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A MARCHA
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Biblio VT

 

 

 

 

 

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.


CONTINUA

Capítulo 9

LONDRES

 

— Quanto tempo é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou sem ponta de emoção o funcionário do guiché de controlo de passaportes.

— Só um dia.

Michael Osbourne entregou o passaporte, que tinha o seu nome verdadeiro porque a CIA lhe tinha ficado com os passaportes falsos quando ele se reformara — pelo menos, aqueles de que tinham conhecimento. Ao longo dos anos, vários serviços de espionagem com quem os americanos mantinham boas relações também lhe tinham concedido passaportes por cortesia profissional. Podia viajar como espanhol, italiano, israelita ou francês. E até obtivera um passaporte egípcio de um elemento que fazia parte dos serviços secretos desse país, o que lhe permitia entrar em certos países do Médio Oriente como árabe em vez de estrangeiro. Nenhum desses serviços secretos tinha pedido que lhes devolvessem esses passaportes depois de Michael abandonar o mundo da espionagem. Estavam fechados no cofre de Douglas Cannon em Shelter Island.

A inspecção ao passaporte estava a demorar mais do que o habitual. Obviamente, tinha sido marcado pelos serviços de segurança britânicos. Da última vez que estivera em Inglaterra, Michael tinha sido apanhado no meio do ataque da Espada de Gaza ao Aeroporto de Heathrow. Também levara a cabo uma reunião não autorizada com um homem chamado Ivan Drozdov — um desertor do KGB sob a protecção do MI6 — que tinha sido assassinado mais tarde nesse dia.

— Onde é que vai ficar no Reino Unido? — perguntou o funcionário com uma voz inexpressiva, enquanto lia algo no pequeno ecrã do computador à sua frente.

— Em Londres — respondeu Michael. O funcionário olhou para cima.

— Em que sítio de Londres, senhor Osbourne?

Michael indicou a morada de um hotel em Knightsbridge ao funcionário, que a apontou diligentemente. Sabia que ele daria o endereço ao supervisor e que o supervisor o daria aos serviços de segurança internos da Grã-Bretanha, o MI5.

— Tem uma reserva feita nesse hotel, senhor Osbourne?

— Sim, tenho.

— Está em seu nome?

— Sim.

O funcionário devolveu-lhe o passaporte.

— Tenha uma boa estadia.

Michael apanhou o seu pequeno saco de roupa, passou pela alfândega e entrou no átrio das chegadas. Tinha telefonado do avião para o seu antigo serviço de carros de aluguer em Londres. Perscrutou a multidão que estava à espera, à procura do motorista e, instintivamente, de qualquer indício de vigilância: uma cara familiar, uma figura que por qualquer razão parecesse deslocada, um par de olhos a observá-lo.

Descortinou um pequeno motorista de limusina com um fato escuro e a segurar um cartão que dizia SR. stafford. Michael atravessou o átrio e disse:

— Vamos embora.

— Quer que leve o seu saco?

— Não, obrigado.

Michael deixou-se cair no banco de trás do grande Rover enquanto este ia avançando lentamente pelo trânsito cerrado da manhã, em direcção ao West End. A auto-estrada tinha dado lugar às fachadas eduardianas dos hotéis ao longo da Cromwell Road. Michael conhecia Londres perfeitamente; tinha vivido num apartamento em Chelsea durante mais de dez anos, quando era agente operacional. A maior parte dos agentes da CIA colocados no estrangeiro trabalha a partir de embaixadas, com cargos diplomáticos a servirem de disfarce. Mas Michael tinha trabalhado em contraterrorismo, recrutando e orientando agentes nos campos de recreio para terroristas na Europa e no Médio Oriente. Uma tarefa desse género era praticamente impossível sob disfarce diplomático e, por isso, Michael tinha actuado como um NOC[15], o que no léxico da CIA significava possuir um "disfarce não oficial". Fez-se passar por um vendedor de uma companhia que desenhava sistemas informáticos de gestão de empresas. A companhia era uma fachada da CIA, mas o cargo permitia a Michael viajar pela Europa e Médio Oriente sem levantar suspeitas.

O agente responsável por Michael, Adrian Cárter, costumava dizer que, se existia alguém nascido e criado para espiar, esse alguém era Michael Osbourne. O pai tinha trabalhado para o OSS[16] durante a Segunda Guerra Mundial, entrando depois para o serviço clandestino do seu sucessor, a CIA. Michael e a mãe, Alexandra, seguiram-no da posto para posto — Roma, Beirute, Atenas, Belgrado e Madrid — com pequenas passagens pela sede. Enquanto o pai orientava espiões russos, Michael e a mãe absorviam línguas e culturas. A pele e o cabelo escuro permitiam-lhe passar por italiano ou espanhol, ou mesmo por um determinado tipo de árabe libanês. Costumava testar-se a si próprio em mercados e cafés para ver quanto tempo passava sem que reconhecessem que era um forasteiro. Falava italiano com sotaque de Roma e espanhol como se fosse natural de Madrid. Tinha algumas dificuldades com o grego, mas dominava o árabe de forma tão perfeita, que os donos das lojas no soukh de Beirute partiam do pressuposto de que era libanês e não o enganavam.

O carro chegou ao hotel. Michael pagou ao motorista e saiu. Era um hotel pequeno, sem porteiro nem concierge — apenas uma bonita rapariga polaca atrás de uma secretária de carvalho, com chaves penduradas em cavilhas por trás de si. Registou-se e pediu serviço de despertar para as 14h.

A reforma não tinha conseguido fazer com que Michael perdesse uma saudável paranóia profissional. Durante cinco minutos, inspeccionou o quarto, virando candeeiros, abrindo portas de armários, desfazendo o telefone e depois montando-o outra vez cuidadosamente. Tinha realizado o mesmo ritual em milhares de quartos de hotel, numa centena de cidades diferentes. Apenas uma vez descobrira uma escuta — uma peça de museu de fabrico soviético toscamente ligada ao telefone de um quarto de hotel em Damasco.

A revista que efectuou não resultou em nada. Ligou a televisão e viu o noticiário da manhã na BBC.

A ministra para a Irlanda do Norte, Mo Mowlam, asseverou que nunca será permitido ao novo grupo paramilitar protestante, a Brigada para a Libertação do Ulster, destruir o acordo de Sexta-Feira Santa. Pediu ao chefe de polícia da RUC, Ronnie Flanagan, que redobrasse os esforços para capturar os líderes do grupo terrorista.

Michael desligou a televisão e fechou os olhos, ainda vestido com a roupa que usara durante a viagem. Foi adormecendo e acordando sucessivamente, debatendo-se com o cobertor e suando por baixo da roupa, até o telefone tocar com grande alarido. Por um instante, pensou que tinha sido transportado para lá da Cortina de Ferro, mas era apenas a rapariga polaca da recepção, de cabelos cor de linho, a informá-lo gentilmente que eram duas horas da tarde.

Pediu para lhe trazerem café, tomou um duche e vestiu umas calças de ganga, sapatos de camurça, uma camisola de gola alta preta e um blaer azul. Pendurou o aviso de não incomodar na maçaneta da porta e deixou um sinal na ombreira.

Lá fora, o céu estava da cor da pólvora e o vento frio dobrava as árvores do Hyde Park. Levantou a gola do seu sobretudo, prendeu o cachecol ao pescoço com um nó e começou a andar, primeiro ao longo da Knightsbridge e, a seguir, pela Brompton Road. Descobriu o primeiro vigia: pouco cabelo, na casa dos quarenta, casaco de cabedal, barba por fazer no queixo. Anónimo, vulgar, nada ameaçador, perfeito para o trabalho de rua.

Comeu uma omeleta num café francês na Brompton Road e leu o Evening Standard. Um líder do grupo muçulmano fundamentalista Hamas tinha sido assassinado no Egipto.

Michael leu o artigo e depois leu-o uma segunda vez e pensou nele mais um bocado enquanto caminhava para o Harrods. O vigia meio careca tinha desaparecido e havia um novo no seu lugar — o mesmo modelo, mas com um casaco Barbour verde-floresta em vez de um casaco de cabedal. Entrou no Harrods, fez uma visita obrigatória ao altar dedicado a Dodi e Diana e, a seguir, subiu pelas escadas rolantes. O homem do casaco Barbour seguiu-o. Comprou uma camisola escocesa para Douglas e uns brincos para Elizabeth. Tornou a descer as escadas e deambulou pelo átrio da comida. Um novo vigia estava a segui-lo; uma jovem bastante atraente, com calças de ganga, botas de combate e um casaco acolchoado castanho-claro.

Tinha caído a noite, e com ela viera uma chuva varrida pelo vento. Deixou o saco do Harrods na recepção do hotel e fez sinal a um táxi para parar. Durante a hora e meia seguinte, deslocou-se sem parar pelo West End — de táxi, de metro e de autocarro —, passando por Belgravia, Mayfair, Westminster e, por fim, Sloane Square.

Caminhou para sul, até alcançar o Chelsea Embankment.

Ficou parado à chuva, a olhar para as luzes da Chelsea Bridge. Tinham passado mais de dez anos desde a noite em que Sarah Randolph tinha sido morta a tiro naquele sítio, mas a imagem da morte dela de-senrolou-se nos seus pensamentos como se estivesse gravada em vídeo. Viu-a, a andar na sua direcção, com a saia comprida a dançar à frente das botas de camurça e o Embankment a brilhar com a neblina do rio. Foi então que o homem apareceu, o homem de cabelo preto, com olhos azuis brilhantes e uma pistola automática com silenciador — o assassino do KGB que Michael conhecia apenas como Outubro, o mesmo homem que tinha tentado assassinar Michael e Elizabeth em Shelter Island. Michael fechou os olhos enquanto o rosto de Sarah lhe irrompia pelos pensamentos. A CIA assegurara-lhe que Outubro estava morto, mas agora, depois de ter lido o relato do assassínio de Ahmed Hussein no Cairo, ele não tinha tanta certeza.

— Acho que estou a ser seguido — disse Michael, de pé junto à janela com vista para a Eaton Place.

— E estás a ser seguido — respondeu Graham Seymour. — O departamento marcou o teu passaporte. Foste um rapaz muito maroto da última vez que fizeste uma visita à nossa formosa ilha. Apanhá-mos-te esta manhã em Heathrow.

Michael aceitou o copo de scotch oferecido por Graham e sentou-se na poltrona de orelhas junto à lareira. Seymour abriu uma cigarreira de ébano na mesa de café e tirou dois Dunhill, um para si próprio e outro para Michael. Sentaram-se em silêncio, dois velhos companheiros que já tinham contado um ao outro todas as histórias que conheciam, contentes apenas por se sentarem na presença um do outro. Vivaldi tocava baixinho no elaborado sistema de som alemão. Graham fechou os olhos cinzentos e saboreou o cigarro e o uísque.

Graham Seymour trabalhava para a divisão de contraterrorismo do MI5. Tal como Michael, fora uma criança-prodígio. O pai tinha trabalhado de perto com John Masterman na operação Traição[17] do MI5 durante a Segunda Guerra Mundial, capturando espiões alemães e lançando-os contra os seus chefes da Abwehr[18], em Berlim. Tinha continuado no MI5 depois do final da guerra e trabalhado contra os russos. Harold Seymour era uma lenda, e o filho andava permanentemente a chocar com a sua memória na sede e a dar de caras com as suas proezas nos ficheiros de casos antigos. Michael compreendia a pressão que isso colocava em Graham, porque também ele tinha passado pela mesma coisa na CIA. Os dois homens desenvolveram uma amizade quando Michael se encontrava colocado em Londres. Tinham trocado informações de tempos a tempos e tinham-se protegido mutuamente. Ainda assim, as amizades têm limites bem definidos no ramo da espionagem, e Michael mantinha uma saudável desconfiança profissional em relação a Graham Seymour. Sabia que ele o apunhalaria pelas costas se o MI5 lhe ordenasse que o fizesse.

— Não é prejudicial para ti seres visto com um leproso como eu? — perguntou Michael.

— Um jantar com um velho amigo, meu caro. Não há mal nenhum nisso. Além do mais, tenciono servir-lhes uns bons mexericos sobre o funcionamento interno das coisas em Langley.

— Há mais de um ano que não ponho os pés em Langley.

— Ninguém se reforma verdadeiramente neste ramo. O departamento perseguiu o meu pai até ao dia em que ele morreu. De cada vez que acontecia alguma coisa especial, enviavam alguns homens simpáticos para prestarem tributo ao grande Harold.

Michael levantou o copo e disse:

— Ao grande Harold.

— Apoiado.

Graham bebeu um pouco de uísque.

— Então, afinal de contas, como é que é estar reformado?

— Uma treta.

— A sério?

