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Series & Trilogias Literarias
Gabriel Allon, restaurador de arte e espião, está prestes a enfrentar o maior desafio de sua vida. Um alegado simpatizante da Al-Qaeda é morto em Londres, e no seu computador são encontradas fotos que levam o serviço secreto israelense a desconfiar de que a organização terrorista prepara um dos mais arrojados atentados no coração do Vaticano.
Allon avisa seu velho amigo, monsenhor Luigi Donati, secretário pessoal do Papa, e parte para Roma a fim de ajudar na segurança.
O que nem ele nem Donati sabem é que o inimigo já se infiltrou no Vaticano. Nas semanas seguintes, Allon travará mortífero duelo de astúcia contra um dos homens mais perigosos do mundo, que o levará de uma galeria londrina a uma ilha paradisíaca no Caribe, a um isolado vale na Suíça e, por fim, de volta ao Vaticano. Allon monta uma armadilha e espera não ser ele a presa.
PARTE UM
A Porta da Morte
1
LONDRES
Foi Ali Massoudi quem, involuntariamente, arrancou Gabriel Allon de sua aposentadoria breve e inquieta: Massoudi, o grande inteletual e livre-pensador eurófilo que, num momento de pânico, se esqueceu de que os ingleses dirigem do lado esquerdo da estrada.
O cenário de sua morte foi um fim de tarde chuvoso de outubro, em Bloomsbury. A data, a sessão final do primeiro Fórum Político anual para a Paz e Segurança na Palestina, Iraque e Países Vizinhos. A conferência tivera início nessa manhã bem cedo, por entre votos de esperança e grande fanfarra. Ao fim do dia, contudo, assumira a qualidade de uma peça medíocre em digressão. Até mesmo os manifestantes que ali tinham comparecido, na esperança de partilhar um pouco da luz da ribalta, pareciam ter consciência de que representavam um guião já muito batido. O presidente americano foi queimado em efígie às dez. O primeiro-ministro israelense foi lançado às chamas purificadoras às onze. Por volta da hora de almoço, sob um dilúvio que por momentos transformou Russell Square num lago, tivera lugar uma qualquer tolice relacionada com os direitos das mulheres na Arábia Saudita. Às oito e meia, quando o painel final foi dado por encerrado, as duas dúzias de estoicos que tinham permanecido até o fim arrastaram-se para as saídas. Os organizadores do acontecimento detetaram pouco apetite para uma repetição do encontro, no Outono seguinte.
Um aderecista adiantou-se e removeu do púlpito um cartaz que dizia: Gaza foi libertada — e agora? O primeiro congressista a levantar-se foi Sayyid, da London School of Economics, defensor dos homens-bomba suicidas e apologista da Al-Qaeda. Em seguida, o austero camareiro-mor de Cambridge, que falava da Palestina e dos judeus como se estes ainda fossem uma pedra no sapato dos elementos sisudos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ao longo de toda a discussão, o idoso camareiro servira de Muro de Separação entre o inflamável Sayyid e uma pobre alma da embaixada israelense, chamada Rachel, que suscitara apupos e vaias de desaprovação sempre que abrira a boca. O camareiro procurava agora servir de soldado da paz, com Sayyid a perseguir Rachel até a porta, lançando-lhe invetivas em que lhe dizia que os dias de colonizadora chegavam ao fim.
Ali Massoudi, professor de Administração Global e de Teoria Social da Universidade de Bremen, foi o último a levantar-se. Tal não seria de surpreender, poderiam ter dito os colegas invejosos, pois no mundo incestuoso dos estudos sobre o Oriente Médio, Massoudi tinha a reputação de ser alguém que nunca abandonava de bom grado um palco. Palestino de nascimento, jordano de passaporte e europeu de formação e estudos, o professor Massoudi surgia ao mundo como um homem moderado. O futuro brilhante da Arábia, assim lhe chamavam. O rosto do progresso. Era conhecido por desconfiar da religião em geral e do islamismo militante em particular. Aproveitava todas as oportunidades, quer fosse em editoriais de jornais, nas salas de aula ou na televisão, para se lamentar da disfunção vivida pelo mundo árabe. Do seu fracasso em educar o povo. Da tendência para culpar os Americanos e os Sionistas pelas maleitas de que padecia. O seu último livro fora basicamente um apelo a uma Reforma Islâmica. Os membros da jihad acusaram-no de ser herege. Os moderados proclamaram que tinha a coragem de Martinho Lutero. Nessa tarde, argumentara, para consternação de Sayyid, que a bola se encontrava no campo palestino. Enquanto os Palestinos não abandonassem a cultura do terror, alertara Massoudi, não se poderia esperar que os Israelitas cedessem um milímetro que fosse da Cisjordânia. Nem o deveriam fazer. Sacrilégio, bradara Sayyid. Apostasia.
O professor Massoudi era alto, tendo um pouco mais de um metro e oitenta de altura, e era demasiado bem-apessoado para um homem que trabalhava com jovens mulheres impressionáveis. Tinha o cabelo escuro e encaracolado, malares largos e fortes e um queixo quadrado com uma covinha marcada ao centro. Os olhos castanhos e profundos conferiam-lhe ao rosto um ar de inteligência acentuada e tranquilizadora. Vestido como estava, com um casaco desportivo de caxemira e uma camisola de gola alta creme, parecia o arquétipo do inteletual europeu. Era uma imagem que lhe dava muito trabalho a transmitir. Com gestos deliberados, guardou metodicamente os papéis e as canetas na pasta coçada e desceu os degraus do palco, ao que se dirigiu ao corredor central, em direção à saída.
