sempre pensou que ele estava apaixonado por outra mulher.

- Foi há muito tempo.

- Diga-me a verdade, Herr Ulbricht.

- Sim, ele a amava muito.

- Como se chamava?

- Anna Katerina von Steiner. O pai obrigou-a a tornar-se agente. Nunca regressou da Inglaterra.

A obsessão de Astrid pelo avô teve início nessa tarde. O seu avô, aliado de Wilhelm Canaris, um bravo resistente da Schware Kapelle que tentou livrar a Alemanha de Hitler! No sótão, encontrou uma arca com os pertences que a mãe guardara: velhos livros de direito e algumas fotografias antigas, cheias de rachas com a idade, peças de roupa. Observou-as horas a fio. Quando teve idade para isso, chegou a imitar a aparência do avô: o cabelo espetado que parecia ter sido cortado por ele, os óculos com lentes de cristal de rocha, os severos ternos de agente funerário. Tentou visualizar a agente chamada Anna Katerina von Steiner, a mulher que ele amara. Astrid não encontrou vestígios dela nos documentos do avô, por isso compôs um retrato mental: bela, corajosa, implacável, violenta.

Com dezoito anos, Astrid regressou à Alemanha para frequentar a universidade em Munique e envolveu-se de imediato com a política de esquerda. Acreditava que os Nazis ainda governavam a Alemanha. Acreditava que os Americanos eram ocupadores. Acreditava que os industriais escravizavam os trabalhadores. Imaginava o que o avô, o grande Kurt Vogel, teria feito. Iria juntar-se à resistência, é claro.

Em 1979, abandonou os estudos na universidade e aderiu à Fação do Exército Vermelho. Os líderes disseram-lhe que teria de abdicar do nome verdadeiro e assumir um nom de guerre. Escolheu Anna Steiner e desapareceu no mundo do terrorismo.

Morava numa casa-barco no Prinsengracht. Às três da tarde saiu da livraria, pegou na bicicleta e cruzou a praça. Delaroche pediu a conta.

Caminhou durante algum tempo, a empurrar a bicicleta, sem pressas. Delaroche seguiu-a calmamente. Pouco mudara desde a última vez que a vira, anos antes. Era alta e um pouco desajeitada, com pernas bonitas mas pouco graciosas e mãos compridas que pareciam buscar eternamente um repouso confortável. O rosto pertencia a outra época: tez pálida luminosa, maçãs do rosto largas, um nariz grande, olhos da cor da água dos lagos das montanhas. O cabelo sempre mudara de acordo com o estado de espírito e com a política adoptada, mas agora, no início da meia-idade, regressara ao estado natural: comprido, louro, preso com uma simples mola preta.

Delaroche seguiu-a para norte, ao longo do Keizersgracht. Astrid cruzou o canal em Reestraat, ao que voltou a dirigir-se a norte ao longo do Prinsengracht. Entrou na sombra da Westerkerk, onde se situa o túmulo anônimo de Rembrandt. Delaroche estugou o passo e reduziu a distância que os separava. Ao ouvir os passos, Astrid virou-se rapidamente, a mão na bolsa e alarme no rosto.

Delaroche segurou-lhe o braço com gentileza.

- Sou eu, Astrid. Não tenha medo.

O Krista tinha treze metros de comprimento, com uma casa de leme na popa, uma proa elegante e uma pintura verde e branca nova.

Estava atracado ao lado de uma barca quadrada e, para subir a bordo, Astrid e Delaroche tiveram de atravessar o convés de ré do vizinho. O interior estava limpo e era surpreendentemente espaçoso, com uma cozinha, um salão e um quarto na proa. A luz débil do final da tarde entrava por um par de claraboias e por uma fileira de vigias ao longo do talabardão.

Delaroche instalou-se no salão, observando Astrid a fazer café na cozinha. Falavam holandês, pois fazia-se passar por uma divorciada de Roterdão e não queria que os vizinhos a ouvissem a falar em alemão. Tal como todos os habitantes da cidade, era obcecada com a bicicleta. Já lhe tinham roubado quatro desde que chegara a Amsterdam. Contou a Delaroche sobre o dia em que passeava ao longo do Singel e passou por um homem que vendia bicicletas usadas. Entre elas, Astrid viu uma das suas bicicletas desaparecidas. Disse ao homem que lhe pertencia e exigiu que a devolvesse. O indivíduo replicou que ela estava maluca. Astrid espreitou por baixo do selim e encontrou a placa com o nome que lá colocara. Ele chamou-lhe mentirosa. Astrid agarrou na bicicleta e declarou que ia levá-la. O homem tentou detê-la. Ela atacou com um golpe lateral do cotovelo, fraturando-lhe a laringe, e depois partiu-lhe o queixo com um pontapé à meia volta. Levantou a bicicleta e afastou-se ao som das palmas, elevada ao estatuto de heroína de todos os habitantes de Amsterdam que já tinham perdido uma bicicleta no mercado negro.

Levou o café para o salão e sentou-se à frente de Delaroche. Soltou a mola do cabelo e deixou que este lhe caísse sobre os ombros. Era uma mulher bastante atraente que aprendera a esconder a beleza para se fundir com o ambiente que a rodeava. Delaroche permitiu-se um momento a apreciá-la.

- E o que te traz a Amsterdam, Jean-Paul? Negócios ou prazer?

- És tu, Astrid. Preciso da tua ajuda.

Abanou lentamente a cabeça e acendeu um cigarro. Delaroche imaginara que pudesse não estar disposta a trabalhar com ele. Matara com frequência e pagara um preço muito elevado por isso, uma vida passada a fugir a todas as forças policiais e serviços secretos do Ocidente. Conseguira acomodar-se tanto quanto possível, e agora Delaroche pedia-lhe que abrisse mão de tudo isso.

- Há muito tempo que deixei esse mundo, Jean-Paul. Estou cansada de matar.

Não gosto tanto de o fazer como tu.

- Eu não gosto de matar. Apenas o faço porque me pagam e porque não sei fazer mais nada. Em tempos foste muito boa.

- Matava porque acreditava em alguma coisa. Há uma grande diferença. E vê só o que consegui - contrapôs, apontando para o que a rodeava. - Bem, imagino que pudesse ser pior. Podia estar em Damasco. Que tempos terríveis.

Delaroche ouvira dizer que ela passara dois anos escondida na Síria, cortesia de Hafez al-Assad e dos seus serviços secretos, e outros dois anos na Líbia, como convidada de Mu'ammar Khadafi.

- Estou oferecendo a liberdade, a oportunidade de largar tudo para trás e dinheiro suficiente para passar o resto da vida num lugar confortável. Quer ouvir mais?

Astrid apagou o cigarro e acendeu outro de imediato.

- Raios te partam.

Delaroche levantou-se.

- Imagino que seja um sim - disse.

- Quantas pessoas vamos matar?

- Volto daqui a meia hora.

Regressou ao hotel, fez as malas e pagou a conta. Trinta minutos depois, descia pela escotilha do Krista, com o pequeno saco de viagem e uma pasta de nylon com o computador portátil. Voltaram a instalar-se no salão, Delaroche ao computador, Astrid sentada numa otomana. Delaroche percorreu os alvos, um a um. Astrid manteve-se imóvel como uma estátua, as pernas cruzadas por baixo do corpo, uma mão comprida a apoiar o queixo, a outra com um cigarro. Não disse nada, não fez perguntas, pois, tal como Delaroche, tinha uma memória prodigiosa.

- Se me ajudares, pago-te um milhão de dólares - adiantou Delaroche, ao concluir as informações. - E ajudo-te a instalares-te num sítio seguro e um pouco mais agradável do que Damasco. - Quem te contratou?

- Não sei.

Astrid ergueu uma sobrancelha.

- Nem parece teu, Jean-Paul. Devem estar a pagar-te muito dinheiro. - Puxou uma passa do cigarro e soprou uma espiral de fumo para o teto. - Leva-me a jantar. Tenho fome.

Tinham sido amantes, há muito tempo, quando Delaroche ajudou a Fação do

Exército Vermelho com um assassinato particularmente difícil. Regressaram ao

Krista depois do jantar num pequeno restaurante francês com vista para o Herengracht. Delaroche deitou-se na cama. Astrid sentou-se a seu lado e despiu-se em silêncio.

Tinham passado muitos meses desde que levara um homem para a sua cama e, da primeira vez, amou-o rapidamente. Depois acendeu velas, e juntos fumaram cigarros e beberam vinho, com a chuva a martelar na claraboia por cima dos seus corpos. Fez amor com ele uma segunda vez muito lentamente, envolvendo-lhe o corpo com os braços e as pernas compridas, tocando-lhe como se fosse feito de cristal. Astrid gostava de ficar por cima. Gostava de controlar. Não confiava em ninguém, especialmente nos amantes. Pressionou-lhe o corpo durante muito tempo, beijando-lhe a boca, fitando-lhe os olhos. Depois ajoelhou-se, as pernas abertas sobre o corpo do parceiro, e foi como se Delaroche já lá não estivesse. Astrid brincou com o cabelo, afagou os mamilos dos seios pequenos e arrebitados. Depois fechou os olhos e lançou a cabeça para trás. Implorou-lhe que chegasse dentro dela. Quando ele o fez, Astrid estremeceu várias vezes e depois tombou sobre o peito dele, o corpo úmido com a transpiração.

Momentos depois, deitou-se de costas e fitou a chuva a escorrer na claraboia. -- Promete-me uma coisa, Jean-Paul Delaroche - disse-lhe. Promete-me que não me matas quando já não precisares de mim.

- Prometo que não te mato.

Astrid apoiou-se no cotovelo, olhou-o nos olhos e beijou-lhe os lábios.

- Tem visto Arbatov?

- Sim, em Roscoff, há uns dias.

- Como está ele? - perguntou Astrid.

- Como sempre - respondeu Delaroche.


WASHINGTON, D. C.

Naquela manhã fria, Elizabeth Osbourne aguardava à esquina das ruas 34th e M, a correr sem sair do sítio, a soprar as mãos para as aquecer. Olhou para o relógio. Susanna estava cinco minutos atrasada. A amiga tinha muitos defeitos, mas a falta de pontualidade não se incluía na lista. Atravessou a rua e dirigiu-se a um telefone público, onde marcou o número da casa de Susanna. O atendedor de chamadas disparou.

- Susanna, é a Elizabeth. Atende, se aí estiveres. Estou à tua espera à esquina. Vou dar-te mais alguns minutos, mas depois tenho de me ir embora. Volto a ligar-te do trabalho.

Ligou para a extensão de Susanna, no Post. Foi o voice mail quem atendeu.

Elizabeth desligou sem deixar mensagem.

Olhou para a 34th Street, mas não viu sinais de Susanna, nem de Carson. Telefonou para casa e confirmou se Susanna deixara alguma mensagem no gravador de chamadas. A máquina disse-lhe que tinha uma mensagem. Marcou o código de acesso, mas era apenas Max, a dar-lhe conta de que um almoço tinha sido cancelado.

Desligou a pensar: Raios partam, onde é que ela está'?

Pensou no telefonema de Susanna da noite anterior. Estava prestes a publicar um grande artigo sobre Mitchell Elliott e Samuel Braxton. Talvez estivesse ao telefone, a finalizar a peça. Talvez estivesse a falar com os editores.

Virou-se e correu a 34th Street acima. Virou à direita em Volta Place e depois novamente à direita para Pomander Walk. Subiu os degraus da casa de Susanna e tocou à campainha. Ninguém respondeu.

Bateu com o punho na porta de madeira. Voltou a não ter resposta. Do interior não se ouvia nada. Carson estava sempre alerta. Regra geral, começava a ladrar antes de Elizabeth bater à porta. Se o cão estivesse lá dentro, por essa altura já estaria a ladrar.

Virou-se e viu luzes na casa de Harry Scanlon. Cruzou o acesso e bateu à porta. Scanlon veio abrir de roupão.

- Lamento incomodá-lo, Harry, mas a Susanna e eu tínhamos combinado uma corrida e ela deixou-me pendurada. Não é do feitio dela. Estou preocupada. Ainda tem a chave?

- Claro, espere só um instante.

Scanlon desapareceu dentro de casa e regressou momentos depois com uma chave. - Eu ajudo-a - ofereceu-se.

Dirigiram-se à porta da casa de Susanna. Scanlon enfiou a chave na fechadura e abriu a porta.

- Susanna! - chamou Elizabeth. Não houve resposta.

Deu uma vista de olhos à sala e à cozinha. Tudo parecia normal. Começou a subir as escadas, sempre a chamar por Susanna, com Scanlon atrás dela.

Quando chegou ao patamar, viu o cão.

- Ai, meu Deus! Susanna! Susanna!

Passou por cima do corpo do animal e espreitou para a casa de banho. Os mosaicos brancos estavam cobertos de vidros da garrafa de cerveja que caíra e se partira. Elizabeth deu mais alguns passos pelo corredor e olhou para o gabinete de trabalho.

Virou-se e gritou.

Elizabeth estava sentada nos degraus da casa de Harry Scanlon, com um cobertor de lã pelos ombros. Meia dúzia de carros da polícia, com as luzes vermelhas e azuis a brilhar, entupiam Volta Place. A van forense já chegara e os técnicos reviravam o interior da casa de Susanna. Tentou falar com Michael, mas este não atendeu o telefone.

Ditou à telefonista um recado urgente e o telefone de Harry Scanlon.

Bolas, Michael, preciso de ti, pensou.

Elizabeth aconchegou-se mais com o cobertor, mas não conseguia parar de tremer. Fechou os olhos, mas viu o corpo lacerado de Susanna no chão, e viu o sangue. Meu Deus, tanto sangue! Apercebeu-se de que alguém a chamava. Abriu os olhos e viu à sua frente um afro-americano de pele clara e olhos de um verde profundo. O distintivo da polícia estava pendurado do paletó do terno azul.

- Senhora Osbourne, sou o detective Richardson, dos Homicídios. Pelo que sei, foi a Sra. quem encontrou o corpo.

- É verdade.

- A que horas?

- Entre as sete e um quarto e as sete e vinte, se não estou em erro.

- Conhecia a vítima?

A vítima, pensou Elizabeth. Susanna já perdera o nome. Agora não passava da vítima.

- Éramos muito amigas, Detetive. Conhecia-a há vinte anos. Tínhamos combinado ir correr esta manhã. Como não apareceu, vim à procura dela. O vizinho tinha a chave e entrei em casa dela.

- Reparou em alguma coisa fora do normal?

- Tirando o corpo, não.

- Sinto muito, Sra. Osbourne. Onde trabalhava ela?

- Era jornalista do The Washington Post.

- Bem me parecia que conhecia o nome. Trabalhou na Casa Branca durante algum tempo, certo? Costumava participar naquele programa da mesa redonda.

Elizabeth aquiesceu.

- Pode parecer-lhe uma pergunta estranha, mas sabe de alguém que a quisesse matar?

- Ninguém.

- Passava-se alguma coisa anormal na vida dela?

- Não.

- Namorados zangados? Amantes abandonados?

Elizabeth abanou a cabeça.

- Marido?

- Voltou a casar-se.

- Como era a relação entre os dois?

- Trabalho com ele, Detetive. É associado na minha firma. Pode ser um monte de esterco, mas não é um assassino.

- Não encontramos a bolsa dela. Sabe se tinha alguma?

- Sim, deixava-a sempre em cima da bancada da cozinha.

- Não está lá.

- Quem fez isto?

- Não fazemos ideia. Ao que parece, tinha alguém dentro de casa e ela o surpreendeu. Estava vestida com roupa de corrida, mas sem um dos tênis. Parece que torceu o tornozelo. O cão estava preso.

- E a mataram.

- Nesta cidade há muitas pessoas que preferem matar a deixar uma testemunha que as possa identificar mais tarde. - O tom da voz do detective era casual. Levou a mão ao ombro de Elizabeth. Lamento imenso, Sra. Osbourne. Fique com o meu cartão. Se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, diga-me. Elizabeth ouviu o telefone tocando dentro da casa. Harry Scanlon surgiu na porta, os olhos vermelhos. - É o Michael - indicou.

Elizabeth levantou-se e entrou, sem grande equilíbrio.

- Michael, vem para casa depressa. Preciso de você.

- O que aconteceu? Por que você está na casa do Harry?

- Susanna morreu. Foi morta dentro de casa. Fui eu que a encontrei. Ai meu Deus, Michael... - As lágrimas embargaram sua voz. - Por favor, Michael, vem depressa para casa.

- Fique aí. Vou buscá-la.

- Não. Vá para casa. Preciso andar. Preciso pegar ar.

Olhou pela janela e viu o corpo de Susanna, enrolado num lençol branco, sendo retirado de maca. Mantivera a compostura até aquele momento, mas ver Susanna daquela forma roubou-lhe as últimas forças.

- Elizabeth, você está aí? Elizabeth, fale comigo.

- Eles a estão levando. Ai, meu Deus, pobre Susanna! Estou só pensando no que ela deve ter sofrido antes de morrer. Não consigo deixar de pensar nisso.

- Saia daí. Vá para casa. Vai se sentir um pouco melhor. Acredite.

- Ande depressa.

- Sim.

Elizabeth desligou o telefone. Scanlon tinha um disquete na mão. - Bem, acho que ela já não precisa dissto. - Fez uma pausa e os olhos encheram-se de lágrimas. - Céus, nem acredito que disse isto.

- O que é?

Scanlon explicou o sistema que usavam, como Susanna fazia sempre cópias do trabalho e as deixava em sua caixa do correio.

- Era paranoica.

- Eu sei. Na faculdade de Direito, guardava as coisas na geladeira, porque tinha lido em algum lugar que geladeiras resistem a incêndios. - Elizabeth sorriu com a recordação. - Sinto tanta falta dela. Nem acredito que isto esteja acontecendo.

Scanlon pousou o disquete na bancada da cozinha.

- Encontrei-a ontem à noite, quando cheguei a casa. Ela deve tê-la deixado quando foi correr. É engraçado, sempre pensei que ela era maluca por correr à noite, mas foi morta dentro de casa.

Elizabeth pensou no telefonema de Susanna na noite anterior. Passara o dia a trabalhar num artigo importante. O que ela escrevera deveria estar naquela disquete.

- Posso ficar com ele? - perguntou Elizabeth.

- Claro, mas não vai conseguir ler o que está aí.

- Por quê?

- Porque ela usava software de encriptação. É como lhe digo, ela era paranoica com o trabalho.

- Não sabe a senha?

- Não, nunca me disse. Imaginava que tivesse dito a você.

Elizabeth abanou a cabeça.

- E os editores do Post?

- Nem pensar. Ela não confiava em ninguém, muito menos nas pessoas com quem trabalhava.

- Vou ficar com ele - declarou Elizabeth. - Tenho um amigo que entende um pouco dessas coisas.

Elizabeth mostrou o disquete a Michael quando estavam na cama, cercados pelos lençóis desalinhados. Michael acendeu um cigarro e revirou o disquete na mão. Elizabeth deitou a cabeça na barriga bronzeada do marido e percorreu os pêlos escuros do peito dele com o dedo. Sentia-se culpada por terem feito amor numa altura dessas. Quando chegou a casa queria estar perto dele. Queria abraçá-lo e nunca o perder de vista. Estava com medo, aterrorizada com o que acontecera à amiga, e não queria soltá-lo. Abraçou-o. Beijou-lhe os lábios, os olhos e o nariz. Despiu-o e fez amor com ele, lentamente, gentilmente, como se desejasse que nunca chegasse ao fim. Agora estava deitada ao seu lado, a ver a chuva a escorrer pelas janelas do quarto.

- O Harry diz que está protegida.

- Isso não é problema. Só precisamos de descobrir a palavra-passe.

- E como pretendes fazer isso?

- As pessoas são preguiçosas. Usam datas de nascimento, endereços, todo tipo de palavras e números que possam lembrar com facilidade. Conhece Susanna melhor do que ninguém.

- Precisa de software especial?

- Tenho no meu computador.

- Vamos.

Vestiram os roupões e percorreram o corredor até o gabinete de Michael, que se sentou à secretária. Elizabeth ficou atrás dele, as mãos agarradas aos ombros do marido. - Data de nascimento?

- 17 de novembro de 1957.

Michael introduziu a versão numérica: 17-11-57. Na tela surgiu:

ACESSO NEGADO PALAVRA-CHAVE INCORRETA

- Data de nascimento ao contrário - disse Michael. O computador deu a mesma resposta.

Endereço... Endereço ao contrário... Número de telefone... Número de telefone ao contrário... Telefone do trabalho... Telefone do trabalho ao contrário... Nome... Nome ao contrário... Nome do meio... Nome do meio ao contrário... Sobrenome... Sobrenome ao contrário...

- Podemos ficar aqui eternamente - comentou Elizabeth.

- Eternamente, não.

- Pensei que tivesse dito que ia ser fácil.

- Disse que não era problema. Nomes dos pais?

- Maria e Carmine.

- Maria e Carmine?

- Ela é italiana.

- Ela era italiana.

Michael trabalhou durante as duas horas seguintes. Descobriu mais sobre a vida de Susanna do que julgara possível: namorados, cidade natal, banco, filme preferido, livro predileto. Tentou tudo, para a frente, para trás, de lado, e nada resultou.

- Como se chamava o cão?

- Carson.

- Por que Carson?

Elizabeth sorriu.

- Porque tinha insônia e adorava The Tonight Show.

Michael digitou CARSON. Nada. Experimentou JOHNNY. Nada. Tentou DOC e ED. Nada.

- Tinha gravado os últimos dois programas. Estava sempre revendo.

- Quem foi o convidado do último programa?

- Foi só Johnny, lembra? Foi só ele falando com o público.

- E no anterior?

- Bette Middler. Ela adorava a Bette Middler.

Michael escreveu BETTE. Nada. MIDDLER. Nada. Escreveu os nomes ao contrário.

Nada.

Bateu com a palma da mão na mesa. - Sai da frente - disse Elizabeth.

Inclinou-se sobre o ombro do marido, escreveu THE ROSE e pressionou a tecla ENTER. O computador hesitou durante alguns segundos e a última coisa que Susanna Dayton escrevera apareceu na tela.

Meu Deus - exclamou Michael.

 


AMSTERDAM

 

A casa flutuante no Prinsengracht assumira a aparência de uma sala de operações militares. Delaroche chegou a pensar brevemente em regressar a Brélés, mas era uma aldeia, com a normal tendência das aldeias para os mexericos, e sabia que a presença de uma loura alta iria fazer despertar o interesse de Didier e dos seus compinchas. Além disso, o Krista garantia uma atmosfera descontraída e reservada onde planear os assassinatos. Nas paredes afixou mapas de grande escala das ruas das cidades onde iria levar a cabo as mortes: Londres, Cairo, Washington. Levantava-se cedo todas as manhãs e trabalhava enquanto Astrid dormia. Depois passavam duas horas juntos, a falar e a planear, até que ela se dirigia à livraria, às dez horas.