— Sim, a sério — disse Michael. — Foi bom durante um período, especialmente enquanto estive a recuperar, mas passado algum tempo comecei a dar em doido. Tentei escrever o meu livro, mas depois decidi que escrever as minhas memórias aos quarenta e oito anos era um exercício de extrema e exclusiva absorção comigo próprio. Por isso, leio livros de outras pessoas, arrasto-me por aí e dou longas caminhadas por Manhattan.

— Então e as crianças? — Graham fez a pergunta com o cepticismo de um homem que tinha elevado a ausência de filhos a uma religião. — Como é ser pai pela primeira vez, com a tua idade?

— Que raio é que queres dizer com isso da "tua idade"?

— Quero dizer que tens quarenta e oito anos, meu caro. A primeira vez que tentares jogar uma partida de ténis com os teus filhos podes muito bem cair morto com um ataque de coração.

— É maravilhoso — respondeu Michael. — E a melhor coisa que alguma vez fiz.

— Mas...? — perguntou Graham.

— Mas passo o dia inteiro fechado no apartamento com as crianças e estou a começar a ficar ligeiramente doido.

— Então, que estás a pensar fazer com o resto da tua vida?

— Arranjar um problema com a bebida. Mais scotch, se fazes favor.

— Com certeza — disse Graham.

Fez um grande alarde ao agarrar a garrafa com as suas grandes mãos e deitar um nadinha de uísque no copo de Michael. Graham possuía uma grande destreza, uma elegância escandalosa e nada artificial, até mesmo no mais simples dos gestos. Michael achava-o demasiado bonito para ser espião: os olhos cinzentos meio fechados que projectavam uma insolência aborrecida, os traços finos que seriam atraentes na cara de uma mulher. No seu íntimo, era um artista, um pianista dotado que podia ter ganho a vida nos palcos dos concertos e não no palco da espionagem, caso o tivesse decidido fazer. Michael partiu do pressuposto de que tinham sido os feitos heróicos do pai em tempo de guerra — "o raio da sua guerra maravilhosa", tinha rosnado uma vez Graham depois de beber demasiado Bordéus — que o haviam levado ao trabalho de espionagem.

— Então, quando o senador te pediu para te armares em freelancer em relação à Brigada para a Libertação do Ulster...

— Eu não bati propriamente com os pés no chão e resisti.

— E a Elizabeth percebeu o teu joguinho?

— A Elizabeth percebe tudo. Ela é advogada, lembras-te? E bem boa, caraças. E também teria dado um excelente agente secreto. — Michael hesitou por um momento.

— Então, o que é que me podes dizer sobre a Brigada para a Libertação do Ulster?

— Muitíssimo pouco, receio. — Graham hesitou. — As regras habituais do jogo, certo, Michael? Quaisquer informações que eu te dê servem exclusivamente para a tua documentação. Não as podes partilhar com nenhum membro do teu antigo serviço... ou de outro serviço qualquer, já agora.

Michael levantou a mão direita e disse:

— Palavra de honra.

Graham falou durante vinte minutos sem interrupção. As organizações de espionagem e segurança britânicas não tinham a certeza se a Brigada para a Libertação do Ulster reunia cinco membros ou quinhentos. Centenas de conhecidos membros de organizações paramilitares protestantes tinham sido interrogados e nenhum tinha fornecido uma única pista útil. A sofisticação dos ataques sugeria que o grupo possuía conhecimentos e apoios financeiros importantes. Havia também provas que indicavam que os líderes iriam até às últimas consequências para salvaguardar a segurança interna. Charlie Bates, um protestante suspeito do assassínio de Eamonn Dillon, fora descoberto morto a tiro num celeiro à saída de Hillsborough, no condado de Armagh, e os bombistas de Dublin e Londres tinham morrido ambos nas explosões — um facto que não tinha sido tornado público.

— Isto é a Irlanda do Norte, não é Beirute Ocidental — disse Graham. — Os norte-irlandeses não são bombistas suicidas. Isso não faz simplesmente parte da textura do conflito.

— Portanto, os líderes da Brigada para a Libertação do Ulster recrutam agentes sem ligações paramilitares conhecidas para executar as acções e a seguir certificam-se de que eles morrem para que não fique ninguém para trás que possa falar.

— Parece ser esse o caso — respondeu Graham.

— Então, o que é que esta Brigada para a Libertação do Ulster está a tentar fazer?

— Se os levarmos à letra, estão determinados a destruir o processo de paz. Se os julgarmos pelas acções, não se irão contentar em matar alguns simples católicos como fazem os seus irmãos protestantes da Força de Voluntários Lealistas[19]. Demonstraram a sua vontade em atacar alvos desprotegidos com alta visibilidade e em derramar sangue inocente.

— A mim, parece-me que estão determinados a castigar todas as partes envolvidas no processo de paz.

— Exactamente — respondeu Graham. — O governo irlandês, o governo britânico, o Sinn Fein. E acho que os líderes dos partidos protestantes que assinaram o acordo também deviam ter cuidado.

— E os americanos?

— O vosso senador George Mitchell mediou o acordo de Sexta-Feira Santa e os protestantes da linha dura nunca foram muito à bola com os americanos. Acham que vocês tomaram claramente o partido dos católicos e querem que o Norte se una à República da Irlanda.

— Logo, o embaixador americano em Londres terá de considerar-se ele próprio um alvo potencial.

— A Brigada para a Libertação do Ulster já demonstrou muito claramente que tem a vontade e os conhecimentos para levar a cabo actos de terrorismo impressionantes.

Atendendo aos seus feitos até à data, eliminar um embaixador americano parece ser uma possibilidade razoável.

Uma hora mais tarde, encontraram-se com a mulher de Graham, Helen, num restaurante francês chamado Marcello's, em Covent Gar-den. Helen estava vestida de preto: uma camisola preta muito justa, uma saia preta curta, meias pretas e sapatos pretos com saltos impossivelmente grossos. Passava por fases, como se fosse uma adolescente.

Da última vez que Michael tinha estado em Londres, Helen encontrava-se em pleno período mediterrânico — andava vestida como uma camponesa grega e cozinhava só com azeite. Depois de muito tempo afastada de qualquer exercício profissional, aceitara recentemente um cargo de directora artística numa editora com muito sucesso.

O novo emprego trazia consigo um invejado espaço no parque de estacionamento da empresa. Tinha requisitado o BMW de Graham e insistia em ir de carro para o trabalho todas as manhãs, a ouvir os seus pavorosos CD de rock alternativo e a gritar com a mãe ao telemóvel, apesar de a viagem demorar metade do tempo se fosse feita de metro. Era o género de mulher que dava a volta à cabeça dos membros do Departamento de Recursos Humanos. Graham fazia-lhe as vontades porque era linda e porque era dotada. Possuía uma paixão pela vida que o serviço tinha extinguido há muito nele. Usava-a como quem usa uma gravata espalhafatosa.

Helen já estava sentada numa mesa ao pé da janela, a beber um copo de vinho de Sancerre. Levantou-se, deu um beijo na cara de Michael e abraçou-o com força por um momento.

— Meu Deus, é tão bom ver-te, Michael.

Marcello apareceu, todo ele sorrisos e bonhomie[20], e serviu vinho a Michael e a Graham.

— Não se incomodem a olhar para o menu — avisou Helen —, porque eu já pedi para vocês.

Graham e Michael fecharam as ementas em silêncio e entregaram-nas sem protestar. O regresso de Helen ao sector da população activa tinha-a deixado sem tempo para se dedicar à sua grande paixão, que era cozinhar. Infelizmente, o talento dela acabava à porta da sua moderna cozinha escandinava de cinquenta mil libras. Agora, ela e Graham comiam sempre em restaurantes. Michael reparou que ele começava a engordar.

Helen falou do trabalho dela, porque sabia que Michael e Graham não podiam falar do seu.

— Estou a tentar acabar a capa para um novo thriller — disse ela.

— Um americano horrível que escreve sobre assassinos em série. De quantas maneiras diferentes se pode ilustrar um assassino em série? Eu produzo uma capa, enviamo-la para o outro lado do Atlântico e o agente em Nova Iorque rejeita-a. Às vezes, é mesmo frustrante, raios.

— Olhou para Michael e os seus brilhantes olhos verdes ficaram subitamente sérios. — Meu Deus, estou a ser uma chata da pior espécie. Como é que está a Elizabeth?

Michael olhou para Graham. Fez um aceno de cabeça quase imperceptível. Graham desrespeitava frequentemente os regulamentos dos serviços de segurança, contando demasiadas coisas a Helen acerca do seu trabalho.

— Há dias melhores do que outros — respondeu Michael. — Mas, no geral, está óptima. Transformámos o apartamento e a casa em Shelter Island em fortalezas. Ajuda-a a dormir melhor à noite. E depois há as crianças. Entre o trabalho dela e os gémeos, fica com pouco tempo para pensar no passado.

— E ela matou realmente aquela mulher alemã... Oh, meu Deus, Graham, qual era mesmo o nome dela?

— Astrid Vogel — respondeu Graham.

— Ela fez mesmo isso com um arco e flecha? Michael confirmou com um movimento da cabeça.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O que é que aconteceu?

— A Astrid Vogel seguiu-a até ao chalé dos convidados, onde tu e o Graham ficaram há alguns anos. A Elizabeth escondeu-se no armário do quarto. Um dos arcos antigos dela estava lá. Tinha sido campeã de arco quando era miúda, tal como o pai. Fez o que tinha de fazer para sobreviver.

— E o que é que aconteceu ao outro assassino, aquele fulano, o Outubro?

— A CIA recebeu informações através de canais em que confiava de que o Outubro está morto e de que tinha sido assassinado pelo homem que o contratou para me assassinar por ter fracassado.

— E acreditas nisso? — perguntou Helen.

— Já acreditei que fosse remotamente possível — respondeu Michael. — Mas agora não acredito minimamente nisso. Aliás, tenho quase a certeza de que o Outubro está vivo e a trabalhar outra vez. Este assassínio no Cairo...

— Ahmed Hussein — interrompeu Graham, para deixar Helen mais esclarecida.

— Li os relatos das testemunhas oculares cuidadosamente. Não posso explicar, mas soa-me simplesmente a ele.

— Mas o Outubro não dava sempre um tiro na cara das vítimas?

— Sim, mas se supostamente está morto faz sentido que tenha sido obrigado a alterar a sua assinatura.

— E o que é que pensas fazer? — perguntou Graham.

— Tenho uma reserva no primeiro voo para o Cairo, amanhã de manhã.


Capítulo 10

CAIRO

 

Michael chegou ao Cairo no início da tarde do dia seguinte. Tal como na Grã-Bretanha, entrou no país com o passaporte verdadeiro e foi-lhe concedido um visto turístico de duas semanas. Avançou decidido pelo meio da loucura do átrio das chegadas do aeroporto — passou por beduínos que traziam todos os seus bens materiais a abarrotar dentro de caixas de cartão amarrotadas, passou por um rebanho de cabras a balir — e esperou vinte minutos na praça de táxis por uma grande carripana lada. Foi fumando cigarros para tapar o fedor do escape que entrava em catadupa para o banco de trás.

Michael achava o Cairo intoleravelmente quente no Verão, mas os Invernos eram invulgarmente agradáveis. O ar estava morno e ameno e um vento do deserto ia enxotando nuvens brancas e fofas ao longo de um céu azul. A estrada que seguia do aeroporto estava apinhada de egípcios pobres a tentarem tirar algum prazer do borra tempo: famílias inteiras esparramadas no separador central arrelvado, em redor dos seus almoços de piquenique. O taxista falou com ele em inglês, mas Michael queria ver se os seus conhecimentos se tinham atrofiado e por isso respondeu-lhe num árabe rápido. Disse ara taxista que era um homem de negócios libanês, a viver em Londres, que tinha fugido de Beirute durante a guerra. Durante meia hora, falaram da Beirute dos velhos tempos, Michael num irrepreensível árabe com sotaque de Beirute, o taxista com o sotaque da sua aldeia no delta do Nilo.

Michael estava cansado do Nile Hilton — e farto da confusão da Tahrir Square — e, por isso, reservou um quarto no InterContinental, um edifício cor de arenito que se avultava sobre a Corniche e que, tal como todas as construções mais recentes no Cairo, apresentava as cicatrizes do pó e dos fumos de diesel. Estendeu-se na piscina da cobertura, a beber cerveja egípcia morna e com a cabeça a fluir de um pensamento para outro, até o Sol desaparecer no deserto a ocidente e começar a chamada da tarde para a oração — primeiro um muezim, a uma grande distância, depois outro, e mais outro, até haver um milhar de vozes gravadas a gritar em uníssono. Forçou-se a sair da espreguiçadeira e dirigiu-se para a parte da vedação com vista para o rio. Alguns fiéis foram-se encaminhando para as mesquitas, mas, na sua maioria, o Cairo continuou a agitar-se lá em baixo.