Vários elementos da assistência demoravam-se na entrada. A um lado, uma ilha tempestuosa no centro de um mar de tranquilidade, estava a garota. Vestia jeans desbotados, um blusão de couro e um kaffiyeh palestino axadrezado ao pescoço. O cabelo preto brilhava como a asa de um corvo. Os olhos eram também quase pretos, mas cintilavam com outro fulgor. Seu nome era Hamida al-Tatari. Dissera ser refugiada. Nascera em Ama, fora criada em Hamburgo e era agora uma cidadã canadiana que residia no Norte de Londres. Massoudi conhecera-a nessa tarde, durante uma recepção na associação de estudantes. Com um café na mão, acusara-o com fervor de mostrar insuficiente afronta contra os crimes dos americanos e dos judeus. Massoudi gostara do que vira. Tinham combinado tomar uma bebida nesse serão, no bar ao lado do teatro de Sloane Square. As intenções dele não eram românticas. Não queria o corpo de Hamida. Queria o seu entusiasmo e o seu rosto limpo. O inglês perfeito e o passaporte canadiano. A jovem lançou-lhe um olhar furtivo quando ele cruzou o hall, mas não tentou falar-lhe. Mantém a distância após o simpósio, indicara-lhe ele nessa tarde. Um homem da minha posição tem de ter cuidado com quem é visto. No exterior, abrigou-se por um momento debaixo do pórtico e olhou o trânsito que se arrastava ao longo da estrada molhada. Sentiu alguém a encostar-se ao seu cotovelo e depois observou Hamida a mergulhar silenciosamente na chuvada. Esperou que desaparecesse, pendurou a pasta no ombro e afastou-se na direção oposta, para o hotel em Russell Square.
Deixou-se transformar, a mudança que ocorria sempre que alternava entre vidas. A aceleração do ritmo cardíaco, o aguçar dos sentidos, a repentina inclinação para os pormenores. Como o jovem calvo que vinha em sua direção, ao abrigo de um guarda-chuva, e cujo olhar pareceu demorar-se no rosto de Massoudi por um instante mais do que deveria. Ou o vendedor do quiosque que fitara, sem pudor, seus olhos, quando comprara o Evening Standard. Ou o taxista que o observou, trinta segundos depois, quando jogou esse mesmo jornal numa lixeira em Upper Woburn Place.
Um ônibus cruzou com ele. Enquanto passava ruidosamente, Massoudi espiou as janelas embaciadas e viu uma dúzia de rostos cansados, quase todos negros ou castanhos. Os novos londrinos, pensou, e, por um instante, o professor de Administração Global e Teoria Social debateu-se com as implicações. Quantos apoiariam em silêncio a sua causa? Quantos assinariam por baixo, se lhes apresentasse um contrato de morte?
Logo depois de o ônibus ter passado, viu no passeio oposto um único pedestre: capa de plástico, rabo-de-cavalo, duas linhas estreitas como sobrancelhas. Massoudi reconheceu-o de imediato. O jovem estivera na conferência, na mesma fila de Hamida, mas no lado oposto do auditório. Ocupara o mesmo lugar nessa manhã, quando Massoudi fora a única voz opositora durante uma discussão sobre os benefícios da proibição de acadêmicos israelenses nas costas europeias. Massoudi baixou os olhos e continuou a andar, levando involuntariamente a mão à alça da pasta. Estaria a ser seguido? Se assim fosse, por quem? O MI5 seria a explicação mais plausível. A mais provável, pensou, mas não a única. A BND alemã poderia tê-lo seguido de Bremen até Londres. Ou talvez estivesse vigiado pela CIA.
Mas foi a quarta possibilidade que fez o coração de Massoudi dar um salto no peito. E se o homem não fosse inglês, nem alemão, nem americano? E se trabalhasse para um serviço de espionagem que mostrava poucos escrúpulos em liquidar os inimigos, mesmo nas ruas das capitais estrangeiras? Um serviço de espionagem que usava habitualmente mulheres como isca? Pensou no que Hamida lhe dissera nessa tarde.
— Vivi quase toda a minha infância e juventude em Toronto.
— E antes disso?
— Aman, em pequena. Depois um ano em Hamburgo. Sou palestina, professor. Meu lar é uma mala.
Massoudi saiu de repente de Woburn Place, entrando no labirinto de ruas secundárias de St. Pancras. Abrandou depois de alguns passos e olhou por cima do ombro. O indivíduo de oleado atravessara a rua e seguia-o. Estugou o passo e dobrou algumas esquinas, à direita e à esquerda. Passou por uma fiada de casas antigas restauradas, por um bloco de apartamentos, por uma praça vazia, coberta de folhas secas. Massoudi não prestava atenção a nada disso. Tentava orientar-se. Conhecia razoavelmente as artérias principais de Londres, mas as ruas secundárias eram um mistério. Ignorou os cuidados do ofício e passou a olhar para trás com regularidade. A cada vislumbre, o homem parecia um ou dois passos mais próximo.
Chegou a um cruzamento, olhou para a esquerda e viu o trânsito intenso de Euston Road. Sabia que do lado oposto ficavam as estações de Kings Cross e de St. Pancras. Tomou essa direção e, segundos depois, voltou a olhar por cima do ombro. O homem contornara a esquina e vinha atrás dele.
Começou a correr. Nunca fora grande atleta e os anos de vida acadêmica tinham-lhe roubado a preparação física. O peso do computador portátil que tinha na pasta era como uma âncora. A cada passada, a sua carga batia-lhe na anca. Firmou a pasta com o cotovelo e segurou a alça com a outra mão, mas isso obrigou-o a andar com um ritmo galopante desajeitado, que o atrasava ainda mais. Pensou em livrar-se do peso, mas resolveu manter a pasta. Se caísse nas mãos erradas, o computador seria uma arca do tesouro de informações. Operacionais, fotografias de vigilância, comunicações, contas bancárias... Deteve-se em Euston Road. Olhou por cima do ombro e viu o perseguidor continuar a avançar metodicamente na sua direção, de mãos nos bolsos, os olhos baixos. Olhou para a esquerda, viu asfalto vazio e desceu do passeio.
O gemido da buzina do caminhão foi o último som que Ali Massoudi ouviu. A pasta soltou-se com o impacto. Alçou voo, rodopiou algumas vezes no trajeto por cima da estrada e aterrou no passeio com um baque sólido. O homem da capa de oleado mal reduziu o passo quando se baixou para a agarrar pela alça. Pendurou-a ao ombro, atravessou a Euston Road e seguiu a multidão para Kings Cross.
2
JERUSALÉM
A pasta chegara a Paris de madrugada e, pelas onze horas, estava a ser levada para um bloco de escritórios anônimo no Boulevard King Saul, em Tel Aviv. Aí, os objetos pessoais do professor foram rapidamente investigados e o disco rígido do computador portátil submetido a um assalto por uma equipe de técnicos informáticos. Às três da tarde, as primeiras informações tinham sido enviadas para o Gabinete do primeiro-ministro, em Jerusalém, e às cinco, um dossiê com o material mais alarmante viajava no banco de trás de uma limusina Peugeot blindada que se dirigia à Rua Narkiss, uma ruela sossegada perto da Avenida Ben Yehuda.
