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A MARCHA
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Capítulo 16

LONDRES

 

A residência oficial do embaixador norte-americano na Grã-Bretanha é Winfield House, uma mansão georgiana de tijolo vermelho ocupando quinhentos metros quadrados, no centro de Regent's Park. Barbara Hutton, a herdeira da fortuna dos Woolworth, construiu a casa em 1934, quando veio para Londres com o marido, o aristocrata dinamarquês conde Haugwitz-Reventlow. Divorciou-se do conde em 1938 e regressou a casa, aos Estados Unidos, onde se casou com Cary Grant. A seguir à Segunda Guerra Mundial, vendeu Winfield House ao governo norte-americano, pela quantia de um dólar, e o embaixador Winthrop Aldrich instalou-se ali em 1955.

Douglas Cannon já tinha ficado em Winfield House por duas vezes, durante viagens oficiais a Londres, e no entanto, ao instalar-se nesse primeiro dia, sentiu-se novamente assoberbado com a elegância e o tamanho da mansão. Ao inspeccionar as grandes e airosas salas do rés-do-chão, quase não conseguia acreditar que Barbara Hutton tivesse construído Winfield House como uma casa particular.

Quando Michael chegou, dois dias mais tarde, Douglas conduziu-o pelas várias e vastas divisões, mostrando-lhe com orgulho as mobílias e decorações, como se tivesse sido ele a escolhê-las e a pagá-las todas. A sua divisão preferida era a Sala Verde, um espaço grande e luminoso com vista para o jardim lateral, com papel de parede chinês pintado à mão e meticulosamente pilhado às paredes de um castelo irlandês. Ali, podia sentar-se junto à lareira, por baixo dos espelhos gigantes Chippendale, e observar os pavões e coelhos a vaguear pelos pequenos vales arborizados e pelos salgueiros do jardim.

A enorme casa era tão silenciosa, que, na manhã da cerimónia de apresentação de credenciais por parte de Douglas, Michael acordou com o bater longínquo do Big Ben.

Enquanto punha uma gravata branca e um fraque, à janela do quarto de hóspedes no andar de cima, observou uma raposa-vermelha a perseguir um cisne branco pelo relvado meio iluminado.

Seguiram para a embaixada no carro oficial de Douglas, escoltados por uma equipa de guarda-costas da Divisão Especial. Um pouco antes das onze horas, o barulho de cascos de cavalos ressoava pela Grosvenor Square. Michael olhou pela janela e avistou o chefe do corpo diplomático, a chegar na primeira de três viaturas. O pessoal da embaixada irrompeu em aplausos quando Douglas saiu do carro e passou pelo meio de duas filas de guardas da marinha.

Douglas seguiu na primeira viatura, ao lado do chefe do corpo diplomático. Michael ia na terceira, com três membros importantes do pessoal da embaixada. Um deles era o chefe do posto de Londres da CIA, David Wheaton. Wheaton era um anglófilo empedernido; com o seu casaco de fraque e um cabelo cinzento e oleoso, parecia estar numa audição para um papel em Keviver o Passado em Brideshead. Wheaton nunca tinha escondido o facto de detestar Michael. Muitos anos antes, Wheaton trabalhara para o pai de Michael, no recrutamento de espiões russos. O pai de Michael achava que Wheaton não possuía as capacidades sociais nem a esperteza de rua necessárias para ser um bom orientador de agentes e, por isso, produziu um relatório devastador sobre as suas aptidões e que quase fez descarrilar a sua carreira.

A CIA resolveu dar a Wheaton outra oportunidade; homens como ele, homens com a linhagem certa, a educação certa e os rabis certos, tinham sempre uma segunda oportunidade.

Foi despachado para o Sul de África, para desempenhar as funções de chefe do posto de Luanda. Passados seis meses, mandaram-no parar num posto de controlo policial, a caminho de uma reunião com um agente. No porta-luvas, encontrava-se o seu "livro preto" — os nomes, procedimentos de contacto e planos de pagamento para todos os elementos da CIA em Angola. Wheaton foi declarado persona non grata e uma rede inteira de agentes foi presa, torturada e executada. A perda de catorze homens nunca pareceu pesar muito na consciência de Wheaton. No relatório que fez do desastre, culpou os seus agentes por não terem sido capazes de aguentar o interrogatório a que foram submetidos.

Por fim, a agência tirou Wheaton do serviço clandestino e destacou-o para o gabinete para a União Soviética, na sede, onde se deu às mil maravilhas com a burocracia feita de maledicência e cachimbadas. Londres foi como uma volta de honra após uma muito pouco notável — e às vezes desastrosa — carreira. Comandava o posto como se fosse o seu feudo privado. Michael tinha ouvido rumores acerca de uma rebelião nas fileiras. Na CIA, a abreviatura de chefe de estação é COS[27], mas, entre os agentes de Londres, COS era a abreviatura de COckSucker[28].

— Olha, olha, o herói de Heathrow — disse Wheaton quando Michael entrou na viatura e se sentou.

Durante o agora infame ataque a Heathrow, Michael tinha subjugado um homem armado e matado outro. A CIA concedeu-lhe uma citação por bravura e Wheaton nunca o perdoara por isso.

— Como é que tens passado, David?

— Pensava que te tinhas reformado.

— E tinha, mas senti a tua falta e, por isso, voltei.

— Precisamos de falar.

— Estou ansioso por isso.

— Tenho a certeza que sim.

Turistas e peões iam abrindo a boca de espanto à medida que as viaturas avançavam pelo trânsito cerrado do meio-dia, da Grosvenor Square até Park Lane, contornando Hyde Park Corner e seguindo por Constitution Hill. Pareciam desapontados por se tratar apenas de um grupo de diplomatas de meia-idade e não de um qualquer membro excitante da família real.

Quando as viaturas se aproximaram dos portões do Palácio de Buckingham, uma pequena banda — a mesma banda que acompanha o render da guarda — irrompeu numa interpretação enérgica de "Yankee Doodle Dandy"[29]. Douglas saiu da sua viatura e foi cumprimentado pelo secretário particular da rainha e pelo chefe de protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Levaram-no para dentro do palácio, fazendo-o subir a grande escadaria e atravessar uma série de salas douradas, que faziam Winfield House parecer uma propriedade a necessitar de obras de manutenção. Michael e os membros principais do pessoal da embaixada seguiam-no alguns passos atrás. Por fim, chegaram a um conjunto de portas duplas. Esperaram um momento, até que, algures, alguém fez um sinal secreto e as portas se abriram.

A rainha Isabel II estava parada no meio de uma sala cavernosa. Usava um fato azul-escuro, com a sempre presente bolsa pendurada ao pulso. O subsecretário permanente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Sir Patrick Wright, aguardava ao seu lado. Douglas percorreu toda a sala, um pouco depressa de mais, e fez uma vénia, de forma correcta, à frente da rainha. Tirou o envelope que continha as suas credenciais e leu a frase prevista:

— Tenho a honra, Vossa Majestade, de apresentar a carta a pedir a exoneração do meu antecessor e a minha carta credencial.

A rainha Isabel pegou no envelope e entregou-o com indiferença a Sir Patrick, sem olhar para o que lá estava dentro.

— Fico muito satisfeita por o presidente Beckwith ter tido a clarividência e o bom senso de nomear alguém com o seu prestígio para Londres, numa altura destas — disse a rainha. — Se me permite a franqueza, senhor embaixador Cannon, não entendo porque é que os vossos presidentes nomeiam frequentemente os seus apoiantes políticos para Londres, em vez de profissionais como o senhor.

— Bem, Vossa Majestade, eu também não sou um profissional, sou um político no meu íntimo. Que eu tenha conhecimento, houve apenas um profissional dos Negócios Estrangeiros a exercer o cargo de embaixador em Londres: Raymond Seitz, que representava o presidente Bush.

— Era um homem adorável — respondeu a rainha. — Mas estamos ansiosos por trabalhar consigo. O senhor tem muita experiência no que diz respeito aos assuntos internacionais.

Se bem me lembro, foi presidente daquela comissão do Senado... oh, Patrick, ajude-me...

— A Comissão de Relações Externas do Senado — interveio Sir Patrick.

— Sim, fui.

— Bom, a situação na Irlanda do Norte encontra-se neste momento muito tensa e nós precisamos do apoio do seu governo para conseguirmos fazer com que este processo de paz chegue ao fim.

— Estou ansioso por ser seu parceiro, Majestade.

— Tal como eu — respondeu a rainha.

Douglas conseguia sentir que a rainha estava inquieta; a conversa tinha chegado à sua conclusão natural.

— Posso apresentar-lhe os principais membros do meu pessoal, Vossa Majestade?

A rainha acenou com a cabeça. As portas abriram-se e dez diplomatas entraram a passos largos na sala. Douglas apresentou-os um a um. Quando descreveu Wheaton como seu agente de ligação política, a rainha olhou para Douglas, como que duvidando.

Douglas disse:

— Sou viúvo, Vossa Majestade. A minha mulher morreu há vários anos. A minha filha não pôde estar hoje aqui comigo, mas posso apresentar-lhe o meu genro, Michael Osbourne?

A rainha assentiu com a cabeça e Michael entrou na sala. Uma expressão de reconhecimento brilhou nos olhos da rainha Isabel. Inclinou-se para ele e perguntou em voz baixa:

— Não foi o senhor que esteve envolvido naquela situação no Aeroporto de Heathrow o ano passado?

Michael assentiu com a cabeça.

— Sim, Vossa Majestade, mas...

— Não tem de se preocupar, senhor Osbourne — sussurrou a rainha, como se estivesse a conspirar. — Ficaria surpreendido com as coisas que me contam. Posso assegurar-lhe que sou capaz de manter um segredo. Michael sorriu.

— Tenho a certeza que sim, Vossa Majestade.

— Se chegar alguma vez o dia em que o senhor consiga esquecer esse assunto, gostaria de o honrar adequadamente pelo que fez nesse dia. As suas acções salvaram inúmeras vidas. Lamento que só agora tenhamos tido oportunidade de nos conhecermos.

— Está combinado, Vossa Majestade.

— Está, sim, senhor.

Michael recuou e colocou-se ao lado dos membros da embaixada. Olhou para Wheaton e sorriu, mas Wheaton fez uma ligeira careta como se tivesse acabado de engolir o botão de punho.

Voltaram para trás, atravessando de novo o Palácio de Buckingham. Wheaton apareceu ao lado de Michael e agarrou-o pelo cotovelo. Wheaton jogava ténis; tinha uma poderosa mão direita de tanto apertar as bolas de ténis para combater a ansiedade provocada pelo comando. Michael resistiu ao impulso de se libertar. Wheaton gostava de intimidar os outros, provavelmente por já ter sido ele próprio vítima de intimidações.

— Quero que isto fique oficialmente registado, Michael — disse Wheaton agradavelmente.

Estava sempre a falar "oficialmente" e "confidencialmente", algo que Michael achava um absurdo num agente dos serviços secretos.

— Acho que a tua excursãozinha a Belfast é o raio de uma péssima ideia.

— Achas mesmo que é apropriado usar esse tipo de linguagem aqui dentro, David?

— Vai-te foder, Michael — sussurrou ele.

Michael libertou o cotovelo da mão de Wheaton com um puxão.

— O Kevin Maguire já não é um activo teu — disse Wheaton. Michael lançou-lhe um olhar de desaprovação feroz por ele ter cometido a infracção capital de mencionar o nome de um agente em voz alta numa sala insegura. Wheaton olhava para o trabalho de espionagem como um jogo a ser jogado e ganho. Conduzir uma discussão sobre um agente como um aparte enquanto se passeava pelas salas do Palácio de Buckingham assentava muito bem na imagem que tinha de si próprio.

— Se queres que ele seja interrogado para efeitos do destacamento especial, o agente de controlo dele do posto de Londres é que deve tratar disso.

— O Mensageiro era meu agente — respondeu Michael, utilizando o nome de código de Maguire. — Fui eu quem o recrutei e era eu que o orientava. Fui eu que o persuadi a dar-nos informações que salvaram inúmeras vidas. Vou encontrar-me com ele.

— Agora não é altura para andares a fazer viagens ao passado, especialmente numa cidade como Belfast. Porque é que não fazes um relatório daquilo que precisas ao agente de controlo do Mensageiro? E depois pode ir ele ao encontro.

— Porque quero ser eu a fazê-lo.

— Michael, eu sei que tivemos as nossas divergências, mas ofereço-te este conselho com toda a sinceridade. O teu lugar agora é atrás da secretária, não como agente operacional. Tens quarenta e oito anos e quase foste morto o ano passado. Até o melhor de nós ficaria abalado. Deixa-me enviar o meu homem para se encontrar com o Mensageiro.

— Eu não fiquei nada abalado — respondeu Michael. — E, no que diz respeito à Irlanda do Norte, ela não mudou em quatrocentos anos; acho que sou capaz de tomar conta de mim enquanto lá estiver.

Saíram para o pátio e foram recebidos pela luz brilhante do sol. Wheaton disse:

— O Mensageiro quer usar os teus antigos procedimentos para marcar o encontro. Se ele não decidir realizar um encontro dentro de dois dias, quer-te fora de Belfast.

Percebeste?

— Percebi, David.

— E se foderes isto, lixo-te a vida.


Capítulo 17

BELFAST

 

Os voos para a Irlanda do Norte partem de uma área própria do Terminal 1 de Heathrow, onde os passageiros têm de passar por um conjunto férreo de medidas de segurança antes de embarcarem. Mi-chael fingiu ser um escritor de viagens que ia escrever um artigo para uma revista sobre as atracções turísticas das zonas rurais do Ulster.

Durante o voo, leu guias e mapas. O empresário inglês que ia sentado ao lado dele perguntou-lhe se já tinha estado em Belfast. Michael sorriu estupidamente e respondeu que era a primeira vez. O avião sobrevoou Liverpool e continuou em direcção ao mar da Irlanda. O comandante anunciou que tinham acabado de deixar o espaço aéreo do Reino Unido e que aterrariam em Belfast dentro de vinte e cinco minutos. Michael riu-se para si próprio; até os britânicos tinham dificuldade em lembrar-se que a Irlanda do Norte fazia realmente parte do Reino Unido.

O avião desceu através de nuvens quebradas. A Irlanda do Norte é um pouco como uma extensa quinta, interrompida por um par de cidades grandes, Belfast e Londonderry, e centenas de pequenas vilas, aldeias e lugarejos. Os campos encontram-se esculpidos em milhares de parcelas quadradas — algumas cor de esmeralda, outras da cor da lima ou da azeitona, outras fulvas e castanhas. Para leste, onde as águas do Belfast Lough desaguavam no mar da Irlanda, Michael vislumbrou o Castelo de Carrickfergus.

Belfast ficava no sopé da Black Mountain, estendendo-se sobre o lago. Em tempos, tinha sido um centro próspero de linho e construção de barcos — o Titanic foi construído nos estaleiros de Belfast —, mas agora assemelhava-se a qualquer outra cidade industrial britânica caída em tempos difíceis um labirinto de terraços em tijoleira repleto de fumo baixo.

O avião aterrou no Aeroporto de Aldergrove. Michael demorou-se no átrio das chegadas para ver se conseguia detectar algum tipo de vigilância. Comprou chá num café e deu uma vista de olhos à loja de conveniência. Uma das paredes estava cheia de livros sobre o conflito norte-irlandês. Havia camisolas e chapéus para lembrança, de cores brilhantes, que exclamavam, perversamente, irlanda do norte! como se fosse Cannes ou a Jamaica.

Quando Michael saiu do aeroporto, o vento quase lhe arrancou o casaco do corpo. Passou a paragem dos táxis e apanhou um autocarro do Ulster para o centro da cidade.

Belfast inspira imagens de conflito civil, de fumo saído de armas e cordite, mas o primeiro cheiro com que Michael se deparou foi o fedor a estrume. O autocarro passou por um posto de controlo, onde um par de agentes da RUC desmantelava uma carrinha em bocados. Passados quinze minutos, o autocarro chegou ao centro da cidade.

A baixa de Belfast é um sítio sem ponta de encanto — fria e arranjada, demasiado nova em alguns lugares, demasiado velha noutros. Foi bombardeada vezes sem conta pelo IRA, vinte e duas vezes só no dia 21 de Julho de 1972, a Sexta-Feira Sangrenta. A Irlanda do Norte era o único lugar do mundo que fazia Michael sentir-se desconfortável.

Havia uma maldade, uma incoerência e um lado medieval na violência que o desconcertavam. Era uma das poucas cidades em que experimentava dificuldades com a língua.

Sabia falar italiano, espanhol, francês, árabe, hebraico razoavelmente, alemão aceitavelmente e até um pouco de russo, mas o inglês falado com o sotaque duro de Belfast Ocidental confundia-o. E o gaélico, que muitos católicos falam fluentemente, era uma algaraviada sem sentido para Michael: soava-lhe como a lâmina de uma pá a esgravatar no cascalho. Ainda assim, achava as pessoas extraordinariamente amigáveis, em especial para os forasteiros, sempre prontas a pagar uma bebida ou a oferecer um cigarro, com um sentido de humor negro derivado do facto de viverem num mundo enlouquecido.

Fez o check-in no Hotel Europa e passou dez minutos à procura de escutas no quarto. Conseguiu dormir, mas foi acordado por uma sirene e uma voz gravada que dizia para evacuar o hotel imediatamente. Telefonou para a recepção e a rapariga explicou-lhe alegremente que era apenas um teste. Pediu café ao serviço de quartos, tomou banho, vestiu-se e desceu ao piso de baixo. Tinha pedido ao concierge que lhe arranjasse um carro de aluguer. Já se encontrava à espera dele lá fora, no pequeno e circular caminho de entrada, um Ford Escort vermelho-vivo. Michael voltou para dentro do hotel e perguntou ao concierge se a empresa de aluguer de carros não tinha nada numa cor mais subtil.

— Lamento, senhor, mas é tudo o que têm de momento.

Michael entrou no carro e seguiu para norte, ao longo da Victoria Street. Virou numa pequena rua secundária, encostou e saiu. Abriu o capô e começou a puxar fios do motor do carro até este parar de trabalhar. Fechou o capô, tirou as chaves da ignição e voltou a pé para o Europa. Informou o concierge que o Escort se tinha avariado e explicou onde o podia encontrar.

Vinte minutos mais tarde, chegou um novo carro, um Opel azul-escuro.

Ao longo dos anos, Kevin Maguire, com o nome de código Mensageiro, já tinha utilizado uma dúzia de sequências diferentes para encontros, mas pedira para utilizar naquela noite o seu padrão original, três locais espalhados pelo centro de Belfast, com intervalos de uma hora. Os dois homens deviam dirigir-se ao primeiro local.

Se algum deles detectasse vigilância ou se sentisse desconfortável por algum motivo, tentariam novamente no segundo. Se o segundo não resultasse, tentariam o terceiro.

Se o terceiro também não funcionasse, dariam a noite por terminada e tentariam encontrar-se na seguinte, em três novos locais.

Michael seguiu no carro em direcção ao primeiro local: Donegall Quay, perto da Ponte Rainha Elizabeth, sobre o rio Lagan. Conhecia bem as ruas de Belfast e, durante vinte minutos, efectuou um típico PDV, a abreviatura da CIA para a execução de um percurso de detecção de vigilância. Foi serpenteando pelas ruas do centro da cidade, verificando constantemente se alguém o estava a seguir. Encaminhou-se para Donegall Quay, com a intenção de efectuar o encontro, mas não havia sinal de Maguire e, por isso, Michael continuou a conduzir sem parar. Não era nada típico de Maguire faltar a um encontro; era um terrorista profissional experiente, não o tipo de agente que vislumbrasse algum perigo onde este não existia.

Kevin Maguire tinha crescido na urbanização de Ballymurphy durante a década de 1970, filho de um trabalhador de estaleiro desempregado e de uma costureira. A noite, saíra para as ruas com os outros rapazes e combatera o exército britânico e a RUC com pedras e cocktails molotov. Uma vez, tinha mostrado a Michael uma fotografia de quando era miúdo, um maltrapilho com cabelo cortado à escovinha, casaco de cabedal e um colar feito de invólucros de cartuchos vazios. Tinha sido como que um herói em Ballymurphy por ser especialista em deter os camiões blindados de transporte de tropas com barris de cerveja vazios. Tal como a maioria dos católicos de Belfast Ocidental, admirava e temia os homens do IRA — admirava-os porque protegiam a população dos esquadrões da morte protestantes da UVF e da UDA, mas temia-os porque mutilavam, com tiros nos joelhos, ou espancavam brutalmente quem quer que saísse da linha. O pai de Maguire tinha ficado com os joelhos destruídos por vender bens roubados, porta a porta, para complementar o rendimento mensal da família proveniente do subsídio de desemprego.

Maguire tinha feito parte dos Na Fianna Eirean — uma espécie de escuteiros republicanos —, e o pai insistiu para que ficasse, apesar da mutilação. Quando fez vinte e dois anos, ofereceu-se como voluntário para o IRA. Fez o juramento secreto do IRA numa cerimónia na sala de estar da casa dos pais, em Ballymurphy. Maguire nunca iria esquecer a expressão no rosto do pai, a estranha mistura de orgulho e humilhação por o filho ser, a partir daquele momento, membro da organização que lhe tirara as pernas. Foi destacado para a Brigada de Belfast e acabou por vir a fazer parte de uma unidade de elite de serviço activo[30] na Grã-Bretanha. Desenvolveu bons contactos dentro do Conselho do Exército, o comando militar do IRA, e da Unidade dos Serviços Secretos de Belfast, que vieram a revelar-se inestimáveis quando mudou de lado e se tornou um espião.

O acontecimento que empurrou Maguire para a traição foi o atentado à bomba do IRA numa parada do Dia do Armistício, em Ennis-killen, no condado de Fermanagh, em 8 de Novembro de 1987. Onze pessoas morreram e sessenta e três ficaram feridas quando uma enorme bomba explodiu sem aviso. O IRA tentou acalmar a indignação do povo por causa do massacre dizendo que fora um erro. Maguire sabia a verdade; tinha feito parte da unidade que levara a cabo o ataque.

Ficou furioso com o Conselho do Exército por ter atacado um alvo civil "desprotegido". Jurou a si mesmo que iria evitar que, no futuro, o IRA efectuasse ataques semelhantes. O ódio e a desconfiança que sentia em relação aos britânicos excluía a hipótese de trabalhar para os serviços secretos britânicos ou para a Divisão Especial da RUC; portanto, na viagem seguinte a Londres, contactou a CIA. Michael fora enviado a Belfast para estabelecer contacto com ele. Maguire recusou-se a aceitar dinheiro — "as tuas trinta moedas de prata", como lhe chamou — e, apesar de ser um terrorista do IRA, Michael acabou por considerá-lo um homem decente.

A CIA e os seus homólogos britânicos têm um acordo implícito: a agência não "recolhe" em solo britânico, o que significa que não tenta penetrar no IRA nem recruta activos dentro dos serviços secretos britânicos. Depois de Michael ter estabelecido contacto com Maguire, a CIA foi falar com os britânicos. De início, o MI5 mostrou-se hesitante, mas acabou por concordar que Michael continuasse a encontrar-se com Maguire, desde que recebesse as informações que fossem sendo obtidas ao mesmo tempo que Langley. Durante os vários anos que se seguiram, Maguire forneceu a Michael um fluxo constante de informações acerca de operações do IRA, oferecendo à CIA e aos britânicos uma janela para espreitarem o alto-comando da organização. Maguire tornou-se o informador proveniente do IRA mais importante na história do conflito.

Quando Michael foi retirado do terreno, um novo agente americano foi destacado para Maguire, um homem chamado Jack Buchanan, do posto de Londres. Desde então, Michael não tinha visto nem falado com Maguire.

Michael seguiu para sul pela Ormeau Road. O segundo ponto de encontro era o Jardim Botânico, no cruzamento da Stranmills Road com a University Road. Uma vez mais, Michael sentia-se confiante de que não estava a ser seguido. Mas, uma vez mais, Maguire não compareceu ao encontro.

O último local era um campo de râguebi, numa zona de Belfast conhecida por Newtownbreda, e foi aí que, uma hora mais tarde, Michael encontrou Maguire parado debaixo de uma baliza.

— Porque não quiseste o encontro nos dois primeiros sítios? — perguntou Michael quando Maguire entrou para o carro e fechou a porta.

— Nada que eu pudesse ver... só má vibrações.

Maguire acendeu um cigarro. Mais parecia um revolucionário de café do que o artigo genuíno que era. Usava uma gabardina escura, uma camisola preta e calças de ganga pretas. Belfast fizera Maguire envelhecer desde a última vez que Michael o vira. O cabelo preto muito curto estava repleto de brancas e tinha rugas à volta dos olhos.

Agora, usava óculos europeus da moda, redondos e com armações de metal, demasiado pequenos para a cara dele.

— Onde é que arranjaste o carro? — perguntou Maguire.

— Foi o concierge do Europa. Arranquei os fios do motor do primeiro e eles enviaram este vinte minutos depois. Está limpo.

— Eu não falo em salas fechadas ou dentro de carros, ou já te esqueceste de tudo desde que te convenceram a voltar?

— Não me esqueci. Onde é que queres ir?

— E que tal à montanha, como nos velhos tempos? Encosta aí para eu ir buscar umas cervejas.

Michael conduziu para norte, atravessando Belfast, e depois subiu por uma estrada estreita, ao longo da Black Mountain. A chuva tinha parado quando encostou à berma e desligou o motor. Saíram do carro e sentaram-se no capô, a beber cerveja morna e a ouvir o ralenti do motor. Belfast espraiava-se por baixo deles. As nuvens flutuavam por cima da cidade como um lenço de seda lançado sobre um quebra-luz. Era uma cidade escura à noite. Luzes de sódio amarelas brilhavam no centro da cidade, mas, a oeste, na Falis, na Shankill e na Ardoyne, parecia que tinha havido um corte de energia. Maguire sentia-se normalmente em paz naquele sítio — perdera a virgindade ali, como tinha acontecido com metade dos rapazes de Ballymurphy — mas, naquela noite, mostrava-se agitadíssimo. Estava a fumar demasiado, a engolir apressadamente a sua cerveja e a suar, apesar do frio.

Falou.- Contou histórias antigas a Michael. Falou-lhe de como tinha sido crescer em Ballymurphy, combater os britânicos e lançar fogo aos chuis deles. Contou-lhe como tinha sido fazer amor na Black Mountain pela primeira vez.

— O nome dela era Catherine, uma rapariga católica. Senti-me tão culpado, que fui confessar-me no dia seguinte e contei tudo ao padre Seamus — disse ele. — Contei tudo ao padre Seamus muitas outras vezes ao longo dos anos, sempre que enfiava um balázio num soldado britânico ou num homem da RUC, sempre que punha uma bomba no centro de uma cidade ou em Londres.

Contou-lhe um caso que tivera com uma rapariga protestante de Shankill mesmo antes de se juntar ao IRA. Ela ficou grávida e os pais de ambos proibiram-nos de alguma vez voltarem a ver-se.

— Nós sabíamos que era o melhor que tínhamos a fazer — disse ele. — Teríamos sido olhados como párias em ambas as comunidades. Teríamos de abandonar a Irlanda do Norte, viver na porra da Inglaterra ou emigrar para a América. Ela teve o bebé, um menino. Nunca o vi. — Parou de falar e depois continuou: — Sabes, Michael, nunca pus uma bomba em Shankill.

— Porque tinhas medo de poder matar o teu próprio filho.

— Sim, porque tinha medo de poder matar o meu próprio filho, um filho que eu nunca vi — assentiu, abrindo outra lata de cerveja. — Não sei que raio é que andámos aqui a fazer neste últimos trinta anos. Não sei qual o objectivo de tudo isto. Dei vinte anos da minha vida ao IRA, vinte anos dados à porra da causa. Tenho quarenta e cinco. Não tenho mulher. Não tenho uma verdadeira família. E para quê? Um acordo que já podia ter sido alcançado uma dúzia de vezes desde sessenta e nove?

— Era o melhor com que o IRA podia contar — respondeu Michael. — Não há nada de errado numa solução de compromisso.

— E, agora, o Gerry Adams tem uma óptima ideia — disse Maguire, ignorando Michael. — Quer transformar a Falis numa área turística. Abrir uma pensão ou duas. Consegues imaginar? Venham ver as ruas onde os prods e os micks[31] andaram a travar uma guerrazinha horrível durante três décadas. Meu Deus, nunca pensei ver esse dia chegar, porra! Três mil mortos para podermos entrar na secção de viagens do The New York Times.

Terminou a cerveja e atirou a lata vazia pela encosta abaixo.

— Aquilo que vocês, americanos, não entendem é que nunca haverá paz aqui. Podemos parar de nos massacrarmos uns aos outros por uns tempos, mas nunca há-de mudar nada neste sítio. Não vai mudar nada — afirmou, atirando o cigarro pela encosta e observando as cinzas a desaparecerem na escuridão. — De qualquer modo, tu não vieste até aqui só para me ouvir a tagarelar sobre política e os fracassos do Exército Republicano Irlandês.

— Pois não, não vim. Eu quero saber quem matou o Eamonn Dillon.

— E os cabrões do IRA também.

— O que é que tu sabes?

— Suspeitamos que o Dillon já estava marcado para ser assassinado há muitíssimo tempo.

— Porquê?

— Assim que ele foi morto, os rapazes dos serviços de informação puseram-se ao trabalho. Suspeitavam que alguém dentro do Sinn Fein o tivesse traído porque o assassino tinha aparecido exactamente no sítio certo, exactamente à hora certa. Era possível que os lealistas o tivessem seguido pela Falis e o tivessem vigiado, mas não era muito provável. É difícil para eles actuarem num sítio como a Falis sem serem identificados e o Dillon era cuidadoso com a sua rotina.

— Então, o que é que aconteceu?

— Os serviços de informação do IRA viraram a sede do Sinn Fein do avesso. Vasculharam cada centímetro quadrado, à procura de transmissores ou minicâmaras. Acagaçaram de morte o pessoal e os voluntários e isso deu resultados.

— O que é que descobriram?

— Um dos voluntários, uma rapariga chamada Kathleen, que atendia os telefones, mantinha uma amizade com uma rapariga protestante.

— E a rapariga tinha nome?

— Dava pelo nome de Stella. A Kathleen pensava que não havia nada de errado em ser amiga da Stella por causa do acordo de paz. O IRA apertou-a de uma forma muito dura. Ela confessou que tinha contado coisas sobre a direcção do Sinn Fein, incluindo sobre o Ea-monn Dillon, à Stella.

— E a Kathleen ainda está entre nós?

— Por um fio — respondeu Maguire. — O Dillon era adorado dentro do IRA. Foi membro da Brigada de Belfast nos anos setenta. Serviu sob o comando do Gerry Adams. Passou dez anos em Maze com uma acusação de posse ilegal de arma. O IRA estava prestes a enfiar uma bala na nuca dela, mas o Gerry Adams interveio e salvou-lhe a vida.

— Presumo que a Kathleen tenha feito uma descrição da Stella ao IRA.

— Alta, atraente, cabelo preto, olhos cinzentos, boa estrutura facial e maxilar quadrado. Infelizmente, é tudo o que o IRA tem para poder trabalhar. A Stella era uma verdadeira profissional e cuidadosa como o raio. Nunca se encontrou com a Kathleen num local onde houvesse câmaras de vigilância do Sinn Fein.

— E o que é que o IRA sabe sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Merda nenhuma — respondeu Maguire. — Mas uma coisa te digo. O IRA não vai ficar de braços cruzados para sempre. Se as forças de segurança não conseguirem controlar as coisas, e depressa, a porra deste sítio vai toda pelos ares.

Michael deixou Maguire no cruzamento da Divis Street com a Millfield Road. Maguire saiu do carro e diluiu-se novamente na Falis sem olhar para trás. Michael percorreu os poucos quarteirões que faltavam até ao Europa e deixou o carro com o empregado. Maguire não lhe tinha dado muita informação, mas já era um começo. A Brigada para a Libertação do Ulster parecia possuir um aparelho de espionagem sofisticado e um dos seus agentes era uma mulher alta, com cabelo preto e olhos cinzentos. E também se sentia muito bem consigo próprio; depois de muito tempo afastado, tinha entrado em acção e levado a cabo um encontro clandestino bem-sucedido com um agente. Estava ansioso por voltar a Londres para fazer chegar as informações à sede da agência.

Era tarde, mas tinha fome e sentia-se demasiado agitado para ficar no quarto de hotel. A rapariga da recepção recomendou-lhe um restaurante chamado Arthur's, logo a seguir à Great Victoria Street. Sentou-se numa pequena mesa, perto da porta, com os seus folhetos turísticos a servirem-lhe de protecção. Comeu bife irlandês e batatas encharcadas em natas e queijo, tudo regado com meia garrafa de um clarete decente. Eram onze horas quando voltou a pisar a rua. Um vento frio uivava pelo centro da cidade.

Seguiu para norte, pela Great Victoria Street, em direcção ao Europa, A sua frente vinha uma rapariga a bater com os pés com força no chão, com as mãos enterradas bem dentro dos bolsos de um casaco de cabedal preto e uma mala de mão pendurada ao ombro. Já a tinha visto algures no Europa — no bar, talvez, ou a empurrar um carrinho de limpeza por um corredor. Ela olhou em frente. O olhar de Belfast, pensou ele. Ninguém naquela cidade parecia olhar para ninguém, muito menos nos passeios vazios do centro, a altas horas da noite.

Quando a rapariga se encontrava uns cinco metros à sua frente, pareceu tropeçar numa grelha do passeio. Caiu pesadamente, espalhando o que trazia na mala. Michael avançou rapidamente e ajoe-lhou-se ao lado dela.

— A senhora está bem? — perguntou.

— Sim — respondeu a rapariga. — Foi só uma quedazinha, nada de grave.

Ela sentou-se e começou a apanhar as suas coisas.

— Deixe-me ajudá-la — disse Michael.

— Não é necessário — disse ela. — Eu fico bem.

Michael ouviu um carro a acelerar pela Great Victoria Street. Virou-se e avistou um Nissan de tamanho médio, avançando a toda a velocidade na sua direcção, com os faróis apagados. Foi então que sentiu algo duro a pressionar-lhe a região lombar.

— Enfie-se na porcaria do carro, senhor Osbourne — disse a rapariga calmamente —, ou juro por Deus que lhe meto uma bala na espinha.

O carro travou a fundo e derrapou, parando junto ao passeio, e a porta traseira abriu-se de repente. Estavam dois homens sentados no banco de trás. Usavam ambos balaclavas. Um deles saltou para a rua, empurrou Michael para dentro do carro e, a seguir, entrou e sentou-se ao lado dele. A viatura acelerou rapidamente, deixando a rapariga para trás.

Quando já se encontravam afastados do centro da cidade, os dois homens obrigaram Michael a deitar-se no chão e começaram a espancá-lo com os punhos e com as coronhas das armas. Ele colocou os braços à volta da cabeça, tentando proteger-se das pancadas, mas não serviu de nada. Viu luzes a brilhar, ouviu os ouvidos a tinir e perdeu os sentidos.


Capítulo 18

CONDADO DE ARMAGH, IRLANDA DO NORTE

 

Michael acordou de repente. Não fazia ideia de quanto tempo estivera inconsciente. Tinham-no enfiado na bagageira do carro. Abriu os olhos, mas não viu nada a não ser escuridão; tinham-lhe posto um capuz preto na cabeça. Fechou os olhos outra vez e verificou os ferimentos. Os homens que o tinham agredido não eram o tipo de profissionais que conseguissem espancar um homem quase até à morte sem deixar marcas. A cara de Michael parecia ferida e inchada e conseguia sentir o gosto de sangue seco à volta da boca. Não conseguia respirar pelo nariz e o crânio doía-lhe numa dúzia de sítios diferentes. Várias costelas estavam partidas, de modo que até mesmo o inspirar pouco profundo provocava dores atrozes. Doía-lhe o abdómen e tinha a virilha inchada.

Por causa do capuz, os restantes sentidos de Michael ficaram, de repente, mais vivos. Conseguia ouvir tudo, o ranger das molas dos assentos, a música no rádio do carro, a rudeza do gaélico. Podiam estar a falar sobre o tempo ou de onde planeavam despejar o corpo dele, que Michael não teria percebido a diferença.

Durante vários minutos, o carro andou a uma boa velocidade numa estrada regular. Michael sabia que estava a chover porque conseguia ouvir o silvo do asfalto molhado por baixo de si. Passado algum tempo — vinte minutos, deduziu Michael —, o carro deu uma volta de noventa graus. A velocidade decresceu e o piso da estrada deteriorou-se.

O terreno tornou-se acidentado. Cada buraco, cada curva da estrada, cada inclinação, enviavam ondas de dores desde o couro cabeludo até à virilha de Michael. Tentou pensar em algo, qualquer coisa, além da dor.

Pensou em Elizabeth, na sua casa. Devia ser o início da noite em Nova Iorque. Ela devia estar a dar o último biberão às crianças antes de elas se deitarem. Por um instante, sentiu-se um completo idiota por ter trocado uma vida idílica com Elizabeth por um rapto e um espancamento na Irlanda do Norte. Mas isso era um pensamento derrotista, pelo que afastou-o da cabeça.

Pela primeira vez, em muitos anos, Michael pensou na mãe. Supôs que isso se devesse ao facto de pelo menos uma pequena parte dele suspeitar que poderia não sair da Irlanda do Norte com vida. As memórias que tinha dela eram mais como as de uma antiga amante do que de uma mãe: tardes passadas em cafés em Roma, passeios pelas praias do Mediterrâneo, jantares em tabernas gregas, uma peregrinação ao luar até à Acrópole. Às vezes, o pai ausentava-se por semanas, sem dizer nada. Quando acabava por regressar a casa, não podia dizer nada sobre o trabalho ou onde tinha estado. Ela castigava-o ao falar só em italiano, uma língua que o desnorteava. Também o castigava ao trazer estranhos para a cama dela — facto que nunca escondera de Michael. Costumava meter-se com ele, dizendo-lhe que o seu verdadeiro pai era um rico fazendeiro siciliano, o que explicava a pele cor de azeitona de Michael, o seu cabelo quase preto e o nariz longo e estreito. Michael nunca tinha a certeza se ela estava a brincar ou não. O segredo que partilhavam em relação ao adultério dela criou um laço místico entre ambos. Ela morreu de cancro da mama quando ele tinha dezoito anos. O pai de Michael sabia que a mulher e o filho tinham guardado segredos dele; o velho enganador tinha sido enganado. No ano que se seguiu à morte de Alexandra, Michael e o pai mal se falaram.

Michael pensou no que teria acontecido a Kevin Maguire. A pena por trair o IRA era rápida e dura: tortura extrema e uma bala na nuca. Depois pensou: "Será que o Maguire traiu o IRA ou me traiu a mim?" Recordou os acontecimentos daquela tarde. Os dois carros disponibilizados pelo Europa, o Escorf vermelho e o Opel azul. Os dois pontos de encontro que Maguire tinha falhado, o cais junto ao rio Lagan e o Jardim Botânico. Pensou no próprio Maguire — os cigarros fumados uns atrás dos outros, o suor, a viagem longa através de estradas velhas. Será que se encontrava nervoso porque temia estar a ser observado? Ou sentir-se-ia culpado por estar a tramar o homem que tinha sido o primeiro agente destacado para o orientar?

Saíram da estrada e viraram para um caminho esburacado e sem pavimentação. O carro saltou e bamboleou-se da esquerda para a direita. Michael soltou um gemido involuntário quando uma pontada de dor lhe rompeu pelas costelas partidas, como a ponta de uma faca a rasgá-lo de lado.

— Não se preocupe, senhor Osbourne — gritou uma voz dentro do carro. — Vamos chegar daqui a uns minutos.

Cinco minutos depois, o carro parou. A bagageira abriu-se e Michael sentiu uma rajada de vento carregado de chuva. Dois dos homens pegaram-lhe nos braços e puxaram-no para fora. De repente, estava de pé. Conseguia sentir a chuva a martelar-lhe nas feridas da cabeça, apesar do capuz. Tentou dar um passo, mas os joelhos falharam.

Os raptores apanharam-no antes de cair no chão. Michael colocou um braço à volta de cada um deles e foi carregado até um chalé de pedra. Passaram por uma série de divisões e de portas, com os pés de Michael a arrastarem-se pelas tábuas do soalho. Um momento depois, sentaram-no numa cadeira de costas direitas e duras.

— Quando ouvir a porta a fechar-se, senhor Osbourne, pode retirar o capuz. Há água quente e uma toalha. Limpe-se. Tem uma visita.

Michael retirou o capuz; estava teso do sangue seco. Pestanejou com a luz forte. A sala estava quase vazia, à excepção de uma mesa e duas cadeiras. O papel de parede floral a descascar recordou-lhe de hóspedes em Cannon Point. Na mesa, estava uma bacia de esmalte branca cheia de água. Ao lado, uma toalha e um pequeno espelho de barbear. A porta tinha um óculo para o poderem vigiar.

Michael inspeccionou a cara ao espelho. Os olhos estavam feridos e quase fechados do inchaço. Tinha um corte profundo no tecido mole acima do olho esquerdo e que precisava de pontos. Os lábios estavam inchados e rachados e tinha uma grande escoriação a atravessar-lhe a face direita. O cabelo estava tingido de sangue. Havia uma razão para lhe terem dado um espelho. O IRA tinha estudado muito bem a arte do interrogatório; queriam que ele se sentisse fraco, inferior e feio. Os britânicos e a Divisão Especial da RUC tinham utilizado essa mesma técnica com os membros do IRA durante três décadas.

Michael tirou o casaco com cuidado e arregaçou as mangas da camisola. Ensopou a toalha na água quente e começou a tratar da cara, limpando suavemente o sangue dos olhos, da boca e do nariz. Inclinou a cabeça sobre a bacia e lavou o sangue do cabelo. Cuidadosamente, passou um pente pelos cabelos e olhou para o espelho outra vez. A sua figura ainda estava hediondamente distorcida, mas tinha conseguido tirar quase todo o sangue.

Um punho martelou na porta.

— Põe o capuz na cabeça outra vez — ordenou a voz. Michael não se mexeu.

— Eu disse para pores a merda do capuz na cabeça.

— Está cheio de sangue — disse Michael. — Quero um limpo. Ouviu o som de passos do lado de fora e gritos zangados em gaélico. Passados alguns segundos, a porta abriu-se com força e um homem com uma balaclava entrou na sala a passos largos. Agarrou o capuz ensanguentado e enfiou-o na cabeça de Michael com brusquidão.

— Da próxima vez que eu te disser para pores o capuz, tu pões a porra do capuz — disse ele. — Percebeste?

Michael não disse nada. A porta fechou-se e ele ficou sozinho outra vez. Tinham-lhe imposto a vontade deles, mas tinha ganho uma pequena vitória. Deixaram-no ficar ali sentado, com um capuz que tresandava ao seu próprio sangue, durante vinte minutos. Conseguia ouvir vozes na casa e, algures, muito ao longe, pensou ouvir um grito. Finalmente, ouviu a porta abrir-se e fechar-se outra vez. Um homem tinha entrado na sala. Michael conseguia ouvi-lo a respirar e conseguia sentir-lhe o cheiro: cigarros, tónico capilar, um sopro de água-de-colónia feminina que lhe fez lembrar Sarah. O homem sentou-se na outra cadeira. Devia ser um homem grande, já que a cadeira rangeu sob o seu peso.

— Pode retirar o capuz agora, senhor Osbourne.

A voz era confiante e naturalmente cheia no seu timbre, uma voz de líder. Michael retirou o capuz, pô-lo em cima da mesa e fitou olhos nos olhos a pessoa sentada do outro lado da mesa. Era um homem de feições rudes — uma testa larga e lisa, maçãs do rosto pesadas e o nariz achatado de um pugilista. A racha no queixo quadrado parecia ter sido cortada à machadada. Trazia uma camisa branca com gravata, calças cinzento-escuras e um colete a condizer. Os olhos azul-claros irradiavam luz e inteligência. Por alguma razão, estava a sorrir.

Michael reconheceu a cara dos dossiês de Cynthia Martin, na sede: uma fotografia de prisão tirada em Maze, onde o homem tinha passado vários anos na década de 1980.

— Meu Deus! Eu disse aos meus homens para lhe darem uma tareiazinha, mas parece que em vez disso lhe deram um verdadeiro enxerto. Desculpe, mas às vezes os rapazes entusiasmam-se um bocadinho.

Michael não disse nada.

— O seu nome é Michael Osbourne e trabalha para a CIA em Langley, na Virgínia. Há vários anos, recrutou um agente no interior do Exército Republicano Irlandês, chamado Kevin Maguire. Orientou o Maguire numa operação conjunta com o MI5. Quando voltou para a Virgínia, entregou o Maguire a outro agente, um homem chamado Buchanan.

Não se dê ao trabalho de negar nada disto, senhor Osbourne. Não temos tempo para isso e eu não quero fazer-lhe mal.

Michael não disse nada. O homem tinha razão; ele podia negar tudo, dizer que era tudo um engano, mas isso apenas iria prolongar-lhe o cativeiro, o que poderia conduzir a outro espancamento.

— Sabe quem eu sou, senhor Osbourne? Michael confirmou com a cabeça.

— Faça-me a vontade — disse ele.

Acendeu dois cigarros, ficando com um e dando o outro a Michael. Passado um momento, um manto de fumo pairava entre eles.

— O seu nome é Seamus Devlin.

— E sabe o que é que eu faço?

— É o chefe dos serviços de informação do IRA.

Ouviu-se bater à porta com força e umas quantas palavras murmuradas em gaélico. Devlin disse:

— Volte-se para a parede.

A porta abriu-se e Michael ouviu alguém a entrar no quarto e a pousar um objecto em cima da mesa. A porta fechou-se novamente.

— Já pode virar-se — disse Devlin.

O objecto que fora colocado em cima da mesa era um tabuleiro com um bule de chá, duas canecas de esmalte lascadas e um pequeno jarro de leite. Devlin serviu chá para os dois.

— Espero que tenha aprendido uma lição valiosa esta noite, senhor Osbourne. Espero que tenha aprendido que não pode infiltrar-se neste exército e levar a sua avante.

Pensa que somos apenas uma data de taigs estúpidos? Uma data de micks papalvos saídos dos pântanos? O IRA anda a combater o governo britânico há quase cem anos nesta ilha. Já aprendemos uma coisa ou outra sobre as lides da espionagem pelo caminho.

Michael bebeu o chá e manteve-se em silêncio.

— A propósito, se isso o faz sentir-se melhor, foi o Buchanan que nos conduziu ao Maguire, não foi você. O IRA tem uma unidade especial que segue os voluntários suspeitos de traição, uma unidade tão secreta que eu sou o único que conhece a identidade dos membros. Mandei seguir o Maguire em Londres, o ano passado, e vimo-lo a encontrar-se com o Buchanan.

Essa notícia não fez com que Michael se sentisse melhor.

— E porque é que me capturaram? — perguntou ele.

— Porque eu quero dizer-lhe uma coisa — respondeu Devlin, inclinando-se sobre a mesa, com as suas mãos de trabalhador das docas por baixo do queixo. — A CIA e os serviços britânicos estão a tentar encontrar os membros da Brigada para a Libertação do Ulster. Eu acho que o IRA pode ajudar. Afinal de contas, também é do nosso interesse que esta violência fique sob controlo rapidamente.

— E o que é que vocês têm?

— Um esconderijo repleto de armas, nas montanhas Sperrin — revelou Devlin. — Não é nosso e não achamos que pertença a quaisquer outros paramilitares protestantes.

— E em que sítio das montanhas Sperrin?

— Numa quinta, à saída da aldeia de Cranagh.

Devlin entregou a Michael um pedaço de papel com um mapa desenhado de forma rudimentar, indicando a localização da quinta.

— O que é que viram? — perguntou Michael.

— Camiões a entrar e a sair, caixotes a serem descarregados, o normal.

— E gente?

— Um par de rapazes parece que vive lá a tempo inteiro. Patrulham o campo à volta da casa regularmente. Bem armados, posso acrescentar.

— E o IRA continua a vigiar a quinta?

— Nós retirámo-nos. Não temos o equipamento necessário para fazer as coisas como deve ser.

— E porque é que estão a contar-me isto? Porque é que não passam a informação aos britânicos ou à RUC?

— Porque eu não confio neles e nunca hei-de confiar. Não se esqueça de que há determinados elementos no interior da RUC e dos serviços secretos britânicos que têm colaborado com os paramilitares protestantes ao longo dos anos. Eu quero que esses sacanas dos protestantes sejam travados antes que nos arrastem outra vez para uma guerra aberta, e não confio nos britânicos nem na RUC para fazerem esse trabalho sozinhos.

Devlin esmagou o cigarro. Olhou para Michael e sorriu novamente.

— Então, isto não valeu uns quantos cortes e arranhões?

— Vá-se foder, Devlin — disse Michael. Devlin rebentou a rir.

— É livre de ir, agora. Vista o casaco. Quero mostrar-lhe uma coisa antes de se ir embora.

Michael seguiu Devlin pela casa. Havia um cheiro a bacon frito no ar. Devlin conduziu-o por uma sala de estar, em direcção a uma cozinha com panelas de cobre penduradas por cima do fogão. Poderia ser uma cena tirada de uma revista rural irlandesa, se não fosse a meia dúzia de homens, sentados à volta da mesa, a olhar para Michael através das fendas das balaclavas.

— Vai precisar disto — disse Devlin, tirando um gorro de lã do cabide ao- lado da porta e colocando-o cuidadosamente na cabeça inchada de Michael. — É pena, mas hoje está uma noite terrível.

Michael seguiu Devlin ao longo de um caminho lamacento. Estava tão escuro que era quase como se estivesse outra vez com o capuz enfiado na cabeça. Conseguia ver a silhueta de lutador de Devlin à sua frente, a marchar pelo caminho, e sentiu-se estranhamente cativado por ele. Quando chegaram ao celeiro, Devlin bateu à porta com força e murmurou algo em gaélico. A seguir, abriu a porta com um empurrão e levou Michael lá para dentro.

Michael demorou alguns segundos até perceber que o homem amarrado à cadeira era Kevin Maguire. Estava nu e a tremer de frio e de terror. Tinha sido espancado selvaticamente.

Tinha a cara horrivelmente distorcida e sangue a jorrar de uma dezena de cortes diferentes — por cima dos olhos, nas bochechas, à volta da boca. Ambos os olhos estavam fechados com o inchaço. Havia feridas em todas as partes do corpo: contusões, escoriações, lacerações por ter sido chicoteado com um cinto, queimaduras de cigarros esmagados na pele. Estava sentado nos seus próprios excrementos. Três homens com balaclavas rodeavam-no, vigiando-o.

— Isto é o que nós fazemos aos chibos no IRA, senhor Osbourne — disse Devlin. — Lembre-se disto da próxima vez que tentar convencer um dos nossos homens a trair o IRA e a sua gente.

Maguire perguntou:

— És tu, Michael?

Michael avançou com cuidado, passando por entre os torturadores e ajoelhando-se ao lado dele. Sabia que não havia nada que pudesse dizer; por isso, limitou-se a limpar-lhe algum do sangue dos olhos e pousou-lhe a mão no ombro suavemente.

— Desculpa, Kevin — desabafou Michael, com a voz rouca de emoção. — Meu Deus, peço imensa desculpa.

— A culpa não é tua, Michael — sussurrou Maguire.

Fez uma pausa por uns instantes, pois o esforço que fizera para falar lhe tinha causado mais dor.

— É este sítio. Eu disse-te. Não vai mudar nada por aqui. Nunca há-de mudar nada neste sítio.

Devlin aproximou-se, agarrando Michael pelo braço e afastando-o para longe. Voltou a levá-lo para o exterior.

— Aquilo ali dentro é o mundo real — disse Devlin. — Eu não matei o Kevin Maguire. Você é que o matou.

Michael rodopiou e esmurrou Devlin. O soco aterrou bem no alto da maçã do rosto esquerda e fê-lo cair estatelado na lama. Devlin limitou-se a rir e a esfregar a cara. Dois homens saíram a correr da casa. Ele fez-lhes sinal com a mão para que se afastassem.

— Nada mal, nada mal mesmo.

— Arranjem-lhe um padre — disse Michael, a respirar ofegante. — Deixem-no confessar-se pela última vez. Depois, enfiem-lhe uma bala. Ele já sofreu o suficiente.

— Ele vai ter o padre — respondeu Devlin, ainda a esfregar a cara. — E receio que a bala também. Mas lembre-se de uma coisa: se você ou um dos seus amigos britânicos não travarem a Brigada para a Libertação do Ulster, este sítio vai rebentar. Se isso acontecer, não tentem infiltrar-se novamente porque o cabrão do chibo que o fizer há-de acabar como o Maguire.

Conduziram durante muito tempo. Michael tentou acompanhar as curvas, para poder vir a encontrar a quinta outra vez, mas após algum tempo limitou-se a fechar os olhos e a tentar descansar. Finalmente, o carro parou. Alguém bateu na bagageira com força e perguntou:

— Tens a porra do capuz na cabeça?

— Sim — respondeu Michael.

Já não tinha forças para jogos mentais e queria estar longe deles. Dois homens tiraram-no para fora da bagageira e deitaram-no na erva molhada que ladeava a estrada.

Passado um momento, colocaram-lhe qualquer coisa ao lado.

— Deixa-te estar com o capuz até já não ouvires o motor do carro.

Michael sentou-se enquanto eles arrancavam. Arrancou o capuz da cabeça, na esperança de conseguir apanhar um vislumbre da matrícula, mas tinham apagado os faróis.

A seguir, virou-se para ver o que tinham depositado ao lado dele e deparou-se com o rosto sem vida de Kevin Maguire.


Capítulo 19

LONDRES

 

— É óbvio que eles te seguiram até ao encontro — disse Wheaton, com a certeza de um homem que nunca permitia que os factos se intrometessem no caminho da sua teoria, especialmente se ela explicasse as coisas a seu favor.

— Eu efectuei um PDV minucioso, totalmente como mandam as regras — respondeu Michael. — Não tinha ninguém atrás de mim. Eles seguiram o Maguire até ao encontro, não a mim. Foi por isso que ele não quis encontrar-se nos dois primeiros sítios, porque suspeitava que estava a ser observado. Só desejava que ele tivesse tido o bom senso de confiar nos seus próprios instintos. Ainda estaria vivo.

Michael estava sentado a uma mesa, na pequena cozinha privada de Winfield House. A noite começava a cair, quase vinte e quatro horas depois de o IRA o ter raptado no meio das ruas de Belfast. Tinham-no largado à saída da aldeia de Dromara. Michael não tivera outra hipótese a não ser deixar o corpo de Maguire na berma da estrada e ir para bem longe o mais rápido possível. Tinha andado até Banbridge, uma aldeia protestante a sudeste de Portadown, e feito sinal a uma carrinha de entregas para parar. Contou ao condutor que tinha sido assaltado e espancado e que o carro fora roubado. O condutor ia a caminho de Belfast, mas disse que estava disposto a levar Michael até à esquadra da RUC em Banbridge para ele poder apresentar queixa. Michael respondeu que preferia voltar para o hotel em Belfast e apresentar queixa lá.

Já em Belfast, depois de chegar ao Europa, Michael acordou Wheaton em Londres, que fez os telefonemas necessários aos seus homólogos britânicos e arranjou maneira de um helicóptero da RAF ir apanhar Michael ao Aeroporto de Aldergrove.

— Tu já não participavas numa operação no terreno há bastante tempo, Michael — disse Wheaton. — Talvez te tenha escapado alguma coisa.

— Estás a sugerir que fiz com que o Maguire morresse?

— Eras o único agente que lá estava.

— Eu lembro-me do que é que se faz para detectar uma vigilância. Lembro-me dos parâmetros necessários para que um encontro se efectue ou não. O Devlin disse-me que já sabiam há meses que o Maguire andava a trabalhar para nós.

— O Seamus Devlin não é propriamente uma fonte em que eu confie.

— Ele sabia o nome do Buchanan.

— Provavelmente, o Maguire revelou-lho sob tortura.

Michael sabia que era impossível vencer aquela discussão. Jack Buchanan trabalhava para o posto de Londres. Era um dos homens de Wheaton e este iria até onde fosse necessário para o proteger.

— É evidente que um de vocês fez merda, e merda da grossa — continuou Wheaton. — Perdemos um dos nossos melhores activos, os nossos irmãos britânicos andam numa agitação tremenda e tu tens sorte em estar vivo.

— E em relação às informações dadas pelo Devlin?

— Já foi tudo comunicado à sede e ao MI5, conforme o nosso acordo inicial acerca do assunto do Maguire. Obviamente, não podemos pôr um sítio sob vigilância na Irlanda do Norte. Os britânicos e que têm de tomar essa decisão, e vão ter de a confrontar com outras prioridades operacionais. Muito sinceramente, é algo que está fora das nossas mãos nesta altura.

— Essas informações custaram a vida ao meu agente.

— O Maguire não era teu agente. Era nosso agente, dos britânicos e nosso. Orientávamo-lo em conjunto e partilhávamos os dividendos, lembras-te? Estamos todos chateados por o disfarce dele ter sido revelado.

— Eu não quero perder uma oportunidade para desmantelar a Brigada para a Libertação do Ulster por nos sentirmos desconfortáveis com a maneira como obtivemos a informação.

— Tens de admitir que tudo aquilo foi um nadinha pouco ortodoxo. E se as informações do Devlin forem falsas?

— E porque é que o IRA iria fazer isso?

— Para assassinar uns quantos agentes dos serviços secretos britânicos e homens da SAS. Nós passamos as informações aos britânicos, os britânicos põem uma equipa em campo e o IRA faz-lhes uma emboscada, a meio da noite, e corta-lhes a garganta.

— O IRA anda a cumprir o cessar-fogo e os acordos de paz. Eles não têm nenhuma razão para armar uma cilada aos britânicos.

— Mesmo assim, continuo a não confiar neles.

— As informações são de confiança. Temos de agir rapidamente de acordo com o que sabemos.

— É um assunto britânico, Michael, e portanto é uma decisão britânica. Se eu tentar pressioná-los, eles não vão gostar, tal como nós não gostaríamos se os papéis estivessem invertidos.

— Então, deixa-me ser eu a fazê-lo discretamente.

— O Graham Seymour?

Michael anuiu. Wheaton fez questão de mostrar que estava a ponderar a questão cuidadosamente.

— Muito bem, marca um encontro com ele para amanhã e depois, porra, desaparece daqui para fora. Quero-te nos Estados Unidos — disse Wheaton, parando depois por uns instantes e examinando a cara de Michael. — De qualquer forma, provavelmente, é melhor que fiques cá mais um dia. Não quero que a tua mulher te veja assim.

Michael foi para a cama cedo, mas não conseguia dormir. Sempre que fechava os olhos, toda a sequência de acontecimentos se desenrolava à sua frente: o espancamento na parte de trás do carro, o sorriso de Devlin à gato de Cheshire[32], os olhos mortos de Maguire. Surgiu-lhe a imagem do seu agente atado à cadeira, espancado até já quase não ser possível reconhecê-lo, espancado até já não lhe restar nada da cara. Foi duas vezes aos tropeções para a casa de banho e vomitou violentamente.

Lembrou-se das palavras de Devlin.

Eu não matei o Kevin Maguire... Você é que o matou.

O corpo doía-lhe em todos os sítios onde lhe tinham batido. Nenhuma posição era suficientemente confortável para poder dormir. Sempre que sentia pena de si próprio, pensava em Maguire e na sua morte desgraçada e humilhante.