Às cinco horas, foi para o quarto, tomou um duche e vestiu-se. Apanhou um táxi e fez uma viagem curta, rio acima, com destino a um restaurante chamado Paprika, ao lado da imponente sede da rede de televisão egípcia estatal. O Paprika era o equivalente do Joe Allen em Nova Iorque, um lugar onde os actores e os escritores vinham para serem vistos uns pelos outros e pelos egípcios suficientemente abastados para poderem pagar pela comida bastante medíocre. Um dos lados do restaurante tinha vista para o parque de estacionamento da televisão egípcia. Eram essas as mesas mais cobiçadas porque, por vezes, os clientes conseguiam ver de fugida um actor, uma celebridade ou um importante membro do governo.

Michael tinha reservado uma mesa no lado menos popular do restaurante. Ficou a beber água engarrafada e a ver o Sol pôr-se no Nilo e pensou no primeiro agente que tinha recrutado, um agente secreto sírio instalado em Londres e que tinha um fraco por raparigas inglesas e bom champanhe. A CIA suspeitava que o sírio andava a desviar parte dos fundos destinados às operações para alimentar os seus hábitos. Michael abordou o agente, ameaçando denunciá-lo aos seus superiores em Damasco, e coagiu-o a ser um espião a soldo da CIA. O agente forneceu informações valiosas sobre o apoio dado pela Síria a diversos grupos terroristas, tanto árabes como europeus. Dois anos após ser recrutado, forneceu a sua informação mais valiosa. Uma célula terrorista da OLP tinha-se instalado em Frankfurt, onde estava
a planear colocar uma bomba num clube nocturno frequentado por militares americanos. Michael transmitiu a informação à sede e esta informou a polícia da Alemanha Federal, que prendeu os palestinianos. O sírio recebeu cem mil dólares pela informação e Michael foi condecorado com a Medalha de Distinção em Espionagem, numa cerimónia secreta. A medalha teve de ficar guardada num arquivo da sede.

Yousef Hafez entrou no restaurante. Ao contrário do sírio, Hafez ingressara na CIA voluntariamente e não através de coerção. Tinha a beleza carnuda de uma estrela de cinema envelhecida: cabelo preto a ficar grisalho, feições quadrangulares suavizadas pelos dez quilos a mais, fissuras profundas à volta dos olhos quando sorria.

Era coronel da Mukhabarat, os serviços secretos egípcios, e a sua função passava por combater os rebeldes fundamentalistas islâmicos do Egipto, a Al-Gama'at Ismalyya.

Tinha capturado e torturado com as próprias mãos vários dos seus líderes. O posto da CIA no Cairo tinha recrutado Hafez, mas ele recusou-se a trabalhar com agentes ali instalados, pois os movimentos destes eram monitorizados de muito perto pelo seu próprio serviço. Michael fora destacado para o caso. Hafez tinha fornecido um fluxo de informação constante sobre a situação da insurreição islâmica no Egipto e sobre o movimento dos terroristas egípcios à escala mundial. Em troca, tinha sido pago principescamente — dinheiro que ajudou a cobrir os custos de ser um mulherengo sem remissão. Hafez gostava de mulheres mais novas e elas gostavam dele. Achava que não estava a fazer nada que pusesse o seu país, em perigo e, por isso, não se sentia culpado.

Falou com Michael em árabe — suficientemente alto para que as pessoas que jantavam nas mesas vizinhas o pudessem ouvir — e Michael seguiu-lhe o exemplo. Perguntou-lhe o que o trazia à cidade e Michael respondeu que estava ali para tratar de negócios no Cairo e em Alexandria. Por um momento, uma onda de excitação percorreu o restaurante quando uma famosa actriz egípcia saiu do carra e entrou no edifício da televisão.

— Porquê o Paprika? — perguntou Michael. — Pensava que o teu restaurante preferido era o Arabesque.

— E é, mas vou encontrar-me com uma pessoa aqui quando tivermos acabado.

— Como é que ela se chama?

— Dá pelo nome de Cassandra. Vem de uma família grega de Alexandria. É a criatura mais deslumbrante que eu alguma vez vi. Interpreta uma personagem menor num drama na televisão egípcia, uma cabrazinha que está sempre a causar problemas... dentro dos limites da nossa estrita moral islâmica, claro.

O empregado aproximou-se da mesa.

— Vou tomar um uísque antes de comermos. E tu, Michael?

— Cerveja, por favor.

— Um Johnnie Walker Black com gelo e uma Stella. O empregado desapareceu.

Michael perguntou:

— Que idade é que ela tem?

— Vinte e dois — respondeu Hafez orgulhosamente. As bebidas chegaram. Hafez ergueu o seu Johnnie Walker.

— Saúde.

Michael bebeu a sua cerveja e acendeu um dos cigarros Silk Cut que tinha comprado em Heathrow. Hafez era o equivalente muçulmano de um católico não praticante. Não tinha qualquer conflito com a sua religião, cujos rituais e cerimónias lhe davam o conforto de um cobertor de infância, mas ignorava tudo o que no Alcorão o impedisse de desfrutar das coisas mundanas. E também trabalhava na maioria das sextas-feiras, o sabat muçulmano, porque as suas funções o obrigavam a monitorizar os sermões dos xeques egípcios mais radicais.

— E ela sabe o que fazes na vida?

— Digo-lhe que importo automóveis da Mercedes para o Egipto, o que justifica o meu bem equipado ninho de amor em Zamalek.

Acenou com a cabeça na direcção do rio. Zamalek era uma ilha comprida e estreita, afastada da loucura do centro do Cairo, cheia de lojas e restaurantes caros e de prédios de apartamentos na moda. Se Hafez mantinha uma amante em Zamalek — e uma actriz de televisão, ainda por cima —, tinha por certo chantageado um aumento de salário significativo ao agente que se encontrava agora responsável por si.

— Ah, aqui está ela.

Michael virou-se discretamente na direcção da porta do restaurante. Uma mulher que se parecia espantosamente com Sophia Loren entrou de braço dado com um jovem de cabelo oleoso e óculos escuros.

Escolheram o jantar. Hafez pediu que servissem uma garrafa de champanhe francês caro na mesa de Sophia Loren. Era Michael quem iria pagar; era ele quem pagava sempre.

— Não te importas, pois não, Michael? — perguntou Hafez.

— Claro que não.

— Então, o que te traz ao Cairo, para além da oportunidade de jantar com um velho amigo debochado?

— O assassínio do Ahmed Hussein.

Hafez inclinou ligeiramente a cabeça, como que para dizer que eram coisas que aconteciam. Michael perguntou:

— Os serviços de segurança egípcios estiveram envolvidos no assassínio?

— De maneira nenhuma — respondeu Hafez. — Nós não nos dedicamos a comportamentos desses.

Michael revirou os olhos e inquiriu:

— E sabes quem é que esteve por trás do assassínio?

— Os israelitas, claro.

— Como é que podes estar tão seguro?

— Porque andávamos a vigiar os israelitas que andavam a vigiar o Hussein.

— Volta atrás — disse Michael. — Começa do princípio.

— Há duas semanas, uma equipa de israelitas entrou no Cairo com vários passaportes europeus e montou um posto de observação permanente num apartamento em Ma'adi.

E nós montámos um posto permanente no apartamento em frente, do outro lado da rua.

— Como é que sabem que eles eram israelitas?

— Por favor, Michael, por quem é que nos tomas? Oh, eles podiam passar por egípcios, mas eram sem dúvida israelitas. Costumavam ser bons, os tipos da Mossad. Mas, agora, às vezes agem como um grupo de amadores trapalhões. Nos velhos tempos, conseguiam atrair os melhores — cada espião um príncipe, e toda essa treta. Agora, os rapazes inteligentes querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel na Rua Ben Yehuda. Deixa-me que te diga, Michael, se Moisés tivesse tido esta gente a espiar para ele, os judeus nunca teriam conseguido sair do Sinai.

— Já deixaste a tua posição bem clara, Yousef. Continua.

— Eles estavam a vigiar o Hussein sem sombra de dúvida; a controlarem-lhe os movimentos, vigilância fotográfica, cobertura áudio, o habitual. Aproveitámos a oportunidade para nos dedicarmos a uma operaçãozinha de contravigilância. O resultado é que temos um lindo álbum de fotos de seis agentes da Mossad: quatro homens, duas mulheres.

Interessado?

— Fala com o agente responsável por ti.

— Também tenho uma cassete de vídeo com a morte do Hussein.

— O quê?

— Ouviste bem — respondeu Hafez. — De cada vez que ele punha os pés fora do apartamento, ligávamos as câmaras de vídeo. Estávamos a filmar quando o atirador da mota o matou nos degraus da mesquita.

— Meu Deus.

— Tenho uma cópia da cassete na minha pasta.

— Quero vê-la.

— Podes ficar com essa merda, Michael. De borla.

— Quero vê-la agora.

— Por favor, Michael — respondeu Hafez. — A cassete não vai desaparecer. Além disso, estou faminto e a vitela aqui é excelente.

Quarenta e cinco minutos depois, entraram no edifício da televisão egípcia: Michael, Hafez e Cassandra. Ela levou-os até ao estúdio e abriu-lhes a porta de uma pequena sala de edição. Hafez tirou a cassete da pasta e introduziu-a num leitor de vídeo. Cassandra saiu da sala e fechou a porta, deixando atrás de si um cheiro a óleo de madeira de sândalo. Hafez foi fumando até a sala de edição parecer uma câmara de gás e Michael lhe implorar para parar. Michael viu a fita três vezes à velocidade normal e outras três em câmara lenta. Carregou no botão de ejectar e agarrou a cassete com força.

Hafez disse:

— Aquele fulano é muito bom com uma arma. Não há muita gente no mundo que conseguisse dar aquele tiro e safar-se.

— Ele é extremamente bom com uma arma.

— Sabes quem é?

— Infelizmente, acho que sim.


Capítulo 11

BELFAST

 

O Partido Unionista do Ulster tem a sua sede num edifício de quatro andares, no número 3 da Glengall Street, perto do Hotel Europa e da Grand Opera House. Devido à sua localização — no canto oeste do centro da cidade, nas imediações da Falis Road —, a sede do UUP[21] foi alvo frequente dos ataques do IRA ao longo dos Troubles.

Mas, por enquanto, o IRA estava a respeitar o cessar-fogo e, por isso, o homem que seguia no grande Opel prateado sentia-se pouco apreensivo enquanto se dirigia para a Glengall Street por entre a chuva do início da manhã.

Ian Morris era um dos quatro vice-presidentes do Conselho Unionista do Ulster, o comité central do partido. Tinha o lealismo do Ulster no sangue. O bisavô fizera a sua fortuna com o linho, durante o boom industrial em Belfast, no século XIX, e construíra uma grande propriedade em Forthriver Valley, com vista para os bairros-de-lata de Belfast Ocidental. Em 1912, quando a Força de Voluntários do Ulster original se formou para combater a Home Rule[22] irlandesa, o antepassado de Morris permitiu que se escondessem armas e provisões nos estábulos e jardins arborizados da herdade.

Morris não teve preocupações financeiras quando era jovem — a fortuna do bisavô providenciava-lhe um rendimento confortável — e tinha projectado uma carreira académica depois de se licenciar em Cambridge. Mas os Troubles apanharam-no, tal como já o tinham feito a tantos homens da sua geração, dos dois lados da divisão religiosa no Ulster, e em vez disso virou-se para a violência. Juntou-se à Força de Voluntários do Ulster e passou cinco anos na prisão de Maze por colocar uma bomba num pub católico na Broadway[23]. Na prisão, decidira afastar-se das armas e das bombas e fazer campanha pela paz.

Actualmente, havia pouco no seu comportamento que sugerisse que Ian Morris tinha alguma vez feito parte do submundo do terrorismo da Irlanda do Norte. A sua casa, na zona de Castlereagh, em Belfast Oriental, era um santuário de livros. Falava latim, grego e irlandês — nada comum para um protestante, já que a maioria considerava que o irlandês era a língua dos católicos. Enquanto conduzia ao longo da Castlereagh Road, por entre a chuva contínua, o Concerto para Viam em Ré Menor de Mozart, executado por Alfred Brendel, tocava baixinho no sistema de som do Opel Virou para a May Street e passou pela Câmara Municipal de Belfast, na Donegall Square.

Na Brunswick Street, uma carrinha à sua frente pareceu ir-se abaixo.

Morris deu uma buzinadela curta e educada, mas a carrinha continuou parada. Tinha uma reunião dos quadros do partido às nove horas e já estava atrasado. Buzinou uma segunda vez, mas a carrinha continuou sem se mexer.

Morris desligou a música de Mozart. A sua frente, viu a porta do condutor abrir-se e sair de lá um homem com um casaco de cabedal. Morris baixou o vidro, mas o homem do casaco de cabedal pôs-se: mesmo à frente do Opel e puxou de uma pistola de grande calibre.