À tarde, as paredes começavam a oprimi-lo e Delaroche levava emprestada a terrível bicicleta de Astrid e pedalava através das ruelas estreitas à volta do canal. Encontrou uma loja de material de pintura, comprou um pequeno estojo de aguarelas e pintou vários belos quadros das pontes, dos barcos e das casas de fachadas triangulares sobranceiras aos canais. No quarto dia, uma frente fria começou a soprar, vinda do mar do Norte. Nos dois dias seguintes, o Krista encheu-se com os gritos divertidos de centenas de patinadores que deslizavam sobre a superfície gelada do Prinsengracht.

Todas as noites ia buscar Astrid à livraria e levava-a a um restaurante diferente. Depois passeavam ao longo dos canais batidos pelo vento e bebiam cerveja De Konmck nos bares impregnados do odor a cannabis de Leidseplein.

Fez amor com ele duas noites seguidas, e depois rejeitou-o outras duas. Astrid tinha um sono agitado, atormentado por pesadelos. Na véspera da partida acordou em pânico, alagada em suor, à procura da pequena Browning automática que mantinha sempre no chão, ao lado da cama. Poderia ter matado Delaroche, caso este não lhe tivesse retirado a arma das mãos, antes que ela a destravasse. Fez amor com ele loucamente e implorou-lhe que nunca a deixasse.

A manhã seguinte acordou gelada e cinzenta. Fizeram as malas em silêncio e trancaram o Krista com um cadeado. Delaroche destruiu os quadros. Astrid telefonou para a livraria. Surgira-lhe uma emergência familiar e precisava de alguns dias de folga. Iria manter-se em contato.

Foram de táxi até a Centraalstation e apanharam o comboio da manhã para a vila de Hoek van Holland. Seguiram mais uma vez de táxi para o terminal dos ferries e tomaram um pequeno-almoço tardio de pão e ovos num pequeno restaurante à beira da água. Uma hora depois embarcaram no ferry para Harwich, na Grã-Bretanha, do outro lado do mar do Norte.

A travessia costumava demorar seis horas, com bom tempo, oito ou mais, com o mar revolto. Nesse dia, as águas eram fustigadas por uma tempestade gelada vinda do mar da Noruega. Astrid, propensa a enjoos, passou grande parte da viagem na casa de banho, vomitando com violência, sempre a maldizer o nome de Delaroche. Este estava no convés, ao ar gélido, a observar as ondas que rebentavam na proa do ferry.

Pouco antes de chegarem, Astrid mudou a aparência. Apanhou o cabelo louro e cobriu a cabeça com uma peruca preta que lhe dava pelos ombros. Delaroche envergou um boné de basebol com o nome de um cigarro americano e, apesar do mau tempo, os óculos-de-sol Ray-Ban.

A Comunidade Europeia tornou mais fácil a vida do terrorista internacional pois, uma vez no interior de um Estado membro, a passagem para outro é feita quase sem riscos. Delaroche e Astrid entraram no Reino Unido com passaportes holandeses, fazendo-se passar por turistas solteiros, tendo apenas de se submeter a uma inspeção superficial dos documentos, levada a cabo por um agente britânico enfadado. Mesmo assim, Delaroche sabia que as forças de segurança britânicas gravavam em vídeo todos os passageiros que entravam no país, independentemente do passaporte apresentado. Sabia que ele e Astrid tinham acabado de deixar as primeiras pegadas.

Quando Delaroche e Astrid embarcaram no comboio na estação de Harwich, a noite tombara já sobre a costa inglesa. Noventa minutos depois, chegavam a Londres. Como base de operações, Delaroche escolheu um pequeno apartamento de serviço em South Kensington. Alugou-o por uma semana a uma empresa que se especializava em casas para turistas. A primeira ação foi cancelar o aspeto de "serviço" do negócio. Não precisava de uma empregada a meter o nariz nas suas coisas. O apartamento era modesto mas confortável, com uma cozinha totalmente funcional, uma sala grande e um quarto separado. A linha telefônica era direta, sem telefonistas envolvidas, e a casa tinha janelas grandes que davam para a rua.

Não perderam tempo. O alvo era um agente do MI6 chamado Colin Yardley, um antigo operacional de campo de cinquenta e quatro anos que servira na União Soviética, no Oriente Médio e, nos últimos tempos, em Paris, e que aguardava a reforma compulsiva a fazer serviço de secretária na sede. Enquadrava-se no perfil de muitos agentes dos serviços secretos no fim da carreira: esgotado, amargo, divorciado. Bebia demasiado e envolvia-se com inúmeras mulheres. O Departamento de Pessoal do MI6 dissera-lhe, sem rodeios, para acabar com isso. Yardley dissera aos lacaios do Pessoal que se danassem. Estava tudo no relatório de Delaroche. Seria fácil matá-lo. O desafio era matá-lo da forma correta.

Apesar dos anos passados em campo, desde que regressara a Londres Yardley tornara-se preguiçoso e descuidado. Apanhava todas as noites um táxi desde a sede do MI6 à beira rio até um restaurante e bar em Sloane Square. Era aí o seu terreno de caça: jovens atraídas pela sua boa aparência madura, divorciadas abastadas do West End, esposas aborrecidas em busca de uma noite de sexo anônimo. Chegou poucos minutos depois das seis e instalou-se no seu lugar habitual no bar.

Astrid Vogel estava à sua espera.

Não era a mesma mulher que Delaroche vira na livraria de Amsterdam dez dias antes. Passara a tarde na Harrod's e nas lojas resplandecentes de Bond Street, armada com uma boa provisão do dinheiro de Delaroche. Usava agora um vestido preto, meias pretas, um relógio de ouro e uma fiada dupla de pérolas ao pescoço. A mola preta simples desaparecera-lhe do cabelo, que fora aparado e penteado por um estilista italiano de um salão em Knightsbridge. Caía-lhe agora à volta do rosto e do pescoço. Astrid sabia disfarçar a sua beleza natural, mas também sabia como chamar a atenção quando necessário.

Delaroche estava sentado num banco em Sloane Square, fingindo ler um exemplar do The Evening Standard comprado numa banca perto da estação de metro da praça. Observou o desenrolar dos acontecimentos no interior do restaurante como uma pantomima. Astrid sentada sozinha no bar, o cigarro eterno entre os dedos compridos e magros. Yardley, alto, grisalho, distinto, pergunta se o lugar ao seu lado está livre. À frente dele surge de imediato uma bebida, o habitual, e, pela sua expressão, julga que ela ficou impressionada. Acena ao empregado para que este sirva à Sra. outro copo de vinho branco. Astrid, grata, vira o corpo para o encarar, uma perna comprida cruzada de modo sugestivo sobre a outra, a saia bem subida na coxa. Já lhe pertence. A mulher solitária e assustada da casa flutuante de Amsterdam desapareceu. É uma holandesa decidida e cosmopolita cujo marido ganha dinheiro e ignora-a demasiado e, sim, pode acender-me o cigarro, querido.

Após uma hora, ela levanta-se e veste o casaco. Apertam as mãos de modo formal.

Ela permite que os dedos permaneçam um instante a mais nos dele. Pergunta-lhe onde está hospedada? No Dorchester. Pode dar-lhe boleia? Não, não é necessário. Pode chamar-lhe um táxi? Não, ela trata disso. Poderão encontrar-se novamente, antes que deixe Londres? Volte amanhã à noite e, se tiver sorte, querido, estarei aqui.

Cruzou rapidamente a praça, passando por Delaroche, embrenhado na leitura do jornal. Dirigiu-se a norte, subindo Sloane Street.

Delaroche viu Yardley chamar um táxi e entrar para o carro. Levantou-se e atravessou a praça até Sloane Street.

- Como correu?

- Se deixasse, tinha-me fodido ali mesmo no bar.

- Quer dizer que se mostrou interessado?

- Convidou-me para ir a casa dele, para uma bebida e caril de take-away. Disse-lhe que o meu marido poderia ficar zangado se eu não estivesse no hotel quando a reunião acabasse.

- Ótimo, não quero que pense que és uma prostituta. Além disso, não pode ser tão estúpido como parece. E quanto a amanhã à noite?

- Deixei bastante claro que voltaria ao bar.

- Ele volta.

- Por favor, Jean-Paul, não quero que ele me beije. O hálito dele cheira a merda.

- Essa parte da operação fica nas tuas mãos.

- Meu Deus, espero que não tente beijar-me. Se tentar, juro que sou eu que o mato.

Na noite seguinte, Yardley chegou primeiro. De vigia no banco de Sloane Square, Delaroche reprimiu uma gargalhada ao ver o tão bem treinado agente dos serviços secretos britânicos lançar uma série de olhares ansiosos na direção da porta. Depois de meia hora, Delaroche decidiu que Yardley já esperara tempo suficiente pela sua recompensa. Fez sinal a Astrid, que estava sentada à janela de um bar do outro lado da praça. Cinco minutos depois entrava no restaurante, diretamente para os braços de Colin Yardley.

Provocou-o. Brincou com ele. Bebia-lhe cada palavra. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. Permitiu que lhe pagasse demasiados copos de Sancerre. Inclinou-se para a frente, para que ele pudesse espreitar-lhe pela blusa e ver que não trazia sutiã. Afagou-lhe a barriga da perna com a ponta do caro sapato Bruno Magli. Tentou ir-se embora por várias vezes - o meu marido vai perguntar-me onde andei, querido - mas ele fazia sinal ao empregado do bar, que trazia outro copo de Sancerre. Ela não tinha força de vontade para se afastar daquele homem tão interessante, e seja um querido e peça outro maço de Marlboro Light 100s, por favor. Astrid, a sedutora. Astrid, a necessitada. Astrid, a holandesa faminta por sexo, que faria tudo pela atenção de um inglês de meia-idade, com um terno de Savile Row e uma casa dispendiosa. Delaroche apreciou o trabalho dela a partir da praça. Sentiu outra coisa: uma pontada de ternura. Levou a mão ao casaco e sentiu a coronha da Glock.

A parte seguinte correu de acordo com o planeado. Astrid inclinou-se para a frente e murmurou-lhe ao ouvido. Yardley pagou a conta e foi buscar os casacos.

Dois minutos depois, entravam para um táxi.

Delaroche observou-os a afastarem-se. Levantou-se e seguiu-os lentamente, através de Sloane Square, para oeste, ao longo da King's Road. Não ficou alarmado quando perdeu o táxi de vista. Sabia exatamente para onde iam, para a casa de Yardley, em Wellington Square.

Fá-lo entrar em casa, Astrid. Diz-lhe que tens pressa. Que o teu marido vai perder a cabeça se te demorares. Leva-o diretamente para a cama. Não te preocupes com a porta. Eu trato da porta.

Delaroche virou à esquerda em King's Road e entrou na calma de Wellington Square. O ruído do trânsito da hora de ponta reduziu-se para um ronco abafado. Começou a chover ao de leve. Delaroche atravessou rapidamente a praça, a gola erguida, as mãos enfiadas nos bolsos.

A casa de Yardley estava às escuras, perfeito. A fechadura da porta da rua não levantou grande problema e, dali a poucos segundos, estava no interior da casa. Ouviu o som de vozes no andar de cima, no quarto. Astrid desempenhara bem o seu papel.

Quando Delaroche entrou no quarto, encontrou Yardley encostado à cabeceira da cama, de camisa e peúgas, a masturbar-se enquanto Astrid executava um striptease lento aos pés da cama. Por um momento, Delaroche chegou a ter pena do homem. Ia sofrer uma morte humilhante.

Delaroche retirou a Glock da cintura das calças e entrou no quarto. O alarme surgiu de imediato no rosto de Yardley. Astrid parou de dançar e afastou-se.

Delaroche ocupou o lugar deixado vago aos pés da cama. Depois ergueu o braço e alvejou Colin Yardley rapidamente, três vezes no rosto.

O corpo tombou da cama para o chão. Astrid avançou, deu um pontapé na cabeça de Yardley com a ponta do sapato Bruno Magli e cuspiu-lhe no rosto. Astrid, a revolucionária.

Delaroche informou a agência imobiliária que teria de cancelar as férias em Londres devido a uma emergência familiar. Antes de deixar o apartamento, ligou o computador portátil e enviou uma mensagem codificada aos empregadores, dizendo-lhes que a missão fora cumprida e que deveriam transferir os fundos determinados para a conta específica em Zurique. Apanhou com Astrid um comboio noturno para Dover e passaram a noite num hotel pitoresco. De manhã apanharam o primeiro ferry para Calais, onde alugaram um Renault, e seguiram para norte, ao longo da costa do Canal. A noite estavam de volta ao Krista, no calmo Prinsengracht em Amsterdam.

O corpo de Colin Yardley foi encontrado no início dessa tarde, quando Delaroche e Astrid passavam da França para a Bélgica. A Segurança do MI6 ficou alarmada, pois Yardley não se apresentara ao serviço e ninguém atendia os repetidos telefonemas para sua casa em Wellington Square. Uma equipe do MI6 arrombou a porta pouco depois da uma da tarde e encontraram o corpo no quarto do primeiro andar. A Polícia, contudo, apenas foi informada da morte às quatro e quinze. A BBC noticiou a morte de um homem não identificado nas Nine O'Clock News. Quando a ITN iniciou a transmissão das dez, o cadáver tinha nome e profissão: Colin Yardley, um quadro médio do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Durante o programa telefonaram para a redação. Quem ligou disse que a morte de Yardley fora levada a cabo pelo Provisional Irish Republican Army. Foi apresentado o código de reconhecimento especial como prova de que a reivindicação era autêntica.

Pela manhã, os repórteres da BBC tinham descoberto a verdadeira ocupação de Yardley: agente dos Serviços Secretos de Espionagem, o MI6.

Jean-Paul Delaroche escutou as notícias a bordo do Krista. Quando terminaram desligou o rádio e dedicou-se aos mapas e ao computador, preparando a morte seguinte.

Telefonou para Zurique. Herr Becker confirmou que, nessa manhã, fora efetuada para a sua conta uma transferência de um milhão de dólares. Delaroche indicou-lhe que deveria transferir o dinheiro para quatro contas das Baamas, um quarto de milhão para cada.

O sol despontou ao meio-dia. Levou emprestada a bicicleta de Astrid e passou o resto da tarde a pintar nas margens do rio Amstel, até que a imagem do rosto desfeito de Yardley lhe desapareceu da consciência.

 


MCLEAN, VIRGÍNIA

 

- Não sei por que Carter precisa te enviar a Londres. Por que diabos não manda outra pessoa?

Elizabeth foi buscar Michael na sede e estava dando carona até o Dulles Airport, a trinta quilômetros de Washington, no extremo leste da periferia urbana do norte da Virgínia. Eram 19 horas. Tecnicamente, a hora do rush já acabara, mas o trânsito continuava engarrafado no Capital Beltway. Quando estava tensa, Elizabeth tinha a tendência de colar na traseira dos outros veículos. Assim, viajavam a meio metro do para-choque de um Ford Explorer verde, que se deslocava a setenta quilômetros por hora.

- Pensei que tinha explicado nossa situação, Michael. Achava que ele tinha concordado em deixar você trabalhar em Nova York. Pensei que ele fosse aliviar por uma ou duas semanas.

Talvez devesse ter levado um carro da Agência até o aeroporto, pensou Michael. Não tinha vontade de discutir com a mulher antes de embarcar num voo internacional. Não que fosse supersticioso, nem tampouco receava voar, era simplesmente realista.

- É só um dia - garantiu. - Ida e volta, com algumas reuniões pelo meio. - Se é uma coisa tão rotineira, por que não enviou o Carter outra pessoa? Elizabeth não era litigante, exercia direito na calma das sombras empresariais, mas era mestre na arte do contra-interrogatório. Esmurrou a buzina. Michael sabia que acabara de ser declarado testemunha hostil.

- Um oficial da espionagem britânica foi assassinado em Londres, ontem à noite - replicou Michael calmamente. - Pode ter alguma coisa a ver com um caso no qual já trabalho há muito tempo.

- Li sobre isso no Post desta manhã. O IRA reivindicou a responsabilidade. Desde quando tens alguma coisa a ver com o IRA? Pensei que o teu currículo incluía exclusivamente terrorismo árabe.

- É verdade, mas julgamos que possa haver uma ligação.

Michael esperava que ela ignorasse o assunto. A viagem a Londres fora sua ideia, não de Carter, que queria o trabalho de ligação feito por um agente da Estação de Londres. Michael convencera Carter a enviá-lo.

- Daqui a dois dias vão recolher-me os óvulos. Nessa altura vão fertilizá-los com esperma. Preferia que fosse o teu, Michael.

- Eu volto. Não te preocupes. E, se por acaso houver algum problema, temos um trunfo na manga. Congelado.

Devido à natureza do seu trabalho, e à possibilidade de uma viagem inesperada, os médicos do Cornell Medical Center tinham recomendado que se congelasse algum do esperma de Michael.

- Gostaria que lá estivesses para me dar apoio emocional, Michael - disse Elizabeth. - Pensei que os agentes de casos fossem bons nessas coisas. O mínimo que podes fazer é estar comigo. - E vou lá estar. Prometo.

- Cuidado com aquilo que prometes, Michael.

Saiu da Beltway, entrando na estrada de acesso a Dulles. O trânsito reduziu de intensidade e Elizabeth acelerou até os cem. A lua cheia pairava sobre os campos de Virgínia, amortalhada por uma camada transparente de nuvens. Michael acendeu um cigarro e entreabriu o vidro da janela. Elizabeth conduzia com agressividade, mudando de faixa sem abrir o pisca, colando-se ao carro da frente, fazendo sinais de luzes a quem se atrevesse a conduzir a menos de cento e dez na faixa de ultrapassagem. Michael sabia o verdadeiro motivo do mau humor de Elizabeth. Ia para Londres investigar um ato de terrorismo, e a esposa sabia que isso levaria a que pensasse no assassinato de Sarah. O seu orgulho impedia-a de o admitir, mas os sentimentos estavam bem patentes na expressão ansiosa do rosto. Ficaria ainda mais perturbada se Michael lhe contasse a verdade: Que suspeitava que Sarah e o agente britânico tinham sido assassinados pelo mesmo homem. - Entreguei ao tom Logan o material do disquete da Susanna informou Elizabeth. - Ele vai publicar o artigo?

- Diz que não pode, sem antes confirmar os pormenores. Diz que as acusações são demasiado explosivas para serem editadas antes de serem analisadas pelos advogados. E, uma vez que a jornalista que redigiu a história está morta, não pode haver uma investigação profunda.

- Que vai ele fazer?

- Designou uma equipe dos melhores jornalistas para confirmarem os dados. Infelizmente, a Susanna não vai ser de grande ajuda no túmulo. Os apontamentos não contêm muitas pistas sobre a identidade das fontes. Por isso, a equipe do Logan tem de começar praticamente do zero.

- Isso pode demorar muito.

- Susanna precisou de três meses para fazê-lo sozinha.

Chegaram a Dulles. Elizabeth dirigiu-se às partidas e parou junto ao passeio. Michael saiu e tirou uma mala de roupa da bagageira. Fechou-a e aproximou-se da porta do condutor do Mercedes. Elizabeth baixara o vidro e tinha a cabeça de fora, à espera de um beijo de despedida.

- Tem cuidado, Michael.

- Eu tenho.

Esperou que as luzes de presença desaparecessem na escuridão e depois entrou no terminal.

Michael acordou quando o avião atravessou a camada de nuvens e deu início à descida para a manhã cinzenta de Londres. A Estação de Londres oferecera-se para lhe enviar um carro, mas Michael queria envolver-se o menos possível com os ingleses, por isso apanhou um táxi. Baixou o vidro. Gostava da sensação do ar frio no rosto, apesar do fedor a fumo dos tubos de escape. Londres fora a sua casa durante oito anos. Fizera mil vezes o percurso entre Heathrow e o centro da cidade. Os lúgubres subúrbios que passavam por ele eram-lhe mais familiares do que Arlington, ou do que Chevy Chase.

Registrou-se no hotel, um estabelecimento modesto e independente em Knightsbridge, com vista para Hyde Park. Gostava do sitio, pois cada quarto possuía uma pequena sala de estar anexa ao quarto de dormir. Pediu um pequeno-almoço inglês completo e foi debicando a comida até serem horas de ligar a Elizabeth. Acordou-a e travaram uma conversa desconexa antes que ela voltasse a adormecer.

Michael sentia-se cansado, por isso dormiu até o início da tarde. Quando acordou, vestiu um moletom impermeável. Pendurou o sinal não INCOMODAR na porta e enfiou um pedaço minúsculo de papel entre a porta e a lateral. Se ainda lá estivesse ao regressar, provavelmente ninguém teria entrado no quarto. Caso tivesse desaparecido, alguém lá teria estado.

Correu pelos caminhos de Hyde Park debaixo de nuvens plúmbeas, carregadas de chuva. O céu abriu dez minutos depois de ter iniciado o treino. Os londrinos que passavam, abrigados pelos guarda-chuvas fustigados pelo vento, fitavam-no como se fosse um louco em fuga. Após quinze minutos ficou ofegante e começou a andar. Conseguira manter a forma física ao longo dos anos, apesar de ser fumante, mas agora os cigarros cobravam seu preço. E Elizabeth tinha razão: estava ficando com barriga.

Regressou correndo ao hotel. O papel caiu ao chão quando abriu a porta do quarto. Tomou uma ducha e vestiu um terno completo azul-marinho. Apanhou um táxi até Grosvenor Square e exibiu a identificação ao Marine de guarda à entrada. Michael sentia-se desconfortável nas embaixadas. Nunca deixara de ser um NOC. Quando se encontrava sedeado em Londres, apenas ia à embaixada em situações de emergência, e sempre "às escuras", o que significava que entrava pelo estacionamento subterrâneo, nos fundos de uma van. Gostava de não ter ido ali, mas as regras do Centro exigiam uma visita de cortesia ao chefe de estação local.

O chefe de pessoal de Londres era um homem chamado Wheaton, um anglófilo assumido de bigode fino, terno riscado de Savile Row e o hábito irritante de apertar uma bola de tênis sempre que não sabia o que dizer. Wheaton pertencia à velha guarda: Princeton, Moscou, cinco anos como chefe do gabinete russo antes de assumir o seu posto definitivo em Londres. Disse ter conhecido o pai de Michael, mas não disse que gostara dele. Também deixou bem claro que não acreditava que a Estação de Londres precisasse de ajuda do CTCNT, o Counterterrorist Center (Centro Contraterrorista) para aquele caso. Michael prometeu deixá-lo a par de tudo o que descobrisse. Wheaton disse educadamente a Michael que gostaria de o ver longe da cidade o mais depressa possível. O táxi deixou Michael no terraço georgiano branco de Eaton Place. Helen e Graham Seymour possuíam uma casa agradável e, da rua, Michel podia vê-los como atores num palco de vários níveis: Graham no andar de cima, na sala, Helen abaixo do nível da rua, na cozinha. Desceu as escadas e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen desviou a atenção dos cozinhados e exibiu um sorriso rasgado.

Abriu a porta e beijou-lhe a face.

- Jesus, Michael, há tanto tempo. - Serviu vinho Sancerre num copo e colocou-o na mão dele. - Graham está lá em cima. Vão pôr a conversa em dia enquanto acabo o jantar.