Tomou comprimidos para as dores e depois comprimidos para conseguir adormecer. Sonhou com tudo aquilo a noite toda, mas nos seus sonhos era ele quem espancava Kevin Maguire e era ele quem lhe enfiava uma bala na nuca.

— Mas que belo olho — disse Graham Seymour, na manhã seguinte.

— Está lindo, não está?

Michael voltou a pôr os óculos de sol, apesar de o céu estar carregado de nuvens. Iam caminhando, lado a lado, por um trilho em Parliament Hill, no parque de Hampstead Heath. Michael estava a precisar de descansar e, por isso, sentaram-se num banco. A esquerda deles, Highgate Hill elevava-se no meio da neblina. A frente, para lá do parque, espraiava-se o centro de Londres. Michael conseguiu distinguir a cúpula da Catedral de São Paulo ao longe. Enquanto iam conversando, algumas crianças à volta deles faziam voar papagaios coloridos.

— Ainda não acredito que tenhas dado mesmo um murro ao Seamus Devlin.

— Nem eu, porra, mas soube tão bem!

Tens ideia de quantas pessoas adoravam poder enfiar-lhe um Sopapo?

— Suspeito que seja uma longa fila.

— Uma fila muito longa, meu caro. E doeu?

— A mim ou a ele?

— A ti — disse Graham, enquanto esfregava, num movimento reflexo, as mãos compridas e ossudas uma na outra.

— Um bocadinho.

— Lamento o que aconteceu ao Maguire.

— Ele era um agente bom como o raio.

Michael acendeu um cigarro. O fumo ficou-lhe preso no fundo da garganta e, quando tossiu, agarrou-se às costelas partidas, cheio de dores.

— E qual é a opinião dentro de Thames House? Vocês vão pôr o sítio sob vigilância?

— Para ser sincero, estão um bocadinho incrédulos no último andar — respondeu Graham. — E também estão irritados por terem perdido o Maguire.

— O Wheaton acha que é uma armadilha, que o IRA quer matar uns quantos agentes dos serviços secretos.

— Era de esperar que o Wheaton achasse isso. Seria assim que ele actuaria.

— Eu acho que as informações são de confiança — disse Michael. — O Devlin sabia que ficaríamos cépticos. Foi por isso que se encontrou pessoalmente cara a cara comigo, para nos mostrar que estava a falar a sério.

— Provavelmente tens razão — respondeu Graham. — Vou tentar discretamente fazer as coisas avançarem a partir de dentro. Aliás, talvez até dê um salto ao Ulster e trate disso eu mesmo. Preciso de estar um tempo afastado da Helen. Ela agora entrou numa nova fase, retro punk. Anda com o cabelo todo espetado e não ouve mais nada a não ser os Clash e os Sex Pistols.

— Também isso passará — declarou Michael solenemente.

— Eu sei, só tenho medo é que a próxima seja alguma coisa ainda pior.

Michael riu-se pela primeira vez em muitos dias.

Em Cannon Point, Elizabeth colocou um par de enormes colchas no chão do quarto. Pôs as crianças em cima das colchas, primeiro Jake, depois Liza, e rodeou-as de bonecos de peluche, brinquedos de apertar e chocalhos. Durante vinte minutos, ficou deitada no chão, entre eles, a brincar e a fazer aqueles barulhos tolos, como se estivesse a arrolhar, que a deixavam doida antes de ter filhos. Sentou-se ao fundo da cama e limitou-se a observá-los. Obrigara-se a abandonar os preparativos para o julgamento e a focar-se apenas nas crianças e em nada mais durante o fim-de-semana inteiro. Tinha sido maravilhoso; de manhã, levara as crianças a dar um longo passeio pela Shore Road e a seguir, tinham ido almoçar ao seu restaurante preferido em Sag Harbor. Teria sido perfeito, se não fosse o facto de o marido e o pai estarem ambos em Londres.

Ficou admirada com o facto de as crianças já serem tão diferentes. Liza era como a mãe: comunicativa, sociável, faladora à sua própria maneira, ansiosa por agradar aos outros. Jake era exactamente o contrário. Jake vivia dentro da sua própria cabeça. Liza já tentava dizer a toda a gente aquilo em que estava a pensar. Jake era reservado. Tinha segredos. Ele só tem quatro meses, pensou ela, e já é tal e qual o pai e o avô. Se ele se tornar um espião, acho que me mato com um tiro.

Depois, pensou na maneira como andava a tratar Michael e sentiu-se imediatamente culpada. Não tinha o direito de ficar magoada com Michael por ele ter aceitado chefiar o destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte. De facto, chegara à conclusão de que tinha sido desde logo uma tolice da sua parte permitir que ele deixasse a CIA. Ele tinha razão. Era um trabalho importante e, por alguma razão, parecia que o fazia feliz.

Elizabeth olhou para as crianças. Liza estava a tagarelar com um cãozito de peluche, mas Jake estava deitado de costas, a olhar para cima, pela janela, perdido no seu mundo secreto. Michael era o que era, e era escusado tentar mudá-lo. Em tempos, ela amara-o por isso.

Pensou nele em Belfast e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Pôs-se a imaginar o que estaria a fazer — se teria ido para sítios perigosos. Nunca se habituaria à ideia de ele sair de casa para uma operação no terreno. Que termo tão tolo, pensou ela, o terreno, como se fosse algum prado agradável onde nada de mal alguma vez acontecesse, quando ele estava longe, ela sentia um constante nó de ansiedade no stômago. A noite, dormia com uma luz acesa e a televisão ligada, baixinho. Não era que temesse necessariamente pela segurança dele; já o tinha visto em acção e sabia-o capaz de tomar conta de si próprio. ansiedade vinha de saber que Michael se tornava um homem diferente quando estava longe. Quando voltava para casa, parecia sempre ser um pouco como um estranho. Vivia uma vida diferente quando operava no terreno e, por vezes, Elizabeth interrogava-se se faria ou não parte dela.

Viu faróis dianteiros a iluminarem a Shore Road. Foi à janela e viu um carro parar junto ao portão de segurança. O guarda fez sinal ao carro para entrar na propriedade sem telefonar primeiro para a casa, o que queria dizer que o condutor era Michael.

— Maggie? — chamou Elizabeth. Maggie entrou no quarto.

— Sim, Elizabeth?

— O Michael chegou. Podes ficar com as crianças por um minuto?

— Claro.

Elizabeth correu pelas escadas abaixo. Agarrou num casaco pendurado no cabide do átrio de entrada e embrulhou-o nos ombros enquanto se apressava pelo caminho de acesso, em direcção ao carro.

Lançou os braços à volta dele e disse:

— Senti a tua falta, Michael. Lamento tanto por tudo. Por favor, perdoa-me.

— O quê? — perguntou ele, beijando-lhe a testa suavemente.

— Ter sido tão idiota.

Ela apertou-o e Michael gemeu. Afastou-o ligeiramente, com uma expressão de perplexidade na cara, e puxou-o para junto da luz que saía de uma janela.

— Oh, meu Deus. O que é que te aconteceu?


Capítulo 20

LONDRES

MÍCONOS

ATENAS

 

Uma semana depois de Michael Osbourne partir de Londres, um jaguar prateado entrou sorrateiramente no caminho de acesso à mansão georgiana em St. John's Wood. No banco de trás, ia sentado o Director. Era um homem pequeno, de cabeça e ancas estreitas, com o cabelo cor de areia a ficar grisalho e olhos da cor da água do mar no Inverno. Vivia sozinho, com um rapaz da Sociedade para o proteger e uma rapariga, chamada Daphne, que servia de recepcionista e lhe cuidava das necessidades pessoais.

O motorista, um antigo comando da unidade de elite dos Serviços Aéreos Especiais, saiu do carro e abriu a porta de trás.

Daphne estava à porta da entrada, protegida da chuva torrencial por um grande guarda-chuva preto. Parecia sempre que tinha acabado de regressar de umas férias nos trópicos. Tinha um metro e oitenta e três de altura, pele cor de caramelo e cabelo castanho, com madeixas loiras, que lhe caía pelo pescoço e ombros.

Avançou e escoltou o Director até ao átrio de entrada, mantendo com todo o cuidado o guarda-chuva bem alto, para ter a certeza de que ele permanecia perfeitamente seco. O Director tinha propensão a sofrer de uma infecção recorrente nos brônquios; para ele, a humidade de um Inverno inglês era o mesmo que atravessar um campo ttunado sem um mapa.

— O Picasso está na linha segura de Washington — disse Daphne. O Director tinha gasto com ela milhares de libras em terapia da fala para lhe eliminar do sotaque a melodia cadenciada própria da Jamaica. Agora, tinha a voz de uma apresentadora de noticiário da BBC.

— Vai atender a chamada agora ou quer que eu ligue para ela mais tarde?

— Pode ser agora.

Dirigiu-se de imediato para o escritório, carregou no botão verde que piscava no telefone e levantou o auscultador. Ficou a ouvir durante vários minutos, murmurou algumas palavras e escutou novamente.

— Está tudo bem, meu doce? — perguntou Daphne, após o Director pousar o auscultador.

— Precisamos de ir a Míconos amanhã de manhã — respondeu ele. — Receio bem que Monsieur Delaroche esteja metido num sarilho bastante grave.

O tempo mantinha-se invernoso em Londres, mas a temperatura estava amena e havia bastante sol quando o avião de motor turbopropulsor da Island Air que transportava o Director e Daphne aterrou em Míconos no dia seguinte, ao início da tarde. Instalaram-se num quarto de hotel em Chora e passearam pela zona ribeirinha da Pequena Veneza até encontrarem o café. Delaroche estava sentado numa mesa com vista para o porto. Trazia calções cor de caqui e uma T-shirt sem mangas. Tinha os dedos vermelhos e pretos de tinta. O Director apertou-lhe a mão como se estivesse a tentar medir-lhe a pulsação; a seguir, puxou do lenço branco de algodão que trazia no bolso do peito do casaco e esfregou-o ao de leve na palma da mão.

— Algum sinal da oposição? — perguntou ele, suavemente. Delaroche abanou a cabeça.

— E que tal se fôssemos para a tua villa? — sugeriu o Director. — Gosto mesmo da maneira como arranjaste aquele sítio.

Delaroche levou-os até ao cabo Mavros na sua amolgada carrinha Volvo. As telas e o cavalete chocalhavam no compartimento traseiro de carga. O Director ia sentado à frente, agarrando com força o apoio de braço enquanto Delaroche avançava a grande velocidade pela estrada estreita e cheia de lombas.

Daphne estava estendida no banco de trás, com a brisa que entrava pelo vidro aberto a agitar-lhe o cabelo.

Delaroche serviu-lhes um jantar no terraço. Quando terminaram, Daphne pediu licença para se levantar e foi deitar-se numa espreguiçadeira, onde já não os conseguia ouvir.

— Felicito-te pelo teu trabalho no caso do Ahmed Hussein — disse o Director, erguendo o seu copo de vinho.

Delaroche não retribuiu o gesto. Não retirava prazer do acto de matar, apenas uma sensação de realização por ter cumprido uma missão de modo profissional. Não se considerava um homicida; era um assassino profissional. Os homens que ordenavam os assassínios eram os verdadeiros homicidas. Ele era apenas a arma.

— Os contratantes estão bastante satisfeitos — afirmou o Director, numa voz tão seca como folhas mortas. — A morte do Hussein provocou precisamente a reacção que esperavam. Mas deixou-nos, no entanto, com um problemazinho de segurança no que te diz respeito.

A nuca de Delaroche começou a escaldar de repente com uma onda de inquietação. Ao longo da carreira, precavera-se obsessivamente com a sua segurança pessoal. A maior parte das pessoas no seu ramo de actividade fazia regularmente operações plásticas para alterar a aparência. Delaroche lidava com isso de outra maneira: apenas um punhado de pessoas que sabia como ele ganhava realmente a vida lhe tinha visto a cara. As únicas fotografias dele eram as que estavam nos passaportes falsos, e Delaroche tinha alterado a aparência ligeiramente em cada uma delas de forma a torná-las inúteis para a polícia e os serviços secretos. Quando passava pelos aeroportos ou terminais ferroviários, trazia sempre um chapéu e óculos de sol para esconder a cara das câmaras de vigilância. Ainda assim, estava ciente de que a CIA sabia da sua existência e de que tinha compilado um dossiê bastante extenso acerca dos seus assassínios ao longo dos anos.

— Que tipo de problema de segurança? — perguntou Delaroche.

— A CIA enviou um alerta à Interpol e a todos os serviços secretos com quem mantém boas relações. Foste colocado numa lista de vigilância internacional. Todos os agentes do controlo de passaportes e polícias fronteiriços da Europa têm um exemplar.

O Director tirou uma folha de papel dobrada do bolso do peito do casaco e entregou-a a Delaroche. Este desdobrou-a e deparou-se com um esboço compósito da sua própria cara. Estava extraordinariamente parecido; era evidente que tinha sido produzido por um computador sofisticado.

— Pensava que eles achavam que eu estava morto.

— Também eu, mas é evidente que agora partem do princípio de que estás bem vivo — atirou o Director, fazendo uma pausa para acender um cigarro. — Tu não deste nenhum tiro na cara do Ahmed Hussein, pois não?

Delaroche abanou a cabeça lentamente e tocou com o indicador no peito. Possuía uma única vaidade profissional — ao longo dos anos, matara a maioria das suas vítimas com três tiros na cara. Supunha que o fazia porque queria que os inimigos soubessem da sua existência. Delaroche tinha apenas duas coisas na vida, a sua arte e o seu ofício. Não assinava os quadros por razões de segurança, e aqueles que vendia eram vendidos anonimamente. Tinha preferido deixar uma assinatura nos assassínios.

— Quem é que está por trás disto? — perguntou Delaroche.

— O teu velho amigo, o Michael Osbourne.

— O Osbourne? Pensei que se tivesse reformado.

— Foram buscá-lo recentemente para chefiar um destacamento especial da CIA dedicado à Irlanda do Norte. Parece que ele também possui alguns conhecimentos nessa área.

Delaroche devolveu o esboço ao Director.

— E o que é que tem em mente?

— Parece-me que temos duas opções. Se não fizermos nada, lamento dizê-lo, mas a tua capacidade para trabalhar fica seriamente prejudicada. Se não podes viajar, não podes trabalhar. E, se a tua cara é conhecida pelos polícias do mundo inteiro, não podes viajar.

— E a opção número dois?

— Damos-te uma nova cara e um novo sítio para viver. Delaroche contemplou o mar. Sabia que não tinha outra hipótese a não ser passar por uma cirurgia plástica e alterar a aparência. Se não pudesse trabalhar, o Director acabaria com a relação deles. Perderia a protecção da Sociedade e perderia a capacidade de poder ganhar a vida. Teria de passar o resto da vida a olhar por cima do ombro, a perguntar-se em que dia os inimigos o viriam apanhar. Delaroche, mais do que tudo, queria segurança, e isso significava aceitar a proposta do Director.

— E tem alguém que possa fazer o trabalho?

— Um francês chamado Maurice Leroux.

— É de confiança?

— Absolutamente — respondeu o Director. — Tu não podes sair da Grécia antes de ser feita a operação. Por isso, o Leroux terá de vir cá. Vou arrendar um apartamento em Atenas onde ele poderá fazer o trabalho. Podes recuperar lá até que as cicatrizes tenham sarado.

— Então e a villa?

— Vou mantê-la, por enquanto. Preciso de um espaço para a reunião da Primavera do conselho executivo. E isto vai servir lindamente.

Delaroche olhou em redor. A casa isolada na parte norte de Míconos tinha-lhe fornecido tudo aquilo de que precisava: privacidade, segurança, temas excelentes para as suas obras, um terreno estimulante para andar de bicicleta. Não queria abandoná-la — tal como não quisera abandonar a sua última casa, na costa da Bretanha, em França —, mas não havia escolha.

— Vamos ter de te arranjar um sítio novo para viver — disse o Director. — Tens alguma preferência?

Delaroche pensou durante um momento.

— Amesterdão.

— Falas holandês?

— Não muito, mas não vai levar muito tempo.

— Muito bem — rematou o Director. — Que seja Amesterdão.

Stavros, o agente imobiliário, providenciou um caseiro. Delaroche informou-o de que iria estar fora durante bastante tempo, mas que um amigo poderia vir a utilizar a villa de vez em quando. Stavros ofe-feceu-se para levá-lo até à taberna para uma refeição de despedida; Delaroche recusou educadamente.

Passou o último dia em Míconos a pintar: a praça em Ano Mera, o terraço da villa, os rochedos em Linos. Trabalhou do raiar do Sol ao anoitecer, até a mão direita, a mão que tinha sido ferida, lhe começar a doer.

Ficou sentado no terraço a beber vinho até o pôr do Sol pintar a villa caiada de branco com um tom de siena natural que Delaroche nunca poderia ter esperanças de reproduzir na tela.

Foi para dentro de casa e acendeu vários troncos na lareira. A seguir, percorreu a villa, divisão por divisão, armário por armário, gaveta por gaveta, e queimou tudo aquilo que indiciasse que ele alguma vez tinha existido.

— É uma pena que tenhamos de estragar uma cara tão bonita — disse Maurice Leroux no dia seguinte.

Estavam sentados diante de um espelho grande e ofuscantemente iluminado, no apartamento em Atenas que o Director tinha arrendado para a operação e posterior recuperação de Delaroche.

Leroux prosseguiu, sondando a maçã do rosto de Delaroche delicadamente com a ponta do seu indicador fino.

— O senhor não é francês — declarou solenemente, como se acreditasse que isso pudesse ser uma notícia dura para um conterrâneo francês. — Uma pessoa aprende bastantes coisas sobre etnia e linhagem nesta actividade. Eu diria que o senhor é eslavo ou talvez até mesmo russo.

Delaroche não disse nada enquanto ele prosseguia com a sua palestra.

— Consigo ver isso aqui, nas maçãs do rosto largas, na testa plana e na linha angulosa do maxilar. E veja bem isto, veja só os seus olhos. São praticamente em forma de amêndoa e de um azul brilhante. Não, não, o senhor pode ter um nome francês, mas parece-me bem que ha sangue eslavo a correr-lhe nas veias. Mas um sangue eslavo muito requintado.

Delaroche olhou para o reflexo de Leroux no espelho. Era um homem fraco com um nariz grande, um queixo metido para dentro e uma peruca ridícula que era demasiado preta. Estava a tocar outra vez na cara de Delaroche. Tinha as mãos de uma velha — pálidas, macias, com veias azuis e grossas a sobressaírem —, mas tresandavam ao aftershave de um homem novo.

— Às vezes, é possível tornar um homem mais atraente através da cirurgia plástica. Operei um palestiniano há uns anos, um homem chamado Muhammad Awad.

Delaroche estremeceu com a menção do nome de Awad. Leroux tinha cometido o pecado supremo para um homem no seu ramo ao revelar a identidade de um cliente anterior.

— Ele agora está morto, mas estava bastante bonito quando eu acabei de o retocar — continuou Leroux. — No seu caso, acho que vai acontecer o contrário. Lamento dizê-lo, mas vamos ser obrigados a torná-lo menos atraente de maneira a lhe alterarmos a aparência. Está resignado com essa perspectiva, monsieur?

Leroux era um homem feio para quem a aparência importava bastante. Delaroche era um homem atraente para quem a aparência importava muito pouco. Sabia que havia mulheres que o achavam atraente — lindo, em certos casos —, mas nunca tinha dado grande importância ao seu aspecto. Estava apenas preocupado com uma coisa. A sua cara tinha-se tornado uma ameaça e iria lidar com isso da mesma maneira que lidava com todas as ameaças — eliminando-a.

— Faça o que tiver de fazer — disse Delaroche.

— Muito bem — respondeu Leroux. — O senhor tem um rosto de ângulos e arestas definidas. Esses ângulos vão ser transformados em curvas e as arestas vão ficar menos definidas. Pretendo cortar-lhe uma parte das maçãs do rosto para as tornar menos marcadas e mais redondas. Vou injectar-lhe colagénio no tecido das bochechas para tornar-lhe a cara mais pesada. O senhor tem um queixo muito fino. vou torná-lo mais quadrado e grosso. O seu nariz é uma obra-prima, mas receio bem que vá ter de desaparecer. Vou achatá-lo e torná-lo mais largo entre os olhos. Quanto aos olhos propriamente ditos, não ha nada que eu possa fazer, tirando mudar-lhes a cor com lentes de contacto.

— E isso tudo vai funcionar? — perguntou Delaroche.

— Quando eu tiver terminado, nem sequer o senhor reconhecerá a sua cara. — Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, perguntou: Tem a certeza de que quer avançar com isto?

Delaroche anuiu com a cabeça.

— Muito bem — disse Leroux. — Mas sinto-me um bocadinho como aquele idiota que deu umas marteladas na Pietà.

Tirou uma caneta do bolso e começou a fazer marcas na cara de Delaroche.


Capítulo 21

LONDRES

 

Preston McDaniels era um funcionário de carreira dos Negócios Estrangeiros ligado à secção das relações públicas da embaixada americana em Londres. Tinha quarenta e cinco anos, era delgado e de aspecto agradável, ainda que não fosse atraente em termos convencionais. E era também um solteirão perpétuo que tinha namorado com poucas mulheres, algo que levara a uma persistente especulação por parte dos colegas de que era homossexual. Mas Preston McDaniels não era homossexual; simplesmente, nunca tinha sido bem-sucedido com as mulheres. Até há pouco tempo.

Eram seis da tarde e McDaniels estava a guardar as suas coisas e a arrumar o seu pequeno gabinete. Ficou parado diante da janela e contemplou a Grosvenor Square.

Tinha lutado muito para chegar a Londres depois de anos de colocações brutais em sítios como Lagos, Cidade do México, Cairo e Islamabad. Nunca fora tão feliz. Adorava o teatro, os museus, as compras, os locais interessantes onde ir ao fim-de-semana. Tinha um apartamento chique em South Kensington e ia todas as manhãs para o emprego de metro. O seu trabalho continuava a ser bastante entediante — emitia comunicados de imprensa rotineiros, preparava resumos diários da imprensa britânica em relação as questões de interesse para o embaixador e coordenava a cobertura jornalística dos acontecimentos públicos que envolviam o embaixador —? mas o facto de estar a viver em Londres fazia, de alguma forma, com que tudo parecesse entusiasmante.

Pegou num monte de dossiês que se encontravam na secretária e guardou-os na pasta de couro. Tirou o impermeável do cabide por trás da porta e saiu do gabinete. Parou na casa de banho e examinou-se ao espelho.

Por vezes, perguntava-se o que veria ela nele. Tentou arranjar o cabelo de maneira a esconder o sítio em que já estava careca, mas conseguiu apenas piorar as coisas.

Ela dizia que gostava de homens que começavam a ficar carecas, dizia que tinham um ar mais inteligente, mais maduro. Ela é muito nova para mim, pensava ele, nova e demasiado bonita. Mas não era capaz de resistir. Pela primeira vez na vida, encontrava-se numa relação sexual excitante. Não podia parar agora.

Lá fora, estava a chover e a noite tinha caído sobre a Grosvenor Square. Abriu um guarda-chuva para se proteger e foi avançando com atenção pelos passeios apinhados, em direcção ao restaurante em Park Lane. Parou à porta do restaurante e ficou a observá-la pela janela por um momento. Era alta e elegante, com cabelo preto volumoso, um rosto oval e olhos cinzentos. A blusa branca não conseguia esconder-lhe os seios grandes e arredondados. Era uma amante maravilhosa; parecia conhecer todas as fantasias dele. Todas as tardes, no emprego, ficava a olhar especado para o relógio, antecipando o momento em que a iria poder ver novamente.

McDaniels entrou no restaurante e sentou-se numa mesa do bar. Quando ela o avistou, piscou-lhe o olho e, mexendo silenciosamente a boca, disse: "Já vou aí ter."

Trouxe-lhe um copo de vinho branco passado um instante. Ele tocou-lhe na mão quando ela pousou o copo na mesa.

— Tive imensas saudades tuas, querida.

— Estava a ver que nunca mais vinhas — respondeu ela. — Mas não posso falar muito tempo. O Ricardo anda completamente psicótico esta noite. Se me vê a conversar contigo, despede-me.

— Só estás a ser simpática para um cliente habitual. Ela sorriu sedutoramente e disse:

— Muito simpática.

— Preciso de te ver.

— Saio às dez.

— Não consigo esperar tanto tempo.

— Lamento, mas não tens outra hipótese.

Piscou-lhe o olho e afastou-se. McDaniels bebeu o vinho e ficou observá-la enquanto ela ia de mesa em mesa, apontando pedidos, trazendo comida e interagindo com os clientes. Era o tipo de mulher em que os homens reparavam. Demasiado atraente e demasiado talentosa para andar a servir à mesa. Ele sabia que ela acabaria por encontrar o seu lugar no mundo e que nessa altura o iria deixar.

McDaniels terminou o vinho, deixou uma nota de dez libras em cima da mesa e foi-se embora. Deu-se conta de que era demasiado dinheiro por um único copo de vinho.

"Vai ficar a pensar que eu acho que ela é uma puta", pensou. Pôs a hipótese de voltar a entrar e deixar menos dinheiro, mas sabia que isso iria parecer ainda mais estranho. Afastou-se, a pensar que se ela alguma vez o deixasse ele era bem capaz de se matar.

McDaniels demorou a voltar para casa. A chuva acalmou, pelo que foi a pé, desfrutando da cidade e da sensação de levitação provocada pelo vinho e por ter passado alguns minutos, mesmo que poucos, com Rachel. Nunca tinha sentido nada parecido com uma obsessão, mas sabia que só podia ser qualquer coisa do género. Aquilo estava a começar a afectar-lhe o trabalho. Dormitava durante as reuniões, esquecia-se do que estava a dizer a meio de uma frase. As pessoas começavam a falar, a fazer perguntas.

Mas a verdade é que ele não se aportava. Tinha vivido a vida inteira sem o amor de uma mulher. Ia desfrutar dessa sensação enquanto durasse.

Jantou num pub logo a seguir à Brompton Road. Leu os jornais e, durante alguns minutos, Rachel foi capaz de não se intrometer nos seus pensamentos. Mas, passado um bocado, lá estava ela outra vez, como um agradável trecho de música a girar-lhe na cabeça. Imaginou-a na cama, com a boca aberta de prazer e os olhos fechados.

A seguir, as fantasias tontas tomaram conta dele: a cerimónia de casamento numa igreja no campo inglês, o chalé em Cotswolds, os filhos. Era uma imagem ridícula, mas deleitou-se com aquela ideia. Tinha-se apaixonado perdidamente, mas Rachel não parecia ser uma rapariga casadoira. Queria escrever. Prezava a sua liberdade — liberdade intelectual e liberdade sexual. Assim que lhe falasse em casamento, o mais certo era ela pôr-se a milhas o mais depressa possível.

McDaniels foi percorrendo lentamente as sossegadas ruas secundárias de South Kensington. Tinha um agradável apartamento de dois quartos, no primeiro andar de uma moradia georgiana. Entrou e passou em revista o correio da tarde. Tomou um duche prolongado e mudou de roupa, vestindo umas calças cor de caqui e um pulôver de algodão.

Servia-se do quarto vago como escritório. Viu as Nine o'Clock News na televisão enquanto ia analisando uma pilha de documentos que trouxera do trabalho. O embaixador Cannon iria ter um dia atarefado: uma reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros, um almoço formal com um grupo de dirigentes empresariais britânicos, uma entrevista com um repórter do The Times. Quando terminou, colocou os documentos num dossiê em papel manilha e voltou a guardá-lo na pasta.

Pouco antes das dez e meia, o intercomunicador tocou baixinho. McDaniels carregou no botão e perguntou num tom brincalhão:

— Quem é?

— Sou eu, querido — respondeu ela. — Estavas à espera de uma das tuas outras amantes?

Era um joguinho que faziam: brincavam acerca de outros amantes, fingiam ter ciúmes. Era espantoso como a relação deles tinha progredido tão rapidamente.

— Tu és a única mulher que eu tive em toda a minha vida.

— Mentiroso.

— Desliga e eu deixo-te entrar.

Alisou o cabelo enquanto esperava que ela chegasse. Ouviu o som de passos do lado de fora, no corredor, mas não queria dar a ideia de estar demasiado ansioso por vê-la e por isso esperou que ela batesse. Quando abriu a porta, ela abraçou-o e beijou-o na boca. Os lábios abriram-se e a sua língua de seda enfiou-se por cima da dele. Ela afastou-se ligeiramente e disse:

— Estive a noite toda à espera de fazer isto. Preston McDaniels sorriu.

— Como é que eu tive a sorte de encontrar alguém como tu?

— Eu é que sou a sortuda.

— Posso arranjar-te alguma coisa para beber?

— Na verdade, estou com um grave problema e tu és o único que me pode ajudar.

Pegou-lhe na mão e levou-o para o quarto, desabotoando a blusa enquanto ia andando. Empurrou-o para o fundo da cama e encostou a cara dele contra os seus seios.

— Oh, meu Deus — gemeu ele.

— Depressa, querido — disse ela. — Por favor, despacha-te.

Rebecca Wells acordou às três da manhã. Deixou-se ficar deitada, sem se mexer, durante vários minutos, a ouvir a respiração de McDaniels. Ele tinha um sono pesado por natureza e tinha feito amor com ela duas vezes nessa noite. Sentou-se na cama e ergueu-se com todo o cuidado, atravessando depois o quarto. A blusa estava caída no chão, onde a tinha deixado. Pegou nela, saiu do quarto e fechou a porta.

Vestiu a blusa ao atravessar o corredor, entrando no escritório. Fechou também essa porta e sentou-se à secretária. A pasta estava no chão, por fechar. Abriu-a e folheou o que lá estava dentro até descobrir aquilo que procurava: o dossiê com os pormenores da agenda do embaixador Douglas Cannon para o dia seguinte.

Pegou num bloco de notas que estava em cima da secretária e começou a escrevinhar furiosamente. Estava ali tudo — as horas de cada reunião, o método de transporte, o percurso. Acabou de apontar a agenda e passou rapidamente em revista o resto dos documentos para ver se havia alguma coisa interessante. Depois de terminar, voltou a guardar o dossiê no lugar que lhe cabia na pasta e desligou a luz.

Passou sorrateiramente para o corredor e entrou na casa de banho. Fechou a porta e acendeu a luz. Atirou água à cara e pôs-se a olhar fixamente para o seu reflexo no espelho.

Tinha jurado a si própria quando o IRA matou Ronnie: nunca voltaria a casar e nunca levaria outro homem para a cama de ambos.

Achara que seria um juramento difícil de cumprir, mas o ódio que lhe encheu o coração após a morte dele não deixou espaço para qualquer outro sentimento, em especial o amor por outro homem. Alguns homens de Portadown tinham tentado andar atrás dela, mas rechaçara-os a todos. E, dentro da brigada, os homens sabiam bem que não valia a pena perderem o seu tempo.

Pensou em Preston McDaniels dentro dela e quis vomitar. Disse a si mesma que era por uma causa importante, o futuro do estilo de vida protestante na Irlanda do Norte.

De certa maneira, quase sentia pena de McDaniels. Era um homem decente, bom e gentil, mas tinha caído no truque mais velho do mundo — a armadilha da sedução. Naquela noite, tinha-lhe dito que estava apaixonado por ela. Rebecca tinha medo do que iria acontecer a McDaniels quando, inevitavelmente, viesse a descobrir que ela o traíra.

Bebeu um copo de água e puxou o autoclismo; a seguir, apagou a luz e enfiou-se outra vez na cama.

— Estava a ver que nunca mais voltavas — disse McDaniels baixinho.

Ela quase gritou, mas conseguiu manter a compostura.

— Estava só com um bocadinho de sede.

— E também trouxeste para mim?

— Desculpa, querido.

— Por acaso, há outra coisa que eu quero. — Rebolou para cima dela. — A ti — disse ele.

— E consegues? — Enfiou-lhe a mão na virilha. — Bem, bem, bem — disse ela. — Temos de fazer qualquer coisa em relação a isso.

Ele penetrou-a bem fundo.

Rebecca Wells fechou os olhos e pensou no marido morto.


Capítulo 22

MONTANHAS SPERRIN, IRLANDA DO NORTE

 

Pouco tempo depois de a Irlanda do Norte ter explodido numa onda de violência em 1969, os serviços secretos britânicos decidiram que a melhor maneira de combater o terrorismo era seguir os movimentos de terroristas específicos. Membros conhecidos de organizações paramilitares são habitualmente seguidos e vigiados pelos serviços secretos britânicos e pela E4, a unidade especial de vigilância da Polícia Real do Ulster. Os avistamentos e as deslocações são introduzidos num computador do quartel-general dos serviços secretos do exército, em Belfast. Se um terrorista desaparecer subitamente de uma lista de vigilância, o computador lança de forma automática um alerta vermelho e as forças de segurança partem do princípio de que ele provavelmente estará envolvido numa operação.

Uma vigilância dessa magnitude requer milhares de agentes e tecnologia avançada. Os locais mais problemáticos, como a Falis Road, em Belfast, são vigiados por uma enorme quantidade de câmaras de vídeo. O exército possui um posto permanente no cimo dos imponentes Divis Flats. Durante o dia, os soldados vasculham as ruas com binóculos de alta potência, à procura de membros conhecidos do IRA; a noite, passam revista com óculos de visão nocturna. Os serviços de segurança colocam sinalizadores nos carros; colocam escutas e mini-câmaras de vídeo nas casas, pubs, automóveis e barracões de feno; controlam os telefones. E até já têm colocado escutas em armas específicas para lhes seguirem os movimentos ao longo da região. À noite, aviões sofisticados dos serviços secretos patrulham os céus, à procura de actividade humana onde não deveria haver nenhuma. Pequenos aviões não tripulados realizam operações de reconhecimento a baixa altitude. Há sensores escondidos nas árvores para detectar movimentos humanos.

Porém, apesar de todo o equipamento de alta tecnologia, muito deste controlo tem de ser feito à moda antiga, através da vigilância homem a homem. É um trabalho perigoso, por vezes fatal. Agentes clandestinos patrulham regularmente a zona de Belfast à volta da Falis Road. Escondem-se em sótãos e telhados durante dias, sobrevivendo graças a rações de campanha enquanto fotografam as suas presas. No campo, escondem-se em buracos, por trás de arbustos, em cima de árvores. No léxico da espionagem na Irlanda do Norte, essa prática é conhecida como "entrincheiramento". E foi esse o método escolhido para vigiar a casa de campo em ruínas à saída da aldeia de Cranagh, nas montanhas Sperrin.

Graham Seymour chegou de Londres ao sexto dia da operação. Como posto permanente, tinham escolhido uma pequena mata de tojo, rodeada por um conjunto de faias altas, numa encosta a cerca de oitocentos metros da casa. Um par de agentes da E4 tratava do equipamento técnico: teleobjectivas e máquinas fotográficas com infravermelhos, microfones direccionais de longo alcance. Trabalhavam tão silenciosamente como jovens acólitos e pareciam ser igualmente novos. Em tom de brincadeira, apresentaram-se como Marks e Sparks. Ao longo dos anos, o IRA emboscara e matara dezenas de agentes secretos em operações de vigilância; por isso, apesar de se suspeitar que os alvos eram lealistas, não quiseram correr quaisquer riscos. Dois comandos da unidade de elite dos Serviços Aéreos Especiais, a SAS, formavam um perímetro protector em redor de Graham e de Marks e Sparks. Traziam equipamento de camuflagem e tinham pintado a cara de preto. Por duas vezes, Graham quase tropeçou neles quando ia aliviar-se no tojo. Desejava ardentemente um cigarro, mas não era permitido fumar. E, após três dias sem comer mais nada a não ser porcarias especiais com muitas calorias, o desespero era tal, que ate ansiava pelos cozinhados terríveis de Helen. À noite, quando ia dormir na encosta húmida e gelada, rogava pragas silenciosas a Michael Osbourne.

Era evidente que havia qualquer coisa que não batia certo na casa de campo, no pequeno vale estreito por baixo deles. Dois irmãos chamados Dalton eram os proprietários.

Cuidavam de um pequeno rebanho de.ovelhas escanzeladas e algumas dúzias de galinhas. Todos os dias, uma vez de manhã e outra ao anoitecer, percorriam lentamente os limites da propriedade, como se procurassem indícios de problemas.

Receberam a sua primeira visita na décima noite.

Chegou num pequeno Nissan. Marks e Sparks começaram a disparar rapidamente as máquinas fotográficas com infravermelhos, ao passo que Graham espreitava em direcção à casa pelos binóculos de visão nocturna. Viu um homem alto, de constituição robusta e com um punhado de cabelos desgrenhados, a transportar um saco de ténis ao ombro direito.

— O que é que achas? — perguntou Graham a ninguém em especial.

— Ele está a tentar fazer com que aquilo pareça leve — respondeu Marks —, mas a alça do ombro está retesada.

— De certeza que não leva raquetes e bolas dentro daquela coisa — confirmou Sparks.

Graham pegou num pequeno rádio e contactou a esquadra da RUC em Cookstown, a vinte e cinco quilómetros a sudeste dali.

— Temos companhia. Aguardem novas instruções.

O visitante permaneceu dentro da casa de campo durante vinte minutos. Marks e Sparks tentaram escutar o que se passava dentro de casa, mas tudo o que conseguiram ouvir foi Bach a sair aos berros de uma aparelhagem com um som metálico.

— Reconheces a composição?

— Concerto Número Cinco em BJMaior- respondeu Sparks.

— Encantador, não é?

— Sem dúvida.

Graham estava a espreitar para o vale com binóculos equipados com infravermelhos.

— Ele está a sair — avisou.

— Uma estadia curta para estas horas da noite — comentou Marks.

— Se calhar, teve de ir aliviar-se — juntou Sparks.

— Cá para mim, foi provavelmente aliviar-se de umas quantas armas — respondeu Marks. — Aquele saco tem um ar um bocadinho mais leve agora, não te parece?

Graham pegou outra vez no rádio e alertou Cookstown.

— O alvo está a dirigir-se para leste, a caminho de Mount Hamilton. Façam com que pareça uma operação stop de rotina. Ponham a circular na rádio a notícia de que há um alerta de segurança na zona. Enviem para lá uns quantos tipos para que ele não fique com a ideia de que o estamos a destacar. Eu já aí apareço daqui a uns minutos.

O homem que ia no Nissan era Gavin Spencer, o chefe de operações da Brigada para a Libertação do Ulster, e o saco de ténis — agora vazio e colocado no banco ao lado dele — levara lá dentro um carregamento de metralhadoras Uzi de fabrico israelita, provenientes de um traficante de armas do Médio Oriente. As armas tinham como destino serem utilizadas para o assassínio do embaixador Douglas Cannon. Por enquanto, estavam escondidas no interior de uma parede de pedra na cave da casa de campo.

Gavin Spencer tinha seleccionado a sua equipa e informara-os da missão. Rebecca Wells tinha obtido acesso à agenda do embaixador em Londres e andava a enviar relatórios regularmente. Tudo o que precisavam agora era do momento certo, do momento em que Cannon estivesse mais vulnerável. Só iriam ter uma oportunidade. Se cometessem algum erro — se falhassem —, os britânicos e os americanos iriam reforçar ainda mais a segurança e eles nunca voltariam a conseguir aproximar-se dele.

Spencer avançou a toda a velocidade pela tortuosa B47, passando pela escurecida aldeia de Mount Hamilton e regressando depois à estrada. Uma onda de alívio percorreu-o.

As armas já não estavam no carro, encontrando-se naquele momento bem seguras dentro das paredes da casa de campo. Se tivessem sido descobertas na sua posse, teria recebido um bilhete só de ida para a prisão de Maze. Carregou no acelerador e o Nissan respondeu, subindo e descendo as lombas da estrada. Ligou o rádio, na esperança de apanhar um pouco de música, mas um boletim informativo na rádio do Ulster chamou-lhe a atenção. Tinha sido declarado um alerta de segurança para as montanhas Sperrin, entre Omagh e Cookstown.

Passados cinco quilómetros, avistou as luzes azuis a piscar de um carro de patrulha da RUC e o volumoso contorno de dois camiões blindados de transporte de tropas.

Um agente da RUC estava parado no meio da estrada, a fazer sinal com a lanterna para Spencer encostar à berma. Spencer parou e desceu o vidro da janela do carro.

— Há um alerta de segurança para esta zona hoje à noite — disse o homem da RUC. — O senhor importa-se que lhe pergunte para onde vai esta noite?

— Para casa, em Portadown — respondeu Spencer.

— E o que é que o traz por aqui?

— Vim visitar um amigo.

— E onde é que está o amigo?

— Em Cranagh.

— Posso ver a sua carta de condução?

Spencer entregou-a. Um segundo carro parou atrás dele. Spencer conseguiu ouvir outro agente a fazer ao condutor as mesmas perguntas que lhe tinham sido feitas a ele. O homem da RUC deu uma vista de olhos à carta e devolveu-a a Spencer.

— Muito bem — disse ele. — Vamos só dar uma olhadela à sua viatura. Importa-se de sair do carro?

Spencer saiu. O homem da RUC entrou no carro e parou-o atrás dos camiões de transporte de tropas. Passado um momento, o segundo carro desapareceu por trás dos camiões.

O condutor era um homem atarracado, de constituição robusta, com cabelo cortado à escovinha e um bigode a ficar grisalho. Parou junto a Spencer, com as mãos nos bolsos do casaco de cabedal.

— Mas para que é que é isto tudo, porra? — perguntou.

— Disseram que há um alerta de segurança.

— Os cabrões do IRA, de certeza absoluta.

— Calculo que sim — respondeu Spencer.

O homem acendeu um cigarro e deu outro a Spencer. Começou a chover. Gavin Spencer pôs-se a fumar e tentou parecer o mais calmo possível enquanto a RUC e o exército lhe viravam o carro do avesso.

Graham Seymour estava parado atrás de um dos camiões do exército enquanto uma equipa de soldados e polícias vasculhava o Nissan. Utilizaram um aparelho portátil para poderem espreitar por baixo dos estofos dos bancos e ver se havia armas lá escondidas. Fizeram testes à procura de resíduos de explosivos. Vasculharam a parte inferior da carroçaria e por baixo do capô. Desaparafusaram os painéis laterais e espreitaram por baixo do forro. Abriram o porta-bagagens e reviraram o que lá estava dentro.

Passados dez minutos, um dos homens da RUC, sem dizer nada, fez sinal a Seymour para se aproximar. Dentro do pneu sobressalente, embrulhados num trapo besuntado de óleo, tinham descoberto alguns documentos com aspecto suspeito.

Graham serviu-se da lanterna do polícia e fê-la incidir sobre os documentos. Folheou-os rapidamente, memorizando o máximo de pormenores de que era capaz, e devolveu-os ao polícia.

— Coloque-os onde os encontrou — ordenou. — Exactamente como os encontrou.

O homem da RUC acenou com a cabeça e fez o que lhe mandaram.

— Escondam um dispositivo de localização no carro e deixem-no ir embora — disse Graham. — E depois ponham-me outra vez em Belfast o mais depressa possível, porra.

Temos um problema bastante sério, receio bem.


Capítulo 23

NOVA IORQUE

PORTADOWN

 

Eram sete da tarde quando Michael Osbourne saiu do posto de Nova Iorque da CIA, no World Trade Center, e fez sinal a um táxi para parar. Já tinham passado praticamente duas semanas desde que regressara de Londres e começava a adaptar-se confortavelmente à rotina da sua nova vida dentro da CIA. Normalmente, trabalhava três dias por semana em Washington e dois em Nova Iorque. A Divisão de Contra-Espionagem estava a terminar o inquérito à morte de Kevin Maguire e Michael mostrava-se convicto de que a sua versão dos acontecimentos iria ser aceite: o IRA já suspeitava de Kevin Maguire antes da viagem de Michael a Belfast e a sua morte, embora lamentável, não tinha sido culpa dele.

O táxi foi avançando vagarosamente até à alta da cidade, no meio de um engarrafamento. Michael lembrou-se da Irlanda do Norte — das luzes ténues de Belfast, no sopé da Black Mountain, do corpo destroçado de Kevin Maguire amarrado a uma cadeira. Baixou o vidro da janela do seu lado e sentiu o ar frio na cara. Às vezes, passava alguns minutos sem pensar em Maguire, mas à noite, ou quando se encontrava sozinho, o seu rosto despedaçado intrometia-se sempre. Michael estava ansioso por que as informações que Maguire e Devlin lhe tinham fornecido dessem frutos; se a Brigada para a Libertação do Ulster fosse destruída, a morte de Maguire não teria sido em vão.

O taxista era um árabe com a barba não aparada de um muçulmano devoto. Michael indicou-lhe uma morada na Madison Avenue, a cinco quarteirões do apartamento. Pagou a corrida e percorreu os passeios apinhados, parando para contemplar algumas montras de lojas, verificando constantemente se estava a ser seguido. Era aquele medo enervante de que um dia um velho inimigo lhe apareceria para se vingar. Lembrou-se do pai, a vasculhar o carro à procura de bombas, a desmontar telefones e a verificar se havia sinais de que o estivessem a vigiar, até ao dia em que morreu. O secretismo era como uma doença, a ansiedade, como um velho amigo de confiança. Michael revelava-se resignado com o facto de que isso nunca o abandonaria — o assassino chamado Outubro encarregara-se disso.

Seguiu para oeste, até à Quinta Avenida, e depois virou à direita e dirigiu-se para a alta da cidade. A actividade da espionagem exigia uma paciência assinalável, mas Michael começava a ficar cada vez mais inquieto em relação a Outubro. Todas as manhãs, sondava os telegramas, na esperança de apanhar algum vislumbre dele numa lista de vigilância — uma aparição num aeroporto ou num terminal ferroviário —, mas não tinha aparecido nada. À medida que o tempo fosse passando, o rasto ficaria cada vez mais difícil de seguir.

Michael entrou no seu prédio e subiu no elevador até ao apartamento. Elizabeth já estava em casa. Deu-lhe um beijo na face e pôs-lhe um copo de vinho branco nas mãos.

— A tua cara está a começar a parecer quase normal — disse ela.

— E isso é uma coisa boa ou má? Ela deu-lhe um beijo nos lábios.

— Uma coisa boa, sem dúvida. Como é que te sentes? Michael olhou para ela com perplexidade.

— Mas que raio é que te deu?

— Nada, querido, só estou feliz por te ver.

— E também é bom ver-te a ti. Como é que foi o teu dia?

— Não foi mau — respondeu ela. — Passei o dia a preparar a minha testemunha principal para ir a tribunal.

— E ele vai aguentar-se?

— Por acaso, estou com medo que dêem cabo dele durante o contra-interrogatório.

— As crianças ainda estão acordadas?

— Acabaram de adormecer.

— Quero vê-las.

— Michael, se as acordares, juro por Deus que...

Michael entrou no quarto das crianças e debruçou-se sobre os berços. As crianças dormiam viradas uma para a outra, lado a lado, para que pudessem ver-se mutuamente através das ripas dos berços. Ele ficou ali parado durante bastante tempo, a ouvi-las a respirar baixinho. Por alguns minutos, sentiu-se em paz, uma sensação de satisfação que há muito não experimentava. A seguir, a ansiedade voltou a apanhá-lo de surpresa, o medo de que os seus inimigos pudessem fazer-lhe mal ou aos filhos.

Ouviu o telefone a tocar. Beijou cada um deles e saiu do quarto.

Na sala de estar, Elizabeth estendeu-lhe o telefone.

— É o Adrian — disse ela. Michael tirou-lhe o telefone da mão.

— Sim? — Ficou a ouvir durante alguns minutos, sem falar, e depois murmurou: — Meu Deus.

Desligou o telefone.

— O que é que aconteceu? — perguntou Elizabeth.

— Tenho de ir a Londres.

— Quando?

Michael viu que horas eram no relógio.

— Ainda consigo apanhar um voo hoje à noite se me despachar. Elizabeth olhou atentamente para ele.

— Michael, eu nunca te vi assim. O que é que aconteceu?

Ao início da manhã do dia seguinte, enquanto o jacto da British Airways que transportava Michael Osbourne se aproximava do Aeroporto de Heathrow, Kyle Blake e Gavin Sp encer iam a andar lado a lado pela Market High Street, em Portadown. A leste, o céu começava a ficar cinzento-azulado com o amanhecer que se aproximava. Na rua, os candeeiros ainda estavam ligados. O ar cheirava a terra de cultivo e a pão a cozer no forno. Spencer caminhava com a passada larga e ágil de um homem com poucas preocupações, o que não era o caso naquela manhã. Kyle Blake, bastante mais pequeno e vários centímetros mais estreito, possuía a economia de movimentos de um brinquedo a pilhas. Spencer falou durante muito tempo, afastando constantemente a madeixa de cabelo preto e espesso que lhe caía sobre a testa. Blake ouvia com grande concentração, acendendo um cigarro atrás de outro.

— Talvez os teus olhos te andem a pregar partidas — disse Kyle Blake, falando por fim. — Talvez eles estivessem a dizer a verdade. Talvez tenha sido mesmo um alerta de segurança normal.

— Fizeram uma revista completa ao carro — respondeu Spencer. — E demoraram bastante tempo a fazê-lo, foda-se.

— E falta alguma coisa? Spencer abanou a cabeça.

— E está lá alguma coisa que não devesse estar?

— Vasculhei a porra do carro de uma ponta à outra. Não descobri nada, mas isso não quer dizer muita coisa. Aqueles aparelhos de escuta são tão pequenos, que eles podiam pôr um dentro do meu bolso e eu nem perceberia.

Kyle caminhou em silêncio durante um momento. Gavin Spencer era um homem inteligente e um chefe de operações talentoso. Não era o tipo de pessoa que fosse ver uma ameaça onde não existia nenhuma.

— Se tiveres razão, se eles andavam atrás de ti, isso quer dizer que andam a vigiar a casa de campo.

— Sim — respondeu Spencer. — E eu acabei de esconder la o primeiro carregamento de Uzi. Preciso dessas metralhadoras para tratar do embaixador. Sou capaz de matar o Eamonn Dillon com uma pistola, mas, se vou assassinar um embaixador americano, preciso de um poder de fogo bem mais considerável.

— E qual é o ponto de situação da equipa?

— O último homem parte hoje à noite para Inglaterra noferry para Liverpool. Amanhã, ao final da tarde, terei quatro dos meus melhores rapazes em Londres, à espera da ordem para atacar. Mas eu preciso daquelas armas, Kyle.

— Então, vamos buscar as armas.

— Mas a casa está sob vigilância.

— Então, eliminamos os vigias — respondeu Blake.

— Provavelmente, esses homens estão protegidos pela SAS. Quanto a ti, não sei, mas eu não estou com vontade de me meter com a porra da SAS neste preciso momento.

— Sabemos que eles andam algures por ali. Tudo o que precisamos de fazer é descobri-los — afirmou Blake, parando de andar e fitando Spencer com firmeza. — Além disso, se o raio do IRA é capaz de enfrentar a SAS, nós também somos.

— Eles são soldados britânicos, Kyle. E nós já fomos soldados britânicos, lembras-te?

— Mas já não estamos do mesmo lado — respondeu Blake rispi-damente. — Se os britânicos querem fazer joguinhos, nós vamos alinhar na porra dos joguinhos.


Capítulo 24

LONDRES

 

— Parece que vocês têm uma fuga de informação algures neste edifício — disse Graham Seymour.

Estavam sentados à mesa, num cubículo de vidro insonorizado na secção da CIA na embaixada: Michael, Graham, Wheaton e Douglas. Quando Graham falou, Wheaton retraiu-se, como se tivesse sido ameaçado com um murro, e começou a apertar a sua bola de ténis. Era um homem permanentemente preparado para ficar ofendido e havia algo no tom de Graham — no seu olhar insolente e aborrecido — de que Wheaton nunca gostara.

— Porque é que tens tanta certeza de que a fuga de informação veio deste edifício? — perguntou ele. — Se calhar, a fuga veio do vosso lado. A Divisão Especial fornece protecção ao embaixador e nós damos-lhes a agenda com vários dias de antecedência.

— Suponho que tudo seja possível — respondeu Graham.

— Porque é que não fotografaste os documentos? — perguntou Wheaton.

— Porque não houve tempo — respondeu Graham. — Decidi que ele era mais valioso para nós no terreno do que preso. Demos uma vista de olhos, colocámos um localizador no carro e deixámo-lo ir.

— E quem é ele? — perguntou Michael.

Graham abriu uma pasta com código de segurança e distribuiu diversas fotografias de um homem grande com uma farta cabeleira preta — uma foto de cadastro e várias fotografias de vigilância cheias de grão. — O nome dele é Gavin Spencer — disse Graham. — Em tempos, foi um homem de grande importância na Força de Voluntários do Ulster. Foi detido uma vez por posse ilegal de armas, mas o processo foi arquivado. É da linha dura. Abandonou a UVF no início do processo de paz por se opor frontalmente a ele.

— Onde é que ele anda agora? — perguntou Wheaton.

— Vive em Portadown. Foi para lá depois de o termos interceptado. Douglas Cannon perguntou:

— E o que é que fazemos agora, meus senhores?

— Descobrimos a origem da fuga de informação — respondeu Wheaton. — Determinamos se o responsável está a cometer um acto de traição ou se há mais alguma coisa envolvida.

E depois encerramos a questão.

Michael levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do pequeno cubículo.

— Quantas pessoas na embaixada sabem da agenda do embaixador com antecedência? — perguntou, por fim.

— Depende do dia, mas normalmente pelo menos vinte — respondeu Wheaton.

— E quantas delas são homens?

— Pouco mais de metade — afirmou Wheaton, com a irritação a invadir-lhe a voz. — Porquê?

— Por causa de uma coisa que o Kevin Maguire me disse antes de morrer. Disse que, quando os serviços de informação do IRA investigaram o assassínio do Eamonn Dillon, chegaram à conclusão de que tinha havido uma fuga de informação a partir da sede do Sinn Fein. Uma rapariga, uma secretária, tinha ficado amiga de uma mulher protestante e acabado por lhe revelar inadvertidamente pormenores da agenda do Dillon.

— E como era a rapariga? — perguntou Graham.

— Trinta e poucos anos, atraente, cabelo preto, pele clara, olhos cinzentos.

Um sorriso invadiu a cara de Michael.

Graham disse:

— Já vi essa expressão antes. Em que estás a pensar, Michael?

— Que da adversidade nasce a oportunidade.

Eram cinco e meia da tarde quando o telefone da secretária de Preston McDaniels ronronou suavemente. Por um instante, ponderou não o atender; estava ansioso por chegar ao restaurante para poder ver Rachel. O atendedor de chamadas responderia por si e ele poderia tratar do assunto no dia seguinte, logo pela manhãzinha. Mas tinha havido zunzuns de rumores na embaixada durante o dia inteiro — rumores acerca de uma espécie de problema de segurança, de o pessoal estar a ser obrigado a comparecer perante um painel de interrogadores no último andar. McDaniels sabia que os sabujos dos media tinham forma de apanhar o cheiro dos rumores desse género.

Relutantemente, esticou o braço e levantou o auscultador do telefone do descanso.

— Fala McDaniels.

— Daqui é David Wheaton — disse a voz do outro lado da linha. Não se incomodou em identificar-se mais do que isso; toda a gente na embaixada sabia que Wheaton era o chefe do posto de Londres da CIA.

— Gostava de saber se podemos ter uma conversa em privado.

— Por acaso, estava de saída. É alguma coisa que possa esperar até amanhã de manhã?

— É importante. Não se importa de vir cá acima agora mesmo? Wheaton desligou sem esperar por uma resposta. Havia algo no seu tom de voz que deixou McDaniels incomodado.

Nunca tinha gostado de Wheaton, mas sabia que não era prudente contrariá-lo. Saiu do gabinete, atravessou o corredor e subiu pelo elevador.

Quando entrou na sala, encontrou três homens sentados a um dos lados de uma grande mesa rectangular: Wheaton, o genro do embaixador Cannon, Michael Osbourne, e um inglês com um ar aborrecido. Havia um lugar vazio à frente deles. Wheaton indicou-lhe o lugar com a ponta da sua caneta de ouro, sem dizer uma palavra, e McDaniels sentou-se.

— Não vou estar com rodeios — disse Wheaton. — Parece que há uma fuga de informação, algures dentro da embaixada, no que respeita à agenda do senhor embaixador.

Queremos descobrir essa fuga.

— E o que é que isso tem a ver comigo?

— O senhor é uma das pessoas dentro da embaixada que tem conhecimento da agenda do senhor embaixador com antecedência.

— É verdade — retorquiu McDaniels bruscamente. — E, se estão a perguntar-me se violei as regras de confidencialidade, a resposta é um inequívoco não.

— Alguma vez deu uma cópia da agenda do senhor embaixador a alguém de fora da embaixada?

— Claro que não.

— E alguma vez falou dela com um jornalista?

— Quando se trata de algum evento público, sim.

— Alguma vez forneceu pormenores a um jornalista, como por exemplo o percurso que o senhor embaixador poderia tomar para uma reunião ou o método de transporte?

— Claro que não — respondeu novamente McDaniels com brusquidão. — Além do mais, a maioria dos jornalistas não daria um chavo por pormenores desse género.

Michael Osbourne ia folheando um processo.

— O senhor não é casado — disse, levantando os olhos do processo.

— Não, não sou — disse McDaniels. — E porque é que o senhor aqui está?

— Nós é que fazemos as perguntas, se não se importa — disse Wheaton.

— Tem algum relacionamento? — perguntou Michael.

— Por acaso, sim.

— Há quanto tempo andam juntos?

— Há duas semanas.

— E como é que ela se chama?

— Chama-se Rachel. Importam-se de me dizer o que é que isto...

— Rachel quê?

— Rachel Archer.

— E onde é que ela vive?

— Em Earl's Court.

— Alguma vez esteve no apartamento dela?

— Não.

— E ela já esteve alguma vez no seu?

— Isso não é da vossa conta.

— Lamento, mas, se está relacionado com a segurança, é da nossa conta — disse Michael. — Agora, por favor, responda à pergunta, senhor McDaniels. A Rachel Archer já esteve alguma vez no seu apartamento?

— Sim.

— Quantas vezes?

— Várias vezes.

— Quantas vezes?

— Não sei... oito, talvez dez.

— Costuma levar uma cópia da agenda do senhor embaixador para casa?

— Sim, costumo — respondeu McDaniels. — Mas sou muito cuidadoso. Está sempre na minha posse.

— E a Rachel Archer esteve alguma vez no seu apartamento quando o senhor levou uma cópia da agenda do senhor embaixador?

— Sim, esteve.

— E alguma vez lhe mostrou a agenda?

— Não. Já vos disse que nunca fiz isso.

— A Rachel Archer tem trinta e poucos anos, cabelo preto, pele clara e olhos cinzentos?

Preston McDaniels ficou branco.

— Meu Deus! — exclamou. — O que é que eu fiz?

Quando a noite começou a cair, a ideia era de Michael. De início, Wheaton deixou a sua oposição oficialmente registada, mas, no final daquela longa noite — depois das teleconferências com Langley, depois das reuniões tensas com os mandarins do MI5 e do MI6, depois das breves trocas de palavras com Downing Street e com a Casa Branca —, Wheaton já tinha reclamado a ideia como sendo sua.

Havia dois assuntos a resolver. Deveriam fazê-lo? E, se o fizessem, quem comandaria as operações? A primeira pergunta foi respondida com bastante rapidez. A segunda era mais difícil porque envolvia questões de território e, no mundo dos serviços secretos, o território é protegido a todo o custo, muitas vezes melhor do que os segredos. Era um assunto de segurança americano envolvendo o embaixador americano. Mas a Irlanda do Norte era um assunto britânico e a operação decorreria em solo britânico. Depois de uma hora de negociações tensas, as duas partes chegaram a um acordo. Os ingleses forneceriam o talento de rua — os vigias e os artistas da vigilância técnica — e, quando chegasse a hora, forneceriam o músculo. Os americanos orientariam Preston McDaniels e forneceriam o material para a sua pasta — depois de consultarem em pormenor os ingleses, claro.