O carro parou em frente do pequeno prédio de apartamentos que tinha o número 16. Ari Shamron, o antigo chefe do serviço secreto israelense e agora conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados com segurança e informações, saiu do banco traseiro. Rami, o chefe de olhos negros do destacamento especial de segurança, seguiu-o de perto. Shamron fizera multidões de inimigos durante a sua longa e agitada carreira. Devido ao emaranhado demográfico israelense, muitos deles encontravam-se a uma distância perigosamente curta. Mesmo em sua villa fortificada em Tiberíades, Shamron estava sempre cercado por guarda-costas. Fez uma breve pausa no acesso do jardim e olhou para cima. Era um pequeno edifício nada elegante de dois andares, construído em calcário de Jerusalém, com um eucalipto imponente à frente que lançava uma sombra agradável sobre as varandas da fachada. Os ramos da árvore agitavam-se com o primeiro vento frio de Outono, e da janela aberta no segundo andar vinha um odor forte a diluente.
No hall, Shamron olhou para a caixa do correio do apartamento número três e viu que não tinha nome. Dirigiu-se às escadas e subiu-as com lentidão. Era baixo e vestia, como habitualmente, calça caqui e blusão de couro puído com um rasgão no lado direito do peito. Tinha o rosto cheio de fissuras e o que lhe restava de cabelo grisalho fora cortado tão curto que era quase invisível. As mãos pareciam couro e estavam salpicadas de manchas de idade, e pareciam ter vindo de um homem com o dobro do tamanho. Uma delas segurava o dossiê.
Quando chegou ao segundo andar, a porta estava entreaberta. Chegou-lhe os dedos e empurrou-a com suavidade. O apartamento em que entrou fora cuidadosamente decorado por uma bela mulher ítalo-judaica de gosto impecável. Agora, a mobília, como a mulher, tinha desaparecido e o apartamento fora transformado no estúdio de um artista. Shamron teve de se recordar de que não era um artista. Gabriel Allon era um restaurador, um dos três ou quatro restauradores mais procurados do mundo. Encontrava-se de pé, à frente de uma tela enorme que representava um homem cercado por gatos avantajados de ar voraz. Shamron acomodou-se num banco sujo de tinta e observou-o a trabalhar durante alguns momentos. Sempre ficara espantado com a capacidade de Gabriel de imitar as pinceladas dos pintores renascentistas. Para Shamron, era uma espécie de truque, apenas mais um dos dons a serem utilizados, a par do conhecimento de línguas e da capacidade de sacar uma Beretta e colocá-la em posição de disparo no tempo que a maior parte dos homens demora para bater as palmas.
— Parece muito melhor do que quando chegou — comentou Shamron —, mas continuo sem entender por que haveria alguém que querer tê-lo em casa.
— Não vai para uma casa particular — retorquiu Gabriel, o pincel ainda na tela. — É uma peça de museu.
— Quem o pintou? — inquiriu Shamron repentinamente, como se perguntasse pelo responsável por um atentado de homem-bomba.
— A casa de leilões Bonhams de Londres achava que tinha sido Erasmo Quellinus — respondeu Gabriel. — Quellinus pode ter feito a base, mas para mim é óbvio que foi Rubens quem o terminou. — Passou a mão pela tela enorme. — As pinceladas dele estão um pouco por todo o lado.
— Qual a diferença?
— Uns dez milhões de libras — explicou Gabriel. — Julian vai se sair muito bem com este.
Julian Isherwood era um negociante de arte londrino, que por vezes trabalhava para o serviço secreto israelense. O departamento tinha um nome comprido que pouco tinha a ver com a verdadeira natureza do trabalho executado. Homens como Shamron e Gabriel referiam-se a ele como o Escritório, e nada mais.
— Espero que Julian pague bem.
— Os honorários de restauração, mais uma pequena comissão sobre a venda.
— Qual será o total?
Gabriel bateu com o pincel na paleta e voltou ao trabalho.
— Temos que falar — disse Shamron.
— Pois fale.
— Não vou falar para stuas costas. — Gabriel virou-se e olhou novamente para Shamron através das lentes do visor de ampliação. E também não vou falar contigo enquanto continuares com isso na cara. Até parece que saíste de um pesadelo. Com relutância, Gabriel pousou a paleta em cima da mesa de trabalho e retirou o visor, deixando ver um par de olhos de um tom verde-esmeralda brilhante. Tinha uma altura abaixo da média e o físico seco de um ciclista. O rosto era alto na testa e estreito no queixo, e tinha um nariz comprido e ossudo que parecia ter sido esculpido em madeira. O cabelo era muito curto e estava salpicado de grisalho nas têmporas. Devia-se a Shamron o fato de Gabriel ser restaurador de arte e não um dos melhores pintores da sua geração. Fora também por causa dele que ficara com as têmporas brancas quase da noite para o dia, quando tinha pouco mais de vinte anos. Shamron fora o oficial do serviço secreto escolhido por Golda Meir para encontrar e assassinar os perpetradores do Massacre de Munique de 1972, e um jovem e promissor estudante de arte chamado Gabriel Allon tinha sido o pistoleiro principal.
Passou alguns momentos a limpar a paleta e os pincéis, após o que se dirigiu à cozinha. Shamron sentou-se à pequena mesa e esperou que Gabriel virasse as costas, antes de acender rapidamente um dos seus cigarros turcos pestilentos. Ao ouvir o clique-clique familiar do velho isqueiro Zippo de Shamron, Gabriel apontou, exasperado, para o Rubens. Mas Shamron acenou com a mão e levou o cigarro aos lábios, numa atitude de desafio. Um silêncio confortável instalou-se entre os dois homens. Gabriel verteu água engarrafada para a chaleira e despejou algumas colheres de café na cafeteira. Shamron ouvia com agrado o vento nos eucaliptos do jardim. Sendo um homem profundamente secular, marcava a passagem do tempo não através das celebrações judaicas, mas sim pelo ritmo da terra: o dia em que as chuvas começavam, o dia em que as flores silvestres desabrochavam na Galileia, o dia em que o vento frio regressava. Gabriel conseguia ler-lhe o pensamento. Mais um Outono e ainda aqui estamos. A aliança não foi revogada.