Quando Michael entrou na sala, Graham Seymour remexia na lareira a gás. A sala tinha painéis e soalho de madeira, com uma série de tapetes orientais e decorações do Oriente Médio muito finos. Graham levantou-se, sorriu e estendeu a mão. Viam-se um ao outro da forma que apenas os homens de constituição idêntica conseguem. Graham Seymour era o negativo de Michael. Este tinha pele cor de azeitona e Graham era pálido. Michael tinha cabelo escuro e olhos verdes, e Graham era louro e de olhos cinzentos. Michael vestia terno marinho e Graham estava pronto para um safari, com calças e camisa caqui.

Sentaram-se e falaram sobre os velhos tempos. Tinham percursos de vida quase idênticos. À semelhança de Michael, também o pai de Graham trabalhara para os serviços secretos: na operação Double Cross do MI5 durante a guerra, e depois no MI6, durante vinte e cinco anos. Tal como Michael, também Graham seguiu o pai de comissão em comissão, e entrou para os Serviços Secretos logo após se ter formado em Cambridge. Ao longo dos anos, os dois homens tinham trabalhado em conjunto, embora Graham sempre tivesse operado com cobertura oficial. Desenvolveram respeito profissional e uma amizade pessoal. Com efeito, eram mais chegados do que ambos os serviços gostariam.

O cheiro do cozinhado de Helen chegou até a sala.

- O que está ela a fazer? - perguntou Michael, à cautela.

- Paella - respondeu Graham, com um franzir de cenho. - Talvez devesses ir à farmácia antes que feche.

- Eu fico bem.

- Dizes isso agora, mas nunca provaste a paella da Helen.

- É assim tão má?

- Não quero estragar a surpresa. Talvez seja melhor beberes mais um pouco de vinho.

Graham desceu à cozinha e regressou momentos depois com copos cheios de Bordéus branco.

- Fala-me sobre o Colin Yardley. Graham fez um esgar.

- Aconteceu uma coisa estranha há dois meses. Um traficante de armas chamado Farouk Khalifa decidiu instalar-se em Paris. Descobrimos o caso e informamos os nossos amigos franceses, que colocaram o senhor Khalifa sob vigilância. - Foi um gesto simpático por parte dos franceses. Ele vende armas a pessoas de que não gostamos.

- É um homem mau.

- É um homem muito mau. Abriu o bazar e começou a receber clientes. Os franceses fotografam toda a gente que entra e sai.

- Estou vendo o filme.

- Em Setembro, um homem faz uma visita ao senhor Khalifa. Os franceses não conseguem identificá-lo, mas desconfiam que seja britânico, por isso enviam-nos uma cópia da fotografia por fax seguro.

- Colin Yardley?

- Em carne e osso.

- A chefia confrontou-o. Exigiram saber por que raio se tinha encontrado com um tipo como o Khalifa. O Yardley inventou uma treta qualquer sobre estar aborrecido com o trabalho de secretária, e andar ansioso por voltar ao trabalho de campo. Trabalhou em Paris durante algum tempo. Disse que andava por conta própria. A chefia não ficou nada satisfeita, e isto é um eufemismo. Yardley foi repreendido com veemência.

- Cristo.

- Pois adivinha lá qual é a arma que o Farouk Khalifa tem em grande abundância. - Segundo as nossas informações, são mísseis Stinger. - Michael bebeu um pouco de vinho. -- Imagino que os teus serviços não tenham transmitido essas informações aos meus. Graham abanou a cabeça.

- Ficamos um pouco embaraçados com o assunto. Compreende, não, Michael? A chefia queria esquecer o caso, por isso desapareceram com ele.

Helen surgiu no alto das escadas.

- O jantar está pronto.

- Que maravilha - proclamou Graham, com um pouco de entusiasmo a mais. - Bem, imagino que o vídeo tenha de esperar.

Helen Seymour fazia pratos elaborados, mas terríveis. Acreditava que "cozinha inglesa" era um oximoro, e especializara-se na comida do Mediterrâneo: italiana, grega, espanhola, norte-africana. Naquela noite serviu uma paella horrorosa de peixe cru e camarão queimado, tão picante que Michael sentiu a garganta seca, à medida que empurrava garfada após garfada para a boca. Terminou corajosamente e Helen insistiu em que repetisse. Graham reprimiu uma gargalhada enquanto a esposa servia duas colheradas enormes no prato estendido de Michael.

- Está divino, não está? - ronronou Helen. - Acho que também vou me servir de mais um pouco.

- Você se excedeu mais uma vez, querida - elogiou Graham.

Havia muito que aprendera a lidar com a comida exótica da mulher. Comprava sanduíches e hambúrgueres quando saía do trabalho e devorava-os ao descer para o metrô. Há três anos exibia uma súbita devoção por pão. Helen fazia variedades novas e diferentes todas as noites, que Graham comia em grandes quantidades. Ganhara barriga por excesso de hidratos de carbono à noite. Marcava telefonemas importantes para a hora do jantar e fingia serem inesperados. À semelhança de uma criança impertinente, tornara-se perito em distribuir a comida pelo prato, criando assim a ilusão do consumo. Durante algum tempo, Graham recusara-se a permitir que Helen cozinhasse para os convidados. Em vez disso, iam a restaurantes. Agora sentia prazer em ter amigos para jantar, tal como um condenado se reconforta com companhia nas últimas horas antes da morte. Graham mergulhou um naco de pão espanhol num prato de azeite virgem e enfiou-o na boca.

- Helen, Michael e eu temos de trabalhar mais um pouco. Importa-se que levemos o café para a sala?

- É claro que não. Levo a sobremesa daqui a pouco. - Virou-se para Michael, com um sorriso arrebatador nos lábios. - Oh, Michael, fico tão contente por ter gostado da paella.

- Helen, não me lembro da última vez que tive uma refeição destas.

Graham engasgou-se com um pedaço de pão.

Michael saiu do banheiro.

- Você está bem, camarada? - perguntou Graham. - Parece enjoado.

- Minha nossa Sra., como consegue comer assim todas as noites?

- Está pronto para ver um filme?

- Claro.

Sentaram-se no sofá da sala. Graham pegou o controle remoto que estava em cima da mesa de apoio.

- O senhor Yardley tinha outro problema - indicou. - Gostava de mulheres.

- Os serviços também sabiam disso?

- Sim, o Departamento de Pessoal pediu para ter calma. Ele respondeu que se danassem. Era solteiro, faltavam-lhe poucos anos para a aposentadoria, e ia divertir-se.

- Boa atitude.

- Os serviços encontraram o corpo. Entramos antes da polícia e revistamos a casa. Descobrimos que o adorável Colin Yardley tinha instalado no quarto um sistema secreto de gravação de vídeo para gravar as conquistas e vê-las quando quisesse. Tinha uma bela coleção. Os vigilantes usavam-na para aliviar o aborrecimento entre missões.

Graham apontou o comando ao reprodutor de vídeo e teclou PLAY. A câmara estava instalada em algum lugafr acima da cabeceira da cama. Yardley estava deitado, nu, masturbando-se lentamente enquanto uma mulher alta executava um striptease provocante. Desabotoou a blusa, passou as mãos pelos seios e enfiou-as por dentro do sutien.

Graham imobilizou a imagem.

- Quem é ela? - perguntou Michael.

- Acho que é Astrid Vogel.

- Segundo as nossas informações, ela está morando em Damasco.

- Nós achamos o mesmo. Na verdade, acreditamos que tenha deixado a Facção do Exército Vermelho de vez, o que torna o seu envolvimento neste caso ainda mais intrigante. - Graham acionou o comando e a imagem ganhou vida. - Esta é a melhor parte. Não vou estragar o fim.

O striptease de Astrid Vogel tornou-se mais intenso. Tinha as mãos entre as pernas e a cabeça inclinada para trás, fingindo êxtase.

- Ela é boa - comentou Graham. - Muito boa.

Helen entrou com uma travessa de café e tarte de maçã.

- Mas que maravilha. Deixo-os sozinhos dez minutos e vocês alugam um filme pornográfico.

Pousou a travessa na mesa de apoio, os olhos fixos na tela.

- Quem é aquela criatura?

- Uma antiga assassina do Baader-Meinhof chamada Astrid Vogel.

Uma expressão de terror cruzou o rosto de Yardley. Graham parou o vídeo.

- Esta parte é bem sangrenta, querida. Talvez fosse melhor ir lá para baixo.

Helen sentou-se no divã.

- Como queira - disse Graham e recomeçou o vídeo.

Uma figura escura penetrou no quarto, as feições ocultas por boné e óculos de sol. Levou a mão atrás das costas, puxou de uma arma com silenciador e alvejou Colin Yardley três vezes no rosto. A mulher avançou, deu um pontapé no cadáver e cuspiu-lhe em cima.

Graham parou a fita.

- Meu Deus do céu - disse Helen.

- É ele - garantiu Michael.

- Como sabe? Está sempre de cara tapada.

- Não preciso ver a cara. Já o vi empunhando uma pistola. É ele, Graham. Apostaria minha vida. É ele.

- Sei que nem preciso de dizer, Michael, mas as regras são as habituais. A informação que te dei serve apenas para uso pessoal. Não pode partilhá-la com outro elemento do teu serviço, nem com qualquer outro serviço.

- Se te ajudar a dormir melhor, até assino uma cópia da Lei dos Agentes Secretos.

Michael ergueu a gola do casaco e enfiou as mãos nos bolsos. A chuva parara e queria andar. Graham acedera em acompanhá-lo até meio caminho. Vaguearam pelos sossegados vales georgianos de Belgravia, tendo como único ruído de fundo o ronco distante do trânsito noturno de King's Road.

- Quero falar com Drozdov - disse Michael.

- Não podes falar com o Drozdov. Não está ao teu alcance. Além do mais, ele diz que deixou de falar e que pretende passar o resto dos dias em paz. - Tenho uma teoria sobre o assassino que matou Yardley e quero que ele me dê a sua opinião.

- O Drozdov é o nosso desertor. Já partilhamos as informações com você. Se tentares falar com ele, vais ficar em maus lençóis, tanto pela tua parte como pela nossa.

- Por isso mesmo, vai ser uma conversa oficiosa.

- O que tem em mente? Estás pensando em cruzar com ele e dizer: "Ei, você não é Ivan Drozdov, o antigo assassino do KGB? Importa-se que lhe faça umas perguntas?" Tome juízo, Michael.

- Tinha pensado em utilizar uma abordagem um pouco mais sutil.

- Se descobrirem, nego qualquer envolvimento. Até te acuso de ser espião russo.

- Não esperaria menos do que isso.

- Ele está morando em Cotswolds. Numa aldeiazinha chamada Aston Magna. Toma chá e lê os jornais todas as manhãs num café de Moreton, a poucos quilômetros de distância.

- Conheço bem a região - disse Michael.

- É o homem com os cães corgis e a bengala nodosa. Parece mais inglês do que o príncipe Philip. Não há como errar.

Graham Seymour acompanhou Michael até Sloane Street antes de se despedir e regressar a Eaton Place. Michael deveria ter seguido em direção ao norte, até Hyde Park e seu hotel, mas, em vez disso, quando Graham desapareceu encaminhou-se para o sul, para Sloane Square.

Atravessou a praça e perambulou pelas sossegadas ruas secundárias de Chelsea, até chegar à Represa, virada para o Tamisa. As luzes brilhavam nas casas de luxo sobranceiras. O passeio cintilava com a névoa do rio. Michael tinha a zona só para si, não fosse um homem calvo e baixo que se apressava pela rua, as mãos enfiadas nos bolsos do oleado puído, a coxear como um soldadinho de chumbo que já não presta para brincar.

Apoiou-se à barreira, olhou para o rio e depois virou-se e fitou Battersea Bridge e as luzes brilhantes de Albert Bridge, mais além. Podia ver Sarah a dirigir-se a ele, através das trevas e da neblina, o cabelo negro puxado para trás, a saia a dançar à volta das botas de camurça. Sorria-lhe como se fosse a pessoa mais importante à face da terra, como se tivesse passado o dia a pensar nele. Era o mesmo sorriso que lhe oferecia sempre que ele entrava no apartamento, sempre que se encontravam para uma bebida no bar, ou para um espresso, no restaurante preferido.

Pensou na última vez que estiveram juntos. Fora na tarde anterior, quando passara pelo apartamento e a encontrara no chão, com um maiô branco, o corpo magro dobrado sobre as longas pernas nuas. Recordou como ela se levantara e lhe beijara a boca, como baixara o maiô dos ombros para que ele lhe tocasse nos seios. Mais tarde, na cama, confessara ter fantasiado que fazia amor com ele para aliviar o enfado dos exercícios de alongamento. Que ficava sempre terrivelmente tensa e que tinha de resolver o problema sozinha, pois ele estava a trabalhar.

Nesse momento sentiu-se completamente apaixonado. Fez amor com ela uma última vez. Ela ficou deitada de costas, imóvel, os olhos fechados, o rosto passivo, tanto tempo quanto conseguiu, até que o prazer físico foi demasiado e abriu os olhos e a boca, puxou-o para si e beijou-o até chegarem juntos. Foi essa imagem, e a visão dela a flutuar na sua direção à luz da Represa de Chelsea, que foi estilhaçada pelo homem com a arma.

Recordou o rosto dela a explodir, o corpo a dissolver-se à frente dos seus olhos. Recordou o assassino: tez pálida, cabelo muito curto, nariz fino. Viu mais uma vez a forma como sacou a pistola da cintura, o modo como o braço se levantou, como disparou três vezes sem hesitar. Michael correu para ela, mesmo sabendo que estava morta. Por vezes, desejava ter perseguido o assassino, embora soubesse que tal provavelmente lhe teria custado a vida. Em vez disso, ajoelhou-se a seu lado e abraçou-a, a cabeça dela apertada contra o peito para não lhe ver o rosto desfeito.

Começou a chover. Apanhou um táxi de volta ao hotel. Despiu-se, deitou-se e telefonou a Elizabeth. Ela deve ter percebido algo na voz do marido, pois soluçou quando se despediu e desligou. Michael sentiu uma pontada de culpa, como se tivesse acabado de traí-la.


LONDRES

Bem cedo na manhã seguinte, Michael deixou o hotel e alugou um Rover sedan metalizado numa agência da Hertz, a norte de Marble Arch. Entrou na A40 perto de Paddington Station e seguiu para oeste, contra o fluxo da hora de ponta. Ainda estava escuro e chovia ao de leve. Michael ligou o rádio e escutou as notícias das seis na BBC. Enquanto atravessava os subúrbios a noroeste de Londres, a A40 entrou na M40. A luz macilenta da alvorada foi surgindo à medida que ele subia as elevações suaves de Chilterns. O mapa fornecido pela Hertz estava fechado, em cima do banco do passageiro. Michael não precisava dele, pois conhecia bem as estradas.

A família de Sarah possuíra uma grande casa de campo em Cotswolds, na aldeia de Chipping Campden. Muros de pedra calcária, cobertos de clematite e de heras diversas, cercavam a casa. Michael passara aí vários fins-de-semana com ela, durante os meses em que estiveram juntos. O campo alterava-a, levando-a a despir a farda de couro preto do clã do Soho. Usava calças de ganga desbotadas e blusas no Inverno, e vestidos leves no Verão. De manhã, percorriam os caminhos nos arredores da aldeia, através de pastos repletos de ovelhas e de faisões. À tarde, faziam amor. No Verão, com o tempo quente, faziam amor no jardim, ocultos pelo calcário e pelas flores. Sarah preferia fazê-lo ao ar livre. Gostava da sensação de Michael dentro dela e do sol na pele clara. Desejava, em segredo, que as pessoas os vissem. Queria que o mundo soubesse como era o seu ato de amor. Queria que todos os invejassem.

Dançava, servia de modelo, lia muitos livros. Por vezes representava. Às vezes fotografava. As suas cores políticas eram atrozes e tão flexíveis como o seu corpo esguio. Era trabalhista e comunista. Era verde e anarquista. Vivia no Soho, num quarto atulhado de roupas de segunda mão e maiôs, em cima de um restaurante libanês que servia comida para fora. Ouvia os Clash e os Stones. Ouvia gravações do oceano e de sons da floresta e cantos gregorianos. Era vegetariana e o cheiro do borrego assado do restaurante deixava-a enojada. Para disfarçar o cheiro, queimava incenso e acendia velas. Da primeira vez que levou Michael para a cama, este teve a sensação incômoda de estar a fazer amor numa igreja católica.

Apresentou-o a um mundo que ele não conhecia. Levou-o a festas bizarras e a teatro experimental. Levou-o a sessões de leitura e a ver exposições. Escolheu-lhe roupas diferentes. Não dormia, a menos que primeiro fizesse amor com ele. Adorava olhar para os seus corpos à luz das velas.

- Olha só para nós - dizia. - Sou tão pálida e você tão moreno. Sou o bem e você o mal.

O trabalho dele enfadava-a e ela nunca lhe fazia perguntas. A noção de alguém correr o mundo a vender coisas parecia baralhá-la. Apenas lhe perguntava onde ia e quando regressava.

Adrian Carter era o agente de controle de Michael. Este tinha a obrigação de mencionar a relação que mantinha com Sarah a Carter e ao Departamento de Pessoal, mas eles iriam revolver-lhe o passado, investigar as tendências políticas, o trabalho, os amigos, os amantes, e talvez descobrissem coisas que Michael preferia não saber. Manteve a Agência ignorante da existência de Sarah e esta da Agência. Receava que ela o abandonasse, caso descobrisse a verdade. Tinha medo que tecesse comentários com os amigos, o que poria em perigo o seu disfarce em Londres. Estava a mentir aos patrões e à amante. Sentia-se feliz e desolado ao mesmo tempo.

Aproximava-se de Oxford. Uma van comercial Ford branca seguia-o desde há trinta quilômetros, mantendo-se sempre três ou quatro carros atrás. Era possível que a Ford se limitasse a viajar na mesma direção, mas Michael fora treinado a não acreditar em coincidências. Abrandou e deixou que o trânsito o ultrapassasse.

A Ford permaneceu à mesma distância.

Aproximou-se de uma área de serviço. Saiu da auto-estrada e estacionou perto do restaurante. A Ford seguiu-o e entrou na bomba de gasolina. O condutor saiu e fingiu ver a pressão do pneu do lado do passageiro, enquanto observava o Rover. Michael interrogou-se quem o poderia estar a seguir. Wheaton, da Estação de Londres? Graham Seymour e o MI6?

Entrou no restaurante, pediu café e uma sanduíche de bacon e ovo frito, e foi ao banheiro. Foi buscar a comida, pagou e saiu. A Ford continuava na bomba de gasolina, com o condutor a preparar-se para ver a pressão do pneu traseiro.

Michael dirigiu-se a um telefone público e ligou para o hotel onde estava hospedado. Disse à recepcionista que deixara um par de botões de punho valiosos na casa de banho. Ditou-lhe uma morada falsa em Miami, que ela prontamente anotou, enquanto Michael observava a Ford. Desligou e regressou ao Rover. Ligou o motor e afastou-se, entrando no trânsito da auto-estrada. Olhou para o espelho retrovisor enquanto comia o sanduíche.

Lá estava a Ford, três carros atrás.

O monovolume seguiu Michael até Moreton-in-Marsh, uma aldeia grande segundo os padrões de Gloucestershire, que abarcava o cruzamento da A44 e da A429. Parou num estacionamento em frente a uma série de lojas e saiu. A Ford estacionou a cinquenta metros dele. O restaurante ficava ao lado de um talho, com faisões pendurados à porta. Michael pensou em Sarah, à sua frente com um prato de feijão com arroz e puré de abóbora, a fitá-lo enquanto ele arrancava a carne dos ossos de um faisão assado. Entrou no restaurante e pediu café e um bolo à jovem rechonchuda ao balcão.

Michael reconheceu Ivan Drozdov das fotografias da Agência. Era calvo, salvo por uma franja grisalha, e o corpo alto estava debruçado sobre uma pilha de matutinos. Tinha os óculos de leitura dourados na ponta do nariz e semicerrava os olhos contra o fumo do cigarro preso aos lábios finos. Vestia uma blusa cinzenta de gola alta e um blusão verde com gola de bombazina. Um par de corgis idênticos lambiam-se ao lado das botas Wellington sujas com lama úmida.

Michael levou a comida para a mesa ao lado e sentou-se. Drozdov ergueu brevemente o olhar, sorriu e regressou aos jornais. Passaram alguns minutos, com Michael a beber café e Drozdov a ler o The Times e a fumar.

Por fim, sem levantar os olhos, Drozdov disse:

- Será que vai falar, ou vai ficar aí sentado, a incomodar-me os cães? - Chamo-me Cari Blackburn, e estava a pensar se poderíamos falar um pouco - replicou Michael, surpreendido.

- Na verdade, o seu nome é Michael Osbourne. Trabalha para o Centro de Contraterrorismo da CIA, em Langley, na Virgínia. Já foi agente de campo, até que a sua amante foi assassinada em Londres e a Agência levou-o para a sede.

Drozdov dobrou cuidadosamente o jornal e deu pedaços de bolo aos cães. - Se quiser falar, podemos ir dar um passeio - indicou. - Mas não volte a mentir-me. É insultuoso e eu reajo mal aos insultos.

- Tem noção de que está sendo vigiado, senhor Osbourne?

Caminhavam ao longo de um trilha na direção da aldeia de Aston Magna, onde Drozdov se instalara quando a União Soviética se desmoronara e a ameaça de morte por parte dos seus antigos mestres do KGB desaparecera. Era um palmo mais alto do que Michael e, tal como muitos homens altos, inclinava-se ligeiramente para se encolher. Andava com lentidão, as mãos atrás das costas, a cabeça baixa, como se procurasse algo perdido. Os cães seguiam alguns metros à frente, como se fossem contravigilância. Michael, que por natureza andava depressa, esforçava-se por acompanhar o passo desajeitado de Drozdov. Interrogou-se como teria o idoso avistado quem o seguia, pois Michael não o vira a olhar.

- Dois homens - indicou Drozdov. - Uma van Ford branca.

- Avistei-os na M-40, alguns quilômetros fora de Londres.

- Alguém sabe que veio falar comigo?

- Não - mentiu Michael. - Não vim como representante da CIA, e não pedi autorização aos ingleses. É um assunto pessoal.

- Colocou-se numa posição bastante difícil, senhor Osbourne. Se fizer alguma coisa de que eu não goste, basta-me pegar o telefone e falar com o meu agente de ligação do MI-6, para que fique em maus lençóis.

- Eu sei. Obviamente, peço que não o faça, por cortesia profissional.

- Deve ser muito importante.

- É, sim.

- Imagino que aqueles homens na van branca tenham um microfone de longo alcance. Talvez devêssemos ir para algum sítio onde não nos possam seguir. Entraram num caminho que contornava um campo de erva seca. À distância, as colinas erguiam-se até as nuvens baixas. Um rebanho de ovelhas baliu-lhes do outro lado de uma vedação. Drozdov afagou-lhes a lã espessa das cabeças ao passarem por elas. O caminho estava enlameado devido à chuva que caíra durante a noite e, depois de alguns passos, os sapatos italianos de camurça de Michael ficaram arruinados. Virou-se e olhou para trás. A van regressava a Moreton.

- Julgo que já podemos falar, senhor Osbourne. Os seus amigos parecem ter desistido.