A luta dentro da CIA também foi dura. O Centro de Contraterrorismo tinha descoberto o caso e Adrian Cárter queria que Michael dirigisse a parte americana da questão.

Wheaton opôs-se determinantemente. Num telegrama azedo enviado para a sede, defendeu que se tratava de uma operação de Londres, necessitando de colaboração próxima dos serviços anfitriões, e que o posto de Londres devia ficar com o caso, não o CTC. Mónica Tyler retirou-se para o seu gabinete, na atmosfera rarefeita do sétimo andar, para ponderar a sua decisão. Wheaton arregimentou antigos amigos e inimigos para a sua causa. E, no fim, ela acabou por escolher Wheaton, argumentando que Michael tinha regressado à agência há pouco tempo, depois de uma longa ausência, e que não se podia esperar que estivesse a cem por cento em termos operacionais.

A operação seria comandada por Wheaton e Michael permaneceria em Londres com um papel secundário.

Preston McDaniels passou a agente operacional naquela noite. Da secretária de Wheaton no posto da CIA, telefonou para o Ristorante Ricardo, em Park Lane, e pediu para falar com Rachel Archer. Uma voz com sotaque italiano informou-o de que ela estava ocupada — "Agora, é a azáfama do jantar, sabe" —, mas McDaniels disse que era urgente e, passado um momento, ela veio ao telefone. A conversa durou precisamente trinta e dois segundos; Michael e Wheaton cronometraram-na para terem a certeza e ouviram-na uma dúzia de vezes, procurando sabe Deus o quê. McDaniels disse que não podia passar por lá para tomar um copo porque ficava a trabalhar até tarde.

A mulher expressou um ligeiro desapontamento, com o som em fundo de pratos a partirem-se e de Ricardo Ferrari a gritar obscenidades em italiano.

McDaniels perguntou-lhe se a podia ver mais tarde. A mulher disse que passaria por casa dele depois do trabalho e desligou o telefone.

A gravação foi transmitida por satélite para Langley e enviada da forma tradicional — por estafeta de mota — para o MI5 e o MI6. Um linguista dos quadros do MI5 concluiu que o sotaque inglês dela era falso e que a mulher era quase de certeza da Irlanda do Norte. Provavelmente, dos arredores de Belfast.

Wheaton não tinha a certeza se confiava ou não em McDaniels. Insistiu na cobertura total, áudio e visual, de todos os seus movimentos. O MI5 aterrou no seu apartamento em South Kensington e colocou câmaras e microfones em todas as divisões. Só o quarto ficou de fora; Michael achou que a cobertura áudio seria suficiente e Wheaton concordou relutantemente. Um par de vigias do MI5, um homem mais velho e uma rapariga bonita, foi enviado para o Ristorante Ricardo. Por sorte, a sua presa atendeu-os.

Recomendou-lhes a especialidade de vitela e eles declararam-na divina. A segunda equipa, por razões de segurança operacional, pediu esparguete à carbonara e galinha milanesa.

Para servir de base operacional, o MI5 garantiu apressadamente um apartamento grande e mobilado em Evelyn Gardens, a uma curta distância do de McDaniels. Michael e Wheaton, quando lá chegaram já tarde nessa noite, foram recebidos com o fedor de cigarros e de caril de takeaway. Na sala de estar, meia dúzia de técnicos preocupados afligia-se com os seus auscultadores e monitores de vídeo. Vigias aborrecidos assistiam a um documentário maçador da BBC sobre os padrões migratórios das baleias-cinzentas, numa televisão com a imagem vacilante. Graham Seymour estava sentado ao piano, tocando baixinho.

O apartamento de McDaniels estava tão cheio de escutas que, quando a mulher conhecida como Rachel Archer chegou, a campainha soou como um alarme de incêndio de hotel.

"Está na hora do espectáculo", anunciou Wheaton, e sentaram-se em redor dos monitores de vídeo — todos excepto Graham, que continuou ao piano, tocando as notas finais de Clair de Lune.

Quaisquer dúvidas que ainda pudessem restar sobre a forma como Preston McDaniels se aguentaria foram postas de lado com o longo beijo que deu à mulher à entrada.

Preparou bebidas para ambos — vinho branco para ela e um copo de uísque muito grande para si — e sentaram-se no sofá da sala de estar, conversando bem à vista de uma das câmaras de vídeo ocultas.

Começaram a beijar-se e, por um momento, Michael temeu que ela fosse fazer amor com ele no sofá, mas McDaniels deteve-a e levou-a para o quarto. Michael achou que havia algo de Sarah nela e pôs-se a pensar se haveria algo de McDaniels em si próprio.

— Precisamos de um nome de código — disse Wheaton, tentando pensar em algo, qualquer coisa, sem ser nos sons que emanavam dos monitores. — Não temos um nome de código.

— O meu pai trabalhou numa operação semelhante durante a Segunda Guerra Mundial — disse Graham, com os dedos a tactearem rápida e levemente as teclas do piano. — O MI5 forneceu material falso a uma espia alemã através de um oficial da marinha americana.

— E qual era o nome de código?

— Penso que era Timbale.

— Timbale — repetiu Wheaton. — Soa bem. Então, que seja Timbale.

— E como é que acabou? — perguntou Michael. Graham parou de tocar e olhou para cima.

— Ganhámos, meu caro.

Foi um técnico do MI5 chamado Rodney que o viu primeiro e acordou o resto da equipa. Wheaton tinha reclamado o único quarto para si. Michael dormiu no sofá; Graham foi adormecendo e acordando continuamente numa poltrona de orelhas demasiado almofadada, como um passageiro agitado num voo transatlântico. Com os olhos pesados, juntaram-se em redor do conjunto de monitores de vídeo e ficaram a ver a mulher sentar-se à secretária do escritório de McDaniels e começar a esvaziar o que lá estava dentro sem fazer barulho.

— Bem, senhoras e senhores, parece que acabámos de descobrir a Brigada para a Libertação do Ulster — disse Wheaton. — Parabéns, Michael. Esta noite pagas o jantar.

Preston McDaniels estava deitado na cama, acordado, de costas para a porta. Tentara dormir mas não tinha conseguido e, por isso, deixou-se estar simplesmente muito quieto, até a ouvir esgueirar-se da cama e sair do quarto. Imaginou-a no escritório, de volta dos seus papéis. Foi inundado por um turbilhão ininterrupto de emoções contraditórias. Estava envergonhado por ter sido tão facilmente levado, humilhado por Wheaton e Michael Osbourne terem feito dele um peão no seu jogo. E, sobretudo, sentia-se traído.

Por alguns momentos, quando ela estava a fazer amor consigo, McDaniels imaginou que ela sentia realmente alguma coisa por si, independentemente das suas motivações.

Iria fazer um acordo, pensou. Trataria das coisas de maneira a poderem ficar juntos quando tudo terminasse.

Ouviu a porta abrir-se. Fechou os olhos. Sentiu o corpo dela aninhar-se junto do seu. Queria virar-se e abraçá-la, fazer o corpo dela cair em cima do seu, sentir as pernas dela à sua volta. Mas limitou-se a ficar ali deitado, a fingir que estava a dormir, interrogando-se sobre o que iria fazer sem ela quando tudo terminasse.


Capítulo 25

LONDRES

 

— Chama-se Hartley — disse Graham Seymour, ao fim daquela manhã, no gabinete de Wheaton. — Fica aqui, na costa norte de Norfolk — explicou, tocando no grande mapa do serviço cartográfico e topográfico oficial com a ponta da caneta. — Tem várias centenas de hectares onde se pode passear e cavalgar e, claro, a praia fica perto.

Em resumo, é o tipo de sítio perfeito para um embaixador americano passar um fim-de-semana tranquilo no campo.

— E quem é o proprietário? — perguntou Michael.

— Um amigo dos serviços secretos.

— Um amigo íntimo?

— Fez a sua parte durante a Segunda Guerra Mundial e alguns biscates durante os anos cinquenta e sessenta, mas nada de pesado.

— Alguma coisa do conhecimento público que o possa ligar aos serviços secretos ingleses?

— De maneira nenhuma — respondeu Graham. — A Brigada para a Libertação do Ulster não iria ter qualquer forma de saber que o anfitrião do embaixador estava ligado aos serviços secretos.

Wheaton perguntou:

— Em que é que estás a pensar, Michael?

— Estou a pensar que o Douglas quer passar um fim-de-semana fora de Londres, no campo inglês, um fim-de-semana privado, com segurança mínima, na casa de um velho amigo. Pomos isso na agenda dele e damos a informação à mulher através do McDaniels. Com um bocadinho de sorte, a Brigada para a Libertação do Ulster irá morder o isco.

— E nós teremos uma equipa da SAS à espera deles — rematou Graham. — Esse cenário tem outra vantagem importante: não haverá possibilidade de baixas civis, por causa da localização remota.

— Prender pessoas não é verdadeiramente a especialidade da SAS — contrapôs Wheaton. — Se formos para a frente com isto, e se a Brigada para a Libertação do Ulster morder o isco, vai ser derramado muito sangue — acrescentou, olhando primeiro para Graham, que permaneceu em silêncio, e depois para Michael.

— É preferível que seja o sangue deles do que o do Douglas — disse Michael. — Eu recomendo que o façamos.

— Tenho de fazer com que isto suba a cadeia alimentar — disse Wheaton. — A Casa Branca e o Ministério dos Negócios Estrangeiros vão ter de assinar por baixo. É capaz de levar algumas horas.

— E em relação à mulher? — perguntou Michael.

— Seguimo-la hoje de manhã quando saiu do apartamento do McDaniels — respondeu Graham. — Estava a dizer-lhe a verdade. Vive num apartamento em EarPs Court. Mudou-se para lá há algumas semanas. Temos uma equipa a vigiar o apartamento.

— E onde é que ela está agora?

— A dormir, ao que parece.

— Ainda bem que há quem consiga dormir alguma coisa por estas bandas — desabafou Wheaton.

Pegou no seu telefone seguro e ligou para o gabinete de Mónica Tyler, em Langley.

— Isto foi tudo ideia sua, não foi? — perguntou Preston McDaniels. — Você é um bom filho-da-mãe. Qualquer pessoa percebe isso.

Estavam sentados num banco com vista para o lago Serpentme, no Hyde Park. O vento deslocava-se através dos salgueiros e fazia ondas na superfície do lago. Nuvens, pesadas da chuva que vinha a caminho, flutuavam por cima deles. Michael tentou localizar os vigias de Graham. Seria o homem a atirar migalhas de pão aos patos? A mulher sentada no banco ao lado a ler Josephine Hart? Talvez o rapaz louro e esguio, de impermeável azul-escuro, a praticar tai chi no relvado?

Vinte minutos antes, Michael tinha mostrado a McDaniels o vídeo da namorada a esgueirar-se para o escritório dele e a vasculhar o que se encontrava dentro da sua pasta. McDaniels quase ficara fisicamente doente. Tinha pedido encarecidamente para apanhar ar fresco e, por isso, tinham caminhado em silêncio, atravessando Mayfair e ao longo dos trilhos do Hyde Park, até chegarem ao lago. McDaniels tremia. Michael quase podia sentir o banco do parque a vibrar com o seu tremor. Lembrou-se de como se sentira quando soube que Sarah Randolph andava a trabalhar para o KGB. Tinha querido odiá-la, mas não conseguira. Suspeitava que Preston McDaniels sentia precisamente o mesmo em relação à mulher que ele conhecia como Rachel Archer.

— Conseguiu dormir alguma coisa? — perguntou suavemente.

— Claro que não.

O vento soprou, levantando o cabelo grisalho de McDaniels e deixando-lhe a careca à mostra. Constrangido, conseguiu com jeito que ele voltasse ao sítio.

— Como é que eu podia dormir sabendo que vocês, seus sacanas, estavam provavelmente a escutar cada sopro que eu desse?

Michael não quis dissipar a ideia de McDaniels de que eles estavam a observar todos os seus movimentos e a ouvir todas as suas palavras. Acendeu, um cigarro e ofereceu-lhe outro.

— Que hábito nojento — resmungou McDaniels, abanando a mão e olhando fixamente para Michael como se fosse um intocável.

Michael não se importou; era bom para McDaniels sentir-se superior por um momento, mesmo em algo tão banal.

— Quanto tempo? — perguntou. — Quanto tempo é que eu tenho de fazer isto?

— Não muito — respondeu Michael despreocupadamente, como se McDaniels tivesse perguntado quanto tempo poderia demorar até chegar o comboio seguinte.

— Meu Deus, porque é que vocês não conseguem dar-me uma resposta directa sobre seja o que for?

Porque há muito poucas respostas directas neste tipo de trabalho.

— É o seu tipo de trabalho, não o meu — retorquiu McDaniels, abanando a mão violentamente. — Meu Deus! Apague isso, se não se importa!

Michael atirou o cigarro para o chão.

— Quem é ela? — perguntou McDaniels. — O que é que ela é?

— No que a si lhe diz respeito, é a Rachel Archer, uma dramaturga faminta que trabalha como empregada de mesa no Ristorante Ricardo.

— Raios, eu quero saber! Eu tenho de saber! Preciso de saber que de todo este assunto desagradável pode sair alguma coisa boa.

Michael não podia rebater a lógica do pedido de McDaniels. Muitas vezes, orientar agentes tem a ver com a motivação e, para Preston McDaniels conseguir chegar ao fim da operação, precisava de encorajamento.

— Não sabemos o nome verdadeiro dela — disse Michael. — Ainda não, pelo menos. Estamos a trabalhar nisso. Ela pertence à Brigada para a Libertação do Ulster. Estão a planear assassinar o meu sogro. Ela estava a usá-lo para obter acesso à agenda dele e encontrar a melhor altura para levarem a sua avante.

— Meu Deus, como é que ela pôde fazer isso? Ela é tão maravilhosa...

— Ela não é a pessoa que você pensa que é.

— Como é que pude ser tão parvo? — atirou McDaniels, fitando algo a meia distância. — Eu sabia que ela era demasiado nova para mim. Que era demasiado bonita. Mas quis acreditar que ela se tinha apaixonado de facto por mim.

— Ninguém o está a culpar — mentiu Michael.

— Então, o que é que acontece quando tudo estiver terminado?

— Continua com o seu emprego como se nada se tivesse passado.

— Como é que eu posso fazer isso?

— Vai ser mais fácil do que pensa — respondeu Michael.

— E o que é que lhe acontece a ela, quem quer que seja?

— Ainda não sabemos — respondeu Michael.

— Sabem, sim. Vocês sabem tudo. Estão a lançar-lhe uma armadilha, não estão?

Michael levantou-se de repente, assinalando que era altura de ir embora. McDaniels ficou sentado.

— Quanto tempo? — perguntou ele. — Quanto tempo até isto estar terminado?

— Não sei.

— Quanto tempo? — repetiu.

— Não muito.

No final dessa tarde, Michael estava sentado no gabinete de Wheaton, a analisar o novo acrescento à agenda do embaixador Douglas Cannon, uma visita privada, no fim-de-semana seguinte, à casa de um amigo na zona rural de Norfolk. A pedido do embaixador, as medidas de segurança em torno da visita seriam extremamente leves, uma equipa de dois homens da Divisão Especial, sem qualquer apoio americano. Michael acabou de o ler e entregou-o a Wheaton, sentado do outro lado da secretária.

— Achas que eles mordem? — perguntou Wheaton.

— Devem fazê-lo.

— E como é que o nosso rapaz está a aguentar a pressão?

— O McDaniels?

Wheaton assentiu com a cabeça.

— Tão bem quanto seria de esperar.

— Ou seja?

— Ou seja, não temos muito tempo.

— Então, é melhor que isto funcione. Wheaton devolveu o documento a Michael.

— Põe-lhe isso na pasta e ele que a leve para casa hoje à noite.

No dia seguinte, pouco passava das quatro da manhã quando Rebeca Wells se levantou da cama de Preston McDaniels e entrou no escritório deste. Sentou-se à secretária, abriu a pasta sem fazer barulho e retirou um molho de documentos. Em anexo à agenda habitual de eventos oficiais do embaixador, havia uma nota acerca de um fim-de-semana privado na zona rural de Norfolk.

Rebecca conseguia sentir o coração a martelar-lhe dentro do peito à medida que lia o memorando.

Era perfeito: uma localização remota, com imenso tempo de aviso prévio para se poder elaborar um plano. Demorou todo o tempo necessário a anotar os pormenores. Não queria cometer nenhum erro.

Quando acabou, sentiu um orgulho feroz. Tinha desempenhado bem o seu papel, tal como em Belfast. Eamonn Dillon estava morto por causa das informações que ela tinha fornecido a Kyle Blake e a Gavin Spencer, e, em breve, o embaixador Douglas Cannon também estaria morto.

Apagou a luz e voltou para a cama.

Na base operacional em Evelyn Gardens, Michael Osbourne e Graham Seymour encontravam-se de pé em frente aos monitores de vídeo, a observá-la. Viram-na a registar cuidadosamente os pormenores do memorando relativo à viagem do embaixador para Norfolk. Conseguiram aperceber-se da sua excitação com a descoberta. Quando ela desligou a luz e deixou o escritório, Graham virou-se para Michael e perguntou:

— Achas que ela mordeu o isco?

— Todinho, caiu que nem uma patinha.

No dia seguinte, vigiaram-na. Foram com ela ao tenebroso café à saída da estação de metro de Earl's Court, onde tomou o seu pequeno-almoço, um chá e um pão-deleite com passas. Ouviram-na a telefonar para o restaurante, para falar com Ricardo Ferrari, e a dizer-lhe que tivera uma emergência familiar, uma tia que tinha adoecido Newcastie; precisava de tirar uns dias, quatro no máximo. Ricardo gritou-lhe uma série de obscenidades, primeiro em italiano e depois inglês com sotaque muito acentuado.

No entanto, ganhou a simpatia dos agentes de Graham Seymour que escutavam a conversa quando disse: — Toma conta da tua pobre tia. Não há nada mais importante que a família. Quando estiveres pronta para regressar, regressas.

A seguir, ouviram-na telefonar para Preston McDaniels, para o número dele na embaixada, e dizer-lhe que ia estar fora durante uns dias. Sustiveram a respiração quando McDaniels lhe pediu para a ver por uns minutos antes de se ir embora. Respiraram de alívio quando ela lhe disse que não havia tempo. E, quando ela apanhou um comboio para Liverpool, deixaram-na ir.

Preston McDaniels pousou o auscultador no descanso e sentou-se à secretária. Um funcionário que reparou nele naquele momento, do outro lado da porta aberta, disse mais tarde a Michael que o pobre Preston parecia que tinha acabado de receber a notícia de uma morte. Subitamente, levantou-se de um salto e disse que tinha de ir tratar de uma coisa e que voltava dentro de quinze minutos. Tirou a gabardina do cabide e saiu a grande velocidade da embaixada, atravessando a Grosvenor Square, em direcção ao parque.

Sabia que o estavam a seguir, Wheaton e Osbourne e os outros; conseguia senti-lo. Queria livrar-se deles. Queria nunca mais os ver. O que iriam eles fazer? Agarrá-lo-iam?

Sacá-lo-iam do meio da rua? Enfiá-lo-iam num carro? Já tinha lido a sua conta de romances de espionagem. Como se livraria o herói dos vilões num romance de espionagem?

Perder-se-ia na multidão.

Quando chegou a Park Lane, apressou-se para norte, na direcção de Marble Arch. Mergulhou na estação de metropolitano, passou despercebido pelos torniquetes e percorreu rapidamente a passagem de ligação à plataforma.

Estava a chegar um comboio quando atingiu a plataforma. Entrou na carruagem e deixou-se ficar perto das portas. Na paragem seguinte, Bond Street, saiu do comboio, atravessou para a plataforma oposta e entrou num outro comboio de volta a Marble Arch. Em Marble Arch, executou a mesma manobra e, pouco tempo depois, dirigia-se para leste, atravessando Londres e sentindo-se bastante sozinho.

Graham Seymour ligou para Michael da sede do MI5.

— Lamento informar-te, mas o teu homem desapareceu.

— O que é que queres dizer com isso?

— Quero dizer que o perdemos — respondeu Graham. — Ou, melhor, ele perdeu-se de nós. Fez um número e pêras no metro. Não é nada mau.

— Onde?

— Na Central Line, entre Marble Arch e a Bond Street.

— Porra. E que estás a fazer para resolver isso?

— Bom, estamos a tentar encontrá-lo, não é, meu caro?

— Liga-me se souberes de alguma coisa.

— Combinado.

Na Tottenham Court Road, Preston McDaniels saiu do comboio da Central Line e percorreu a passagem de ligação à Northern Line. Que apropriado, pensou; a temível Northern Line. Antiquada, ofegante, ruidosa, a linha estava sempre a avariar no auge da hora de ponta. Para aqueles que eram forçados a suportar o seu temperamento inconstante, era a Linha do Sofrimento. A Linha Negra. Era perfeito, pensou Preston. Os tablóides de Londres iriam ter um dia em cheio com aquilo.

O que tinha Michael Osbourne dito? Continua com a sua vida como se nada se tivesse passado. Mas como podia ele fazer isso? Sentiu a plataforma começar a vibrar.

Virou-se e espreitou para a escuridão do túnel e viu a ténue luz do comboio que se aproximava.

Pensou nela, debaixo do seu corpo, com as costas arqueadas para si, e depois imaginou-a no escritório, a roubar-lhe os segredos. Ouviu a voz dela ao telefone. 'Lamento, mas vou ter de ir para fora durante uns dias... Não, desculpa, Preston, mas não posso ver-te agora...

Preston McDaniels olhou para o relógio. Por esta altura, já deveriam estar preocupados com ele, a interrogarem-se para onde teria ido. Havia uma reunião do pessoal dali a dez minutos. Ia faltar.

O comboio irrompeu do túnel com uma torrente de ar quente e precipitou-se para a estação. Preston McDaniels deu mais um passe em direcção à borda da plataforma.

E depois saltou para a linha.


Capítulo 26

PORTADOWN

LONDRES

CONDADO DE TYRONE

 

Na tarde seguinte, Rebecca Wells estava de regresso a Portadown, sentada num reservado do pub McConville's. Gavin Spencer entrou primeiro, seguido por Kevin Blake cinco minutos depois. O pub estava apinhado. Rebecca Wells falou calmamente por entre o ruído, relatando a Blake e a Spencer aquilo que tinha descoberto na pasta do americano.

— Quando é que o Cannon chega? — Perguntou Blake com simplicidade.

— No próximo sábado — disse Rebecca.

— E quanto tempo fica?

— Uma noite, no sábado. Depois regressa a Londres no domingo, ao início da tarde. — Isso dá-nos cinco dias — disse Blake, virando-se para Gavin Spencer. — Consegues organizar tudo nesse período de tempo? Spencer assentiu com a cabeça. Só precisamos das armas. Se conseguirmos deitar a mão às armas, o embaixador Douglas Cannon é um homem morto.

Kyle Blake meditou durante um momento, esfregando as manchas de tinta e nicotina nos dedos. A seguir, olhou para Spencer e disse:

— Então, vamos arranjar as armas.

222.

— Tens a certeza, Kyle?

— Não estás a perder a coragem, pois não?

— Talvez devêssemos esperar um pouco mais. Deixar as coisas acalmarem.

— Não temos tempo para ficar à espera, Gavin. Cada semana que passa é uma vitória para os apoiantes do acordo. Ou destruímos o acordo de paz agora ou vamos ter de nos haver com ele para sempre. E não é só esta geração que vai pagar o preço. Vão ser os nossos filhos, os nossos netos. Não consigo viver com isso.

Blake levantou-se de repente e correu o fecho do casaco.

— Arranja essas armas, Gavin, ou encontro quem o faça.

Enquanto os três dirigentes da Brigada para a Libertação do Ulster saíam do pub McConville's, Graham Seymour estava a chegar à embaixada americana. O gabinete de Wheaton parecia o búnquer de comando de um exército em retirada. O suicídio de Preston McDaniels tinha acendido um rastilho de pólvora em Washington, e Wheaton estivera ao telefone durante a maior parte das últimas vinte e quatro horas, tentando sem sucesso apagá-lo. O Ministério dos Negócios Estrangeiros estava furioso com a CIA pela forma como esta tinha lidado com o caso; com efeito, Douglas Cannon fora colocado na posição nada invejável de ter de contestar secretamente as acções do seu próprio genro. O presidente Beckwith tinha chamado Mónica Tyler à Casa Branca para a repreender severamente. E Mónica tinha descarregado a raiva em Wheaton e Michael.

— Por favor, diz-nos que tens boas notícias — disse Michael enquanto Graham se sentava.

— Por acaso, até tenho — disse Graham. — A Scotland Yard decidiu colaborar. Logo à noite, vão emitir uma declaração afirmanc que o suicida da Tottenham Court Road era um doente mental que tinha escapado. A Northern Line é famosa por esse género de casos. Há um hospital psiquiátrico a sul do rio.

— Graças a Deus — desabafou Wheaton, Michael sentiu-se descontrair ligeiramente. O suicídio precisa ser mantido em segredo para que a operação pudesse continuar.

Se A Brigada para a Libertação do Ulster soubesse que McDaniels tinha saltado para a frente de um comboio na Northern Line, podiam muito bem deduzir que a informação que lhe tinham roubado se encontrava comprometida.

Graham perguntou:

— E como é que vão encobrir as coisas por aqui?

— Felizmente, o McDaniels não tem família propriamente dita — respondeu Wheaton. — O Ministério dos Negócios Estrangeiros deu-nos alguma margem relutantemente. Quanto à história que vai servir de disfarce, é que o McDaniels teve de regressar a Washington e passar lá duas semanas. Se a mulher ligar para cá à procura dele, vão contar-lhe essa história, com uma mensagem pessoal do McDaniels incluída.

— A mulher já tem nome, por falar nisso — disse Graham. — A E4 identificou-a quando ela chegou a Belfast hoje de manhã cedo. O nome verdadeiro é Rebecca Wells. O marido era o Ronnie Wells, um membro da secção de espionagem da Força de Voluntários do Ulster, assassinado pelo IRA em noventa e dois. Parece que a Rebecca está a continuar o trabalho do marido.

— E a RUC está a dar-lhe margem de manobra? — perguntou Michael.

— Seguiram-na até Portadown para a identificarem, mas fícaram-se por aí — disse Graham. — Neste preciso momento, anda à solta.

— E a SAS alinhou nisso?

— Tenho uma reunião amanhã no quartel-general deles em Heretord para os pôr ao corrente. Estão os dois à vontade se também quiserem estar presentes. Uma malta estranha, os tipos da SAS. Acho que vocês até são capazes de achar piada. wheaton levantou-se e esfregou os olhos vermelhos e inchados. Cavalheiros, a bola está no campo da Brigada para a Libertado do Ulster — disse, vestindo o casaco do fato por cima da camisa —nrugada e dirigindo-se para a porta. — Quanto a vocês, não sei, mas preciso de dormir um pouco. Não me incomodem a não ser que seja urgente.

A primeira noite tinha sido límpida, calma e muito fria. Kyle Blake e Gavin Spencer decidiram esperar — mais uma noite não faria diferença e a previsão meteorológica parecia ser animadora. A segunda noite revelou-se perfeita: uma cobertura de nuvens espessa para enfraquecer os óculos de infravermelhos dos homens da SAS, vento e chuva para ajudar a ocultar o som da sua aproximação. Kyle Blake aprovou e Spencer enviou dois dos seus melhores homens para tratarem do assunto. Um era um veterano do exército britânico que tinha estado algum tempo no estrangeiro como mercenário; o outro era um ex-atirador da UDA, o mesmo rapaz que tinha matado Ian Morris.

Spencer tinha dado o nome de código de Yeats ao primeiro e de Wilde ao segundo. Enviou-os para a operação algumas horas depois do pôr do Sol e disse-lhes para atacarem mais ou menos uma hora antes do amanhecer — exactamente como os Peep 0'Day Boys.

A casa de campo ficava na parte mais baixa de um pequeno vale. Em redor da quinta, havia vários hectares de terras de pastagem limpas, mas, do outro lado da cerca, erguiam-se colinas cobertas de árvores densas. Era numa dessas encostas, a que ficava exactamente a leste da casa de campo, que os homens da E4 e da SAS tinham instalado o seu posto de observação. Na segunda noite, a encosta encontrava-se debaixo de um cobertor de nuvens baixas e espessas.

Yeats e Wilde estavam vestidos de preto. Usaram pó de carvão para escurecer a sua pálida tez típica do Ulster. Aproximaram-se vindos de leste, através do pinhal denso, subindo e descendo o terreno ondulado, avançando apenas alguns metros a cada minuto. Por vezes, ficavam muito quietos durante alguns minutos, com os corpos comprimidos sobre a terra encharcada, espreitando a sua presa com binóculos de visão nocturna. Quando já se encontravam a cerca de quatrocentos metros, separaram-se, com Yeats a seguir para norte e Wilde para sul.

Pelas quatro da manhã, os dois homens estavam exaustos, encharcados até aos ossos e completamente enregelados. Yeats tinha sido treinado pelo exército britânico e estava mais bem preparado, ment e fisicamente, para uma noite numa encosta gélida. Wilde não; tinha crescido na Shankhill Road, em Belfast Ocidental, e a sua experiência era a das ruas, não a do campo. Nos momentos que antecedera o ataque, pensou se conseguiria continuar. A hipotermia já se tinha instalado; as mãos e os pés estavam dormentes, mas, no entanto, já não sentia frio. Tremia violentamente e receou não ser capaz de disparar a arma quando chegasse o momento.

Às cinco horas, os atiradores encontravam-se ambos em posição. Yeats, deitado de barriga para baixo atrás de uma grande árvore, vigiava o homem da SAS. Estava sentado num abrigo, coberto de ramos de arbustos e de pequenos ramos de árvore. Yeats pegou na arma, uma Walther semiautomática de nove milímetros, com um silenciador colocado no cano. Wilde levava uma arma igual. Ambos sabiam que os seus opositores estariam muito mais bem armados. Se quisessem sobreviver ao encontro, tinham de fazer bom uso dos seus primeiros tiros.

Yeats levantou-se subitamente sobre um joelho e começou a disparar. A Walther com silenciador quase não fez barulho. Os primeiros tiros atingiram o homem da SAS no tronco, com um baque surdo, e atiraram-no para trás. Pelo som, tinha um colete vestido, o que significava quase de certeza que ainda estava vivo.

Yeats levantou-se e correu para a frente na escuridão. Quando estava a poucos metros de distância, o homem da SAS sentou-se subitamente e disparou. A arma também tinha um silenciador e o único som que fez foi um leve ruído metálico.

Yeats atirou-se para o chão e os tiros passaram por cima da sua cabeça inofensivamente, lascando as árvores. Yeats rebolou e ficou deitado de barriga para baixo, com os braços esticados e a Walther nas mãos. Apontou e carregou duas vezes no gatilho rapidamente, exactamente como o exército lhe ensinara. Os tiros atingiram o homem da SAS na cara. Caiu no chão, morto.

Yeats correu para ele, arrancou-lhe a espingarda automática da mão cerrada e avançou a grande velocidade para o local onde sabia que estavam escondidos os homens da E4.

As coisas foram mais fáceis para Wilde. O homem da SAS que lhe cabia matar tinha reagido ao som dos corpos a mexerem-se nas urzes. Levantou-se, rodou rapidamente em diversas direcções e depois correu em auxílio do companheiro. Wilde surgiu por trás de uma árvore quando ele passou. Apontou-lhe a arma à nuca e disparou. Os braços do soldado abriram-se totalmente e ele caiu para a frente. Wilde agarrou na arma do morto e começou a correr, seguindo Yeats através das árvores.

Os dois homens da E4 — Marks e Sparks — estavam escondidos no seu abrigo, cobertos por lona de camuflagem, ramos de árvore e vegetação rasteira. Marks acabava de acordar. Yeats atingiu-o várias vezes através do saco-cama. Sparks, que estava de serviço, ia pegar numa pequena pistola automática. Wilde atingiu-o no coração.

Passavam poucos minutos das cinco quando Gavin Spencer acelerou pela aldeia de Cranagh e depois pela estreita estrada local, em direcção à casa de campo. Parou junto à entrada lamacenta e desligou o motor. Foi andando até às traseiras da casa, no meio da escuridão, avançando por entre caixotes partidos e equipamento agrícola velho e ferrugento. Avistou-os pouco tempo depois, descendo a encosta à chuva. Spencer ficou parado no quintal, com as mãos nos bolsos, enquanto os dois homens atravessavam a pastagem. Por um momento, teria feito qualquer coisa para trocar de lugar com eles; a seguir, viu a roupa molhada e suja e o seu olhar assustado e percebeu que não havia nada para comemorar.

— Está feito — disse simplesmente o que se chamava Wilde.

— Quantos? — perguntou Spencer.

— Quatro.

Yeats atirou uma espingarda para Spencer na escuridão. Habilmente, Spencer tirou as mãos dos bolsos e agarrou a espingarda antes de ela o atingir no peito.

— Aí está uma recordação para ti — disse Yeats. — A espingarda de um homem da SAS morto.

Spencer puxou o canhão para trás, enfiando uma bala na câmara.

— Ainda tem munições?

— Ele não conseguiu disparar sequer a porra de um tiro — disse Wilde.

— Metam-se no carro — ordenou-lhes Spencer. — Vou lá ter daqui a um minuto.

Spencer levou a arma, atravessou o quintal e entrou na casa. Saff" Dalton, o mais velho dos dois irmãos, estava sentado à mesa da cozinha, a beber chá e a fumar nervosamente. Trazia calças de fato de treino azuis, mocassins e um pulôver de lã. Tinha a cara por barbear e os olhos pesados de sono.

— Que raio de merda é que se está a passar lá fora, Gavin? — perguntou.

— Eliminámos os teus amigos na encosta. Tens mais disso? — disse ele, apontando para o chá com a cabeça.

Dalton ignorou o pedido.

— Eliminámo-los? — disse ele, com os olhos de repente muito abertos. — E o que é que vai acontecer quando se descobrir que vocês os eliminaram? Eu disse que te escondia umas quantas armas e um bocadinho de Semtex, Gavin. Não me disseste que ias fazer com que a porra da Divisão Especial e do exército britânico me fossem cair em cima.

— Não tens nada com que te preocupar, Sam — respondeu Spencer. — Vou levar tudo hoje à noite. Mesmo que a Divisão Especial e o exército arrombem a porta, não haverá nada para encontrarem.

— Tudo? — perguntou Sam Dalton, incrédulo.

— Tudo — repetiu Spencer. — Onde é que está o teu irmão? Dalton olhou para o tecto e disse:

— Lá em cima, a dormir.

— Começa a tirar as armas e o Semtex. Quero dar uma palavrinha à Bela Adormecida. Desço daqui a um minuto.

Sam Dalton anuiu com a cabeça e foi para a cave. Gavin Spencer subiu e encontrou Christopher Dalton a dormir na cama, com a boca aberta, ressonando suavemente. Spencer tirou do bolso do casaco uma pistola Walther automática com silenciador, inclinou-se para baixo e enfiou o cano na boca do homem adormecido. Christopher Dalton engasgou-se e acordou com um sobressalto, de olhos bem abertos.

Spencer carregou no gatilho; sangue e tecido cerebral explodiram para cima da almofada e da roupa da cama. Spencer guardou a arma e saiu do quarto, deixando o corpo de Christopher Dalton em espasmos na cama.

— Onde é que está o Chris? — perguntou Dalton quando Spencer chegou à cave.

Ainda a dormir — respondeu. — Não tive coragem de o acordar.

Dalton acabou de empacotar as armas e os explosivos. Quando terminou, havia três sacos de lona lado a lado no chão. Estava de joelhos, a correr o fecho do último saco, quando Spencer lhe encostou à nuca o cano da pistola automática capturada à SAS.

— Gavin, não — implorou ele. — Por favor, Gavin.

— Não te preocupes, Sam. Vais para um lugar melhor do que este. Spencer carregou no gatilho.

Às seis horas, o telefone tocou na mesa-de-cabeceira de Michael, no quarto de visitas em Winfield House. Rebolou e agarrou o auscultador antes de poder tocar uma segunda vez. Era Graham Seymour, a telefonar da sua casa em Belgravia.

— Veste-te. Apanho-te em meia hora.

Graham desligou abruptamente. Michael tomou um duche e vestiu-se rapidamente. Passados vinte minutos, um Rover com motorista parou junto à entrada de Winfield House.

Michael entrou nele e sentou-se junto a Graham Seymour.

Graham deu-lhe café num copo de papel. Tinha o aspecto de um homem que tinha sido acordado com más notícias. Os olhos estavam vermelhos e a barba fora mal feita e obviamente à pressa. Enquanto o carro se apressava pela luz da madrugada de Regenfs Park, Graham descreveu em voz baixa o que tinha acontecido durante a noite na casa de campo nas montanhas Sperrin.

— Meu Deus — disse Michael, num murmúrio.

O carro avançou a toda a velocidade pela Outer Circle, seguindo depois para leste e percorrendo uma curta distância da Euston Road antes de se dirigir para sul, ao longo da Tottenham Court Road. Michael agarrou-se com toda a força ao encosto para o braço enquanto o motorista se ia esgueirando pelo meio do trânsito do início da manhã.

— Importas-te de me dizer onde é que vamos? — perguntou Michael.

— Pensei em fazer-te uma surpresa.

— Eu detesto surpresas.

— Eu sei — disse Graham, conseguindo esboçar um leve sorriso.

Cinco minutos mais tarde, seguiam a grande velocidade por White-hall. O carro parou junto aos portões de ferro que guardavam a entrada da Dpwning Street. Graham identificou-se junto do segurança e os portões abriram-se. O carro avançou, parando em frente à porta mais famosa do mundo. Michael olhou para Graham.

— Vamos lá, meu caro — disse Graham. — Não podemos deixar o grande homem à espera.

Entraram no número 10 e atravessaram o corredor da frente, subindo a famosa escadaria, decorada com os retratos dos antecessores de Tony Blair. Um assessor levou-os até ao gabinete do primeiro-ministro. Blair estava sentado atrás de uma secretária desorganizada, envergando uma camisa e uma gravata. Havia um tabuleiro de pequeno-almoço intacto.

— Quando aprovei a Operação Timbale, meus senhores, não esperava que fosse este o preço a pagar — disse Blair, sem esperar por apresentações. — Meu Deus, dois agentes da E4 e dois homens da SAS mortos.

Michael e Graham mantiveram-se em silêncio, esperando que o primeiro-ministro continuasse.

— Toda a Irlanda do Norte vai acordar com estas notícias dentro de alguns minutos e, quando isso acontecer, a comunidade católica vai reagir com firmeza.

Graham aclarou a garganta e disse:

— Senhor primeiro-ministro, asseguro-lhe...

— Já ouvi as vossas garantias, meus senhores, mas o que eu quero agora são resultados. Se queremos que o processo de paz sobreviva, temos de excluir as armas da política irlandesa, desactivar os paramilitares. E, nesta atmosfera, o IRA nunca irá entregar as armas.

— Posso falar, senhor primeiro-ministro? — perguntou Michael. Blair acenou com a cabeça vigorosamente.

— Diga, por favor.

— O facto de a Brigada para a Libertação do Ulster se ter envolvido numa acção como esta dá-me a entender que eles terão mordido o isco. Planeiam assassinar o embaixador Cannon em Norfolk. E, se prosseguirem, ser-lhes-á infligido um golpe devastador.

— E porque não prender o Gavin Spencer e essa mulher, a Rebecca Wells, agora? Certamente que isso também infligiria um rude golpe na Brigada para a Libertação do Ulster. E demonstraria aos católicos que estamos a fazer alguma coisa para parar estes bandidos assassinos.

— A RUC não tem o tipo de provas necessário para construir um processo incontestável contra o Gavin Spencer — respondeu Graham. — E quanto à Rebecca Wells, é mais valiosa para nós no terreno do que seria atrás das grades.

Blair começou a mexer em papéis, sinal de que a reunião tinha terminado.

— Vou deixar que isto continue — disse e, a seguir, parou por uns instantes. — Apesar do que dizem os meus críticos, não costumo entrar em exageros. Mas, se este grupo não for travado, o processo de paz será destruído, verdadeiramente. Bom dia, meus senhores.


Capítulo 27

COSTA DE NORFOLK, INGLATERRA

 

Hartley Hall ficava a três quilómetros do mar do Norte, logo a sudeste da cidade de Cromer. Um aristocrata normando construiu aí o primeiro solar no século XIII.

Por baixo da actual estrutura, no labirinto de caves e corredores, encontravam-se os arcos e portadas medievais originais. Em 1625, um comerciante rico de Norwich chamado Robert Hardey construiu uma mansão em cima do solar normando. Para criar uma barreira entre a casa e as tempestades do mar do Norte, plantou alguns milhares de árvores no solo arenoso ao longo do extremo norte da propriedade, mesmo sabendo que as árvores demorariam várias gerações até atingirem a maturidade. O resultado foi a North Wood, oitenta hectares de abetos, pinheiros escoceses, bordos, plátanos e faias. O embaixador Cannon ia admirando as árvores a medida que a sua pequena coluna de automóveis atravessava o bosque escuro. Um momento depois, Hartley Hall surgiu à sua frente.

O descendente de Robert Hardey, Sir Nicholas Hardey, apareceu vindo do alpendre sul quando os carros pararam junto ao caminho de cascalho de acesso à mansão. Era um homem grande com um peito cilíndrico e uma madeixa espessa de cabelo ruivo-aloirado já grisalho. Dois setters saltavam aos seus pés. Douglas saiu do segundo carro e avançou alguns passos pelo caminho com o braço direito estendido, os dois homens apertaram as mãos como se Douglas Cannon fosse o dono do solar que ficava mais à frente na estrada e já visitasse Hardey Hall desde há cinquenta anos.

Hartley sugeriu que dessem um breve passeio, embora não fizessem sequer cinco graus e a noite estivesse a cair rapidamente. Não tinha emprego e os seus interesses eram pouco mais do que redigir a história do seu lar ancestral, a qual explicou intensamente a Douglas enquanto passeavam pela propriedade. Dois homens da Divisão Especial seguiam-nos lentamente, com os cães logo atrás.

Admiraram a fachada sul ao estilo do rei Jaime I, que havia sido desenhada e construída pelo pedreiro mestre de Norfolk, Robert Lyminge. Deambularam pelos meandros da ala leste, coberta de glicínias, com as suas janelas grandes esculpidas e empenas flamengas. Olharam demoradamente para o magnífico laranjal, uma estufa de interior que dava para os canteiros, onde se guardavam as laranjeiras e limeiras envasadas durante os meses frios. Do outro lado do jardim murado, ficava o parque dos veados, que em tempos sustentara uma manada de trezentas cabeças. Seguiram para sul por um carreiro, passando pelos estábulos e por uma fileira de casas de empregados. Com os seus cinco séculos de idade, a Igreja de St. Margaret erguia-se no cimo de um pequeno promontório, como uma silhueta recortada no crepúsculo azul-escuro. Em seu redor, jaziam os despojos de uma aldeia do século XV que havia sido abandonada após um surto de peste.

Na altura em que os dois homens chegaram de novo à entrada sul, já os últimos raios solares tinham desaparecido. A luz brilhava através das janelas de colunas com bandeiras envidraçadas, iluminando pequenos pedaços do caminho de cascalho. Passaram pela porta rústica e entraram no grande salão. Douglas admirou os vitrais ingleses do século XV, os retratos dos antepassados de Hardey e a secretaria de carvalho por baixo da janela. Subiu na consideração do anfitrião ao ser o primeiro americano a identificar correctamente a mesa como sendo da Renascença flamenga.

Passaram pela sala de jantar, com o seu arrebatador trabalho de estuque rococó, e chegaram à sala de estar. Ficaram parados no centro da divisão, com os pescoços erguidos para o tecto de estuque original, fitando a rica profusão de rosas, flores de laranjeira, uvas, peras e romãs.

— Este painel é dedicado às aves de caça que se encontram aqui, junto à costa de Norfolk — explicou Hartley, apontando com o longo braço como se fosse uma espingarda.

— Como pode ver, existem perdizes, faisões, tarambolas e galinholas.

— É simplesmente magnífico — disse Douglas.

— Mas o senhor deve estar exausto e eu era capaz de continuar durante toda a noite — disse Hardey. — Deixe-me indicar-lhe o seu quarto. Pode refrescar-se e descansar alguns minutos antes do jantar.

Subiram a escadaria central e seguiram pelo corredor, passando por uma série de portas fechadas. Hardey abriu a porta do quarto chinês para Douglas poder entrar.

Havia uma cama de dossel do século XVIII e uma carpete de Exeter de cores brilhantes, em nó turco. Aos pés da cama, havia um armário japonês de laca preta e uma só cadeira Chippendale trabalhada.

Estava um homem sentado na cadeira, com as costas voltadas para a porta. Levantou-se assim que Hartley e Douglas entraram no quarto. Por um momento, Douglas teve a sensação de estar a olhar para o seu próprio reflexo num vidro fosco. A boca até se lhe abriu de espanto quando estendeu a mão ao outro homem e esperou que ele a apertasse. O homem limitou-se a ficar ali parado, sorrindo ligeiramente e divertindo-se claramente com o efeito da sua presença. Tinha precisamente a mesma altura e envergadura que Douglas e o esparso cabelo grisalho fora cortado e arranjado de forma semelhante. A pele tinha o mesmo aspecto de quem vive ao ar livre: bochechas rosadas, tez endurecida como o couro, poros abertos. As feições eram ligeiramente diferentes — os olhos um pouco mais estreitos —, mas o efeito era impressionante.

A porta que dava para o quarto de vestir abriu-se e Michael entrou, seguido por Graham Seymour. Michael reparou na expressão do sogro e desatou a rir-se.

— Senhor embaixador Douglas Cannon — disse —, gostaria de lhe apresentar o senhor embaixador Douglas Cannon.

Douglas abanou a cabeça e disse:

— Macacos me mordam!

Rebecca Wells passou a tarde a observar pássaros. Estava há três dias em Norfolk, a viver numa pequena caravana na praia, à saída de Sheringham. Tinha viajado pela costa, desde Hunstanton, a oeste, até Cromer, a leste, percorrendo o Peddars Way e o Norfolk Coast Path com os seus óculos de campo e as suas máquinas fotográficas, fotografando a grande variedade de pássaros da zona — tarambolas e maçaricos, fuselos e perdizes. Nunca tinha estado em Norfolk e a cada dia, durante um pequeno período, até parecia esquecer-se do motivo que a tinha trazido ali. Era um lugar mágico de pântanos de sal, ribeiros por onde entrava o mar, lodaçais e praias que pareciam estender-se até ao horizonte — planas, desertas, despojadamente belas.

Ao final da tarde, entrou na Great North Wood, contígua a Har-tley Hall. Sabia pelos guias que tinha lido que a família Hartley entregara a mata ao governo trinta anos antes. Agora, era uma reserva natural e um parque de campismo. Seguiu por um caminho para peões arenoso, suavizado com agulhas de pinheiro e ramos de abeto caídos, e instalou-se num abrigo.

Fingiu que fotografava um bando de gansos-debrent em migração. O seu verdadeiro alvo era Hartley Hall, que ficava logo a sul da mata, depois de se atravessar um prado morto pelo Inverno. A chegada do embaixador estava agendada para as quatro da tarde. Chegou ao abrigo às 15h45; não queria demorar-se sem necessidade. O sol es-condeu-se no horizonte e o ar ficou gélido. O céu a poente estava raiado com pinceladas de aguarela roxas e cor de laranja. O vento vindo do mar fez-se sentir e abanou as árvores. Esfregou a cara com as luvas de lã para se aquecer.

Às 16h05, ouviu o som de carros a passar na estrada por entre a mata. Um momento depois, surgiram das sombras e seguiram a grande velocidade pela estrada de acesso privado a Hartley. Um homem apareceu à saída do alpendre principal ao mesmo tempo que a pequena coluna de automóveis parava junto ao caminho de entrada. Rebecca Wells levou os binóculos aos olhos. Observou Douglas Cannon a sair do banco de trás da limusina e a apertar a mão ao outro homem. Durante vários minutos, visitaram os terrenos de Hartley Hall. Rebecca Wells observou-os com atenção.

Após completarem a volta à casa e desaparecerem lá dentro, ela levantou-se e guardou a máquina fotográfica e os binóculos numa mochila de nylon. Seguiu o trilho por entre a mata, de volta ao parque de estacionamento onde tinha deixado o Opel alugado, e avançou no carro pela estrada estreita junto à costa, de regresso à sua caravana na praia.

Por essa altura, já estava bastante escuro e o parque de campismo encontrava-se praticamente vazio: apenas uma família de viajantes que estava de passagem e um grupo de adolescentes dinamarqueses que andava de mochila às costas por Norfolk. Os quatro membros da equipa dela estavam espalhados por outros parques de campismo ao longo da costa. A maré estava a baixar e o ar possuía o cheiro penetrante dos lodaçais e dos pântanos. Rebecca entrou na caravana e ligou o aquecedor eléctrico portátil.

Acendeu o fogão a gás, ferveu água e fez uma cafeteira de Nescafé. Encheu um termos com o café e despejou o resto numa caneca de cerâmica. Bebeu o café enquanto caminhava pela praia.

Era estranho, pensou, mas pela primeira vez em muito tempo sentia uma estranha sensação de paz. Era aquele lugar, pensou, aquele lugar belo e místico. Pensou como era estranho passar por uma aldeia e não ver qualquer sinal de conflito sectário: nada de bandeiras do Reino Unido nem da Irlanda do Norte, nada de murais ou slogans políticos em tom de guerra rabiscados nas paredes, nada de esquadras de polícia mais parecidas com fortalezas. Toda a sua vida havia sido consumida pelo conflito.

O pai tinha estado envolvido com os paramilitares protestantes e ela casara-se com um homem da UVF. Tinha sido educada para odiar e desconfiar dos católicos. Em Portadown, o conflito estava presente por toda a parte; não havia forma de lhe escapar. Ser protestante em ortadown dera um propósito à sua vida. Sentiu que tinha um lugar na história. Os rituais do ódio e os ciclos de matança e vingança tinham conferido um sentido de ordem macabro às coisas.

Pensou no que aconteceria depois do assassínio. Kyle Blake tinha-lhe dado dinheiro, um passaporte falso e um sítio para se esconder em Paris. Sabia que teria de ficar escondida durante meses, senão mesmo anos. Poderia nunca mais conseguir regressar a Portadown.

Acabou o que restava do café, observando as ondas a rebentarem na praia, fosforescentes ao luar. "Quero ir para algum sítio como este", pensou. "Gostava de poder ficar aqui para sempre."

Voltou para a caravana no meio da escuridão, entrou e ligou o computador portátil. Com um modem portátil, conectou-se ao servidor da Internet e escreveu uma breve mensagem de correio electrónico.

 

ESTOU A GOSTAR IMENSO DE ESTAR EM NORFOLK. O TEMPO ESTÁ FRIO MAS BASTANTE BONITO. HOJE VI VÁRIAS ESPÉCIES RARAS DE PÁSSAROS. PENSO FICAR AQUI MAIS UNS DIAS.

 

Enviou a mensagem e desligou o computador. Agarrou no termos de café e num maço de tabaco. Tinha uma longa viagem pela frente naquela noite. Saiu da caravana e entrou no Opel. Passado um momento, estava a seguir a toda a velocidade pela Al48, em direcção a King's Lynn, a primeira etapa da sua viagem até à costa oeste da Escócia.

 

— O verdadeiro nome dele é Oliver Taylor — disse Graham Seymour a Douglas —, mas gostaria que se esquecesse que alguma vez ouviu este nome. Ele é vigia de profissão, não és, Oliver? Um dos melhores, na verdade.

— A semelhança é notável — disse Douglas, estarrecido.

— Actualmente, o Oliver treina novos recrutas a maior parte do tempo, mas ainda o colocamos em acção de vez em quando se precisamos de um verdadeiro profissional.

Aliás, passou algum tempo a seguir a encantadora Rebecca Wells, não foi, Oliver?

Taylor assentiu com a cabeça.

— Siga-me, por favor, senhor embaixador — disse Graham. — Gostaria de lhe mostrar algumas coisas.

Graham levou Douglas e Michael até uma sala cheia de equipamento electrónico e de monitores de vídeo. Um par de técnicos acusou a presença dos três homens e depois prosseguiu com o seu trabalho.

— Este é o centro nevrálgico da operação em termos electrónicos. — disse Graham. — Todo o terreno está repleto de câmaras de vigilância com infravermelhos, detectores de movimento e sensores de calor. Quando a Brigada para a Libertação do Ulster avançar, é aqui que vamos ficar a saber primeiro.

— E como é que sabem que eles vão tentar? — perguntou Douglas.

— Porque a Rebecca Wells está em Norfolk — respondeu Graham.

— Já está cá há coisa de três dias. Está alojada numa caravana perto da praia, a poucos quilómetros de distância. Estava na North Wood ainda há uns minutos quando o senhor chegou. Ela sabe que o senhor está cá.

— Na verdade, acabou de deixar o acampamento, senhor — avisou um dos técnicos.

— E para onde se dirige?

— Para oeste, na estrada costeira.

— E a caravana? — perguntou Michael.

— Continua no acampamento, senhor. Graham disse:

— Estes homens são as nossas gadanhas, senhor embaixador. Deixe-me apresentar-lhe os nossos instrumentos cortantes.

Os Serviços Aéreos Especiais são a unidade de elite das forças armadas britânicas e uma das organizações militares mais respeitadas do mundo. Com sede em Hereford, a cerca de duzentos e vinte e cinco quilómetros a noroeste de Londres, possuem um regimento activo, o 22 SAS, e cerca de 550 membros. A SAS é uma força de inserção, pensada para actuar atrás das linhas inimigas. Está dividida em quatro esquadrões operacionais, cada um com uma especialidade diferente: aerotransportado, anfíbio, montanhista e veículos de assalto. A unidade demonstrou a sua destreza antiterrorista em Maio de 1980 quando conseguiu acabar com o cerco à embaixada iraniana em Londres perante uma audiência televisiva mundial. Os recrutadores da SAS procuram soldados com uma inteligência acima da média, que demonstrem capacidade para improvisar e agir sozinhos. Os soldados da SAS são conhecidos pelo seu egotismo, impetuosidade e sarcasmo, e por isso a SAS é olhada de lado por muita da estrutura militar britânica. O lema da organização é "Quem ousa, vence". Fiéis à sua forma de ser, os homens da SAS mutilam deliberadamente o seu próprio credo proclamando sacrilegamente: "Não importa quem vence."

Os oito homens na grande sala de jogos não se pareciam muito com qualquer soldado que Douglas já tivesse visto. Tinham o cabelo desgrenhado ou não tinham sequer cabelo e alguns tinham bigodes caídos. Dois estavam a jogar bilhar; outros dois estavam entretidos com um ruidoso jogo de ténis de mesa, balançando-se de um lado para o outro. Os restantes mantinham-se sentados à roda de uma televisão de ecrã gigante, a ver um filme em vídeo — A Dupla Vida de Veronique — e a pedirem de vez em quando para que se fizesse silêncio. O jogo de bilhar e a competição de pingue-pongue terminaram de repente quando os homens perceberam que Douglas se encontrava na sala.

— Quando a Brigada para a Libertação do Ulster avançar, estes homens estarão à espera dela — disse Graham. — Posso assegurar-lhe que tudo estará terminado muito rapidamente. Estes senhores sabem o que aconteceu aos seus colegas no condado de Tyrone na outra noite. A SAS é uma unidade pequena. Como poderá imaginar, estão ansiosos por ficarem quites.

— Compreendo isso — respondeu Douglas. — Mas se for possível evitar que se derrame sangue inutilmente...

— Eles vão fazer os possíveis para capturarem os terroristas vivos — assegurou Michael. — Vai depender da forma como a Brigada para a Libertação do Ulster reagir quando descobrir que está a cair numa armadilha.

— Está na altura de o tirar daqui, senhor embaixador — disse Graham. — Já fez a sua parte. Receio é que a viagem de regresso não vá ser tão panorâmica como o percurso até aqui.

Michael e Douglas separaram-se no grande salão. Ao apertarem a mão, Douglas pôs um braço sobre o ombro do genro e disse:

— Tem cuidado contigo, Michael.

Graham conduziu Douglas pela casa, em direcção a uma entrada de serviço. Uma carrinha comercial estava à espera à porta, com o motor ligado. Tinha o nome de uma empresa de fornecimento de comida e serviços da zona estampado de lado. Douglas entrou e sen tou-se numa cadeira especial que tinha sido presa ao compartimento traseiro de carga. Piscou o olho. Graham fechou as portas de trás e a carrinha partiu a toda a velocidade.

 

No dia seguinte, ao início da manhã, Rebecca Wells estava na praia em Ardnacross Bay, na costa oeste da Escócia. Estava nevoeiro, muito frio e ainda bastante escuro, mesmo já tendo passado uma hora desde o nascer do Sol. Percorreu a estreita e rochosa praia, fumando um cigarro e bebendo o resto do Nescafé que tinha feito mais de doze horas antes. Sentia-se exausta, mas continuava acordada graças aos nervos e à adrenalina. A manhã não tinha vento e a água estava parada e calma. Do outro lado da baía, ficava o estreito de Kilbrannan. A sudoeste, atravessando o canal do Norte, ficava a costa de Antrim, na Irlanda do Norte.

Passaram mais vinte minutos. Rebecca estava a começar a ficar nervosa, interrogando-se se o barco viria ou não. Seria um Zodiac, dis-sera-lhe Kyle Blake, deitado à água pela lateral de um cargueiro de proprietários protestantes e vindo de Londonderry. A bordo, estaria um membro da brigada com um saco de lona carregado de armas para o assalto a Hartley Hall.

Passaram mais dez minutos enquanto Rebecca pensava se deveria ou não abortar a missão. O céu tinha clareado e os primeiros carros a saírem de manhã estavam em movimento na estrada atrás da praia. Foi só então que ouviu o barulho de um pequeno motor ecoando através da água parada. Um momento depois, surgiu um pequeno Zodiac, rompendo o nevoeiro na baía.

A medida que o barco se aproximava da costa, Rebecca observou o homem sentado na proa, com o timão do leme na mão. Era Gavin Spencer. Levantou a hélice e o Zodiac fundeou na praia. Rebecca avançou a correr para o barco e puxou a corda de guia.

— Que raio estás aqui a fazer? — perguntou-lhe.

— Queria participar nisto.

— E o Kyle sabe?

— Vai ficar a saber não tarda nada, não vai? — respondeu Spencer, saindo do Zodiac e levantando o saco de lona da proa. — Ajuda-me a tirar isto da praia.

Juntos, arrastaram o barco pela praia e esconderam-no nas dunas cobertas de tojo. Spencer regressou à praia e carregou o saco de lona aos ombros. Rebecca levou-o até ao Opel.

Observou a cara dela com atenção.

— Quando é que foi a última vez que dormiste?

— Já não me lembro.

— Guio eu.

Ela atirou-lhe as chaves. Ele colocou o saco de lona no porta-bagagens e, a seguir, sentou-se ao volante e ligou o motor; tremia com frio. Pôs o aquecedor no máximo e, passado um momento, o interior do Opel parecia uma sauna. Pararam na aldeia de Ballochgair e compraram chá e sanduíches de bacon num café à beira da estrada.