Um pouco antes do meio-dia, a sala de redacção do Belfast Tekgraph estava caótica. O pessoal do jornal mais importante da Irlanda do Norte estava a organizar uma cobertura extensa do assassínio de Ian Morris: um artigo principal, uma caixa sobre a carreira de Morris no Partido Unionista do Ulster e na UVF, bem como uma análise ao estado do processo de paz. A única coisa que faltava era uma reivindicação de responsabilidade pelo acto.

Às 12h05, tocou um telefone na sala de redacção. Quem atendeu foi um editor subordinado chamado Clarke.

— Redacção do Telegraph — gritou Clarke para se fazer ouvir no meio do barulho.

— Preste atenção, porque só vou dizer isto uma vez — disse a voz ao telefone.

Masculina, calma e autoritária, tomou nota Clarke.

— Daqui fala um representante da Brigada para a Libertação do Ulster. Um agente da brigada, sob as ordens do conselho militar da brigada, levou a cabo o assassínio do Ian Morris hoje de manhã. Os unionistas do Ulster traíram os protestantes da Irlanda do Norte ao apoiarem o acordo de Sexta-Feira Santa. A Brigada para a Libertação do Ulster irá continuar a sua campanha até que o acordo de Sexta-Feira Santa seja anulado.

O homem ao telefone fez uma pausa e, a seguir, perguntou:

— Percebeu tudo?

— Percebi.

— Óptimo — disse a voz, e a ligação foi interrompida. Clarke ficou parado junto à secretária e gritou:

— Temos uma reivindicação para o Ian Morris!

— Quem foi? — gritou alguém na sala de redacção.

— A Brigada para a Libertação do Ulster — respondeu Clarke. — Meu Deus, são prods a matar prods.


Capítulo 12

SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE

 

Elizabeth encontrou-se com Michael à porta do terminal da British Airways no Aeroporto JFK. O corpo doía-lhe das viagens — três voos de longuíssima duração em três dias — e, pela primeira vez em muitas semanas, sentia o repuxar da pele da cicatriz que tinha no peito. Sentia a boca amarga por ter fumado demasiados cigarros e bebido demasiado café servido no avião. Quando EUzabeth lançou os braços à sua volta, ele apenas lhe deu um curto beijo abaixo da orelha. Estava realmente demasiado cansado para conduzir, mas receava ainda mais a inércia. Colocou a mala na bagageira, ao lado de meia dúzia de pacotes de fraldas e de uma lata de leite em pó Similac, e sentou-se ao volante.

— Parece que apanhaste algum sol, Michael — disse EUzabeth quando entraram na via rápida de Van Wyck.

Michael ligou o rádio, mudando da estação de rock contemporâneo adulto de EUzabeth para a WCBS, para poder ouvir as actualizações do trânsito.

— Deve ter havido uma bela vaga de calor em Londres enquanto lá estiveste.

— Não estive o tempo todo em Londres.

— Oh, a sério? — disse ela. — Então, onde raio estiveste?

— Parei no Cairo por um dia.

— Paraste no Cairo por um dia? Mas que raio tem o Cairo a ven com a Irlanda do Norte?

— Nada — respondeu ele. — Precisei de ir ver um velho amigo por causa de uma coisa.

— O quê? Michael hesitou.

— Já não trabalhas para eles e por isso não podes esconder-te atrás dos seus regulamentos — disse ela friamente. — Gostava de saber por que razão é que foste ao Cairo.

— Podemos falar disto mais tarde? — respondeu ele.

Isso era linguagem em código para "não quero discutir em frente da ama", que ia no banco de trás com as crianças.

— Estás com aquele olhar, Michael. O olhar que costumavas ter quando chegavas a casa, depois de um serviço operacional, e não me podias dizer onde é que tinhas estado nem o que é que tinhas andado a fazer.

— Vou contar-te tudo. Mas não agora.

— Bom, estou contente por estares de volta, querido — disse Elizabeth, tirando finalmente os olhos de cima dele. — Estás muito bonito, já agora. Sempre ficaste bem com a pele bronzeada.

Douglas já estava a dormir quando chegaram à ilha. Elizabeth e a ama puseram as crianças na cama. Michael foi para o quarto desfazer as malas. Tinha o cabelo a cheirar ao Cairo — diesel, poeira e fumo de madeira — e, por isso, tomou um duche. Quando voltou ao quarto, Elizabeth estava sentada em frente ao toucador, a tirar os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Lembrou-se de uma época em que ela era capaz de ficar sentada em frente ao toucador durante uma hora, tendo prazer no seu aspecto e na capacidade para o tornar mais perfeito. Agora, fazia-o rapidamente e sem alegria, como um trabalhador numa linha de montagem. Desde que se reformara, Michael não fazia nada depressa. A pressa das outras pessoas deixava-o perplexo.

— Porque é que foste ao Cairo? — perguntou Elizabeth, escorando o cabelo violentamente.

— Porque um líder do Hamas foi assassinado lá há uns dias.

— O Ahmed Hussein — disse ela. — Eu li sobre isso no Times.

— Houve qualquer coisa na maneira como o trabalho foi levado a cabo que me intrigou; por isso, fui até lá falar com uns antigos contactos.

Falou-lhe do encontro com Yousef Hafez. Falou-lhe da equipa da Mossad e da contravigilância egípcia. E depois falou-lhe da cassete de vídeo.

— Quero vê-la — disse ela.

— Aparece um homem a ser morto a tiro, Elizabeth; não é a fingir. I

— Já vi pessoas a levarem tiros.

Ele pôs a cassete no leitor de vídeo. Apareceu no ecrã uma cena de rua, com homens vestidos com túnicas a saírem em grande número de uma mesquita. Alguns segundos depois, uma mota surgiu no enquadramento a roncar a toda a velocidade. O motociclista parou de repente junto aos degraus da mesquita e levantou o braço. Disparou várias vezes, com a pistola com silenciador a não emitir qualquer som perceptível. Os tiros atingiram um pequeno homem barbudo e o sangue tornou carmesim a sua túnica branca. O motociclista disparou mais duas vezes, alvejando um segundo homem no peito e um terceiro na garganta. O motor roncou outra vez e o homem armado desapareceu no meio do trânsito. Michael parou a cassete.

— Meu Deus — soltou Elizabeth num sussurro.

— Acho que é capaz de ser ele — disse Michael. — Acho que é o Outubro.

— Como é que sabes?

— Já vi como ele se movimenta. Já o vi a manejar uma arma. A maneira como balança o braço antes de disparar... é muito característica.

— Ele está com um capacete e não se vê a cara. A cassete não prova nada.

— Talvez sim, talvez não.

Michael rebobinou a cassete. Ahmed Hussein estava outra vez vivo. A mota apareceu veloz no enquadramento e parou bruscamente, derrapando. O braço do assassino subiu.

Michael parou a imagem do assassino a apontar a arma à primeira vítima, com o braço completamente esticado. A seguir, foi até ao armário, abriu as portas e tirou uma caixa pequena da prateleira de cima. Abriu a caixa e tirou de lá uma arma.

— Que raio é isso?

— É a arma dele — respondeu Michael. — Aquela que ele deixou cair na água, na doca, naquela noite. É uma Beretta de nove milímetros, uma pistola de competição. Não tenho a certeza, mas acho que é o mesmo tipo de arma que o assassino do Cairo utilizou.

— Continua a não ser uma prova propriamente conclusiva — afirmou Elizabeth.

— Ele deixou cair a arma porque eu lhe dei um tiro na mão. Michael bateu ao de leve no ecrã da televisão.

— Na mão direita dele, na mão que vemos a agarrar a arma.

— E onde é que queres chegar com isso, Michael?

— Acertei-lhe com uma Browning automática de grande potência. Provavelmente, a bala atravessou-lhe a mão, partiu ossos e deixou uma cicatriz bem feia. Se encontrar uma cicatriz naquela mão, fico com a certeza de que é ele.

— A imagem está demasiado distante para conseguirmos ver uma coisa tão pequena como uma cicatriz.

— A CIA tem computadores capazes de realçar o mais pequeno pormenor em imagens de vídeo. Quero passar esta cassete nesses computadores para ver se está lá alguma coisa.

Elizabeth levantou-se e desligou a televisão.

— E que interessa se for mesmo ele? Que interessa se ainda estiver vivo e continue a matar pessoas? Que diferença é que isso nos faz?

— Só quero saber.

— Ele não pode fazer-nos mal. Tu e os teus amigos na CIA transformaram este lugar num forte. E não faças de conta de que aquele motorista que contrataste para mim em Nova Iorque não é da CIA.

— Ele não é da CIA — respondeu Michael. — Costumava fazer uns trabalhos para nós, de tempos a tempos.

— E anda armado?

— Que diferença é que isso faz?

— Responde. Anda armado ou não?

— Sim. Anda armado porque eu lhe pedi para andar armado.

— Meu Deus — disse Elisabeth, desligando a luz. Enfiou-se na cama e puxou o edredão até ao queixo. Michael deitou-se ao lado dela.

— Acabou-se, Michael. Está terminado.

— Não vai acabar enquanto eu souber que ele está vivo.

— Eu quase te perdi. Segurei-te nos meus braços e rezei para que não morresses depois de ele te alvejar. Fiquei a ver-te esvair em sangue. Não quero passar por isso outra vez.

Michael beijou-a na boca, mas os lábios dela não corresponderam. Ele virou-se de costas e fechou os olhos. Um fósforo acendeu-se e, passado um momento, sentiu o cheiro do fumo do cigarro de Elizabeth.

— É por causa dela, não é? É por causa da Sarah Randolph. Já se passaram mais de dez anos e tu ainda estás obcecado com ela.

— Não estou nada.

— Estás obcecado em vingar a morte dela.

— Isto não tem nada a ver com a Sarah. Tem a ver connosco. Ele também tentou matar-nos.

— És um péssimo mentiroso, Michael.

Esmagou o cigarro num cinzeiro na mesa-de-cabeceira e soprou rispidamente a última passa por entre os lábios.

— Como é que alguma vez conseguiste ser um espião é algo que me ultrapassa.

As janelas do quarto davam para norte e oeste, sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, pelo que eram quase oito horas da manhã quando eles acordaram no dia seguinte com a fraca luz da madrugada de Inverno.

As crianças já tinham acordado e uma delas — Michael não tinha a certeza qual — estava a chorar. Elizabeth sentou-se na cama, afastou o edredão e pousou os pés no chão. Tinha dormido mal, apoquentada por pesadelos, e os olhos mostravam-se inchados e escuros. Saiu do quarto sem falar e desceu as escadas.

Ele deixou-se ficar na cama mais uns minutos, a ouvi-la murmurar amorosamente com as crianças. Passado um momento, levantou-se e foi para a pequena sala de estar anexa ao quarto. Douglas tinha deixado um termos de café em cima da mesa, juntamente com uma edição do New York Times dobrada.

Era uma tradição de fim-de-semana em Cannon Point; Douglas levantava-se sempre primeiro e fazia café para o resto das pessoas da casa.

Michael serviu-se de café e abriu o jornal. Tinha havido uma explosão de violência na Faixa Ocidental devido ao assassínio de Ahmed Hussein. O governo israelita estava a ameaçar enviar tropas para as áreas controladas pelos palestinianos. O processo de paz encontrava-se num estado crítico. Na Irlanda do Norte, um dirigente protestante fora assassinado em Belfast. A Brigada para a Libertação do Ulster tinha reivindicado a responsabilidade do acto.

Meia hora mais tarde, Michael encontrava-se a avançar com dificuldade por um trilho congelado, ao longo da reserva natural de Mashomack. Douglas seguia à frente, percorrendo o carreiro estreito e enfiado no meio de árvores nuas. Era um homem alto e largo, pouco indicado para caminhadas, e, no entanto, ia avançando agilmente pelo trilho escorregadio. A tempestade da noite anterior tinha-se transferido para o mar. Brilhava um sol branco num céu listado de nuvens altas. Estava um frio intenso e, passados alguns minutos, os pulmões de Michael pareciam estar cheios de vidros partidos. O Inverno tinha drenado toda a cor da paisagem. Deram de caras com meia dúzia de veados de cauda branca, apoiados nas patas traseiras e a arrancar a casca das árvores. — Não é fantástico? — perguntou Douglas. Ficou irritado quando Michael não concordou. Michael não via grande beleza na natureza; uma praça escondida em Veneza dava-lhe mais prazer do que uma baía em Long Island. Os bosques e a água aborreciam-no. As pessoas intrigavam-no porque não confiava nelas, e conseguia ludibriá-las através da astúcia se o ameaçassem.

Michael falou ao sogro da Brigada para a Libertação do Ulster enquanto caminhavam pela costa pedregosa de Smith Cove. Douglas Cannon era um profissional na arte de ouvir. Deixou que Michael falasse durante quinze minutos sem interrupção; a seguir, bombardeou-o com perguntas por mais dez minutos.