Michael passou dez minutos a falar. Percorreu a lista de assassinatos e os atentados terroristas. O ministro espanhol em Madrid. O oficial da polícia francesa em Paris. O executivo da BMW em Francoforte. O oficial da OLP em Tunes. O empresário israelense em Londres. Drozdov ouviu com atenção, por vezes aquiescendo, outras vezes resmungando baixinho. Os cães correram pelo prado e afugentaram faisões.

- E o que quer saber, ao certo? - perguntou Drozdov, quando Michael acabou de falar.

- Quero saber se foi o KGB que eliminou esses alvos. Drozdov assobiou para chamar os cães.

- Merece um elogio, senhor Osbourne. Falhou uns quantos, mas é um belo começo.

- Portanto, os atentados foram levados a cabo pelo KGB?

- Sim, foram.

- Foi sempre o mesmo homem?

- Sempre.

- Como se chama?

- Não tinha nome, senhor Osbourne. Apenas um nome de código.

- Qual era o nome de código?

Drozdov hesitou. Desertara, traíra seu serviço, mas revelar nomes de código era o equivalente em espionagem à quebra da omertà da Máfia. - Outubro, senhor Osbourne. O nome de código era Outubro - acabou por dizer.

O sol apareceu brevemente entre as nuvens, aquecendo o campo. Michael desabotoou o casaco e acendeu um cigarro. Drozdov imitou-o, a testa franzida enquanto fumava, como se procurasse a melhor forma de começar a narrativa. Michael já lidara com muitos agentes. Sabia quando devia forçar e quando era preferível esperar e ouvir. Não tinha como pressionar Drozdov, que apenas falaria se quisesse.

- Ao contrário do que se pensa no Ocidente, não éramos muito bons a matar pessoas - acabou Drozdov por dizer. - Sim, no interior da União Soviética éramos muito eficientes. Mas fora do bloco soviético, no Ocidente, éramos terríveis no que dizia respeito a assuntos sujos. Um dos nossos melhores assassinos, Nikolai Khokhlov, mudou de ideias quando estava a tentar matar um líder da resistência ucraniana e desertou. Tentamos matá-lo e também fracassamos. Durante muito tempo, o Politburo desistiu do assassinato como ferramenta do ofício. Drozdov largou a beata do cigarro para a lama e pisou-a com a ponta da bota. - Isso mudou no final dos anos 60. Olhamos para o Ocidente e vimos conflitos internos um pouco por toda a parte: os irlandeses, os bascos, os Baader-Meinhof alemães, os palestinos. Além disso, tínhamos também os nossos próprios problemas para resolver, os dissidentes, os desertores, sabe como é. Tal como sabe, os assassinatos eram geridos pelo Departamento Cinco do Primeiro

Diretorado Principal. O Departamento Cinco queria um assassino muito bem treinado, com base permanente no Ocidente, que levasse a cabo mortes em cima da hora. Esse assassino era o Outubro.

- Quem é ele? - indagou Michael.

- Entrei para o Departamento Cinco depois de ele estar integrado no Ocidente. O seu arquivo não revelava nada sobre a verdadeira identidade. Havia boatos, é claro. Dizia-se que era filho ilegítimo de uma patente bastante elevada do KGB: de um general, ou talvez do próprio presidente. Não passavam de boatos.

Foi acolhido muito novo pelo KGB e recebeu uma educação e um treino intensivos. Em 8, ainda adolescente, foi enviado para o Ocidente através da Checoslováquia, fazendo-se passar por refugiado. Acabou por se mudar para Paris. Fingiu-se um jovem desalojado e foi recebido por um orfanato católico. Ao longo dos anos desenvolveu uma identidade francesa à prova de tudo. Frequentou escolas francesas, tinha um passaporte francês, tudo. Até cumpriu o serviço militar no exército francês.

- E depois começou a matar.

- Acima de tudo, era utilizado para promover a instabilidade no Ocidente, para levantar problemas aos governos ocidentais. Matava de ambos os lados do muro. Agitava as águas, por assim dizer. Lançava achas para a fogueira. E era muito bom no que fazia. Orgulhava-se de nunca ter falhado uma única missão. Não utilizava as ferramentas que lhe púnhamos à disposição para lhe facilitar o trabalho, as balas com ponta de cianeto, ou as armas que libertavam gás venenoso. Desenvolveu o seu método de matar muito próprio.

- Três tiros no rosto.

- Brutal, eficaz, bastante dramático.

Michael vira os resultados em primeira-mão. Não precisava que Drozdov descrevesse o efeito do método do assassino.

- Ele tinha um agente responsável? - perguntou Michael, com um tom de voz sereno.

- Sim, apenas trabalhava com um agente, um homem chamado Mikhail Arbatov. Cheguei a tentar substituir Arbatov, mas o Outubro ameaçou matar o novo elemento. Arbatov era o mais próximo que o Outubro tinha de uma família. Só confiava em Arbatov e, mesmo assim, apenas o suficiente.

- Há pouco tempo foi assassinado em Paris um Mikhail Arbatov.

- Sim, li sobre isso. A polícia disse que deve ter sido morto por delinquentes.

O relato do jornal descreve-o como sendo um diplomata russo aposentado a viver em Paris. Se há uma coisa que aprendi nesta vida, senhor Osbourne, é que não se pode acreditar em tudo o que se Le nos jornais.

- Quem matou Arbatov?

- O Outubro, é claro.

- Por quê?

- É uma boa pergunta. Talvez Arbatov soubesse demasiado sobre alguma coisa.

Quando o Outubro se sente ameaçado, mata. É a única coisa que sabe fazer.

Exceto pintar. Dizem que tem bastante talento.

- Começou a trabalhar por conta própria? Agora é assassino profissional?

- Dos melhores do mundo, bastante procurado. Arbatov era o seu agente. Enriqueceram bastante em conjunto. Ouvi dizer que havia muita inveja pela forma como Arbatov se aproveitara dos talentos do Outubro. Arbatov tinha muitos inimigos, muita gente que lhe desejava mal. Mas, se está à procura de quem o matou, talvez começasse pelo Outubro.

O sol voltou a desaparecer e as nuvens engrossaram, negras com a promessa de chuva. Passaram por uma mansão de pedra calcária, cercada por relvados amplos. Michael contou-lhe sobre Colin Yardley. Sobre a gravação vídeo da morte. Sobre Astrid Vogel.

Drozdov abanou lentamente a cabeça.

- Imaginaria que alguém com o ofício de Yardley soubesse os perigos de ter uma câmara no quarto. Tenho de admitir que é uma das consequências da velhice que não me incomodam. O eterno desejo pelo corpo da mulher deixou-me finalmente em paz. Tenho os meus cães, os meus livros, e a minha paisagem bucólica de Cotswolds.

Michael riu em silêncio.

Em tempos trabalhou com a Fação do Exército Vermelho. Foi durante essa missão que conheceu Astrid Vogel. Ela passou muitos anos escondida, em Tripoli, em Damasco, nas montanhas Shouf. Pagou muito caro pelo idealismo. Houve qualquer coisa que a voltou a atrair para este mundo. Imagino que tenha sido o dinheiro. - Porque iria o Outubro matar Colin Yardley?

Talvez devesse reformular essa pergunta: O que fez Colin Yardley para que alguém contratasse o melhor assassino do mundo para o matar? Talvez tenha adquirido um míssil Stinger a um traficante de armas do mercado negro chamado Farouk Khalifa, após o que o entregou aos homens que abateram o Voo 002, pensou Michael.

Começou a chuviscar e o tempo arrefeceu. Os cães rodearam as botas de Drozdov, ansiosos por voltar a casa, para junto da lareira. À frente deles surgiu a aldeia de Aston Magna, um aglomerado de casas espalhadas à volta do cruzamento de duas estradas secundárias.

- Oferecia-lhe boleia de volta a Moreton, mas não conduzo desculpou-se Drozdov. - Obrigado, mas vou a pé.

- Sinto muito pelos sapatos - indicou, apontando a bengala ao calçado arruinado de Michael. - Não foi uma muito boa escolha para uma caminhada através de Cotswolds, no inverno.

- Um pequeno preço a pagar pela ajuda que me deu.

Michael parou de andar. Drozdov continuou mais alguns metros, após o que se deteve e virou-se.

- Houve uma morte que ainda não referiu - comentou. O assassinato de Sarah Randolph. Imagino que não tenha a ver com o caso em que está envolvido neste momento. Admiro o seu profissionalismo, senhor Osbourne.

Michael não disse nada, limitando-se a aguardar.

Ela era uma comunista empenhada, uma revolucionária - explicou, abrindo os braços e olhando o céu. - Que Deus nos proteja dos idealistas. A sua Sarah era amiga dos oprimidos do mundo: dos irlandeses, dos árabes, dos bascos. Trabalhou de bom grado para a minha agência. Conhecíamos a verdadeira identidade do Michael. Sabíamos que enviava agentes de infiltração contra as organizações guerrilheiras próximas da nossa causa. Queríamos saber mais acerca dos seus movimentos, por isso colocamos Sarah Randolph no seu caminho. Michael sentiu a cabeça às voltas. O coração acelerou. Tinha dificuldade em ouvir. Drozdov parecia estar a afastar-se dele, a transformar-se numa linha vertical ao fundo de um túnel comprido e escuro. Tentou recuperar o controle das emoções. Receava que Drozdov se apercebesse e se calasse. Queria ouvir tudo. Depois de tantos anos, queria a verdade, por mais dolorosa que fosse.

- Sarah Randolph cometeu um erro terrível - continuou Drozdov. - Apaixonou-se pelo alvo. Disse aos agentes de ligação que pretendia desistir. Ameaçou contar-lhe tudo. Ameaçou entregar-se à polícia e confessar. O oficial de controle decidiu que ela era demasiado instável para prosseguir com a missão. O Centro de Moscou quis eliminá-la, e eu fiquei encarregue do caso. Talvez lhe deva um pedido de desculpas, mas imagino que compreenda que não foi nada pessoal.

Michael debateu-se para tirar um cigarro do maço e levá-lo aos lábios. As mãos tremiam-lhe. Drozdov acercou-se e acendeu o cigarro com um isqueiro de prata com bastante uso.

- Julguei que merecia a verdade, senhor Osbourne, razão pela qual lhe contei tudo o resto. Mas acabou. Faz parte do passado, tal como a Guerra Fria. Regresse à sua esposa e esqueça Sarah Randolph. Ela nunca foi real. E, faça o que fizer, mantenha-se alerta - acrescentou, com os lábios junto ao ouvido de Michael. - Se for atrás do Outubro e cometer um erro que seja, ele mata-o tão depressa que nem vai dar por isso.

Michael regressou a Moreton sob chuva intensa. Quando chegou à aldeia, estava ensopado até os ossos e dormente com o frio. Dirigiu-se ao Rover no estacionamento e fingiu deixar cair as chaves ao tentar abrir a porta. Pôs-se de gatas e perscrutou rapidamente a parte inferior da carroçaria. Não avistou nada de invulgar, por isso entrou e ligou o motor. Colocou o aquecimento no máximo, fechou os olhos e apoiou a testa no volante. Não sabia se a devia odiar por lhe ter mentido, se amá-la ainda mais, por ter querido desistir e ter acabado por pagar com a vida. Imagens dela percorreram-lhe a mente. Sarah a flutuar na sua direção, a sorrir, uma saia comprida sobre botas de camurça. A pele luminosa, de um tom dourado à luz das velas. O corpo arqueado na direção do seu. O rosto esfacelado!

Esmurrou o painel e arrancou com o carro, os pneus a derraparem no pavimento molhado. A van Ford branca seguiu-o até Michael devolver o Rover no

Aeroporto de Heathrow.

Michael apanhou o ônibus do serviço de aluguer de carros até o Terminal

Quatro e correu para o interior. A fila para o check-in no balcão da TransAtlantic Airlines era interminável, por isso procurou um telefone e ligou para o gabinete de Elizabeth. Foi o secretário, Max Lewis, quem atendeu e pediu a Michael que aguardasse, enquanto ia chamar Elizabeth a uma reunião. Michael pensou no que lhe dizer. Decidiu não lhe contar nada, por enquanto. Era um assunto demasiado complicado, demasiado emocional, para discutir ao telefone. Elizabeth atendeu.

- Estou no aeroporto. Vou apanhar o avião daqui a pouco, e queria apenas dizer que te amo - disse Michael.

- Está tudo bem, Michael? Pareces incomodado com alguma coisa.

- Foi uma manhã muito comprida, só isso. Conto-te tudo quando chegar a casa, logo à noite. Como te sentes? Estás pronta para amanhã?

- O mais possível. Neste momento estou a tentar não pensar muito nisso. Tenho uma pilha de coisas para despachar ainda hoje, e isso ajuda.

Michael virou-se para confirmar se a fila para o check-in tinha reduzido. Uma centena de pessoas aguardava em fila, como refugiados num centro de processamento, a bagagem aos pés, os rostos exasperados. Três jovens entraram no terminal. Todos usavam um boné de basebol. Todos seguravam um saco de couro preto. Estavam vestidos de modo informal, com calças de ganga e sapatos de tênis, cabelo escuro por baixo dos bonés, pele cor de azeitona.

Michael observou-os. Deixou de ouvir o que Elizabeth estava a dizer. Os três homens pararam e pousaram os sacos. Agacharam-se ao lado dos sacos e abriram-nos.

- Espera um pouco, Elizabeth - disse Michael. - Michael, o que foi?

Michael não respondeu, limitou-se a observar.

- Responde-me, Michael, que raio! O que se passa?

Em uníssono, os homens levaram as mãos às palas dos bonés e os rostos desapareceram atrás de véus de seda negra.

- Baixem-se! Baixem-se! - bradou Michael. Largou o receptor.

Os homens levantaram-se, de armas automáticas e granadas em riste.

- Armas! Armas! Baixem-se! - gritou Michael.

Os terroristas lançaram granadas para a multidão e começaram a disparar.

Michael correu na direção deles, aos berros.

Na baixa de Washington, Elizabeth gritava para o telefone. Ouviu Michael a gritar, depois tiros, finalmente explosões. Depois a linha ficou em silêncio. - Ai, meu Deus, Michael! Michael!

Procurou o controle remoto, ligou o televisor do gabinete e sintonizou a CNN. Estava a meio de uma qualquer reportagem idiota sobre os benefícios dos abacates para a saúde.

Percorreu o gabinete. Mordeu as unhas. Max sentou-se ao seu lado e esperou, dando-lhe a mão. Dez minutos depois, Elizabeth mandou-o embora e fez algo que não fazia há vinte anos.

Fechou os olhos, juntou as mãos e rezou.


LONDRES

No gabinete de primeiro andar da sua casa em St. John's Wood, o Diretor telefonou a Mitchell Elliott a partir de uma linha segura.

- Creio que o senhor Osbourne pode revelar-se um problema, senhor Elliott. Ontem à noite teve uma conversa interessante com um homem do Serviço de Espionagem, a qual escutamos com um microfone direcional localizado na rua. Esta manhã encontrou-se com um certo Ivan Drozdov, um desertor da KGB que em tempos supervisionou as atividades do nosso assassino. Do outro lado da linha, Elliott suspirou profundamente.

- Escusado será dizer que ele sabe muita coisa, e provavelmente desconfia de muito mais - continuou o Diretor. - O nosso senhor Osbourne é um adversário bastante valoroso. Na minha opinião, não o devemos menosprezá-lo.

- Não o menosprezo, Diretor. Pode ter a certeza disso.

- O que se passa no seu lado?

O Osbourne e a mulher encontraram umo disquete com os apontamentos de Susanna Dayton e uma cópia do artigo. Ao que parece, conseguiram quebrar o código de segurança. Entregaram o material aos editores do Washington Post.

- Um desenvolvimento infeliz - comentou o diretor, tossicando. - Parece-me que a Sra. Osbourne também se encontra em posição de criar problemas. - Já a mandei vigiar.

- Espero que desta vez seus homens se comportem de uma forma mais profissional. No presente estado dos acontecimentos, não precisamos que a melhor amiga de Susanna Dayton também apareça morta. Já o marido, é outro caso. Durante a carreira fez a sua dose de inimigos. Seria ocasional, caso um desses inimigos aparecesse e se vingasse. - Quanto a isso não há problema.

- Tem a bênção da Sociedade, senhor Elliott.

- Obrigado, Diretor.

- Enquanto este assunto se mantiver no campo do financiamento político, imagino que se consiga proteger. Vai ser embaraçoso e sujo, é claro. Talvez lhe surja uma multa pesada, alguma especulação desconfortável por parte dos meios de comunicação, mas o seu projeto vai sobreviver. Contudo, se o senhor Osbourne descobrir algo que se aproxime da verdade... Bem, creio que não preciso de explicar-lhe as consequências.

- É claro que não, Diretor. E quanto a Ivan Drozdov, o desertor? Representa algum problema?

- Não tenho certeza, mas não estou disposto a correr riscos. O assunto Drozdov está neste momento sendo tratado.

- Uma jogada sábia.

- Também achei. Boa tarde, senhor Elliott.

Em Aston Magna, Ivan Drozdov estava sentado à lareira, a ler à luz fraca que entrava pelas portas de correr, quando ouviu bater. Os corgis saltaram do cesto e correram até a porta da casa, a ladrar em fúria. Drozdov seguiu-os lentamente, as pernas rígidas por ter estado sentado. Abriu a porta e viu um jovem de macacão azul, o rosto como o de um menino do coro.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Drozdov. O rapaz puxou de uma arma com silênciador.

- Faça as pazes com Deus - indicou. Drozdov retesou-se.

- Sou ateu - replicou calmamente.

- É uma pena - retorquiu o jovem.

Ergueu a pistola e alvejou Drozdov duas vezes no coração.


AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

 

O pistoleiro mais próximo de Michael disparava furiosamente para a multidão. Avistou Michael a investir, apontou a arma automática e disparou. Michael atirou-se para trás de um quiosque de câmbio, com balas a fazerem ricochete no chão a seu lado. Duas pessoas agachavam-se com ele, uma mulher que gritava em alemão e um padre francês que murmurava o Pai-nosso.

O terrorista perdeu o interesse em Michael e voltou a apontar a arma aos passageiros indefesos. Michael espreitou por trás do quiosque. O ataque começara há menos de quinze segundos, mas para Michael, agachado por trás do quiosque, parecia uma eternidade. O chão estava coberto de mortos e de moribundos, e de pessoas aterrorizadas que tentavam em vão proteger-se atrás de bagagens e de balcões.

Raios partam! Onde está a força de segurança? pensou Michael.

Um dos atacantes fez uma pausa para recarregar. Levou a mão à mala, retirou a cavilha de outra granada e atirou-a para trás do balcão da TransAtlantic. O edifício estremeceu com o abalo. Michael viu um par de corpos a serem lançados pelo ar, os membros despedaçados. O ar tresandava com o cheiro de fumo e de sangue. Os gritos das vítimas quase abafavam o matraquear das armas automáticas.

Michael desejou ter uma arma. Olhou para a direita. Quatro agentes da força antiterrorista da polícia britânica assumiam posições de disparo atrás de outro balcão. Dois deles levantaram-se, apontaram e dispararam. A cabeça de um dos pistoleiros explodiu numa nuvem cor-de-rosa de sangue e de massa encefálica. Os dois terroristas restantes responderam ao fogo e alvejaram um dos agentes. Os policiais ergueram-se por detrás da barreira, armas disparando. Um segundo pistoleiro tombou, o corpo perfurado pelas balas.

O último terrorista desistiu da luta. Recuou até a porta, sem nunca deixar de disparar. Atravessou a porta automática, com vidros a estilhaçarem-se à sua volta.

Michael podia ver um quarto elemento da equipe ao volante do carro de fuga, um Audi metalizado. Levantou-se, passou por uma série de portas paralelas e correu pelo corredor de embarque, saltando por cima de viajantes e de funcionários do aeroporto deitados no chão.

O terrorista ao volante acelerava nervosamente o motor. Meia dúzia de seguranças corria pelo terminal, as armas em riste. Michael corria agora pelo passeio, as mãos estendidas.

O último pistoleiro encontrava-se a vinte metros de distância, prestes a entrar para o carro. O condutor escancarou a porta traseira. O terrorista estava quase a entrar para o carro quando ergueu o olhar e viu Michael a correr na sua direção. Virou-se e tentou empunhar a arma automática.

Michael baixou o ombro e derrubou o pistoleiro. O impacto fez com que o atacante largasse a arma.

Michael agarrou o homem pelo pescoço e golpeou-o brutalmente no rosto. O primeiro murro partiu-lhe o nariz, o segundo fraturou-lhe o malar e deixou-o inconsciente.

O terrorista ao volante abriu a porta e começou a sair do carro, a pistola automática na mão enluvada. Michael procurou freneticamente a metralhadora caída. Agarrou-a e disparou através do para-brisa do Audi. O pistoleiro ainda conseguiu disparar dois tiros ao acaso, antes de cair no passeio, sem vida. Com o coração aos saltos, Michael viu um lampejo de uma cor escura e aquilo que pensou ser uma arma. Girou sobre o joelho e apontou a um dos agentes de segurança ingleses.

- Largue a arma com calma, amigo - disse calmamente o policial. - Já acabou tudo. Largue a arma.

Wheaton, o Chefe da Estação de Londres da CIA, foi buscar Michael ao Aeroporto de Heathrow e levou-o para a cidade no banco de trás de um sedan do governo, conduzido por um motorista. Michael encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos. Fora interrogado durante uma hora por um oficial da polícia britânica e por dois homens do MI5. Durante algum tempo, Michael manteve a cobertura: um empresário americano que regressava a Nova York após uma breve reunião em Londres. Por fim, chegou alguém da embaixada. Michael pediu para falar com Wheaton, e este telefonou para a polícia e contou a verdade.

Michael nunca matara ninguém e não estava preparado para a reação que teve. Nos momentos que seguiram o combate, sentiu uma satisfação selvagem, um entusiasmo estranho que se assemelhava à sede de sangue. Os terroristas eram homens malignos que tinham chacinado pessoas inocentes. Mereciam uma morte violenta e dolorosa. Estava satisfeito por ter eliminado um deles e por ter esmurrado o rosto do outro. Passara a sua carreira a perseguir terroristas, usando apenas o seu inteleto e o seu talento para as armas. Finalmente pudera utilizar os punhos e uma arma, com efeito, uma arma que servira para massacrar pessoas inocentes. Sentia-se bem.

Começava agora a ser dominado pela exaustão, que lhe pressionava o peito e lhe fazia latejar a cabeça. Com a adrenalina eliminada das veias, as mãos já não lhe tremiam. Era acometido por ondas de náusea. Fechou os olhos e viu sangue a voar, cabeças a explodir, gritos e o matraquear das armas automáticas. Viu o condutor de fuga a tombar para trás, sentiu a arma a recuar-lhe na mão. Tirara uma vida. Uma vida de alguém mau, mas uma vida, não obstante. Já não se sentia bem. Sentia-se sujo.

Michael esfregava a mão direita.

- Talvez devesse ver o que se passa - comentou Wheaton, como se Michael sofresse de uma lesão antiga. Michael ignorou-o.