— O primeiro-ministro quer uma resposta. — O olhar de Shamron continuava fito no pequeno jardim. — É um homem paciente, mas não vai esperar para sempre — Já lhe disse que terei uma resposta quando acabar o quadro. Shamron olhou para Gabriel.
— Será que a tua arrogância não tem limites? O primeiro-ministro do Estado de Israel quer que sejas chefe das Operações Especiais, e tu troca-lo por um pedaço de tela com quinhentos anos.
Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron despejou açúcar para o seu e mexeu-o violentamente uma única vez.
— Você mesmo disse que o quadro está quase terminado. Qual vai ser sua resposta?
— Ainda não decidi.
— Posso dar um conselho útil?
— E se eu não quiser seu conselho?
— Dou assim mesmo. — Shamron extinguiu a vida da guimba do cigarro. — Devia aceitar a oferta do primeiro-ministro, antes que ele procure outra pessoa.
— Ficaria muito feliz.
— Sério? E o que fará de sua vida? — Ao ter o silêncio como resposta, Shamron insistiu. — Deixe pintar um quadro, Gabriel. Vou dar o meu melhor. Não tenho seus dotes. Não venho de uma grande família de inteletuais germano-judaicos. Sou apenas um pobre judeu polaco cujo pai vendia vasos num carrinho de mão.
A terrível pronúncia polaca de Shamron acentuara-se. Gabriel não pôde deixar de sorrir. Sabia que sempre que Shamron desempenhava o papel de judeu oprimido de Lvov algo divertido se seguiria.
— Não tens para onde ir, Gabriel. Tu próprio o disseste, da primeira vez que te oferecemos este cargo. O que vais fazer quando acabares este teu Rubens? Tens mais algum trabalho à espera? — A pausa de Shamron foi teatral, pois sabia que a resposta seria negativa. — Não podes voltar à Europa, antes de seres oficialmente ilibado do ataque homem-bomba na Gare de Lyon. O Julian poderá enviar-te outro quadro, mas eventualmente também isso vai acabar, pois as despesas de embalagem e de envio vão delapidar-lhe a margem de lucro que já não é famosa. Percebes onde quero chegar, Gabriel?
— Perfeitamente. Está a tentar usar a minha situação infeliz como chantagem para me obrigar a aceitar as Operações.
— Chantagem? Não, Gabriel. Eu sei o que é a chantagem, e Deus sabe que já a usei para alcançar os meus objetivos. Mas isto não é chantagem. Estou a tentar ajudar-te.
— Ajudar?
— Diz-me uma coisa, Gabriel: o que estás a pensar fazer em relação ao dinheiro? — Eu tenho dinheiro.
— Que chega para viver como um eremita, mas que não é suficiente para viver. — Shamron ficou em silêncio durante alguns momentos e escutou o vento. — Está calmo, não está? Quase tranquilo. É tentador pensar que pode ficar assim para sempre. Mas não vai durar. Entregamos Gaza sem exigir nada em troca e a paga que eles nos deram foi eleger livremente o Hamas como líder. Não tarda nada vão querer a Cisjordânia e, se não cedermos a curto prazo, vai haver mais derrame de sangue, ainda pior do que a segunda intifada. Acredita, Gabriel, um dia tudo isso vai recomeçar. E não só aqui, mas por todo o lado. Julgas que estão indolentes? É claro que não. Estão a planejar a campanha seguinte. Andam a falar com o Osama e com os amiguinhos dele. Sabemos de fonte segura que a Autoridade Palestina está cheia de elementos da Al-Qaeda e seus simpatizantes. Também sabemos que estão a planejar grandes ataques contra Israel e contra alvos israelenses no estrangeiro, num futuro próximo. O Escritório também acredita que o primeiro-ministro é um alvo a abater, a par de alguns conselheiros principais.
— O senhor incluído?
— É claro — asseverou Shamron. — Afinal de contas, sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados com a segurança e com o terrorismo. Para eles, a minha morte seria uma tremenda vitória simbólica.
Voltou a olhar pela janela, para o vento que soprava entre as árvores. — É irônico, não achas? Este lugar devia ser o nosso santuário. Agora, por estranho que pareça, deixou-nos mais vulneráveis do que nunca. Quase metade de todos os judeus do mundo vivem nesta faixa de terra minúscula. Bastava um engenho nuclear pequeno. Os Americanos eram capazes de sobreviver. Os Russos talvez mal dessem por ele. Mas nós? Uma bomba em Tel Aviv ia matar um quarto da população do país... talvez mais.
— E precisa de mim para impedir esse apocalipse? Pensei que o Escritório estivesse em boas mãos.
— As coisas estão melhores desde que o Lev foi convidado a sair. O Amos é um líder nato, e um administrador de uma competência extraordinária, mas por vezes julgo que tem demasiado espírito de soldado dentro dele. — Foi chefe do Sayeret Matkal e do Aman. O que esperava?
— Sabíamos o que esperar do Amos, mas agora o primeiro-ministro e eu estamos preocupados que esteja a transformar O Boulevard King Saul num posto da FDI.
Queremos que o Escritório mantenha o seu caráter original.
— A insanidade?
— A coragem — contrapôs Shamron. — A audácia. Gostava que o Amos pensasse um pouco menos como comandante de batalha e um pouco mais como... — Fez uma pausa, enquanto procurava o termo correto. Quando o encontrou, esfregou os dois primeiros dedos no polegar e concluiu: — Como um artista. Preciso de alguém ao lado dele que pense como Caravaggio. — Caravaggio era louco.
— Exatamente.
Shamron fez menção de acender outro cigarro, mas desta vez Gabriel conseguiu deter seu movimento antes que acionasse o isqueiro. Shamron fitou-o, os olhos assumindo de súbito uma expressão séria.
— Precisamos de você já, Gabriel. Há duas horas, o chefe de Operações Especiais entregou a Amos a carta de demissão.
— Por quê?
— Londres. — Shamron olhou para a mão cativa. — Devolve minha mão? Gabriel largou o pulso grosso. Shamron rolou o cigarro apagado entre o polegar e o indicador.
— O que aconteceu em Londres? — perguntou Gabriel.
— Receio que ontem à noite tenhamos sofrido um contratempo.
— Um contratempo? Quando o Escritório tem um contratempo morre um.