— Quero uma resposta franca, Michael. Vou correr algum risco físico se aceitar este cargo?

— A Brigada para a Libertação do Ulster demonstrou as suas intenções muito claramente. Querem castigar todas as partes envolvidas no acordo de paz. Só resta uma parte importante: os americanos. Nenhum dos lados, republicanos ou lealistas, matou até agora algum americano intencionalmente, mas as regras mudaram.

— Vinte anos em Washington e não recebi uma única vez uma resposta franca do raio de um espião.

Até Michael teve de se rir.

— Não se trata de uma ciência exacta. As avaliações dos serviços secretos envolvem uma boa dose de conjecturas e suposições, com base nas provas disponíveis.

— Às vezes, penso que arrancar pétalas a um malmequer seria igualmente eficaz.

Douglas parou de andar e virou-se, ficando de frente para a água. A cara tornara-se-lhe vermelha do frio e do vento. Smith Cove exibia uma cor de níquel. Um ferry meio vazio lutava contra a forte corrente que se fazia sentir ao longo do estreito canal entre o extremo sul de Shelter Island e a península de North Haven.

— Raios me partam por dizer isto, mas eu quero de facto mais uma oportunidade de estar nas luzes da ribalta — confessou Douglas. — Posso ajudar a que se faça história e isso é bastante sedutor para um velho professor como eu. Mesmo que isso signifique trabalhar para o estúpido de um filho-da-mãe como o Jim Beckwith.

— A Elizabeth vai ficar furiosa.

— Eu cá me arranjo com a Elizabeth.

— Pois, mas eu é que tenho de viver com ela.

— Ela é igualzinha à mãe, Michael. Tu nunca chegaste a conhecer a Eileen, mas, se a tivesses conhecido, irias perceber onde é que a Elizabeth foi buscar a teimosia e a força. Se não fosse a Eileen, eu nunca teria tido coragem de sair da Columbia e de me candidatar ao Congresso.

Douglas pontapeou algumas pedras com a biqueira da bota alta.

— Tens um telefone?

Michael enfiou a mão no bolso do casaco e entregou um telemóvel a Douglas, que ligou para o número directo do gabinete do presidente e deixou uma mensagem ao secretário privado de Beckwith. Fizeram o mesmo caminho de volta, trocando a luz do sol de Smith Cove pelas sombras frias dos bosques. Dez minutos mais tarde, o telemóvel tocou.

Douglas, que se debatia eternamente com as complexidades das comunicações modernas, passou o telemóvel para as mãos de Michael e disse:

— És capaz de atender esta porcaria, se fazes favor? Michael carregou num botão do teclado e disse:

— Osbourne.

— Bom dia, Michael — respondeu o presidente James Beckwith. — Nem tenho palavras para te descrever como foi bom voltar a ver-te no fim-de-semana passado. Fico contente por teres recuperado tão bem. Só gostava de poder ter-te outra vez em Langley, que é o teu lugar.

Michael resistiu ao impulso de avisar o presidente de que estavam a falar num telemóvel que não se encontrava seguro.

— O teu sogro já chegou a alguma decisão?

— Já, senhor presidente.

— Espero que sejam boas notícias.

— Vou deixar que seja ele a dizer-lhe.

Michael passou o telefone a Douglas e avançou um pouco no trilho, para que o sogro pudesse falar com o presidente a sós.

Douglas viajou para Washington nessa noite. Tinha contado a sua decisão a Elizabeth depois de regressar da reserva de Mashomack. Ela interiorizou as notícias com uma contenção estóica e deu-lhe um beijo frio de parabéns na bochecha, reservando a raiva para Michael porque este falhara na missão de convencer Douglas a não aceitar o cargo. Michael acompanhou Douglas até Washington para assistir à cerimónia. Os dois homens ficaram no antigo prédio de Elizabeth e Michael na N Street, de tijolo vermelho e no estilo de arquitectura federal, e dirigiram-se à Casa Branca na manhã seguinte.

Douglas e Beckwith encontraram-se na Sala Oval, bebendo chá em poltronas de orelhas em frente a uma lareira. Michael quisera esperar no exterior, mas o presidente insistiu para que se juntasse a eles. Sentou-se num dos sofás, um pouco afastado, e estudou-lhes as mãos enquanto falavam. Durante cinco minutos, Douglas fez os comentários obrigatórios sobre a lealdade e a honra de servir o próprio país. O presidente falou da importância da relação anglo-americana e da situação na Irlanda do Norte.

Às dez e meia, os dois homens atravessaram as portas envidraçadas que davam para o Jardim das Rosas. Era um dia quente de Inverno em Washington, o sol brilhava, o ar estava ameno e subiram ambos ao pódio, lado a lado, de fato mas sem sobretudo.

— Hoje, tenho o orgulho de nomear o antigo senador Douglas Cannon, de Nova Iorque, como o nosso próximo embaixador no Palácio de St. James em Londres — disse Beckwith num tom neutro. — Douglas Cannon serviu brilhantemente o grande estado de Nova Iorque e o povo americano, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. E eu sei, por experiência própria, que ele possui a inteligência, a força e a elegância necessárias para representar os interesses nacionais numa capital estrangeira importante como é Londres.

Beckwith virou-se e apertou a mão a Douglas, ao mesmo tempo que a pequena assistência irrompia em aplausos. Indicou o pódio com a mão e Douglas dirigiu-se aos microfones.

— Vão estar em jogo muitas questões importantes em Londres, questões de comércio e de defesa, mas nenhuma actualmente mais importante do que a de ajudar o governo do primeiro-ministro Blair a levar uma paz duradoura à Irlanda do Norte.

Douglas deteve-se por um instante, olhando directamente para as câmaras de televisão, por trás da assistência.

— Tenho uma única coisa a dizer aos homens causadores de violência, àqueles que desejam desmantelar o acordo de Sexta-Feira Santa. Os dias das armas, das bombas e das balaclavas já terminaram. O povo da Irlanda do Norte falou. Os vossos dias acabaram.

Fez uma nova pausa.

— Senhor presidente, estou ansioso por servi-lo em Londres.


Capítulo 13

PORTADOWN, IRLANDA DO NORTE

 

— Ouviste as notícias esta tarde? — perguntou Kyle Blake ao sentar-se no seu reservado habitual no pub McConville's.

— Ouvi, sim — respondeu Gavin Spencer. — O homem é um fala-barato.

— E conseguimos chegar até ele? — perguntou Blake, sem se dirigir a ninguém em especial.

— Se conseguimos chegar ao Eamonn Dillon, conseguimos chegar a um embaixador americano — respondeu Gavin Spencer. — Mas será que isso serve os nossos propósitos?

— Os americanos ainda não pagaram pelo apoio que deram ao acordo de Sexta-Feira Santa — afirmou Blake. — Se formos capazes de matar o embaixador americano, toda a gente nos Estados Unidos ficará a saber quem somos e o que pretendemos. Não te esqueças, não estamos a tentar conquistar uma vitória no campo de batalha, estamos a tentar conquistar publicidade para a nossa causa. Se matarmos o Douglas Cannon, todos os media americanos serão forçados a contar a história do Ulster de uma perspectiva protestante. É como um acto reflexo. É o que eles fazem. Resultou com o IRA e resultou com a OLP. Mas será que pode mesmo ser feito?

— Podemos fazê-lo de variadíssimas maneiras — respondeu Spencer. — Só precisamos de uma coisa: saber quando e onde. Precisamos de obter informações sobre os movimentos dele, sobre o seu paradeiro. Temos de escolher cuidadosamente a nossa melhor oportunidade; caso contrário, não vai funcionar.

Blake e Spencer olharam para Rebecca Wells.

Blake perguntou:

— Consegues arranjar-nos o tipo de informação de que vamos precisar?

— Sem dúvida — respondeu Rebecca. — Terei de ir para Londres. Vou precisar de um apartamento, de algum dinheiro e, acima de tudo, de bastante tempo. Informações desse género não aparecem da noite para o dia.

Blake deu um grande gole na sua Guinness enquanto reflectia sobre tudo aquilo. Passado um momento, olhou para Rebecca.

— Quero que te instales o mais rápido possível em Londres. Arranjo-te o dinheiro de manhã.

Virou-se para Gavin.

— Começa a preparar a tua equipa. Não deves dizer-lhes qual é o alvo até ser absolutamente necessário. E tenham ambos cautela. Tenham muita cautela.


FEVEREIRO


Capítulo 14

NOVA IORQUE

 

— Como estava Londres? — perguntou Adrian Cárter. Tinham entrado no Central Park, no cruzamento da Ninetieth Street com a Quinta Avenida, e seguiam pelo caminho para peões de cinza e terra batida no dique que rodeia a represa. Um vento gelado agitava os ramos desfolhados das árvores por cima das suas cabeças. Junto às margens da represa, a água tinha congelado, mas a uma curta distância, num pedaço de água da cor do mercúrio, uma flotilha de patos balançava-se como um conjunto de navios minúsculos atracados.

— Como é que soubeste que estive em Londres? — perguntou Michael.

— Soube porque os serviços secretos britânicos tiveram a amabilidade de me enviar um memorando a perguntar se estavas em visita de negócios ou lazer. Respondi-lhes que estavas reformado e que, por isso, era de certeza em lazer. Acertei?

— Depende da tua definição de lazer — respondeu Michael, e Cárter riu-se ligeiramente.

Adrian Cárter era o chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA e tinha actuado como agente responsável por Michael quando este trabalhava no terreno. Mesmo naquele preciso momento, ainda se moviam como se estivessem a encontrar-se atrás das linhas inimigas. Cárter caminhava como um homem que se debatia com uma consciência eternamente pesada, de ombros encolhidos e mãos enfiadas bem dentro dos bolsos. Os grandes olhos descaídos davam-lhe uma aparência de fadiga eterna e, no entanto, mexiam-se constantemente de um lado para o outro, em redor das árvores, da represa e das caras das pessoas a fazerem jogging suficientemente insensatas para desafiarem o frio cortante. Trazia um gorro de lã para esquiar, feio e a privá-lo de qualquer autoridade física. O anoraque almofadado criava um efeito flutuante e, por isso, ele parecia estar a ser soprado pelo vento ao longo do caminho. Quem não o conhecia, tinha tendência a subestimar Cárter, algo que ele utilizara em seu benefício ao longo da carreira, tanto no terreno como nas trincheiras burocráticas da sede. Era um linguista brilhante — sonhava em meia dúzia de línguas — e já tinha perdido a conta aos países onde levara a cabo operações.

— Então, que raio estavas a fazer em Londres? — perguntou Cárter.

Michael contou-lhe. Cárter perguntou:

— E apanhaste alguma coisa interessante?

Michael contou a Cárter aquilo que tinha ficado a saber durante o encontro com Graham Seymour, sem divulgar a fonte. Como era habitual, Cárter não deu a entender se alguma daquelas informações era novidade para ele. Era assim que funcionava, mesmo com Michael. Os espirituosos do CTC[24] costumavam dizer que Cárter preferiria enfrentar a tortura a revelar de livre e espontânea vontade onde tinha ido almoçar.

— E o que é que te traz a ti a Nova Iorque? — perguntou Michael.

— Uns assuntos no posto de Nova Iorque.

Cárter parou de falar quando duas pessoas a fazerem jogging — uma mulher nova e um homem mais velho — passaram por eles correndo pesadamente.

— Uma pequena limpeza à casa que precisava de ser feita em pessoa. E queria ver-te.

— Porquê?

— Meu Deus, Michael, já nos conhecemos há vinte anos — respondeu Cárter, com uma irritação afável que nele passava por raiva. — Nunca pensei que houvesse algum problema em aparecer para conversarmos enquanto estava na cidade.

— Então, porque é que estamos a andar pelo parque com uma temperatura de quase sete graus negativos?

— Tenho aversão a salas fechadas e não inspeccionadas. Chegaram ao relógio da velha estação de bombeamento, na ponta sul da represa. Um grupo de turistas a falar alemão com sotaque vienense posava para a fotografia. Num acto reflexo, Michael e Cárter viraram-se, como um par de nadadores sincronizados, e atravessaram uma ponte pedonal de madeira. Passado um momento, estavam a caminhar ao longo da Park Drive, por trás do Metropolitan Museum.

— Foi muito simpático da parte do Senado enviar o Douglas para Londres com um voto de homologação unânime — disse Cárter.

— Ele ficou surpreendido. Pensou que, pelo menos, um dos seus antigos adversários republicanos fosse querer estragar a festa.

Cárter pôs as mãos enluvadas à frente da boca e exalou com força para aquecer a cara, que ficara vermelha com o frio. Era um jogador de golfe inveterado e os Invernos deprimiam-no.