- Qual o número de baixas?

- Trinta e seis mortos, mais de cinquenta feridos, alguns com bastante gravidade. Os ingleses esperam que o número de mortes aumente.

Americanos?

- Pelo menos vinte dos mortos são americanos. A maior parte das pessoas que aguardava pelo check-in pretendia embarcar no voo para Nova York. Os restantes mortos são ingleses. Já agora, falei com a sua esposa. Ela sabe que está bem.

Michael lembrou-se de como a deixara. Num momento estavam a falar, no outro largara o telefone e começara a gritar. Interrogou-se o que teria escutado Elizabeth. Teria ouvido tudo, as explosões, os tiros, os gritos, ou teria a linha sido cortada? Imaginou-a no gabinete, preocupadíssima, e sentiu-se mal.

Queria desesperadamente falar com ela, mas não à frente de Wheaton.

Tinham entrado em Londres e seguiam a leste de Cromwell Road.

- Como é óbvio, as hienas da mídia estão ansiosas por falar com você - avisou Wheaton. - As testemunhas contaram-lhes sobre o herói de fato que matou um dos terroristas e subjugou outro. A polícia está a dizer-lhes que o homem deseja permanecer anônimo, pois receia uma retaliação por parte da Espada de Gaza. Por agora ainda acreditam, mas sabe Deus quantos policiais de Londres têm conhecimento da verdade. Basta que um deles dê com a língua nos dentes para termos um problema bastante sério.

- A Espada de Gaza já reivindicou o atentado?

- Enviaram um fax para o The Times há alguns minutos. Os ingleses estão a analisá-lo e já enviamos uma cópia para o CTC de Langley. Parece autêntico.

Deve ser revelado aos media em breve.

- Uma vingança pelos ataques aéreos aos campos de treino?

- É claro.

Dirigiram-se para norte por Park Lane, depois por Mayfair, para Grosvenor Square. O carro encaminhou-se para a entrada principal da embaixada americana. Michael gostaria que pudessem utilizar uma entrada subterrânea, mas talvez já não fizesse grande diferença. Saiu do carro. Sentia-se tonto e doía-lhe o joelho. Devia tê-lo magoado durante o confronto, mas a adrenalina ocultara a dor até aquele momento. Os Marines colocaram-se em sentido e fizeram continência quando Michael entrou no complexo da embaixada, com Wheaton a seu lado. O embaixador e os adidos aguardavam, com os restantes funcionários da grande embaixada atrás deles. O embaixador começou a aplaudir, sendo imitado pelos outros. Michael passara toda a carreira a trabalhar nas sombras. Os louvores eram atribuídos em segredo. Quando tinha um dia bom no gabinete, não podia contar a ninguém, nem mesmo a Elizabeth. Agora, os aplausos dos membros da embaixada envolviam-no e sentiu um arrepio na nuca.

O embaixador avançou e levou a mão ao ombro de Michael.

- Imagino que neste momento não tenha grande vontade de celebrar, mas quero que saiba que estamos muito orgulhosos de si.

- Obrigado, senhor embaixador. Fico muito grato.

- Há mais alguém que deseja falar com você. Siga-me, por favor.

Quando Michael entrou na sala de comunicações, entre Wheaton e o embaixador, podia ver o selo presidencial na tela maior. O embaixador pegou um telefone, murmurou algumas palavras para o bocal e desligou. Segundos depois, o selo presidencial dissolveu-se e James Beckwith apareceu, sentado numa poltrona branca, ao lado da lareira da Sala Oval, vestindo uma camisa e uma blusa de lã.

- Michael, não há palavras que possam expressar a gratidão e o orgulho que sentimos - começou o Presidente a dizer. - Pondo em risco a sua própria integridade física, dominou sozinho um terrorista da Espada de Gaza e matou outro. A sua ação poderá ter salvo inúmeras vidas e desferiu um rude golpe nesse bando de covardes. Vou insistir para que receba a mais alta das condecorações. Apenas gostaria de a poder colocar pessoalmente no seu peito, à frente da nação, pois hoje o seu país ficaria bastante orgulhoso de si. Michael esboçou um sorriso.

- Estou habituado a trabalhar em segredo, Senhor Presidente, e, se não se importar, prefiro continuar assim. Beckwith exibiu um sorriso rasgado.

- Já imaginava que assim fosse. Além disso, é demasiado valioso para ser desperdiçado numa fotografia oportunista. Graças ao meu chefe de gabinete, já tenho quanto baste.

A câmara fez um plano mais alargado, revelando os outros homens sentados à volta do Presidente: o Chefe de Gabinete Vandenberg, o diretor da CIA Clark, o Conselheiro para a Segurança Nacional Bristol. Num dos extremos da tela estava um homem pequeno de terno de grife que lhe assentava mal, as mãos cruzadas sobre o colo, o rosto pouco visível, como qualquer bom espião que se preze. Michael soube de imediato que se tratava de Adrian Carter.

- Peço desculpa por interrompê-lo, Senhor Presidente - disse Michael. - Será que a câmara poderia deslocar-se um pouco para a esquerda? Não consigo ver aquele homem minúsculo sentado no divã.

A câmara moveu-se, revelando o rosto de Carter. Como já era habitual, parecia com sono e enfadado, mesmo estando sentado na Sala Oval, com o Presidente e a respectiva equipe de segurança nacional à sua volta.

- Ora vejam só, como é que deixaram entrar na Sala Oval um bronco como o Adrian Carter? - gracejou Michael. - Tenha cuidado, Senhor Presidente. Ele rouba cinzeiros e toalhas de hotel. Se fosse a si, punha-o sob vigilância. -Já tirou uma dúzia de pacotes de M&M presidenciais - replicou Beckwith, claramente divertido. Carter acabou finalmente por sorrir.

- Se vais começar a agir como uma espécie de herói americano, fico com o estômago às voltas. Lembra-te de que estou com você desde o início, Michael. Sei onde os corpos estão enterrados, literalmente. Se fosse a ti, tinha cuidado.

- Michael, precisamos de falar sobre outra coisa - disse Beckwith, quando as gargalhadas esmoreceram. - Vou deixar que o Carter e o diretor Clark o informem dos pormenores.

- Vou ser direto, Michael - começou Clark.

O diretor da CIA era um político, um antigo senador do New Hampshire que se orgulhava do fato de falar como uma pessoa normal. Como resultado, o léxico do mundo da espionagem deixava-o constantemente baralhado. Era alto e magro, com caracóis grisalhos rebeldes e usava laço. Parecia mais adequado a uma posição catedrática em Dartmouth do que à direção de Langley.

- Por mais estúpido que pareça, a Espada de Gaza gostaria de se encontrar connosco - Clark pigarreou. - Deixe-me ser mais específico. A espada de Gaza não se quer encontrar connosco, quer encontrar-se com você.

Como fizeram o pedido?

. Através da nossa embaixada em Damasco, há cerca de uma hora. ?- Porquê eu?

- Ao que parece, sabem exatamente quem é, e qual o seu trabalho. Dizem que se querem encontrar com o homem que mais sabe acerca do grupo, e essa pessoa é o Michael.

- Como irá processar-se o encontro?

- Amanhã de manhã, no primeiro ferry entre Dover e Calais. Querem que espere no convés, a meio do barco, e o representante deles fará a abordagem. Sem observadores, sem aparelhos de gravação, sem câmaras. Se virem alguma coisa de que não gostam, o encontro fica sem efeito.

- Quem vai ser o representante deles?

- Muhammad Awad.

- O Awad é o segundo membro mais importante da organização. O simples fato de o quererem colocar a bordo de um ferry e cara a cara com um agente da CIA é notável.

- Por isso mesmo, deve ser bom demais para ser verdade interveio Carter, enquanto a câmara fazia uma panorâmica para captar a sua imagem. - Não gosto disto. Vai contra todas as nossas regras quanto a encontros deste gênero. Somos nós que controlamos o local. Nós estabelecemos as condições. Mais do que ninguém, devia saber disso.

- Imagino que seja contra este encontro - disse Michael.

- Cento e dez por cento.

- Gostaria de ouvir sua reação, Michael - adiantou Beckwith.

- Adrian tem razão, Senhor Presidente. Em geral, não nos encontramos com terroristas de renome em situações como esta. A doutrina da Agência diz que somos nós a controlar o encontro: a data, o local, as regras básicas. Posto isto, creio que neste caso devemos esquecer as regras.

- E se o objetivo for assassiná-lo?

Se a Espada de Gaza me quisesse morto, haveria formas muito mais simples de o fazer, e não preparar um encontro elaborado, a bordo ao ferry entre Dover e Calais. Receio bem que bastaria enviarem um atirador para Washington, que esperasse à porta da sede.

- Bem visto - admitiu Clark.

- Julgo que apenas querem falar - continuou Michael. - E julgo que seríamos tolos se não escutássemos o que eles têm a dizer.

- Não concordo, Michael - discordou Carter. - Estamos a falar de um dos piores grupos terroristas em atividade. Eles falam todos os dias com as suas ações. Muito sinceramente, estou-me borrifando para aquilo que podem ter para dizer. - Carter olhou para Beckwith e disse: - Sinto muito pela linguagem, Senhor Presidente.

- Eu avisei-o de que ele não era uma pessoa decente, Senhor Presidente - disse Michael.

O conselheiro para a Segurança Nacional William Bristol esperou que as gargalhadas esmorecessem.

- Acho que vou apoiar o Michael, Senhor Presidente. É verdade, Muhammad Awad é um terrorista perigoso que não merece uma audiência só porque a pede. No entanto, muito sinceramente, gostaria de ouvir o que tem a dizer. Este encontro pode ser proveitoso. Certamente poderá dar à CIA informações preciosas sobre os elementos e sobre a maneira de pensar do grupo. E concordo com o Michael noutro ponto: se a Espada de Gaza o quiser matar, há maneiras mais fáceis de o conseguir.

O Presidente dirigiu-se a Vandenberg. - Qual é a sua opinião, Paul?

Detesto ir contra si, Bill, pois a política externa é a sua especialidade e não minha, mas julgo que não temos nada a ganhar com um encontro com o líder de um bando de vilões sanguinários como a Espada de Gaza. O Adrian tem razão: a Espada de Gaza fala com ações e não com palavras. E temos de pensar noutra coisa. Não gostaria de ter de explicar ao povo americano por que motivo nos encontramos com Muhammad Awad numa altura como esta. A forma como tem lidado com a crise tem sido exemplar e os Americanos já o recompensaram. Não gostaria de ver essa boa vontade desperdiçada só porque um terrorista como Muhammad Awad quis trocar dois dedos de conversa.

Beckwith caiu num silêncio pensativo. Michael sabia que não era bom sinal. Nunca estivera na presença do Presidente, mas já ouvira histórias sobre o poder de Paul Vandenberg. Se este não quisesse que o encontro tivesse lugar, provavelmente o encontro não se realizaria.

Por fim, Beckwith olhou para a câmara e dirigiu-se a Michael em Londres, e não aos homens sentados à sua volta.

- Michael, se estiver disposto a avançar com isto, gostaria de saber o que Muhammad Awad tem a dizer. Sei que vai comportar riscos, e sei que o Michael é casado.

- Vou encontrar-me com ele - respondeu Michael simplesmente.

Muito bem - declarou Beckwith. - Desejo-lhe muito boa sorte. Falamos amanhã. Depois, a imagem de Washington desvaneceu-se.

LONDRES

O embaixador permitiu que Michael utilizasse o seu gabinete para telefonar a Elizabeth, em Washington. Michael ligou para o número privado, mas foi Max, o secretário, quem atendeu. Mostrou-se aliviado ao ouvir a voz de Michael e depois explicou que Elizabeth já partira para Nova York e que poderia ser contatada mais tarde, no apartamento do pai na Quinta Avenida. Michael sentiu uma pontada de fúria momentânea - como podia ela ter saído do gabinete sem esperar para lhe ouvir a voz? - mas depois sentiu-se um tolo. Saíra mais cedo do trabalho pois de manhã iria extrair e fertilizar os óvulos no Cornell Medical Center, em Nova York. Durante a confusão do atentado, Michael esquecera-se completamente. E concordara em encontrar-se com Muhammad Awad no meio do Canal da Mancha, o que atrasaria a sua chegada a Nova York mais dois dias. Elizabeth ficaria furiosa, e com toda a razão. Michael disse a Max que lhe telefonaria mais tarde para Nova York e desligou.

Na verdade, Michael ficou aliviado por não ter falado com Elizabeth. Não queria ter uma conversa como aquela numa linha monitorizada da embaixada. Dirigiu-se ao gabinete de Wheaton e encontrou-o sentado à secretária, a apertar uma bola de tênis, um Dunhill entre os lábios exangues.

- Perdi a mala em Heathrow - explicou Michael. - Tenho de fazer umas compras antes que as lojas fechem.

Por acaso, não pode ir - contrapôs Wheaton com desdém. Para começar, não gostava que Michael estivesse a trabalhar no seu território. O fato de Michael ser a coqueluche do momento também não ajudava. - O Carter quer vê-lo quieto e seguro. Temos uma casa de segurança perto de Paddington Station. Vai ver que é muito confortável.

Michael resmungou consigo mesmo. As casas de segurança da Agência eram o equivalente na espionagem a um hotel barato. Conhecia muito bem o apartamento de Paddington Station. Utilizara-o ao longo dos anos para esconder vários agentes de penetração assustados. A última coisa que ele queria era passar lá a noite como hóspede e não como ama-seca. Michael sabia que não valia a pena resistir. Ia encontrar-se com Muhammad Awad contra a vontade de Carter e não queria enfurecê-lo ainda mais, reclamando por ter de passar uma noite na casa de segurança de Paddington.

Continuo a precisar de roupa - insistiu Michael.

- Faça uma lista e eu mando alguém comprar.

- Preciso de apanhar ar. Preciso de fazer alguma coisa. Se tiver de passar as próximas doze horas trancado numa casa de segurança a ver televisão, vou dar em louco.

Claramente irritado, Wheaton levantou o receptor do telefone interno e murmurou algumas palavras ininteligíveis para o bocal. Momentos depois surgiram dois agentes à porta, vestidos com ternos cinza-claro idênticos.

- Cavalheiros, o senhor Osbourne gostaria de passar a tarde no Harrods.

Garantam que não lhe acontece nada.

- Porque não envia um par de Marines fardados? - queixou-se Michael. - E, já agora, a Marks and Spencer serve perfeitamente.

Apanharam um táxi para Oxford Street, um dos agentes sentado ao lado de Michael no banco, o outro apertado num banco desdobrável. Michael entrou na Marks & Spencer e comprou dois pares de calças de bombazina, dois pulôveres de algodão, uma blusa cinzenta de lã, roupa interior e peúgas, e um casaco verde impermeável. Os vigilantes seguiram-no, enquanto reviravam pilhas de blusas e fileiras de ternos como um par de comunistas na sua primeira viagem ao Ocidente capitalista. De seguida entrou numa drogaria e comprou artigos de higiene: lâminas e creme de barbear, pasta e escova de dentes,

desodorizante. Queria andar, por isso levou as compras ao longo de Oxford Street, a olhar para as montras como um empresário enfadado a matar tempo, sempre com o instinto a fazê-lo olhar para trás, em busca de perseguidores. Não viu ninguém, salvo os homens da Agência, vinte metros mais atrás.

Chuviscava. O lusco-fusco caiu como um véu. Michael abriu caminho por entre a multidão que entrava e saía da estação de metro de Tottenham Court Road. Adorava o cheiro do final de tarde de Outono em Londres. Chuva no passeio. Gases dos escapes. Cerveja e cigarros nos pubs. Lembrava-se de noites como aquela, em que saía do gabinete com o seu terno azul e o sobretudo creme de um vendedor, dirigindo-se ao Soho para se encontrar com Sarah no café, ou no bar que ela frequentava, cercada por bailarinos, por escritores, ou por atores. Michael era um estranho nesse mundo, um símbolo da convenção e de tudo o que desprezavam, mas, na presença deles, Sarah apenas tinha olhos para si. Ignorava as regras românticas do clã. Dava-lhe a mão. Beijava-lhe os lábios. Partilhava intimidades sussurradas e recusava-se a divulgá-las, quando interrogada.

Ao atravessar Shaftesbury Avenue, Michael interrogou-se quanto disso seria verdade, e o que não passaria de invenção. Tê-lo-ia amado? Teria representado desde o início? Porque teria pedido aos russos para desistir? Imaginou Sarah no apartamento caótico, o corpo a subir ao seu encontro à luz das velas, o cabelo longo a cair-lhe sobre os seios. Sentiu o aroma do cabelo, do hálito, saboreou o sal na pele translúcida. O ato de amar fora religioso. Caso fosse mentira, Sarah Randolph era a melhor agente que alguma vez encontrara. Interrogou-se se ela teria descoberto algo valioso. Talvez devesse tê-la declarado ao Departamento de Pessoal. Eles teriam investigado os seus antecedentes, tê-la-iam colocado sob vigilância, descobririam os encontros que mantinha com o controlador russo, e tudo poderia ter sido evitado. Pensou no que diria a Elizabeth. Promete que nunca vais mentir-me, Michael. Podes ocultar-me coisas, mas nunca me mintas. Quem me dera poder contar-te a verdade, pensou, mas nem eu sei qual é.

Michael sentou-se num banco em Leicester Square e esperou que os vigilantes se juntassem a ele. Apanharam um táxi até a casa de segurança, localizada num prédio branco ofensivo, com vista para Paddington Station. O interior era pior do que o recordado por Michael: mobília reles manchada, cortinados cheios de pó, copos e pratos de plástico numa cozinha em estado de sítio. O fedor dos quartos lembrava-lhe a residência universitária em Dartmouth. Wheaton abastecera o frigorífico com carnes frias e cerveja encomendadas à loja Sainsbury's. Michael tomou uma ducha e vestiu uma muda da roupa nova. Quando voltou à sala, os agentes comiam sanduíches e viam futebol inglês numa televisão de imagem instável. A cena tinha algo que o deprimia. Precisava de telefonar a Elizabeth, em Nova York, mas sabia que iriam brigar, algo que não queria fazer com a Agência à escuta.

- Vou sair - anunciou Michael.

- O Wheaton diz que tem de ficar aqui - avisou um dos homens, com a boca cheia de presunto, queijo cheddar e pão francês.

- Não quero saber daquilo que o Wheaton diz. Não vou passar a noite aqui sentado com dois palhaços. - Michael fez uma pausa.

- Muito bem, podemos ir juntos, ou posso livrar-me de vocês em cinco minutos, e depois explicam ao Wheaton o que se passou.

Seguiram de carro até Belgravia e estacionaram à frente da casa dos Seymour, em Eaton Place. Os guardas esperaram no seda" da Agência. A rua brilhava com a chuva e com a luz das fachadas de marfim do terraço georgiano. Pelas janelas, Michael pôde ver Helen na cozinha, concentrada no desastre culinário dessa noite, e Graham no andar de cima, na sala, a ler o jornal. Percorreu os degraus, molhados da chuva, e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen veio abrir e beijou-lhe a face.

- Que surpresa maravilhosa - exclamou.

- Importas-te que venha incomodar?

- É claro que não. Estou a fazer bouillabaisse.

Tens que chegue para mais um? - perguntou Michael, com o estômago instintivamente a dar uma volta.

- Mas é claro, meu querido - ronronou Helen. - Vai lá acima beber alguma coisa com o Graham. Este atentado em Heathrow deixou-o muito perturbado. Ai, meu Deus, foi uma coisa tão horrível.

- Eu sei - garantiu Michael. - Infelizmente, estava lá.

- Estás a brincar! - exclamou Helen. Depois olhou para a expressão de Michael. - O, não estás a brincar, pois não, Michael? Estás com um ar terrível, coitadinho. A bouillabaisse vai fazer-te sentir melhor.

Quando Michael entrou na sala, Graham ergueu o olhar.

- Ora vejam só, o herói de Heathrow. - Pousou o The Evening Standard, cuja manchete proclamava TERROR NO TERMINAL QUATRO.

Uma travessa com brie e com patê estava em cima da mesa de centro, ao lado de uma fatia grossa de pão. Graham já devorara metade. Michael barrou um pedaço de pão com queijo e olhou desconfiado para o patê.

- Não te preocupes, meu caro. Comprei-o numa loja de Sloane Square. Ela tem vindo a ameaçar que vai aprender a fazê-lo em casa. Não tarda muito vai começar a cozer pão, e nessa altura estou perdido.

Em fundo, Michael podia ouvir as notícias da BBC na aparelhagem alemã de Graham. Este tinha um ótimo ouvido e poderia ter sido um pianista sinfônico, caso os serviços secretos não lhe tivessem deitado a mão. O seu talento atrofiara ao longo dos anos, como acontece com uma segunda língua que não se fala. Utilizava o Steinway de cauda uma ou duas vezes por semana, enquanto Helen assassinava o jantar, e escutava outros a tocar música. Michael ouviu uma testemunha a descrever o viajante de terno azul que matara um terrorista e incapacitara outro.

- Tenho de telefonar à Elizabeth, e não quero metade da Estação de Londres a ouvir a conversa. Importas-te que use o teu telefone? Graham apontou para o telefone em cima da mesa de apoio.

- Preciso de um pouco mais de privacidade. Ela não vai gostar do que tenho para lhe dizer.

- O quarto fica ao fundo do corredor.

Michael sentou-se na beira da cama, pegou no telefone e marcou o número.

Elizabeth atendeu ao primeiro toque, o tom de voz agitado.

Meu Deus, Michael, onde tens estado? Estou preocupadíssima.

Não queria que a conversa começasse dessa forma. O primeiro instinto foi culpar a Agência, mas Elizabeth há muito que perdera a paciência para desculpas sobre as exigências únicas do seu trabalho.

- O Wheaton disse-me que tinha falado com você. Quando pude usar um telefone, já tinhas partido para Nova York. Além disso, queria um aparelho sem escutas.

- Onde estás?

- com a Helen e o Graham.

Elizabeth passara bastante tempo com os Seymour e gostava bastante do casal. Dois anos antes, numa altura em que Graham estivera em Washington para um trabalho de ligação contraterrorista, os quatro tinham passado um fim-de-semana prolongado na casa de Shelter Island.

- Porque não estás a caminho de casa? A extração está marcada para as dez da manhã. Preciso que aqui estejas.

- Já não há mais voos. Não vou conseguir chegar a tempo.

- Michael, trabalhas para a Central Intelligence Agency. Eles conseguem desencantar um avião. Diz-lhes quais são as circunstâncias. De certeza que vão ser compreensivos.

- Não é assim tão simples. Além disso, custa dezenas de milhar de dólares. Não vão fazer isso por mim.

Elizabeth suspirou profundamente. Michael ouviu o isqueiro barato e ela parou de falar o tempo suficiente para acender outro cigarro Benson & Hedges. - Tenho passado o dia a ver a CNN - disse, mudando de assunto de repente. - Falaram sobre uma testemunha que disse que um passageiro prendeu um dos terroristas e abateu outro com a arma dele. O homem que descreveram era muito parecido com você. - O que te disse o Wheaton?

- Ah não, Michael, não vou deixar que vocês acertem as agulhas com a história que andam a contar. O que aconteceu? Quero a verdade.