Shamron anuiu.
— Mas pelo menos são consistentes.
— O nome Ali Massoudi diz alguma coisa a você?
— É professor de alguma coisa numa universidade alemã — retorquiu Gabriel. — Gosta de desempenhar o papel de iconoclasta e reformista. Cheguei a conhecê-lo.
As sobrancelhas de Shamron ergueram-se de surpresa.
— Sério? Onde?
— Foi a Veneza há uns dois anos, para um grande simpósio sobre o Oriente Médio. O roteiro dos participantes incluía visita guiada à cidade. Uma das paradas foi na Igreja de San Zaccaria, onde eu estava a restaurar o retábulo de Bellini.
Durante anos, Gabriel vivera e trabalhara em Veneza, dando pelo nome de Mario Delvecchio. Seis meses antes fora obrigado a fugir da cidade, depois de ter sido descoberto por um mestre terrorista palestino chamado Khaled al-Khalifa. O assunto terminara na Gare de
Lyon e, em consequência, o nome e o passado secreto de Gabriel fizeram as primeiras páginas da imprensa francesa e europeia, incluindo um artigo no The Sunday Times que o considerava o "Anjo da Morte de Israel". Era ainda procurado para ser interrogado pela Polícia de Paris, e um grupo de direitos civis palestino apresentara queixa em Londres, alegando crimes de guerra.
— E chegaste mesmo a falar com o Massoudi? — perguntou Shamron, incrédulo. — Apertaram as mãos?
— Como Mario Delvecchio, é claro.
— Imagino que não te tenhas apercebido de que estavas a apertar a mão a um terrorista.
Shamron enfiou a ponta do cigarro entre os lábios e acendeu o Zippo. Desta vez, Gabriel não interferiu.
— Há três meses recebemos uma informação de um amigo do GID jordano, que nos dizia que o professor Ali Massoudi, o grande moderado e reformista, era na verdade um caçador de talentos da Al-Qaeda. Segundo os jordanos, ele estava à procura de recrutas para atacar alvos israelenses e judaicos na Europa. As conferências de paz e as manifestações anti-israelenses eram o seu terreno de caça preferido. Não ficamos surpreendidos com essa parte. Há já algum tempo que sabemos que as conferências de paz se tornaram ponto de encontro entre operacionais da Al-Qaeda e extremistas europeus, tanto de esquerda como de direita. Decidimos que seria bom vigiar o professor Massoudi. Pusemos sob escuta o telefone do apartamento de Bremen, mas os resultados foram, no mínimo, decepcionantes. Era muito bom ao telefone. Depois, há cerca de um mês, a Estação de Londres contribuiu com uma informação oportuna. Ao que parece, a Secção Cultural da embaixada de Londres foi convidada a incluir um participante numa coisa chamada Fórum Político para a Paz e Segurança na Palestina, Iraque e Países Vizinhos. Quando a Cultural pediu uma lista dos outros participantes, imagina qual foi o nome que apareceu.
— O professor Ali Massoudi.
— A Cultural acedeu em enviar um representante à conferência, e as Operações Especiais começaram a vigiar o Massoudi.
— Que tipo de operação era?
— Simples — explicou Shamron. — Apanhá-lo com a mão na massa. Comprometê-lo. Ameaçá-lo. Dar-lhe a volta. Estás a imaginar? Um agente no interior do departamento de pessoal da Al-Qaeda? com a ajuda do Massoudi, poderíamos ter chegado à rede europeia.
— O que aconteceu?
— Pusemos uma garota à frente dele. Apresentou-se como Hamida al-Tatari. O nome verdadeiro é Aviva e é de Ramat Gan, mas isso pouco importa. Conheceu Massoudi durante uma recepção. Ele. ficou intrigado e acedeu a que se voltassem a encontrar nessa noite, para uma conversa mais elaborada sobre o estado atual do mundo. Seguimos o Massoudi depois da última sessão da conferência, mas, ao que parece, o professor detetou o agente e começou a fugir. Olhou para o lado errado quando atravessou a Euston Road e meteu-se à frente de um caminhão. Gabriel estremeceu.
— Felizmente não saímos de lá de mãos a abanar — prosseguiu Shamron. — O agente conseguiu resgatar a pasta de Massoudi. Lá dentro, entre outras coisas, estava um computador portátil. Ao que parece, o professor Ali Massoudi não era um mero caçador de talentos.
Shamron pousou o dossiê à frente de Gabriel e, com um aceno breve da cabeça, disse que deveria abrir a capa. Lá dentro, encontrou uma pilha de fotografias de vigilância: a Praça de S. Pedro a partir de vários ângulos; a fachada e o interior da Basílica; a Guarda Suíça de sentinela ao Arco dos Sinos. Era óbvio que as fotografias não tinham sido tiradas por um turista vulgar, pois o fotógrafo estivera muito menos interessado na estética visual do Vaticano do que nas medidas de segurança em seu redor. Havia várias imagens das barricadas no extremo ocidental da praça e dos detetores de metal ao longo da Colunata de Bernini, e muitas outras da Vigilanza e dos Carabinieri que patrulhavam a praça durante os ajuntamentos de pessoas, e que incluíam grandes planos das armas pessoais. As últimas três fotografias mostravam o papa Paulo VII a saudar a multidão na Praça de S. Pedro, a partir do papamóvel envidraçado. A lente da câmera não se focara no Santo Padre, mas sim nos elementos à paisana da Guarda Suíça que o acompanhavam.
Gabriel viu as fotografias uma segunda vez. Com base na qualidade da luz e nas roupas usadas pelas multidões de peregrinos, parecia que tinham sido tiradas em pelo menos três ocasiões diferentes. Sabia que a vigilância fotográfica repetida do mesmo alvo era caraterística de uma operação séria da Al-Qaeda. Fechou o dossiê e estendeu-o a Shamron, mas este não o aceitou. Gabriel olhou para o rosto do idoso com a mesma intensidade com que analisara as fotografias.
Sabia que se avizinhavam mais más notícias.
— A Técnica descobriu outra coisa no computador do Massoudi — disse Shamron. — Instruções sobre como acessar uma conta bancária em Zurique. Uma conta que já conhecemos há algum tempo, pois tem recebido infusões regulares de dinheiro de uma coisa chamada Comitê para a Libertação de Al-Quds.