— Mas tu não vieste cá para falar sobre o Douglas, pois não, Adrian?

Cárter tirou as mãos de frente da cara e disse:

— Por acaso, andava a pensar quando é que irias voltar ao trabalho. Preciso de ti no CTC.

— E porque é que precisas de mim, assim tão de repente?

— Porque tu és uma daquelas aves raras que consegue mexer-se, sem esforço, entre a sede e o terreno. Por razões muito egoístas, quero-te de novo na minha equipa.

— Desculpa, Adrian, mas estou fora e faço tenções de continuar fora. A vida corre-me bem.

— Tu andas aborrecido até à ponta dos cabelos. E se me disseres o contrário és um mentiroso.

Michael parou e virou-se para encarar Cárter, com a raiva estampada na cara.

— Porra, como é que te atreves a vir aqui e...

— Pronto — disse Cárter. — Se calhar, a minha escolha de palavras não foi a mais apropriada, mas que raio andaste a fazer nestes meses todos?

— Andei a cuidar da minha família, a passar tempo com os meus filhos e a tentar agir como um ser humano normal, pela primeira vez na minha vida adulta.

— Algumas perspectivas de trabalho?

— Nem por isso.

— E tencionas voltar alguma vez a trabalhar?

— Não tenho a certeza — respondeu Michael. — Não tenho experiência de trabalho propriamente dita, porque a empresa onde trabalhava era uma fachada da CIA. E estou impedido de dizer a um potencial empregador como é que ganhava realmente a vida.

— Porque não voltas para casa?

— Porque não me senti muito em casa da última vez que a visitei.

— Vamos esquecer tudo isso e começar de novo.

— Aprendeste essa deixa num daqueles seminários de gestão de empregados no Departamento de Recursos Humanos?

Cárter parou de andar.

— A Directora chega a Nova Iorque hoje à noite. Foi pedida a tua presença ao jantar.

— Já tenho planos.

— Michael, a directora da CIA gostava de jantar contigo. De certeza que poderás pôr a tua arrogância de lado e arranjar um bocadinho de tempo na tua agenda ocupada.

— Lamento, Adrian, mas estás a perder o teu tempo, tal como a Directora. Não estou interessado. Mas foi bom ver-te, de qualquer forma. Manda cumprimentos meus à

Christine e às crianças.

Michael deu meia-volta e começou a andar.

— Se queres tanto deixar isto, porque é que foste ao Cairo? — perguntou Cárter. — Foste ao Cairo porque achas que o Outubro ainda está vivo. E, sinceramente, eu também.

Michael voltou-se.

— Parece que consegui finalmente ter a tua atenção — disse Cárter.

Mónica Tyler tinha reservado uma sala privada no Picholin, na West Sixty-fourth Street, perto do parque. Quando Michael entrou no restaurante, Cárter estava sentado sozinho na ponta do bar, a beber calmamente um copo de vinho branco. Trazia um fato azul assertoado, ao passo que Michael estava de calças de ganga e blaer preto.

Cumprimentaram-se sem falar e sem apertar a mão. Michael entregou o sobretudo à menina do vestiário e os dois homens seguiram a espampanante anfitriã pelo restaurante.

A sala de jantar privada do Picholin é na realidade a sala de vinhos, escura e fresca, com centenas de garrafas guardadas em prateleiras de carvalho manchado, do chão ao tecto. Mónica Tyler estava sentada, sozinha, banhada pelo brilho suave da fraca iluminação e com um dossiê aberto à frente dela. Fechou-o e guardou os óculos de ler, de armações de ouro, quando Michael e Cárter entraram na sala.

— Michael, que bom ver-te de novo —; disse ela, continuando sentada e estendendo a mão direita num ângulo estranho, de tal forma que Michael não tinha a certeza se esperava que ele a apertasse ou beijasse.

Tinha sido Mónica Tyler a apressar a saída de Michael da CIA, ao ordenar uma investigação interna à sua conduta no caso TransAtlantic. Na altura, era a directora executiva, mas, passados seis meses, o presidente Beckwith nomeou-a directora. Beckwith tinha entrado naquela fase típica de qualquer presidência já com dois mandatos, em que o assunto mais importante na sua agenda era assegurar um lugar na história. E acreditava que nomear Mónica Tyler e fazer dela a primeira mulher a comandar a CIA o poderia ajudar. A agência já tinha sobrevivido a novatos anteriormente, pensou Michael, e a agência iria sobreviver a Mónica Tyler.

Mónica pediu uma garrafa de Pouilly Fuissé sem olhar para a carta de vinhos. Já tinha utilizado a sala para reuniões importantes quando trabalhava na Wall Street.

Assegurou a Michael que a conversa que iriam ter era completamente privada. Trocaram umas palavras de circunstância sobre a política em Washington e uns mexericos inofensivos sobre a CIA enquanto decidiam o que pedir. Mónica e Cárter falaram à frente de Michael da mesma maneira que os pais falam por vezes à frente dos filhos — já não era membro da fraternidade secreta e, por isso, não era inteiramente de confiança.

— O Adrian contou-me que não conseguiu convencer-te a voltar para a agência — lançou Mónica abruptamente. — É por isso que estou aqui. O Adrian quer que regresses ao CTC e eu quero ajudar o Adrian a conseguir o que quer.

O Adrian quer que regresse, pensou Michael. E tu, Mónica?

Ela tinha voltado o corpo para Michael e fixado o olhar firme nele. A determinada altura da sua ascensão, Mónica Tyler tinha aprendido a usar os olhos como uma arma.

Eram líquidos e azuis e mudavam instantaneamente conforme o seu humor. Quando estava interessada, os olhos tornavam-se translúcidos e prendiam-se ao objecto com uma intensidade terapêutica. Quando estava incomodada — ou, pior ainda, entediada —, as pupilas congelavam e o olhar tornava-se vítreo. Quando estava zangada, os olhos revistavam a sua vítima como holofotes, à procura de uma zona fatal.

Mónica não tinha tido nenhuma experiência nos serviços secretos quando chegou a Langley, mas Michael e todos na sede aprenderam rapidamente que se a subestimassem isso poderia ser fatal. Era uma leitora impressionante, com um intelecto poderoso e uma memória impecável de espião. Também uma mentirosa prendada que nunca fora sobrecarregada com princípios morais incómodos. Controlava todas as circunstâncias à sua volta como um agente operacional experimentado. Os rituais de sigilo assentavam tão bem a Mónica como o seu fato Chanelàe corte justo.

— Sinceramente, eu entendo porque é que decidiste sair — disse ela, colocando o cotovelo na mesa e a mão por baixo do queixo. — Estavas zangado comigo por eu te ter suspendido. Mas revoguei essa suspensão e eliminei da tua folha de serviço todas as referências a isso.

— E, supostamente, tenho de estar agradecido por isso, Mónica?

— Não, quero só que sejas profissional.

Mónica fez uma pausa quando foi trazido o primeiro prato. Afastou um pouco a salada, demonstrando que não tinha intenção de a comer. Cárter manteve a cabeça baixa e devorou um prato de polvo grelhado.

— Eu quis sair porque tu me deixaste ficar mal e a CIA me deixou ficar mal — disse Michael.

— Um serviço de espionagem tem regras e os funcionários e agentes têm de se reger por essas regras — respondeu Mónica. — Não tenho de te explicar isso, Michael.

Tu cresceste na CIA. Conhecias as regras quando ingressaste.

— Qual é o trabalho?

— Assim é que eu gosto.

— Ainda não concordei com nada — acrescentou Michael rapidamente. — Mas vou ouvir o que tens para me dizer.

— O presidente ordenou-nos que criássemos um destacamento especial dedicado ao terrorismo na Irlanda do Norte.

— E porque é que eu havia de querer regressar e envolver-me com a Irlanda do Norte? O Ulster é um problema britânico e um assunto britânico. Nós somos apenas espectadores.

— Não estamos a pedir-te que saias da reforma e que te infiltres na Brigada para a Libertação do Ulster, Michael — disse Cárter.

— Isso é o que eu faço, Adrian.

— Não, Michael, isso é o que tu fazias dantes — interveio Mónica.

— Mas porque é que, de repente, se está a fazer tanta força dentro da CIA para investir na questão da Irlanda do Norte? O Ulster nunca foi uma alta prioridade em Langley.

— O presidente considera o acordo de paz na Irlanda do Norte uma das coroas de glória da sua presidência em termos de politica estrangeira — respondeu Mónica. — Mas também compreende, assim como nós, que o acordo pode ser desfeito num piscar de olhos. O que precisa que a CIA lhe dê são informações e avaliações. Precisa de saber quando é que deve intervir e pressionar as partes e quando é que deve ficar de braços cruzados. Precisa de saber quando é que uma declaração pública pode ser útil e quando é melhor não abrir a boca.

— E o que é que queres de mim?

— O que é que o James Beckwith quer; não é o que eu quero. E o que o presidente quer é que tu estejas à frente do destacamento especial.

— Porquê eu?

— Porque és um agente com muita prática em contraterrorismo e tens alguma experiência naquele terreno. E também sabes como é que a sede funciona e como dar a volta à burocracia. Tens um poderoso aliado no Adrian — acrescentou ela, antes de hesitar um pouco. — E em mim. E há ainda outra coisa. O teu sogro vai ser o próximo embaixador no Palácio de St. James.

— Eu agora moro em Nova Iorque — disse Michael. — A Elisabeth deixou a firma em Washington e está a exercer advocacia em Manhattan.

— Podes trabalhar a partir do posto de Nova Iorque um par de dias por semana e apanhar o comboio para Washington durante o resto do tempo. A agência paga-te as viagens enquanto o destacamento especial durar. Depois disso, teremos de arranjar as coisas de outra maneira.

Mónica pegou no garfo e picou algumas folhas de alface.

— E depois, claro, há a questão do Outubro — acrescentou. — O Adrian tem andado a trabalhar nessa frente.

Cárter afastou o prato vazio e limpou a boca.

— O assassínio do Ahmed Hussein no Cairo cheirou-nos a esturro desde o princípio. Suspeitámos que os israelitas estivessem envolvidos, mas eles negaram-no publicamente e a nós em privado. Por isso, começámos a visitar contactos, a bater às portas. Já conheces o esquema — explicou Cárter, falando como se estivesse a descrever os acontecimentos de um fim-de-semana muito chato em casa. — Temos uma fonte dentro da Mossad. Contou-nos que o Ari Shamron, o chefe da Mossad, ordenou o assassínio e supervisionou ele próprio a operação, para ter a certeza de que ninguém fazia merda.

Mónica Tyler levantou o olhar da salada e fitou-o atentamente. Detestava linguagem grosseira e tinha banido os palavrões de todas as reuniões do pessoal graduado.

Tocou ao de leve nos lábios com o canto do guardanapo.

— A fonte disse que o Shamron foi à procura do atirador fora da Mossad — continuou Cárter. — Um assassino caro, um assassino contratado. Disse que o Shamron pagou o serviço com fundos angariados de fontes privadas.

— E tinha alguma descrição do assassino?

— Não.

— Localização geográfica?

— Europa ou Médio Oriente. Talvez do Mediterrâneo. —Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio.

— Desculpa? — perguntou Adrian.

Michael contou-lhe sobre o encontro com Yousef Hafez.

— E achas que o atirador era o Outubro? — perguntou Cárter.

— Já vi como ele se movimenta e já o vi a usar uma arma — respondeu Michael. — Pode muito bem ser o mesmo homem, mas é difícil ter a certeza. Mas, apesar disso, sou capaz de o conseguir provar.

— Como?

— Eu dei-lhe um tiro na mão, naquela noite em Shelter Island — respondeu Michael. — Na mão direita. Na mão que ele usa para disparar. No assassínio do Ahmed Hussein, o atirador não usou luvas. Se eu conseguir descobrir-lhe uma cicatriz na mão, saberei que é mesmo o Outubro.

— E onde é que está a cassete? — perguntou Cárter.

— Tenho-a eu.

O empregado bateu à porta, entrou na sala e levantou os restos do primeiro prato.

Depois de ele ter voltado a sair, Mónica disse:

— Se regressares à agência, estou disposta a expandir as tuas funções. Serás o chefe do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e também te vai ser atribuída a missão de localizar e prender o Outubro, se ele estiver realmente vivo. Então, temos um acordo, Michael?

— Tenho de falar com a Elizabeth primeiro — retorquiu. — Dou-te uma resposta de manhã.

— És um agente que foi treinado para persuadir tipos a trair o seu próprio país — disse Mónica, sorrindo amavelmente. — Tenho a certeza de que não terás problemas em convencer a tua mulher de que esta é a melhor decisão.

Adrian Cárter riu-se e disse:

— Tu não conheces a Elizabeth.