Michael contou-lhe.

Meu Deus do céu! Não podias ficar escondido e esperar que resolvessem as coisas? Tinhas de te aventurar? De te armar em herói e arriscar a vida?

- Não me estive a armar em herói, Elizabeth. Reagi a uma situação. Fiz aquilo para que me treinaram e devo ter conseguido salvar algumas vidas. - Então parabéns. O que queres que eu faça? - A voz tremia com a emoção. - Que me levante e seja a primeira a aplaudir por quase ter feito de mim uma viúva?

- Eu não fiz quase de ti uma viúva.

- Michael, eu ouvi um estranho na televisão dizendo que um terrorista te apontou uma arma e que você conseguiu matá-lo antes que ele te matasse. Não me minta.

- Não foi assim tão dramático.

- Então por que o matou?

- Porque não tinha alternativa. - Michael hesitou. - E porque merecia morrer. Há vinte anos que persigo pessoas como estas, mas nunca as tinha visto em ação. Hoje tive essa oportunidade. Foi pior do que imaginei.

Michael não estava em busca de compreensão, mas as suas palavras atenuaram a ira da esposa.

- Oh, sinto tanto. Mas como está você, afinal de contas? - perguntou Elizabeth.

- Estou bem. Quase quebrei a mão esmurrando o cara, e devo ter batido como o joelho em algum lugar, porque dói como o diabo. Mas de resto estou bem.

- É bem feito - replicou, ao que acrescentou rapidamente -, mas vou dar beijinhos em todo lugar, quando chegar em casa, amanhã.

Michael hesitou. Elizabeth tinha o radar em potência máxima.

- Você volta amanhã, não volta?

- Surgiu um imprevisto. Tenho de passar aqui mais um dia.

- "Surgiu um imprevisto." Então, Michael, consegue fazer melhor do que isso.

- É verdade. Quem me dera poder dizer do que se trata, mas não posso.

- Seja o que for, por que não pode ser outra pessoa a tratar do assunto?

- Porque só eu é que posso. - Michael fez uma pausa. - Mas há uma coisa que posso dizer: foi o Presidente em pessoa que me deu as ordens.

- Não me interessa quem te deu as ordens! - retorquiu Elizabeth. - Prometeu que voltaria a tempo. Agora quebra essa promessa.

- Elizabeth, o caso não está nas minhas mãos.

- Uma porra! Está tudo nas suas mãos. Você faz exatamente o que quer. Sempre fez.

- É só mais um dia e depois regresso. Vou direto a Nova York. Chego a tempo da implantação.

- Michael, não quero que se incomode. Por que não fica em Londres mais um dia ou dois? Vai ao teatro, ou algo assim.

- Isso não é justo, Elizabeth, e não está ajudando.

- Pode crer que não é justo.

- Não posso fazer nada.

- Faça o que fizer, Michael, não precisa voltar às pressas por minha causa, pois não sei se quero te ver.

- O que está a dizendo?

- Não sei o que estou dizendo. Estou zangada, magoada e desapontada com você. E estou com medo, e nem acredito que você vai me obrigar a passar por isso sozinha.

- Não tenho escolha, Elizabeth. É o meu trabalho. Não tenho escolha.

- Tem sim, Michael. Tem escolha. E isso é o que mais me assusta.

Ficou em silêncio por um instante, o zumbido da ligação por satélite era o único som em linha. Michael esgotara o que dizer. Queria dizer que a amava, o quanto lamentava, mas isso parecia tolo.

- Quando estávamos ao telefone, em Heathrow, antes do ataque - disse Elizabeth, por fim -, disse que queria contar uma coisa.

Michael filtrou a confusão e a violência do atentado em Heathrow e percebeu que estivera prestes a contar o que descobrira sobre Sarah. Não queria piorar a situação dizendo a Elizabeth que investigara a morte da antiga amante.

- Não me lembro do que estávamos falando - disse.

Elizabeth suspirou.

- Meu Deus, que péssimo mentiroso. Sempre pensei que os espiões fossem bons em enganar as pessoas. - Fez uma pausa, à espera que o marido dissesse alguma coisa, mas ele não tinha mais nada a dizer. - Boa sorte amanhã, para aquilo que vai fazer. Eu te amo.

A ligação caiu. Michael voltou a ligar rapidamente mas, quando o telefone começou a chamar, apenas ouviu o ruído irritante do sinal de ocupado. Voltou a tentar mas nada conseguiu, por isso desligou o telefone e desceu para enfrentar o jantar de Helen.

- Talvez fosse melhor pedir a Carter para enviar outra pessoa - sugeriu Graham.

Estavam sentados lá fora, no jardim, em volta de uma mesa de ferro forjado, fumando os cigarros de Graham. A chuva parara e a Lua ia brilhando através dos farrapos de nuvens.

- Não podemos enviar mais ninguém. Eles pediram que fosse eu. Conhecem o meu rosto. Se tentarmos enviar outra pessoa, vai tudo por água abaixo.

- Já pensou que pode cair direitinho numa armadilha? Vivemos tempos perigosos. A Espada de Gaza pode querer abater um homem dos serviços, sobretudo depois do que fez hoje em Heathrow.

- Não ganham nada em me matar. Sabe tão bem quanto eu que eles não matam indiscriminadamente. Fazem por uma razão e só quando acreditam que isso poderá promover sua causa.

- Imagino que Elizabeth não esteja nada satisfeita com a situação.

- Você pode imaginar. Ela não sabe o que vou fazer amanhã, mas não anda contente. - Michael contou tudo. Mesmo que a natureza do seu trabalho por vezes exigisse discrição profissional, havia muito poucos segredos pessoais entre eles.

- Espero que saiba o que está fazendo, companheiro. Parece bem grave.

- Neste momento não preciso de um conselheiro matrimonial. Sei que estou me arriscando, mas quero ouvir o que o Awad tem a dizer.

- Minha experiência com esses sacanas sugere que não vai dizer nada de útil.

- Não me arriscaria se não tivesse alguma coisa para nos dizer.

- Por que não apanhas o filho da mãe e o mete na prisão? Ou melhor ainda, trata do seu desaparecimento conveniente.

- É tentador, mas nós não funcionamos assim. Além disso, o único resultado seria uma resposta com mais violência.

- Não podem fazer nada mais violento do que o atentado de hoje, meu caro.

Uma sirene uivou na direção de Sloane Square. Sem querer, Michael pensou em Sarah.

- Chegou a encontrar o nosso amigo Drozdov? - perguntou Graham.

Michael anuiu.

- Disse alguma coisa de útil?

- Na verdade, foi bem útil. Sabia quem eu era. Disse por que Sarah foi morta.

Michael contou-lhe a história.

- Valha-me Deus, lamento, Michael. Sei o quanto ela significava para você - garantiu Graham.

Michael acendeu outro cigarro.

- Não disse a ninguém de sua equipe que eu estava pensndo em fazer uma visita a Drozdov, não?

- Está brincando? Os manda-chuvas me esfolariam vivo se descobrissem. Por que pergunta?

- Porque dois brucutus num Ford branco me seguiram até Heathrow.

- Não eram nossos. Talvez Wheaton tenha posto você sob vigilância.

- Já pensei nessa possibilidade.

- É um filho da mãe, esse seu Wheaton. Os cavalheiros na suíte executiva de Vauxhall Cross mal podem esperar pelo regresso dele a Langley para a dança da vitória em volta da sede.

- Ele contou ao SIS sobre o encontro de amanhã com Awad?

- Que eu saiba não, e eu faria parte da lista de aviso, se uma coisa dessas acontecesse.

- E não vai contar nada a sua equipe, certo, Graham?

- Claro que não. As regras habituais se aplicam, meu caro.

Graham jogou o cigarro num canteiro agora seco. - Não quer alugar um copiloto experiente?

- Quando foi a última vez que fez trabalho de campo?

- Já faz algum tempo. E você também. Mas há coisas que não se esquecem. Se fosse você, neste momento desejaria ter alguém me protegendo.


WASHINGTON, D. C.


Paul Vandenberg ligou os televisores do gabinete e viu, em simultâneo, a abertura dos noticiários dos três canais de televisão. Cada um deles dedicou todo o primeiro bloco à emissão do ataque em Heathrow. Houve reportagens em direto de Londres, da Casa Branca e do Oriente Médio, e reportagens de fundo sobre a Espada de Gaza. O tom dos jornalistas era, regra geral, positivo, embora fontes diplomáticas europeias anônimas culpassem os Estados Unidos por atacarem as bases da Espada de Gaza. Vandenberg não se preocupava com as críticas dos europeus. O Congresso encontrava-se do seu lado. Até mesmo alguns dos democratas mais pacifistas, como Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith, tinham prometido apoio, e o New York Times e o Washington Post tinham concedido suas bênçãos editoriais. Ainda assim, os vinte civis americanos que regressavam a casa em caixões minaram necessariamente algum apoio da opinião pública em relação aos atos do Presidente.

O noticiário abandonou o assunto e transmitiu o resto das notícias do dia. Vandenberg levantou-se e preparou um copo de vodka com água tônica, o qual bebeu enquanto arrumava a secretária e trancava os documentos importantes.

Às sete e dez, a secretária espreitou à porta.

- Boa noite, senhor Vandenberg.

- Boa noite, Margaret.

Tem uma chamada. Um tal detective Steve Richardson, da Polícia Metropolitana de D.C.

- Ele disse do que se trata? - Não, senhor. Quer que pergunte?

- Não, vá para casa, Margaret. Eu trato do assunto. Vandenberg baixou o som dos televisores, carregou na luz a piscar do telefone multilinhas e pegou no receptor.

- Fala Paul Vandenberg - disse com brusquidão, adicionando intencionalmente uma nota de autoridade ao tom de voz.

- Boa noite, senhor Vandenberg. Peço desculpa por incomodá-lo tão tarde, mas isto vai demorar apenas um ou dois minutos.

- Posso saber do que se trata?

- Do assassinato de uma jornalista do Washington Post, chamada Susanna Dayton.

Tinha conhecimento da sua morte, senhor Vandenberg?

- Claro. Na verdade, falei com ela nessa noite.

- Bem, é por isso que estamos a telefonar. Sabe...

- Foram consultar os registros telefônicos e descobriram que eu fui uma das últimas pessoas com quem ela falou, e agora querem saber o tema da nossa conversa.

- Já tinha ouvido dizer que era um homem esperto, senhor Vandenberg.

- De onde está a telefonar?

- Para dizer a verdade, estou mesmo do outro lado da rua, em Lafayette Park.

- Ótimo, porque não falamos cara a cara?

- Eu conheço-o. Tenho-o visto na televisão ao longo dos anos.

- Parece que a televisão serve para alguma coisa.

Cinco minutos depois, Vandenberg atravessava o Portão Noroeste da Casa Branca, cruzando a alameda pedestre que antigamente fora a Pennsylvania Avenue. O carro aguardava no Acesso Executivo, no interior do recinto. A noite caíra e, com ela, viera uma chuva miudinha e fria. Vandenberg caminhava pelo Lafayette Park num passo rápido de marcha, a gola virada para cima a fim de se proteger do frio, os braços a baloiçar ao lado do corpo. Dois sem-abrigo aproximaram-se e pediram-lhe dinheiro. Vandenberg passou por eles a toda velocidade, sem sequer se aperceber da sua presença. O detetive Richardson levantou-se do banco onde estava sentado e caminhou na direção dele, de mão estendida.

- Ela telefonou para que eu comentasse uma reportagem em que estava trabalhando - adiantou Vandenberg, tomando de imediato a iniciativa. - Era um artigo de investigação complexo e eu recomendei que fosse ao gabinete de imprensa da Casa Branca.

- Lembra-se de algum pormenor da história?

Quer dizer que não havia nenhuma gravação, pensou Vandenberg.

- Nem tanto. Era alguma coisa sobre as atividades de angariação de fundos do Presidente. Não me pareceu muito grave e, sinceramente, num domingo à noite, não queria muito falar naquilo. Por isso, mandei-a procurar quem de direito.

- Telefonou ao secretário de imprensa para informar do telefonema?

- Não, não telefonei.

- Posso saber por quê?

- Porque não achei que fosse necessário.

- Conhece um homem chamado Mitchell Elliott?

- Claro - respondeu Vandenberg. - Antes de entrar para a política, trabalhei para a Alatron Defense Systems e Mitchell Elliott é um dos apoiadores políticos mais chegados do Presidente. Encontramo-nos com muita frequência e falamos com regularidade.

- Sabia que Susanna Dayton também telefonou para Mitchell Elliott nessa noite? Na verdade, isso aconteceu momentos antes de falar com você.

- Sim, sei que ela telefonou para Mitchell Elliott.

- Posso perguntar como sabe disso?

- Porque Elliott e eu falamos posteriormente.

- Lembra-se sobre o que falaram?

- Não realmente. Foi uma conversa muito breve. Discutimos as alegações da Sra. Dayton e ambos chegamos à conclusão de que eram disparates sem fundamento que não mereciam comentário.

- Falou com Elliott mas não com o secretário de imprensa da Casa Branca?

- Sim, exatamente.

Richardson fechou o bloco de notas a fim de sinalizar que a entrevista terminara.

- Faz alguma ideia de quem assassinou a mulher?

Richardson abanou a cabeça. - Neste momento, estamos tratando do caso como um assalto que deu errado. Lamento tê-lo incomodado, senhor Vandenberg, mas tínhamos de confirmar. Espero que compreenda.

- Claro, detetive.

Richardson entregou-lhe seu cartão.

- Caso se lembre de mais alguma coisa, por favor, não hesite em ligar. - Não gosto de receber telefonemas da polícia de Washington para o meu gabinete na Casa Branca, Mitchell.

Os dois homens caminhavam lado a lado no seu ponto de encontro habitual, Hans Point, ao longo do Washington Channel. Mark Calahan deambulava alguns passos atrás, à procura de algum sinal de vigilância.

- A polícia de Washington não me faz sentir lá muito nervoso, Paul - respondeu Elliott calmamente. - Acho que a última vez que prenderam alguém por assassínio foi em 1950.

- Diga-me só uma coisa, Mitchell. Diga-me que não teve absolutamente nada a ver com a morte daquela mulher.

Pararam de andar. Mitchell Elliott virou-se para encarar Vandenberg, mas não disse nada.

- Ponha a mão sobre uma Bíblia imaginária, Mitchell - disse Vandenberg -, e jure por esse seu Deus que o Calahan ou outro dos seus rufiões não mataram Susanna Dayton.

- Sabe que não posso fazer isso, Paul - recusou Elliott calmamente.

- Seu sacana - murmurou Vandenberg. - O que aconteceu?

- Nós a pusemos sob vigilância total, física e áudio - explicou Elliott. - Entramos na casa dela para fazer algumas tarefas domésticas e ela nos surpreendeu.

- Ela surpreendeu vocês! Valha-me Deus, Mitchell! Sabe o que está dizendo?

- Sei exatamente o que estou dizendo. Um dos meus homens cometeu um assassínio infeliz. O chefe de gabinete da Casa Branca é agora cúmplice por encobrimento de assassinato.

- Seu filho da mãe! Como se atreve a fazer isto com o Presidente!

- Fale baixo, Paul. Nunca se sabe quem pode estar na escuta. E eu não fiz nada ao Presidente, porque não há como sermos ligados ao assassinato de Susanna Dayton. Se não perder a cabeça e fizer alguma coisa estúpida, nada vai acontecer.

Vandenberg lançou um olhar furioso a Calahan, que retribuiu, sem pestanejar.

Virou-se e começou a andar. Uma chuva suave flutuava sobre o rio.

- Tenho mais uma pergunta, Mitchell.

- Quer saber quem é que realmente abateu aquele avião.

Vandenberg olhou para Mitchell em silêncio.

- Limite-se a dizer suas deixas e faça seu trabalho, Paul. Não faça muitas perguntas.

- Agora, Mitchell! Diga-me agora!

Elliott virou-se para Calahan.

- Mark, o senhor Vandenberg não está se sentindo nada bem neste momento. Acompanhe-o até o carro. Boa noite, Paul. Falaremos em breve.

O carro com motorista de Vandenberg saiu de Hans Point e seguiu a alameda, contornando Tidal Basin. O Jefferson Memorial brilhava suavemente nas águas, com o reflexo tornado indistinto pela chuva. O carro virou para a Independence Avenue, passou pelo altaneiro Washington Monument e virou para Potomac

Parkway. Vandenberg olhou para o Lincoln Memorial.

Meu Deus, o que foi que eu fiz - pensou.

Precisava de uma bebida. Nunca na sua vida tinha precisado de uma bebida, mas agora sentia mesmo necessidade. Fechou os olhos. A mão direita tremia-lhe, por isso cobriu-a com a esquerda e fitou o rio que fluía sob a ponte.

LONDRES

Na manhã seguinte, Michael levantou-se antes de amanhecer e vestiu-se sem fazer barulho no quarto horrível da casa de segurança. Estava tudo silencioso exceto pelo ronco do trânsito matutino perto de Paddington Station e pela tagarelice dos guarda-costas de Wheaton no quarto ao lado. Bebeu um café instantâneo abjeto por uma caneca lascada, mas ignorou um prato de croissants duros. Regra geral, Michael estava calmo antes de um encontro, mas agora sentia-se nervoso e irritadiço, tal como se sentira quando era um recruta calouro, enviado para o campo pela primeira vez, depois do curso de treino na Quinta. Era raro fumar antes do meio-dia, mas já ia no segundo cigarro. Dormira pouco, agitado na cama de solteiro encovada, perturbado pela zanga com Elizabeth. Em grande parte, o seu casamento sempre fora calmo, livre das discussões e tensão constantes que afligiam tantos casamentos da Agência. Pequenas altercações abalavam-nos profundamente. Uma batalha como a da véspera, com ameaças de vingança, era-lhes estranha.

Vestiu um colete à prova de bala por cima da blusa de gola alta fina e enfiou uma blusa de lã cinzenta. Pegou no telefone e marcou uma última vez o número do apartamento na Quinta Avenida. Continuava ocupado. Pousou o receptor no descanso e saiu. Wheaton estava à espera lá em baixo, na beira, no banco traseiro de um sedan anônimo da Agência. Foram até Charing Cross, Wheaton discursando monotonamente sobre as regras para o encontro com a intensidade de alguém que passara uma carreira em segurança, preso a uma secretária.

- Se não for o Awad, em nenhuma circunstância deve prosseguir com o encontro - avisou Wheaton. - Espere que o barco chegue a Calais e nós tiramo-lo de lá. - Não estou a entrar em território inimigo - disse Michael. Se o Awad não aparecer, apanho o próximo ferry para a Grã-Bretanha.

- Permaneça alerta - continuou Wheaton, ignorando o comentário de Michael. - A última coisa de que precisamos é que vá de encontro a um verdadeiro crente da Espada de Gaza com uma chave de madeira em volta do pescoço. Regra geral, os membros da espada de Gaza., e muitos outros terroristas islâmicos, usavam uma chave de madeira por baixo da roupa durante missões suicidas, pois acreditavam que os seus atos seriam recompensados com o martírio e um lugar no céu.

- Carter não quer que vá desprotegido - indicou Wheaton. Abriu uma pequena mala e retirou de lá de dentro uma potente

pistola automática Browning com um carregador de quinze balas, a arma regulamentar da Agência.

- O que devo fazer com isto? - perguntou Michael. Como muitos agentes de casos, podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que levara uma arma no cumprimento do dever. Raramente um agente de casos disparava para resolver um problema. Sacar de uma arma em legítima defesa era o derradeiro sinal de fracasso. Significava que o agente fora traído por um dos seus, ou que fora completamente descuidado.

- Não vamos mandá-lo para aquele ferry para que seja assassinado ou feito refém - insistiu Wheaton. - Caso se aperceba de que está a cair numa armadilha, riposte. Vai lá estar sozinho.

Michael colocou o carregador na coronha e puxou a culatra, introduzindo a primeira bala. Accionou a trava de segurança e enfiou a arma no cós das calças, por baixo da blusa.

Wheaton deixou Michael na estação. Michael comprou um bilhete de primeira classe para Dover e um molho de jornais matutinos, e depois foi à procura da plataforma. Entrou no comboio com cinco minutos de antecedência e avançou pelo corredor apinhado. Encontrou um lugar num compartimento com dois homens de negócios que já estavam a martelar nos computadores portáteis. No momento em que o comboio saía da estação, uma mulher entrou no compartimento. Tinha cabelo comprido e escuro, olhos escuros e pele pálida. Michael pensou que se parecia vagamente com Sarah.

Durante quase uma hora, o comboio avançou ruidosamente pelos subúrbios do Sudeste de Londres e depois entrou na terra de cultivo ondeada de Kent. No bar, Michael comprou café e umo sanduíche de presunto e queijo. Regressou ao compartimento e sentou-se. Os homens de negócios estavam em mangas de camisa e suspensórios, olhando para um relatório de lucros como se fosse um texto sagrado. A mulher não abriu a boca durante toda a viagem. Fumava um cigarro atrás do outro, até que o compartimento ficou a parecer uma câmara de gás. Os atraentes olhos castanhos acompanhavam o campo verde-acinzentado de Kent. A mão comprida encontrava-se sugestivamente pousada sobre uma coxa escondida por umas meias austeras.

O comboio chegou a Dover e Michael saiu do compartimento. A moça colocou um saco de pele ao ombro e seguiu-o. Era alta, tão alta como Sarah, mas não possuía a sua graciosidade, nem a agilidade física felina. Trazia vestido um casaco de pele preto, que lhe dava pelas coxas, e botas da tropa pretas que ressoavam quando andava.

Michael apressou-se a sair da estação e a dirigir-se ao terminal dos ferrys. Comprou um bilhete e entrou para o barco, um ferry multiuso com centro e trinta metros, capaz de transportar 1300 passageiros e 280 carros. Entrou para a área dos bancos dos passageiros no convés principal e sentou-se junto a uma janela, a bombordo. Olhou em frente e viu Graham Seymour sentado no centro do convés, vestido com calças de ganga e uma blusa cinzenta Venice Beach, e um estojo de guitarra nas mãos. Michael desviou rapidamente o olhar. A moça do comboio entrou, sentou-se diretamente atrás de Michael e começou de imediato a fumar.

Enquanto o ferry sulcava as águas, Michael lia os jornais. Dover desapareceu por trás de uma cortina de chuva. De minutos a minutos, Michael olhava para o parapeito a bombordo, pois era aí, a meio do navio, que Awad iria aparecer. Foi uma vez até o bar, o que lhe permitiu perscrutar o rosto de todos os que se encontravam sentados na área de passageiros. Comprou chá escuro servido num copo de papel muito fino e levou-o para o seu lugar. Não reconheceu ninguém, a não ser Graham e a moça do comboio, que estava absorta numa revista de moda de Paris.

Passou meia hora. A chuva parou, mas agora, bem no meio do Canal, o vento aumentava de intensidade e as ondas encrespadas lançavam-se em direção à ampla proa do ferry. A moça levantou-se, comprou café no bar e depois sentou-se ao lado de Michael. Acendeu outro cigarro e, por instantes, beberricou o café em silêncio.