Al-Quds era o nome árabe para Jerusalém.
— Quem está por trás dela? — questionou Gabriel.
— A Arábia Saudita — respondeu Shamron. — Mais concretamente, o ministro da Administração Interna da Arábia Saudita, o príncipe Nabil.
No Escritório, Nabil era conhecido por Príncipe das Trevas, devido ao seu ódio por Israel e pelos Estados Unidos, e pelo apoio concedido aos militantes islâmicos espalhados pelo mundo.
— Nabil criou o Comitê no auge da segunda intifada — prosseguiu Shamron. — É ele quem angaria o dinheiro e gere pessoalmente a sua distribuição. Acreditamos que tenha cem milhões de dólares à sua disposição e está a canalizá-lo para alguns dos mais violentos grupos terroristas do mundo, incluindo a Al-Qaeda. — Quem dá o dinheiro a Nabil?
— Ao contrário das outras obras de caridade sauditas, o Comitê para a Libertação de Al-Quds tem uma base de doadores muito pequena. Julgamos que Nabil recebe o dinheiro de um punhado de multimilionários sauditas.
Shamron olhou para o café por um instante.
— Caridade — disse, com um tom de desprezo. — Uma bela palavra, não é? Mas a caridade saudita sempre foi uma espada de dois gumes. A Liga Mundial Muçulmana, a Organização Internacional para o Apoio Islâmico, a Fundação Islâmica al-Haramayn, a Fundação Internacional para a Benevolência, tudo isto está para a Arábia Saudita como o Comintern estava para a antiga União Soviética. Um meio de propagação da fé. O islamismo. E não é um islamismo qualquer. O tipo de islamismo puritano da Arábia Saudita. O wahhabismo. As obras de caridade constroem mesquitas e centros islâmicos um pouco por todo o mundo, e madrassas que cospem os militantes wahhabis de amanhã. Também entregam verbas diretamente aos terroristas, incluindo os nossos amigos do Hamas. Os motores da América trabalham com petróleo saudita, mas as redes do terrorismo islâmico mundial trabalham em grande parte com dinheiro saudita.
— A caridade é o terceiro pilar do islamismo — comentou Gabriel.
— Zakat.
— E é uma qualidade muito nobre — asseverou Shamron —, exceto quando a akat acaba nas mãos de assassinos.
— Acha que Ali Massoudi tinha mais alguma ligação com os sauditas, além do dinheiro?
— Talvez nunca venhamos a saber, pois o grande professor já não está entre nós. Mas quem quer que seja o seu empregador, tem os olhos no Vaticano... e alguém tem que avisá-los.
— Imagino que já tenha pensado em alguém para a tarefa.
— Encare como sua primeira missão como chefe de Operações Especiais — disse Shamron. — O primeiro-ministro quer que assuma imediatamente.
— E Amos?
— Amos tem outro nome em mente, mas o primeiro-ministro e eu deixamos bem claro quem queremos no cargo.
— Meu cadastro tem sua conta de escândalos e, infelizmente, o mundo sabe deles.
— O caso da Gare de Lyon? — Shamron encolheu os ombros. — Caiu numa cilada armada por um adversário inteligente. Além disso, sempre acreditei que uma carreira livre de controvérsia nem sequer chega a ser uma carreira. O primeiro-ministro também é dessa opinião.
— Isso talvez seja por ter estado envolvido nos seus próprios escândalos. — Gabriel suspirou profundamente e voltou a olhar para as fotos. — Enviar-me a Roma acarreta riscos. Se os franceses descobrirem que estou em solo italiano...
— Não precisa ir a Roma — atalhou Shamron. — Roma vem até você.
— Donati?
Shamron anuiu.
— O que lhe disse?
— O suficiente para ter pedido à Alitalia que emprestasse um avião por algumas horas — disse Shamron. — Chega logo de manhã. Mostre as fotos. Conte o que for necessário para convencê-lo de que acreditamos que a ameaça é real.
— E se ele pedir ajuda?
Shamron encolheu os ombros.
— Dê tudo o que ele precisar.
3
JERUSALÉM
Às onze horas do dia seguinte, o monsenhor Luigi Donati, secretário pessoal de Sua Santidade, o papa Paulo VII, esperava por Gabriel no hall do Hotel Rei David.
Era alto, magro e elegante como um ídolo do cinema italiano. O corte do fato eclesiástico preto e o colarinho romano sugeriam que o monsenhor, embora casto, não era completamente isento de uma certa vaidade pessoal. A mesma indicação era transmitida pelo dispendioso relógio suíço que tinha no pulso e pela caneta de ouro alojada no bolso do peito do casaco. Nos olhos escuros brilhava uma inteligência feroz e inflexível, e a rigidez do maxilar revelava que era um homem perigoso quando contrariado. Os jornalistas do Vaticano descreviam-no como um Rasputin eclesiástico, o poder por trás do trono papal. Os seus inimigos na Cúria Romana referiam-se com frequência a Donati como sendo "o papa Negro", numa alusão pouco lisonjeira ao seu passado jesuíta. Tinham-se conhecido havia três anos. Gabriel investigava o assassínio de um estudioso israelense que vivia em Munique, um antigo agente do Escritório, chamado Benjamin Stern. O rasto de pistas levara Gabriel até o Vaticano, e até as mãos capazes de Donati, e juntos tinham destruído uma grave ameaça ao papado. Um ano mais tarde, Donati ajudara Gabriel a descobrir elementos num arquivo da Igreja que lhe tinham permitido identificar e capturar Erich Radek, um criminoso de guerra nazi que vivia em Viena. Mas a ligação entre Donati e Gabriel não se limitava a dois homens. O mestre de Donati, o papa Paulo VII, encontrava-se mais próximo de Israel do que qualquer dos seus antecessores alguma vez tinha estado, e dera passos monumentais para melhorar a relação entre Católicos e Judeus. Mante-lo vivo era uma das mais elevadas prioridades de Shamron.
Quando Donati avistou Gabriel a cruzar o hall, esboçou um sorriso caloroso e estendeu a mão comprida e morena.
— É um prazer vê-lo, meu amigo. Apenas gostaria que as circunstâncias fossem diferentes.
— Já deu entrada? Donati exibiu a chave.
— Vamos subir. Tenho de lhe mostrar uma coisa.