Spencer devorou três das sanduíches e saboreou o chá lentamente.

— Conta-me tudo — disse ele e, durante quinze minutos, Rebecca descreveu a topografia da costa de Norfolk e a configuração de Hartley Hall. Sentia-se exausta. Falava automaticamente, como se recitasse de memória, sem estar a pensar conscientemente. Era uma parvoíce que Gavin Spencer ali estivesse — era um estratega e não um atirador —, mas estava contente por ele ter vindo.

Rebecca fechou os olhos enquanto ele fazia mais perguntas. Esforçou-se por responder, mas ia sentindo a voz a ficar mais fraca enquanto o carro seguia a grande velocidade pela charneca erma e pela floresta de Carradale. O calor sufocante do aquecedor extinguiu-lhe as últimas forças. Adormeceu — o sono mais profundo que tinha tido em muito tempo — e só acordou quando já avançavam velozmente pela costa de Norfolk.


Capítulo 28

HARTLEY HALL, NORFOLK

 

Tudo indicava que era um típico dia de Inverno em Hartley Hall. O céu estava claro e luminoso e o ar fresco com o cheiro a maresia. Depois do almoço, foram até Cley no carro oficial de Douglas Cannon e caminharam pelas areias de Blakeney Point, embrulhados nos seus sobretudos e gorros de lã. O mar do Norte cintilava com a luz do sol brilhante. Os guarda-costas da Divisão Especial caminhavam silenciosamente atrás deles enquanto os retrievers de Nicholas Hartley aterrorizavam as andorinhas-do-mar e os gansos-de-brent. A chuva chegou à costa de Norfolk ao anoitecer. Na altura em que os convidados começaram a chegar para o jantar, a chuvada tinha-se desenvolvido e dado origem a uma verdadeira tempestade de Inverno do mar do Norte.

Pouco passava das dez da noite quando Gavin Spencer se esgueirou de trás do abrigo na North Wood e correu pelo meio das árvores, de regresso à praia. Abriu o porta-bagagens do Opel e tirou o saco de lona. Carregou o saco pelo parque de campismo e bateu na porta da caravana.

Rebecca Wells abriu as cortinas da janela junto à porta e espreitou para fora. Abriu a porta e Spencer entrou na caravana. O vento fechou a porta com força assim que ele entrou. O espaço minúsculo estava apinhado com os membros da sua unidade. Spencer tinha seleccionado a equipa pessoalmente e conhecia bem cada um dos homens: James Fletcher, Alex Craig, Lennie West e Edward Mills.

O ar estava carregado de fumo de cigarro e do cheiro de homens nervosos que tinham estado a dormir em tendas durante dois dias. Fletcher e Craig estavam sentados à pequena mesa da cozinha, West e Mills na borda da cama, com as caras por barbear e o cabelo despenteado. Rebecca estava a fazer chá.

Spencer colocou o saco de lona na cama e abriu o fecho rapidamente. Tirou as submetralhadoras Uzi uma a uma e passou-as aos homens, seguidas dos carregadores de munição. Um momento depois, a caravana estava repleta com o som do metal a bater no metal, à medida que a equipa enfiava os carregadores nas Uzi e experimentava engatilhá-las. Spencer pegou na última arma e atirou o saco de lona vazio para cima da cama.

— Onde está a minha? — perguntou Rebecca.

— Do que é que estás a falar?

— A minha arma — respondeu ela. — Onde é que está?

— Não tens treino para este tipo de coisas, Rebecca — disse Spencer suavemente. — O teu trabalho está feito.

Ela atirou a chaleira com força para cima da mesa.

— Então, podem fazer o raio do vosso próprio chá, não podem? Spencer avançou para ela e pousou-lhe uma mão no ombro.

— Agora não é altura para isso — disse delicadamente. — Acho que as nossas probabilidades de sucesso são de um em dois, na melhor das hipóteses. Alguns destes rapazes podem não conseguir voltar para casa. Não achas que lhes deves isso, manteres a cabeça fria?

Ela assentiu.

— Então muito bem. Vamos ao que interessa, sim?

Rebecca abriu o armário por cima do fogão e tirou um grande pedaço de papel dobrado. Abriu-o em cima da mesa, deixando ver um mapa pormenorizado de Hartley Hall e dos terrenos circundantes Spencer deixou-a conduzir a apresentação.

— Há várias entradas para o solar — disse. — A entrada principal, claro, é aqui — bateu com a ponta do dedo no diagrama , no alpendre sul. Também há entradas aqui na estufa das laranjeiras, aqui e aqui na ala leste, é a entrada de serviço principal, aqui. Todas as noites dei a volta à casa e tomei nota dos locais em que havia luzes acesas. Na noite em que o embaixador chegou, reparei numa luz acesa num quarto pela primeira vez, aqui no primeiro andar. Suspeito que o Cannon esteja a dormir aqui.

Spencer avançou e tomou o lugar dela.

— Quero deixá-los à nora. Quero criar uma confusão. Aproximamo-nos separadamente e entramos na casa ao mesmo tempo, às quatro horas. Eu vou pela frente. O James entra pela estufa das laranjeiras. O Alex e o Lennie vão entrar pela ala leste e o Edward avançará pela entrada de serviço. Alguns irão encontrar resistência. Outros não. Assim que estiverem lá dentro, dirijam-se logo para o quarto das visitas no andar de cima. E o primeiro a chegar enfia uma bala no embaixador. Alguma pergunta?

 

Os convidados começaram a sair logo depois da meia-noite, embora não fossem na verdade convidados que tivessem vindo jantar, mas sim um conjunto de vigias e administrativos do MI5, actores participando na ilusão da Operação Timbale. Quando os últimos se foram embora, os dois guarda-costas da Divisão Especial saíram de serviço e entraram dois novos agentes. Um deles fez uma ronda apressada pelo terreno, vestido com uma roupa de intempérie como se fosse um pescador do mar do Norte. A luz esteve acesa no quarto chinês até à uma da manhã, altura em que Michael se esgueirou lá para dentro e a apagou.

Um a um, os membros da equipa da SAS tinham assumido as suas posições no exterior da casa. Um ficou à espera no jardim murado, outro no parque dos veados. Um terceiro postou-se perto do canteiro de flores e um quarto no cemitério, junto à Igreja de St. Margaret. Os restantes ocuparam posições ao longo do rés-do-chão da casa.

Todos os soldados traziam óculos de visão nocturna com infravermelhos e um rádio em miniatura com um auscultador que lhes permitia comunicarem com o centro nevrálgico dentro do solar. Todos levavam uma HKMP5, a submetralhadora compacta que era o padrão para a SAS, bem como uma pistola Herstal de 5,7 milímetros para apoio. A Herstal é tida como uma das pistolas mais poderosas do mundo. Dispara balas de dois gramas a uma velocidade de cano de 650 metros por segundo e é capaz de penetrar quarenta e oito camadas de Kevlar laminado, a substância utilizada nos fatos à prova de bala, a uma distância de duzentos metros. Michael levava a pistola-padrão da CIA, uma Browning de nove milímetros de alta potência, com um carregador de quinze tiros. Graham Seymour não estava armado.

Os dois homens esperaram na sala de controlo, na parte de cima, no quarto das visitas do primeiro andar. O tempo estava a massacrar o equipamento de detecção electrónico.

Os detectores de movimento disparavam constantemente por causa do abanar das árvores e dos arbustos. Os microfones direccionais de alta potência estavam completamente dominados pelo barulho do vento e pela batida da chuva. Só as câmaras de vídeo com infravermelhos funcionavam correctamente.

Às 3h30, os agentes operacionais do MI5 colocados nos parques de campismo em redor de Hartley deram conta de movimentos por parte dos membros do esquadrão de assassinos.

Não seguiram os terroristas. Em vez disso, deixaram-nos prosseguir sem impedimentos, em direcção à propriedade.

Às 3h55, os operadores de câmara instalados no andar de cima de Hartley Hall avistaram de relance dois atiradores a colocarem-se em posição, um nas árvores em redor do parque dos veados e um segundo a avançar lentamente por entre as ruínas da aldeia, em direcção à Igreja de St. Margaret.

Às 3h58 em ponto, James Fletcher levantou-se do seu esconderijo no jardim e deslocou-se rapidamente pelo caminho de gravilha, na direcção da estufa das laranjeiras.

Antes de se juntar à brigada, Fletcher tinha feito parte da Associação de Defesa do Ulster, uma violenta organização paramilitar protestante. Com efeito, fora um dos mais prolíficos assassinos do grupo, com meia dúzia de assassínios confirmados de atiradores do IRA. Tinha cortado com a UDA quando esta concordou com um cessar-fogo durante as negociações de paz. Quando Gavin Spencer o abordou com a proposta de se juntar a um novo grupo, a Brigada para a Libertação do Ulster, aceitara sem hesitar.

Fletcher era virulentamente anticatólico e achava que o Ulster devia ser uma província protestante para pessoas protestantes. Também queria desesperadamente ser ele a matar o embaixador e, por isso, entrou em acção dois minutos antes, desobedecendo à ordem de Spencer para esperar até às quatro horas.

Fletcher trazia uma balaclava, um fato de treino preto e sapatos desportivos pretos com sola de borracha. Enquanto percorria o caminho, a gravilha ia sendo esmagada suavemente debaixo dos seus pés. Chegou às portas envidraçadas e experimentou o trinco; estavam trancadas. Deu meio passo atrás e golpeou a vidraça com a coronha da Uzi na parte mais próxima do trinco. Choveram fragmentos de vidro no chão de pedra.

Estava a passar a mão pelo buraco na vidraça quando ouviu atrás de si o som de passos na gravilha. Tirou a mão e colocou-a na Uzi. Estava prestes a rodar e disparar quando uma voz com sotaque inglês disse:

— Larga a arma e põe as mãos na cabeça. Sê um bom rapaz.

Fletcher calculou rapidamente as probabilidades de sair vencedor do encontro com o homem parado atrás de si. Se ele fosse da Divisão Especial, Fletcher possuía quase de certeza mais poder de fogo, embora os agentes de protecção da Divisão Especial fossem bem conhecidos por serem bons atiradores. Trazia uma protecção à prova de bala debaixo do fato de treino e conseguiria sobreviver a quase tudo menos a um tiro na cabeça. Também sabia que, se fosse preso, passaria provavelmente os anos que lhe restavam numa prisão inglesa.

James Fletcher agachou-se subitamente e rodou sobre si mesmo, levantando a arma numa posição de disparo. Viu o homem apenas por um instante, mas percebeu logo que não era da Divisão Especial, era da SAS, o que significava que tinham caído todos numa armadilha, a mesma armadilha em que o IRA caíra várias vezes com resultados desastrosos.

E Fletcher também percebeu que tinha acabado de cometer um erro de cálculo fatal.

A arma do soldado soltou apenas um estalido surdo. No entanto, sabia que ela tinha disparado porque conseguiu ver o clarão do cano. — salva de tiros desfez-lhe o fato de treino e perfurou-lhe a protecção à prova de bala, estilhaçando-lhe a espinha e abrindo-lhe um grande buraco no músculo do coração. Caiu para trás, destruindo as portas envidraçadas na queda e tombando no chão da estufa das laranjeiras. O homem da SAS surgiu à sua frente poucos segundos depois. Inclinou-se sobre Fletcher e agarrou-lhe a garganta bruscamente, à procura de um batimento cardíaco. A seguir, pegou na Uzi e afastou-se enquanto James Fletcher morria.

Edward Mills ouviu o som do vidro a estilhaçar-se enquanto corria por entre as ruínas em redor da Igreja de St. Margaret. Ainda mantinha o físico magro e levemente musculado que tinha feito dele campeão de corta-mato na escola e pulou facilmente sobre as pilhas de pedras e os muros baixos das ruínas. Tal como Fletcher, trazia um fato de treino preto e uma balaclava. A sua frente, emoldurada no brilho de Hartley Hall, ficava a Igreja de St. Margaret, assomando sobre o cemitério. Mills correu ao longo de um antigo caminho que partia da aldeia e seguia até às traseiras da igreja.

Nunca tinha feito nada de semelhante na vida, mas sentia-se surpreendentemente calmo. Era membro da Ordem de Orange — o pai fora o porta-estandarte da sua loja em Portadown, tal como o avô —, mas tinha evitado os paramilitares até ao Verão anterior. Foi nessa altura que o exército e a RUC tinham impedido a Ordem de Orange de marchar pela maioritariamente católica Garvaghy Road, em Portadown. Tal como a maioria dos homens da Ordem de Orange, Mills achava que tinha o direito inabalável de se manifestar numa estrada pública sempre que quisesse, independentemente do que os católicos pensassem. Para protestar contra o bloqueio, tinha permanecido nos terrenos junto à igreja de Drumcree durante seis semanas. Foi aí que Gavin Spencer o abordou, no parque de campismo improvisado e lamacento em Drumcree, e lhe pediu para aderir à Brigada para a Libertação do Ulster.

Agora, corria pelo velho cemitério, avançando por entre lápides e cruzes. Estava perto do portão de entrada para o cemitério, a correr sem esforço, quando sentiu uma dor aguda na canela esquerda. Ficou com as pernas enrodilhadas e caiu com força no chão, com a cara pa ra baixo. Tentou pôr-se em pé, mas, no segundo seguinte, um homem saltou-lhe para as costas, bateu-lhe duas vezes na nuca e agarrou-lhe. a boca com uma mão enluvada.

Mills sentiu-se a perder a consciência.

— Basta fazeres sequer um movimentozinho ou um grunhido e eu enfio-te uma bala na nuca — disse o homem. pelo tom de voz calmo, Edward Mills soube que a ameaça não era vã. E também teve a repugnante noção de que tinham caído direitinho numa armadilha. O homem tentou tirar-lhe a Uzi da mão. Tolamente, Mills resistiu. O homem enfiou-lhe o cotovelo na nuca e, um segundo depois, Mills desmaiou.

Alex Craig e Lennie West correram pela relva plana e vasta do parque dos veados, em direcção à ala leste de Hartley Hall. Os dois homens eram veteranos da UVF e já tinham trabalhado juntos muitas vezes. Moviam-se silenciosamente, lado a lado, com as armas prontas a disparar. Atingiram o final do parque dos veados e chegaram ao caminho de gravilha que levava à ala leste. Atrás deles, uma voz masculina gritou:

— Parem, larguem as armas e ponham as mãos na cabeça! Craig e West pararam, mas continuaram agarrados às Uzi.

— Larguem as armas, já! — repetiu a voz.

Quando tinham estado a acampar perto de Blakeney antes da operação, Craig e West tinham decidido que, se houvesse problemas, prefeririam lutar a ser presos. Olharam um para o outro.

— Parece que fomos enganados — sussurrou Craig. — Por Deus e pelo Ulster, hem, Lennie?

West assentiu com a cabeça e disse:

— Eu fico com o que está atrás de nós.

— Certo.

West atirou-se para o chão, rolou sobre si próprio e começou a disparar na escuridão. Alex Craig deitou-se de barriga para baixo e disparou sem parar para a ala leste, estilhaçando vidros. Segundos depois, viu a resposta numa das janelas estilhaçadas, um clarão do cano de uma submetralhadora com silenciador.

West viu a mesma coisa, deitado na relva alta do parque dos veados, mas era tarde de mais. Uma rajada de tiros obliterou-lhe a cabeça numa explosão de sangue e tecido cerebral.

Craig não fazia ideia do que tinha acontecido ao companheiro. Dirigiu o fogo para o atirador na janela, mas apareceu um segundo e depois um terceiro. Apercebeu-se de que a arma de West tinha ficado silenciosa. Virou-se e viu um cadáver sem cabeça jazendo junto a si na gravilha.

Esvaziou o primeiro carregador, enfiou outro na Uzi e começou a disparar novamente. Passados poucos segundos, o atirador que se encontrava dentro do solar acertou no alvo, tal como tinha feito o homem atrás de si no parque dos veados. O corpo de Craig foi despedaçado pelos disparos. Os seus tiros finais, disparados graças a um espasmo das mãos enquanto morria, estilhaçaram o sumptuoso relógio da cúpula da ala leste, fazendo parar os ponteiros nas 4h01.

Gavin Spencer, ao correr pela estrada de gravilha na direcção do alpendre sul, ouviu o intenso tiroteio no parque dos veados. Por um instante, pensou em voltar para trás e dirigir-se para o refúgio da Norfh Wood. Não fazia ideia do que tinha acabado de acontecer a nenhum dos seus homens. Teriam penetrado no solar? Teriam sido travados pelos guarda-costas da Divisão Especial?

Parou por um momento, com a cabeça a rodopiar e a respiração ofegante. Pôs-se à escuta de mais disparos, mas não ouviu nada a não ser a chuva e o vento. Recomeçou a correr. Passou pelas colunas trabalhadas do alpendre sul e encostou-se à porta.

De novo, parou para ouvir. O tiroteio parecia ter parado de vez. A porta estava trancada. Deu um passo atrás e abriu fogo, fechando os olhos por causa da chuva de lascas de madeira. Enfiou o pé na porta e despedaçou-a. Avançou para o átrio de entrada e parou, com a Uzi pronta a disparar.

Um vulto apareceu à entrada do grande salão: alto, de ombros largos, capacete e óculos de visão nocturna. SAS, pensou Spencer, sem dúvida. Rodou e fez pontaria com a Uzi O homem da SAS tentou disparar a arma, mas ela encravou. Esticou a mão para chegar a uma pistola, enfiada no coldre debaixo da axila, mas Spencer disparou uma rajada com a sua Uzi.

O tiros acabaram com o soldado. Spencer avançou e sacou a pistola do coldre. Atravessou o grande salão e começou a subir as escadas.

No centro de comando, o operador de rádio disse calmamente:

— Base para Alfa 534, base para Alfa 534, consegue ouvir-me? Repito, consegue ouvir-me?

Voltou-se e olhou para Michael.

— Não responde, senhor Osbourne. Acho que temos um terrorista à solta na casa.

— E onde é que está o homem do SAS mais perto dali?

— Ainda na ala leste.

Michael tirou a Browning automática do bolso do casaco. Engatilhou-a, enfiando a primeira bala na câmara.

— Manda-o vir para aqui, já!

Michael esgueirou-se pela entrada para o corredor escuro e fechou a porta depois de passar. Ouviu Gavin Spencer a subir com dificuldade a escadaria central e agachou-se, segurando a Browning com as duas mãos e os braços estendidos. Passados poucos segundos, avistou-o, subindo o último lanço de escadas.

— Larga a arma, já! — gritou Michael.

Gavin Spencer virou-se e apontou a Uzi na direcção de Michael. Este disparou dois tiros. O primeiro passou ao lado de Spencer e estilhaçou um dos bustos clássicos colocados ao longo da escadaria. u segundo atingiu-o no ombro esquerdo e atirou-o para trás.

Spencer não largou a Uzi e disparou uma rajada de tiros pelo corredor fora. Michael, armado apenas com a Browning e sem lugar para se proteger, não podia competir com um terrorista munido de uma Uzi.- Rodou a maçaneta da porta que tinha atrás de si e mergulhou de novo para o centro de comando.

Bateu com a porta e trancou-a.

— Baixem-se!

Graham Seymour e os outros agentes na sala atiraram-se para o chão no momento em que Gavin Spencer, lá fora, no corredor, disparou através da parede e da porta.

Todos os quartos da ala estavam ligados ao quarto contíguo por uma porta de comunicação. Michael correu para a porta e entrou no quarto seguinte. Repetiu o movimento mais duas vezes, até se encontrar no quarto chinês.

Lá fora, no corredor, conseguia ouvir Spencer, com a respiração pesada, obviamente cheio de dores. Michael atravessou o quarto e encostou-se à parede junto à porta.

Spencer disparou uma pequena rajada com a Uzi, estilhaçando a porta, e abriu-a com um pontapé. Ao entrar no quarto, Michael atingiu-o na cabeça, de lado, com a coronha da Browning.

Spencer vacilou, mas não caiu.

Michael acertou-lhe uma segunda vez.

Spencer caiu no chão e a Uzi tombou-lhe das mãos.

Michael saltou para cima dele, agarrando-lhe a garganta com uma mão e encostando-lhe a Browning à cabeça com a outra. Lá fora, no corredor, conseguia ouvir o tropel dos homens da SAS que se aproximavam.

— Não mexas a porra de um músculo — disse Michael. Spencer tentou tirá-lo de cima dele. Michael pressionou o cano da Browning contra a ferida do ombro de Spencer. Este gritou de dor e ficou quieto.

Dois homens da SAS chegaram ao quarto, com as armas apontadas para Spencer. Graham Seymour chegou uns segundos depois. Michael arrancou a balaclava da cabeça de Spencer. Sorriu ao reconhecer a cara.

— Oh, meu Deus — disse Michael, olhando para Graham. — Vejam só quem temos aqui.

— Gavin, meu caro — disse Graham indolentemente. — Que bom teres podido aparecer por cá.

Rebecca Wells viu tudo aquilo acontecer do abrigo na No Wood. O tiroteio tinha terminado e a noite estava repleta do som de sirenes distantes. Os primeiros carros da polícia avançaram a toda velocidade pela estrada da entrada, seguidos por um par de ambulâncias. Os homens tinham caído direitinhos numa armadilha e a culpa era dela..

Tentou controlar a raiva e pensar com clareza. Os britânicos tinham estado com certeza a vigiá-los durante o tempo todo. Havia provavelmente agentes no parque de campismo, agentes que a tinham seguido enquanto ela fazia o reconhecimento de Hartley Hall. Percebeu que tinha agora poucas opções. Se voltasse para a caravana ou se tentasse esconder-se na North Wood, seria presa.

Tinha três horas antes da primeira luz do dia — três horas para se afastar o mais possível da costa de Norfolk. O Opel não lhe servia de nada; estava lá atrás com a caravana, quase de certeza a ser vigiado pela polícia.

Se queria escapar de Norfolk, só tinha uma escolha.

Tinha de andar.

Pegou na mochila. Lá dentro, estavam o dinheiro, os mapas e a sua Walther automática. Norwich ficava a trinta e dois quilómetros a sul. Conseguia lá estar por volta do meio-dia. Podia comprar uma muda de roupa, alojar-se num hotel para se lavar, comprar tinta para o cabelo numa farmácia e mudar de aparência. De Norwich, podia apanhar uma camioneta ainda mais para sul, para Harwich, onde havia um grande terminal defemes para a Europa. Podia apanhar um ferry durante a noite para a Holanda e estar no continente pela manhã.

Tirou a arma da mochila, enfiou o capuz e começou a andar.


MARÇO


Capítulo 29

AMESTERDÃO

PARIS

 

Amesterdão era uma cidade que Delaroche adorava, mas nem mesmo Amesterdão, com as suas casas com empenas e os seus canais pitorescos, conseguia fazê-lo sair da neblina cinzenta de depressão que se tinha instalado sobre ele naquele Inverno. Tinha arrendado um apartamento numa casa com vista para um pequeno canal que corria entre o Herengracht e o Singel. As divisões eram amplas e arejadas, com janelas em arco e portas envidraçadas que davam para a água, mas Delaroche mantinha as persianas corridas a não ser quando se encontrava a trabalhar.

O apartamento não tinha mobília, com a excepção dos seus cavaletes, da cama e de uma cadeira grande junto às portas envidraçadas, onde se sentava e lia até tarde na maior parte das noites. Havia duas bicicletas apoiadas contra a parede no hall de entrada, uma italiana de comda, que ele utilizava para os longos passeios pelo campo plano holandês, e uma bicicleta de montanha, fabricada na Alemanha, para as pedras arredondadas das calçadas e as tijoleiras do centro de Ameserdao. Recusava-se a guardá-las na arrecadação à saída da casa, ao ontrário do que os restantes inquilinos faziam; havia um enorme mercado negro em Amesterdão para as bicicletas roubadas, até mesmo para as mais frágeis e com uma só velocidade que a maioria das pessoas usava para andar de um lado para o outro. A bicicleta de monta-a dele não teria sobrevivido mais do que uns quantos minutos.

De forma incaracterística, tinha ficado cada vez mais obcecado com a sua própria cara. Várias vezes ao dia, ia para a casa de banho e ficava a olhar fixamente para o seu reflexo no espelho. Nunca tinha sido um homem vaidoso, mas detestava o que agora via, pois isso ofendia-lhe o sentido artístico de proporção e simetria. Todos os dias fazia um desenho a lápis do rosto para documentar o longo processo de recuperação. A noite, deitado na cama sozinho, apalpava os implantes de colagénio que tinha nas faces.

Por fim, as incisões sararam e o inchaço desapareceu, e as suas feições estabilizaram numa mistura entediante e bastante feia. Leroux, o cirurgião plástico, tivera razão; Delaroche já não se reconhecia. Apenas os olhos se mantinham iguais, vivos e distintos, mas agora encontravam-se rodeados por banalidade e mediocridade.

As exigências de segurança do seu ofício tinham-no impedido de pintar a própria cara, mas pouco tempo depois de ter vindo para Amesterdão produziu um auto-retrato intensamente pessoal — um homem hediondo a olhar para um espelho e a ver um reflexo lindo a mirá-lo de volta. O reflexo era Delaroche antes da operação. Teve de se socorrer da memória para o trabalho, já que não possuía fotografias da sua antiga cara. Ficou com a obra durante alguns dias, encostada à parede do estúdio, mas a paranóia acabou por levar a melhor e ele estraçalhou a tela e pegou-lhe fogo na lareira.

Numa ou noutra noite, quando se sentia aborrecido ou agitado, Delaroche ia aos clubes nocturnos à volta da Leidseplein. Anteriormente, evitava os bares e os clubes nocturnos porque costumava atrair demasiado a atenção das mulheres. Agora, podia ficar sentado durante horas sem ser incomodado.

Nessa manhã, levantou-se cedo e fez café. Tomou um duche e vestiu umas calças de ganga e uma camisola de lã. Ligou o computador, verificou o e-mail e leu jornais on-line até que a rapariga alemã deitada na sua cama se mexeu.

Tinha-se esquecido do nome dela — qualquer coisa parecida com Ingrid, talvez Eva. Tinha ancas largas e seios pesados. Agora, a luz cinzenta da manhã, Delaroche apercebeu-se de que era uma criança, no máximo vinte anos. Tinha qualquer coisa de Astrid Vogel no seu aspecto desajeitado. Sentiu-se zangado consigo mesmo. Seduzira-a só pelo desafio — o mesmo que fazer uma subida íngreme de bicicleta no final de. uma longa viagem — e agora apenas queria que ela se fosse embora.

Ela levantou-se e enrolou um lençol à volta do corpo.

— Café? — perguntou.

— Na cozinha — respondeu ele, sem desviar os olhos do ecrã do computador.

Ela tomou o café ao estilo alemão, com uma grande quantidade de natas espessas. Fumou um dos cigarros de Delaroche e mirou-o em silêncio enquanto ele lia.

— Tenho de ir para Paris agora — disse ele.

— Leva-me contigo.

— Não.

Falou calmamente mas com firmeza. Outrora, quando usava esse tom de voz, uma rapariga como aquela era capaz de ter ficado nervosa ou ansiosa por deixar de estar na sua presença, mas ela limitou-se a olhar fixamente para ele, por cima da chávena de café, e a sorrir. Suspeitou que fosse devido à sua cara.

— Ainda não acabei o que tinha a fazer contigo — disse ela.

— Não temos tempo.

Ela fez beicinho, na brincadeira.

— E quando é que te vou ver outra vez?

— Não vais.

— Vá lá — disse ela. — Tu és interessante, estranho. Quero saber mais coisas de ti.

— Não, não queres — respondeu ele, desligando o computador.

Ela deu-lhe um beijo e afastou-se calmamente. Tinha as roupas espalhadas pelo chão: calças de ganga pretas rasgadas, uma camisa de flanela à lenhador, uma T-shirt preta de um concerto de uma banda de rock cujo nome Delaroche nunca tinha ouvido falar. Quando acabou de se vestir, pôs-se à frente dele e perguntou:

— Tens a certeza de que não me levas para Paris?

— Absoluta — respondeu ele resolutamente, mas havia qualquer coisa nela de que gostava. Disse suavemente: — Volto amanhã à noite. Vem cá ter às nove. Faço-te o jantar.

— Não quero jantar — atirou ela. — Quero-te a ti. Delaroche abanou a cabeça.

— Sou demasiado velho para ti.

— Não és nada demasiado velho. O teu corpo é maravilhoso e tens uma cara interessante.

— Interessante?

— Sim, interessante.

Olhou em redor do quarto, para as telas encostadas às paredes.

— Vais a Paris em trabalho? — perguntou.

— Sim.

Delaroche apanhou um táxi para a Centraal Station de Amesterdão e adquiriu um bilhete em primeira classe no comboio da manhã para Paris. Comprou jornais numa papelaria do terminal e leu-os enquanto o comboio avançava a alta velocidade pelo campo plano holandês, em direcção à Bélgica.

As notícias dessa manhã intrigaram-no. Durante a noite, um grupo paramilitar protestante da Irlanda do Norte tinha tentado assassinar o embaixador americano no Reino Unido quando este se encontrava a passar o fim-de-semana numa casa de campo em Norfolk. De acordo com os jornais, agentes da Divisão Especial tinham matado três membros do grupo e prendido outros dois. O alegado líder da Brigada para a Libertação do Ulster, um homem chamado Kyle Blake, tinha sido preso em Portadown. A polícia andava à procura de uma mulher relacionada com o grupo.

Delaroche dobrou o jornal e olhou pela janela. Suspeitava que Michael Osbourne, o genro do embaixador, estivesse envolvido de alguma forma no incidente. Em Míconos, o Director dissera-lhe que Osbourne tinha sido chamado de volta à CIA para lidar com a questão da Irlanda do Norte.

O comboio chegou à Gare du Nord, em Paris, ao início da tarde. Delaroche foi buscar a sua pequena maleta ao compartimento das bagagens. Atravessou rapidamente a estação e apanhou um táxi à saída. Estava hospedado num pequeno hotel na Rue de Rivoli, com vista para o Jardim das Tulherias. Disse ao taxista para o deixar a alguns quarteirões dali, na Rue Saint-Honoré, e fez o resto do caminho a pé.

Registou-se no hotel, fazendo-se passar por holandês e falando com o funcionário da recepção num francês com sotaque. Deram-lhe uma mansarda no último andar, com uma óptima vista para os jardins e para as pontes do Sena.

Enfiou um carregador na Beretta e saiu.

O doutor Maurice Leroux, cirurgião plástico, tinha um consultório num elegante edifício, na Avenue Victor Hugo, perto do Arco do Triunfo. Delaroche, sem revelar o nome, confirmou por telefone que o doutor dava consultas nesse dia. Disse à recepcionista que passaria mais tarde para se encontrar com ele e desligou abruptamente.

Sentou-se à mesa junto à janela num café do outro lado da rua e ficou à espera que Leroux saísse. Um pouco antes das cinco, Leroux desceu à rua. Trazia um sobretudo de caxemira cinzento e parecia ser o último homem em Paris que ainda usava uma boina. Ia a andar depressa e aparentava estar satisfeito consigo próprio. Delaroche deixou algum dinheiro em cima da mesa e saiu do café.

Leroux foi até ao Arco do Triunfo e, a seguir, contornou a Place Charles de Gaulle e avançou pela avenida dos Campos Elísios. Entrou no restaurante Fouquet's e foi cumprimentado por uma mulher de meia-idade. Delaroche reconheceu-a; era uma actriz de pouca importância que fazia papéis secundaríssimos em dramas televisivos franceses.

O chefe de mesa conduziu Leroux e a actriz envelhecida até à parte do restaurante que servia de clube. Delaroche instalou-se numa mesa na parte pública do restaurante, de onde podia ver a porta. Pediu um prato de carne picada com batatas e bebeu meia garrafa de um Bordéus decente. A seguir, continuando a não haver sinal de Leroux, pediu queijo e café au lait.

Passaram praticamente duas horas até Leroux e a sua companhia saírem do restaurante. Delaroche observou-os pelo vidro. Estava vento e Leroux levantou a gola do sobretudo de caxemira de modo exagerado. Deu um beijo teatral à actriz e tocou-lhe na face, como se admirasse a sua obra. Ajudou-a a entrar num carro. A seguir, comprou jornais e revistas num quiosque e começou a andar pelo meio das multidões murmurantes que se deslocavam pelos Campos Elísios ao final da tarde.

Delaroche pagou a conta e seguiu-o.

Maurice Leroux gostava de andar. Com os jornais enfiados debaixo do braço, caminhou pelos Campos Elísios até chegar à Place de la Concorde. Não tinha razões para suspeitar que estava a ser seguido e, por isso, ir atrás dele era muito fácil. Delaroche tinha apenas de lhe acompanhar o ritmo pelos passeios movimentados. O corte do sobretudo caro e a boina ridícula faziam com que fosse fácil de localizar no meio da multidão. Atravessou o Sena pela Pont de la Concorde e caminhou durante muito tempo pelo Boulevard Saint-Germain. Delaroche acendeu um cigarro e fumou enquanto andava.

Leroux entrou num bistrô junto à Igreja de Saint-Germain-des-Prés e sentou-se ao balcão. Delaroche entrou uns momentos mais tarde e sentou-se a uma mesa pequena perto da porta. Leroux bebeu vinho e conversou com o barman. Uma rapariga bonita ignorou os avanços dele.

Passada meia hora, Leroux saiu do bar, já bastante bêbado. Isso agradou a Delaroche, pois iria tornar a sua tarefa mais fácil. Leroux cambaleou pelo Boulevard Saint-Germain, no meio da chuva fraca, e entrou numa pequena rua secundária perto da estação de metro de Mabillon.

Parou à entrada de um prédio de apartamentos e introduziu o código de segurança. Delaroche esgueirou-se pela porta antes de esta se fechar. Entraram ao mesmo tempo no elevador, uma jaula à moda antiga enfiada no meio da escadaria. Leroux carregou no botão para o quinto andar, Delaroche no do sexto. Começou a fazer conversa, falando do tempo horrível que estava, num francês com um forte sotaque parisiense. Leroux grunhiu qualquer coisa ininteligível. Era óbvio que não reconhecia o seu paciente.

Leroux saiu no seu andar. Quando o elevador começou a subir, Delaroche espreitou pela grade e viu Leroux a entrar no apartamento.

Saiu do elevador no sexto andar e desceu pelas escadas até ao andar de baixo. Bateu ao de leve à porta de Leroux.

O médico abriu a porta um momento depois, claramente surpreendido, e perguntou:

— Posso ajudá-lo?

— Sim — respondeu Delaroche, dando-lhe um soco na garganta com um punho que mais parecia uma faca.

O murro deixou Leroux dobrado de dor, sem conseguir falar e a ofegar. Delaroche fechou a porta.

— Quem é você? — perguntou Leroux, arquejando. — O que é que quer?

— Sou o tipo a quem você martelou a cara. Percebeu que era Delaroche.

— Meu Deus — sussurrou.

Delaroche tirou a Beretta munida de um silenciador do casaco. Leroux começou a tremer violentamente.

— Eu sou de confiança — disse. — Já tratei de muitos homens como você.

— Não, não tratou — respondeu Delaroche, acertando-lhe com dois tiros no peito.

Delaroche regressou a Amesterdão no dia seguinte, ao início da tarde. Voltou para o apartamento de táxi e preparou uma mochila azul de nylon com o seu kit de pintura: duas telas pequenas, tintas, uma máquina fotográfica Polaroid, um cavalete portátil e a Beretta. Seguiu na bicicleta de montanha pelas ruas de pedras arredondadas até chegar a um local no Keizersgracht onde havia uma boa ponte com luzes nos arcos, que se acendiam depois de anoitecer.

Prendeu a bicicleta com um cadeado e caminhou pela ponte durante algum tempo, até encontrar uma vista panorâmica de que gostava, com casas flutuantes em primeiro plano e um trio de sumptuosas casas com empenas em segundo. Foi buscar a máquina fotográfica à mochila e tirou várias fotografias do que via, primeiro a preto-e-branco, para se aperceber das formas e linhas essenciais do cenário, e depois a cores.

Pôs-se ao trabalho, pintando depressa, instintivamente, apressando-se para captar o crepúsculo fugidio antes de a escuridão se instalar por completo. Quando as luzes começaram a ganhar vida, tremeluzindo na ponte, pousou o pincel e limitou-se a observar. Estudou o reflexo das luzes na superfície lisa do canal durante muito tempo.

Esperou que o quadro lançasse o seu feitiço — esperou que a imagem dos olhos mortos de Maurice Leroux se evaporasse da sua mente —, mas isso não aconteceu.

Um comprido táxi aquático passou por ele a deslizar. O reflexo das luzes dissolveu-se à sua passagem. Delaroche arrumou as suas coisas. Seguiu pelo Keizersgracht, segurando a tela cuidadosamente na mão direita. Noutra cidade qualquer, poderia ter atraído olhares com uma pose dessas, mas não em Amesterdão.

Delaroche atravessou o Keizersgracht na Reestraat e depois pedalou lentamente ao longo do Prinsengracht, até que a velha casa flutuante lhe apareceu à frente. Prendeu a bicicleta com uma corrente a um candeeiro, encostou a tela ao pneu da frente e saltou para a coberta.

O Krista tinha treze metros e meio de comprimento, com uma casa do leme na popa, uma proa esguia e uma sucessão de vigias ao longo da amurada. A tinta verde e branca começava a escamar devido à falta de cuidado. A escotilha no cimo da escada estava protegida com um forte cadeado. Delaroche ainda tinha a chave. Destrancou a escotilha e desceu pela escada até ao salão, que se encontrava na escuridão, tirando o leve brilho amarelo dos candeeiros de rua que entrava pelas clarabóias sujas.

O barco tinha sido de Astrid Vogel. Tinham vivido ali os dois no Inverno anterior, depois de Delaroche a ter contratado para o ajudar numa série de assassínios particularmente difíceis. Conseguia imaginá-la naquele momento, com o seu corpo comprido aos encontrões nos espaços apertados da casa flutuante. Olhou para a cama e recordou-se de fazer amor com ela, com a chuva a martelar na clarabóia. Astrid tinha pesadelos; costumava esmurrá-lo enquanto dormia. Uma vez, acordou depois de um pesadelo, surpreendida por encontrar Delaroche na cama dela. Quase lhe deu um tiro antes de ele conseguir sacar-lhe a arma da mão.

Delaroche não tinha regressado ao Krista desde então. Passou vários minutos a vasculhar armários e gavetas, à procura de algum vestígio de si mesmo que pudesse ter deixado para trás. Não descobriu nada. E também não havia nada de Astrid, apenas umas roupas assustadoras e alguns livros com as páginas já bem marcadas. Astrid estava habituada a viver escondida. Tinha feito parte da Facção Exército Vermelho[33] e tinha passado muitos anos em locais como Beirute, Tripoli e Damasco. Sabia como andar de um lado para o outro sem deixar pistas.

A independência obsessiva de Delaroche tornava-o incapaz de amar outra pessoa, mas tinha gostado de Astrid e, mais importante, tinha confiado nela. Era a única mulher que sabia a verdade acerca dele. Conseguia descontrair ao pé dela. Tinham planeado ir para as Caraíbas quando o trabalho tivesse sido feito — para viverem juntos numa relação parecida com um casamento —, mas a mulher de Michael Osbourne matara-a em Shelter Island.

Delaroche subiu as escadas e trancou a escotilha antes de se ir embora. Subiu para a bicicleta e pedalou em direcção ao apartamento, iluminado pela luz dos candeeiros.

Delaroche matava por duas razões: porque era contratado para matar ou para se proteger. Maurice Leroux entrava na segunda categoria. Nunca tinha matado por raiva, tal como nunca tinha matado por vingança. Acreditava que a sede de sangue por motivos de vingança era a mais destrutiva das emoções. E também achava que não era própria de um profissional da sua grandeza. Mas, naquele momento, ao atravessar de bicicleta as ruas de uma cidade estranha, com uma cara que não reconhecia, Delaroche sentia-se dominado pelo desejo de matar Michael Osbourne.

Viu a rapariga alemã à espera, sentada à frente da casa. Atravessou para a outra margem do canal e aguardou. Não tinha vontade de voltar a vê-la. Por fim, ela acabou por escrevinhar um bilhete e enfiá-lo por baixo da porta antes de sair disparada pelo canal fora. Delaroche apanhou o bilhete ao entrar no foyer. — És um cabrão de merda! Liga-me, por favor, beijos, Eva — e empurrou a bicicleta para dentro do apartamento.

Entrou no estúdio e largou o quadro por terminar numa pilha com outras obras incompletas. De repente, detestava-o; parecia-lhe rebuscado, pouco imaginativo, entediante.

Despiu o casaco e colocou uma grande tela em branco no cavalete. Tinha-a pintado uma vez, mas o quadro, tal como o resto das suas posses, fora destruído em Míconos.

Ficou ali parado, à meia-luz, a pensar no quadro durante muito tempo, tentando lembrar-se da cara dela. Tinha um certo lado bizantino, recordava-se: maçãs do rosto largas, uma boca grande e móvel, olhos azuis cristalinos um pouco afastados de mais. A cara de uma mulher de outro tempo e lugar.

Ligou as fortes lâmpadas de halogéneo suspensas no tecto e começou a trabalhar. Descartou uma tela por não gostar da pose e uma segunda por a estrutura dos ossos faciais estar completamente errada. A terceira tela pareceu-lhe certa desde que começou a trabalhar nela. Pintou a memória visual mais persistente que tinha dela — Astrid, encostada a um corrimão de ferro forjado com ferrugem, na varanda de um hotel no Cairo, vestida apenas com uma djelaba para homem desabotoada até ao estômago, com o brilhante pôr do Sol através do tino algodão branco, revelando-lhe as linhas suaves das costas e os seios arrebitados.

Trabalhou pela noite dentro, até ser de manhã. Tinha poluído o corpo com café, vinho e cigarros. Quando terminou, não conseguia dormir porque tinha uma dor de cabeça.

Carregou a tela para o quarto e apoiou-a ao fundo da cama. Por fim, algum tempo depois do meio-dia, mergulhou num sono agitado.


Capítulo 30

LONDRES

NOVA IORQUE

 

Michael Osbourne foi obrigado a permanecer em Londres por mais três dias a seguir ao caso Hartley Hall, para lidar com o verdadeiro inimigo de qualquer funcionário do mundo da espionagem: a burocracia. Tinha passado dois dias a prestar declarações demoradas às autoridades. Tinha ajudado Wheaton a pôr as coisas em ordem depois do suicídio de Preston McDaniels. Tinha colaborado com a Divisão Especial com o objectivo de reforçar a segurança em redor de Douglas. Tinha estado presente no serviço fúnebre dos dois agentes da SAS assassinados nas montanhas Sperrin, na Irlanda do Norte.

O último dia em Londres foi passado numa cela à prova de som, nas profundezas das catacumbas de Thames House, suportando o cerinmonial de interrogatórios levado a cabo pelos mandarins do MI5. Quando tudo terminou, andou à chuva por Millbank durante vinte Minutos, à procura de um táxi, porque Wheaton tinha requisitado, sob um pretexto dúbio, o carro atribuído a Michael. Por fim, refugiou-se na estação de metropolitano de Pimlico e apanhou o metro.

Londres, uma cidade que adorava, parecia-lhe de repente desoladora e opressiva. Sabia que estava na altura de voltar para casa.

Na manhã seguinte, Graham surgiu no caminho de acesso a Winfield House para levar Michael até Heathrow, dessa vez num jaguar e não no Rover do seu departamento.

— Temos de parar a meio do caminho para o aeroporto — anunciou Graham quando Michael entrou para o banco de trás e se sentou ao lado dele. — Nada de grave, meu caro.

Só umas quantas pontas soltas para atar.

O carro deixou Regentis Park e seguiu para sul, ao longo da Baker Street. Graham mudou de assunto.

— Viste isto? — perguntou, apontando para um artigo no Times dessa manhã acerca do misterioso homicídio de um proeminente cirurgião plástico francês.

— Dei uma olhadela — respondeu Michael. — O que é que tem?

— Ele era um grande maroto.

— Que queres dizer com isso?

— Sempre suspeitámos de que andava a ganhar uns dinheirinhos extra a dar um jeito às caras dos mauzões — respondeu Graham. — O bom do doutor fazia várias visitas ao domicílio em sítios exóticos como Tripoli e Damasco. Pedimos aos franceses para ficarem de olho nele e, como de costume, disseram-nos basicamente para nos irmos foder.

Michael leu o artigo; consistia em dois parágrafos, apenas com o mínimo de pormenores. Maurice Leroux tinha sido morto a tiro no seu apartamento no sexto arrondissement[34] de Paris. A polícia parisiense estava a investigar.

— Que tipo de arma é que o assassino usou?

— De nove milímetros.

O Jaguar avançou para sul a grande velocidade, ao longo de Park Lane, e a seguir atravessou Green Park, passando por Constitution Hill. Passado um momento, dobrou os portões do Palácio de Buckingham.

Michael olhou de soslaio para Graham.

— Contigo nunca há um minuto chato, pois não?

— Nem eu queria que fosse de outra maneira.

— É tão bom vê-lo outra vez, senhor Osbourne — disse a rainha Isabel ao entrarem numa sala de estar do palácio. — Por favor, Sente-se.

Michael sentou-se. Foi servido chá e os assessores e assistentes da rainha retiraram-se. Graham Seymour ficou à espera na antessala.

— Quero agradecer-lhe pelo óptimo trabalho que fez ao lidar com a ameaça da Brigada para a Libertação do Ulster — disse a rainha. — O povo da Irlanda do Norte tem uma dívida tremenda para consigo. Na verdade, o mesmo é válido para toda a Grã-Bretanha.

— Obrigado, Vossa Majestade — respondeu Michael educadamente.

— Tive muita pena do que aconteceu ao seu agente, aquele que foi morto na Irlanda do Norte — disse a rainha e, a seguir, interrompeu-se por uns instantes, com a atrapalhação estampada no rosto, e levou os olhos ao tecto. — Oh, Deus do Céu, não consigo lembrar-me do nome do pobre homem.

— Kevin Maguire — disse Michael.

— Ah, sim, o Mensageiro — respondeu a rainha, utilizando o nome de código de Maguire. — Que assunto tão horroroso que isso foi. Senti-me aliviada por saber que o senhor não tinha ficado gravemente ferido. Mas compreendo que perder um agente como o Mensageiro de uma forma tão horrível o deva ter afectado profundamente.

— O Kevin Maguire não era perfeito, mas inúmeras pessoas estão hoje vivas por causa dele. Foi necessária uma tremenda dose de coragem para trair o IRA e, no final, acabou por pagar com a própria vida.

— E quais são os seus planos agora que a ameaça protestante parece ter sido neutralizada? Está a pensar em continuar na CIA ou reformar-se e desaparecer outra vez?

— Ainda não tenho a certeza — respondeu Michael. — Neste preciso momento, gostava apenas de ir para casa e ver a minha mulher e os meus filhos. Já estou fora há demasiado tempo.

— Não sei se conseguiria estar casada com uma pessoa que fizesse o seu tipo de trabalho.

Michael sorriu.

— É preciso um tipo muito especial de mulher.

— Então, a sua mulher apoia-o?

— Eu não iria tão longe, Vossa Majestade.

— Suponho que o senhor tenha de fazer aquilo que o faz feliz — disse a rainha. — E, se trabalhar para a CIA o faz feliz, tenho a certeza de que ela irá compreender.

É um trabalho importante, sem dúvida. Devia estar bastante orgulhoso do que conseguiu aqui.

— Obrigado, Vossa Majestade. E estou orgulhoso.

— Bom, uma vez que parece que por enquanto vai continuar dentro da CIA, suponho que vamos ter de fazer isto em privado.

— Fazer o quê, Vossa Majestade? — perguntou Michael.

— Armá-lo cavaleiro honorário.

— Está a brincar.

A rainha sorriu travessamente e respondeu:

— Eu nunca brinco com coisas desta importância.

Abriu uma pequena caixa rectangular e concedeu a Michael a medalha de Cavaleiro Honorário do Império Britânico.

— É linda — disse. — Sinto-me honrado e muito lisonjeado.

— E deve sentir-se.

— E tenho de me ajoelhar?

— Não seja tonto — respondeu a rainha. — Termine mas é o chá e conte-me qual foi a sensação de capturar o Gavin Spencer.

 

— Quer dizer que acabei de fazer sexo com um cavaleiro de verdade? — perguntou Elizabeth.

— Receio bem que sim.

— Acho que és o meu primeiro.

— É bom que seja.

— Então e do que é que vocês os dois falaram, além da Irlanda do Norte?

— Falámos de ti.

— Oh, por favor.

— A sério.

— E o quê de mim?

— Ela queria saber se eu ia continuar na CIA ou reformar-me e desaparecer outra vez, como ela disse.

— E o que é que lhe respondeste?

— Respondi-lhe que não sabia.

— Que cobarde.

— Cuidadinho. Olha que sou um cavaleiro, lembras-te?

— Então, qual é a resposta?

— Por uma das primeiras vezes na minha carreira na CIA, sinto que consegui de facto realizar qualquer coisa. É uma sensação boa.

— Portanto, queres continuar?

— Quero ouvir o que a Mónica tem a dizer antes de tomar qualquer decisão final. E quero ouvir o que tu tens a dizer.

— Michael, tu sabes o que eu acho. Mas também preciso que estejas feliz. E estranho, mas, ao ouvir-te nesta última hora, parece que já não estavas assim tão feliz há meses.

— Então, o que é que estás a dizer?

— Estou a dizer que gostava imenso que conseguisses trabalhar noutro sítio e seres feliz, sem ser na CIA. Mas se é aquilo que queres, e vais sentir-te satisfeito, então quero que continues.

Apagou o cigarro, calcando-o, desapertou o roupão e rebolou para cima dele, encostando os seios à sua pele quente.

— Promete-me só uma coisa — disse. — Se achas mesmo que o Outubro está vivo, deixa que seja outra pessoa a ir atrás dele.

— Ele matou a Sarah, e tentou matar-nos aos dois.

— É por isso que devia ser outra pessoa a tratar do caso. Pede escusa, Michael. Deixa o Adrian dar o trabalho a outra pessoa, alguém sem um interesse pessoal em jogo. — Fez uma pausa. — Alguém que não esteja à procura de vingança.

— E o que é que te leva a pensar que eu estou à procura de vingança?

— Deixa-te disso, Michael. Não sejas desonesto contigo próprio ou comigo. Tu queres vê-lo morto e eu não te levo a mal. Mas a vingança é um jogo perigoso. Não aprendeste nada enquanto estiveste na Irlanda do Norte?

Michael virou-lhe as costas. Ela pôs-lhe as mãos na cara e puxou-o para junto de si.

— Não fiques zangado comigo... só não quero que te aconteça alguma coisa. — Beijou-o suavemente. — Segue o conselho da tua advogada neste assunto. Acabou. Esquece isso.


Capítulo 31

MÍCONOS

 

O Conselho Executivo da Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais reuniu para a sua sessão da Primavera na ilha de Míconos, na primeira sexta-feira de Março. A villa desocupada de Delaroche, nos penhascos do cabo Mavros, serviu de local para a reunião. Era demasiado pequena para poder alojar mais alguém além do Director, dos seus guarda-costas e de Daphne, pelo que os outros membros do conselho e os seus séquitos se refugiaram nos hotéis e residenciais de Chora. Ao pôr do Sol, atravessaram a ilha lentamente — os chefes dos serviços secretos e os negociantes de armas, os homens de negócios e as figuras do crime organizado —, numa caravana de Range Rover pretos.

O Director e o seu pessoal tinham tratado das medidas de segurança. Havia guardas fortemente armados à volta do recinto e um barco a motor de alta velocidade na baía de Panormos, repleto de antigos membros das tropas anfíbias da SAS. A villa tinha sido vasculhada de uma ponta à outra, em busca de escutas, e instrumentos bloqueadores de rádio emitiam interferências electrónicas para perturbar quaisquer microfones de longo alcance.

Beberam cocktails no elegante terraço de pedra de Delaroche, com vista para o mar, e comeram uma refeição tradicional grega. A meia-noite, o Director abriu os trabalhos.

Durante a primeira hora, o Conselho Executivo debruçou-se sobre questões de limpeza doméstica rotineiras. Como sempre, os membros do conselho trataram-se uns aos outros pelos nomes de código: Rodin, Monet, Van Gogh, Rembrandt, Rothko, Miguel Angelo e Picasso. O Director voltou a sua atenção para as operações da sociedade que se encontravam em andamento na Coreia do Norte, Paquistão, Afeganistão, Kosovo e, por fim, na Irlanda do Norte.

— Em Fevereiro, o Monet fez com que um carregamento de sub-metralhadoras Uzi chegasse às mãos da Brigada para a Libertação do Ulster — disse o Director. — Essas armas foram utilizadas na tentativa de assassínio do embaixador Douglas Cannon. Infelizmente, parece que não surtiram qualquer efeito. O embaixador sobreviveu ao atentado, mas a Brigada para a Libertação do Ulster não. A maior parte dos seus membros está morta ou presa. Por isso, para já, o nosso envolvimento na Irlanda do Norte está terminado.

O Director deu a palavra a Rodin, o chefe de operações dos serviços secretos franceses.

— Se quisermos renovar o nosso envolvimento na Irlanda do Norte, é possível que haja uma oportunidade à nossa espera em Paris — disse ele.

O Director levantou uma sobrancelha e disse:

— Continua, por favor.

— Como sabem, um dos membros da equipa envolvida na tentativa de assassínio em Norfolk conseguiu escapar — disse Rodin. — Uma mulher chamada Rebecca Wells. Acontece que sei que ela está escondida em Paris com um mercenário britânico chamado Roderick Campbell. E também sei que ela jurou ajustar contas depois do que se passou em Norfolk. Anda a tentar encontrar um assassino capaz de matar o embaixador americano.

O Director acendeu um cigarro, claramente intrigado.

— Talvez devêssemos estabelecer contacto directo com a Rebecca Wells e oferecer-lhe ajuda — rematou Rodin.

O Director fez questão de dar a entender que estava a ponderar muito bem a questão. Em última análise, a decisão seria tomada pelo Conselho Executivo e não por ele, mas a sua opinião teria um peso considerável junto dos outros membros. Passado um momento, disse:

— Duvido que a menina Wells possa pagar os nossos serviços.

— Concordo — respondeu Rodin. — O trabalho teria de serpro bono. Como costuma dizer, seria um investimento.

O Director voltou-se para Picasso, que parecia apreensivo.

— Por razões óbvias, não posso apoiar uma operação como a sugerida — disse Picasso. — Apoio a um grupo paramilitar protestante é uma coisa, envolvimento directo no assassínio de um diplomata americano é outra e de que maneira.

— Compreendo que te encontres numa posição difícil, Picasso — respondeu o Director. — Mas sabias desde o início que algumas das acções tomadas por esta organização poderiam entrar em conflito com os teus próprios interesses tacanhos. Aliás, é esse o espírito de cooperação personificado pela sociedade.

— Compreendo, Director.

— E, se o Conselho Executivo der a sua bênção a esta operação, não podes fazer nada que a impeça de ter êxito.

— Tem a minha palavra, Director.

— Muito bem — disse o Director, olhando em redor da sala. — Todos os que estão a favor indiquem-no dizendo sim.

A reunião terminou logo a seguir ao amanhecer. Um a um, os membros do Conselho Executivo saíram da villa e voltaram para Chora, atravessando Míconos. Picasso ficou para trás para ter uma conversa privada com o Director.

— O caso de Hartley Hall... — começou por dizer o Director com frieza, observando o Sol a aparecer no horizonte. — Foi uma armadilha, não foi, Picasso?

— Foi uma vitória muito importante para os nossos serviços. Vai fazer com que seja mais difícil aos nossos detractores dizerem que perdemos o nosso rumo neste mundo pós-guerra fria. — Picasso deteve-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou com cautela: — Pensava que resultados como este eram o objectivo desta organização.

— Com efeito — respondeu o Director, sorrindo laconicamente. — Estavas mais do que no teu direito de agir contra a Brigada para a Libertação do Ulster de maneira a favorecer os teus próprios interesses. Mas agora a sociedade decidiu ajudar a brigada a levar a cabo uma tarefa específica, o assassínio do embaixador Cannon, e tu não podes fazer nada que impeça que isso vá para a frente.

— Compreendo, Director.

— Na verdade, há uma coisa que podes fazer para ajudar.

— Que é o quê?

— Faço tenções de atribuir a missão ao Outubro — respondeu o Director. — E o Michael Osbourne parece estar numa cruzada para descobrir o Outubro e destruí-lo.

— Tem boas razões.

— Por causa da questão da Sarah Randolph?

— Sim.

O Director fez um ar de desapontamento.

— O Osbourne parece ser um agente tão talentoso — disse. — Esta fixação por vingar o passado causa-me espanto. Quando é que esse tipo mete na cabeça que aquilo não foi nada pessoal, apenas trabalho?

— Não será nos tempos mais próximos, receio eu.

— Chegou-me aos ouvidos que ele está à frente da busca pelo Outubro.

— É verdade, Director.

— Se calhar, era melhor para todos os envolvidos se ele recebesse outras responsabilidades. Com certeza que um agente com talentos tão óbvios poderia ser mais bem utilizado noutro sítio qualquer.

— Não posso estar mais de acordo.

O Director aclarou a garganta suavemente.

— Ou talvez fosse melhor se o Osbourne ficasse completamente fora do caminho. Chegou muito perto de nós durante o caso da TransAdantic. Demasiado perto para o meu gosto.

— Eu não teria quaisquer objecções, Director.

— Muito bem — rematou. — Está feito.

Daphne queria apanhar sol e o Director concordou relutantemente em passar o resto do dia em Míconos antes de regressar a Londres. Ela ficou estendida no terraço, com o seu longo corpo exposto ao sol. Ele nunca se cansava de a olhar. Há muito que o Director tinha perdido a capacidade de fazer amor com uma mulher — suspeitava que tivessem sido os segredos, os anos de mentiras e encobrimentos a deixá-lo impotente — e, por isso, admirava Daphne como se poderia admirar um belo quadro ou escultura. Era a coisa por ele possuída que mais estimava.

Era um homem impaciente por natureza, apesar do seu comportamento tranquilo, e, ao início da tarde, já tinha apanhado todo o sol e ar do mar que conseguia aguentar.

Além disso, era no seu íntimo um homem de acção e estava ansioso para deitar as mãos ao trabalho. Partiram ao pôr do Sol e atravessaram Míconos de carro, a caminho do aeroporto. Nessa noite, já depois de o avião do Director ter deixado a ilha, uma série de explosões deflagrou na villa caiada nos penhascos do cabo Mavros.

Stavros, o agente imobiliário, foi o primeiro a chegar. Telefonou do seu telemóvel para os bombeiros e ficou a ver as chamas engolirem a villa. Monsieur Delaroche tinha-lhe dado um número em Paris, Marcou-o e preparou-se para comunicar a notícia ao seu cliente — que a sua adorada casa acima da baía de Panormos já não existia.

O telefone tocou uma vez e ouviu-se uma gravação. Stavros falava um pouco de francês, o suficiente para perceber que o número tinha sido desconectado. Carregou no botão e cortou a ligação.

Ficou a observar os bombeiros a tentarem em vão extinguir as chamas. Foi no carro até Ano Mera e dirigiu-se para a taberna. Estava lá o grupo do costume, a beber vinho e a comer azeitonas e pão. Stavros contou a história.

— Sempre houve qualquer coisa de esquisito com aquele Delaroche — vaticinou Stavros depois de terminar. Fez uma careta, sorrindo afectadamente, e olhou fixamente para um copo turvo de ouzo. — Percebi isso mal pus os olhos nele.