- Ali está ele, junto ao parapeito, de gabardina cinzenta - indiciou, um vestígio de Beirute no seu inglês. - Aproxime-se dele devagar. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. E não tente armar-se em herói outra vez, senhor Osbourne. Estou bem armada e Ibrahim tem cinco quilos de Semtex atados ao corpo.

Michael achou que o rosto lhe era vagamente familiar, como um amigo de adolescência que se materializa na meia-idade, gordo e a ficar calvo. Vira aquele rosto muitas vezes, mas nunca de perto e, decerto, nunca pessoalmente. Vira o perfil do lado direito, indistinto, num instantâneo tirado pelos fotógrafos do MI5 durante uma das visitas de Awad a Londres. O rosto desfocado capturado pelos serviços franceses durante uma escala em Marselha. A velha fotografia israelense do jovem Awad: atirador de pedras, perito no fabrico de cocktails Molotov, criança guerreira da Intifada que quase espancou até a morte um colono de Brooklyn com um pedaço do seu adorado Hebron. A foto israelense era de valor limitado, pois a Shin Bet apanhara-o primeiro e deixara-o quase irreconhecível com equimoses e inchaços.

Michael e a sua presa ficaram lado a lado no parapeito durante um longo momento, cada um com o olhar fito no seu ponto privado das águas em turbilhão do Canal, como amantes zangados sem nada mais a dizer. Michael virou-se e olhou mais uma vez para Awad. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. Por um instante, interrogou-se se o homem seria mesmo Muhammad Awad. As entediantes advertências de Wheaton ecoavam na mente de Michael como anúncios de embarque num aeroporto.

A Michael, o homem a seu lado parecia o irmão mais velho e mais próspero de Awad. Estava vestido para fazer negócios, com um dispendioso sobretudo cinzento e um terno de bom gosto, com duas fileiras de botões, visível por baixo. As feições tinham sido alteradas por cirurgia plástica. Como resultado, a aparência árabe fora apagada e tinha sido criado algo de origem nacional incerta: um espanhol, um francês ou talvez um grego. O nariz palestino proeminente desaparecera, tendo sido substituído pelo nariz estreito e aquilino de um aristocrata do norte de Itália. As maçãs do rosto tinham sido realçadas, a testa suavizada, o queixo tornado quadrado e os olhos castanhos eram agora de um verde-claro, graças a lentes de contato. Tinham-lhe sido arrancados os dentes molares, a fim de lhe dar as faces felinas de um supermodelo.

A vida de Muhammad Awad assemelhava-se a um panfleto da literatura revolucionária palestina radical. Michael conhecia-a bem, pois compilara a biografia e o currículo de Awad para o Centro, com a ajuda da Mossad, do Shin Bet, do MI6 e de metade dos serviços de segurança da Europa. O avô fora arrancado aos seus olivais e laranjais nos arredores de Jerusalém em 1948 e enviado para o exílio na Jordânia. Segundo a lenda de Awad, no ano seguinte morreu de desgosto, conservando ainda o neto as chaves da sua casa em Israel no bolso. Outro ramo do clã Awad foi massacrado em Deir Yassin. Em 1967, a família foi expulsa novamente, desta vez para campos de refugiados no Líbano. O pai de Awad nunca trabalhou, limitava-se a ficar sentado nos campos, a contar histórias sobre como tinha sido a sua vida em pequeno, cuidando das azeitonas e das laranjas com o pai. O paraíso perdido. Nos anos 80, o jovem Muhammad Awad foi doutrinado no Islão radical do sul do Líbano e em Beirute. Juntou-se ao Hezbollah. Juntou-se ao Hamas. Recebeu treino no Irã e na Síria: armas leves, tácticas de infiltração, contra-espionagem, fabrico de bombas. Quando Arafat apertou a mão de Rabin na Casa Branca, Awad sentiu-se ultrajado. Quando as forças de segurança de Arafat começaram a perseguir o Hamas, a mando de Israel, Awad jurou vingança. Juntamente com cinquenta dos melhores guerrilheiros do Hamas, formou a Espada de Gaza, o grupo terrorista palestino mais mortífero desde o Setembro Negro.

Rajadas de vento assolavam o convés. Awad levou a mão ao interior do casaco. Michael hesitou, mas resistiu à tentação de pegar na Browning.

- Calma, senhor Browning - disse Awad. - Só me apeteceu fumar. Além disso, se quisesse matá-lo, o senhor já estaria morto.

O inglês era perfeito, com um leve sotaque irreconhecível por um ouvido destreinado. Os cigarros que foi buscar ao bolso do peito eram Dunhill sem filtro.

- Sei que fuma Marlboro Lights, mas talvez estes sirvam, sim? A sua esposa fuma Benson and Hedges, não é? Chama-se Elizabeth Cannon-Osbourne e exerce advocacia numa daquelas firmas importantes de Washington. O senhor vive na N Street, em Georgetown. Está a ver, senhor Osbourne, temos os nossos próprios serviços secretos e de segurança. E recebemos muitas ajudas dos nossos amigos em Damasco e em Teerã, claro está.

Michael aceitou o Dunhill e virou-se a favor do vento para o acender. Quando Awad levantou a mão para acender o seu próprio cigarro, Michael viu o detonador na palma da mão direita.

- Já percebi, Ibrahim - disse Michael.

- Sei que foi uma demonstração entediante, mas só a fiz para enfatizar que não desejo qualquer mal nem a si, nem à sua família. O senhor não é meu inimigo e não tenho tempo nem recursos para lutar contra si. - Então para que os explosivos presos à cintura?

- Num negócio como este, é preciso tomar precauções.

- Nunca me pareceu do tipo suicida.

Awad sorriu e soprou o fumo pelas narinas esculpidas.

- Sempre acreditei que era mais útil a Alá vivo do que morto. Além disso, não temos falta de voluntários para missões de martírio. Creio que passou algum tempo no Líbano quando era criança. Sabe as condições em que vive o nosso povo. A opressão pode gerar loucura, senhor Osbourne. Há miúdos que preferem morrer a passar uma vida inteira acorrentados.

Michael olhou para o lado esquerdo e viu a mulher do comboio encostada ao parapeito, a seis metros de distância, a fumar, os olhos vagueando pelo ferry.

- Pensei que acreditassem que o lugar de uma mulher era em casa, oculta por um chador - comentou Michael, olhando para a moça.

- É uma pena, mas por vezes este negócio exige os serviços de uma mulher talentosa. Para os objetivos desta conversa, ela chama-se Odette. É palestina e muito boa a manejar a arma. Os velhos serviços de segurança da Alemanha Ocidental davam ordens para abater primeiro as mulheres. No caso de Odette, esse seria, de fato, um excelente conselho.

- Agora já nos apresentamos todos - disse Michael -, que tal irmos diretos ao assunto? Porque quis conversar?

- O ataque de ontem em Heathrow foi obra da Espada de Gaza. Organizamos o ataque para vingar os vossos ataques aéreos ridículos contra os nossos amigos na Líbia, na Síria e no Irã. Ontem o senhor foi o herói, senhor Osbourne. A sua presença foi coincidência, garanto-lhe. Sinceramente, quem me dera que os tivesse morto aos dois. Os homens detidos deixam-me sempre um pouco nervoso. - Na verdade, o interrogatório está a correr muito bem - afiançou Michael, incapaz de resistir à oportunidade de brincar com Awad.

- Ouvi dizer que estava a fornecer uma tremenda quantidade de informação sobre a vossa estrutura organizacional e tácticas.

- Boa tentativa - afirmou Awad. - A nossa organização é altamente compartimentada, por isso os estragos que ele pode fazer são mínimos.

- Continue a acreditar nisso, Ibrahim. Vai ajudá-lo a dormir à noite. Quer dizer que pediu para falar comigo para reivindicar a responsabilidade pelo ataque terrorista em Heathrow?

- Preferimos utilizar o termo ação militar.

- Não há nada de militar em matar civis desarmados. Isso é terrorismo, puro e simples.

- O terrorista de um homem é um lutador pela liberdade de outro, mas não vamos entrar agora nessa discussão tola. Não há tempo. Os vossos ataques aéreos às nossas bases foram ridículos, pois não existia qualquer justificação para eles. A Espada de Gaza não disparou o míssil que fez cair o Voo Zero-Zero-Dois. Michael desconfiava que assim fosse, mas não ia demonstrá-lo em frente de Muhammad Awad.

O corpo de Hassan Mahmoud, um dos seus melhores agentes operacionais, foi encontrado no barco do qual o míssil foi disparado - declarou Michael, a voz baixa mas trêmula de emoção. O tubo de lançamento estava ao lado do corpo. Foi recebida em Bruxelas uma reivindicação válida.

O rosto de Awad contraiu-se. Deu uma longa baforada no Dunhill e jogou a guimba na água. Michael desviou o olhar de Awad e viu um iate a motor seguindo o ferry, atrás de um véu de névoa.

- Hassan Mahmoud deixou de ser membro da Espada de Gaza há quase um ano. Era um maldito de um psicopata que não aceitava a disciplina de uma organização como a nossa. Descobrimos que conspirava em segredo para assassinar Arafat, por isso o expulsamos. Teve sorte em não ter sido morto. Pensando em retrospectiva, devíamos tê-lo feito.

Awad acendeu outro cigarro.

- Mahmoud mudou-se para o Cairo e juntou-se aos fundamentalistas egípcios, al-Gama'at Ismalyya. - Awad levou novamente a mão ao bolso e, desta vez, fez aparecer um envelope. Abriu-o, retirou do seu interior três fotografias e entregou-as a Michael. - Foram-me dadas por um amigo dentro dos serviços de segurança egípcios. Esse homem é Hassam Mahmoud. Se pesquisar esta fotografia nos seus arquivos, descobrirá que este homem é Eric Stoltenberg. Creio que reconhece o nome.

Michael reconhecia-o, de fato. Eric Stoltenberg trabalhara para o Ministério da Segurança Interna da Alemanha de Leste, melhor conhecido como o Stasi. Trabalhava para o Departamento XXII, que conduzia operações de apoio levadas a cabo pelo Stasi a movimentos de libertação nacional por todo o mundo. O seu portfólio incluía terroristas conhecidos, como Abu Nidal, Carlos, o Chacal, e grupos como o IRA e a ETA espanhola. Michael examinou as fotografias: dois homens sentados a uma mesa de tampo cromado, no Groppi's Café, um de cabelo e pele escuros, o outro louro e de pele clara, ambos com óculos-de-sol.

Michael estendeu as fotografias a Awad.

- Fique com elas - disse Awad. - São uma oferta minha.

- Elas não provam nada.

- Como provavelmente será do seu conhecimento, Eric Stoltenberg teve de arranjar trabalho noutro lado - continuou Awad, ignorando o comentário de Michael. - Depois da queda do Muro, os alemães queriam a sua cabeça porque ele ajudou os líbios a bombardear o clube noturno LaBelle, em Berlim Ocidental, em 1986. Desde aí que Stoltenberg tem vivido no estrangeiro, utilizando os antigos contatos da Stasi para fazer dinheiro seja de que maneira for: segurança, contrabando, esse tipo de coisas. Há pouco tempo, ganhou uma bela quantia e não escondeu isso lá muito bem.

O iate aproximara-se mais do ferry. Michael olhou para Awad.

- Mahmoud realizou o ataque e Stoltenberg deu uma ajuda com a logística: o Stinger, os barcos, a rota de fuga. - Michael brandiu as fotografias. - Isto é tudo mentira, pois tem medo que voltemos a atacar.

Awad sorriu com um charme considerável.

- Boa tentativa, senhor Osbourne, mas o senhor conhece a Espada de Gaza melhor do que isso. Sabe que não tínhamos qualquer motivo para fazer explodir um avião americano e sabe que outra pessoa o fez. No entanto, não tem provas. Se eu estivesse no seu lugar, procuraria mais perto de casa.

- Está a dizer que sabe quem é o culpado?

- Não, estou apenas a dizer que deve fazer a si mesmo algumas perguntas simples. Quem ganharia mais com isso? Quem teria motivos para fazer uma coisa daquelas e manter a sua identidade secreta? Os homens que o fizeram têm muito dinheiro, e recursos enormes ao seu dispor. Juro-lhe que não fomos nós. Se os Estados Unidos não retaliarem por causa de Heathrow, isto acaba aqui. Mas se voltarem a atingir-nos, não teremos outra alternativa a não ser ripostar. É essa a natureza do jogo.

O iate encontrava-se agora a cinquenta metros a bombordo do ferry. Michael viu dois homens no alto da ponte volante e um terceiro perto da proa. Olhou para a esquerda, na direção da mulher, e viu-a de olhos muito abertos, retirando uma pequena arma automática da mala. Deu meia volta e olhou para lá de Awad, para o parapeito a bombordo, e viu um homem muito bem constituído de cócoras, de arma em punho, a cabeça coberta por uma balaclava.

Michael agarrou Awad pelos ombros e gritou: - Abaixe-se!

Duas balas atravessaram o peito de Awad e cravaram-se no colete à prova de balas de Michael. Awad caiu sobre o convés. Michael meteu a mão no casaco para pegar a Browning, mas a moça palestina adiantou-se, arma apontada nos braços estendidos, as pernas afastadas. Disparou duas vezes com rapidez, derrubando o atirador encapuzado.

Awad jazia no convés e lançou um olhar irado a Michael, a boca cheia de sangue. Ergueu a mão direita, mostrando a Michael o detonador. Michael lançou-se pela porta para o interior da área de passageiros. Graham Seymour estava lá, de arma na mão. Michael agarrou-o pela camisa e puxou-o para o chão no momento em que a bomba explodia e estilhaços de vidro voaram por cima das suas cabeças. Durante alguns segundos, reinou um silêncio quase absoluto. Depois os feridos começaram a gemer e a gritar.

Michael levantou-se com dificuldade, os sapatos a escorregar sobre os estilhaços de vidro, e correu para o convés. A força da explosão desfizera Awad. Odette, a mulher palestina, jazia no convés, sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. O atirador encapuzado devia estar a usar um colete à prova de bala, pois conseguiu saltar por cima do parapeito e o iate avançava na sua direção. Encontrava-se um homem na ponte volante e dois no convés, à popa. Michael ergueu a Browning e abriu fogo sobre a embarcação. Os dois homens na popa pegaram em armas automáticas e responderam ao fogo. Michael lançou-se para o chão, em busca de abrigo.

Odette levantara-se e estava sentada, com as costas apoiadas no parapeito. Empunhava uma arma na mão esticada, apontada a Michael, o rosto muito calmo.

Michael rolou sobre o corpo quando ela disparou o primeiro tiro. A bala atingiu o convés, falhando-o. Ela disparou mais duas vezes enquanto Michael rastejava desesperadamente em busca de proteção. De repente, o corpo dela tremeu com violência e caiu para a frente. Graham Seymour saiu para o convés, de arma na mão, e ajoelhou-se ao lado dela. Olhou para Michael e abanou a cabeça.

Michael levantou-se e correu para o parapeito. O iate baloiçava nas águas agitadas. Os dois homens à popa estavam a retirar o atirador do mar. Michael ergueu a arma, mas era um tiro impossível. O avanço do ferry fazia com que estivesse já a cerca de cem metros do iate. Depois de o atirador estar a bordo, em segurança, o iate deu meia volta e desapareceu por detrás de uma cortina de nevoeiro.


NOVA YORK

 

 

O programa de fertilização in vitro no Cornell Medical Center possuía uma natureza de linha de montagem que fazia lembrar a Elizabeth os tribunais criminais de qualquer grande cidade. Sentou-se no banco de madeira lascado no corredor à porta da sala de operações, rodeada por outras doentes, enquanto os técnicos cirandavam por ali em silêncio, com batas e máscaras. Só Elizabeth estava sozinha. As outras quatro mulheres tinham os maridos a apertar-lhes as mãos e olhavam para Elizabeth como se ela fosse uma solteirona que decidira ter uma criança com o esperma que pedira emprestado ao marido da melhor amiga. Apoiou de propósito o queixo na mão esquerda para mostrar a aliança de casamento e um anel de noivado com um diamante de dois quilates. Imaginou o que as outras mulheres estariam a pensar. Será que o marido estava atrasado? Será que se divorciara há pouco tempo? Seria ele demasiado ocupado para estar com ela numa altura daquelas?

Elizabeth sentiu os olhos começarem a ficar marejados. Estava a utilizar cada pedacinho de autocontrole que tinha para não chorar. As portas duplas da sala de operações abriram-se. De lá saiu uma marquesa empurrada por dois técnicos, sobre a qual jazia uma mulher sedada. Outra foi levada lá para dentro, vinda do vestiário que existia ali perto, para tomar o seu lugar em cima da mesa. O marido foi enviado para uma sala pequena e escura com copos de plástico e revistas Playboy.

Na parede estava pendurada uma pequena televisão, silenciosamente sintonizada, sem som, na CNN. O ecrã mostrava uma reportagem ao vivo sobre um ferry soltando fumaçao no Canal da Mancha.

Não, pensou Elizabeth, não é possível. Levantou-se, foi até a televisão e aumentou o som.

- ... Sete pessoas mortas... Parece ser obra do grupo terrorista islâmico conhecido como a Espada de Gaza... Segundo ataque em dois dias... Acredita-se terem sido os responsáveis pelo terrível atentado terrorista de ontem no Aeroporto de Heathrow, em Londres...

Meu Deus, pensou, isto não pode estar acontecendo!

Voltou a sentar-se no banco e revirou a mala à procura do celular e da agenda telefônica. Michael dera-lhe um número especial a ser usado apenas em emergências extremas. Folheou as páginas desenfreadamente, sentindo os olhares das outras doentes, e encontrou o número.

Marcou-o, carregando com violência nas teclas, enquanto caminhava para um local mais reservado junto às escadas. Após um toque, uma calma voz masculina disse:

- Alô?

- Meu nome é Elizabeth Osbourne. Meu marido é Michael Osbourne.

Ouviu o som das teclas de um computador.

- Como conseguiu este número? - perguntou a voz.

- Michael me deu.

- Em que posso ajudar?

- Quero falar com meu marido.

- O seu número de telefone, por favor.

Elizabeth deu o número do celular e voltou a ouvir o som do teclado novamente.

- Alguém vai lhe telefonar.

Um dos técnicos apareceu nas escadas.

- A Sra. é a próxima, Sra. Osbourne. Precisamos que entre agora.

- Quero saber se ele estava naquele ferry-boat no Canal - disse Elizabeth ao homem com quem falava ao telefone:

- Alguém lhe telefonará - voltou a dizer a voz, exasperante com a falta de emoção. Era como falar com uma máquina.

- Que diabo, responda! Ele estava naquele barco?

- Alguém vai telefonar - repetiu.

- Lamento, Sra. Osbourne - insistiu o técnico -, mas agora precisa mesmo entrar.

- Está dizendo que ele está no barco?

- Por favor, desligue e mantenha este número desocupado.

Em seguida, a linha ficou muda.

Uma enfermeira acompanhou Elizabeth a um pequeno vestiário e deu-lhe uma bata esterilizada. Elizabeth agarrava com força no celular. - Receio que tenha de deixar isso aqui - avisou a enfermeira.

- Não posso - respondeu Elizabeth. - Estou à espera de um telefonema muito importante.

A enfermeira olhou para ela com uma expressão incrédula.

- Já vi muitas mulheres do Tipo-A neste programa, Sra. Osbourne, mas não há dúvida de que a Sra. bate todas as outras aos pontos. Vai sofrer uma intervenção cirúrgica ali dentro. Não é altura para fazer telefonemas de trabalho.

- Não é um telefonema de trabalho. É uma emergência.

- Não interessa. Daqui a três minutos, vai estar a dormir como um bebê.

Elizabeth vestiu a bata. Toca, raios partam. Toca!

Subiu para a marquesa e a enfermeira empurrou-a até a sala de cirurgia. A equipe operatória estava à espera. O seu médico baixou a máscara e ofereceu-lhe um sorriso agradável.

- Parece-me um pouco nervosa, Elizabeth. Está tudo bem?

- Estou ótima, doutor Melman. - Ainda bem. Então vamos começar.

Acenou com a cabeça para o anestesista e, segundos mais tarde, Elizabeth sentia-se a flutuar para um sono agradável.

CALAIS, FRANÇA

O porto fervilhava de luzes de emergência azuis e vermelhas à medida que o ferry se aproximava da costa francesa. Michael estava de pé na ponte, rodeado pelo capitão e pelos oficiais, a fumar um cigarro atrás do outro, enquanto via a linha da costa avizinhar-se. Ora sentia um frio de morrer, ora um calor de abrasar. O peito doía-lhe muito, como se alguém muito forte lhe tivesse dado um par de murros. Graham Seymour estava do outro lado da ponte, rodeado pelo seu próprio grupo de elementos da tripulação. Estavam mais ou menos detidos. Michael dissera ao capitão que ele e Graham eram agentes dos Estados Unidos e da Inglaterra e que alguém de Londres estaria à espera do ferry em Calais, onde tudo lhes seria explicado. O capitão ficou desconfiado, tal como Michael ficaria no seu lugar.

Michael fechou os olhos e o filme desenrolou-se mais uma vez. Assistiu a tudo como se fossem imagens de um noticiário, ele próprio como um ator em palco. Viu o atirador aproximar-se e Odette à procura da arma, os olhos alucinados.

O homem de balaclava com a arma não pertencia à Espada de Gaza e Muhammad Awad não era o alvo. O alvo era Michael. Awad limitara-se a estar no caminho. Voltou a fechar os olhos e pensou nos dois homens dentro do iate. Lentamente, os rostos foram-se tornando mais nítidos, como se estivesse a focá-los com a lente de longo alcance de uma câmara de vigilância. Viu os homens dispararem contra si a partir do convés de ré. Tinha a sensação incômoda de já os ter visto de relance noutro lado qualquer: num restaurante, numa festa ou na farmácia em

Oxford Street. Ou teria sido numa estação de gasolina na M40 em Oxfordshire, a fingir estar a encher o pneu traseiro de um monovolume Ford branco? O ferry atracou em Calais. Michael e Seymour foram guiados para longe das equipes de televisão e dos jornalistas aos gritos até um gabinete no interior do terminal. Wheaton e uma dúzia de oficiais diplomáticos e da Agência aguardavam-nos. Tinham vindo de Londres de helicóptero, cortesia da Marinha Real.

- Quem é este? - perguntou Wheaton, olhando para Graham, que se esquecera do estojo da guitarra mas assemelhava-se, ainda assim, a um estudante maduro, com as suas calças de ganga e a blusa Venice Beach.

Seymour sorriu e estendeu a mão.

- Graham Seymour, SIS.

- Graham quem, o quê? - perguntou Wheaton, incrédulo.

- Ouviu-o bem - confirmou Michael. - É um amigo meu. Por coincidência, encontrava-se a bordo do ferry.

- Mentiras!

- Bem, valeu a pena tentar, Michael - disse Graham.

- Comece a falar, vamos!

- Vá bardamerda - exclamou Michael, despindo a blusa e revelando duas balas cravadas no colete. - Porque não voltamos para Londres e fazemos lá o relatório?

- sugeriu, já mais calmo.

- Porque os franceses querem falar com você primeiro.