Dirigiram-se aos elevadores e entraram num que aguardava. Mesmo antes de Donati estender a mão para o painel, Gabriel soube que iria carregar no botão do sexto piso, como sabia que a chave na mão de Donati abria a porta do Quarto 616. A suíte espaçosa em frente às muralhas da Cidade Velha estava constantemente reservada para os assuntos do Escritório. A par dos luxos habituais, continha um sistema de gravação incorporado, o qual podia ser ativado por um interruptor minúsculo oculto por baixo do lavatório da casa de banho. Antes de mostrar as fotografias a Donati, Gabriel confirmou que o sistema estava desligado. Enquanto via cuidadosamente cada imagem, o rosto do padre não revelou qualquer emoção. Momentos depois, quando Donati foi até a janela olhar para a Cúpula da Pedra a cintilar à distância, Gabriel reparou que os músculos do maxilar do clérigo contraíam-se e descontraíam-se devido ao stresse. — Já passamos por isto muitas vezes, Gabriel. O Milênio, o Jubileu, quase sempre pelo Natal e pela Páscoa. Por vezes os alertas são-nos dados pelos serviços de segurança italianos, e de outras vezes chegam-nos pelas mãos dos nossos amigos da CIA. Respondemos sempre com um intensificar da segurança, até que se julgue que a ameaça já passou. Até agora, nada se concretizou. A Basílica continua de pé. Satisfaz-me poder dizer que o mesmo se passa com o Santo Padre.
— Mesmo que não tenham sido bem sucedidos, isso não quer dizer que não continuem a tentar, Luigi. Os terroristas da Al-Qaeda inspirados pelo wahhabismo veem todos os que não seguem o seu ramo do islamismo como kafur e mushrikun, merecedores unicamente da morte. Os kafur, os infiéis, e os mushrikun, os politeístas. Consideram até mesmo os muçulmanos sunitas e xiitas mushrikun, mas, para eles, o maior símbolo do politeísmo é o Vaticano e o Santo Padre.
— Entendo tudo isso, mas, como vocês dizem no Seder da sua Páscoa, por que será esta noite diferente de todas as outras?
— Está a perguntar-me por que deverão levar esta ameaça a sério?
— Precisamente.
— Por causa do mensageiro — explicou Gabriel. — O homem em cujo computador encontramos estas fotografias.
— De quem se trata?
— Receio não poder dizer-lhe.
Donati virou lentamente as costas à janela e olhou Gabriel com autoridade. — Revelei-lhe alguns dos maiores segredos da Igreja Católica Apostólica. O mínimo que pode fazer em troca é dizer-me onde conseguiram as fotografias.
Gabriel hesitou.
— O nome Ali Massoudi diz-lhe alguma coisa?
— O professor Ali Massoudi? — Donati assumiu uma expressão sombria. — Ele não foi morto em Londres, há duas noites?
— Ele não foi morto — corrigiu Gabriel. — Morreu num acidente.
— Meu Deus, Gabriel, por favor, não me diga que o empurrou para baixo daquele caminhão.
— Guarde a sua mágoa para alguém que a mereça. Sabemos que Massoudi angariava terroristas. E, com base naquilo que encontramos no seu computador portátil, também poderia ser um estratego.
— É pena que tenha morrido. Poderíamos tê-lo torturado até que nos revelasse o que queríamos ouvir. — Donati olhou para as mãos. Perdoe-me pelo meu tom sarcástico, Gabriel, mas não apoio a guerra ao terror que travamos. Nem o Santo Padre.
Donati voltou a olhar pela janela, para os muros da Cidade Velha. — É irônico, não é? É a primeira vez que visito esta sua cidade santa, e é esta a razão que me traz.
— A sério que nunca a tinha visitado? Donati abanou lentamente a cabeça.
— Quer ver onde tudo começou? Donati sorriu.
— Na verdade, nada me daria mais prazer.
Cruzaram o vale de Hinnom e subiram a encosta do monte até a muralha oriental da Cidade Velha. O caminho na base da parede encontrava-se nas sombras. Seguiram-no para sul, até a Igreja da Dormição, depois contornaram a esquina e atravessaram a Porta de Sião. Na Estrada do Bairro Judaico, Donati retirou um pedaço de papel do bolso das suas vestes eclesiásticas.
— O Santo Padre pediu-me que deixasse isto no Muro Ocidental.
Seguiram um grupo de haredim ao longo do Tiferet Yisrael. Donati, com a sua roupa negra, parecia fazer parte do grupo. No fim da rua, desceram os largos degraus de pedra que desciam até a praça à frente do muro. Uma longa fila estendia-se desde o posto de segurança. Após murmurar algumas palavras a uma agente da Polícia, Gabriel levou Donati à volta do detetor de metais, até a praça.
— Será que não faz nada como uma pessoa normal?
— Pode ir — disse Gabriel. — Eu espero aqui.
Donati virou-se e dirigiu-se inadvertidamente ao lado do muro reservado às mulheres. Com um estalar discreto da língua, Gabriel disse-lhe a zona reservada aos homens. Donati escolheu um kippab do cesto público e colocou-o de modo precário no topo da cabeça. Ficou defronte do muro por um momento, orando em silêncio, e depois enfiou o pequeno rolo de papel numa racha na pedra herodiana castanha.
— O que dizia? — perguntou Gabriel, quando Donati regressou.
— Era um apelo à paz.
— Devia tê-lo deixado ali em cima — sugeriu Gabriel, apontando na direção da mesquita Al-Aqsa.
— Gabriel mudou — notou Donati. — O homem que conheci há três anos nunca teria dito isso.
— Todos nós mudamos, Luigi. Já não há um campo de paz neste país, apenas um campo de segurança. Arafat não contou com isso quando enviou os homens-bomba suicidas.
— Arafat já morreu.
— Sim, mas vai ser preciso pelo menos uma geração para reparar os estragos que ele deixou. — Encolheu os ombros. — Quem sabe? Talvez as feridas da segunda intifada nunca venham a sarar.
— E por isso a matança vai continuar? Decerto não poderemos contemplar um futuro assim.
— É claro que podemos, Luigi. Sempre assim foi, por aqui. Deixaram o Bairro Judeu e dirigiram-se à Igreja do Santo Sepulcro.
Gabriel aguardou no adro enquanto Donati entrou, após ter rejeitado o guia turístico palestino que se lhe oferecera. Regressou dez minutos depois.