CONTINUA

Capítulo 16

LONDRES

 

A residência oficial do embaixador norte-americano na Grã-Bretanha é Winfield House, uma mansão georgiana de tijolo vermelho ocupando quinhentos metros quadrados, no centro de Regent's Park. Barbara Hutton, a herdeira da fortuna dos Woolworth, construiu a casa em 1934, quando veio para Londres com o marido, o aristocrata dinamarquês conde Haugwitz-Reventlow. Divorciou-se do conde em 1938 e regressou a casa, aos Estados Unidos, onde se casou com Cary Grant. A seguir à Segunda Guerra Mundial, vendeu Winfield House ao governo norte-americano, pela quantia de um dólar, e o embaixador Winthrop Aldrich instalou-se ali em 1955.

Douglas Cannon já tinha ficado em Winfield House por duas vezes, durante viagens oficiais a Londres, e no entanto, ao instalar-se nesse primeiro dia, sentiu-se novamente assoberbado com a elegância e o tamanho da mansão. Ao inspeccionar as grandes e airosas salas do rés-do-chão, quase não conseguia acreditar que Barbara Hutton tivesse construído Winfield House como uma casa particular.

Quando Michael chegou, dois dias mais tarde, Douglas conduziu-o pelas várias e vastas divisões, mostrando-lhe com orgulho as mobílias e decorações, como se tivesse sido ele a escolhê-las e a pagá-las todas. A sua divisão preferida era a Sala Verde, um espaço grande e luminoso com vista para o jardim lateral, com papel de parede chinês pintado à mão e meticulosamente pilhado às paredes de um castelo irlandês. Ali, podia sentar-se junto à lareira, por baixo dos espelhos gigantes Chippendale, e observar os pavões e coelhos a vaguear pelos pequenos vales arborizados e pelos salgueiros do jardim.

A enorme casa era tão silenciosa, que, na manhã da cerimónia de apresentação de credenciais por parte de Douglas, Michael acordou com o bater longínquo do Big Ben.

Enquanto punha uma gravata branca e um fraque, à janela do quarto de hóspedes no andar de cima, observou uma raposa-vermelha a perseguir um cisne branco pelo relvado meio iluminado.

Seguiram para a embaixada no carro oficial de Douglas, escoltados por uma equipa de guarda-costas da Divisão Especial. Um pouco antes das onze horas, o barulho de cascos de cavalos ressoava pela Grosvenor Square. Michael olhou pela janela e avistou o chefe do corpo diplomático, a chegar na primeira de três viaturas. O pessoal da embaixada irrompeu em aplausos quando Douglas saiu do carro e passou pelo meio de duas filas de guardas da marinha.

Douglas seguiu na primeira viatura, ao lado do chefe do corpo diplomático. Michael ia na terceira, com três membros importantes do pessoal da embaixada. Um deles era o chefe do posto de Londres da CIA, David Wheaton. Wheaton era um anglófilo empedernido; com o seu casaco de fraque e um cabelo cinzento e oleoso, parecia estar numa audição para um papel em Keviver o Passado em Brideshead. Wheaton nunca tinha escondido o facto de detestar Michael. Muitos anos antes, Wheaton trabalhara para o pai de Michael, no recrutamento de espiões russos. O pai de Michael achava que Wheaton não possuía as capacidades sociais nem a esperteza de rua necessárias para ser um bom orientador de agentes e, por isso, produziu um relatório devastador sobre as suas aptidões e que quase fez descarrilar a sua carreira.

A CIA resolveu dar a Wheaton outra oportunidade; homens como ele, homens com a linhagem certa, a educação certa e os rabis certos, tinham sempre uma segunda oportunidade.

Foi despachado para o Sul de África, para desempenhar as funções de chefe do posto de Luanda. Passados seis meses, mandaram-no parar num posto de controlo policial, a caminho de uma reunião com um agente. No porta-luvas, encontrava-se o seu "livro preto" — os nomes, procedimentos de contacto e planos de pagamento para todos os elementos da CIA em Angola. Wheaton foi declarado persona non grata e uma rede inteira de agentes foi presa, torturada e executada. A perda de catorze homens nunca pareceu pesar muito na consciência de Wheaton. No relatório que fez do desastre, culpou os seus agentes por não terem sido capazes de aguentar o interrogatório a que foram submetidos.

Por fim, a agência tirou Wheaton do serviço clandestino e destacou-o para o gabinete para a União Soviética, na sede, onde se deu às mil maravilhas com a burocracia feita de maledicência e cachimbadas. Londres foi como uma volta de honra após uma muito pouco notável — e às vezes desastrosa — carreira. Comandava o posto como se fosse o seu feudo privado. Michael tinha ouvido rumores acerca de uma rebelião nas fileiras. Na CIA, a abreviatura de chefe de estação é COS[27], mas, entre os agentes de Londres, COS era a abreviatura de COckSucker[28].

— Olha, olha, o herói de Heathrow — disse Wheaton quando Michael entrou na viatura e se sentou.

Durante o agora infame ataque a Heathrow, Michael tinha subjugado um homem armado e matado outro. A CIA concedeu-lhe uma citação por bravura e Wheaton nunca o perdoara por isso.

— Como é que tens passado, David?

— Pensava que te tinhas reformado.

— E tinha, mas senti a tua falta e, por isso, voltei.

— Precisamos de falar.

— Estou ansioso por isso.

— Tenho a certeza que sim.

Turistas e peões iam abrindo a boca de espanto à medida que as viaturas avançavam pelo trânsito cerrado do meio-dia, da Grosvenor Square até Park Lane, contornando Hyde Park Corner e seguindo por Constitution Hill. Pareciam desapontados por se tratar apenas de um grupo de diplomatas de meia-idade e não de um qualquer membro excitante da família real.

Quando as viaturas se aproximaram dos portões do Palácio de Buckingham, uma pequena banda — a mesma banda que acompanha o render da guarda — irrompeu numa interpretação enérgica de "Yankee Doodle Dandy"[29]. Douglas saiu da sua viatura e foi cumprimentado pelo secretário particular da rainha e pelo chefe de protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Levaram-no para dentro do palácio, fazendo-o subir a grande escadaria e atravessar uma série de salas douradas, que faziam Winfield House parecer uma propriedade a necessitar de obras de manutenção. Michael e os membros principais do pessoal da embaixada seguiam-no alguns passos atrás. Por fim, chegaram a um conjunto de portas duplas. Esperaram um momento, até que, algures, alguém fez um sinal secreto e as portas se abriram.

A rainha Isabel II estava parada no meio de uma sala cavernosa. Usava um fato azul-escuro, com a sempre presente bolsa pendurada ao pulso. O subsecretário permanente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Sir Patrick Wright, aguardava ao seu lado. Douglas percorreu toda a sala, um pouco depressa de mais, e fez uma vénia, de forma correcta, à frente da rainha. Tirou o envelope que continha as suas credenciais e leu a frase prevista:

— Tenho a honra, Vossa Majestade, de apresentar a carta a pedir a exoneração do meu antecessor e a minha carta credencial.

A rainha Isabel pegou no envelope e entregou-o com indiferença a Sir Patrick, sem olhar para o que lá estava dentro.

— Fico muito satisfeita por o presidente Beckwith ter tido a clarividência e o bom senso de nomear alguém com o seu prestígio para Londres, numa altura destas — disse a rainha. — Se me permite a franqueza, senhor embaixador Cannon, não entendo porque é que os vossos presidentes nomeiam frequentemente os seus apoiantes políticos para Londres, em vez de profissionais como o senhor.

— Bem, Vossa Majestade, eu também não sou um profissional, sou um político no meu íntimo. Que eu tenha conhecimento, houve apenas um profissional dos Negócios Estrangeiros a exercer o cargo de embaixador em Londres: Raymond Seitz, que representava o presidente Bush.

— Era um homem adorável — respondeu a rainha. — Mas estamos ansiosos por trabalhar consigo. O senhor tem muita experiência no que diz respeito aos assuntos internacionais.

Se bem me lembro, foi presidente daquela comissão do Senado... oh, Patrick, ajude-me...

— A Comissão de Relações Externas do Senado — interveio Sir Patrick.

— Sim, fui.

— Bom, a situação na Irlanda do Norte encontra-se neste momento muito tensa e nós precisamos do apoio do seu governo para conseguirmos fazer com que este processo de paz chegue ao fim.

— Estou ansioso por ser seu parceiro, Majestade.

— Tal como eu — respondeu a rainha.

Douglas conseguia sentir que a rainha estava inquieta; a conversa tinha chegado à sua conclusão natural.

— Posso apresentar-lhe os principais membros do meu pessoal, Vossa Majestade?

A rainha acenou com a cabeça. As portas abriram-se e dez diplomatas entraram a passos largos na sala. Douglas apresentou-os um a um. Quando descreveu Wheaton como seu agente de ligação política, a rainha olhou para Douglas, como que duvidando.

Douglas disse:

— Sou viúvo, Vossa Majestade. A minha mulher morreu há vários anos. A minha filha não pôde estar hoje aqui comigo, mas posso apresentar-lhe o meu genro, Michael Osbourne?

A rainha assentiu com a cabeça e Michael entrou na sala. Uma expressão de reconhecimento brilhou nos olhos da rainha Isabel. Inclinou-se para ele e perguntou em voz baixa:

— Não foi o senhor que esteve envolvido naquela situação no Aeroporto de Heathrow o ano passado?

Michael assentiu com a cabeça.

— Sim, Vossa Majestade, mas...

— Não tem de se preocupar, senhor Osbourne — sussurrou a rainha, como se estivesse a conspirar. — Ficaria surpreendido com as coisas que me contam. Posso assegurar-lhe que sou capaz de manter um segredo. Michael sorriu.

— Tenho a certeza que sim, Vossa Majestade.

— Se chegar alguma vez o dia em que o senhor consiga esquecer esse assunto, gostaria de o honrar adequadamente pelo que fez nesse dia. As suas acções salvaram inúmeras vidas. Lamento que só agora tenhamos tido oportunidade de nos conhecermos.

— Está combinado, Vossa Majestade.

— Está, sim, senhor.

Michael recuou e colocou-se ao lado dos membros da embaixada. Olhou para Wheaton e sorriu, mas Wheaton fez uma ligeira careta como se tivesse acabado de engolir o botão de punho.

Voltaram para trás, atravessando de novo o Palácio de Buckingham. Wheaton apareceu ao lado de Michael e agarrou-o pelo cotovelo. Wheaton jogava ténis; tinha uma poderosa mão direita de tanto apertar as bolas de ténis para combater a ansiedade provocada pelo comando. Michael resistiu ao impulso de se libertar. Wheaton gostava de intimidar os outros, provavelmente por já ter sido ele próprio vítima de intimidações.

— Quero que isto fique oficialmente registado, Michael — disse Wheaton agradavelmente.

Estava sempre a falar "oficialmente" e "confidencialmente", algo que Michael achava um absurdo num agente dos serviços secretos.

— Acho que a tua excursãozinha a Belfast é o raio de uma péssima ideia.

— Achas mesmo que é apropriado usar esse tipo de linguagem aqui dentro, David?

— Vai-te foder, Michael — sussurrou ele.

Michael libertou o cotovelo da mão de Wheaton com um puxão.

— O Kevin Maguire já não é um activo teu — disse Wheaton. Michael lançou-lhe um olhar de desaprovação feroz por ele ter cometido a infracção capital de mencionar o nome de um agente em voz alta numa sala insegura. Wheaton olhava para o trabalho de espionagem como um jogo a ser jogado e ganho. Conduzir uma discussão sobre um agente como um aparte enquanto se passeava pelas salas do Palácio de Buckingham assentava muito bem na imagem que tinha de si próprio.

— Se queres que ele seja interrogado para efeitos do destacamento especial, o agente de controlo dele do posto de Londres é que deve tratar disso.

— O Mensageiro era meu agente — respondeu Michael, utilizando o nome de código de Maguire. — Fui eu quem o recrutei e era eu que o orientava. Fui eu que o persuadi a dar-nos informações que salvaram inúmeras vidas. Vou encontrar-me com ele.

— Agora não é altura para andares a fazer viagens ao passado, especialmente numa cidade como Belfast. Porque é que não fazes um relatório daquilo que precisas ao agente de controlo do Mensageiro? E depois pode ir ele ao encontro.

— Porque quero ser eu a fazê-lo.

— Michael, eu sei que tivemos as nossas divergências, mas ofereço-te este conselho com toda a sinceridade. O teu lugar agora é atrás da secretária, não como agente operacional. Tens quarenta e oito anos e quase foste morto o ano passado. Até o melhor de nós ficaria abalado. Deixa-me enviar o meu homem para se encontrar com o Mensageiro.

— Eu não fiquei nada abalado — respondeu Michael. — E, no que diz respeito à Irlanda do Norte, ela não mudou em quatrocentos anos; acho que sou capaz de tomar conta de mim enquanto lá estiver.

Saíram para o pátio e foram recebidos pela luz brilhante do sol. Wheaton disse:

— O Mensageiro quer usar os teus antigos procedimentos para marcar o encontro. Se ele não decidir realizar um encontro dentro de dois dias, quer-te fora de Belfast.

Percebeste?

— Percebi, David.

— E se foderes isto, lixo-te a vida.


Capítulo 17

BELFAST

 

Os voos para a Irlanda do Norte partem de uma área própria do Terminal 1 de Heathrow, onde os passageiros têm de passar por um conjunto férreo de medidas de segurança antes de embarcarem. Mi-chael fingiu ser um escritor de viagens que ia escrever um artigo para uma revista sobre as atracções turísticas das zonas rurais do Ulster.

Durante o voo, leu guias e mapas. O empresário inglês que ia sentado ao lado dele perguntou-lhe se já tinha estado em Belfast. Michael sorriu estupidamente e respondeu que era a primeira vez. O avião sobrevoou Liverpool e continuou em direcção ao mar da Irlanda. O comandante anunciou que tinham acabado de deixar o espaço aéreo do Reino Unido e que aterrariam em Belfast dentro de vinte e cinco minutos. Michael riu-se para si próprio; até os britânicos tinham dificuldade em lembrar-se que a Irlanda do Norte fazia realmente parte do Reino Unido.

O avião desceu através de nuvens quebradas. A Irlanda do Norte é um pouco como uma extensa quinta, interrompida por um par de cidades grandes, Belfast e Londonderry, e centenas de pequenas vilas, aldeias e lugarejos. Os campos encontram-se esculpidos em milhares de parcelas quadradas — algumas cor de esmeralda, outras da cor da lima ou da azeitona, outras fulvas e castanhas. Para leste, onde as águas do Belfast Lough desaguavam no mar da Irlanda, Michael vislumbrou o Castelo de Carrickfergus.

Belfast ficava no sopé da Black Mountain, estendendo-se sobre o lago. Em tempos, tinha sido um centro próspero de linho e construção de barcos — o Titanic foi construído nos estaleiros de Belfast —, mas agora assemelhava-se a qualquer outra cidade industrial britânica caída em tempos difíceis um labirinto de terraços em tijoleira repleto de fumo baixo.

O avião aterrou no Aeroporto de Aldergrove. Michael demorou-se no átrio das chegadas para ver se conseguia detectar algum tipo de vigilância. Comprou chá num café e deu uma vista de olhos à loja de conveniência. Uma das paredes estava cheia de livros sobre o conflito norte-irlandês. Havia camisolas e chapéus para lembrança, de cores brilhantes, que exclamavam, perversamente, irlanda do norte! como se fosse Cannes ou a Jamaica.

Quando Michael saiu do aeroporto, o vento quase lhe arrancou o casaco do corpo. Passou a paragem dos táxis e apanhou um autocarro do Ulster para o centro da cidade.

Belfast inspira imagens de conflito civil, de fumo saído de armas e cordite, mas o primeiro cheiro com que Michael se deparou foi o fedor a estrume. O autocarro passou por um posto de controlo, onde um par de agentes da RUC desmantelava uma carrinha em bocados. Passados quinze minutos, o autocarro chegou ao centro da cidade.

A baixa de Belfast é um sítio sem ponta de encanto — fria e arranjada, demasiado nova em alguns lugares, demasiado velha noutros. Foi bombardeada vezes sem conta pelo IRA, vinte e duas vezes só no dia 21 de Julho de 1972, a Sexta-Feira Sangrenta. A Irlanda do Norte era o único lugar do mundo que fazia Michael sentir-se desconfortável.

Havia uma maldade, uma incoerência e um lado medieval na violência que o desconcertavam. Era uma das poucas cidades em que experimentava dificuldades com a língua.

Sabia falar italiano, espanhol, francês, árabe, hebraico razoavelmente, alemão aceitavelmente e até um pouco de russo, mas o inglês falado com o sotaque duro de Belfast Ocidental confundia-o. E o gaélico, que muitos católicos falam fluentemente, era uma algaraviada sem sentido para Michael: soava-lhe como a lâmina de uma pá a esgravatar no cascalho. Ainda assim, achava as pessoas extraordinariamente amigáveis, em especial para os forasteiros, sempre prontas a pagar uma bebida ou a oferecer um cigarro, com um sentido de humor negro derivado do facto de viverem num mundo enlouquecido.

Fez o check-in no Hotel Europa e passou dez minutos à procura de escutas no quarto. Conseguiu dormir, mas foi acordado por uma sirene e uma voz gravada que dizia para evacuar o hotel imediatamente. Telefonou para a recepção e a rapariga explicou-lhe alegremente que era apenas um teste. Pediu café ao serviço de quartos, tomou banho, vestiu-se e desceu ao piso de baixo. Tinha pedido ao concierge que lhe arranjasse um carro de aluguer. Já se encontrava à espera dele lá fora, no pequeno e circular caminho de entrada, um Ford Escort vermelho-vivo. Michael voltou para dentro do hotel e perguntou ao concierge se a empresa de aluguer de carros não tinha nada numa cor mais subtil.

— Lamento, senhor, mas é tudo o que têm de momento.

Michael entrou no carro e seguiu para norte, ao longo da Victoria Street. Virou numa pequena rua secundária, encostou e saiu. Abriu o capô e começou a puxar fios do motor do carro até este parar de trabalhar. Fechou o capô, tirou as chaves da ignição e voltou a pé para o Europa. Informou o concierge que o Escort se tinha avariado e explicou onde o podia encontrar.

Vinte minutos mais tarde, chegou um novo carro, um Opel azul-escuro.

Ao longo dos anos, Kevin Maguire, com o nome de código Mensageiro, já tinha utilizado uma dúzia de sequências diferentes para encontros, mas pedira para utilizar naquela noite o seu padrão original, três locais espalhados pelo centro de Belfast, com intervalos de uma hora. Os dois homens deviam dirigir-se ao primeiro local.

Se algum deles detectasse vigilância ou se sentisse desconfortável por algum motivo, tentariam novamente no segundo. Se o segundo não resultasse, tentariam o terceiro.

Se o terceiro também não funcionasse, dariam a noite por terminada e tentariam encontrar-se na seguinte, em três novos locais.

Michael seguiu no carro em direcção ao primeiro local: Donegall Quay, perto da Ponte Rainha Elizabeth, sobre o rio Lagan. Conhecia bem as ruas de Belfast e, durante vinte minutos, efectuou um típico PDV, a abreviatura da CIA para a execução de um percurso de detecção de vigilância. Foi serpenteando pelas ruas do centro da cidade, verificando constantemente se alguém o estava a seguir. Encaminhou-se para Donegall Quay, com a intenção de efectuar o encontro, mas não havia sinal de Maguire e, por isso, Michael continuou a conduzir sem parar. Não era nada típico de Maguire faltar a um encontro; era um terrorista profissional experiente, não o tipo de agente que vislumbrasse algum perigo onde este não existia.

Kevin Maguire tinha crescido na urbanização de Ballymurphy durante a década de 1970, filho de um trabalhador de estaleiro desempregado e de uma costureira. A noite, saíra para as ruas com os outros rapazes e combatera o exército britânico e a RUC com pedras e cocktails molotov. Uma vez, tinha mostrado a Michael uma fotografia de quando era miúdo, um maltrapilho com cabelo cortado à escovinha, casaco de cabedal e um colar feito de invólucros de cartuchos vazios. Tinha sido como que um herói em Ballymurphy por ser especialista em deter os camiões blindados de transporte de tropas com barris de cerveja vazios. Tal como a maioria dos católicos de Belfast Ocidental, admirava e temia os homens do IRA — admirava-os porque protegiam a população dos esquadrões da morte protestantes da UVF e da UDA, mas temia-os porque mutilavam, com tiros nos joelhos, ou espancavam brutalmente quem quer que saísse da linha. O pai de Maguire tinha ficado com os joelhos destruídos por vender bens roubados, porta a porta, para complementar o rendimento mensal da família proveniente do subsídio de desemprego.

Maguire tinha feito parte dos Na Fianna Eirean — uma espécie de escuteiros republicanos —, e o pai insistiu para que ficasse, apesar da mutilação. Quando fez vinte e dois anos, ofereceu-se como voluntário para o IRA. Fez o juramento secreto do IRA numa cerimónia na sala de estar da casa dos pais, em Ballymurphy. Maguire nunca iria esquecer a expressão no rosto do pai, a estranha mistura de orgulho e humilhação por o filho ser, a partir daquele momento, membro da organização que lhe tirara as pernas. Foi destacado para a Brigada de Belfast e acabou por vir a fazer parte de uma unidade de elite de serviço activo[30] na Grã-Bretanha. Desenvolveu bons contactos dentro do Conselho do Exército, o comando militar do IRA, e da Unidade dos Serviços Secretos de Belfast, que vieram a revelar-se inestimáveis quando mudou de lado e se tornou um espião.

O acontecimento que empurrou Maguire para a traição foi o atentado à bomba do IRA numa parada do Dia do Armistício, em Ennis-killen, no condado de Fermanagh, em 8 de Novembro de 1987. Onze pessoas morreram e sessenta e três ficaram feridas quando uma enorme bomba explodiu sem aviso. O IRA tentou acalmar a indignação do povo por causa do massacre dizendo que fora um erro. Maguire sabia a verdade; tinha feito parte da unidade que levara a cabo o ataque.

Ficou furioso com o Conselho do Exército por ter atacado um alvo civil "desprotegido". Jurou a si mesmo que iria evitar que, no futuro, o IRA efectuasse ataques semelhantes. O ódio e a desconfiança que sentia em relação aos britânicos excluía a hipótese de trabalhar para os serviços secretos britânicos ou para a Divisão Especial da RUC; portanto, na viagem seguinte a Londres, contactou a CIA. Michael fora enviado a Belfast para estabelecer contacto com ele. Maguire recusou-se a aceitar dinheiro — "as tuas trinta moedas de prata", como lhe chamou — e, apesar de ser um terrorista do IRA, Michael acabou por considerá-lo um homem decente.

A CIA e os seus homólogos britânicos têm um acordo implícito: a agência não "recolhe" em solo britânico, o que significa que não tenta penetrar no IRA nem recruta activos dentro dos serviços secretos britânicos. Depois de Michael ter estabelecido contacto com Maguire, a CIA foi falar com os britânicos. De início, o MI5 mostrou-se hesitante, mas acabou por concordar que Michael continuasse a encontrar-se com Maguire, desde que recebesse as informações que fossem sendo obtidas ao mesmo tempo que Langley. Durante os vários anos que se seguiram, Maguire forneceu a Michael um fluxo constante de informações acerca de operações do IRA, oferecendo à CIA e aos britânicos uma janela para espreitarem o alto-comando da organização. Maguire tornou-se o informador proveniente do IRA mais importante na história do conflito.

Quando Michael foi retirado do terreno, um novo agente americano foi destacado para Maguire, um homem chamado Jack Buchanan, do posto de Londres. Desde então, Michael não tinha visto nem falado com Maguire.

Michael seguiu para sul pela Ormeau Road. O segundo ponto de encontro era o Jardim Botânico, no cruzamento da Stranmills Road com a University Road. Uma vez mais, Michael sentia-se confiante de que não estava a ser seguido. Mas, uma vez mais, Maguire não compareceu ao encontro.

O último local era um campo de râguebi, numa zona de Belfast conhecida por Newtownbreda, e foi aí que, uma hora mais tarde, Michael encontrou Maguire parado debaixo de uma baliza.

— Porque não quiseste o encontro nos dois primeiros sítios? — perguntou Michael quando Maguire entrou para o carro e fechou a porta.

— Nada que eu pudesse ver... só má vibrações.

Maguire acendeu um cigarro. Mais parecia um revolucionário de café do que o artigo genuíno que era. Usava uma gabardina escura, uma camisola preta e calças de ganga pretas. Belfast fizera Maguire envelhecer desde a última vez que Michael o vira. O cabelo preto muito curto estava repleto de brancas e tinha rugas à volta dos olhos.

Agora, usava óculos europeus da moda, redondos e com armações de metal, demasiado pequenos para a cara dele.

— Onde é que arranjaste o carro? — perguntou Maguire.

— Foi o concierge do Europa. Arranquei os fios do motor do primeiro e eles enviaram este vinte minutos depois. Está limpo.

— Eu não falo em salas fechadas ou dentro de carros, ou já te esqueceste de tudo desde que te convenceram a voltar?

— Não me esqueci. Onde é que queres ir?

— E que tal à montanha, como nos velhos tempos? Encosta aí para eu ir buscar umas cervejas.

Michael conduziu para norte, atravessando Belfast, e depois subiu por uma estrada estreita, ao longo da Black Mountain. A chuva tinha parado quando encostou à berma e desligou o motor. Saíram do carro e sentaram-se no capô, a beber cerveja morna e a ouvir o ralenti do motor. Belfast espraiava-se por baixo deles. As nuvens flutuavam por cima da cidade como um lenço de seda lançado sobre um quebra-luz. Era uma cidade escura à noite. Luzes de sódio amarelas brilhavam no centro da cidade, mas, a oeste, na Falis, na Shankill e na Ardoyne, parecia que tinha havido um corte de energia. Maguire sentia-se normalmente em paz naquele sítio — perdera a virgindade ali, como tinha acontecido com metade dos rapazes de Ballymurphy — mas, naquela noite, mostrava-se agitadíssimo. Estava a fumar demasiado, a engolir apressadamente a sua cerveja e a suar, apesar do frio.

Falou.- Contou histórias antigas a Michael. Falou-lhe de como tinha sido crescer em Ballymurphy, combater os britânicos e lançar fogo aos chuis deles. Contou-lhe como tinha sido fazer amor na Black Mountain pela primeira vez.

— O nome dela era Catherine, uma rapariga católica. Senti-me tão culpado, que fui confessar-me no dia seguinte e contei tudo ao padre Seamus — disse ele. — Contei tudo ao padre Seamus muitas outras vezes ao longo dos anos, sempre que enfiava um balázio num soldado britânico ou num homem da RUC, sempre que punha uma bomba no centro de uma cidade ou em Londres.

Contou-lhe um caso que tivera com uma rapariga protestante de Shankill mesmo antes de se juntar ao IRA. Ela ficou grávida e os pais de ambos proibiram-nos de alguma vez voltarem a ver-se.

— Nós sabíamos que era o melhor que tínhamos a fazer — disse ele. — Teríamos sido olhados como párias em ambas as comunidades. Teríamos de abandonar a Irlanda do Norte, viver na porra da Inglaterra ou emigrar para a América. Ela teve o bebé, um menino. Nunca o vi. — Parou de falar e depois continuou: — Sabes, Michael, nunca pus uma bomba em Shankill.

— Porque tinhas medo de poder matar o teu próprio filho.

— Sim, porque tinha medo de poder matar o meu próprio filho, um filho que eu nunca vi — assentiu, abrindo outra lata de cerveja. — Não sei que raio é que andámos aqui a fazer neste últimos trinta anos. Não sei qual o objectivo de tudo isto. Dei vinte anos da minha vida ao IRA, vinte anos dados à porra da causa. Tenho quarenta e cinco. Não tenho mulher. Não tenho uma verdadeira família. E para quê? Um acordo que já podia ter sido alcançado uma dúzia de vezes desde sessenta e nove?

— Era o melhor com que o IRA podia contar — respondeu Michael. — Não há nada de errado numa solução de compromisso.

— E, agora, o Gerry Adams tem uma óptima ideia — disse Maguire, ignorando Michael. — Quer transformar a Falis numa área turística. Abrir uma pensão ou duas. Consegues imaginar? Venham ver as ruas onde os prods e os micks[31] andaram a travar uma guerrazinha horrível durante três décadas. Meu Deus, nunca pensei ver esse dia chegar, porra! Três mil mortos para podermos entrar na secção de viagens do The New York Times.

Terminou a cerveja e atirou a lata vazia pela encosta abaixo.

— Aquilo que vocês, americanos, não entendem é que nunca haverá paz aqui. Podemos parar de nos massacrarmos uns aos outros por uns tempos, mas nunca há-de mudar nada neste sítio. Não vai mudar nada — afirmou, atirando o cigarro pela encosta e observando as cinzas a desaparecerem na escuridão. — De qualquer modo, tu não vieste até aqui só para me ouvir a tagarelar sobre política e os fracassos do Exército Republicano Irlandês.

— Pois não, não vim. Eu quero saber quem matou o Eamonn Dillon.

— E os cabrões do IRA também.

— O que é que tu sabes?

— Suspeitamos que o Dillon já estava marcado para ser assassinado há muitíssimo tempo.

— Porquê?

— Assim que ele foi morto, os rapazes dos serviços de informação puseram-se ao trabalho. Suspeitavam que alguém dentro do Sinn Fein o tivesse traído porque o assassino tinha aparecido exactamente no sítio certo, exactamente à hora certa. Era possível que os lealistas o tivessem seguido pela Falis e o tivessem vigiado, mas não era muito provável. É difícil para eles actuarem num sítio como a Falis sem serem identificados e o Dillon era cuidadoso com a sua rotina.

— Então, o que é que aconteceu?

— Os serviços de informação do IRA viraram a sede do Sinn Fein do avesso. Vasculharam cada centímetro quadrado, à procura de transmissores ou minicâmaras. Acagaçaram de morte o pessoal e os voluntários e isso deu resultados.

— O que é que descobriram?

— Um dos voluntários, uma rapariga chamada Kathleen, que atendia os telefones, mantinha uma amizade com uma rapariga protestante.

— E a rapariga tinha nome?

— Dava pelo nome de Stella. A Kathleen pensava que não havia nada de errado em ser amiga da Stella por causa do acordo de paz. O IRA apertou-a de uma forma muito dura. Ela confessou que tinha contado coisas sobre a direcção do Sinn Fein, incluindo sobre o Ea-monn Dillon, à Stella.

— E a Kathleen ainda está entre nós?

— Por um fio — respondeu Maguire. — O Dillon era adorado dentro do IRA. Foi membro da Brigada de Belfast nos anos setenta. Serviu sob o comando do Gerry Adams. Passou dez anos em Maze com uma acusação de posse ilegal de arma. O IRA estava prestes a enfiar uma bala na nuca dela, mas o Gerry Adams interveio e salvou-lhe a vida.

— Presumo que a Kathleen tenha feito uma descrição da Stella ao IRA.

— Alta, atraente, cabelo preto, olhos cinzentos, boa estrutura facial e maxilar quadrado. Infelizmente, é tudo o que o IRA tem para poder trabalhar. A Stella era uma verdadeira profissional e cuidadosa como o raio. Nunca se encontrou com a Kathleen num local onde houvesse câmaras de vigilância do Sinn Fein.

— E o que é que o IRA sabe sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Merda nenhuma — respondeu Maguire. — Mas uma coisa te digo. O IRA não vai ficar de braços cruzados para sempre. Se as forças de segurança não conseguirem controlar as coisas, e depressa, a porra deste sítio vai toda pelos ares.

Michael deixou Maguire no cruzamento da Divis Street com a Millfield Road. Maguire saiu do carro e diluiu-se novamente na Falis sem olhar para trás. Michael percorreu os poucos quarteirões que faltavam até ao Europa e deixou o carro com o empregado. Maguire não lhe tinha dado muita informação, mas já era um começo. A Brigada para a Libertação do Ulster parecia possuir um aparelho de espionagem sofisticado e um dos seus agentes era uma mulher alta, com cabelo preto e olhos cinzentos. E também se sentia muito bem consigo próprio; depois de muito tempo afastado, tinha entrado em acção e levado a cabo um encontro clandestino bem-sucedido com um agente. Estava ansioso por voltar a Londres para fazer chegar as informações à sede da agência.

Era tarde, mas tinha fome e sentia-se demasiado agitado para ficar no quarto de hotel. A rapariga da recepção recomendou-lhe um restaurante chamado Arthur's, logo a seguir à Great Victoria Street. Sentou-se numa pequena mesa, perto da porta, com os seus folhetos turísticos a servirem-lhe de protecção. Comeu bife irlandês e batatas encharcadas em natas e queijo, tudo regado com meia garrafa de um clarete decente. Eram onze horas quando voltou a pisar a rua. Um vento frio uivava pelo centro da cidade.

Seguiu para norte, pela Great Victoria Street, em direcção ao Europa, A sua frente vinha uma rapariga a bater com os pés com força no chão, com as mãos enterradas bem dentro dos bolsos de um casaco de cabedal preto e uma mala de mão pendurada ao ombro. Já a tinha visto algures no Europa — no bar, talvez, ou a empurrar um carrinho de limpeza por um corredor. Ela olhou em frente. O olhar de Belfast, pensou ele. Ninguém naquela cidade parecia olhar para ninguém, muito menos nos passeios vazios do centro, a altas horas da noite.

Quando a rapariga se encontrava uns cinco metros à sua frente, pareceu tropeçar numa grelha do passeio. Caiu pesadamente, espalhando o que trazia na mala. Michael avançou rapidamente e ajoe-lhou-se ao lado dela.

— A senhora está bem? — perguntou.

— Sim — respondeu a rapariga. — Foi só uma quedazinha, nada de grave.

Ela sentou-se e começou a apanhar as suas coisas.

— Deixe-me ajudá-la — disse Michael.

— Não é necessário — disse ela. — Eu fico bem.

Michael ouviu um carro a acelerar pela Great Victoria Street. Virou-se e avistou um Nissan de tamanho médio, avançando a toda a velocidade na sua direcção, com os faróis apagados. Foi então que sentiu algo duro a pressionar-lhe a região lombar.

— Enfie-se na porcaria do carro, senhor Osbourne — disse a rapariga calmamente —, ou juro por Deus que lhe meto uma bala na espinha.

O carro travou a fundo e derrapou, parando junto ao passeio, e a porta traseira abriu-se de repente. Estavam dois homens sentados no banco de trás. Usavam ambos balaclavas. Um deles saltou para a rua, empurrou Michael para dentro do carro e, a seguir, entrou e sentou-se ao lado dele. A viatura acelerou rapidamente, deixando a rapariga para trás.

Quando já se encontravam afastados do centro da cidade, os dois homens obrigaram Michael a deitar-se no chão e começaram a espancá-lo com os punhos e com as coronhas das armas. Ele colocou os braços à volta da cabeça, tentando proteger-se das pancadas, mas não serviu de nada. Viu luzes a brilhar, ouviu os ouvidos a tinir e perdeu os sentidos.


Capítulo 18

CONDADO DE ARMAGH, IRLANDA DO NORTE

 

Michael acordou de repente. Não fazia ideia de quanto tempo estivera inconsciente. Tinham-no enfiado na bagageira do carro. Abriu os olhos, mas não viu nada a não ser escuridão; tinham-lhe posto um capuz preto na cabeça. Fechou os olhos outra vez e verificou os ferimentos. Os homens que o tinham agredido não eram o tipo de profissionais que conseguissem espancar um homem quase até à morte sem deixar marcas. A cara de Michael parecia ferida e inchada e conseguia sentir o gosto de sangue seco à volta da boca. Não conseguia respirar pelo nariz e o crânio doía-lhe numa dúzia de sítios diferentes. Várias costelas estavam partidas, de modo que até mesmo o inspirar pouco profundo provocava dores atrozes. Doía-lhe o abdómen e tinha a virilha inchada.

Por causa do capuz, os restantes sentidos de Michael ficaram, de repente, mais vivos. Conseguia ouvir tudo, o ranger das molas dos assentos, a música no rádio do carro, a rudeza do gaélico. Podiam estar a falar sobre o tempo ou de onde planeavam despejar o corpo dele, que Michael não teria percebido a diferença.

Durante vários minutos, o carro andou a uma boa velocidade numa estrada regular. Michael sabia que estava a chover porque conseguia ouvir o silvo do asfalto molhado por baixo de si. Passado algum tempo — vinte minutos, deduziu Michael —, o carro deu uma volta de noventa graus. A velocidade decresceu e o piso da estrada deteriorou-se.

O terreno tornou-se acidentado. Cada buraco, cada curva da estrada, cada inclinação, enviavam ondas de dores desde o couro cabeludo até à virilha de Michael. Tentou pensar em algo, qualquer coisa, além da dor.

Pensou em Elizabeth, na sua casa. Devia ser o início da noite em Nova Iorque. Ela devia estar a dar o último biberão às crianças antes de elas se deitarem. Por um instante, sentiu-se um completo idiota por ter trocado uma vida idílica com Elizabeth por um rapto e um espancamento na Irlanda do Norte. Mas isso era um pensamento derrotista, pelo que afastou-o da cabeça.

Pela primeira vez, em muitos anos, Michael pensou na mãe. Supôs que isso se devesse ao facto de pelo menos uma pequena parte dele suspeitar que poderia não sair da Irlanda do Norte com vida. As memórias que tinha dela eram mais como as de uma antiga amante do que de uma mãe: tardes passadas em cafés em Roma, passeios pelas praias do Mediterrâneo, jantares em tabernas gregas, uma peregrinação ao luar até à Acrópole. Às vezes, o pai ausentava-se por semanas, sem dizer nada. Quando acabava por regressar a casa, não podia dizer nada sobre o trabalho ou onde tinha estado. Ela castigava-o ao falar só em italiano, uma língua que o desnorteava. Também o castigava ao trazer estranhos para a cama dela — facto que nunca escondera de Michael. Costumava meter-se com ele, dizendo-lhe que o seu verdadeiro pai era um rico fazendeiro siciliano, o que explicava a pele cor de azeitona de Michael, o seu cabelo quase preto e o nariz longo e estreito. Michael nunca tinha a certeza se ela estava a brincar ou não. O segredo que partilhavam em relação ao adultério dela criou um laço místico entre ambos. Ela morreu de cancro da mama quando ele tinha dezoito anos. O pai de Michael sabia que a mulher e o filho tinham guardado segredos dele; o velho enganador tinha sido enganado. No ano que se seguiu à morte de Alexandra, Michael e o pai mal se falaram.

Michael pensou no que teria acontecido a Kevin Maguire. A pena por trair o IRA era rápida e dura: tortura extrema e uma bala na nuca. Depois pensou: "Será que o Maguire traiu o IRA ou me traiu a mim?" Recordou os acontecimentos daquela tarde. Os dois carros disponibilizados pelo Europa, o Escorf vermelho e o Opel azul. Os dois pontos de encontro que Maguire tinha falhado, o cais junto ao rio Lagan e o Jardim Botânico. Pensou no próprio Maguire — os cigarros fumados uns atrás dos outros, o suor, a viagem longa através de estradas velhas. Será que se encontrava nervoso porque temia estar a ser observado? Ou sentir-se-ia culpado por estar a tramar o homem que tinha sido o primeiro agente destacado para o orientar?

Saíram da estrada e viraram para um caminho esburacado e sem pavimentação. O carro saltou e bamboleou-se da esquerda para a direita. Michael soltou um gemido involuntário quando uma pontada de dor lhe rompeu pelas costelas partidas, como a ponta de uma faca a rasgá-lo de lado.

— Não se preocupe, senhor Osbourne — gritou uma voz dentro do carro. — Vamos chegar daqui a uns minutos.

Cinco minutos depois, o carro parou. A bagageira abriu-se e Michael sentiu uma rajada de vento carregado de chuva. Dois dos homens pegaram-lhe nos braços e puxaram-no para fora. De repente, estava de pé. Conseguia sentir a chuva a martelar-lhe nas feridas da cabeça, apesar do capuz. Tentou dar um passo, mas os joelhos falharam.

Os raptores apanharam-no antes de cair no chão. Michael colocou um braço à volta de cada um deles e foi carregado até um chalé de pedra. Passaram por uma série de divisões e de portas, com os pés de Michael a arrastarem-se pelas tábuas do soalho. Um momento depois, sentaram-no numa cadeira de costas direitas e duras.

— Quando ouvir a porta a fechar-se, senhor Osbourne, pode retirar o capuz. Há água quente e uma toalha. Limpe-se. Tem uma visita.

Michael retirou o capuz; estava teso do sangue seco. Pestanejou com a luz forte. A sala estava quase vazia, à excepção de uma mesa e duas cadeiras. O papel de parede floral a descascar recordou-lhe de hóspedes em Cannon Point. Na mesa, estava uma bacia de esmalte branca cheia de água. Ao lado, uma toalha e um pequeno espelho de barbear. A porta tinha um óculo para o poderem vigiar.

Michael inspeccionou a cara ao espelho. Os olhos estavam feridos e quase fechados do inchaço. Tinha um corte profundo no tecido mole acima do olho esquerdo e que precisava de pontos. Os lábios estavam inchados e rachados e tinha uma grande escoriação a atravessar-lhe a face direita. O cabelo estava tingido de sangue. Havia uma razão para lhe terem dado um espelho. O IRA tinha estudado muito bem a arte do interrogatório; queriam que ele se sentisse fraco, inferior e feio. Os britânicos e a Divisão Especial da RUC tinham utilizado essa mesma técnica com os membros do IRA durante três décadas.

Michael tirou o casaco com cuidado e arregaçou as mangas da camisola. Ensopou a toalha na água quente e começou a tratar da cara, limpando suavemente o sangue dos olhos, da boca e do nariz. Inclinou a cabeça sobre a bacia e lavou o sangue do cabelo. Cuidadosamente, passou um pente pelos cabelos e olhou para o espelho outra vez. A sua figura ainda estava hediondamente distorcida, mas tinha conseguido tirar quase todo o sangue.

Um punho martelou na porta.

— Põe o capuz na cabeça outra vez — ordenou a voz. Michael não se mexeu.

— Eu disse para pores a merda do capuz na cabeça.

— Está cheio de sangue — disse Michael. — Quero um limpo. Ouviu o som de passos do lado de fora e gritos zangados em gaélico. Passados alguns segundos, a porta abriu-se com força e um homem com uma balaclava entrou na sala a passos largos. Agarrou o capuz ensanguentado e enfiou-o na cabeça de Michael com brusquidão.

— Da próxima vez que eu te disser para pores o capuz, tu pões a porra do capuz — disse ele. — Percebeste?

Michael não disse nada. A porta fechou-se e ele ficou sozinho outra vez. Tinham-lhe imposto a vontade deles, mas tinha ganho uma pequena vitória. Deixaram-no ficar ali sentado, com um capuz que tresandava ao seu próprio sangue, durante vinte minutos. Conseguia ouvir vozes na casa e, algures, muito ao longe, pensou ouvir um grito. Finalmente, ouviu a porta abrir-se e fechar-se outra vez. Um homem tinha entrado na sala. Michael conseguia ouvi-lo a respirar e conseguia sentir-lhe o cheiro: cigarros, tónico capilar, um sopro de água-de-colónia feminina que lhe fez lembrar Sarah. O homem sentou-se na outra cadeira. Devia ser um homem grande, já que a cadeira rangeu sob o seu peso.

— Pode retirar o capuz agora, senhor Osbourne.

A voz era confiante e naturalmente cheia no seu timbre, uma voz de líder. Michael retirou o capuz, pô-lo em cima da mesa e fitou olhos nos olhos a pessoa sentada do outro lado da mesa. Era um homem de feições rudes — uma testa larga e lisa, maçãs do rosto pesadas e o nariz achatado de um pugilista. A racha no queixo quadrado parecia ter sido cortada à machadada. Trazia uma camisa branca com gravata, calças cinzento-escuras e um colete a condizer. Os olhos azul-claros irradiavam luz e inteligência. Por alguma razão, estava a sorrir.

Michael reconheceu a cara dos dossiês de Cynthia Martin, na sede: uma fotografia de prisão tirada em Maze, onde o homem tinha passado vários anos na década de 1980.

— Meu Deus! Eu disse aos meus homens para lhe darem uma tareiazinha, mas parece que em vez disso lhe deram um verdadeiro enxerto. Desculpe, mas às vezes os rapazes entusiasmam-se um bocadinho.

Michael não disse nada.

— O seu nome é Michael Osbourne e trabalha para a CIA em Langley, na Virgínia. Há vários anos, recrutou um agente no interior do Exército Republicano Irlandês, chamado Kevin Maguire. Orientou o Maguire numa operação conjunta com o MI5. Quando voltou para a Virgínia, entregou o Maguire a outro agente, um homem chamado Buchanan.

Não se dê ao trabalho de negar nada disto, senhor Osbourne. Não temos tempo para isso e eu não quero fazer-lhe mal.

Michael não disse nada. O homem tinha razão; ele podia negar tudo, dizer que era tudo um engano, mas isso apenas iria prolongar-lhe o cativeiro, o que poderia conduzir a outro espancamento.

— Sabe quem eu sou, senhor Osbourne? Michael confirmou com a cabeça.

— Faça-me a vontade — disse ele.

Acendeu dois cigarros, ficando com um e dando o outro a Michael. Passado um momento, um manto de fumo pairava entre eles.

— O seu nome é Seamus Devlin.

— E sabe o que é que eu faço?

— É o chefe dos serviços de informação do IRA.

Ouviu-se bater à porta com força e umas quantas palavras murmuradas em gaélico. Devlin disse:

— Volte-se para a parede.

A porta abriu-se e Michael ouviu alguém a entrar no quarto e a pousar um objecto em cima da mesa. A porta fechou-se novamente.

— Já pode virar-se — disse Devlin.

O objecto que fora colocado em cima da mesa era um tabuleiro com um bule de chá, duas canecas de esmalte lascadas e um pequeno jarro de leite. Devlin serviu chá para os dois.

— Espero que tenha aprendido uma lição valiosa esta noite, senhor Osbourne. Espero que tenha aprendido que não pode infiltrar-se neste exército e levar a sua avante.

Pensa que somos apenas uma data de taigs estúpidos? Uma data de micks papalvos saídos dos pântanos? O IRA anda a combater o governo britânico há quase cem anos nesta ilha. Já aprendemos uma coisa ou outra sobre as lides da espionagem pelo caminho.

Michael bebeu o chá e manteve-se em silêncio.

— A propósito, se isso o faz sentir-se melhor, foi o Buchanan que nos conduziu ao Maguire, não foi você. O IRA tem uma unidade especial que segue os voluntários suspeitos de traição, uma unidade tão secreta que eu sou o único que conhece a identidade dos membros. Mandei seguir o Maguire em Londres, o ano passado, e vimo-lo a encontrar-se com o Buchanan.

Essa notícia não fez com que Michael se sentisse melhor.

— E porque é que me capturaram? — perguntou ele.

— Porque eu quero dizer-lhe uma coisa — respondeu Devlin, inclinando-se sobre a mesa, com as suas mãos de trabalhador das docas por baixo do queixo. — A CIA e os serviços britânicos estão a tentar encontrar os membros da Brigada para a Libertação do Ulster. Eu acho que o IRA pode ajudar. Afinal de contas, também é do nosso interesse que esta violência fique sob controlo rapidamente.

— E o que é que vocês têm?

— Um esconderijo repleto de armas, nas montanhas Sperrin — revelou Devlin. — Não é nosso e não achamos que pertença a quaisquer outros paramilitares protestantes.

— E em que sítio das montanhas Sperrin?

— Numa quinta, à saída da aldeia de Cranagh.

Devlin entregou a Michael um pedaço de papel com um mapa desenhado de forma rudimentar, indicando a localização da quinta.

— O que é que viram? — perguntou Michael.

— Camiões a entrar e a sair, caixotes a serem descarregados, o normal.

— E gente?

— Um par de rapazes parece que vive lá a tempo inteiro. Patrulham o campo à volta da casa regularmente. Bem armados, posso acrescentar.

— E o IRA continua a vigiar a quinta?

— Nós retirámo-nos. Não temos o equipamento necessário para fazer as coisas como deve ser.

— E porque é que estão a contar-me isto? Porque é que não passam a informação aos britânicos ou à RUC?

— Porque eu não confio neles e nunca hei-de confiar. Não se esqueça de que há determinados elementos no interior da RUC e dos serviços secretos britânicos que têm colaborado com os paramilitares protestantes ao longo dos anos. Eu quero que esses sacanas dos protestantes sejam travados antes que nos arrastem outra vez para uma guerra aberta, e não confio nos britânicos nem na RUC para fazerem esse trabalho sozinhos.

Devlin esmagou o cigarro. Olhou para Michael e sorriu novamente.

— Então, isto não valeu uns quantos cortes e arranhões?

— Vá-se foder, Devlin — disse Michael. Devlin rebentou a rir.

— É livre de ir, agora. Vista o casaco. Quero mostrar-lhe uma coisa antes de se ir embora.

Michael seguiu Devlin pela casa. Havia um cheiro a bacon frito no ar. Devlin conduziu-o por uma sala de estar, em direcção a uma cozinha com panelas de cobre penduradas por cima do fogão. Poderia ser uma cena tirada de uma revista rural irlandesa, se não fosse a meia dúzia de homens, sentados à volta da mesa, a olhar para Michael através das fendas das balaclavas.

— Vai precisar disto — disse Devlin, tirando um gorro de lã do cabide ao- lado da porta e colocando-o cuidadosamente na cabeça inchada de Michael. — É pena, mas hoje está uma noite terrível.

Michael seguiu Devlin ao longo de um caminho lamacento. Estava tão escuro que era quase como se estivesse outra vez com o capuz enfiado na cabeça. Conseguia ver a silhueta de lutador de Devlin à sua frente, a marchar pelo caminho, e sentiu-se estranhamente cativado por ele. Quando chegaram ao celeiro, Devlin bateu à porta com força e murmurou algo em gaélico. A seguir, abriu a porta com um empurrão e levou Michael lá para dentro.

Michael demorou alguns segundos até perceber que o homem amarrado à cadeira era Kevin Maguire. Estava nu e a tremer de frio e de terror. Tinha sido espancado selvaticamente.

Tinha a cara horrivelmente distorcida e sangue a jorrar de uma dezena de cortes diferentes — por cima dos olhos, nas bochechas, à volta da boca. Ambos os olhos estavam fechados com o inchaço. Havia feridas em todas as partes do corpo: contusões, escoriações, lacerações por ter sido chicoteado com um cinto, queimaduras de cigarros esmagados na pele. Estava sentado nos seus próprios excrementos. Três homens com balaclavas rodeavam-no, vigiando-o.

— Isto é o que nós fazemos aos chibos no IRA, senhor Osbourne — disse Devlin. — Lembre-se disto da próxima vez que tentar convencer um dos nossos homens a trair o IRA e a sua gente.

Maguire perguntou:

— És tu, Michael?

Michael avançou com cuidado, passando por entre os torturadores e ajoelhando-se ao lado dele. Sabia que não havia nada que pudesse dizer; por isso, limitou-se a limpar-lhe algum do sangue dos olhos e pousou-lhe a mão no ombro suavemente.

— Desculpa, Kevin — desabafou Michael, com a voz rouca de emoção. — Meu Deus, peço imensa desculpa.

— A culpa não é tua, Michael — sussurrou Maguire.

Fez uma pausa por uns instantes, pois o esforço que fizera para falar lhe tinha causado mais dor.

— É este sítio. Eu disse-te. Não vai mudar nada por aqui. Nunca há-de mudar nada neste sítio.

Devlin aproximou-se, agarrando Michael pelo braço e afastando-o para longe. Voltou a levá-lo para o exterior.

— Aquilo ali dentro é o mundo real — disse Devlin. — Eu não matei o Kevin Maguire. Você é que o matou.

Michael rodopiou e esmurrou Devlin. O soco aterrou bem no alto da maçã do rosto esquerda e fê-lo cair estatelado na lama. Devlin limitou-se a rir e a esfregar a cara. Dois homens saíram a correr da casa. Ele fez-lhes sinal com a mão para que se afastassem.

— Nada mal, nada mal mesmo.

— Arranjem-lhe um padre — disse Michael, a respirar ofegante. — Deixem-no confessar-se pela última vez. Depois, enfiem-lhe uma bala. Ele já sofreu o suficiente.

— Ele vai ter o padre — respondeu Devlin, ainda a esfregar a cara. — E receio que a bala também. Mas lembre-se de uma coisa: se você ou um dos seus amigos britânicos não travarem a Brigada para a Libertação do Ulster, este sítio vai rebentar. Se isso acontecer, não tentem infiltrar-se novamente porque o cabrão do chibo que o fizer há-de acabar como o Maguire.

Conduziram durante muito tempo. Michael tentou acompanhar as curvas, para poder vir a encontrar a quinta outra vez, mas após algum tempo limitou-se a fechar os olhos e a tentar descansar. Finalmente, o carro parou. Alguém bateu na bagageira com força e perguntou:

— Tens a porra do capuz na cabeça?

— Sim — respondeu Michael.

Já não tinha forças para jogos mentais e queria estar longe deles. Dois homens tiraram-no para fora da bagageira e deitaram-no na erva molhada que ladeava a estrada.

Passado um momento, colocaram-lhe qualquer coisa ao lado.

— Deixa-te estar com o capuz até já não ouvires o motor do carro.

Michael sentou-se enquanto eles arrancavam. Arrancou o capuz da cabeça, na esperança de conseguir apanhar um vislumbre da matrícula, mas tinham apagado os faróis.

A seguir, virou-se para ver o que tinham depositado ao lado dele e deparou-se com o rosto sem vida de Kevin Maguire.


Capítulo 19

LONDRES

 

— É óbvio que eles te seguiram até ao encontro — disse Wheaton, com a certeza de um homem que nunca permitia que os factos se intrometessem no caminho da sua teoria, especialmente se ela explicasse as coisas a seu favor.

— Eu efectuei um PDV minucioso, totalmente como mandam as regras — respondeu Michael. — Não tinha ninguém atrás de mim. Eles seguiram o Maguire até ao encontro, não a mim. Foi por isso que ele não quis encontrar-se nos dois primeiros sítios, porque suspeitava que estava a ser observado. Só desejava que ele tivesse tido o bom senso de confiar nos seus próprios instintos. Ainda estaria vivo.

Michael estava sentado a uma mesa, na pequena cozinha privada de Winfield House. A noite começava a cair, quase vinte e quatro horas depois de o IRA o ter raptado no meio das ruas de Belfast. Tinham-no largado à saída da aldeia de Dromara. Michael não tivera outra hipótese a não ser deixar o corpo de Maguire na berma da estrada e ir para bem longe o mais rápido possível. Tinha andado até Banbridge, uma aldeia protestante a sudeste de Portadown, e feito sinal a uma carrinha de entregas para parar. Contou ao condutor que tinha sido assaltado e espancado e que o carro fora roubado. O condutor ia a caminho de Belfast, mas disse que estava disposto a levar Michael até à esquadra da RUC em Banbridge para ele poder apresentar queixa. Michael respondeu que preferia voltar para o hotel em Belfast e apresentar queixa lá.

Já em Belfast, depois de chegar ao Europa, Michael acordou Wheaton em Londres, que fez os telefonemas necessários aos seus homólogos britânicos e arranjou maneira de um helicóptero da RAF ir apanhar Michael ao Aeroporto de Aldergrove.

— Tu já não participavas numa operação no terreno há bastante tempo, Michael — disse Wheaton. — Talvez te tenha escapado alguma coisa.

— Estás a sugerir que fiz com que o Maguire morresse?

— Eras o único agente que lá estava.

— Eu lembro-me do que é que se faz para detectar uma vigilância. Lembro-me dos parâmetros necessários para que um encontro se efectue ou não. O Devlin disse-me que já sabiam há meses que o Maguire andava a trabalhar para nós.

— O Seamus Devlin não é propriamente uma fonte em que eu confie.

— Ele sabia o nome do Buchanan.

— Provavelmente, o Maguire revelou-lho sob tortura.

Michael sabia que era impossível vencer aquela discussão. Jack Buchanan trabalhava para o posto de Londres. Era um dos homens de Wheaton e este iria até onde fosse necessário para o proteger.

— É evidente que um de vocês fez merda, e merda da grossa — continuou Wheaton. — Perdemos um dos nossos melhores activos, os nossos irmãos britânicos andam numa agitação tremenda e tu tens sorte em estar vivo.

— E em relação às informações dadas pelo Devlin?

— Já foi tudo comunicado à sede e ao MI5, conforme o nosso acordo inicial acerca do assunto do Maguire. Obviamente, não podemos pôr um sítio sob vigilância na Irlanda do Norte. Os britânicos e que têm de tomar essa decisão, e vão ter de a confrontar com outras prioridades operacionais. Muito sinceramente, é algo que está fora das nossas mãos nesta altura.

— Essas informações custaram a vida ao meu agente.

— O Maguire não era teu agente. Era nosso agente, dos britânicos e nosso. Orientávamo-lo em conjunto e partilhávamos os dividendos, lembras-te? Estamos todos chateados por o disfarce dele ter sido revelado.

— Eu não quero perder uma oportunidade para desmantelar a Brigada para a Libertação do Ulster por nos sentirmos desconfortáveis com a maneira como obtivemos a informação.

— Tens de admitir que tudo aquilo foi um nadinha pouco ortodoxo. E se as informações do Devlin forem falsas?

— E porque é que o IRA iria fazer isso?

— Para assassinar uns quantos agentes dos serviços secretos britânicos e homens da SAS. Nós passamos as informações aos britânicos, os britânicos põem uma equipa em campo e o IRA faz-lhes uma emboscada, a meio da noite, e corta-lhes a garganta.

— O IRA anda a cumprir o cessar-fogo e os acordos de paz. Eles não têm nenhuma razão para armar uma cilada aos britânicos.

— Mesmo assim, continuo a não confiar neles.

— As informações são de confiança. Temos de agir rapidamente de acordo com o que sabemos.

— É um assunto britânico, Michael, e portanto é uma decisão britânica. Se eu tentar pressioná-los, eles não vão gostar, tal como nós não gostaríamos se os papéis estivessem invertidos.

— Então, deixa-me ser eu a fazê-lo discretamente.

— O Graham Seymour?

Michael anuiu. Wheaton fez questão de mostrar que estava a ponderar a questão cuidadosamente.

— Muito bem, marca um encontro com ele para amanhã e depois, porra, desaparece daqui para fora. Quero-te nos Estados Unidos — disse Wheaton, parando depois por uns instantes e examinando a cara de Michael. — De qualquer forma, provavelmente, é melhor que fiques cá mais um dia. Não quero que a tua mulher te veja assim.

Michael foi para a cama cedo, mas não conseguia dormir. Sempre que fechava os olhos, toda a sequência de acontecimentos se desenrolava à sua frente: o espancamento na parte de trás do carro, o sorriso de Devlin à gato de Cheshire[32], os olhos mortos de Maguire. Surgiu-lhe a imagem do seu agente atado à cadeira, espancado até já quase não ser possível reconhecê-lo, espancado até já não lhe restar nada da cara. Foi duas vezes aos tropeções para a casa de banho e vomitou violentamente.

Lembrou-se das palavras de Devlin.

Eu não matei o Kevin Maguire... Você é que o matou.

O corpo doía-lhe em todos os sítios onde lhe tinham batido. Nenhuma posição era suficientemente confortável para poder dormir. Sempre que sentia pena de si próprio, pensava em Maguire e na sua morte desgraçada e humilhante.