Depois do jantar, Michael quis andar um pouco. O apartamento ficava exactamente do outro lado do Central Park, na Quinta Avenida, mas até Michael, enquanto ex-agente operacional da CIA treinado nas artes marciais, sabia que era melhor evitar o parque à noite. Seguiu para sul, por Central Park West, contornou Columbus Circle e passou pelas carruagens malcheirosas puxadas a cavalo ao longo de Central Park South.

Começou a nevar enquanto avançava pela Quinta Avenida em direcção à alta da cidade ao longo do passeio de pedras arredondadas contíguo ao parque. Estava com receio da conversa que se encontrava prestes a ter com Elizabeth; ela iria ficar furiosa e com razão. Tinha-lhe feito uma promessa depois de Outubro e de Astrid Vogel os terem tentado matar — que deixaria a CIA para nunca mais regressar — e agora iria quebrar essa promessa.

Sentou-se num banco e olhou para as luzes a brilharem intensamente na janela do seu apartamento. Recordou-se do dia em que ele e Elizabeth se tinham conhecido, uma tarde de calor sufocante na baía de Chesapeake, a bordo do veleiro de um amigo comum, seis meses após o homicídio de Sarah Randolph. A CIA tinha decretado que o disfarce de Michael se encontrava irremediavelmente comprometido; tinha sido retirado do terreno, em Londres, e recebera um trabalho de secretária entediante em Langley. Sentia-se infelicíssimo nessas funções e continuava devastado com a morte de Sarah. Nunca olhava sequer para as outras mulheres. Foi então que o apresentaram a Elizabeth Cannon — a linda e talentosa filha do famoso senador decano de Nova Iorque — e, pela primeira vez desde aquela noite no Chelsea Embankment, Michael sentiu por fim a sombra de Sarah Randolph a desvanecer-se.

Fizeram amor naquela noite e, a seguir, Michael mentiu-lhe em relação ao que fazia na vida. Na verdade, mentiu-lhe sobre o trabalho durante meses. Foi só quando falaram pela primeira vez em casar que foi forçado a contar-lhe a verdade: que trabalhava para a CIA, orientando agentes infiltrados em grupos terroristas, e que a mulher que amara desesperadamente tinha sido assassinada à sua frente. Elizabeth deu-lhe uma estalada e disse-lhe que nunca mais o queria ver. Michael pensou que a perdera para sempre.

A relação deles nunca recuperou por completo daquelas primeiras mentiras. Elizabeth equiparava o trabalho de Michael a outras mulheres por causa de Sarah. De cada vez que ele se ausentava, ela reagia como se a tivesse traído. Quando regressava de uma operação, ela procurava inconscientemente marcas de outras amantes no seu corpo. O dia em que Michael deixou a agência foi o dia mais feliz da vida dela. E agora iria começar tudo outra vez.

Michael atravessou a rua e pôs-se debaixo do toldo da porta de entrada para o seu prédio, passou discretamente pelo porteiro e apanhou o elevador para um foyer privado no décimo quarto andar.

Encontrou Elizabeth onde a deixara duas horas antes, esparramada no sofá, por baixo de uma grande janela com vista para o parque, rodeada por pilhas de pastas de arquivo em papel manilha. O cinzeiro que se encontrava no chão estava cheio de cigarros meio fumados. Andava a preparar a defesa de uma empresa de rebocadores de Staten Island que estava a ser processada pelo governo federal por ter, alegadamente, causado um derrame de petróleo ao largo de Nova Jérsia. O caso ia a julgamento dentro de duas semanas — o seu primeiro julgamento desde que regressara à firma. Andava a trabalhar demasiadas horas, a beber demasiado café e a fumar demasiado.

Michael beijou-a na testa e tirou-lhe o cigarro, a arder lentamente, que tinha na ponta dos dedos. Elizabeth olhou para ele de relance, por cima dos óculos de ler, e depois voltou a concentrar-se no bloco de notas amarelo onde ia fazendo apontamentos com a sua letra enrolada e. irregular. Distraidamente, estendeu a mão para o maço de tabaco e acendeu outro cigarro.

— Andas a fumar demasiado — disse Michael.

— Deixo de fumar quando tu fizeres o mesmo — respondeu ela sem tirar os olhos do trabalho. — Como é que correu o jantar?

— Correu bem.

— E o que é que eles queriam?

— Querem que eu volte. Têm um trabalho para mim.

— E o que é que lhes disseste?

— Que queria falar contigo primeiro. Parece-me que queres aceitar esse trabalho.

Deixou cair o bloco de notas no chão e tirou os óculos de ler. Estava exausta e tensa, uma combinação letal. Michael, ao olhá-la nos olhos, perdeu de repente a vontade de continuar, mas Elizabeth pressionou-o.

— Qual é o trabalho?

— Querem que eu chefie um destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte.

— Porquê tu?

— Já trabalhei na Irlanda do Norte e já trabalhei na sede. A Mónica e o Adrian acham que é a combinação perfeita para o trabalho.

— A Mónica tentou expulsar-te da CIA há um ano e o teu grande amigo Adrian fez muito pouco para a impedir. A que é que se deve essa mudança repentina de ideias?

— Ela diz que está tudo perdoado.

— E tu, obviamente, queres aceitar a oferta deles. Caso contrário, terias recusado de imediato.

— Sim, quero aceitar.

— Meu Deus! — exclamou ela, esmagando o cigarro e tirando outro. — Porquê, Michael? Pensava que já tinhas acabado com a CIA. Pensava que querias andar para a frente com a tua vida.

— Também eu.

— Então, porque é que estás a deixá-los arrastarem-te novamente para lá?

— Porque sinto falta do trabalho! Sinto falta de me levantar de manhã e de ter um sítio qualquer para onde ir.

— Então arranja um trabalho, se quiseres. Já passou um ano desde que foste alvejado. Já estás completamente recuperado.

— Não há muitas empresas à procura de empregados com competências iguais às minhas.

— Então faz trabalho voluntário. Não precisamos de dinheiro.

— Não precisamos de dinheiro porque tu tens um emprego. Um emprego importante.

— E tu também queres ter um emprego importante.

— Sim, acho que ajudar a levar a paz à Irlanda do Norte seria uma experiência rica e compensadora.

— Detesto ter de destruir os teus sonhos, mas o povo da Irlanda do Norte já anda a matar-se há muito tempo. Vão fazer a paz ou continuar com a guerra independentemente do que a CIA pense acerca disso.

— Há mais uma coisa — acrescentou Michael. — O teu pai está prestes a tornar-se um alvo potencial dos terroristas e eu quero ter a certeza de que não lhe acontece nada.

— Tão nobre e altruísta da tua parte! — lançou ela, com os olhos a chisparem. — Como é que te atreves a arrastar o meu pai para o meio disto? Se queres voltar para a CIA, tem pelo menos a decência de não usares o meu pai como muleta.

— Aquilo faz-me falta, Elizabeth — confessou ele suavemente. — É o que eu faço. Não sei fazer mais nada. Não sei ser mais nada.

— Meu Deus, isso é patético. Às vezes, tenho pena de ti. Odeio esta parte de ti, Michael. Odeio os segredos e as mentiras. Mas se me meter no teu caminho, se bater com o pé no chão e disser que não, vais ficar magoado comigo e eu não serei capaz de aguentar isso.

— Eu não vou ficar magoado contigo.

— E já te esqueceste que tens dois filhos pequenos a dormir ali ao lado?

— A maior parte dos pais com filhos pequenos também consegue manter um emprego. Ela não respondeu.

— A Mónica diz que posso trabalhar um par de dias por semana a partir do posto de Nova Iorque e apanhar o comboio para lá e para cá nos outros dias.

— Parece que vocês os dois já têm tudo resolvido. E quando é que a tua nova melhor amiga quer que comeces?

— O teu pai vai tomar posse no Departamento de Estado depois de amanhã. O presidente quer vê-lo em Londres imediatamente. Pensei em passar algumas horas na sede para me ir instalando.

Elizabeth levantou-se e caminhou imponentemente pela sala.

— Bem, Michael, parabéns. Peço desculpa por não correr a abrir uma garrafa de champanhe.


Capítulo 15

 

WASHINGTON

SEDE DA CIA NOVA IORQUE

 

Douglas Cannon tomou posse como embaixador norte-americano no Palácio de St. James numa cerimónia no sétimo andar do Departamento de Estado. O secretário de Estado, Martin Claridge, foi quem o empossou, e o juramento era igual ao juramento para presidente. Douglas jurou "salvaguardar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos" e os duzentos convidados reunidos à pressa irromperam em aplausos.

A sala de cerimónias do Departamento de Estado conduz a uma grande varanda com vista a sul para o parque de Washington Mali e o rio Potomac. O céu estava limpo e a temperatura amena após a brutal vaga de frio e, por isso, depois da cerimónia, a maior parte dos convidados fugiu da sala sobreaquecida em direcção ao ar fresco do exterior. O Monumento de Washington e o Memorial de Lincoln brilhavam à luz do sol. Michael manteve-se afastado da multidão, a beber café numa refinada chávena de porcelana e a fumar um cigarro para se proteger. O que é que faz? é a segunda deixa na maioria das conversas em Washington e Michael não estava com disposição para mentir.

Observou Elizabeth, que se deslocava sem esforço por entre a multidão. Ela odiava ter crescido numa família política, mas isso tinha-lhe dado a capacidade para conseguir movimentar-se numa sala como um presidente em exercício de funções. Trocou com facilidade gracejos com o secretário de Estado, vários membros do Congresso e até alguns jornalistas. Michael estava cheio de admiração. Tinha sido treinado para passar despercebido, para se mover invisivelmente, para procurar constantemente sinais de problemas. As recepções punham-no nervoso. Avançou decidido pelo meio da multidão até chegar a Elizabeth.

— Tenho de me ir embora — disse, dando-lhe um beijo na cara.

— Quando é que voltas para casa?

— Vou tentar apanhar o comboio das sete.

Um dos antigos sócios de Elizabeth na firma de advocacia avistou-a e arrastou-a para uma conversa. Michael afastou-se, atravessando a luz brilhante. Olhou uma vez mais para Elizabeth, mas ela tinha posto os óculos de sol e Michael não conseguia perceber se estava a olhar para ele ou para o velho amigo da firma. Elizabeth manejava bem as artes do ofício. Sempre achou que ela teria dado uma excelente espia.

Michael atravessou a Memorial Bridge e seguiu no carro para norte, ao longo da George Washington Memorial Parkway. O rio tremeluzia abaixo dele. Ramos de árvores despidos moviam-se ao vento. Tinha a sensação de estar a conduzir através de um túnel de luz oscilante. Nos velhos tempos, antes de vender o Jaguar, ir da casa deles em Georgetown para a sede, de um lado para o outro, era a sua parte preferida do dia. Não era bem a mesma coisa num Ford Taurus alugado.

Virou para a entrada principal da CIA, parou na guarita à prova de bala e deu o nome ao agente dos Serviços de Protecção Especiais; como já não tinha um cartão de identificação da agência, entregou a carta de condução de Nova Iorque. O agente verificou o nome numa lista. Providenciou-lhe um passe cor-de-rosa para colocar no painel de instrumentos do carro — a escolha da cor em questão sempre intrigara Michael — e explicou-lhe como chegar ao parque de estacionamento para as visitas.

Ao atravessar o hall de entrada em mármore branco, Michael teve a sensação de estar a flutuar através de uma sala da sua infância. Tudo lhe parecia um pouco mais pequeno e um pouco mais sujo do que se lembrava. Passou por cima da insígnia da CIA estampada no chão. Olhou de relance para a estátua de Bill Donovan — o fundador da antecessora da CIA, a Agência de Serviços Estratégicos, em funcionamento durante a Segunda Guerra Mundial — e para a parede de estrelas em honra dos agentes da CIA mortos em serviço.

Dirigiu-se até à secretária do guarda, junto a uma série de torniquetes de segurança de alta tecnologia e apresentou-se ao agente de serviço no turno da manhã. O guarda ligou para a linha telefónica de Adrian Cárter e murmurou algumas palavras para o auscultador. A seguir, desligou e, olhando para Michael com desconfiança, disse-lhe para se sentar num dos bancos pretos almofadados do hall de entrada. Um trio de raparigas bonitas, de calças de ganga e camisola, passou em animado falatório e transpôs os torniquetes. A nova CIA, pensou Michael: a cruzada das crianças. O que iria pensar o feroz Bill Donovan daquele sítio? De repente, sentiu-se muito velho.

Dez minutos mais tarde, Cárter sorriu de forma descaracterizada enquanto se aproximava, vindo do outro lado da barricada de segurança.

— Ora, ora, o filho pródigo à casa torna — exclamou ele. — Deixa-o entrar, Sam. É um desordeiro, mas é inofensivo.

— Por que raio é que demoraste tanto tempo? — perguntou Michael.

— Estava preso ao telefone com a Mónica. Ela quer uma avaliação da situação na Irlanda do Norte para amanhã.