- Oh, meu Deus - suspirou Graham. - Eu não posso falar com os malditos dos franciús.

- Bem, uma vez que acaba de chegar à jurisdição deles, creio que vai ter de o fazer.

- O que é que lhes vamos dizer? - perguntou Michael.

- A verdade - respondeu Wheaton. - E rezar para que tenham o bom senso de ficarem de bico calado.

Em Nova York, Elizabeth estava deitada, a dormir na sala de recobro, quando o celular tocou suavemente. Uma enfermeira deu um passo em frente e estava prestes a desligá-lo quando Elizabeth acordou e disse:

- Não, espere. .-} Colocou o celular de encontro ao ouvido, de olhos fechados, e atendeu.

- Estou?

- Elizabeth - disse a voz. - É a Elizabeth Osbourne? - Sim - crocitou" ela, a voz rouca devido à anestesia.

- Daqui fala Adrian Carter. - Adrian, onde é que ele está?

- Ele está bem.'Está a regressar a Londres neste momento.

- A regressar a Londres? Onde é que esteve?

Na linha fez-se silêncio. Elizabeth estava agora completamente desperta. - Raios partam, Adrian - exclamou -, ele estava naquele ferry? Carter hesitou e depois respondeu.

- Sim, Elizabeth. Ele estava numa missão e alguma coisa correu mal. Ficaremos a saber mais pormenores quando ele chegar à embaixada de Londres. - Está ferido?

Ele está ótimo.

- Graças a Deus.

- Telefono-te quando souber mais.

Ao anoitecer, o helicóptero pousou num heliporto da Thameside em West Londres. Dois carros da embaixada aguardavam-nos. Wheaton e Michael entraram no primeiro, os autômatos de Wheaton seguiram no segundo. Viraram para Vauxhall Bridge e passaram pelo feio edifício moderno que funcionava como sede do MI6. Lá se foi a toca disfarçada de George Smiley em Cambridge Circus, pensou Michael. Agora, a sede dos Serviços chegara mesmo a aparecer num filme do James Bond.

Daqui a alguns minutos, o seu amigo Graham Seymour vai ter uma recepção agreste naquele edifício - informou Wheaton. - Falei com o Diretor-Geral de Calais. Nem é preciso dizer que ele não ficou satisfeito. Também me deu uma notícia que terá de esperar até estarmos atrás de portas fechadas. Michael ignorou o comentário. Wheaton parecia sempre retirar demasiado prazer da infelicidade profissional dos colegas. Subira através do direktorado soviético, quando o pai de Michael era um alto comando em Langley, e trabalhara em Istambul e Roma. A sua tarefa era recrutar oficiais do KGB e diplomatas soviéticos, mas revelou-se de tal forma incapaz que depressa recebeu uma série de relatórios sobre a sua inaptidão deplorável, um deles redigido pelo pai de Michael. Wheaton foi transferido para a sede, onde prosperou na atmosfera falsa e oligárquica de Langley. Michael sabia que Wheaton lhe guardava rancor por causa do pai, ainda que o péssimo relatório de aptidão provavelmente lhe tivesse acabado por salvar a carreira. Chegaram a Grosvenor Square. Wheaton e Michael entraram na embaixada lado a lado, com os homens de Wheaton no seu encalço. Michael tinha a estranha sensação de estar preso. Wheaton dirigiu-se de imediato à sala segura de teleconferências. Assim que Wheaton e Michael se sentaram nas sumptuosas cadeiras de pele preta, Carter e Monica Tyler apareceram no ecrã.

- Fico contente por ver que está bem, Michael - disse Monica.

- Passou uns dias bastante desgastantes. Temos muito que falar, por isso vamos começar pela pergunta óbvia. O que correu mal?

Durante dez minutos, Michael relatou cuidadosamente o que acontecera a bordo do ferry: Awad, a moça palestina chamada Odette, o iate e o atirador. Descreveu o tiroteio, as balas a atravessarem o corpo de Awad, cravando-se no seu colete. Descreveu a explosão e a forma como os homens no barco cobriram a fuga do atirador, com disparos. Por fim, descreveu a última batalha com Odette e como Graham Seymour a matara a tiro.

- Para começar, o que estava Graham Seymour, um agente do MI-Seis, a fazer naquele barco?

Michael sabia que, naquela altura do campeonato, pouco ou nada poderia ganhar ao mentir.

- É meu amigo. Conheço-o há muito tempo. Quis alguém de confiança a proteger-me a retaguarda.

Isso não interessa - contrapôs Monica, com uma paciência experiente. Monica, regra geral, não gostava de operações de campo, nem dos agentes que as realizavam. - O Michael incluiu um agente dos serviços de outro país sem a autorização dos seus superiores na sede.

- Ele trabalha para os ingleses, não para os iranianos. E se ele não estivesse lá, neste momento eu estaria morto.

Monica franziu o cenho de irritação, o que tornou claro que não iria deixar-se levar por argumentos baseados na emoção.

- Se estava tão preocupado com a sua segurança - disse ela, num tom de voz inexpressivo -, devia ter-nos pedido reforços a nós.

- Não quis ir para lá seguido de um pelotão, que Awad e a sua equipe pudessem detectar a quilômetros de distância. - Essa era apenas parte da verdade. - Queria o menor número possível de pessoas de Londres e da sede envolvidas na operação. Trabalhara no terreno, trabalhara na sede e sabia que Langley vertia como uma peneira.

- Parece que Awad e a respectiva equipe identificaram o seu bom amigo Graham Seymour - declarou Monica com um tom de desdém.

- Porque diz isso? - quis saber Michael. Wheaton remexeu-se desconfortavelmente na cadeira e Carter, a seis mil e quatrocentos quilômetros de distância, em Langley, fez a mesma coisa. Monica Tyler não aceitava bem perguntas do pessoal, mesmo quando se tratava de agentes superiores, como Michael. Tinha a certeza da convicção que resulta da ingenuidade. - Por que outra razão um dos seus atiradores tentaria matá-lo? E por que outra razão Awad faria explodir uma bomba presa ao corpo?

- Está a partir do princípio de que o atirador pertencia à Espada de Gaza. Penso que essa suposição está errada. O atirador não fez qualquer tentativa de poupar a vida de Awad. Ele tentou matar-me eliminando Awad primeiro. A mulher esteve atrás de mim o tempo todo. Se quisessem matar-me, ela poderia tê-lo feito e eu nem sequer teria tempo de agir. E quando o tiroteio começou, ela foi atrás do atirador primeiro, não de mim.

- Mas acabou por ir atrás de si.

- Sim, mas só depois de Awad detonar os explosivos. Acho que ela pensou que o atirador era dos nossos.

- Viu o rosto dele?

- Não, tinha a cabeça coberta por uma balaclava.

Monica inclinou-se e segredou ao ouvido de Carter. Este levantou as mãos e passou-as pela cabeça e pelo rosto. Michael percebeu que estava a explicar a Monica o que era uma balaclava. Monica ficou em silêncio por alguns instantes, observando as mãos, e depois continuou.

- O que lhe disse Awad antes de os problemas começarem? Michael narrou a conversa, não omitindo qualquer pormenor.

Fora treinado para memorizar grandes quantidades de informação e, quando trabalhava no campo, possuía uma capacidade lendária para reproduzir transcrições quase textuais de encontros com agentes. Carter costumava chamar-lhe "o Dictafone humano". Michael contou-lhes tudo o que Awad dissera, sobre Heathrow, sobre os ataques aéreos, sobre a expulsão de Hassan Mahmoud do grupo, com uma omissão notória. Não lhes falou nas fotografias do encontro de Mahmoud com Eric Stoltenberg, no Cairo.

- Acha que ele estava a dizer a verdade? - perguntou Monica.

- Sim, acho que sim - respondeu Michael, sem qualquer hesitação. - Sempre fui céptico no que diz respeito à reivindicação da Espada de Gaza. Não fiz segredo disso. Mas se não foi a Espada de Gaza, quem foi? E por que fariam uma reivindicação falsa?

E quem diabo tentou matar Muhammad Awad e a mim, a bordo daquele ferry?

Carter e Monica conferenciaram baixinho por um instante. Wheaton lançou a

Michael um olhar professoral por cima dos óculos de leitura em forma de meia-lua, como se Michael acabasse de dar a resposta errada a uma pergunta crucial num exame oral.

- Há outra coisa sobre a qual temos de conversar com você, Michael - disse Monica. Em seguida, acrescentou muito séria: - É de natureza muito grave. - Algo no tom de voz enervou Michael de imediato.

- Esta manhã, um agente do SIS britânico fez uma visita a um desertor chamado Ivan Drozdov. Parece que Drozdov faltou à apresentação semanal, algo que nunca faz, e o SIS ficou preocupado. O agente arrombou a casa dele e encontrou-o morto. A tiro. O SIS e a polícia local deram logo início às investigações. Ontem, Drozdov foi visto num café local com um homem que condiz com a sua descrição. O SIS gostaria de saber se esteve com ele ontem. E, para dizer a verdade, nós também.

- Sabe que a resposta é sim, porque me colocou sob vigilância desde que deixei Londres até regressar a Heathrow.

- Se estava sob vigilância, não foi ordenada por mim, nem por ninguém na sede - ripostou Monica.

- Não foi a Estação de Londres - garantiu Wheaton.

- Por que raios se foi encontrar com Drozdov sem a nossa autorização, ou a autorização do SIS? - inquiriu Monica. - E já agora, sobre o que falaram?

- Era um assunto pessoal - respondeu Michael. No monitor, via Adrian Carter olhar para o céu, soprando através dos lábios franzidos. - Drozdov trabalhou para o Departamento Cinco do Primeiro Direktorado do KGB, os assassinos. Tenho trabalhado em algo há vários meses e quis discutir o assunto com ele. Garanto-lhe que estava vivo e bem de saúde quando saí de lá.

- Fico satisfeita por achar que isso é divertido, Michael, porque nós não pensamos que assim seja - retorquiu Monica. - Quero-o no primeiro voo de regresso a Washington amanhã de manhã. Considere-se de licença administrativa enquanto aguarda uma investigação de sua conduta nesta questão.

A tela ficou vazia. Sem dizer uma palavra, Wheaton estendeu a mão. Michael enfiou a mão por baixo da camisa e entregou-lhe a Browning carregada. Wheaton quisera que Michael permanecesse na casa de segurança durante a sua última noite em Londres, mas Michael dissera-lhe em termos bastante claros para se ir lixar e regressara ao pequeno hotel em Knightsbridge, com vista para o parque. No início do serão, ao sair para o passeio molhado pela chuva, avistou de imediato dois sentinelas de Wheaton dormitando num Rover estacionado. Ao fazer compras para Elizabeth na Harrods, localizou mais dois.

Ao caminhar para o sul, em Sloane Street, divisou um quinto espião a pé.

Também havia dois homens num Ford, desta vez azul-escuro.

Quem são vocês? Quem os contratou? Se não foi Wheaton, quem foi? Não foi difícil despistá-los, ainda que fossem profissionais. Michael estava em vantagem, pois treinara com eles na Quinta e conhecia as suas tácticas.

Durante uma hora, deambulou pelo West End sob a chuva leve, a pé, de ônibus, de táxi, de metro, através de Berkeley Square, Oxford Street, Bond Street, Leicester Square e dos subúrbios do Soho. Acabou no apartamento de Sarah. O take-away libanês transformara-se em vegetariano, um monumento a Sarah, talvez. Bob Marley vibrava através de uma janela semiaberta, com cortinados sujos. A janela de Sarah. Provavelmente, os cortinados de Sarah.

Sarah Randolph cometeu um erro terrível, dissera-lhe Drozdov. Apaixonou-se pela vítima.

Ela fora uma mentira, um mito criado pelos seus inimigos, tragicamente heróica na sua ingenuidade sem limites. Ela traíra-o, mas não era real. Não podia amá-la, nem odiá-la. Só sentia pena dela.

Os sentinelas de Wheaton há muito que tinham desaparecido, por isso apanhou um táxi para Belgravia. Os homens de campo, tal como os ladrões, desenvolvem formas clandestinas de penetrar na sua própria casa para o dia inevitável em que sejam visitados por uma vida inteira de traição. Michael conhecia o método de Graham Seymour: através de uma cavalariça e por cima do muro caiado do jardim, com a ajuda de uma escada de corda deixada para essas ocasiões. Michael usava agora a escada para trepar o muro e caiu pela escuridão, indo aterrar na varanda de pedra de Graham. Este respondeu à pequena pancada nas portas de correr armado com uma das facas de cozinha de Helen, fabricadas na Suíça. Falaram no primeiro andar, na sala de visitas, o casaco ensopado de Michael a fumegar junto à lareira a gás, a aparelhagem alemã de Graham a troar Rachmaninoff para abafar a conversa.

Conversaram durante quase uma hora. Falaram sobre o que acontecera no ferry. Falaram sobre Sarah. Sobre Colin Yardley e Astrid Vogel, e o homem na escuridão que disparou três balas contra o rosto de Yardley. Sobre os homens no iate e no Ford: o monovolume branco e agora o azul. Michael precisava de dinheiro. Helen era rica e Graham tinha sempre guardado no cofre um ou dois milhares para emergências. Passaportes não eram problema.

Ao longo dos anos, Michael utilizara os seus contatos nos serviços aliados para reunir uma coleção de documentos de viagem falsos. Podia viajar como francês ou espanhol, grego ou alemão. Até como israelense. Telefona a Elizabeth, pediu Michael. Diz-lhe que lhe explico tudo quando voltar. Cuidado com o que dizes ao telefone. Não lhe digas para onde vou, nem o que ando a fazer. Diz-lhe que a amo. Diz-lhe que tenha cuidado. Comeram penne puttanesca e salada, e beberam vinho tinto. Helen e Graham conversaram como se Michael não estivesse ali. Michael sentia-se como se assistisse a um drama horrível na televisão. Devorou dois pratos de massa, que estava surpreendentemente boa.

Depois do jantar, Graham anunciou de repente que queria ver um filme novo que estava no cinema de Leicester Square. Helen concordou de forma entusiástica. Arrumaram a loiça e saíram. Na sala de visitas às escuras, Michael viu-os entrar para o BMW de Graham e arrancarem. Ouviu um motor de carro a ser ligado algures na escuridão. Michael observou-o enquanto deslizava para a rua silenciosa, com os faróis apagados.

Saiu pelas portas de correr, atravessou o jardim, trepou o muro e desceu pelo outro lado, pela escada de corda. Apanhou um táxi em King's Road e foi para a Waterloo Station. Comprou um bilhete para Roma com o dinheiro do cofre de Graham. O comboio partia dali a uma hora. Wheaton, se fosse inteligente, estaria a vigiar os aeroportos e as estações de comboio.

Michael comprou um chapéu impermeável num quiosque e puxou-o para a testa. Saiu e esperou à chuva. Cinco minutos antes da hora de o comboio partir, voltou a entrar na estação e dirigiu-se rapidamente à plataforma. Subiu para o comboio e depressa encontrou um compartimento vazio. Ficou sentado sozinho na semiobscuridade durante muito tempo, a escutar o barulho rítmico do comboio, a olhar para o seu reflexo no vidro, a pensar em tudo. Depois, quando o comboio saiu do túnel do Canal e avançou a toda a velocidade para sul, atravessando a França em direção a Paris, mergulhou num sono leve e sem sonhos.

LONDRES

O Diretor via as notícias das dez na ITN à medida que o Jaguar metalizado com motorista avançava a ronronar através das ruas do West End. Jantara mal no seu clube Mayfair (borrego demasiado passado), onde os restantes membros acreditavam que era um capitalista internacional aventureiro e bem sucedido, o que, até certo ponto, era uma descrição exata do seu trabalho. Meia dúzia desconfiava que, outrora, fizera um ou dois biscates para os Serviços Secretos. Um ou dois sabiam a verdade: que, na verdade, fora o diretor-geral, o lendário C, dos Serviços Secretos. Graças a Deus que lá trabalhara nos velhos tempos, quando a Agência oficialmente não existia e os diretores tinham o bom senso de manter os nomes e as fotografias afastados dos jornais. Imaginem só, o chefe dos Serviços a conceder uma entrevista ao The Guardian: uma heresia, uma loucura. O Diretor acreditava que os espiões e os serviços secretos se assemelhavam muito a ratazanas e a baratas. É melhor fingir que não existem. Ajuda uma sociedade livre a dormir melhor à noite.

O ataque ao ferry que fazia a travessia Dover-Calais dominava as notícias. O Diretor estava furioso, embora o rosto tranquilo não revelasse nada a não ser insolência enfadada. Após uma vida inteira nas sombras, a sua dissimulação era uma arte. Era estreito de cabeça e de ancas, com cabelo cor de arenito a ficar grisalho e mãos brancas de cirurgião que pareciam estar sempre a segurar um cigarro aceso de um comprimento adequado para um anúncio numa revista cara. Os olhos tinham a cor da água do mar no Inverno, a boca era pequena e cruel.

Vivia sozinho 250 em St. John's Wood com um rapaz da Sociedade que o protegia e uma moça bonita que tratava da papelada e cuidava dele. Nunca casara, não tinha filhos, nem familiares conhecidos. Os engraçadinhos nos Serviços costumavam dizer que tinha sido encontrado no início da meia-idade, dentro de um cesto, nas margens do Tamisa, vestido com um terno de riscas brancas, gravata Guarás e sapatos feitos à mão.

Desligou a televisão e olhou pela janela, observando a noite londrina passar. Não havia nada que detestasse mais do que o fracasso, nem mesmo a traição. Esta exigia inteligência e inexorabilidade, o fracasso apenas estupidez ou falta de concentração. Tinham sido dados todos os recursos necessários aos homens que enviara naquela missão no ferry para garantir o sucesso e, contudo, eles tinham falhado. Michael Osbourne era obviamente um adversário digno de respeito, um homem de talento, inteligência e engenho. Osbourne era bom, o seu assassino teria de ser melhor.

O carro parou à porta da casa. O motorista, um antigo membro de elite dos

Comandos Especiais Aerotransportados, acompanhou o Diretor até a porta, esperando que este entrasse. A moça estava à espera, uma jamaicana escultural cor de café chamada Daphne. Trazia vestida uma blusa branca, desabotoada até a elevação dos seios fartos, e uma saia preta que lhe dava pelo meio das coxas nuas. O cabelo castanho-alourado caía-lhe sobre os ombros quadrados.

- O senhor Elliott está ao telefone do Colorado, senhor - informou ela. Havia uma nota do ritmo melodioso da índia Oriental na sua voz, tendo o Diretor gasto milhares de libras em terapia da fala para o eliminar. Eram permitidos nomes dentro da residência Mayfair, pois era revistada regularmente em busca de escutas, e as paredes eram impermeáveis a microfones direcionais exteriores.

O Diretor foi para o escritório e carregou na luz intermitente do seu telefone preto multilinhas. Daphne entrou, despejou um centímetro de scotch de trinta anos para dentro de um copo e entregou-lho. Permaneceu no escritório enquanto a conversa decorria, pois não existiam segredos entre eles.

- O que é que correu mal? - perguntou Elliott.

O senhor Awad trouxe proteção, tal como o senhor Osbourne. E, ainda por cima, ele é mesmo bom.

- Tem de ser eliminado, sobretudo depois do que ficou a saber esta manhã, naquele ferry.

- Sei muito bem disso, senhor Elliott.

- Quando tenciona realizar outro ataque?

- O mais depressa possível - respondeu o Diretor, interrompendo-se para um gole de scotch. - Mas quero fazer uma substituição. O Osbourne é bastante bom. Assim sendo, o adversário tem de ser excelente. Gostaria de atribuir a tarefa ao Outubro.

- O preço dele é muito elevado.

- Tal como o que está em jogo neste ponto dos acontecimentos, senhor Elliott. Não me parece que seja altura para arengar sobre um ou dois milhões a mais, não acha?

- Não, tem razão.

- Vou preparar um dossiê detalhado sobre Osbourne e enviá-lo ao Outubro, por correio eletrônico codificado. Se ele optar por aceitar o alvo, o jogo vai recomeçar, e prevejo que o senhor Osbourne seja eliminado em breve.

- Espero que sim - afirmou Elliott.

- Conte com isso, senhor Elliott. Boa noite.

O Diretor pousou o receptor. Daphne colocou-se atrás dele e esfregou-lhe os ombros.

- Vai precisar de mais alguma coisa esta noite, senhor?

- Não, Daphne, vou apenas tratar de alguma papelada e depois vou deitar-me. - Muito bem, senhor - disse ela e saiu.

O Diretor trabalhou no escritório durante vinte minutos, terminando o scotch e vendo as notícias americanas sobre a explosão no ferry através do sistema de satélite. Desligou a televisão e subiu as escadas, dirigindo-se à suíte. Daphne encontrava-se deitada de costas na cama, blusa desabotoada, uma perna comprida cruzada sobre a outra, enrolando uma madeixa de cabelo no indicador fino.

O Diretor despiu-se silenciosamente e vestiu um roupão de seda. Alguns homens abastados divertiam-se com cavalos, ou carros. O Diretor tinha a sua Daphne. Ela despira-se. As roupas estavam a seu lado, na cama. Acariciava gentilmente os mamilos, a barriga, o alto das coxas. Daphne era uma provocadora, até consigo mesma. O Diretor entrou para a cama e fez deslizar um dedo pelo pescoço da jovem.

- Alguma coisa, meu amor? - perguntou ela.

- Não, minha flor.

A capacidade do Diretor para fazer amor com uma mulher encontrava-se gravemente comprometida, consequência, pensava ele, de uma vida inteira de mentiras e traição. Ela fez deslizar a mão por baixo do roupão, tomando-o entre as suas mãos compridas.

- Nada?

- Receio que não, meu amor.

- Que pena - disse ela. - Posso?

- Se quiser.

- O senhor é um tonto. Quer ajudar ou só ver?

- Só ver - respondeu ele, acendendo um cigarro.

Meteu a mão entre as coxas. Arquejou com força, lançou a cabeça para trás e fechou os olhos. Durante os dez minutos seguintes, tomou-a da única forma possível, com os olhos, mas, passado algum tempo, a sua mente começou a vaguear. Pensou em Michael Osbourne. No assassínio fracassado no ferry. No homem chamado Outubro. Seria uma luta interessante. Um deles não iria sobreviver. Se fosse Osbourne a morrer, a Sociedade subsistiria e Mitchell Elliott ganharia os seus bilhões. Se fosse Outubro... O Diretor estremeceu com esse pensamento. Trabalhara muito e durante demasiado tempo para que tudo ruísse. Estava demasiado em jogo, investira-se demasiado, para que agora terminasse em fracasso.

Voltou a fitar Daphne e encontrou os seus olhos castanhos fixos nele. Tinha o olhar direto e aberto de uma criança.

- Esteve longe durante alguns minutos - comentou.

A surpresa atravessou-lhe o rosto. Daphne despojava-o de todas as suas velhas defesas.

- Eu também olho, sabe. Quero saber se estou a fazê-lo feliz.

- Fazes-me muito feliz.

- Está tudo bem, amor? ?

- Está tudo ótimo.

- Tem certeza?

- Sim, certeza absoluta.

 

 

 

 


CONTINUA