Tomou comprimidos para as dores e depois comprimidos para conseguir adormecer. Sonhou com tudo aquilo a noite toda, mas nos seus sonhos era ele quem espancava Kevin Maguire e era ele quem lhe enfiava uma bala na nuca.

— Mas que belo olho — disse Graham Seymour, na manhã seguinte.

— Está lindo, não está?

Michael voltou a pôr os óculos de sol, apesar de o céu estar carregado de nuvens. Iam caminhando, lado a lado, por um trilho em Parliament Hill, no parque de Hampstead Heath. Michael estava a precisar de descansar e, por isso, sentaram-se num banco. A esquerda deles, Highgate Hill elevava-se no meio da neblina. A frente, para lá do parque, espraiava-se o centro de Londres. Michael conseguiu distinguir a cúpula da Catedral de São Paulo ao longe. Enquanto iam conversando, algumas crianças à volta deles faziam voar papagaios coloridos.

— Ainda não acredito que tenhas dado mesmo um murro ao Seamus Devlin.

— Nem eu, porra, mas soube tão bem!

Tens ideia de quantas pessoas adoravam poder enfiar-lhe um Sopapo?

— Suspeito que seja uma longa fila.

— Uma fila muito longa, meu caro. E doeu?

— A mim ou a ele?

— A ti — disse Graham, enquanto esfregava, num movimento reflexo, as mãos compridas e ossudas uma na outra.

— Um bocadinho.

— Lamento o que aconteceu ao Maguire.

— Ele era um agente bom como o raio.

Michael acendeu um cigarro. O fumo ficou-lhe preso no fundo da garganta e, quando tossiu, agarrou-se às costelas partidas, cheio de dores.

— E qual é a opinião dentro de Thames House? Vocês vão pôr o sítio sob vigilância?

— Para ser sincero, estão um bocadinho incrédulos no último andar — respondeu Graham. — E também estão irritados por terem perdido o Maguire.

— O Wheaton acha que é uma armadilha, que o IRA quer matar uns quantos agentes dos serviços secretos.

— Era de esperar que o Wheaton achasse isso. Seria assim que ele actuaria.

— Eu acho que as informações são de confiança — disse Michael. — O Devlin sabia que ficaríamos cépticos. Foi por isso que se encontrou pessoalmente cara a cara comigo, para nos mostrar que estava a falar a sério.

— Provavelmente tens razão — respondeu Graham. — Vou tentar discretamente fazer as coisas avançarem a partir de dentro. Aliás, talvez até dê um salto ao Ulster e trate disso eu mesmo. Preciso de estar um tempo afastado da Helen. Ela agora entrou numa nova fase, retro punk. Anda com o cabelo todo espetado e não ouve mais nada a não ser os Clash e os Sex Pistols.

— Também isso passará — declarou Michael solenemente.

— Eu sei, só tenho medo é que a próxima seja alguma coisa ainda pior.

Michael riu-se pela primeira vez em muitos dias.

Em Cannon Point, Elizabeth colocou um par de enormes colchas no chão do quarto. Pôs as crianças em cima das colchas, primeiro Jake, depois Liza, e rodeou-as de bonecos de peluche, brinquedos de apertar e chocalhos. Durante vinte minutos, ficou deitada no chão, entre eles, a brincar e a fazer aqueles barulhos tolos, como se estivesse a arrolhar, que a deixavam doida antes de ter filhos. Sentou-se ao fundo da cama e limitou-se a observá-los. Obrigara-se a abandonar os preparativos para o julgamento e a focar-se apenas nas crianças e em nada mais durante o fim-de-semana inteiro. Tinha sido maravilhoso; de manhã, levara as crianças a dar um longo passeio pela Shore Road e a seguir, tinham ido almoçar ao seu restaurante preferido em Sag Harbor. Teria sido perfeito, se não fosse o facto de o marido e o pai estarem ambos em Londres.

Ficou admirada com o facto de as crianças já serem tão diferentes. Liza era como a mãe: comunicativa, sociável, faladora à sua própria maneira, ansiosa por agradar aos outros. Jake era exactamente o contrário. Jake vivia dentro da sua própria cabeça. Liza já tentava dizer a toda a gente aquilo em que estava a pensar. Jake era reservado. Tinha segredos. Ele só tem quatro meses, pensou ela, e já é tal e qual o pai e o avô. Se ele se tornar um espião, acho que me mato com um tiro.

Depois, pensou na maneira como andava a tratar Michael e sentiu-se imediatamente culpada. Não tinha o direito de ficar magoada com Michael por ele ter aceitado chefiar o destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte. De facto, chegara à conclusão de que tinha sido desde logo uma tolice da sua parte permitir que ele deixasse a CIA. Ele tinha razão. Era um trabalho importante e, por alguma razão, parecia que o fazia feliz.

Elizabeth olhou para as crianças. Liza estava a tagarelar com um cãozito de peluche, mas Jake estava deitado de costas, a olhar para cima, pela janela, perdido no seu mundo secreto. Michael era o que era, e era escusado tentar mudá-lo. Em tempos, ela amara-o por isso.

Pensou nele em Belfast e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Pôs-se a imaginar o que estaria a fazer — se teria ido para sítios perigosos. Nunca se habituaria à ideia de ele sair de casa para uma operação no terreno. Que termo tão tolo, pensou ela, o terreno, como se fosse algum prado agradável onde nada de mal alguma vez acontecesse, quando ele estava longe, ela sentia um constante nó de ansiedade no stômago. A noite, dormia com uma luz acesa e a televisão ligada, baixinho. Não era que temesse necessariamente pela segurança dele; já o tinha visto em acção e sabia-o capaz de tomar conta de si próprio. ansiedade vinha de saber que Michael se tornava um homem diferente quando estava longe. Quando voltava para casa, parecia sempre ser um pouco como um estranho. Vivia uma vida diferente quando operava no terreno e, por vezes, Elizabeth interrogava-se se faria ou não parte dela.

Viu faróis dianteiros a iluminarem a Shore Road. Foi à janela e viu um carro parar junto ao portão de segurança. O guarda fez sinal ao carro para entrar na propriedade sem telefonar primeiro para a casa, o que queria dizer que o condutor era Michael.

— Maggie? — chamou Elizabeth. Maggie entrou no quarto.

— Sim, Elizabeth?

— O Michael chegou. Podes ficar com as crianças por um minuto?

— Claro.

Elizabeth correu pelas escadas abaixo. Agarrou num casaco pendurado no cabide do átrio de entrada e embrulhou-o nos ombros enquanto se apressava pelo caminho de acesso, em direcção ao carro.

Lançou os braços à volta dele e disse:

— Senti a tua falta, Michael. Lamento tanto por tudo. Por favor, perdoa-me.

— O quê? — perguntou ele, beijando-lhe a testa suavemente.

— Ter sido tão idiota.

Ela apertou-o e Michael gemeu. Afastou-o ligeiramente, com uma expressão de perplexidade na cara, e puxou-o para junto da luz que saía de uma janela.

— Oh, meu Deus. O que é que te aconteceu?


Capítulo 20

LONDRES

MÍCONOS

ATENAS

 

Uma semana depois de Michael Osbourne partir de Londres, um jaguar prateado entrou sorrateiramente no caminho de acesso à mansão georgiana em St. John's Wood. No banco de trás, ia sentado o Director. Era um homem pequeno, de cabeça e ancas estreitas, com o cabelo cor de areia a ficar grisalho e olhos da cor da água do mar no Inverno. Vivia sozinho, com um rapaz da Sociedade para o proteger e uma rapariga, chamada Daphne, que servia de recepcionista e lhe cuidava das necessidades pessoais.

O motorista, um antigo comando da unidade de elite dos Serviços Aéreos Especiais, saiu do carro e abriu a porta de trás.

Daphne estava à porta da entrada, protegida da chuva torrencial por um grande guarda-chuva preto. Parecia sempre que tinha acabado de regressar de umas férias nos trópicos. Tinha um metro e oitenta e três de altura, pele cor de caramelo e cabelo castanho, com madeixas loiras, que lhe caía pelo pescoço e ombros.

Avançou e escoltou o Director até ao átrio de entrada, mantendo com todo o cuidado o guarda-chuva bem alto, para ter a certeza de que ele permanecia perfeitamente seco. O Director tinha propensão a sofrer de uma infecção recorrente nos brônquios; para ele, a humidade de um Inverno inglês era o mesmo que atravessar um campo ttunado sem um mapa.

— O Picasso está na linha segura de Washington — disse Daphne. O Director tinha gasto com ela milhares de libras em terapia da fala para lhe eliminar do sotaque a melodia cadenciada própria da Jamaica. Agora, tinha a voz de uma apresentadora de noticiário da BBC.

— Vai atender a chamada agora ou quer que eu ligue para ela mais tarde?

— Pode ser agora.

Dirigiu-se de imediato para o escritório, carregou no botão verde que piscava no telefone e levantou o auscultador. Ficou a ouvir durante vários minutos, murmurou algumas palavras e escutou novamente.

— Está tudo bem, meu doce? — perguntou Daphne, após o Director pousar o auscultador.

— Precisamos de ir a Míconos amanhã de manhã — respondeu ele. — Receio bem que Monsieur Delaroche esteja metido num sarilho bastante grave.

O tempo mantinha-se invernoso em Londres, mas a temperatura estava amena e havia bastante sol quando o avião de motor turbopropulsor da Island Air que transportava o Director e Daphne aterrou em Míconos no dia seguinte, ao início da tarde. Instalaram-se num quarto de hotel em Chora e passearam pela zona ribeirinha da Pequena Veneza até encontrarem o café. Delaroche estava sentado numa mesa com vista para o porto. Trazia calções cor de caqui e uma T-shirt sem mangas. Tinha os dedos vermelhos e pretos de tinta. O Director apertou-lhe a mão como se estivesse a tentar medir-lhe a pulsação; a seguir, puxou do lenço branco de algodão que trazia no bolso do peito do casaco e esfregou-o ao de leve na palma da mão.

— Algum sinal da oposição? — perguntou ele, suavemente. Delaroche abanou a cabeça.

— E que tal se fôssemos para a tua villa? — sugeriu o Director. — Gosto mesmo da maneira como arranjaste aquele sítio.

Delaroche levou-os até ao cabo Mavros na sua amolgada carrinha Volvo. As telas e o cavalete chocalhavam no compartimento traseiro de carga. O Director ia sentado à frente, agarrando com força o apoio de braço enquanto Delaroche avançava a grande velocidade pela estrada estreita e cheia de lombas.

Daphne estava estendida no banco de trás, com a brisa que entrava pelo vidro aberto a agitar-lhe o cabelo.

Delaroche serviu-lhes um jantar no terraço. Quando terminaram, Daphne pediu licença para se levantar e foi deitar-se numa espreguiçadeira, onde já não os conseguia ouvir.

— Felicito-te pelo teu trabalho no caso do Ahmed Hussein — disse o Director, erguendo o seu copo de vinho.

Delaroche não retribuiu o gesto. Não retirava prazer do acto de matar, apenas uma sensação de realização por ter cumprido uma missão de modo profissional. Não se considerava um homicida; era um assassino profissional. Os homens que ordenavam os assassínios eram os verdadeiros homicidas. Ele era apenas a arma.

— Os contratantes estão bastante satisfeitos — afirmou o Director, numa voz tão seca como folhas mortas. — A morte do Hussein provocou precisamente a reacção que esperavam. Mas deixou-nos, no entanto, com um problemazinho de segurança no que te diz respeito.

A nuca de Delaroche começou a escaldar de repente com uma onda de inquietação. Ao longo da carreira, precavera-se obsessivamente com a sua segurança pessoal. A maior parte das pessoas no seu ramo de actividade fazia regularmente operações plásticas para alterar a aparência. Delaroche lidava com isso de outra maneira: apenas um punhado de pessoas que sabia como ele ganhava realmente a vida lhe tinha visto a cara. As únicas fotografias dele eram as que estavam nos passaportes falsos, e Delaroche tinha alterado a aparência ligeiramente em cada uma delas de forma a torná-las inúteis para a polícia e os serviços secretos. Quando passava pelos aeroportos ou terminais ferroviários, trazia sempre um chapéu e óculos de sol para esconder a cara das câmaras de vigilância. Ainda assim, estava ciente de que a CIA sabia da sua existência e de que tinha compilado um dossiê bastante extenso acerca dos seus assassínios ao longo dos anos.

— Que tipo de problema de segurança? — perguntou Delaroche.

— A CIA enviou um alerta à Interpol e a todos os serviços secretos com quem mantém boas relações. Foste colocado numa lista de vigilância internacional. Todos os agentes do controlo de passaportes e polícias fronteiriços da Europa têm um exemplar.

O Director tirou uma folha de papel dobrada do bolso do peito do casaco e entregou-a a Delaroche. Este desdobrou-a e deparou-se com um esboço compósito da sua própria cara. Estava extraordinariamente parecido; era evidente que tinha sido produzido por um computador sofisticado.

— Pensava que eles achavam que eu estava morto.

— Também eu, mas é evidente que agora partem do princípio de que estás bem vivo — atirou o Director, fazendo uma pausa para acender um cigarro. — Tu não deste nenhum tiro na cara do Ahmed Hussein, pois não?

Delaroche abanou a cabeça lentamente e tocou com o indicador no peito. Possuía uma única vaidade profissional — ao longo dos anos, matara a maioria das suas vítimas com três tiros na cara. Supunha que o fazia porque queria que os inimigos soubessem da sua existência. Delaroche tinha apenas duas coisas na vida, a sua arte e o seu ofício. Não assinava os quadros por razões de segurança, e aqueles que vendia eram vendidos anonimamente. Tinha preferido deixar uma assinatura nos assassínios.

— Quem é que está por trás disto? — perguntou Delaroche.

— O teu velho amigo, o Michael Osbourne.

— O Osbourne? Pensei que se tivesse reformado.

— Foram buscá-lo recentemente para chefiar um destacamento especial da CIA dedicado à Irlanda do Norte. Parece que ele também possui alguns conhecimentos nessa área.

Delaroche devolveu o esboço ao Director.

— E o que é que tem em mente?

— Parece-me que temos duas opções. Se não fizermos nada, lamento dizê-lo, mas a tua capacidade para trabalhar fica seriamente prejudicada. Se não podes viajar, não podes trabalhar. E, se a tua cara é conhecida pelos polícias do mundo inteiro, não podes viajar.

— E a opção número dois?

— Damos-te uma nova cara e um novo sítio para viver. Delaroche contemplou o mar. Sabia que não tinha outra hipótese a não ser passar por uma cirurgia plástica e alterar a aparência. Se não pudesse trabalhar, o Director acabaria com a relação deles. Perderia a protecção da Sociedade e perderia a capacidade de poder ganhar a vida. Teria de passar o resto da vida a olhar por cima do ombro, a perguntar-se em que dia os inimigos o viriam apanhar. Delaroche, mais do que tudo, queria segurança, e isso significava aceitar a proposta do Director.

— E tem alguém que possa fazer o trabalho?

— Um francês chamado Maurice Leroux.

— É de confiança?

— Absolutamente — respondeu o Director. — Tu não podes sair da Grécia antes de ser feita a operação. Por isso, o Leroux terá de vir cá. Vou arrendar um apartamento em Atenas onde ele poderá fazer o trabalho. Podes recuperar lá até que as cicatrizes tenham sarado.

— Então e a villa?

— Vou mantê-la, por enquanto. Preciso de um espaço para a reunião da Primavera do conselho executivo. E isto vai servir lindamente.

Delaroche olhou em redor. A casa isolada na parte norte de Míconos tinha-lhe fornecido tudo aquilo de que precisava: privacidade, segurança, temas excelentes para as suas obras, um terreno estimulante para andar de bicicleta. Não queria abandoná-la — tal como não quisera abandonar a sua última casa, na costa da Bretanha, em França —, mas não havia escolha.

— Vamos ter de te arranjar um sítio novo para viver — disse o Director. — Tens alguma preferência?

Delaroche pensou durante um momento.

— Amesterdão.

— Falas holandês?

— Não muito, mas não vai levar muito tempo.

— Muito bem — rematou o Director. — Que seja Amesterdão.

Stavros, o agente imobiliário, providenciou um caseiro. Delaroche informou-o de que iria estar fora durante bastante tempo, mas que um amigo poderia vir a utilizar a villa de vez em quando. Stavros ofe-feceu-se para levá-lo até à taberna para uma refeição de despedida; Delaroche recusou educadamente.

Passou o último dia em Míconos a pintar: a praça em Ano Mera, o terraço da villa, os rochedos em Linos. Trabalhou do raiar do Sol ao anoitecer, até a mão direita, a mão que tinha sido ferida, lhe começar a doer.

Ficou sentado no terraço a beber vinho até o pôr do Sol pintar a villa caiada de branco com um tom de siena natural que Delaroche nunca poderia ter esperanças de reproduzir na tela.

Foi para dentro de casa e acendeu vários troncos na lareira. A seguir, percorreu a villa, divisão por divisão, armário por armário, gaveta por gaveta, e queimou tudo aquilo que indiciasse que ele alguma vez tinha existido.

— É uma pena que tenhamos de estragar uma cara tão bonita — disse Maurice Leroux no dia seguinte.

Estavam sentados diante de um espelho grande e ofuscantemente iluminado, no apartamento em Atenas que o Director tinha arrendado para a operação e posterior recuperação de Delaroche.

Leroux prosseguiu, sondando a maçã do rosto de Delaroche delicadamente com a ponta do seu indicador fino.

— O senhor não é francês — declarou solenemente, como se acreditasse que isso pudesse ser uma notícia dura para um conterrâneo francês. — Uma pessoa aprende bastantes coisas sobre etnia e linhagem nesta actividade. Eu diria que o senhor é eslavo ou talvez até mesmo russo.

Delaroche não disse nada enquanto ele prosseguia com a sua palestra.

— Consigo ver isso aqui, nas maçãs do rosto largas, na testa plana e na linha angulosa do maxilar. E veja bem isto, veja só os seus olhos. São praticamente em forma de amêndoa e de um azul brilhante. Não, não, o senhor pode ter um nome francês, mas parece-me bem que ha sangue eslavo a correr-lhe nas veias. Mas um sangue eslavo muito requintado.

Delaroche olhou para o reflexo de Leroux no espelho. Era um homem fraco com um nariz grande, um queixo metido para dentro e uma peruca ridícula que era demasiado preta. Estava a tocar outra vez na cara de Delaroche. Tinha as mãos de uma velha — pálidas, macias, com veias azuis e grossas a sobressaírem —, mas tresandavam ao aftershave de um homem novo.

— Às vezes, é possível tornar um homem mais atraente através da cirurgia plástica. Operei um palestiniano há uns anos, um homem chamado Muhammad Awad.

Delaroche estremeceu com a menção do nome de Awad. Leroux tinha cometido o pecado supremo para um homem no seu ramo ao revelar a identidade de um cliente anterior.

— Ele agora está morto, mas estava bastante bonito quando eu acabei de o retocar — continuou Leroux. — No seu caso, acho que vai acontecer o contrário. Lamento dizê-lo, mas vamos ser obrigados a torná-lo menos atraente de maneira a lhe alterarmos a aparência. Está resignado com essa perspectiva, monsieur?

Leroux era um homem feio para quem a aparência importava bastante. Delaroche era um homem atraente para quem a aparência importava muito pouco. Sabia que havia mulheres que o achavam atraente — lindo, em certos casos —, mas nunca tinha dado grande importância ao seu aspecto. Estava apenas preocupado com uma coisa. A sua cara tinha-se tornado uma ameaça e iria lidar com isso da mesma maneira que lidava com todas as ameaças — eliminando-a.

— Faça o que tiver de fazer — disse Delaroche.

— Muito bem — respondeu Leroux. — O senhor tem um rosto de ângulos e arestas definidas. Esses ângulos vão ser transformados em curvas e as arestas vão ficar menos definidas. Pretendo cortar-lhe uma parte das maçãs do rosto para as tornar menos marcadas e mais redondas. Vou injectar-lhe colagénio no tecido das bochechas para tornar-lhe a cara mais pesada. O senhor tem um queixo muito fino. vou torná-lo mais quadrado e grosso. O seu nariz é uma obra-prima, mas receio bem que vá ter de desaparecer. Vou achatá-lo e torná-lo mais largo entre os olhos. Quanto aos olhos propriamente ditos, não ha nada que eu possa fazer, tirando mudar-lhes a cor com lentes de contacto.

— E isso tudo vai funcionar? — perguntou Delaroche.

— Quando eu tiver terminado, nem sequer o senhor reconhecerá a sua cara. — Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, perguntou: Tem a certeza de que quer avançar com isto?

Delaroche anuiu com a cabeça.

— Muito bem — disse Leroux. — Mas sinto-me um bocadinho como aquele idiota que deu umas marteladas na Pietà.

Tirou uma caneta do bolso e começou a fazer marcas na cara de Delaroche.


Capítulo 21

LONDRES

 

Preston McDaniels era um funcionário de carreira dos Negócios Estrangeiros ligado à secção das relações públicas da embaixada americana em Londres. Tinha quarenta e cinco anos, era delgado e de aspecto agradável, ainda que não fosse atraente em termos convencionais. E era também um solteirão perpétuo que tinha namorado com poucas mulheres, algo que levara a uma persistente especulação por parte dos colegas de que era homossexual. Mas Preston McDaniels não era homossexual; simplesmente, nunca tinha sido bem-sucedido com as mulheres. Até há pouco tempo.

Eram seis da tarde e McDaniels estava a guardar as suas coisas e a arrumar o seu pequeno gabinete. Ficou parado diante da janela e contemplou a Grosvenor Square.

Tinha lutado muito para chegar a Londres depois de anos de colocações brutais em sítios como Lagos, Cidade do México, Cairo e Islamabad. Nunca fora tão feliz. Adorava o teatro, os museus, as compras, os locais interessantes onde ir ao fim-de-semana. Tinha um apartamento chique em South Kensington e ia todas as manhãs para o emprego de metro. O seu trabalho continuava a ser bastante entediante — emitia comunicados de imprensa rotineiros, preparava resumos diários da imprensa britânica em relação as questões de interesse para o embaixador e coordenava a cobertura jornalística dos acontecimentos públicos que envolviam o embaixador —? mas o facto de estar a viver em Londres fazia, de alguma forma, com que tudo parecesse entusiasmante.

Pegou num monte de dossiês que se encontravam na secretária e guardou-os na pasta de couro. Tirou o impermeável do cabide por trás da porta e saiu do gabinete. Parou na casa de banho e examinou-se ao espelho.

Por vezes, perguntava-se o que veria ela nele. Tentou arranjar o cabelo de maneira a esconder o sítio em que já estava careca, mas conseguiu apenas piorar as coisas.

Ela dizia que gostava de homens que começavam a ficar carecas, dizia que tinham um ar mais inteligente, mais maduro. Ela é muito nova para mim, pensava ele, nova e demasiado bonita. Mas não era capaz de resistir. Pela primeira vez na vida, encontrava-se numa relação sexual excitante. Não podia parar agora.

Lá fora, estava a chover e a noite tinha caído sobre a Grosvenor Square. Abriu um guarda-chuva para se proteger e foi avançando com atenção pelos passeios apinhados, em direcção ao restaurante em Park Lane. Parou à porta do restaurante e ficou a observá-la pela janela por um momento. Era alta e elegante, com cabelo preto volumoso, um rosto oval e olhos cinzentos. A blusa branca não conseguia esconder-lhe os seios grandes e arredondados. Era uma amante maravilhosa; parecia conhecer todas as fantasias dele. Todas as tardes, no emprego, ficava a olhar especado para o relógio, antecipando o momento em que a iria poder ver novamente.

McDaniels entrou no restaurante e sentou-se numa mesa do bar. Quando ela o avistou, piscou-lhe o olho e, mexendo silenciosamente a boca, disse: "Já vou aí ter."

Trouxe-lhe um copo de vinho branco passado um instante. Ele tocou-lhe na mão quando ela pousou o copo na mesa.

— Tive imensas saudades tuas, querida.

— Estava a ver que nunca mais vinhas — respondeu ela. — Mas não posso falar muito tempo. O Ricardo anda completamente psicótico esta noite. Se me vê a conversar contigo, despede-me.

— Só estás a ser simpática para um cliente habitual. Ela sorriu sedutoramente e disse:

— Muito simpática.

— Preciso de te ver.

— Saio às dez.

— Não consigo esperar tanto tempo.

— Lamento, mas não tens outra hipótese.

Piscou-lhe o olho e afastou-se. McDaniels bebeu o vinho e ficou observá-la enquanto ela ia de mesa em mesa, apontando pedidos, trazendo comida e interagindo com os clientes. Era o tipo de mulher em que os homens reparavam. Demasiado atraente e demasiado talentosa para andar a servir à mesa. Ele sabia que ela acabaria por encontrar o seu lugar no mundo e que nessa altura o iria deixar.

McDaniels terminou o vinho, deixou uma nota de dez libras em cima da mesa e foi-se embora. Deu-se conta de que era demasiado dinheiro por um único copo de vinho.

"Vai ficar a pensar que eu acho que ela é uma puta", pensou. Pôs a hipótese de voltar a entrar e deixar menos dinheiro, mas sabia que isso iria parecer ainda mais estranho. Afastou-se, a pensar que se ela alguma vez o deixasse ele era bem capaz de se matar.

McDaniels demorou a voltar para casa. A chuva acalmou, pelo que foi a pé, desfrutando da cidade e da sensação de levitação provocada pelo vinho e por ter passado alguns minutos, mesmo que poucos, com Rachel. Nunca tinha sentido nada parecido com uma obsessão, mas sabia que só podia ser qualquer coisa do género. Aquilo estava a começar a afectar-lhe o trabalho. Dormitava durante as reuniões, esquecia-se do que estava a dizer a meio de uma frase. As pessoas começavam a falar, a fazer perguntas.

Mas a verdade é que ele não se aportava. Tinha vivido a vida inteira sem o amor de uma mulher. Ia desfrutar dessa sensação enquanto durasse.

Jantou num pub logo a seguir à Brompton Road. Leu os jornais e, durante alguns minutos, Rachel foi capaz de não se intrometer nos seus pensamentos. Mas, passado um bocado, lá estava ela outra vez, como um agradável trecho de música a girar-lhe na cabeça. Imaginou-a na cama, com a boca aberta de prazer e os olhos fechados.

A seguir, as fantasias tontas tomaram conta dele: a cerimónia de casamento numa igreja no campo inglês, o chalé em Cotswolds, os filhos. Era uma imagem ridícula, mas deleitou-se com aquela ideia. Tinha-se apaixonado perdidamente, mas Rachel não parecia ser uma rapariga casadoira. Queria escrever. Prezava a sua liberdade — liberdade intelectual e liberdade sexual. Assim que lhe falasse em casamento, o mais certo era ela pôr-se a milhas o mais depressa possível.

McDaniels foi percorrendo lentamente as sossegadas ruas secundárias de South Kensington. Tinha um agradável apartamento de dois quartos, no primeiro andar de uma moradia georgiana. Entrou e passou em revista o correio da tarde. Tomou um duche prolongado e mudou de roupa, vestindo umas calças cor de caqui e um pulôver de algodão.

Servia-se do quarto vago como escritório. Viu as Nine o'Clock News na televisão enquanto ia analisando uma pilha de documentos que trouxera do trabalho. O embaixador Cannon iria ter um dia atarefado: uma reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros, um almoço formal com um grupo de dirigentes empresariais britânicos, uma entrevista com um repórter do The Times. Quando terminou, colocou os documentos num dossiê em papel manilha e voltou a guardá-lo na pasta.

Pouco antes das dez e meia, o intercomunicador tocou baixinho. McDaniels carregou no botão e perguntou num tom brincalhão:

— Quem é?

— Sou eu, querido — respondeu ela. — Estavas à espera de uma das tuas outras amantes?

Era um joguinho que faziam: brincavam acerca de outros amantes, fingiam ter ciúmes. Era espantoso como a relação deles tinha progredido tão rapidamente.

— Tu és a única mulher que eu tive em toda a minha vida.

— Mentiroso.

— Desliga e eu deixo-te entrar.

Alisou o cabelo enquanto esperava que ela chegasse. Ouviu o som de passos do lado de fora, no corredor, mas não queria dar a ideia de estar demasiado ansioso por vê-la e por isso esperou que ela batesse. Quando abriu a porta, ela abraçou-o e beijou-o na boca. Os lábios abriram-se e a sua língua de seda enfiou-se por cima da dele. Ela afastou-se ligeiramente e disse:

— Estive a noite toda à espera de fazer isto. Preston McDaniels sorriu.

— Como é que eu tive a sorte de encontrar alguém como tu?

— Eu é que sou a sortuda.

— Posso arranjar-te alguma coisa para beber?

— Na verdade, estou com um grave problema e tu és o único que me pode ajudar.

Pegou-lhe na mão e levou-o para o quarto, desabotoando a blusa enquanto ia andando. Empurrou-o para o fundo da cama e encostou a cara dele contra os seus seios.

— Oh, meu Deus — gemeu ele.

— Depressa, querido — disse ela. — Por favor, despacha-te.

Rebecca Wells acordou às três da manhã. Deixou-se ficar deitada, sem se mexer, durante vários minutos, a ouvir a respiração de McDaniels. Ele tinha um sono pesado por natureza e tinha feito amor com ela duas vezes nessa noite. Sentou-se na cama e ergueu-se com todo o cuidado, atravessando depois o quarto. A blusa estava caída no chão, onde a tinha deixado. Pegou nela, saiu do quarto e fechou a porta.

Vestiu a blusa ao atravessar o corredor, entrando no escritório. Fechou também essa porta e sentou-se à secretária. A pasta estava no chão, por fechar. Abriu-a e folheou o que lá estava dentro até descobrir aquilo que procurava: o dossiê com os pormenores da agenda do embaixador Douglas Cannon para o dia seguinte.

Pegou num bloco de notas que estava em cima da secretária e começou a escrevinhar furiosamente. Estava ali tudo — as horas de cada reunião, o método de transporte, o percurso. Acabou de apontar a agenda e passou rapidamente em revista o resto dos documentos para ver se havia alguma coisa interessante. Depois de terminar, voltou a guardar o dossiê no lugar que lhe cabia na pasta e desligou a luz.

Passou sorrateiramente para o corredor e entrou na casa de banho. Fechou a porta e acendeu a luz. Atirou água à cara e pôs-se a olhar fixamente para o seu reflexo no espelho.

Tinha jurado a si própria quando o IRA matou Ronnie: nunca voltaria a casar e nunca levaria outro homem para a cama de ambos.

Achara que seria um juramento difícil de cumprir, mas o ódio que lhe encheu o coração após a morte dele não deixou espaço para qualquer outro sentimento, em especial o amor por outro homem. Alguns homens de Portadown tinham tentado andar atrás dela, mas rechaçara-os a todos. E, dentro da brigada, os homens sabiam bem que não valia a pena perderem o seu tempo.

Pensou em Preston McDaniels dentro dela e quis vomitar. Disse a si mesma que era por uma causa importante, o futuro do estilo de vida protestante na Irlanda do Norte.

De certa maneira, quase sentia pena de McDaniels. Era um homem decente, bom e gentil, mas tinha caído no truque mais velho do mundo — a armadilha da sedução. Naquela noite, tinha-lhe dito que estava apaixonado por ela. Rebecca tinha medo do que iria acontecer a McDaniels quando, inevitavelmente, viesse a descobrir que ela o traíra.

Bebeu um copo de água e puxou o autoclismo; a seguir, apagou a luz e enfiou-se outra vez na cama.

— Estava a ver que nunca mais voltavas — disse McDaniels baixinho.

Ela quase gritou, mas conseguiu manter a compostura.

— Estava só com um bocadinho de sede.

— E também trouxeste para mim?

— Desculpa, querido.

— Por acaso, há outra coisa que eu quero. — Rebolou para cima dela. — A ti — disse ele.

— E consegues? — Enfiou-lhe a mão na virilha. — Bem, bem, bem — disse ela. — Temos de fazer qualquer coisa em relação a isso.

Ele penetrou-a bem fundo.

Rebecca Wells fechou os olhos e pensou no marido morto.


Capítulo 22

MONTANHAS SPERRIN, IRLANDA DO NORTE

 

Pouco tempo depois de a Irlanda do Norte ter explodido numa onda de violência em 1969, os serviços secretos britânicos decidiram que a melhor maneira de combater o terrorismo era seguir os movimentos de terroristas específicos. Membros conhecidos de organizações paramilitares são habitualmente seguidos e vigiados pelos serviços secretos britânicos e pela E4, a unidade especial de vigilância da Polícia Real do Ulster. Os avistamentos e as deslocações são introduzidos num computador do quartel-general dos serviços secretos do exército, em Belfast. Se um terrorista desaparecer subitamente de uma lista de vigilância, o computador lança de forma automática um alerta vermelho e as forças de segurança partem do princípio de que ele provavelmente estará envolvido numa operação.

Uma vigilância dessa magnitude requer milhares de agentes e tecnologia avançada. Os locais mais problemáticos, como a Falis Road, em Belfast, são vigiados por uma enorme quantidade de câmaras de vídeo. O exército possui um posto permanente no cimo dos imponentes Divis Flats. Durante o dia, os soldados vasculham as ruas com binóculos de alta potência, à procura de membros conhecidos do IRA; a noite, passam revista com óculos de visão nocturna. Os serviços de segurança colocam sinalizadores nos carros; colocam escutas e mini-câmaras de vídeo nas casas, pubs, automóveis e barracões de feno; controlam os telefones. E até já têm colocado escutas em armas específicas para lhes seguirem os movimentos ao longo da região. À noite, aviões sofisticados dos serviços secretos patrulham os céus, à procura de actividade humana onde não deveria haver nenhuma. Pequenos aviões não tripulados realizam operações de reconhecimento a baixa altitude. Há sensores escondidos nas árvores para detectar movimentos humanos.

Porém, apesar de todo o equipamento de alta tecnologia, muito deste controlo tem de ser feito à moda antiga, através da vigilância homem a homem. É um trabalho perigoso, por vezes fatal. Agentes clandestinos patrulham regularmente a zona de Belfast à volta da Falis Road. Escondem-se em sótãos e telhados durante dias, sobrevivendo graças a rações de campanha enquanto fotografam as suas presas. No campo, escondem-se em buracos, por trás de arbustos, em cima de árvores. No léxico da espionagem na Irlanda do Norte, essa prática é conhecida como "entrincheiramento". E foi esse o método escolhido para vigiar a casa de campo em ruínas à saída da aldeia de Cranagh, nas montanhas Sperrin.

Graham Seymour chegou de Londres ao sexto dia da operação. Como posto permanente, tinham escolhido uma pequena mata de tojo, rodeada por um conjunto de faias altas, numa encosta a cerca de oitocentos metros da casa. Um par de agentes da E4 tratava do equipamento técnico: teleobjectivas e máquinas fotográficas com infravermelhos, microfones direccionais de longo alcance. Trabalhavam tão silenciosamente como jovens acólitos e pareciam ser igualmente novos. Em tom de brincadeira, apresentaram-se como Marks e Sparks. Ao longo dos anos, o IRA emboscara e matara dezenas de agentes secretos em operações de vigilância; por isso, apesar de se suspeitar que os alvos eram lealistas, não quiseram correr quaisquer riscos. Dois comandos da unidade de elite dos Serviços Aéreos Especiais, a SAS, formavam um perímetro protector em redor de Graham e de Marks e Sparks. Traziam equipamento de camuflagem e tinham pintado a cara de preto. Por duas vezes, Graham quase tropeçou neles quando ia aliviar-se no tojo. Desejava ardentemente um cigarro, mas não era permitido fumar. E, após três dias sem comer mais nada a não ser porcarias especiais com muitas calorias, o desespero era tal, que ate ansiava pelos cozinhados terríveis de Helen. À noite, quando ia dormir na encosta húmida e gelada, rogava pragas silenciosas a Michael Osbourne.

Era evidente que havia qualquer coisa que não batia certo na casa de campo, no pequeno vale estreito por baixo deles. Dois irmãos chamados Dalton eram os proprietários.

Cuidavam de um pequeno rebanho de.ovelhas escanzeladas e algumas dúzias de galinhas. Todos os dias, uma vez de manhã e outra ao anoitecer, percorriam lentamente os limites da propriedade, como se procurassem indícios de problemas.

Receberam a sua primeira visita na décima noite.

Chegou num pequeno Nissan. Marks e Sparks começaram a disparar rapidamente as máquinas fotográficas com infravermelhos, ao passo que Graham espreitava em direcção à casa pelos binóculos de visão nocturna. Viu um homem alto, de constituição robusta e com um punhado de cabelos desgrenhados, a transportar um saco de ténis ao ombro direito.

— O que é que achas? — perguntou Graham a ninguém em especial.

— Ele está a tentar fazer com que aquilo pareça leve — respondeu Marks —, mas a alça do ombro está retesada.

— De certeza que não leva raquetes e bolas dentro daquela coisa — confirmou Sparks.

Graham pegou num pequeno rádio e contactou a esquadra da RUC em Cookstown, a vinte e cinco quilómetros a sudeste dali.

— Temos companhia. Aguardem novas instruções.

O visitante permaneceu dentro da casa de campo durante vinte minutos. Marks e Sparks tentaram escutar o que se passava dentro de casa, mas tudo o que conseguiram ouvir foi Bach a sair aos berros de uma aparelhagem com um som metálico.

— Reconheces a composição?

— Concerto Número Cinco em BJMaior- respondeu Sparks.

— Encantador, não é?

— Sem dúvida.

Graham estava a espreitar para o vale com binóculos equipados com infravermelhos.

— Ele está a sair — avisou.

— Uma estadia curta para estas horas da noite — comentou Marks.

— Se calhar, teve de ir aliviar-se — juntou Sparks.

— Cá para mim, foi provavelmente aliviar-se de umas quantas armas — respondeu Marks. — Aquele saco tem um ar um bocadinho mais leve agora, não te parece?

Graham pegou outra vez no rádio e alertou Cookstown.

— O alvo está a dirigir-se para leste, a caminho de Mount Hamilton. Façam com que pareça uma operação stop de rotina. Ponham a circular na rádio a notícia de que há um alerta de segurança na zona. Enviem para lá uns quantos tipos para que ele não fique com a ideia de que o estamos a destacar. Eu já aí apareço daqui a uns minutos.

O homem que ia no Nissan era Gavin Spencer, o chefe de operações da Brigada para a Libertação do Ulster, e o saco de ténis — agora vazio e colocado no banco ao lado dele — levara lá dentro um carregamento de metralhadoras Uzi de fabrico israelita, provenientes de um traficante de armas do Médio Oriente. As armas tinham como destino serem utilizadas para o assassínio do embaixador Douglas Cannon. Por enquanto, estavam escondidas no interior de uma parede de pedra na cave da casa de campo.

Gavin Spencer tinha seleccionado a sua equipa e informara-os da missão. Rebecca Wells tinha obtido acesso à agenda do embaixador em Londres e andava a enviar relatórios regularmente. Tudo o que precisavam agora era do momento certo, do momento em que Cannon estivesse mais vulnerável. Só iriam ter uma oportunidade. Se cometessem algum erro — se falhassem —, os britânicos e os americanos iriam reforçar ainda mais a segurança e eles nunca voltariam a conseguir aproximar-se dele.

Spencer avançou a toda a velocidade pela tortuosa B47, passando pela escurecida aldeia de Mount Hamilton e regressando depois à estrada. Uma onda de alívio percorreu-o.

As armas já não estavam no carro, encontrando-se naquele momento bem seguras dentro das paredes da casa de campo. Se tivessem sido descobertas na sua posse, teria recebido um bilhete só de ida para a prisão de Maze. Carregou no acelerador e o Nissan respondeu, subindo e descendo as lombas da estrada. Ligou o rádio, na esperança de apanhar um pouco de música, mas um boletim informativo na rádio do Ulster chamou-lhe a atenção. Tinha sido declarado um alerta de segurança para as montanhas Sperrin, entre Omagh e Cookstown.

Passados cinco quilómetros, avistou as luzes azuis a piscar de um carro de patrulha da RUC e o volumoso contorno de dois camiões blindados de transporte de tropas.

Um agente da RUC estava parado no meio da estrada, a fazer sinal com a lanterna para Spencer encostar à berma. Spencer parou e desceu o vidro da janela do carro.

— Há um alerta de segurança para esta zona hoje à noite — disse o homem da RUC. — O senhor importa-se que lhe pergunte para onde vai esta noite?

— Para casa, em Portadown — respondeu Spencer.

— E o que é que o traz por aqui?

— Vim visitar um amigo.

— E onde é que está o amigo?

— Em Cranagh.

— Posso ver a sua carta de condução?

Spencer entregou-a. Um segundo carro parou atrás dele. Spencer conseguiu ouvir outro agente a fazer ao condutor as mesmas perguntas que lhe tinham sido feitas a ele. O homem da RUC deu uma vista de olhos à carta e devolveu-a a Spencer.

— Muito bem — disse ele. — Vamos só dar uma olhadela à sua viatura. Importa-se de sair do carro?

Spencer saiu. O homem da RUC entrou no carro e parou-o atrás dos camiões de transporte de tropas. Passado um momento, o segundo carro desapareceu por trás dos camiões.

O condutor era um homem atarracado, de constituição robusta, com cabelo cortado à escovinha e um bigode a ficar grisalho. Parou junto a Spencer, com as mãos nos bolsos do casaco de cabedal.

— Mas para que é que é isto tudo, porra? — perguntou.

— Disseram que há um alerta de segurança.

— Os cabrões do IRA, de certeza absoluta.

— Calculo que sim — respondeu Spencer.

O homem acendeu um cigarro e deu outro a Spencer. Começou a chover. Gavin Spencer pôs-se a fumar e tentou parecer o mais calmo possível enquanto a RUC e o exército lhe viravam o carro do avesso.

Graham Seymour estava parado atrás de um dos camiões do exército enquanto uma equipa de soldados e polícias vasculhava o Nissan. Utilizaram um aparelho portátil para poderem espreitar por baixo dos estofos dos bancos e ver se havia armas lá escondidas. Fizeram testes à procura de resíduos de explosivos. Vasculharam a parte inferior da carroçaria e por baixo do capô. Desaparafusaram os painéis laterais e espreitaram por baixo do forro. Abriram o porta-bagagens e reviraram o que lá estava dentro.

Passados dez minutos, um dos homens da RUC, sem dizer nada, fez sinal a Seymour para se aproximar. Dentro do pneu sobressalente, embrulhados num trapo besuntado de óleo, tinham descoberto alguns documentos com aspecto suspeito.

Graham serviu-se da lanterna do polícia e fê-la incidir sobre os documentos. Folheou-os rapidamente, memorizando o máximo de pormenores de que era capaz, e devolveu-os ao polícia.

— Coloque-os onde os encontrou — ordenou. — Exactamente como os encontrou.

O homem da RUC acenou com a cabeça e fez o que lhe mandaram.

— Escondam um dispositivo de localização no carro e deixem-no ir embora — disse Graham. — E depois ponham-me outra vez em Belfast o mais depressa possível, porra.

Temos um problema bastante sério, receio bem.


Capítulo 23

NOVA IORQUE

PORTADOWN

 

Eram sete da tarde quando Michael Osbourne saiu do posto de Nova Iorque da CIA, no World Trade Center, e fez sinal a um táxi para parar. Já tinham passado praticamente duas semanas desde que regressara de Londres e começava a adaptar-se confortavelmente à rotina da sua nova vida dentro da CIA. Normalmente, trabalhava três dias por semana em Washington e dois em Nova Iorque. A Divisão de Contra-Espionagem estava a terminar o inquérito à morte de Kevin Maguire e Michael mostrava-se convicto de que a sua versão dos acontecimentos iria ser aceite: o IRA já suspeitava de Kevin Maguire antes da viagem de Michael a Belfast e a sua morte, embora lamentável, não tinha sido culpa dele.

O táxi foi avançando vagarosamente até à alta da cidade, no meio de um engarrafamento. Michael lembrou-se da Irlanda do Norte — das luzes ténues de Belfast, no sopé da Black Mountain, do corpo destroçado de Kevin Maguire amarrado a uma cadeira. Baixou o vidro da janela do seu lado e sentiu o ar frio na cara. Às vezes, passava alguns minutos sem pensar em Maguire, mas à noite, ou quando se encontrava sozinho, o seu rosto despedaçado intrometia-se sempre. Michael estava ansioso por que as informações que Maguire e Devlin lhe tinham fornecido dessem frutos; se a Brigada para a Libertação do Ulster fosse destruída, a morte de Maguire não teria sido em vão.

O taxista era um árabe com a barba não aparada de um muçulmano devoto. Michael indicou-lhe uma morada na Madison Avenue, a cinco quarteirões do apartamento. Pagou a corrida e percorreu os passeios apinhados, parando para contemplar algumas montras de lojas, verificando constantemente se estava a ser seguido. Era aquele medo enervante de que um dia um velho inimigo lhe apareceria para se vingar. Lembrou-se do pai, a vasculhar o carro à procura de bombas, a desmontar telefones e a verificar se havia sinais de que o estivessem a vigiar, até ao dia em que morreu. O secretismo era como uma doença, a ansiedade, como um velho amigo de confiança. Michael revelava-se resignado com o facto de que isso nunca o abandonaria — o assassino chamado Outubro encarregara-se disso.

Seguiu para oeste, até à Quinta Avenida, e depois virou à direita e dirigiu-se para a alta da cidade. A actividade da espionagem exigia uma paciência assinalável, mas Michael começava a ficar cada vez mais inquieto em relação a Outubro. Todas as manhãs, sondava os telegramas, na esperança de apanhar algum vislumbre dele numa lista de vigilância — uma aparição num aeroporto ou num terminal ferroviário —, mas não tinha aparecido nada. À medida que o tempo fosse passando, o rasto ficaria cada vez mais difícil de seguir.

Michael entrou no seu prédio e subiu no elevador até ao apartamento. Elizabeth já estava em casa. Deu-lhe um beijo na face e pôs-lhe um copo de vinho branco nas mãos.

— A tua cara está a começar a parecer quase normal — disse ela.

— E isso é uma coisa boa ou má? Ela deu-lhe um beijo nos lábios.

— Uma coisa boa, sem dúvida. Como é que te sentes? Michael olhou para ela com perplexidade.

— Mas que raio é que te deu?

— Nada, querido, só estou feliz por te ver.

— E também é bom ver-te a ti. Como é que foi o teu dia?

— Não foi mau — respondeu ela. — Passei o dia a preparar a minha testemunha principal para ir a tribunal.

— E ele vai aguentar-se?

— Por acaso, estou com medo que dêem cabo dele durante o contra-interrogatório.

— As crianças ainda estão acordadas?

— Acabaram de adormecer.

— Quero vê-las.

— Michael, se as acordares, juro por Deus que...

Michael entrou no quarto das crianças e debruçou-se sobre os berços. As crianças dormiam viradas uma para a outra, lado a lado, para que pudessem ver-se mutuamente através das ripas dos berços. Ele ficou ali parado durante bastante tempo, a ouvi-las a respirar baixinho. Por alguns minutos, sentiu-se em paz, uma sensação de satisfação que há muito não experimentava. A seguir, a ansiedade voltou a apanhá-lo de surpresa, o medo de que os seus inimigos pudessem fazer-lhe mal ou aos filhos.

Ouviu o telefone a tocar. Beijou cada um deles e saiu do quarto.

Na sala de estar, Elizabeth estendeu-lhe o telefone.

— É o Adrian — disse ela. Michael tirou-lhe o telefone da mão.

— Sim? — Ficou a ouvir durante alguns minutos, sem falar, e depois murmurou: — Meu Deus.

Desligou o telefone.

— O que é que aconteceu? — perguntou Elizabeth.

— Tenho de ir a Londres.

— Quando?

Michael viu que horas eram no relógio.

— Ainda consigo apanhar um voo hoje à noite se me despachar. Elizabeth olhou atentamente para ele.

— Michael, eu nunca te vi assim. O que é que aconteceu?

Ao início da manhã do dia seguinte, enquanto o jacto da British Airways que transportava Michael Osbourne se aproximava do Aeroporto de Heathrow, Kyle Blake e Gavin Sp encer iam a andar lado a lado pela Market High Street, em Portadown. A leste, o céu começava a ficar cinzento-azulado com o amanhecer que se aproximava. Na rua, os candeeiros ainda estavam ligados. O ar cheirava a terra de cultivo e a pão a cozer no forno. Spencer caminhava com a passada larga e ágil de um homem com poucas preocupações, o que não era o caso naquela manhã. Kyle Blake, bastante mais pequeno e vários centímetros mais estreito, possuía a economia de movimentos de um brinquedo a pilhas. Spencer falou durante muito tempo, afastando constantemente a madeixa de cabelo preto e espesso que lhe caía sobre a testa. Blake ouvia com grande concentração, acendendo um cigarro atrás de outro.

— Talvez os teus olhos te andem a pregar partidas — disse Kyle Blake, falando por fim. — Talvez eles estivessem a dizer a verdade. Talvez tenha sido mesmo um alerta de segurança normal.

— Fizeram uma revista completa ao carro — respondeu Spencer. — E demoraram bastante tempo a fazê-lo, foda-se.

— E falta alguma coisa? Spencer abanou a cabeça.

— E está lá alguma coisa que não devesse estar?

— Vasculhei a porra do carro de uma ponta à outra. Não descobri nada, mas isso não quer dizer muita coisa. Aqueles aparelhos de escuta são tão pequenos, que eles podiam pôr um dentro do meu bolso e eu nem perceberia.

Kyle caminhou em silêncio durante um momento. Gavin Spencer era um homem inteligente e um chefe de operações talentoso. Não era o tipo de pessoa que fosse ver uma ameaça onde não existia nenhuma.

— Se tiveres razão, se eles andavam atrás de ti, isso quer dizer que andam a vigiar a casa de campo.

— Sim — respondeu Spencer. — E eu acabei de esconder la o primeiro carregamento de Uzi. Preciso dessas metralhadoras para tratar do embaixador. Sou capaz de matar o Eamonn Dillon com uma pistola, mas, se vou assassinar um embaixador americano, preciso de um poder de fogo bem mais considerável.

— E qual é o ponto de situação da equipa?

— O último homem parte hoje à noite para Inglaterra noferry para Liverpool. Amanhã, ao final da tarde, terei quatro dos meus melhores rapazes em Londres, à espera da ordem para atacar. Mas eu preciso daquelas armas, Kyle.

— Então, vamos buscar as armas.

— Mas a casa está sob vigilância.

— Então, eliminamos os vigias — respondeu Blake.

— Provavelmente, esses homens estão protegidos pela SAS. Quanto a ti, não sei, mas eu não estou com vontade de me meter com a porra da SAS neste preciso momento.

— Sabemos que eles andam algures por ali. Tudo o que precisamos de fazer é descobri-los — afirmou Blake, parando de andar e fitando Spencer com firmeza. — Além disso, se o raio do IRA é capaz de enfrentar a SAS, nós também somos.

— Eles são soldados britânicos, Kyle. E nós já fomos soldados britânicos, lembras-te?

— Mas já não estamos do mesmo lado — respondeu Blake rispi-damente. — Se os britânicos querem fazer joguinhos, nós vamos alinhar na porra dos joguinhos.


Capítulo 24

LONDRES

 

— Parece que vocês têm uma fuga de informação algures neste edifício — disse Graham Seymour.

Estavam sentados à mesa, num cubículo de vidro insonorizado na secção da CIA na embaixada: Michael, Graham, Wheaton e Douglas. Quando Graham falou, Wheaton retraiu-se, como se tivesse sido ameaçado com um murro, e começou a apertar a sua bola de ténis. Era um homem permanentemente preparado para ficar ofendido e havia algo no tom de Graham — no seu olhar insolente e aborrecido — de que Wheaton nunca gostara.

— Porque é que tens tanta certeza de que a fuga de informação veio deste edifício? — perguntou ele. — Se calhar, a fuga veio do vosso lado. A Divisão Especial fornece protecção ao embaixador e nós damos-lhes a agenda com vários dias de antecedência.

— Suponho que tudo seja possível — respondeu Graham.

— Porque é que não fotografaste os documentos? — perguntou Wheaton.

— Porque não houve tempo — respondeu Graham. — Decidi que ele era mais valioso para nós no terreno do que preso. Demos uma vista de olhos, colocámos um localizador no carro e deixámo-lo ir.

— E quem é ele? — perguntou Michael.

Graham abriu uma pasta com código de segurança e distribuiu diversas fotografias de um homem grande com uma farta cabeleira preta — uma foto de cadastro e várias fotografias de vigilância cheias de grão. — O nome dele é Gavin Spencer — disse Graham. — Em tempos, foi um homem de grande importância na Força de Voluntários do Ulster. Foi detido uma vez por posse ilegal de armas, mas o processo foi arquivado. É da linha dura. Abandonou a UVF no início do processo de paz por se opor frontalmente a ele.

— Onde é que ele anda agora? — perguntou Wheaton.

— Vive em Portadown. Foi para lá depois de o termos interceptado. Douglas Cannon perguntou:

— E o que é que fazemos agora, meus senhores?

— Descobrimos a origem da fuga de informação — respondeu Wheaton. — Determinamos se o responsável está a cometer um acto de traição ou se há mais alguma coisa envolvida.

E depois encerramos a questão.

Michael levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do pequeno cubículo.

— Quantas pessoas na embaixada sabem da agenda do embaixador com antecedência? — perguntou, por fim.

— Depende do dia, mas normalmente pelo menos vinte — respondeu Wheaton.

— E quantas delas são homens?

— Pouco mais de metade — afirmou Wheaton, com a irritação a invadir-lhe a voz. — Porquê?

— Por causa de uma coisa que o Kevin Maguire me disse antes de morrer. Disse que, quando os serviços de informação do IRA investigaram o assassínio do Eamonn Dillon, chegaram à conclusão de que tinha havido uma fuga de informação a partir da sede do Sinn Fein. Uma rapariga, uma secretária, tinha ficado amiga de uma mulher protestante e acabado por lhe revelar inadvertidamente pormenores da agenda do Dillon.

— E como era a rapariga? — perguntou Graham.

— Trinta e poucos anos, atraente, cabelo preto, pele clara, olhos cinzentos.

Um sorriso invadiu a cara de Michael.

Graham disse:

— Já vi essa expressão antes. Em que estás a pensar, Michael?

— Que da adversidade nasce a oportunidade.

Eram cinco e meia da tarde quando o telefone da secretária de Preston McDaniels ronronou suavemente. Por um instante, ponderou não o atender; estava ansioso por chegar ao restaurante para poder ver Rachel. O atendedor de chamadas responderia por si e ele poderia tratar do assunto no dia seguinte, logo pela manhãzinha. Mas tinha havido zunzuns de rumores na embaixada durante o dia inteiro — rumores acerca de uma espécie de problema de segurança, de o pessoal estar a ser obrigado a comparecer perante um painel de interrogadores no último andar. McDaniels sabia que os sabujos dos media tinham forma de apanhar o cheiro dos rumores desse género.

Relutantemente, esticou o braço e levantou o auscultador do telefone do descanso.

— Fala McDaniels.

— Daqui é David Wheaton — disse a voz do outro lado da linha. Não se incomodou em identificar-se mais do que isso; toda a gente na embaixada sabia que Wheaton era o chefe do posto de Londres da CIA.

— Gostava de saber se podemos ter uma conversa em privado.

— Por acaso, estava de saída. É alguma coisa que possa esperar até amanhã de manhã?

— É importante. Não se importa de vir cá acima agora mesmo? Wheaton desligou sem esperar por uma resposta. Havia algo no seu tom de voz que deixou McDaniels incomodado.

Nunca tinha gostado de Wheaton, mas sabia que não era prudente contrariá-lo. Saiu do gabinete, atravessou o corredor e subiu pelo elevador.

Quando entrou na sala, encontrou três homens sentados a um dos lados de uma grande mesa rectangular: Wheaton, o genro do embaixador Cannon, Michael Osbourne, e um inglês com um ar aborrecido. Havia um lugar vazio à frente deles. Wheaton indicou-lhe o lugar com a ponta da sua caneta de ouro, sem dizer uma palavra, e McDaniels sentou-se.

— Não vou estar com rodeios — disse Wheaton. — Parece que há uma fuga de informação, algures dentro da embaixada, no que respeita à agenda do senhor embaixador.

Queremos descobrir essa fuga.

— E o que é que isso tem a ver comigo?

— O senhor é uma das pessoas dentro da embaixada que tem conhecimento da agenda do senhor embaixador com antecedência.

— É verdade — retorquiu McDaniels bruscamente. — E, se estão a perguntar-me se violei as regras de confidencialidade, a resposta é um inequívoco não.

— Alguma vez deu uma cópia da agenda do senhor embaixador a alguém de fora da embaixada?

— Claro que não.

— E alguma vez falou dela com um jornalista?

— Quando se trata de algum evento público, sim.

— Alguma vez forneceu pormenores a um jornalista, como por exemplo o percurso que o senhor embaixador poderia tomar para uma reunião ou o método de transporte?

— Claro que não — respondeu novamente McDaniels com brusquidão. — Além do mais, a maioria dos jornalistas não daria um chavo por pormenores desse género.

Michael Osbourne ia folheando um processo.

— O senhor não é casado — disse, levantando os olhos do processo.

— Não, não sou — disse McDaniels. — E porque é que o senhor aqui está?

— Nós é que fazemos as perguntas, se não se importa — disse Wheaton.

— Tem algum relacionamento? — perguntou Michael.

— Por acaso, sim.

— Há quanto tempo andam juntos?

— Há duas semanas.

— E como é que ela se chama?

— Chama-se Rachel. Importam-se de me dizer o que é que isto...

— Rachel quê?

— Rachel Archer.

— E onde é que ela vive?

— Em Earl's Court.

— Alguma vez esteve no apartamento dela?

— Não.

— E ela já esteve alguma vez no seu?

— Isso não é da vossa conta.

— Lamento, mas, se está relacionado com a segurança, é da nossa conta — disse Michael. — Agora, por favor, responda à pergunta, senhor McDaniels. A Rachel Archer já esteve alguma vez no seu apartamento?

— Sim.

— Quantas vezes?

— Várias vezes.

— Quantas vezes?

— Não sei... oito, talvez dez.

— Costuma levar uma cópia da agenda do senhor embaixador para casa?

— Sim, costumo — respondeu McDaniels. — Mas sou muito cuidadoso. Está sempre na minha posse.

— E a Rachel Archer esteve alguma vez no seu apartamento quando o senhor levou uma cópia da agenda do senhor embaixador?

— Sim, esteve.

— E alguma vez lhe mostrou a agenda?

— Não. Já vos disse que nunca fiz isso.

— A Rachel Archer tem trinta e poucos anos, cabelo preto, pele clara e olhos cinzentos?

Preston McDaniels ficou branco.

— Meu Deus! — exclamou. — O que é que eu fiz?

Quando a noite começou a cair, a ideia era de Michael. De início, Wheaton deixou a sua oposição oficialmente registada, mas, no final daquela longa noite — depois das teleconferências com Langley, depois das reuniões tensas com os mandarins do MI5 e do MI6, depois das breves trocas de palavras com Downing Street e com a Casa Branca —, Wheaton já tinha reclamado a ideia como sendo sua.

Havia dois assuntos a resolver. Deveriam fazê-lo? E, se o fizessem, quem comandaria as operações? A primeira pergunta foi respondida com bastante rapidez. A segunda era mais difícil porque envolvia questões de território e, no mundo dos serviços secretos, o território é protegido a todo o custo, muitas vezes melhor do que os segredos. Era um assunto de segurança americano envolvendo o embaixador americano. Mas a Irlanda do Norte era um assunto britânico e a operação decorreria em solo britânico. Depois de uma hora de negociações tensas, as duas partes chegaram a um acordo. Os ingleses forneceriam o talento de rua — os vigias e os artistas da vigilância técnica — e, quando chegasse a hora, forneceriam o músculo. Os americanos orientariam Preston McDaniels e forneceriam o material para a sua pasta — depois de consultarem em pormenor os ingleses, claro.