— Meu Deus, Adrian, ainda nem sequer fui à minha secretária.

— Primeiro, o mais importante, Michael.

— E o que é isso?

— O Departamento de Recursos Humanos, claro.

Cárter deixou Michael no Departamento de Recursos Humanos, onde durante três horas suportou o abusivo ritual de iniciação necessário para reentrar no mundo dos serviços secretos. Assegurou que não tinha intenção de revelar segredos a uma qualquer potência estrangeira. Que não era dependente de álcool nem de drogas. Que não era homossexual nem tinha qualquer comportamento sexual desviante. Que não tinha dívidas que não conseguisse pagar. Que não estava a passar por problemas conjugais — a não ser os causados pelo meu regresso à CIA, pensou ele.

Depois de assinar e rubricar todos os documentos necessários, foi fotografado e deram-lhe um novo cartão de identificação, com uma corrente para usar ao pescoço enquanto andasse dentro da sede. Teve de aguentar com o sermão inane advertindo-o para não exibir o emblema em público. Também lhe deram uma password para o computador e um certificado de segurança para poder adquirir documentos confidenciais do sistema de ficheiros da CIA.

O Centro de Contraterrorismo tinha mudado de instalações durante a ausência de Michael, passando de umas divisões apertadas no sexto andar, situadas no antigo edifício da sede, para uma ampla extensão de cubículos brancos na Torre Sul. Para Michael, ao entrar naquela vasta sala nessa manhã, era como estar perante um departamento de reclamações de um conglomerado dos seguros. O CTC tinha sido criado durante a Administração Reagan para neutralizar uma onda de ataques de terrorismo contra americanos e interesses do país no estrangeiro. No léxico de Langley, era apelidado de "Centro" porque se servia do pessoal e dos recursos tanto do lado clandestino da CIA como do analítico. E também incluía pessoal de outras agências governamentais, tais como a Administração para o Combate à Droga, o Departamento de Justiça, a Guarda Costeira e a Administração Federal de Aviação. Até o arqui-rival da CIA, o FBI, desempenhava um papel importante no CTC, algo que teria sido condenado e considerado uma heresia no tempo do pai de Michael.

Carter estava a praticar o seu putt[25] no tapete do espaçoso escritório e não viu Michael chegar. O resto do pessoal levantou-se para o cumprimentar. Estava lá Alan, um estudioso contabilista do FBI que seguia o fluxo secreto de dinheiro através dos bancos mais discretos e sujos do mundo. Estava lá Stephen, também conhecido como Eurotrash, que vigiava os movimentos dos moribundos grupos terroristas de esquerda da Europa Ocidental. Estava lá Blaze, um gigante do Novo México que falava dez dialectos índios diferentes e espanhol com dezenas de sotaques regionais. Os seus alvos eram os movimentos de guerrilha e os grupos terroristas da América Latina. Como de costume, estava vestido como um camponês peruano, com uma camisa folgada e sandálias de couro.

Considerava-se um samurai moderno, um verdadeiro poeta guerreiro; uma vez, tinha tentado ensinar Michael a matar com um cartão American Express. Inconscientemente, Michael reuniu forças enquanto estendia a mão a Blaze e a via desaparecer dentro da enorme pata dele.

Cárter saiu do escritório, com um taco de golfe numa mão e uma pilha de dossiês na outra.

— Onde é que me sento? — perguntou Michael.

— Na esquina da Osama Bin Laden com a Carlos, o Chacal.

— De que raio estás a falar?

— Este sítio agora é tão grande, que tivemos de criar endereços para o pessoal conseguir encontrar-se uns aos outros.

Cárter apontou para uns pequenos letreiros azuis colados no cimo dos cubículos.

— Divertimo-nos um bocadinho com os nomes das ruas. Conduziu Michael pela Alameda Abu Nidal, um caminho longo entre os cubículos, e virou à direita, na Rua Osama Bin Laden. Parou quando chegou a um cubículo sem janela na Avenida Carlos, o Chacal. A secretária estava atafulhada com resmas de dossiês antigos e alguém lhe tinha surripiado o monitor do computador.

— Estamos a contar que recebas um monitor novo até ao final do dia — disse Cárter.

— Isso quer dizer no próximo mês, se tivermos sorte.

— Vou pedir a alguém para arrumar esses dossiês. Precisas de te lançar ao trabalho. A Cynthia vai ajudar-te a começar.

Cynthia era Cynthia Martin, um anjo de cabelos cor do linho, nascido no Reino Unido e o principal agente do centro na questão do terrorismo na Irlanda do Norte.

Tinha estudado movimentos sociais na London School of Economics e dado aulas por um curto período em Georgetown, antes de se juntar à CIA. Já se esquecera de mais coisas acerca do IRA do que aquilo que Michael alguma vez viria a saber. A Irlanda do Norte era o seu território. Se alguém devia liderar o destacamento especial, esse alguém era Cynthia Martin.

Olhou para a secretária caótica de Michael e franziu a testa.

— Porque é que não fazemos isto no meu lugar? Conduziu Michael até ao cubículo dela e sentou-se.

— Olha, Michael, eu não vou fingir que não estou chateada com isto.

Cynthia era conhecida pela sua franqueza e língua afiada. Michael estava surpreendido por ela ter esperado até chegarem ao cubículo para lhe dizer das boas.

— Eu é que devia ter ficado com o destacamento especial para a Irlanda, não alguém que não põe os pés no centro há um ano.

— Prazer em ver-te também, Cynthia.

— Este sítio ainda é um clube de rapazes, apesar de o Director ser uma mulher. E, apesar de eu ter um passaporte americano, no sétimo andar ainda pensam em mim como "aquela cabra britânica".

— Já acabaste?

— Sim, já acabei. Tinha de tirar isto do peito. — Sorriu e perguntou: — Em todo o caso, como é que estás?

— Estou óptimo.

— E as tuas feridas?

— Todas saradas.

— Levas-me a mal estar chateada?

— Claro que não. Tens direito a estar zangada. — Michael interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, disse: — O Adrian deu-me autoridade para organizar o destacamento especial da maneira que eu entendesse. Preciso de um adjunto forte.

— Estás a oferecer-me o cargo? Michael acenou com a cabeça.

— Então, suponho que aceito.

Ele estendeu a mão e Cynthia agarrou-a.

— Bem-vinda a bordo, Cynthia.

— Obrigada, Michael. Bom, temos uma data de coisas para tratar; por isso, vamos deitar mãos à obra.

Quatro horas mais tarde, Adrian Cárter assomou a cabeça ao cubículo de Cynthia.

— Tenho uma coisa que precisas de ver.

Michael seguiu-o até ao escritório dele. Cárter fechou a porta e entregou a Michael um grande envelope em papel manilha.

— O que é isto?

— A Divisão dos Serviços Técnicos tem andado a trabalhar naquele vídeo do assassínio do Ahmed Hussein — respondeu Cárter. — Usaram um computador para aumentar a imagem.

Michael abriu o envelope e tirou de lá uma grande fotografia de uma mão a segurar uma arma. Nas costas da mão, entre o pulso e os primeiros nós dos dedos, via-se uma cicatriz enrugada.

— É ele, Adrian. Raios o partam, é ele.

— Já alertámos a Interpol e os serviços secretos com quem temos boas relações pelo mundo inteiro. A OTS[26] está a usar as imagens que temos para produzir um retrato computadorizado da cara dele. Como sabes, as imagens estão todas parcialmente obscurecidas. Na verdade, não sabemos qual é o aspecto dele. A OTS quer que tu preenchas os espaços em branco.

— Eu nunca cheguei verdadeiramente a ver-lhe a cara — respondeu Michael —, mas tenho uma ideia geral.

— Põe-te a mexer para a OTS e dá-lhes uma mãozinha. Quero esta coisa em circulação o mais rápido possível.

Michael fixou o olhar na mão com a cicatriz na fotografia.

— Se ele quiser trabalhar, vai ter de se mexer — disse Cárter. — E, se tentar mexer-se, nós vamos andar mesmo em cima dele.

Michael sorriu e entregou a fotografia a Cárter. Cárter perguntou:

— Estás contente por teres aceitado o meu convite para voltares?

— Porra, claro que sim.

Michael perdeu o comboio das sete horas por cinco minutos. Ligou para o apartamento deles em Nova Iorque para dizer a Elizabeth que chegaria atrasado, mas ninguém atendeu, pelo que deixou uma mensagem e bebeu uma cerveja no bar do aeroporto até que anunciaram o seu voo.

No avião, ficou a olhar pela janela enquanto imagens da Irlanda do Norte lhe passavam pela cabeça. Tinha passado a maior parte do dia enclausurado no cubículo de Cynthia Martin a estudar as organizações paramilitares do Ulster.

Era possível que qualquer um dos grupos protestantes já existentes tivesse efectuado os ataques e utilizado o pseudónimo de Brigada para a Libertação do Ulster para desviar suspeitas. Também era possível que fosse um novo grupo composto por membros sem experiência paramilitar prévia. Michael tinha outra teoria: a Brigada para a Libertação do Ulster era um pequeno grupo de protestantes da linha dura, altamente organizado e experiente, que tinha desertado das organizações dominantes por causa do cessar-fogo. O trio de ataques fora demasiado profissional e bem-sucedido para ser obra de agentes inexperientes. Os líderes eram, obviamente, implacáveis e iriam até ao fim para proteger a segurança da organização, como o demonstrava o facto de os três terroristas que participaram nos ataques se encontrarem agora todos mortos. Identificar os seus membros iria ser difícil, mas não impossível.

Michael tinha passado a maior parte do dia a rever os dossiês de todos os membros conhecidos dessas organizações paramilitares. As caras deles apareciam-lhe agora na mente: fotos de cadastro, fotografias de operações de vigilância dos serviços secretos, esboços de artistas.

Um outro rosto apareceu-lhe na mente: a imagem esborratada e incompleta de Outubro. Michael suspeitara que ele estivesse vivo. Agora tinha a prova disso, as fotografias de uma mão com uma cicatriz. Ainda assim, sabia que as hipóteses de o apanhar eram pequenas. A única coisa que podia fazer era dar o alerta e esperar que surgisse outra oportunidade.

Michael pediu uma cerveja à assistente de bordo. Telefonou para o apartamento outra vez, mas continuou a não haver resposta. Normalmente, falava com Elizabeth várias vezes por dia, já que ela ligava para casa constantemente para saber das crianças. Naquele dia, já não falavam desde a cerimónia de posse de Douglas. Só estava de volta ao trabalho há um dia, mas já conseguia sentir uma certa distância entre ambos. Sentia-se culpado, mas também experimentava um contentamento — uma sensação de propósito; na verdade, um sentimento de excitação — por que já não passava há muitos meses. Detestava admiti-lo, mas a CIA era como se fosse a sua casa. Às vezes, era um lar disfuncional, com adultos sempre a discutir e crianças incorrigíveis, mas era a sua casa na mesma.

Deparou-se com Elizabeth deitada na cama, rodeada de papéis. Beijou-a no pescoço, mas ela esfregou o sítio como se tivesse comichão. Despiu-se, fez uma sanduíche e enfiou-se na cama, ao lado dela.

— Eu até te perguntava como foi o teu dia — disse ela —, mas já sei que não poderias dizer-me nada.

— Foi bom voltar ao trabalho — respondeu ele, arrependendo-se imediatamente.

— Os teus filhos estão óptimos, já agora.

Ele pousou a sanduíche na mesa-de-cabeceira e tirou o bloco de notas de Elizabeth, colocando-o fora do alcance dela.

— Quanto tempo é que isto vai durar? — perguntou ele.

— Quanto tempo é que vai durar o quê?

— Tu sabes bem o quê, Elizabeth. Quero saber por mais quanto tempo me vais tratar como um pária.

— Não posso fingir que estou contente com isto, Michael. Não posso fingir que não me sinto assoberbada com o meu trabalho e as crianças e que ainda por cima o meu marido agora anda a ir e vir de Washington constantemente.

Acendeu um cigarro, carregando no isqueiro com demasiada força.

— Odeio aquele sítio. Odeio o que aquilo te faz. Odeio o que aquilo nos faz.

— O teu pai apresenta as credenciais à rainha na próxima semana em Londres. Eu preciso de ir a Londres por uns dias. Porque é que não vens comigo para podermos passar algum tempo juntos?

— Porque não posso simplesmente ir de escantilhão para Londres neste preciso momento — disparou ela. — Tenho um julgamento a bater à porta. Tenho filhos. Tu tens filhos, caso te tenhas esquecido.

— Claro que não me esqueci.

— Ainda agora foste a Londres. Porque é que tens de lá voltar tão depressa?

— Preciso de reatar alguns contactos antigos.

— Em Londres?

— Não, em Belfast.

 

 

 

 


CONTINUA