A luta dentro da CIA também foi dura. O Centro de Contraterrorismo tinha descoberto o caso e Adrian Cárter queria que Michael dirigisse a parte americana da questão.

Wheaton opôs-se determinantemente. Num telegrama azedo enviado para a sede, defendeu que se tratava de uma operação de Londres, necessitando de colaboração próxima dos serviços anfitriões, e que o posto de Londres devia ficar com o caso, não o CTC. Mónica Tyler retirou-se para o seu gabinete, na atmosfera rarefeita do sétimo andar, para ponderar a sua decisão. Wheaton arregimentou antigos amigos e inimigos para a sua causa. E, no fim, ela acabou por escolher Wheaton, argumentando que Michael tinha regressado à agência há pouco tempo, depois de uma longa ausência, e que não se podia esperar que estivesse a cem por cento em termos operacionais.

A operação seria comandada por Wheaton e Michael permaneceria em Londres com um papel secundário.

Preston McDaniels passou a agente operacional naquela noite. Da secretária de Wheaton no posto da CIA, telefonou para o Ristorante Ricardo, em Park Lane, e pediu para falar com Rachel Archer. Uma voz com sotaque italiano informou-o de que ela estava ocupada — "Agora, é a azáfama do jantar, sabe" —, mas McDaniels disse que era urgente e, passado um momento, ela veio ao telefone. A conversa durou precisamente trinta e dois segundos; Michael e Wheaton cronometraram-na para terem a certeza e ouviram-na uma dúzia de vezes, procurando sabe Deus o quê. McDaniels disse que não podia passar por lá para tomar um copo porque ficava a trabalhar até tarde.

A mulher expressou um ligeiro desapontamento, com o som em fundo de pratos a partirem-se e de Ricardo Ferrari a gritar obscenidades em italiano.

McDaniels perguntou-lhe se a podia ver mais tarde. A mulher disse que passaria por casa dele depois do trabalho e desligou o telefone.

A gravação foi transmitida por satélite para Langley e enviada da forma tradicional — por estafeta de mota — para o MI5 e o MI6. Um linguista dos quadros do MI5 concluiu que o sotaque inglês dela era falso e que a mulher era quase de certeza da Irlanda do Norte. Provavelmente, dos arredores de Belfast.

Wheaton não tinha a certeza se confiava ou não em McDaniels. Insistiu na cobertura total, áudio e visual, de todos os seus movimentos. O MI5 aterrou no seu apartamento em South Kensington e colocou câmaras e microfones em todas as divisões. Só o quarto ficou de fora; Michael achou que a cobertura áudio seria suficiente e Wheaton concordou relutantemente. Um par de vigias do MI5, um homem mais velho e uma rapariga bonita, foi enviado para o Ristorante Ricardo. Por sorte, a sua presa atendeu-os.

Recomendou-lhes a especialidade de vitela e eles declararam-na divina. A segunda equipa, por razões de segurança operacional, pediu esparguete à carbonara e galinha milanesa.

Para servir de base operacional, o MI5 garantiu apressadamente um apartamento grande e mobilado em Evelyn Gardens, a uma curta distância do de McDaniels. Michael e Wheaton, quando lá chegaram já tarde nessa noite, foram recebidos com o fedor de cigarros e de caril de takeaway. Na sala de estar, meia dúzia de técnicos preocupados afligia-se com os seus auscultadores e monitores de vídeo. Vigias aborrecidos assistiam a um documentário maçador da BBC sobre os padrões migratórios das baleias-cinzentas, numa televisão com a imagem vacilante. Graham Seymour estava sentado ao piano, tocando baixinho.

O apartamento de McDaniels estava tão cheio de escutas que, quando a mulher conhecida como Rachel Archer chegou, a campainha soou como um alarme de incêndio de hotel.

"Está na hora do espectáculo", anunciou Wheaton, e sentaram-se em redor dos monitores de vídeo — todos excepto Graham, que continuou ao piano, tocando as notas finais de Clair de Lune.

Quaisquer dúvidas que ainda pudessem restar sobre a forma como Preston McDaniels se aguentaria foram postas de lado com o longo beijo que deu à mulher à entrada.

Preparou bebidas para ambos — vinho branco para ela e um copo de uísque muito grande para si — e sentaram-se no sofá da sala de estar, conversando bem à vista de uma das câmaras de vídeo ocultas.

Começaram a beijar-se e, por um momento, Michael temeu que ela fosse fazer amor com ele no sofá, mas McDaniels deteve-a e levou-a para o quarto. Michael achou que havia algo de Sarah nela e pôs-se a pensar se haveria algo de McDaniels em si próprio.

— Precisamos de um nome de código — disse Wheaton, tentando pensar em algo, qualquer coisa, sem ser nos sons que emanavam dos monitores. — Não temos um nome de código.

— O meu pai trabalhou numa operação semelhante durante a Segunda Guerra Mundial — disse Graham, com os dedos a tactearem rápida e levemente as teclas do piano. — O MI5 forneceu material falso a uma espia alemã através de um oficial da marinha americana.

— E qual era o nome de código?

— Penso que era Timbale.

— Timbale — repetiu Wheaton. — Soa bem. Então, que seja Timbale.

— E como é que acabou? — perguntou Michael. Graham parou de tocar e olhou para cima.

— Ganhámos, meu caro.

Foi um técnico do MI5 chamado Rodney que o viu primeiro e acordou o resto da equipa. Wheaton tinha reclamado o único quarto para si. Michael dormiu no sofá; Graham foi adormecendo e acordando continuamente numa poltrona de orelhas demasiado almofadada, como um passageiro agitado num voo transatlântico. Com os olhos pesados, juntaram-se em redor do conjunto de monitores de vídeo e ficaram a ver a mulher sentar-se à secretária do escritório de McDaniels e começar a esvaziar o que lá estava dentro sem fazer barulho.

— Bem, senhoras e senhores, parece que acabámos de descobrir a Brigada para a Libertação do Ulster — disse Wheaton. — Parabéns, Michael. Esta noite pagas o jantar.

Preston McDaniels estava deitado na cama, acordado, de costas para a porta. Tentara dormir mas não tinha conseguido e, por isso, deixou-se estar simplesmente muito quieto, até a ouvir esgueirar-se da cama e sair do quarto. Imaginou-a no escritório, de volta dos seus papéis. Foi inundado por um turbilhão ininterrupto de emoções contraditórias. Estava envergonhado por ter sido tão facilmente levado, humilhado por Wheaton e Michael Osbourne terem feito dele um peão no seu jogo. E, sobretudo, sentia-se traído.

Por alguns momentos, quando ela estava a fazer amor consigo, McDaniels imaginou que ela sentia realmente alguma coisa por si, independentemente das suas motivações.

Iria fazer um acordo, pensou. Trataria das coisas de maneira a poderem ficar juntos quando tudo terminasse.

Ouviu a porta abrir-se. Fechou os olhos. Sentiu o corpo dela aninhar-se junto do seu. Queria virar-se e abraçá-la, fazer o corpo dela cair em cima do seu, sentir as pernas dela à sua volta. Mas limitou-se a ficar ali deitado, a fingir que estava a dormir, interrogando-se sobre o que iria fazer sem ela quando tudo terminasse.


Capítulo 25

LONDRES

 

— Chama-se Hartley — disse Graham Seymour, ao fim daquela manhã, no gabinete de Wheaton. — Fica aqui, na costa norte de Norfolk — explicou, tocando no grande mapa do serviço cartográfico e topográfico oficial com a ponta da caneta. — Tem várias centenas de hectares onde se pode passear e cavalgar e, claro, a praia fica perto.

Em resumo, é o tipo de sítio perfeito para um embaixador americano passar um fim-de-semana tranquilo no campo.

— E quem é o proprietário? — perguntou Michael.

— Um amigo dos serviços secretos.

— Um amigo íntimo?

— Fez a sua parte durante a Segunda Guerra Mundial e alguns biscates durante os anos cinquenta e sessenta, mas nada de pesado.

— Alguma coisa do conhecimento público que o possa ligar aos serviços secretos ingleses?

— De maneira nenhuma — respondeu Graham. — A Brigada para a Libertação do Ulster não iria ter qualquer forma de saber que o anfitrião do embaixador estava ligado aos serviços secretos.

Wheaton perguntou:

— Em que é que estás a pensar, Michael?

— Estou a pensar que o Douglas quer passar um fim-de-semana fora de Londres, no campo inglês, um fim-de-semana privado, com segurança mínima, na casa de um velho amigo. Pomos isso na agenda dele e damos a informação à mulher através do McDaniels. Com um bocadinho de sorte, a Brigada para a Libertação do Ulster irá morder o isco.

— E nós teremos uma equipa da SAS à espera deles — rematou Graham. — Esse cenário tem outra vantagem importante: não haverá possibilidade de baixas civis, por causa da localização remota.

— Prender pessoas não é verdadeiramente a especialidade da SAS — contrapôs Wheaton. — Se formos para a frente com isto, e se a Brigada para a Libertação do Ulster morder o isco, vai ser derramado muito sangue — acrescentou, olhando primeiro para Graham, que permaneceu em silêncio, e depois para Michael.

— É preferível que seja o sangue deles do que o do Douglas — disse Michael. — Eu recomendo que o façamos.

— Tenho de fazer com que isto suba a cadeia alimentar — disse Wheaton. — A Casa Branca e o Ministério dos Negócios Estrangeiros vão ter de assinar por baixo. É capaz de levar algumas horas.

— E em relação à mulher? — perguntou Michael.

— Seguimo-la hoje de manhã quando saiu do apartamento do McDaniels — respondeu Graham. — Estava a dizer-lhe a verdade. Vive num apartamento em EarPs Court. Mudou-se para lá há algumas semanas. Temos uma equipa a vigiar o apartamento.

— E onde é que ela está agora?

— A dormir, ao que parece.

— Ainda bem que há quem consiga dormir alguma coisa por estas bandas — desabafou Wheaton.

Pegou no seu telefone seguro e ligou para o gabinete de Mónica Tyler, em Langley.

— Isto foi tudo ideia sua, não foi? — perguntou Preston McDaniels. — Você é um bom filho-da-mãe. Qualquer pessoa percebe isso.

Estavam sentados num banco com vista para o lago Serpentme, no Hyde Park. O vento deslocava-se através dos salgueiros e fazia ondas na superfície do lago. Nuvens, pesadas da chuva que vinha a caminho, flutuavam por cima deles. Michael tentou localizar os vigias de Graham. Seria o homem a atirar migalhas de pão aos patos? A mulher sentada no banco ao lado a ler Josephine Hart? Talvez o rapaz louro e esguio, de impermeável azul-escuro, a praticar tai chi no relvado?

Vinte minutos antes, Michael tinha mostrado a McDaniels o vídeo da namorada a esgueirar-se para o escritório dele e a vasculhar o que se encontrava dentro da sua pasta. McDaniels quase ficara fisicamente doente. Tinha pedido encarecidamente para apanhar ar fresco e, por isso, tinham caminhado em silêncio, atravessando Mayfair e ao longo dos trilhos do Hyde Park, até chegarem ao lago. McDaniels tremia. Michael quase podia sentir o banco do parque a vibrar com o seu tremor. Lembrou-se de como se sentira quando soube que Sarah Randolph andava a trabalhar para o KGB. Tinha querido odiá-la, mas não conseguira. Suspeitava que Preston McDaniels sentia precisamente o mesmo em relação à mulher que ele conhecia como Rachel Archer.

— Conseguiu dormir alguma coisa? — perguntou suavemente.

— Claro que não.

O vento soprou, levantando o cabelo grisalho de McDaniels e deixando-lhe a careca à mostra. Constrangido, conseguiu com jeito que ele voltasse ao sítio.

— Como é que eu podia dormir sabendo que vocês, seus sacanas, estavam provavelmente a escutar cada sopro que eu desse?

Michael não quis dissipar a ideia de McDaniels de que eles estavam a observar todos os seus movimentos e a ouvir todas as suas palavras. Acendeu, um cigarro e ofereceu-lhe outro.

— Que hábito nojento — resmungou McDaniels, abanando a mão e olhando fixamente para Michael como se fosse um intocável.

Michael não se importou; era bom para McDaniels sentir-se superior por um momento, mesmo em algo tão banal.

— Quanto tempo? — perguntou. — Quanto tempo é que eu tenho de fazer isto?

— Não muito — respondeu Michael despreocupadamente, como se McDaniels tivesse perguntado quanto tempo poderia demorar até chegar o comboio seguinte.

— Meu Deus, porque é que vocês não conseguem dar-me uma resposta directa sobre seja o que for?

Porque há muito poucas respostas directas neste tipo de trabalho.

— É o seu tipo de trabalho, não o meu — retorquiu McDaniels, abanando a mão violentamente. — Meu Deus! Apague isso, se não se importa!

Michael atirou o cigarro para o chão.

— Quem é ela? — perguntou McDaniels. — O que é que ela é?

— No que a si lhe diz respeito, é a Rachel Archer, uma dramaturga faminta que trabalha como empregada de mesa no Ristorante Ricardo.

— Raios, eu quero saber! Eu tenho de saber! Preciso de saber que de todo este assunto desagradável pode sair alguma coisa boa.

Michael não podia rebater a lógica do pedido de McDaniels. Muitas vezes, orientar agentes tem a ver com a motivação e, para Preston McDaniels conseguir chegar ao fim da operação, precisava de encorajamento.

— Não sabemos o nome verdadeiro dela — disse Michael. — Ainda não, pelo menos. Estamos a trabalhar nisso. Ela pertence à Brigada para a Libertação do Ulster. Estão a planear assassinar o meu sogro. Ela estava a usá-lo para obter acesso à agenda dele e encontrar a melhor altura para levarem a sua avante.

— Meu Deus, como é que ela pôde fazer isso? Ela é tão maravilhosa...

— Ela não é a pessoa que você pensa que é.

— Como é que pude ser tão parvo? — atirou McDaniels, fitando algo a meia distância. — Eu sabia que ela era demasiado nova para mim. Que era demasiado bonita. Mas quis acreditar que ela se tinha apaixonado de facto por mim.

— Ninguém o está a culpar — mentiu Michael.

— Então, o que é que acontece quando tudo estiver terminado?

— Continua com o seu emprego como se nada se tivesse passado.

— Como é que eu posso fazer isso?

— Vai ser mais fácil do que pensa — respondeu Michael.

— E o que é que lhe acontece a ela, quem quer que seja?

— Ainda não sabemos — respondeu Michael.

— Sabem, sim. Vocês sabem tudo. Estão a lançar-lhe uma armadilha, não estão?

Michael levantou-se de repente, assinalando que era altura de ir embora. McDaniels ficou sentado.

— Quanto tempo? — perguntou ele. — Quanto tempo até isto estar terminado?

— Não sei.

— Quanto tempo? — repetiu.

— Não muito.

No final dessa tarde, Michael estava sentado no gabinete de Wheaton, a analisar o novo acrescento à agenda do embaixador Douglas Cannon, uma visita privada, no fim-de-semana seguinte, à casa de um amigo na zona rural de Norfolk. A pedido do embaixador, as medidas de segurança em torno da visita seriam extremamente leves, uma equipa de dois homens da Divisão Especial, sem qualquer apoio americano. Michael acabou de o ler e entregou-o a Wheaton, sentado do outro lado da secretária.

— Achas que eles mordem? — perguntou Wheaton.

— Devem fazê-lo.

— E como é que o nosso rapaz está a aguentar a pressão?

— O McDaniels?

Wheaton assentiu com a cabeça.

— Tão bem quanto seria de esperar.

— Ou seja?

— Ou seja, não temos muito tempo.

— Então, é melhor que isto funcione. Wheaton devolveu o documento a Michael.

— Põe-lhe isso na pasta e ele que a leve para casa hoje à noite.

No dia seguinte, pouco passava das quatro da manhã quando Rebeca Wells se levantou da cama de Preston McDaniels e entrou no escritório deste. Sentou-se à secretária, abriu a pasta sem fazer barulho e retirou um molho de documentos. Em anexo à agenda habitual de eventos oficiais do embaixador, havia uma nota acerca de um fim-de-semana privado na zona rural de Norfolk.

Rebecca conseguia sentir o coração a martelar-lhe dentro do peito à medida que lia o memorando.

Era perfeito: uma localização remota, com imenso tempo de aviso prévio para se poder elaborar um plano. Demorou todo o tempo necessário a anotar os pormenores. Não queria cometer nenhum erro.

Quando acabou, sentiu um orgulho feroz. Tinha desempenhado bem o seu papel, tal como em Belfast. Eamonn Dillon estava morto por causa das informações que ela tinha fornecido a Kyle Blake e a Gavin Spencer, e, em breve, o embaixador Douglas Cannon também estaria morto.

Apagou a luz e voltou para a cama.

Na base operacional em Evelyn Gardens, Michael Osbourne e Graham Seymour encontravam-se de pé em frente aos monitores de vídeo, a observá-la. Viram-na a registar cuidadosamente os pormenores do memorando relativo à viagem do embaixador para Norfolk. Conseguiram aperceber-se da sua excitação com a descoberta. Quando ela desligou a luz e deixou o escritório, Graham virou-se para Michael e perguntou:

— Achas que ela mordeu o isco?

— Todinho, caiu que nem uma patinha.

No dia seguinte, vigiaram-na. Foram com ela ao tenebroso café à saída da estação de metro de Earl's Court, onde tomou o seu pequeno-almoço, um chá e um pão-deleite com passas. Ouviram-na a telefonar para o restaurante, para falar com Ricardo Ferrari, e a dizer-lhe que tivera uma emergência familiar, uma tia que tinha adoecido Newcastie; precisava de tirar uns dias, quatro no máximo. Ricardo gritou-lhe uma série de obscenidades, primeiro em italiano e depois inglês com sotaque muito acentuado.

No entanto, ganhou a simpatia dos agentes de Graham Seymour que escutavam a conversa quando disse: — Toma conta da tua pobre tia. Não há nada mais importante que a família. Quando estiveres pronta para regressar, regressas.

A seguir, ouviram-na telefonar para Preston McDaniels, para o número dele na embaixada, e dizer-lhe que ia estar fora durante uns dias. Sustiveram a respiração quando McDaniels lhe pediu para a ver por uns minutos antes de se ir embora. Respiraram de alívio quando ela lhe disse que não havia tempo. E, quando ela apanhou um comboio para Liverpool, deixaram-na ir.

Preston McDaniels pousou o auscultador no descanso e sentou-se à secretária. Um funcionário que reparou nele naquele momento, do outro lado da porta aberta, disse mais tarde a Michael que o pobre Preston parecia que tinha acabado de receber a notícia de uma morte. Subitamente, levantou-se de um salto e disse que tinha de ir tratar de uma coisa e que voltava dentro de quinze minutos. Tirou a gabardina do cabide e saiu a grande velocidade da embaixada, atravessando a Grosvenor Square, em direcção ao parque.

Sabia que o estavam a seguir, Wheaton e Osbourne e os outros; conseguia senti-lo. Queria livrar-se deles. Queria nunca mais os ver. O que iriam eles fazer? Agarrá-lo-iam?

Sacá-lo-iam do meio da rua? Enfiá-lo-iam num carro? Já tinha lido a sua conta de romances de espionagem. Como se livraria o herói dos vilões num romance de espionagem?

Perder-se-ia na multidão.

Quando chegou a Park Lane, apressou-se para norte, na direcção de Marble Arch. Mergulhou na estação de metropolitano, passou despercebido pelos torniquetes e percorreu rapidamente a passagem de ligação à plataforma.

Estava a chegar um comboio quando atingiu a plataforma. Entrou na carruagem e deixou-se ficar perto das portas. Na paragem seguinte, Bond Street, saiu do comboio, atravessou para a plataforma oposta e entrou num outro comboio de volta a Marble Arch. Em Marble Arch, executou a mesma manobra e, pouco tempo depois, dirigia-se para leste, atravessando Londres e sentindo-se bastante sozinho.

Graham Seymour ligou para Michael da sede do MI5.

— Lamento informar-te, mas o teu homem desapareceu.

— O que é que queres dizer com isso?

— Quero dizer que o perdemos — respondeu Graham. — Ou, melhor, ele perdeu-se de nós. Fez um número e pêras no metro. Não é nada mau.

— Onde?

— Na Central Line, entre Marble Arch e a Bond Street.

— Porra. E que estás a fazer para resolver isso?

— Bom, estamos a tentar encontrá-lo, não é, meu caro?

— Liga-me se souberes de alguma coisa.

— Combinado.

Na Tottenham Court Road, Preston McDaniels saiu do comboio da Central Line e percorreu a passagem de ligação à Northern Line. Que apropriado, pensou; a temível Northern Line. Antiquada, ofegante, ruidosa, a linha estava sempre a avariar no auge da hora de ponta. Para aqueles que eram forçados a suportar o seu temperamento inconstante, era a Linha do Sofrimento. A Linha Negra. Era perfeito, pensou Preston. Os tablóides de Londres iriam ter um dia em cheio com aquilo.

O que tinha Michael Osbourne dito? Continua com a sua vida como se nada se tivesse passado. Mas como podia ele fazer isso? Sentiu a plataforma começar a vibrar.

Virou-se e espreitou para a escuridão do túnel e viu a ténue luz do comboio que se aproximava.

Pensou nela, debaixo do seu corpo, com as costas arqueadas para si, e depois imaginou-a no escritório, a roubar-lhe os segredos. Ouviu a voz dela ao telefone. 'Lamento, mas vou ter de ir para fora durante uns dias... Não, desculpa, Preston, mas não posso ver-te agora...

Preston McDaniels olhou para o relógio. Por esta altura, já deveriam estar preocupados com ele, a interrogarem-se para onde teria ido. Havia uma reunião do pessoal dali a dez minutos. Ia faltar.

O comboio irrompeu do túnel com uma torrente de ar quente e precipitou-se para a estação. Preston McDaniels deu mais um passe em direcção à borda da plataforma.

E depois saltou para a linha.


Capítulo 26

PORTADOWN

LONDRES

CONDADO DE TYRONE

 

Na tarde seguinte, Rebecca Wells estava de regresso a Portadown, sentada num reservado do pub McConville's. Gavin Spencer entrou primeiro, seguido por Kevin Blake cinco minutos depois. O pub estava apinhado. Rebecca Wells falou calmamente por entre o ruído, relatando a Blake e a Spencer aquilo que tinha descoberto na pasta do americano.

— Quando é que o Cannon chega? — Perguntou Blake com simplicidade.

— No próximo sábado — disse Rebecca.

— E quanto tempo fica?

— Uma noite, no sábado. Depois regressa a Londres no domingo, ao início da tarde. — Isso dá-nos cinco dias — disse Blake, virando-se para Gavin Spencer. — Consegues organizar tudo nesse período de tempo? Spencer assentiu com a cabeça. Só precisamos das armas. Se conseguirmos deitar a mão às armas, o embaixador Douglas Cannon é um homem morto.

Kyle Blake meditou durante um momento, esfregando as manchas de tinta e nicotina nos dedos. A seguir, olhou para Spencer e disse:

— Então, vamos arranjar as armas.

222.

— Tens a certeza, Kyle?

— Não estás a perder a coragem, pois não?

— Talvez devêssemos esperar um pouco mais. Deixar as coisas acalmarem.

— Não temos tempo para ficar à espera, Gavin. Cada semana que passa é uma vitória para os apoiantes do acordo. Ou destruímos o acordo de paz agora ou vamos ter de nos haver com ele para sempre. E não é só esta geração que vai pagar o preço. Vão ser os nossos filhos, os nossos netos. Não consigo viver com isso.

Blake levantou-se de repente e correu o fecho do casaco.

— Arranja essas armas, Gavin, ou encontro quem o faça.

Enquanto os três dirigentes da Brigada para a Libertação do Ulster saíam do pub McConville's, Graham Seymour estava a chegar à embaixada americana. O gabinete de Wheaton parecia o búnquer de comando de um exército em retirada. O suicídio de Preston McDaniels tinha acendido um rastilho de pólvora em Washington, e Wheaton estivera ao telefone durante a maior parte das últimas vinte e quatro horas, tentando sem sucesso apagá-lo. O Ministério dos Negócios Estrangeiros estava furioso com a CIA pela forma como esta tinha lidado com o caso; com efeito, Douglas Cannon fora colocado na posição nada invejável de ter de contestar secretamente as acções do seu próprio genro. O presidente Beckwith tinha chamado Mónica Tyler à Casa Branca para a repreender severamente. E Mónica tinha descarregado a raiva em Wheaton e Michael.

— Por favor, diz-nos que tens boas notícias — disse Michael enquanto Graham se sentava.

— Por acaso, até tenho — disse Graham. — A Scotland Yard decidiu colaborar. Logo à noite, vão emitir uma declaração afirmanc que o suicida da Tottenham Court Road era um doente mental que tinha escapado. A Northern Line é famosa por esse género de casos. Há um hospital psiquiátrico a sul do rio.

— Graças a Deus — desabafou Wheaton, Michael sentiu-se descontrair ligeiramente. O suicídio precisa ser mantido em segredo para que a operação pudesse continuar.

Se A Brigada para a Libertação do Ulster soubesse que McDaniels tinha saltado para a frente de um comboio na Northern Line, podiam muito bem deduzir que a informação que lhe tinham roubado se encontrava comprometida.

Graham perguntou:

— E como é que vão encobrir as coisas por aqui?

— Felizmente, o McDaniels não tem família propriamente dita — respondeu Wheaton. — O Ministério dos Negócios Estrangeiros deu-nos alguma margem relutantemente. Quanto à história que vai servir de disfarce, é que o McDaniels teve de regressar a Washington e passar lá duas semanas. Se a mulher ligar para cá à procura dele, vão contar-lhe essa história, com uma mensagem pessoal do McDaniels incluída.

— A mulher já tem nome, por falar nisso — disse Graham. — A E4 identificou-a quando ela chegou a Belfast hoje de manhã cedo. O nome verdadeiro é Rebecca Wells. O marido era o Ronnie Wells, um membro da secção de espionagem da Força de Voluntários do Ulster, assassinado pelo IRA em noventa e dois. Parece que a Rebecca está a continuar o trabalho do marido.

— E a RUC está a dar-lhe margem de manobra? — perguntou Michael.

— Seguiram-na até Portadown para a identificarem, mas fícaram-se por aí — disse Graham. — Neste preciso momento, anda à solta.

— E a SAS alinhou nisso?

— Tenho uma reunião amanhã no quartel-general deles em Heretord para os pôr ao corrente. Estão os dois à vontade se também quiserem estar presentes. Uma malta estranha, os tipos da SAS. Acho que vocês até são capazes de achar piada. wheaton levantou-se e esfregou os olhos vermelhos e inchados. Cavalheiros, a bola está no campo da Brigada para a Libertado do Ulster — disse, vestindo o casaco do fato por cima da camisa —nrugada e dirigindo-se para a porta. — Quanto a vocês, não sei, mas preciso de dormir um pouco. Não me incomodem a não ser que seja urgente.

A primeira noite tinha sido límpida, calma e muito fria. Kyle Blake e Gavin Spencer decidiram esperar — mais uma noite não faria diferença e a previsão meteorológica parecia ser animadora. A segunda noite revelou-se perfeita: uma cobertura de nuvens espessa para enfraquecer os óculos de infravermelhos dos homens da SAS, vento e chuva para ajudar a ocultar o som da sua aproximação. Kyle Blake aprovou e Spencer enviou dois dos seus melhores homens para tratarem do assunto. Um era um veterano do exército britânico que tinha estado algum tempo no estrangeiro como mercenário; o outro era um ex-atirador da UDA, o mesmo rapaz que tinha matado Ian Morris.

Spencer tinha dado o nome de código de Yeats ao primeiro e de Wilde ao segundo. Enviou-os para a operação algumas horas depois do pôr do Sol e disse-lhes para atacarem mais ou menos uma hora antes do amanhecer — exactamente como os Peep 0'Day Boys.

A casa de campo ficava na parte mais baixa de um pequeno vale. Em redor da quinta, havia vários hectares de terras de pastagem limpas, mas, do outro lado da cerca, erguiam-se colinas cobertas de árvores densas. Era numa dessas encostas, a que ficava exactamente a leste da casa de campo, que os homens da E4 e da SAS tinham instalado o seu posto de observação. Na segunda noite, a encosta encontrava-se debaixo de um cobertor de nuvens baixas e espessas.

Yeats e Wilde estavam vestidos de preto. Usaram pó de carvão para escurecer a sua pálida tez típica do Ulster. Aproximaram-se vindos de leste, através do pinhal denso, subindo e descendo o terreno ondulado, avançando apenas alguns metros a cada minuto. Por vezes, ficavam muito quietos durante alguns minutos, com os corpos comprimidos sobre a terra encharcada, espreitando a sua presa com binóculos de visão nocturna. Quando já se encontravam a cerca de quatrocentos metros, separaram-se, com Yeats a seguir para norte e Wilde para sul.

Pelas quatro da manhã, os dois homens estavam exaustos, encharcados até aos ossos e completamente enregelados. Yeats tinha sido treinado pelo exército britânico e estava mais bem preparado, ment e fisicamente, para uma noite numa encosta gélida. Wilde não; tinha crescido na Shankhill Road, em Belfast Ocidental, e a sua experiência era a das ruas, não a do campo. Nos momentos que antecedera o ataque, pensou se conseguiria continuar. A hipotermia já se tinha instalado; as mãos e os pés estavam dormentes, mas, no entanto, já não sentia frio. Tremia violentamente e receou não ser capaz de disparar a arma quando chegasse o momento.

Às cinco horas, os atiradores encontravam-se ambos em posição. Yeats, deitado de barriga para baixo atrás de uma grande árvore, vigiava o homem da SAS. Estava sentado num abrigo, coberto de ramos de arbustos e de pequenos ramos de árvore. Yeats pegou na arma, uma Walther semiautomática de nove milímetros, com um silenciador colocado no cano. Wilde levava uma arma igual. Ambos sabiam que os seus opositores estariam muito mais bem armados. Se quisessem sobreviver ao encontro, tinham de fazer bom uso dos seus primeiros tiros.

Yeats levantou-se subitamente sobre um joelho e começou a disparar. A Walther com silenciador quase não fez barulho. Os primeiros tiros atingiram o homem da SAS no tronco, com um baque surdo, e atiraram-no para trás. Pelo som, tinha um colete vestido, o que significava quase de certeza que ainda estava vivo.

Yeats levantou-se e correu para a frente na escuridão. Quando estava a poucos metros de distância, o homem da SAS sentou-se subitamente e disparou. A arma também tinha um silenciador e o único som que fez foi um leve ruído metálico.

Yeats atirou-se para o chão e os tiros passaram por cima da sua cabeça inofensivamente, lascando as árvores. Yeats rebolou e ficou deitado de barriga para baixo, com os braços esticados e a Walther nas mãos. Apontou e carregou duas vezes no gatilho rapidamente, exactamente como o exército lhe ensinara. Os tiros atingiram o homem da SAS na cara. Caiu no chão, morto.

Yeats correu para ele, arrancou-lhe a espingarda automática da mão cerrada e avançou a grande velocidade para o local onde sabia que estavam escondidos os homens da E4.

As coisas foram mais fáceis para Wilde. O homem da SAS que lhe cabia matar tinha reagido ao som dos corpos a mexerem-se nas urzes. Levantou-se, rodou rapidamente em diversas direcções e depois correu em auxílio do companheiro. Wilde surgiu por trás de uma árvore quando ele passou. Apontou-lhe a arma à nuca e disparou. Os braços do soldado abriram-se totalmente e ele caiu para a frente. Wilde agarrou na arma do morto e começou a correr, seguindo Yeats através das árvores.

Os dois homens da E4 — Marks e Sparks — estavam escondidos no seu abrigo, cobertos por lona de camuflagem, ramos de árvore e vegetação rasteira. Marks acabava de acordar. Yeats atingiu-o várias vezes através do saco-cama. Sparks, que estava de serviço, ia pegar numa pequena pistola automática. Wilde atingiu-o no coração.

Passavam poucos minutos das cinco quando Gavin Spencer acelerou pela aldeia de Cranagh e depois pela estreita estrada local, em direcção à casa de campo. Parou junto à entrada lamacenta e desligou o motor. Foi andando até às traseiras da casa, no meio da escuridão, avançando por entre caixotes partidos e equipamento agrícola velho e ferrugento. Avistou-os pouco tempo depois, descendo a encosta à chuva. Spencer ficou parado no quintal, com as mãos nos bolsos, enquanto os dois homens atravessavam a pastagem. Por um momento, teria feito qualquer coisa para trocar de lugar com eles; a seguir, viu a roupa molhada e suja e o seu olhar assustado e percebeu que não havia nada para comemorar.

— Está feito — disse simplesmente o que se chamava Wilde.

— Quantos? — perguntou Spencer.

— Quatro.

Yeats atirou uma espingarda para Spencer na escuridão. Habilmente, Spencer tirou as mãos dos bolsos e agarrou a espingarda antes de ela o atingir no peito.

— Aí está uma recordação para ti — disse Yeats. — A espingarda de um homem da SAS morto.

Spencer puxou o canhão para trás, enfiando uma bala na câmara.

— Ainda tem munições?

— Ele não conseguiu disparar sequer a porra de um tiro — disse Wilde.

— Metam-se no carro — ordenou-lhes Spencer. — Vou lá ter daqui a um minuto.

Spencer levou a arma, atravessou o quintal e entrou na casa. Saff" Dalton, o mais velho dos dois irmãos, estava sentado à mesa da cozinha, a beber chá e a fumar nervosamente. Trazia calças de fato de treino azuis, mocassins e um pulôver de lã. Tinha a cara por barbear e os olhos pesados de sono.

— Que raio de merda é que se está a passar lá fora, Gavin? — perguntou.

— Eliminámos os teus amigos na encosta. Tens mais disso? — disse ele, apontando para o chá com a cabeça.

Dalton ignorou o pedido.

— Eliminámo-los? — disse ele, com os olhos de repente muito abertos. — E o que é que vai acontecer quando se descobrir que vocês os eliminaram? Eu disse que te escondia umas quantas armas e um bocadinho de Semtex, Gavin. Não me disseste que ias fazer com que a porra da Divisão Especial e do exército britânico me fossem cair em cima.

— Não tens nada com que te preocupar, Sam — respondeu Spencer. — Vou levar tudo hoje à noite. Mesmo que a Divisão Especial e o exército arrombem a porta, não haverá nada para encontrarem.

— Tudo? — perguntou Sam Dalton, incrédulo.

— Tudo — repetiu Spencer. — Onde é que está o teu irmão? Dalton olhou para o tecto e disse:

— Lá em cima, a dormir.

— Começa a tirar as armas e o Semtex. Quero dar uma palavrinha à Bela Adormecida. Desço daqui a um minuto.

Sam Dalton anuiu com a cabeça e foi para a cave. Gavin Spencer subiu e encontrou Christopher Dalton a dormir na cama, com a boca aberta, ressonando suavemente. Spencer tirou do bolso do casaco uma pistola Walther automática com silenciador, inclinou-se para baixo e enfiou o cano na boca do homem adormecido. Christopher Dalton engasgou-se e acordou com um sobressalto, de olhos bem abertos.

Spencer carregou no gatilho; sangue e tecido cerebral explodiram para cima da almofada e da roupa da cama. Spencer guardou a arma e saiu do quarto, deixando o corpo de Christopher Dalton em espasmos na cama.

— Onde é que está o Chris? — perguntou Dalton quando Spencer chegou à cave.

Ainda a dormir — respondeu. — Não tive coragem de o acordar.

Dalton acabou de empacotar as armas e os explosivos. Quando terminou, havia três sacos de lona lado a lado no chão. Estava de joelhos, a correr o fecho do último saco, quando Spencer lhe encostou à nuca o cano da pistola automática capturada à SAS.

— Gavin, não — implorou ele. — Por favor, Gavin.

— Não te preocupes, Sam. Vais para um lugar melhor do que este. Spencer carregou no gatilho.

Às seis horas, o telefone tocou na mesa-de-cabeceira de Michael, no quarto de visitas em Winfield House. Rebolou e agarrou o auscultador antes de poder tocar uma segunda vez. Era Graham Seymour, a telefonar da sua casa em Belgravia.

— Veste-te. Apanho-te em meia hora.

Graham desligou abruptamente. Michael tomou um duche e vestiu-se rapidamente. Passados vinte minutos, um Rover com motorista parou junto à entrada de Winfield House.

Michael entrou nele e sentou-se junto a Graham Seymour.

Graham deu-lhe café num copo de papel. Tinha o aspecto de um homem que tinha sido acordado com más notícias. Os olhos estavam vermelhos e a barba fora mal feita e obviamente à pressa. Enquanto o carro se apressava pela luz da madrugada de Regenfs Park, Graham descreveu em voz baixa o que tinha acontecido durante a noite na casa de campo nas montanhas Sperrin.

— Meu Deus — disse Michael, num murmúrio.

O carro avançou a toda a velocidade pela Outer Circle, seguindo depois para leste e percorrendo uma curta distância da Euston Road antes de se dirigir para sul, ao longo da Tottenham Court Road. Michael agarrou-se com toda a força ao encosto para o braço enquanto o motorista se ia esgueirando pelo meio do trânsito do início da manhã.

— Importas-te de me dizer onde é que vamos? — perguntou Michael.

— Pensei em fazer-te uma surpresa.

— Eu detesto surpresas.

— Eu sei — disse Graham, conseguindo esboçar um leve sorriso.

Cinco minutos mais tarde, seguiam a grande velocidade por White-hall. O carro parou junto aos portões de ferro que guardavam a entrada da Dpwning Street. Graham identificou-se junto do segurança e os portões abriram-se. O carro avançou, parando em frente à porta mais famosa do mundo. Michael olhou para Graham.

— Vamos lá, meu caro — disse Graham. — Não podemos deixar o grande homem à espera.

Entraram no número 10 e atravessaram o corredor da frente, subindo a famosa escadaria, decorada com os retratos dos antecessores de Tony Blair. Um assessor levou-os até ao gabinete do primeiro-ministro. Blair estava sentado atrás de uma secretária desorganizada, envergando uma camisa e uma gravata. Havia um tabuleiro de pequeno-almoço intacto.

— Quando aprovei a Operação Timbale, meus senhores, não esperava que fosse este o preço a pagar — disse Blair, sem esperar por apresentações. — Meu Deus, dois agentes da E4 e dois homens da SAS mortos.

Michael e Graham mantiveram-se em silêncio, esperando que o primeiro-ministro continuasse.

— Toda a Irlanda do Norte vai acordar com estas notícias dentro de alguns minutos e, quando isso acontecer, a comunidade católica vai reagir com firmeza.

Graham aclarou a garganta e disse:

— Senhor primeiro-ministro, asseguro-lhe...

— Já ouvi as vossas garantias, meus senhores, mas o que eu quero agora são resultados. Se queremos que o processo de paz sobreviva, temos de excluir as armas da política irlandesa, desactivar os paramilitares. E, nesta atmosfera, o IRA nunca irá entregar as armas.

— Posso falar, senhor primeiro-ministro? — perguntou Michael. Blair acenou com a cabeça vigorosamente.

— Diga, por favor.

— O facto de a Brigada para a Libertação do Ulster se ter envolvido numa acção como esta dá-me a entender que eles terão mordido o isco. Planeiam assassinar o embaixador Cannon em Norfolk. E, se prosseguirem, ser-lhes-á infligido um golpe devastador.

— E porque não prender o Gavin Spencer e essa mulher, a Rebecca Wells, agora? Certamente que isso também infligiria um rude golpe na Brigada para a Libertação do Ulster. E demonstraria aos católicos que estamos a fazer alguma coisa para parar estes bandidos assassinos.

— A RUC não tem o tipo de provas necessário para construir um processo incontestável contra o Gavin Spencer — respondeu Graham. — E quanto à Rebecca Wells, é mais valiosa para nós no terreno do que seria atrás das grades.

Blair começou a mexer em papéis, sinal de que a reunião tinha terminado.

— Vou deixar que isto continue — disse e, a seguir, parou por uns instantes. — Apesar do que dizem os meus críticos, não costumo entrar em exageros. Mas, se este grupo não for travado, o processo de paz será destruído, verdadeiramente. Bom dia, meus senhores.


Capítulo 27

COSTA DE NORFOLK, INGLATERRA

 

Hartley Hall ficava a três quilómetros do mar do Norte, logo a sudeste da cidade de Cromer. Um aristocrata normando construiu aí o primeiro solar no século XIII.

Por baixo da actual estrutura, no labirinto de caves e corredores, encontravam-se os arcos e portadas medievais originais. Em 1625, um comerciante rico de Norwich chamado Robert Hardey construiu uma mansão em cima do solar normando. Para criar uma barreira entre a casa e as tempestades do mar do Norte, plantou alguns milhares de árvores no solo arenoso ao longo do extremo norte da propriedade, mesmo sabendo que as árvores demorariam várias gerações até atingirem a maturidade. O resultado foi a North Wood, oitenta hectares de abetos, pinheiros escoceses, bordos, plátanos e faias. O embaixador Cannon ia admirando as árvores a medida que a sua pequena coluna de automóveis atravessava o bosque escuro. Um momento depois, Hartley Hall surgiu à sua frente.

O descendente de Robert Hardey, Sir Nicholas Hardey, apareceu vindo do alpendre sul quando os carros pararam junto ao caminho de cascalho de acesso à mansão. Era um homem grande com um peito cilíndrico e uma madeixa espessa de cabelo ruivo-aloirado já grisalho. Dois setters saltavam aos seus pés. Douglas saiu do segundo carro e avançou alguns passos pelo caminho com o braço direito estendido, os dois homens apertaram as mãos como se Douglas Cannon fosse o dono do solar que ficava mais à frente na estrada e já visitasse Hardey Hall desde há cinquenta anos.

Hartley sugeriu que dessem um breve passeio, embora não fizessem sequer cinco graus e a noite estivesse a cair rapidamente. Não tinha emprego e os seus interesses eram pouco mais do que redigir a história do seu lar ancestral, a qual explicou intensamente a Douglas enquanto passeavam pela propriedade. Dois homens da Divisão Especial seguiam-nos lentamente, com os cães logo atrás.

Admiraram a fachada sul ao estilo do rei Jaime I, que havia sido desenhada e construída pelo pedreiro mestre de Norfolk, Robert Lyminge. Deambularam pelos meandros da ala leste, coberta de glicínias, com as suas janelas grandes esculpidas e empenas flamengas. Olharam demoradamente para o magnífico laranjal, uma estufa de interior que dava para os canteiros, onde se guardavam as laranjeiras e limeiras envasadas durante os meses frios. Do outro lado do jardim murado, ficava o parque dos veados, que em tempos sustentara uma manada de trezentas cabeças. Seguiram para sul por um carreiro, passando pelos estábulos e por uma fileira de casas de empregados. Com os seus cinco séculos de idade, a Igreja de St. Margaret erguia-se no cimo de um pequeno promontório, como uma silhueta recortada no crepúsculo azul-escuro. Em seu redor, jaziam os despojos de uma aldeia do século XV que havia sido abandonada após um surto de peste.

Na altura em que os dois homens chegaram de novo à entrada sul, já os últimos raios solares tinham desaparecido. A luz brilhava através das janelas de colunas com bandeiras envidraçadas, iluminando pequenos pedaços do caminho de cascalho. Passaram pela porta rústica e entraram no grande salão. Douglas admirou os vitrais ingleses do século XV, os retratos dos antepassados de Hardey e a secretaria de carvalho por baixo da janela. Subiu na consideração do anfitrião ao ser o primeiro americano a identificar correctamente a mesa como sendo da Renascença flamenga.

Passaram pela sala de jantar, com o seu arrebatador trabalho de estuque rococó, e chegaram à sala de estar. Ficaram parados no centro da divisão, com os pescoços erguidos para o tecto de estuque original, fitando a rica profusão de rosas, flores de laranjeira, uvas, peras e romãs.

— Este painel é dedicado às aves de caça que se encontram aqui, junto à costa de Norfolk — explicou Hartley, apontando com o longo braço como se fosse uma espingarda.

— Como pode ver, existem perdizes, faisões, tarambolas e galinholas.

— É simplesmente magnífico — disse Douglas.

— Mas o senhor deve estar exausto e eu era capaz de continuar durante toda a noite — disse Hardey. — Deixe-me indicar-lhe o seu quarto. Pode refrescar-se e descansar alguns minutos antes do jantar.

Subiram a escadaria central e seguiram pelo corredor, passando por uma série de portas fechadas. Hardey abriu a porta do quarto chinês para Douglas poder entrar.

Havia uma cama de dossel do século XVIII e uma carpete de Exeter de cores brilhantes, em nó turco. Aos pés da cama, havia um armário japonês de laca preta e uma só cadeira Chippendale trabalhada.

Estava um homem sentado na cadeira, com as costas voltadas para a porta. Levantou-se assim que Hartley e Douglas entraram no quarto. Por um momento, Douglas teve a sensação de estar a olhar para o seu próprio reflexo num vidro fosco. A boca até se lhe abriu de espanto quando estendeu a mão ao outro homem e esperou que ele a apertasse. O homem limitou-se a ficar ali parado, sorrindo ligeiramente e divertindo-se claramente com o efeito da sua presença. Tinha precisamente a mesma altura e envergadura que Douglas e o esparso cabelo grisalho fora cortado e arranjado de forma semelhante. A pele tinha o mesmo aspecto de quem vive ao ar livre: bochechas rosadas, tez endurecida como o couro, poros abertos. As feições eram ligeiramente diferentes — os olhos um pouco mais estreitos —, mas o efeito era impressionante.

A porta que dava para o quarto de vestir abriu-se e Michael entrou, seguido por Graham Seymour. Michael reparou na expressão do sogro e desatou a rir-se.

— Senhor embaixador Douglas Cannon — disse —, gostaria de lhe apresentar o senhor embaixador Douglas Cannon.

Douglas abanou a cabeça e disse:

— Macacos me mordam!

Rebecca Wells passou a tarde a observar pássaros. Estava há três dias em Norfolk, a viver numa pequena caravana na praia, à saída de Sheringham. Tinha viajado pela costa, desde Hunstanton, a oeste, até Cromer, a leste, percorrendo o Peddars Way e o Norfolk Coast Path com os seus óculos de campo e as suas máquinas fotográficas, fotografando a grande variedade de pássaros da zona — tarambolas e maçaricos, fuselos e perdizes. Nunca tinha estado em Norfolk e a cada dia, durante um pequeno período, até parecia esquecer-se do motivo que a tinha trazido ali. Era um lugar mágico de pântanos de sal, ribeiros por onde entrava o mar, lodaçais e praias que pareciam estender-se até ao horizonte — planas, desertas, despojadamente belas.

Ao final da tarde, entrou na Great North Wood, contígua a Har-tley Hall. Sabia pelos guias que tinha lido que a família Hartley entregara a mata ao governo trinta anos antes. Agora, era uma reserva natural e um parque de campismo. Seguiu por um caminho para peões arenoso, suavizado com agulhas de pinheiro e ramos de abeto caídos, e instalou-se num abrigo.

Fingiu que fotografava um bando de gansos-debrent em migração. O seu verdadeiro alvo era Hartley Hall, que ficava logo a sul da mata, depois de se atravessar um prado morto pelo Inverno. A chegada do embaixador estava agendada para as quatro da tarde. Chegou ao abrigo às 15h45; não queria demorar-se sem necessidade. O sol es-condeu-se no horizonte e o ar ficou gélido. O céu a poente estava raiado com pinceladas de aguarela roxas e cor de laranja. O vento vindo do mar fez-se sentir e abanou as árvores. Esfregou a cara com as luvas de lã para se aquecer.

Às 16h05, ouviu o som de carros a passar na estrada por entre a mata. Um momento depois, surgiram das sombras e seguiram a grande velocidade pela estrada de acesso privado a Hartley. Um homem apareceu à saída do alpendre principal ao mesmo tempo que a pequena coluna de automóveis parava junto ao caminho de entrada. Rebecca Wells levou os binóculos aos olhos. Observou Douglas Cannon a sair do banco de trás da limusina e a apertar a mão ao outro homem. Durante vários minutos, visitaram os terrenos de Hartley Hall. Rebecca Wells observou-os com atenção.

Após completarem a volta à casa e desaparecerem lá dentro, ela levantou-se e guardou a máquina fotográfica e os binóculos numa mochila de nylon. Seguiu o trilho por entre a mata, de volta ao parque de estacionamento onde tinha deixado o Opel alugado, e avançou no carro pela estrada estreita junto à costa, de regresso à sua caravana na praia.

Por essa altura, já estava bastante escuro e o parque de campismo encontrava-se praticamente vazio: apenas uma família de viajantes que estava de passagem e um grupo de adolescentes dinamarqueses que andava de mochila às costas por Norfolk. Os quatro membros da equipa dela estavam espalhados por outros parques de campismo ao longo da costa. A maré estava a baixar e o ar possuía o cheiro penetrante dos lodaçais e dos pântanos. Rebecca entrou na caravana e ligou o aquecedor eléctrico portátil.

Acendeu o fogão a gás, ferveu água e fez uma cafeteira de Nescafé. Encheu um termos com o café e despejou o resto numa caneca de cerâmica. Bebeu o café enquanto caminhava pela praia.

Era estranho, pensou, mas pela primeira vez em muito tempo sentia uma estranha sensação de paz. Era aquele lugar, pensou, aquele lugar belo e místico. Pensou como era estranho passar por uma aldeia e não ver qualquer sinal de conflito sectário: nada de bandeiras do Reino Unido nem da Irlanda do Norte, nada de murais ou slogans políticos em tom de guerra rabiscados nas paredes, nada de esquadras de polícia mais parecidas com fortalezas. Toda a sua vida havia sido consumida pelo conflito.

O pai tinha estado envolvido com os paramilitares protestantes e ela casara-se com um homem da UVF. Tinha sido educada para odiar e desconfiar dos católicos. Em Portadown, o conflito estava presente por toda a parte; não havia forma de lhe escapar. Ser protestante em ortadown dera um propósito à sua vida. Sentiu que tinha um lugar na história. Os rituais do ódio e os ciclos de matança e vingança tinham conferido um sentido de ordem macabro às coisas.

Pensou no que aconteceria depois do assassínio. Kyle Blake tinha-lhe dado dinheiro, um passaporte falso e um sítio para se esconder em Paris. Sabia que teria de ficar escondida durante meses, senão mesmo anos. Poderia nunca mais conseguir regressar a Portadown.

Acabou o que restava do café, observando as ondas a rebentarem na praia, fosforescentes ao luar. "Quero ir para algum sítio como este", pensou. "Gostava de poder ficar aqui para sempre."

Voltou para a caravana no meio da escuridão, entrou e ligou o computador portátil. Com um modem portátil, conectou-se ao servidor da Internet e escreveu uma breve mensagem de correio electrónico.

 

ESTOU A GOSTAR IMENSO DE ESTAR EM NORFOLK. O TEMPO ESTÁ FRIO MAS BASTANTE BONITO. HOJE VI VÁRIAS ESPÉCIES RARAS DE PÁSSAROS. PENSO FICAR AQUI MAIS UNS DIAS.

 

Enviou a mensagem e desligou o computador. Agarrou no termos de café e num maço de tabaco. Tinha uma longa viagem pela frente naquela noite. Saiu da caravana e entrou no Opel. Passado um momento, estava a seguir a toda a velocidade pela Al48, em direcção a King's Lynn, a primeira etapa da sua viagem até à costa oeste da Escócia.

 

— O verdadeiro nome dele é Oliver Taylor — disse Graham Seymour a Douglas —, mas gostaria que se esquecesse que alguma vez ouviu este nome. Ele é vigia de profissão, não és, Oliver? Um dos melhores, na verdade.

— A semelhança é notável — disse Douglas, estarrecido.

— Actualmente, o Oliver treina novos recrutas a maior parte do tempo, mas ainda o colocamos em acção de vez em quando se precisamos de um verdadeiro profissional.

Aliás, passou algum tempo a seguir a encantadora Rebecca Wells, não foi, Oliver?

Taylor assentiu com a cabeça.

— Siga-me, por favor, senhor embaixador — disse Graham. — Gostaria de lhe mostrar algumas coisas.

Graham levou Douglas e Michael até uma sala cheia de equipamento electrónico e de monitores de vídeo. Um par de técnicos acusou a presença dos três homens e depois prosseguiu com o seu trabalho.

— Este é o centro nevrálgico da operação em termos electrónicos. — disse Graham. — Todo o terreno está repleto de câmaras de vigilância com infravermelhos, detectores de movimento e sensores de calor. Quando a Brigada para a Libertação do Ulster avançar, é aqui que vamos ficar a saber primeiro.

— E como é que sabem que eles vão tentar? — perguntou Douglas.

— Porque a Rebecca Wells está em Norfolk — respondeu Graham.

— Já está cá há coisa de três dias. Está alojada numa caravana perto da praia, a poucos quilómetros de distância. Estava na North Wood ainda há uns minutos quando o senhor chegou. Ela sabe que o senhor está cá.

— Na verdade, acabou de deixar o acampamento, senhor — avisou um dos técnicos.

— E para onde se dirige?

— Para oeste, na estrada costeira.

— E a caravana? — perguntou Michael.

— Continua no acampamento, senhor. Graham disse:

— Estes homens são as nossas gadanhas, senhor embaixador. Deixe-me apresentar-lhe os nossos instrumentos cortantes.

Os Serviços Aéreos Especiais são a unidade de elite das forças armadas britânicas e uma das organizações militares mais respeitadas do mundo. Com sede em Hereford, a cerca de duzentos e vinte e cinco quilómetros a noroeste de Londres, possuem um regimento activo, o 22 SAS, e cerca de 550 membros. A SAS é uma força de inserção, pensada para actuar atrás das linhas inimigas. Está dividida em quatro esquadrões operacionais, cada um com uma especialidade diferente: aerotransportado, anfíbio, montanhista e veículos de assalto. A unidade demonstrou a sua destreza antiterrorista em Maio de 1980 quando conseguiu acabar com o cerco à embaixada iraniana em Londres perante uma audiência televisiva mundial. Os recrutadores da SAS procuram soldados com uma inteligência acima da média, que demonstrem capacidade para improvisar e agir sozinhos. Os soldados da SAS são conhecidos pelo seu egotismo, impetuosidade e sarcasmo, e por isso a SAS é olhada de lado por muita da estrutura militar britânica. O lema da organização é "Quem ousa, vence". Fiéis à sua forma de ser, os homens da SAS mutilam deliberadamente o seu próprio credo proclamando sacrilegamente: "Não importa quem vence."

Os oito homens na grande sala de jogos não se pareciam muito com qualquer soldado que Douglas já tivesse visto. Tinham o cabelo desgrenhado ou não tinham sequer cabelo e alguns tinham bigodes caídos. Dois estavam a jogar bilhar; outros dois estavam entretidos com um ruidoso jogo de ténis de mesa, balançando-se de um lado para o outro. Os restantes mantinham-se sentados à roda de uma televisão de ecrã gigante, a ver um filme em vídeo — A Dupla Vida de Veronique — e a pedirem de vez em quando para que se fizesse silêncio. O jogo de bilhar e a competição de pingue-pongue terminaram de repente quando os homens perceberam que Douglas se encontrava na sala.

— Quando a Brigada para a Libertação do Ulster avançar, estes homens estarão à espera dela — disse Graham. — Posso assegurar-lhe que tudo estará terminado muito rapidamente. Estes senhores sabem o que aconteceu aos seus colegas no condado de Tyrone na outra noite. A SAS é uma unidade pequena. Como poderá imaginar, estão ansiosos por ficarem quites.

— Compreendo isso — respondeu Douglas. — Mas se for possível evitar que se derrame sangue inutilmente...

— Eles vão fazer os possíveis para capturarem os terroristas vivos — assegurou Michael. — Vai depender da forma como a Brigada para a Libertação do Ulster reagir quando descobrir que está a cair numa armadilha.

— Está na altura de o tirar daqui, senhor embaixador — disse Graham. — Já fez a sua parte. Receio é que a viagem de regresso não vá ser tão panorâmica como o percurso até aqui.

Michael e Douglas separaram-se no grande salão. Ao apertarem a mão, Douglas pôs um braço sobre o ombro do genro e disse:

— Tem cuidado contigo, Michael.

Graham conduziu Douglas pela casa, em direcção a uma entrada de serviço. Uma carrinha comercial estava à espera à porta, com o motor ligado. Tinha o nome de uma empresa de fornecimento de comida e serviços da zona estampado de lado. Douglas entrou e sen tou-se numa cadeira especial que tinha sido presa ao compartimento traseiro de carga. Piscou o olho. Graham fechou as portas de trás e a carrinha partiu a toda a velocidade.

 

No dia seguinte, ao início da manhã, Rebecca Wells estava na praia em Ardnacross Bay, na costa oeste da Escócia. Estava nevoeiro, muito frio e ainda bastante escuro, mesmo já tendo passado uma hora desde o nascer do Sol. Percorreu a estreita e rochosa praia, fumando um cigarro e bebendo o resto do Nescafé que tinha feito mais de doze horas antes. Sentia-se exausta, mas continuava acordada graças aos nervos e à adrenalina. A manhã não tinha vento e a água estava parada e calma. Do outro lado da baía, ficava o estreito de Kilbrannan. A sudoeste, atravessando o canal do Norte, ficava a costa de Antrim, na Irlanda do Norte.

Passaram mais vinte minutos. Rebecca estava a começar a ficar nervosa, interrogando-se se o barco viria ou não. Seria um Zodiac, dis-sera-lhe Kyle Blake, deitado à água pela lateral de um cargueiro de proprietários protestantes e vindo de Londonderry. A bordo, estaria um membro da brigada com um saco de lona carregado de armas para o assalto a Hartley Hall.

Passaram mais dez minutos enquanto Rebecca pensava se deveria ou não abortar a missão. O céu tinha clareado e os primeiros carros a saírem de manhã estavam em movimento na estrada atrás da praia. Foi só então que ouviu o barulho de um pequeno motor ecoando através da água parada. Um momento depois, surgiu um pequeno Zodiac, rompendo o nevoeiro na baía.

A medida que o barco se aproximava da costa, Rebecca observou o homem sentado na proa, com o timão do leme na mão. Era Gavin Spencer. Levantou a hélice e o Zodiac fundeou na praia. Rebecca avançou a correr para o barco e puxou a corda de guia.

— Que raio estás aqui a fazer? — perguntou-lhe.

— Queria participar nisto.

— E o Kyle sabe?

— Vai ficar a saber não tarda nada, não vai? — respondeu Spencer, saindo do Zodiac e levantando o saco de lona da proa. — Ajuda-me a tirar isto da praia.

Juntos, arrastaram o barco pela praia e esconderam-no nas dunas cobertas de tojo. Spencer regressou à praia e carregou o saco de lona aos ombros. Rebecca levou-o até ao Opel.

Observou a cara dela com atenção.

— Quando é que foi a última vez que dormiste?

— Já não me lembro.

— Guio eu.

Ela atirou-lhe as chaves. Ele colocou o saco de lona no porta-bagagens e, a seguir, sentou-se ao volante e ligou o motor; tremia com frio. Pôs o aquecedor no máximo e, passado um momento, o interior do Opel parecia uma sauna. Pararam na aldeia de Ballochgair e compraram chá e sanduíches de bacon num café à beira da estrada.

Spencer devorou três das sanduíches e saboreou o chá lentamente.

— Conta-me tudo — disse ele e, durante quinze minutos, Rebecca descreveu a topografia da costa de Norfolk e a configuração de Hartley Hall. Sentia-se exausta. Falava automaticamente, como se recitasse de memória, sem estar a pensar conscientemente. Era uma parvoíce que Gavin Spencer ali estivesse — era um estratega e não um atirador —, mas estava contente por ele ter vindo.

Rebecca fechou os olhos enquanto ele fazia mais perguntas. Esforçou-se por responder, mas ia sentindo a voz a ficar mais fraca enquanto o carro seguia a grande velocidade pela charneca erma e pela floresta de Carradale. O calor sufocante do aquecedor extinguiu-lhe as últimas forças. Adormeceu — o sono mais profundo que tinha tido em muito tempo — e só acordou quando já avançavam velozmente pela costa de Norfolk.


Capítulo 28

HARTLEY HALL, NORFOLK

 

Tudo indicava que era um típico dia de Inverno em Hartley Hall. O céu estava claro e luminoso e o ar fresco com o cheiro a maresia. Depois do almoço, foram até Cley no carro oficial de Douglas Cannon e caminharam pelas areias de Blakeney Point, embrulhados nos seus sobretudos e gorros de lã. O mar do Norte cintilava com a luz do sol brilhante. Os guarda-costas da Divisão Especial caminhavam silenciosamente atrás deles enquanto os retrievers de Nicholas Hartley aterrorizavam as andorinhas-do-mar e os gansos-de-brent. A chuva chegou à costa de Norfolk ao anoitecer. Na altura em que os convidados começaram a chegar para o jantar, a chuvada tinha-se desenvolvido e dado origem a uma verdadeira tempestade de Inverno do mar do Norte.

Pouco passava das dez da noite quando Gavin Spencer se esgueirou de trás do abrigo na North Wood e correu pelo meio das árvores, de regresso à praia. Abriu o porta-bagagens do Opel e tirou o saco de lona. Carregou o saco pelo parque de campismo e bateu na porta da caravana.

Rebecca Wells abriu as cortinas da janela junto à porta e espreitou para fora. Abriu a porta e Spencer entrou na caravana. O vento fechou a porta com força assim que ele entrou. O espaço minúsculo estava apinhado com os membros da sua unidade. Spencer tinha seleccionado a equipa pessoalmente e conhecia bem cada um dos homens: James Fletcher, Alex Craig, Lennie West e Edward Mills.

O ar estava carregado de fumo de cigarro e do cheiro de homens nervosos que tinham estado a dormir em tendas durante dois dias. Fletcher e Craig estavam sentados à pequena mesa da cozinha, West e Mills na borda da cama, com as caras por barbear e o cabelo despenteado. Rebecca estava a fazer chá.

Spencer colocou o saco de lona na cama e abriu o fecho rapidamente. Tirou as submetralhadoras Uzi uma a uma e passou-as aos homens, seguidas dos carregadores de munição. Um momento depois, a caravana estava repleta com o som do metal a bater no metal, à medida que a equipa enfiava os carregadores nas Uzi e experimentava engatilhá-las. Spencer pegou na última arma e atirou o saco de lona vazio para cima da cama.

— Onde está a minha? — perguntou Rebecca.

— Do que é que estás a falar?

— A minha arma — respondeu ela. — Onde é que está?

— Não tens treino para este tipo de coisas, Rebecca — disse Spencer suavemente. — O teu trabalho está feito.

Ela atirou a chaleira com força para cima da mesa.

— Então, podem fazer o raio do vosso próprio chá, não podem? Spencer avançou para ela e pousou-lhe uma mão no ombro.

— Agora não é altura para isso — disse delicadamente. — Acho que as nossas probabilidades de sucesso são de um em dois, na melhor das hipóteses. Alguns destes rapazes podem não conseguir voltar para casa. Não achas que lhes deves isso, manteres a cabeça fria?

Ela assentiu.

— Então muito bem. Vamos ao que interessa, sim?

Rebecca abriu o armário por cima do fogão e tirou um grande pedaço de papel dobrado. Abriu-o em cima da mesa, deixando ver um mapa pormenorizado de Hartley Hall e dos terrenos circundantes Spencer deixou-a conduzir a apresentação.

— Há várias entradas para o solar — disse. — A entrada principal, claro, é aqui — bateu com a ponta do dedo no diagrama , no alpendre sul. Também há entradas aqui na estufa das laranjeiras, aqui e aqui na ala leste, é a entrada de serviço principal, aqui. Todas as noites dei a volta à casa e tomei nota dos locais em que havia luzes acesas. Na noite em que o embaixador chegou, reparei numa luz acesa num quarto pela primeira vez, aqui no primeiro andar. Suspeito que o Cannon esteja a dormir aqui.

Spencer avançou e tomou o lugar dela.

— Quero deixá-los à nora. Quero criar uma confusão. Aproximamo-nos separadamente e entramos na casa ao mesmo tempo, às quatro horas. Eu vou pela frente. O James entra pela estufa das laranjeiras. O Alex e o Lennie vão entrar pela ala leste e o Edward avançará pela entrada de serviço. Alguns irão encontrar resistência. Outros não. Assim que estiverem lá dentro, dirijam-se logo para o quarto das visitas no andar de cima. E o primeiro a chegar enfia uma bala no embaixador. Alguma pergunta?

 

Os convidados começaram a sair logo depois da meia-noite, embora não fossem na verdade convidados que tivessem vindo jantar, mas sim um conjunto de vigias e administrativos do MI5, actores participando na ilusão da Operação Timbale. Quando os últimos se foram embora, os dois guarda-costas da Divisão Especial saíram de serviço e entraram dois novos agentes. Um deles fez uma ronda apressada pelo terreno, vestido com uma roupa de intempérie como se fosse um pescador do mar do Norte. A luz esteve acesa no quarto chinês até à uma da manhã, altura em que Michael se esgueirou lá para dentro e a apagou.

Um a um, os membros da equipa da SAS tinham assumido as suas posições no exterior da casa. Um ficou à espera no jardim murado, outro no parque dos veados. Um terceiro postou-se perto do canteiro de flores e um quarto no cemitério, junto à Igreja de St. Margaret. Os restantes ocuparam posições ao longo do rés-do-chão da casa.

Todos os soldados traziam óculos de visão nocturna com infravermelhos e um rádio em miniatura com um auscultador que lhes permitia comunicarem com o centro nevrálgico dentro do solar. Todos levavam uma HKMP5, a submetralhadora compacta que era o padrão para a SAS, bem como uma pistola Herstal de 5,7 milímetros para apoio. A Herstal é tida como uma das pistolas mais poderosas do mundo. Dispara balas de dois gramas a uma velocidade de cano de 650 metros por segundo e é capaz de penetrar quarenta e oito camadas de Kevlar laminado, a substância utilizada nos fatos à prova de bala, a uma distância de duzentos metros. Michael levava a pistola-padrão da CIA, uma Browning de nove milímetros de alta potência, com um carregador de quinze tiros. Graham Seymour não estava armado.

Os dois homens esperaram na sala de controlo, na parte de cima, no quarto das visitas do primeiro andar. O tempo estava a massacrar o equipamento de detecção electrónico.

Os detectores de movimento disparavam constantemente por causa do abanar das árvores e dos arbustos. Os microfones direccionais de alta potência estavam completamente dominados pelo barulho do vento e pela batida da chuva. Só as câmaras de vídeo com infravermelhos funcionavam correctamente.

Às 3h30, os agentes operacionais do MI5 colocados nos parques de campismo em redor de Hartley deram conta de movimentos por parte dos membros do esquadrão de assassinos.

Não seguiram os terroristas. Em vez disso, deixaram-nos prosseguir sem impedimentos, em direcção à propriedade.

Às 3h55, os operadores de câmara instalados no andar de cima de Hartley Hall avistaram de relance dois atiradores a colocarem-se em posição, um nas árvores em redor do parque dos veados e um segundo a avançar lentamente por entre as ruínas da aldeia, em direcção à Igreja de St. Margaret.

Às 3h58 em ponto, James Fletcher levantou-se do seu esconderijo no jardim e deslocou-se rapidamente pelo caminho de gravilha, na direcção da estufa das laranjeiras.

Antes de se juntar à brigada, Fletcher tinha feito parte da Associação de Defesa do Ulster, uma violenta organização paramilitar protestante. Com efeito, fora um dos mais prolíficos assassinos do grupo, com meia dúzia de assassínios confirmados de atiradores do IRA. Tinha cortado com a UDA quando esta concordou com um cessar-fogo durante as negociações de paz. Quando Gavin Spencer o abordou com a proposta de se juntar a um novo grupo, a Brigada para a Libertação do Ulster, aceitara sem hesitar.

Fletcher era virulentamente anticatólico e achava que o Ulster devia ser uma província protestante para pessoas protestantes. Também queria desesperadamente ser ele a matar o embaixador e, por isso, entrou em acção dois minutos antes, desobedecendo à ordem de Spencer para esperar até às quatro horas.

Fletcher trazia uma balaclava, um fato de treino preto e sapatos desportivos pretos com sola de borracha. Enquanto percorria o caminho, a gravilha ia sendo esmagada suavemente debaixo dos seus pés. Chegou às portas envidraçadas e experimentou o trinco; estavam trancadas. Deu meio passo atrás e golpeou a vidraça com a coronha da Uzi na parte mais próxima do trinco. Choveram fragmentos de vidro no chão de pedra.

Estava a passar a mão pelo buraco na vidraça quando ouviu atrás de si o som de passos na gravilha. Tirou a mão e colocou-a na Uzi. Estava prestes a rodar e disparar quando uma voz com sotaque inglês disse:

— Larga a arma e põe as mãos na cabeça. Sê um bom rapaz.

Fletcher calculou rapidamente as probabilidades de sair vencedor do encontro com o homem parado atrás de si. Se ele fosse da Divisão Especial, Fletcher possuía quase de certeza mais poder de fogo, embora os agentes de protecção da Divisão Especial fossem bem conhecidos por serem bons atiradores. Trazia uma protecção à prova de bala debaixo do fato de treino e conseguiria sobreviver a quase tudo menos a um tiro na cabeça. Também sabia que, se fosse preso, passaria provavelmente os anos que lhe restavam numa prisão inglesa.

James Fletcher agachou-se subitamente e rodou sobre si mesmo, levantando a arma numa posição de disparo. Viu o homem apenas por um instante, mas percebeu logo que não era da Divisão Especial, era da SAS, o que significava que tinham caído todos numa armadilha, a mesma armadilha em que o IRA caíra várias vezes com resultados desastrosos.

E Fletcher também percebeu que tinha acabado de cometer um erro de cálculo fatal.

A arma do soldado soltou apenas um estalido surdo. No entanto, sabia que ela tinha disparado porque conseguiu ver o clarão do cano. — salva de tiros desfez-lhe o fato de treino e perfurou-lhe a protecção à prova de bala, estilhaçando-lhe a espinha e abrindo-lhe um grande buraco no músculo do coração. Caiu para trás, destruindo as portas envidraçadas na queda e tombando no chão da estufa das laranjeiras. O homem da SAS surgiu à sua frente poucos segundos depois. Inclinou-se sobre Fletcher e agarrou-lhe a garganta bruscamente, à procura de um batimento cardíaco. A seguir, pegou na Uzi e afastou-se enquanto James Fletcher morria.

Edward Mills ouviu o som do vidro a estilhaçar-se enquanto corria por entre as ruínas em redor da Igreja de St. Margaret. Ainda mantinha o físico magro e levemente musculado que tinha feito dele campeão de corta-mato na escola e pulou facilmente sobre as pilhas de pedras e os muros baixos das ruínas. Tal como Fletcher, trazia um fato de treino preto e uma balaclava. A sua frente, emoldurada no brilho de Hartley Hall, ficava a Igreja de St. Margaret, assomando sobre o cemitério. Mills correu ao longo de um antigo caminho que partia da aldeia e seguia até às traseiras da igreja.

Nunca tinha feito nada de semelhante na vida, mas sentia-se surpreendentemente calmo. Era membro da Ordem de Orange — o pai fora o porta-estandarte da sua loja em Portadown, tal como o avô —, mas tinha evitado os paramilitares até ao Verão anterior. Foi nessa altura que o exército e a RUC tinham impedido a Ordem de Orange de marchar pela maioritariamente católica Garvaghy Road, em Portadown. Tal como a maioria dos homens da Ordem de Orange, Mills achava que tinha o direito inabalável de se manifestar numa estrada pública sempre que quisesse, independentemente do que os católicos pensassem. Para protestar contra o bloqueio, tinha permanecido nos terrenos junto à igreja de Drumcree durante seis semanas. Foi aí que Gavin Spencer o abordou, no parque de campismo improvisado e lamacento em Drumcree, e lhe pediu para aderir à Brigada para a Libertação do Ulster.

Agora, corria pelo velho cemitério, avançando por entre lápides e cruzes. Estava perto do portão de entrada para o cemitério, a correr sem esforço, quando sentiu uma dor aguda na canela esquerda. Ficou com as pernas enrodilhadas e caiu com força no chão, com a cara pa ra baixo. Tentou pôr-se em pé, mas, no segundo seguinte, um homem saltou-lhe para as costas, bateu-lhe duas vezes na nuca e agarrou-lhe. a boca com uma mão enluvada.

Mills sentiu-se a perder a consciência.

— Basta fazeres sequer um movimentozinho ou um grunhido e eu enfio-te uma bala na nuca — disse o homem. pelo tom de voz calmo, Edward Mills soube que a ameaça não era vã. E também teve a repugnante noção de que tinham caído direitinho numa armadilha. O homem tentou tirar-lhe a Uzi da mão. Tolamente, Mills resistiu. O homem enfiou-lhe o cotovelo na nuca e, um segundo depois, Mills desmaiou.

Alex Craig e Lennie West correram pela relva plana e vasta do parque dos veados, em direcção à ala leste de Hartley Hall. Os dois homens eram veteranos da UVF e já tinham trabalhado juntos muitas vezes. Moviam-se silenciosamente, lado a lado, com as armas prontas a disparar. Atingiram o final do parque dos veados e chegaram ao caminho de gravilha que levava à ala leste. Atrás deles, uma voz masculina gritou:

— Parem, larguem as armas e ponham as mãos na cabeça! Craig e West pararam, mas continuaram agarrados às Uzi.

— Larguem as armas, já! — repetiu a voz.

Quando tinham estado a acampar perto de Blakeney antes da operação, Craig e West tinham decidido que, se houvesse problemas, prefeririam lutar a ser presos. Olharam um para o outro.

— Parece que fomos enganados — sussurrou Craig. — Por Deus e pelo Ulster, hem, Lennie?

West assentiu com a cabeça e disse:

— Eu fico com o que está atrás de nós.

— Certo.

West atirou-se para o chão, rolou sobre si próprio e começou a disparar na escuridão. Alex Craig deitou-se de barriga para baixo e disparou sem parar para a ala leste, estilhaçando vidros. Segundos depois, viu a resposta numa das janelas estilhaçadas, um clarão do cano de uma submetralhadora com silenciador.

West viu a mesma coisa, deitado na relva alta do parque dos veados, mas era tarde de mais. Uma rajada de tiros obliterou-lhe a cabeça numa explosão de sangue e tecido cerebral.

Craig não fazia ideia do que tinha acontecido ao companheiro. Dirigiu o fogo para o atirador na janela, mas apareceu um segundo e depois um terceiro. Apercebeu-se de que a arma de West tinha ficado silenciosa. Virou-se e viu um cadáver sem cabeça jazendo junto a si na gravilha.

Esvaziou o primeiro carregador, enfiou outro na Uzi e começou a disparar novamente. Passados poucos segundos, o atirador que se encontrava dentro do solar acertou no alvo, tal como tinha feito o homem atrás de si no parque dos veados. O corpo de Craig foi despedaçado pelos disparos. Os seus tiros finais, disparados graças a um espasmo das mãos enquanto morria, estilhaçaram o sumptuoso relógio da cúpula da ala leste, fazendo parar os ponteiros nas 4h01.

Gavin Spencer, ao correr pela estrada de gravilha na direcção do alpendre sul, ouviu o intenso tiroteio no parque dos veados. Por um instante, pensou em voltar para trás e dirigir-se para o refúgio da Norfh Wood. Não fazia ideia do que tinha acabado de acontecer a nenhum dos seus homens. Teriam penetrado no solar? Teriam sido travados pelos guarda-costas da Divisão Especial?

Parou por um momento, com a cabeça a rodopiar e a respiração ofegante. Pôs-se à escuta de mais disparos, mas não ouviu nada a não ser a chuva e o vento. Recomeçou a correr. Passou pelas colunas trabalhadas do alpendre sul e encostou-se à porta.

De novo, parou para ouvir. O tiroteio parecia ter parado de vez. A porta estava trancada. Deu um passo atrás e abriu fogo, fechando os olhos por causa da chuva de lascas de madeira. Enfiou o pé na porta e despedaçou-a. Avançou para o átrio de entrada e parou, com a Uzi pronta a disparar.

Um vulto apareceu à entrada do grande salão: alto, de ombros largos, capacete e óculos de visão nocturna. SAS, pensou Spencer, sem dúvida. Rodou e fez pontaria com a Uzi O homem da SAS tentou disparar a arma, mas ela encravou. Esticou a mão para chegar a uma pistola, enfiada no coldre debaixo da axila, mas Spencer disparou uma rajada com a sua Uzi.

O tiros acabaram com o soldado. Spencer avançou e sacou a pistola do coldre. Atravessou o grande salão e começou a subir as escadas.

No centro de comando, o operador de rádio disse calmamente:

— Base para Alfa 534, base para Alfa 534, consegue ouvir-me? Repito, consegue ouvir-me?

Voltou-se e olhou para Michael.

— Não responde, senhor Osbourne. Acho que temos um terrorista à solta na casa.

— E onde é que está o homem do SAS mais perto dali?

— Ainda na ala leste.

Michael tirou a Browning automática do bolso do casaco. Engatilhou-a, enfiando a primeira bala na câmara.

— Manda-o vir para aqui, já!

Michael esgueirou-se pela entrada para o corredor escuro e fechou a porta depois de passar. Ouviu Gavin Spencer a subir com dificuldade a escadaria central e agachou-se, segurando a Browning com as duas mãos e os braços estendidos. Passados poucos segundos, avistou-o, subindo o último lanço de escadas.

— Larga a arma, já! — gritou Michael.

Gavin Spencer virou-se e apontou a Uzi na direcção de Michael. Este disparou dois tiros. O primeiro passou ao lado de Spencer e estilhaçou um dos bustos clássicos colocados ao longo da escadaria. u segundo atingiu-o no ombro esquerdo e atirou-o para trás.

Spencer não largou a Uzi e disparou uma rajada de tiros pelo corredor fora. Michael, armado apenas com a Browning e sem lugar para se proteger, não podia competir com um terrorista munido de uma Uzi.- Rodou a maçaneta da porta que tinha atrás de si e mergulhou de novo para o centro de comando.

Bateu com a porta e trancou-a.

— Baixem-se!

Graham Seymour e os outros agentes na sala atiraram-se para o chão no momento em que Gavin Spencer, lá fora, no corredor, disparou através da parede e da porta.

Todos os quartos da ala estavam ligados ao quarto contíguo por uma porta de comunicação. Michael correu para a porta e entrou no quarto seguinte. Repetiu o movimento mais duas vezes, até se encontrar no quarto chinês.

Lá fora, no corredor, conseguia ouvir Spencer, com a respiração pesada, obviamente cheio de dores. Michael atravessou o quarto e encostou-se à parede junto à porta.

Spencer disparou uma pequena rajada com a Uzi, estilhaçando a porta, e abriu-a com um pontapé. Ao entrar no quarto, Michael atingiu-o na cabeça, de lado, com a coronha da Browning.

Spencer vacilou, mas não caiu.

Michael acertou-lhe uma segunda vez.

Spencer caiu no chão e a Uzi tombou-lhe das mãos.

Michael saltou para cima dele, agarrando-lhe a garganta com uma mão e encostando-lhe a Browning à cabeça com a outra. Lá fora, no corredor, conseguia ouvir o tropel dos homens da SAS que se aproximavam.

— Não mexas a porra de um músculo — disse Michael. Spencer tentou tirá-lo de cima dele. Michael pressionou o cano da Browning contra a ferida do ombro de Spencer. Este gritou de dor e ficou quieto.

Dois homens da SAS chegaram ao quarto, com as armas apontadas para Spencer. Graham Seymour chegou uns segundos depois. Michael arrancou a balaclava da cabeça de Spencer. Sorriu ao reconhecer a cara.

— Oh, meu Deus — disse Michael, olhando para Graham. — Vejam só quem temos aqui.

— Gavin, meu caro — disse Graham indolentemente. — Que bom teres podido aparecer por cá.

Rebecca Wells viu tudo aquilo acontecer do abrigo na No Wood. O tiroteio tinha terminado e a noite estava repleta do som de sirenes distantes. Os primeiros carros da polícia avançaram a toda velocidade pela estrada da entrada, seguidos por um par de ambulâncias. Os homens tinham caído direitinhos numa armadilha e a culpa era dela..

Tentou controlar a raiva e pensar com clareza. Os britânicos tinham estado com certeza a vigiá-los durante o tempo todo. Havia provavelmente agentes no parque de campismo, agentes que a tinham seguido enquanto ela fazia o reconhecimento de Hartley Hall. Percebeu que tinha agora poucas opções. Se voltasse para a caravana ou se tentasse esconder-se na North Wood, seria presa.

Tinha três horas antes da primeira luz do dia — três horas para se afastar o mais possível da costa de Norfolk. O Opel não lhe servia de nada; estava lá atrás com a caravana, quase de certeza a ser vigiado pela polícia.

Se queria escapar de Norfolk, só tinha uma escolha.

Tinha de andar.

Pegou na mochila. Lá dentro, estavam o dinheiro, os mapas e a sua Walther automática. Norwich ficava a trinta e dois quilómetros a sul. Conseguia lá estar por volta do meio-dia. Podia comprar uma muda de roupa, alojar-se num hotel para se lavar, comprar tinta para o cabelo numa farmácia e mudar de aparência. De Norwich, podia apanhar uma camioneta ainda mais para sul, para Harwich, onde havia um grande terminal defemes para a Europa. Podia apanhar um ferry durante a noite para a Holanda e estar no continente pela manhã.

Tirou a arma da mochila, enfiou o capuz e começou a andar.


MARÇO


Capítulo 29

AMESTERDÃO

PARIS

 

Amesterdão era uma cidade que Delaroche adorava, mas nem mesmo Amesterdão, com as suas casas com empenas e os seus canais pitorescos, conseguia fazê-lo sair da neblina cinzenta de depressão que se tinha instalado sobre ele naquele Inverno. Tinha arrendado um apartamento numa casa com vista para um pequeno canal que corria entre o Herengracht e o Singel. As divisões eram amplas e arejadas, com janelas em arco e portas envidraçadas que davam para a água, mas Delaroche mantinha as persianas corridas a não ser quando se encontrava a trabalhar.

O apartamento não tinha mobília, com a excepção dos seus cavaletes, da cama e de uma cadeira grande junto às portas envidraçadas, onde se sentava e lia até tarde na maior parte das noites. Havia duas bicicletas apoiadas contra a parede no hall de entrada, uma italiana de comda, que ele utilizava para os longos passeios pelo campo plano holandês, e uma bicicleta de montanha, fabricada na Alemanha, para as pedras arredondadas das calçadas e as tijoleiras do centro de Ameserdao. Recusava-se a guardá-las na arrecadação à saída da casa, ao ontrário do que os restantes inquilinos faziam; havia um enorme mercado negro em Amesterdão para as bicicletas roubadas, até mesmo para as mais frágeis e com uma só velocidade que a maioria das pessoas usava para andar de um lado para o outro. A bicicleta de monta-a dele não teria sobrevivido mais do que uns quantos minutos.

De forma incaracterística, tinha ficado cada vez mais obcecado com a sua própria cara. Várias vezes ao dia, ia para a casa de banho e ficava a olhar fixamente para o seu reflexo no espelho. Nunca tinha sido um homem vaidoso, mas detestava o que agora via, pois isso ofendia-lhe o sentido artístico de proporção e simetria. Todos os dias fazia um desenho a lápis do rosto para documentar o longo processo de recuperação. A noite, deitado na cama sozinho, apalpava os implantes de colagénio que tinha nas faces.

Por fim, as incisões sararam e o inchaço desapareceu, e as suas feições estabilizaram numa mistura entediante e bastante feia. Leroux, o cirurgião plástico, tivera razão; Delaroche já não se reconhecia. Apenas os olhos se mantinham iguais, vivos e distintos, mas agora encontravam-se rodeados por banalidade e mediocridade.

As exigências de segurança do seu ofício tinham-no impedido de pintar a própria cara, mas pouco tempo depois de ter vindo para Amesterdão produziu um auto-retrato intensamente pessoal — um homem hediondo a olhar para um espelho e a ver um reflexo lindo a mirá-lo de volta. O reflexo era Delaroche antes da operação. Teve de se socorrer da memória para o trabalho, já que não possuía fotografias da sua antiga cara. Ficou com a obra durante alguns dias, encostada à parede do estúdio, mas a paranóia acabou por levar a melhor e ele estraçalhou a tela e pegou-lhe fogo na lareira.

Numa ou noutra noite, quando se sentia aborrecido ou agitado, Delaroche ia aos clubes nocturnos à volta da Leidseplein. Anteriormente, evitava os bares e os clubes nocturnos porque costumava atrair demasiado a atenção das mulheres. Agora, podia ficar sentado durante horas sem ser incomodado.

Nessa manhã, levantou-se cedo e fez café. Tomou um duche e vestiu umas calças de ganga e uma camisola de lã. Ligou o computador, verificou o e-mail e leu jornais on-line até que a rapariga alemã deitada na sua cama se mexeu.

Tinha-se esquecido do nome dela — qualquer coisa parecida com Ingrid, talvez Eva. Tinha ancas largas e seios pesados. Agora, a luz cinzenta da manhã, Delaroche apercebeu-se de que era uma criança, no máximo vinte anos. Tinha qualquer coisa de Astrid Vogel no seu aspecto desajeitado. Sentiu-se zangado consigo mesmo. Seduzira-a só pelo desafio — o mesmo que fazer uma subida íngreme de bicicleta no final de. uma longa viagem — e agora apenas queria que ela se fosse embora.

Ela levantou-se e enrolou um lençol à volta do corpo.

— Café? — perguntou.

— Na cozinha — respondeu ele, sem desviar os olhos do ecrã do computador.

Ela tomou o café ao estilo alemão, com uma grande quantidade de natas espessas. Fumou um dos cigarros de Delaroche e mirou-o em silêncio enquanto ele lia.

— Tenho de ir para Paris agora — disse ele.

— Leva-me contigo.

— Não.

Falou calmamente mas com firmeza. Outrora, quando usava esse tom de voz, uma rapariga como aquela era capaz de ter ficado nervosa ou ansiosa por deixar de estar na sua presença, mas ela limitou-se a olhar fixamente para ele, por cima da chávena de café, e a sorrir. Suspeitou que fosse devido à sua cara.

— Ainda não acabei o que tinha a fazer contigo — disse ela.

— Não temos tempo.

Ela fez beicinho, na brincadeira.

— E quando é que te vou ver outra vez?

— Não vais.

— Vá lá — disse ela. — Tu és interessante, estranho. Quero saber mais coisas de ti.

— Não, não queres — respondeu ele, desligando o computador.

Ela deu-lhe um beijo e afastou-se calmamente. Tinha as roupas espalhadas pelo chão: calças de ganga pretas rasgadas, uma camisa de flanela à lenhador, uma T-shirt preta de um concerto de uma banda de rock cujo nome Delaroche nunca tinha ouvido falar. Quando acabou de se vestir, pôs-se à frente dele e perguntou:

— Tens a certeza de que não me levas para Paris?

— Absoluta — respondeu ele resolutamente, mas havia qualquer coisa nela de que gostava. Disse suavemente: — Volto amanhã à noite. Vem cá ter às nove. Faço-te o jantar.

— Não quero jantar — atirou ela. — Quero-te a ti. Delaroche abanou a cabeça.

— Sou demasiado velho para ti.

— Não és nada demasiado velho. O teu corpo é maravilhoso e tens uma cara interessante.

— Interessante?

— Sim, interessante.

Olhou em redor do quarto, para as telas encostadas às paredes.

— Vais a Paris em trabalho? — perguntou.

— Sim.

Delaroche apanhou um táxi para a Centraal Station de Amesterdão e adquiriu um bilhete em primeira classe no comboio da manhã para Paris. Comprou jornais numa papelaria do terminal e leu-os enquanto o comboio avançava a alta velocidade pelo campo plano holandês, em direcção à Bélgica.

As notícias dessa manhã intrigaram-no. Durante a noite, um grupo paramilitar protestante da Irlanda do Norte tinha tentado assassinar o embaixador americano no Reino Unido quando este se encontrava a passar o fim-de-semana numa casa de campo em Norfolk. De acordo com os jornais, agentes da Divisão Especial tinham matado três membros do grupo e prendido outros dois. O alegado líder da Brigada para a Libertação do Ulster, um homem chamado Kyle Blake, tinha sido preso em Portadown. A polícia andava à procura de uma mulher relacionada com o grupo.

Delaroche dobrou o jornal e olhou pela janela. Suspeitava que Michael Osbourne, o genro do embaixador, estivesse envolvido de alguma forma no incidente. Em Míconos, o Director dissera-lhe que Osbourne tinha sido chamado de volta à CIA para lidar com a questão da Irlanda do Norte.

O comboio chegou à Gare du Nord, em Paris, ao início da tarde. Delaroche foi buscar a sua pequena maleta ao compartimento das bagagens. Atravessou rapidamente a estação e apanhou um táxi à saída. Estava hospedado num pequeno hotel na Rue de Rivoli, com vista para o Jardim das Tulherias. Disse ao taxista para o deixar a alguns quarteirões dali, na Rue Saint-Honoré, e fez o resto do caminho a pé.

Registou-se no hotel, fazendo-se passar por holandês e falando com o funcionário da recepção num francês com sotaque. Deram-lhe uma mansarda no último andar, com uma óptima vista para os jardins e para as pontes do Sena.

Enfiou um carregador na Beretta e saiu.

O doutor Maurice Leroux, cirurgião plástico, tinha um consultório num elegante edifício, na Avenue Victor Hugo, perto do Arco do Triunfo. Delaroche, sem revelar o nome, confirmou por telefone que o doutor dava consultas nesse dia. Disse à recepcionista que passaria mais tarde para se encontrar com ele e desligou abruptamente.

Sentou-se à mesa junto à janela num café do outro lado da rua e ficou à espera que Leroux saísse. Um pouco antes das cinco, Leroux desceu à rua. Trazia um sobretudo de caxemira cinzento e parecia ser o último homem em Paris que ainda usava uma boina. Ia a andar depressa e aparentava estar satisfeito consigo próprio. Delaroche deixou algum dinheiro em cima da mesa e saiu do café.

Leroux foi até ao Arco do Triunfo e, a seguir, contornou a Place Charles de Gaulle e avançou pela avenida dos Campos Elísios. Entrou no restaurante Fouquet's e foi cumprimentado por uma mulher de meia-idade. Delaroche reconheceu-a; era uma actriz de pouca importância que fazia papéis secundaríssimos em dramas televisivos franceses.

O chefe de mesa conduziu Leroux e a actriz envelhecida até à parte do restaurante que servia de clube. Delaroche instalou-se numa mesa na parte pública do restaurante, de onde podia ver a porta. Pediu um prato de carne picada com batatas e bebeu meia garrafa de um Bordéus decente. A seguir, continuando a não haver sinal de Leroux, pediu queijo e café au lait.

Passaram praticamente duas horas até Leroux e a sua companhia saírem do restaurante. Delaroche observou-os pelo vidro. Estava vento e Leroux levantou a gola do sobretudo de caxemira de modo exagerado. Deu um beijo teatral à actriz e tocou-lhe na face, como se admirasse a sua obra. Ajudou-a a entrar num carro. A seguir, comprou jornais e revistas num quiosque e começou a andar pelo meio das multidões murmurantes que se deslocavam pelos Campos Elísios ao final da tarde.

Delaroche pagou a conta e seguiu-o.

Maurice Leroux gostava de andar. Com os jornais enfiados debaixo do braço, caminhou pelos Campos Elísios até chegar à Place de la Concorde. Não tinha razões para suspeitar que estava a ser seguido e, por isso, ir atrás dele era muito fácil. Delaroche tinha apenas de lhe acompanhar o ritmo pelos passeios movimentados. O corte do sobretudo caro e a boina ridícula faziam com que fosse fácil de localizar no meio da multidão. Atravessou o Sena pela Pont de la Concorde e caminhou durante muito tempo pelo Boulevard Saint-Germain. Delaroche acendeu um cigarro e fumou enquanto andava.

Leroux entrou num bistrô junto à Igreja de Saint-Germain-des-Prés e sentou-se ao balcão. Delaroche entrou uns momentos mais tarde e sentou-se a uma mesa pequena perto da porta. Leroux bebeu vinho e conversou com o barman. Uma rapariga bonita ignorou os avanços dele.

Passada meia hora, Leroux saiu do bar, já bastante bêbado. Isso agradou a Delaroche, pois iria tornar a sua tarefa mais fácil. Leroux cambaleou pelo Boulevard Saint-Germain, no meio da chuva fraca, e entrou numa pequena rua secundária perto da estação de metro de Mabillon.

Parou à entrada de um prédio de apartamentos e introduziu o código de segurança. Delaroche esgueirou-se pela porta antes de esta se fechar. Entraram ao mesmo tempo no elevador, uma jaula à moda antiga enfiada no meio da escadaria. Leroux carregou no botão para o quinto andar, Delaroche no do sexto. Começou a fazer conversa, falando do tempo horrível que estava, num francês com um forte sotaque parisiense. Leroux grunhiu qualquer coisa ininteligível. Era óbvio que não reconhecia o seu paciente.

Leroux saiu no seu andar. Quando o elevador começou a subir, Delaroche espreitou pela grade e viu Leroux a entrar no apartamento.

Saiu do elevador no sexto andar e desceu pelas escadas até ao andar de baixo. Bateu ao de leve à porta de Leroux.

O médico abriu a porta um momento depois, claramente surpreendido, e perguntou:

— Posso ajudá-lo?

— Sim — respondeu Delaroche, dando-lhe um soco na garganta com um punho que mais parecia uma faca.

O murro deixou Leroux dobrado de dor, sem conseguir falar e a ofegar. Delaroche fechou a porta.

— Quem é você? — perguntou Leroux, arquejando. — O que é que quer?

— Sou o tipo a quem você martelou a cara. Percebeu que era Delaroche.

— Meu Deus — sussurrou.

Delaroche tirou a Beretta munida de um silenciador do casaco. Leroux começou a tremer violentamente.

— Eu sou de confiança — disse. — Já tratei de muitos homens como você.

— Não, não tratou — respondeu Delaroche, acertando-lhe com dois tiros no peito.

Delaroche regressou a Amesterdão no dia seguinte, ao início da tarde. Voltou para o apartamento de táxi e preparou uma mochila azul de nylon com o seu kit de pintura: duas telas pequenas, tintas, uma máquina fotográfica Polaroid, um cavalete portátil e a Beretta. Seguiu na bicicleta de montanha pelas ruas de pedras arredondadas até chegar a um local no Keizersgracht onde havia uma boa ponte com luzes nos arcos, que se acendiam depois de anoitecer.

Prendeu a bicicleta com um cadeado e caminhou pela ponte durante algum tempo, até encontrar uma vista panorâmica de que gostava, com casas flutuantes em primeiro plano e um trio de sumptuosas casas com empenas em segundo. Foi buscar a máquina fotográfica à mochila e tirou várias fotografias do que via, primeiro a preto-e-branco, para se aperceber das formas e linhas essenciais do cenário, e depois a cores.

Pôs-se ao trabalho, pintando depressa, instintivamente, apressando-se para captar o crepúsculo fugidio antes de a escuridão se instalar por completo. Quando as luzes começaram a ganhar vida, tremeluzindo na ponte, pousou o pincel e limitou-se a observar. Estudou o reflexo das luzes na superfície lisa do canal durante muito tempo.

Esperou que o quadro lançasse o seu feitiço — esperou que a imagem dos olhos mortos de Maurice Leroux se evaporasse da sua mente —, mas isso não aconteceu.

Um comprido táxi aquático passou por ele a deslizar. O reflexo das luzes dissolveu-se à sua passagem. Delaroche arrumou as suas coisas. Seguiu pelo Keizersgracht, segurando a tela cuidadosamente na mão direita. Noutra cidade qualquer, poderia ter atraído olhares com uma pose dessas, mas não em Amesterdão.

Delaroche atravessou o Keizersgracht na Reestraat e depois pedalou lentamente ao longo do Prinsengracht, até que a velha casa flutuante lhe apareceu à frente. Prendeu a bicicleta com uma corrente a um candeeiro, encostou a tela ao pneu da frente e saltou para a coberta.

O Krista tinha treze metros e meio de comprimento, com uma casa do leme na popa, uma proa esguia e uma sucessão de vigias ao longo da amurada. A tinta verde e branca começava a escamar devido à falta de cuidado. A escotilha no cimo da escada estava protegida com um forte cadeado. Delaroche ainda tinha a chave. Destrancou a escotilha e desceu pela escada até ao salão, que se encontrava na escuridão, tirando o leve brilho amarelo dos candeeiros de rua que entrava pelas clarabóias sujas.

O barco tinha sido de Astrid Vogel. Tinham vivido ali os dois no Inverno anterior, depois de Delaroche a ter contratado para o ajudar numa série de assassínios particularmente difíceis. Conseguia imaginá-la naquele momento, com o seu corpo comprido aos encontrões nos espaços apertados da casa flutuante. Olhou para a cama e recordou-se de fazer amor com ela, com a chuva a martelar na clarabóia. Astrid tinha pesadelos; costumava esmurrá-lo enquanto dormia. Uma vez, acordou depois de um pesadelo, surpreendida por encontrar Delaroche na cama dela. Quase lhe deu um tiro antes de ele conseguir sacar-lhe a arma da mão.

Delaroche não tinha regressado ao Krista desde então. Passou vários minutos a vasculhar armários e gavetas, à procura de algum vestígio de si mesmo que pudesse ter deixado para trás. Não descobriu nada. E também não havia nada de Astrid, apenas umas roupas assustadoras e alguns livros com as páginas já bem marcadas. Astrid estava habituada a viver escondida. Tinha feito parte da Facção Exército Vermelho[33] e tinha passado muitos anos em locais como Beirute, Tripoli e Damasco. Sabia como andar de um lado para o outro sem deixar pistas.

A independência obsessiva de Delaroche tornava-o incapaz de amar outra pessoa, mas tinha gostado de Astrid e, mais importante, tinha confiado nela. Era a única mulher que sabia a verdade acerca dele. Conseguia descontrair ao pé dela. Tinham planeado ir para as Caraíbas quando o trabalho tivesse sido feito — para viverem juntos numa relação parecida com um casamento —, mas a mulher de Michael Osbourne matara-a em Shelter Island.

Delaroche subiu as escadas e trancou a escotilha antes de se ir embora. Subiu para a bicicleta e pedalou em direcção ao apartamento, iluminado pela luz dos candeeiros.

Delaroche matava por duas razões: porque era contratado para matar ou para se proteger. Maurice Leroux entrava na segunda categoria. Nunca tinha matado por raiva, tal como nunca tinha matado por vingança. Acreditava que a sede de sangue por motivos de vingança era a mais destrutiva das emoções. E também achava que não era própria de um profissional da sua grandeza. Mas, naquele momento, ao atravessar de bicicleta as ruas de uma cidade estranha, com uma cara que não reconhecia, Delaroche sentia-se dominado pelo desejo de matar Michael Osbourne.

Viu a rapariga alemã à espera, sentada à frente da casa. Atravessou para a outra margem do canal e aguardou. Não tinha vontade de voltar a vê-la. Por fim, ela acabou por escrevinhar um bilhete e enfiá-lo por baixo da porta antes de sair disparada pelo canal fora. Delaroche apanhou o bilhete ao entrar no foyer. — És um cabrão de merda! Liga-me, por favor, beijos, Eva — e empurrou a bicicleta para dentro do apartamento.

Entrou no estúdio e largou o quadro por terminar numa pilha com outras obras incompletas. De repente, detestava-o; parecia-lhe rebuscado, pouco imaginativo, entediante.

Despiu o casaco e colocou uma grande tela em branco no cavalete. Tinha-a pintado uma vez, mas o quadro, tal como o resto das suas posses, fora destruído em Míconos.

Ficou ali parado, à meia-luz, a pensar no quadro durante muito tempo, tentando lembrar-se da cara dela. Tinha um certo lado bizantino, recordava-se: maçãs do rosto largas, uma boca grande e móvel, olhos azuis cristalinos um pouco afastados de mais. A cara de uma mulher de outro tempo e lugar.

Ligou as fortes lâmpadas de halogéneo suspensas no tecto e começou a trabalhar. Descartou uma tela por não gostar da pose e uma segunda por a estrutura dos ossos faciais estar completamente errada. A terceira tela pareceu-lhe certa desde que começou a trabalhar nela. Pintou a memória visual mais persistente que tinha dela — Astrid, encostada a um corrimão de ferro forjado com ferrugem, na varanda de um hotel no Cairo, vestida apenas com uma djelaba para homem desabotoada até ao estômago, com o brilhante pôr do Sol através do tino algodão branco, revelando-lhe as linhas suaves das costas e os seios arrebitados.

Trabalhou pela noite dentro, até ser de manhã. Tinha poluído o corpo com café, vinho e cigarros. Quando terminou, não conseguia dormir porque tinha uma dor de cabeça.

Carregou a tela para o quarto e apoiou-a ao fundo da cama. Por fim, algum tempo depois do meio-dia, mergulhou num sono agitado.


Capítulo 30

LONDRES

NOVA IORQUE

 

Michael Osbourne foi obrigado a permanecer em Londres por mais três dias a seguir ao caso Hartley Hall, para lidar com o verdadeiro inimigo de qualquer funcionário do mundo da espionagem: a burocracia. Tinha passado dois dias a prestar declarações demoradas às autoridades. Tinha ajudado Wheaton a pôr as coisas em ordem depois do suicídio de Preston McDaniels. Tinha colaborado com a Divisão Especial com o objectivo de reforçar a segurança em redor de Douglas. Tinha estado presente no serviço fúnebre dos dois agentes da SAS assassinados nas montanhas Sperrin, na Irlanda do Norte.

O último dia em Londres foi passado numa cela à prova de som, nas profundezas das catacumbas de Thames House, suportando o cerinmonial de interrogatórios levado a cabo pelos mandarins do MI5. Quando tudo terminou, andou à chuva por Millbank durante vinte Minutos, à procura de um táxi, porque Wheaton tinha requisitado, sob um pretexto dúbio, o carro atribuído a Michael. Por fim, refugiou-se na estação de metropolitano de Pimlico e apanhou o metro.

Londres, uma cidade que adorava, parecia-lhe de repente desoladora e opressiva. Sabia que estava na altura de voltar para casa.

Na manhã seguinte, Graham surgiu no caminho de acesso a Winfield House para levar Michael até Heathrow, dessa vez num jaguar e não no Rover do seu departamento.

— Temos de parar a meio do caminho para o aeroporto — anunciou Graham quando Michael entrou para o banco de trás e se sentou ao lado dele. — Nada de grave, meu caro.

Só umas quantas pontas soltas para atar.

O carro deixou Regentis Park e seguiu para sul, ao longo da Baker Street. Graham mudou de assunto.

— Viste isto? — perguntou, apontando para um artigo no Times dessa manhã acerca do misterioso homicídio de um proeminente cirurgião plástico francês.

— Dei uma olhadela — respondeu Michael. — O que é que tem?

— Ele era um grande maroto.

— Que queres dizer com isso?

— Sempre suspeitámos de que andava a ganhar uns dinheirinhos extra a dar um jeito às caras dos mauzões — respondeu Graham. — O bom do doutor fazia várias visitas ao domicílio em sítios exóticos como Tripoli e Damasco. Pedimos aos franceses para ficarem de olho nele e, como de costume, disseram-nos basicamente para nos irmos foder.

Michael leu o artigo; consistia em dois parágrafos, apenas com o mínimo de pormenores. Maurice Leroux tinha sido morto a tiro no seu apartamento no sexto arrondissement[34] de Paris. A polícia parisiense estava a investigar.

— Que tipo de arma é que o assassino usou?

— De nove milímetros.

O Jaguar avançou para sul a grande velocidade, ao longo de Park Lane, e a seguir atravessou Green Park, passando por Constitution Hill. Passado um momento, dobrou os portões do Palácio de Buckingham.

Michael olhou de soslaio para Graham.

— Contigo nunca há um minuto chato, pois não?

— Nem eu queria que fosse de outra maneira.

— É tão bom vê-lo outra vez, senhor Osbourne — disse a rainha Isabel ao entrarem numa sala de estar do palácio. — Por favor, Sente-se.

Michael sentou-se. Foi servido chá e os assessores e assistentes da rainha retiraram-se. Graham Seymour ficou à espera na antessala.

— Quero agradecer-lhe pelo óptimo trabalho que fez ao lidar com a ameaça da Brigada para a Libertação do Ulster — disse a rainha. — O povo da Irlanda do Norte tem uma dívida tremenda para consigo. Na verdade, o mesmo é válido para toda a Grã-Bretanha.

— Obrigado, Vossa Majestade — respondeu Michael educadamente.

— Tive muita pena do que aconteceu ao seu agente, aquele que foi morto na Irlanda do Norte — disse a rainha e, a seguir, interrompeu-se por uns instantes, com a atrapalhação estampada no rosto, e levou os olhos ao tecto. — Oh, Deus do Céu, não consigo lembrar-me do nome do pobre homem.

— Kevin Maguire — disse Michael.

— Ah, sim, o Mensageiro — respondeu a rainha, utilizando o nome de código de Maguire. — Que assunto tão horroroso que isso foi. Senti-me aliviada por saber que o senhor não tinha ficado gravemente ferido. Mas compreendo que perder um agente como o Mensageiro de uma forma tão horrível o deva ter afectado profundamente.

— O Kevin Maguire não era perfeito, mas inúmeras pessoas estão hoje vivas por causa dele. Foi necessária uma tremenda dose de coragem para trair o IRA e, no final, acabou por pagar com a própria vida.

— E quais são os seus planos agora que a ameaça protestante parece ter sido neutralizada? Está a pensar em continuar na CIA ou reformar-se e desaparecer outra vez?

— Ainda não tenho a certeza — respondeu Michael. — Neste preciso momento, gostava apenas de ir para casa e ver a minha mulher e os meus filhos. Já estou fora há demasiado tempo.

— Não sei se conseguiria estar casada com uma pessoa que fizesse o seu tipo de trabalho.

Michael sorriu.

— É preciso um tipo muito especial de mulher.

— Então, a sua mulher apoia-o?

— Eu não iria tão longe, Vossa Majestade.

— Suponho que o senhor tenha de fazer aquilo que o faz feliz — disse a rainha. — E, se trabalhar para a CIA o faz feliz, tenho a certeza de que ela irá compreender.

É um trabalho importante, sem dúvida. Devia estar bastante orgulhoso do que conseguiu aqui.

— Obrigado, Vossa Majestade. E estou orgulhoso.

— Bom, uma vez que parece que por enquanto vai continuar dentro da CIA, suponho que vamos ter de fazer isto em privado.

— Fazer o quê, Vossa Majestade? — perguntou Michael.

— Armá-lo cavaleiro honorário.

— Está a brincar.

A rainha sorriu travessamente e respondeu:

— Eu nunca brinco com coisas desta importância.

Abriu uma pequena caixa rectangular e concedeu a Michael a medalha de Cavaleiro Honorário do Império Britânico.

— É linda — disse. — Sinto-me honrado e muito lisonjeado.

— E deve sentir-se.

— E tenho de me ajoelhar?

— Não seja tonto — respondeu a rainha. — Termine mas é o chá e conte-me qual foi a sensação de capturar o Gavin Spencer.

 

— Quer dizer que acabei de fazer sexo com um cavaleiro de verdade? — perguntou Elizabeth.

— Receio bem que sim.

— Acho que és o meu primeiro.

— É bom que seja.

— Então e do que é que vocês os dois falaram, além da Irlanda do Norte?

— Falámos de ti.

— Oh, por favor.

— A sério.

— E o quê de mim?

— Ela queria saber se eu ia continuar na CIA ou reformar-me e desaparecer outra vez, como ela disse.

— E o que é que lhe respondeste?

— Respondi-lhe que não sabia.

— Que cobarde.

— Cuidadinho. Olha que sou um cavaleiro, lembras-te?

— Então, qual é a resposta?

— Por uma das primeiras vezes na minha carreira na CIA, sinto que consegui de facto realizar qualquer coisa. É uma sensação boa.

— Portanto, queres continuar?

— Quero ouvir o que a Mónica tem a dizer antes de tomar qualquer decisão final. E quero ouvir o que tu tens a dizer.

— Michael, tu sabes o que eu acho. Mas também preciso que estejas feliz. E estranho, mas, ao ouvir-te nesta última hora, parece que já não estavas assim tão feliz há meses.

— Então, o que é que estás a dizer?

— Estou a dizer que gostava imenso que conseguisses trabalhar noutro sítio e seres feliz, sem ser na CIA. Mas se é aquilo que queres, e vais sentir-te satisfeito, então quero que continues.

Apagou o cigarro, calcando-o, desapertou o roupão e rebolou para cima dele, encostando os seios à sua pele quente.

— Promete-me só uma coisa — disse. — Se achas mesmo que o Outubro está vivo, deixa que seja outra pessoa a ir atrás dele.

— Ele matou a Sarah, e tentou matar-nos aos dois.

— É por isso que devia ser outra pessoa a tratar do caso. Pede escusa, Michael. Deixa o Adrian dar o trabalho a outra pessoa, alguém sem um interesse pessoal em jogo. — Fez uma pausa. — Alguém que não esteja à procura de vingança.

— E o que é que te leva a pensar que eu estou à procura de vingança?

— Deixa-te disso, Michael. Não sejas desonesto contigo próprio ou comigo. Tu queres vê-lo morto e eu não te levo a mal. Mas a vingança é um jogo perigoso. Não aprendeste nada enquanto estiveste na Irlanda do Norte?

Michael virou-lhe as costas. Ela pôs-lhe as mãos na cara e puxou-o para junto de si.

— Não fiques zangado comigo... só não quero que te aconteça alguma coisa. — Beijou-o suavemente. — Segue o conselho da tua advogada neste assunto. Acabou. Esquece isso.


Capítulo 31

MÍCONOS

 

O Conselho Executivo da Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais reuniu para a sua sessão da Primavera na ilha de Míconos, na primeira sexta-feira de Março. A villa desocupada de Delaroche, nos penhascos do cabo Mavros, serviu de local para a reunião. Era demasiado pequena para poder alojar mais alguém além do Director, dos seus guarda-costas e de Daphne, pelo que os outros membros do conselho e os seus séquitos se refugiaram nos hotéis e residenciais de Chora. Ao pôr do Sol, atravessaram a ilha lentamente — os chefes dos serviços secretos e os negociantes de armas, os homens de negócios e as figuras do crime organizado —, numa caravana de Range Rover pretos.

O Director e o seu pessoal tinham tratado das medidas de segurança. Havia guardas fortemente armados à volta do recinto e um barco a motor de alta velocidade na baía de Panormos, repleto de antigos membros das tropas anfíbias da SAS. A villa tinha sido vasculhada de uma ponta à outra, em busca de escutas, e instrumentos bloqueadores de rádio emitiam interferências electrónicas para perturbar quaisquer microfones de longo alcance.

Beberam cocktails no elegante terraço de pedra de Delaroche, com vista para o mar, e comeram uma refeição tradicional grega. A meia-noite, o Director abriu os trabalhos.

Durante a primeira hora, o Conselho Executivo debruçou-se sobre questões de limpeza doméstica rotineiras. Como sempre, os membros do conselho trataram-se uns aos outros pelos nomes de código: Rodin, Monet, Van Gogh, Rembrandt, Rothko, Miguel Angelo e Picasso. O Director voltou a sua atenção para as operações da sociedade que se encontravam em andamento na Coreia do Norte, Paquistão, Afeganistão, Kosovo e, por fim, na Irlanda do Norte.

— Em Fevereiro, o Monet fez com que um carregamento de sub-metralhadoras Uzi chegasse às mãos da Brigada para a Libertação do Ulster — disse o Director. — Essas armas foram utilizadas na tentativa de assassínio do embaixador Douglas Cannon. Infelizmente, parece que não surtiram qualquer efeito. O embaixador sobreviveu ao atentado, mas a Brigada para a Libertação do Ulster não. A maior parte dos seus membros está morta ou presa. Por isso, para já, o nosso envolvimento na Irlanda do Norte está terminado.

O Director deu a palavra a Rodin, o chefe de operações dos serviços secretos franceses.

— Se quisermos renovar o nosso envolvimento na Irlanda do Norte, é possível que haja uma oportunidade à nossa espera em Paris — disse ele.

O Director levantou uma sobrancelha e disse:

— Continua, por favor.

— Como sabem, um dos membros da equipa envolvida na tentativa de assassínio em Norfolk conseguiu escapar — disse Rodin. — Uma mulher chamada Rebecca Wells. Acontece que sei que ela está escondida em Paris com um mercenário britânico chamado Roderick Campbell. E também sei que ela jurou ajustar contas depois do que se passou em Norfolk. Anda a tentar encontrar um assassino capaz de matar o embaixador americano.

O Director acendeu um cigarro, claramente intrigado.

— Talvez devêssemos estabelecer contacto directo com a Rebecca Wells e oferecer-lhe ajuda — rematou Rodin.

O Director fez questão de dar a entender que estava a ponderar muito bem a questão. Em última análise, a decisão seria tomada pelo Conselho Executivo e não por ele, mas a sua opinião teria um peso considerável junto dos outros membros. Passado um momento, disse:

— Duvido que a menina Wells possa pagar os nossos serviços.

— Concordo — respondeu Rodin. — O trabalho teria de serpro bono. Como costuma dizer, seria um investimento.

O Director voltou-se para Picasso, que parecia apreensivo.

— Por razões óbvias, não posso apoiar uma operação como a sugerida — disse Picasso. — Apoio a um grupo paramilitar protestante é uma coisa, envolvimento directo no assassínio de um diplomata americano é outra e de que maneira.

— Compreendo que te encontres numa posição difícil, Picasso — respondeu o Director. — Mas sabias desde o início que algumas das acções tomadas por esta organização poderiam entrar em conflito com os teus próprios interesses tacanhos. Aliás, é esse o espírito de cooperação personificado pela sociedade.

— Compreendo, Director.

— E, se o Conselho Executivo der a sua bênção a esta operação, não podes fazer nada que a impeça de ter êxito.

— Tem a minha palavra, Director.

— Muito bem — disse o Director, olhando em redor da sala. — Todos os que estão a favor indiquem-no dizendo sim.

A reunião terminou logo a seguir ao amanhecer. Um a um, os membros do Conselho Executivo saíram da villa e voltaram para Chora, atravessando Míconos. Picasso ficou para trás para ter uma conversa privada com o Director.

— O caso de Hartley Hall... — começou por dizer o Director com frieza, observando o Sol a aparecer no horizonte. — Foi uma armadilha, não foi, Picasso?

— Foi uma vitória muito importante para os nossos serviços. Vai fazer com que seja mais difícil aos nossos detractores dizerem que perdemos o nosso rumo neste mundo pós-guerra fria. — Picasso deteve-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou com cautela: — Pensava que resultados como este eram o objectivo desta organização.

— Com efeito — respondeu o Director, sorrindo laconicamente. — Estavas mais do que no teu direito de agir contra a Brigada para a Libertação do Ulster de maneira a favorecer os teus próprios interesses. Mas agora a sociedade decidiu ajudar a brigada a levar a cabo uma tarefa específica, o assassínio do embaixador Cannon, e tu não podes fazer nada que impeça que isso vá para a frente.

— Compreendo, Director.

— Na verdade, há uma coisa que podes fazer para ajudar.

— Que é o quê?

— Faço tenções de atribuir a missão ao Outubro — respondeu o Director. — E o Michael Osbourne parece estar numa cruzada para descobrir o Outubro e destruí-lo.

— Tem boas razões.

— Por causa da questão da Sarah Randolph?

— Sim.

O Director fez um ar de desapontamento.

— O Osbourne parece ser um agente tão talentoso — disse. — Esta fixação por vingar o passado causa-me espanto. Quando é que esse tipo mete na cabeça que aquilo não foi nada pessoal, apenas trabalho?

— Não será nos tempos mais próximos, receio eu.

— Chegou-me aos ouvidos que ele está à frente da busca pelo Outubro.

— É verdade, Director.

— Se calhar, era melhor para todos os envolvidos se ele recebesse outras responsabilidades. Com certeza que um agente com talentos tão óbvios poderia ser mais bem utilizado noutro sítio qualquer.

— Não posso estar mais de acordo.

O Director aclarou a garganta suavemente.

— Ou talvez fosse melhor se o Osbourne ficasse completamente fora do caminho. Chegou muito perto de nós durante o caso da TransAdantic. Demasiado perto para o meu gosto.

— Eu não teria quaisquer objecções, Director.

— Muito bem — rematou. — Está feito.

Daphne queria apanhar sol e o Director concordou relutantemente em passar o resto do dia em Míconos antes de regressar a Londres. Ela ficou estendida no terraço, com o seu longo corpo exposto ao sol. Ele nunca se cansava de a olhar. Há muito que o Director tinha perdido a capacidade de fazer amor com uma mulher — suspeitava que tivessem sido os segredos, os anos de mentiras e encobrimentos a deixá-lo impotente — e, por isso, admirava Daphne como se poderia admirar um belo quadro ou escultura. Era a coisa por ele possuída que mais estimava.

Era um homem impaciente por natureza, apesar do seu comportamento tranquilo, e, ao início da tarde, já tinha apanhado todo o sol e ar do mar que conseguia aguentar.

Além disso, era no seu íntimo um homem de acção e estava ansioso para deitar as mãos ao trabalho. Partiram ao pôr do Sol e atravessaram Míconos de carro, a caminho do aeroporto. Nessa noite, já depois de o avião do Director ter deixado a ilha, uma série de explosões deflagrou na villa caiada nos penhascos do cabo Mavros.

Stavros, o agente imobiliário, foi o primeiro a chegar. Telefonou do seu telemóvel para os bombeiros e ficou a ver as chamas engolirem a villa. Monsieur Delaroche tinha-lhe dado um número em Paris, Marcou-o e preparou-se para comunicar a notícia ao seu cliente — que a sua adorada casa acima da baía de Panormos já não existia.

O telefone tocou uma vez e ouviu-se uma gravação. Stavros falava um pouco de francês, o suficiente para perceber que o número tinha sido desconectado. Carregou no botão e cortou a ligação.

Ficou a observar os bombeiros a tentarem em vão extinguir as chamas. Foi no carro até Ano Mera e dirigiu-se para a taberna. Estava lá o grupo do costume, a beber vinho e a comer azeitonas e pão. Stavros contou a história.

— Sempre houve qualquer coisa de esquisito com aquele Delaroche — vaticinou Stavros depois de terminar. Fez uma careta, sorrindo afectadamente, e olhou fixamente para um copo turvo de ouzo. — Percebi isso mal pus os olhos nele.

 

 

 


CONTINUA