— Está escuro — comentou. — Muito sinceramente, é um pouco decepcionante.
— Receio que toda a gente diga o mesmo.
Deixaram o adro e percorreram a Via Dolorosa. Um grupo de peregrinos americanos, conduzidos por um monge de sotaina castanha com um balão de hélio na mão, aproximou-se deles, vindo da direção oposta. Donati observou o espetáculo com uma expressão divertida.
— Ainda acredita? — perguntou Gabriel de súbito. Donati demorou um instante a responder.
— Tal como já deve ter imaginado, a minha fé pessoal é uma questão bastante complexa. Mas acredito no poder da Igreja Católica enquanto força do bem, num mundo repleto de mal. E acredito neste papa.
— Quer dizer que é um homem sem fé, ao lado de um homem de grande fé. — Bem dito — asseverou Donati. — E quanto a si? Ainda acredita? Alguma vez acreditou? Gabriel deteve-se.
— Os Canaanitas, os Hititas, os Amalequitas, os Moabitas, todos eles desapareceram. Mas, por alguma razão, continuamos aqui. Será porque Deus estabeleceu uma aliança com Abraão há quatro mil anos? Quem sabe? — "Abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar" — citou Donati o capítulo vinte e dois do Gênesis.
— "Ela se apoderará das portas dos seus inimigos" — replicou Gabriel, concluindo a passagem. — E agora o meu inimigo quer essas portas de volta, e está disposto a fazer tudo, incluindo sacrificar o seu próprio filho, para as recuperar.
Donati sorriu com a interpretação engenhosa das Escrituras.
— Nós dois não somos muito diferentes. Ambos entregamos a nossa vida a poderes mais elevados. No meu caso, à Igreja. No caso do Gabriel, ao seu povo. — Fez uma pausa. — E à terra.
Percorreram mais um pouco da Via Dolorosa, até chegarem ao Bairro Muçulmano. Quando a rua ficou envolta em sombras, Gabriel subiu os óculos de sol para a testa. Vendedores palestinos olhavam-no com curiosidade a partir das bancas concorridas.
— Não há problema em estarmos aqui?
— Estamos seguros.
— Imagino que esteja armado.
Gabriel deixou que o silêncio fosse a sua resposta. O olhar de Donati manteve-se na calçada enquanto caminhavam e tinha a fronte morena franzida em concentração.
— Uma vez que sabe que Ali Massoudi está morto, poderemos imaginar que os camaradas dele também saibam?
— É claro.
— Também sabem que o computador continha aquelas fotografias? E que caíram nas suas mãos?
— É possível.
— Será que isso os poderá encorajar a acelerarem os planos?
— Ou poderá levá-los a adiar a operação, até que vocês e os italianos voltem a baixar a guarda.
Atravessaram o Porta de Damasco. Gabriel baixou os óculos quando entraram no mercado apinhado e cacofônico do outro lado das muralhas.
— Há uma coisa que devia saber acerca dessas fotografias — disse Donati. — Foram todas tiradas durante a audiência geral do Santo Padre, quando ele recebe peregrinos de todo o mundo na Praça de S. Pedro.
Gabriel parou de andar e olhou para a Cúpula da Pedra, dourada, que parecia flutuar acima das muralhas de pedra.
— A audiência geral tem lugar à quarta-feira, não é verdade?
— Exatamente.
Gabriel mirou Donati e disse:
— Hoje é terça-feira.
Donati olhou para o relógio.
— Pode dar-me boleia até o aeroporto? Se nos despacharmos, chegamos a Roma a horas de jantar.
— Nós?
— Paramos no seu apartamento a caminho da cidade, para que possa fazer a mala — disse Donati. — Em Roma tem estado a chover. Não se esqueça de levar uma capa.
Não era apenas uma capa que teria de levar, pensou Gabriel, enquanto guiava Donati pelo mercado cheio de gente. Ia também precisar de um passaporte falso.
4
CIDADE DO VATICANO
Era um gabinete um tanto ou quanto vulgar para um homem tão poderoso. O tapete oriental estava desbotado e puído e os cortinados eram pesados e baços. Quando Gabriel e Donati entraram, a pequena figura de branco sentada a uma secretária grande e austera fitava a tela de um televisor. Aí desenrolava-se uma cena de violência: chamas e fumo, sobreviventes cobertos de sangue que puxavam o cabelo e choravam os corpos esfacelados dos mortos. O papa Paulo VII, bispo de Roma, Pontifex Maximus, sucessor de S. Pedro, pressionou o botão Power do controle remoto e a tela ficou preta.
— Gabriel — disse. — É um prazer voltar a vê-lo.
O papa ergueu-se lentamente e ofereceu a mão pequena, não com o anel do pescador voltado para cima, como costumava fazer com a maior parte das pessoas, mas com a palma de lado. O aperto era ainda forte e os olhos que miravam Gabriel com cordialidade eram ainda vibrantes e límpidos. Gabriel esquecera-se de como Pietro Lucchesi era, na verdade, diminuto. Pensou na tarde em que Lucchesi surgira do conclave, uma figura delicada, a nadar na sotaina preparada à pressa, e mal visível acima da balaustrada da imponente galeria da Basílica. Um comentador da televisão italiana chamara-o de Pietro, o Improvável. O cardeal Marco Brindisi, o secretário de Estado reacionário que imaginara ser ele a sair do conclave vestido de branco, referira-se acidamente a Lucchesi como o "papa Acidental".
Para Gabriel, a imagem de Pietro Lucchesi que lhe vinha à mente primeiro seria sempre outra. Vê-lo de pé, na tribuna da Grande Sinagoga de Roma, dizendo palavras que nenhum papa alguma vez proferira. Destes pecados, e de outros que em breve serão revelados, apresentamos a nossa confissão, e imploramos o seu perdão. Não há palavras que descrevam o tamanho do nosso pesar. Na hora da sua maior necessidade, quando as forças da Alemanha nai os arrancaram das suas casas, nas mas à volta desta sinagoga, implorastes a nossa ajuda, mas as suas súplicas foram recebidas pelo silêncio. Por isso, ao implorar o seu perdão, fá-lo-ei da mesma forma. em silêncio...
O papa retomou o seu lugar e olhou para a tela, como se as imagens do massacre longínquo ainda lá estivessem para serem vistas.
— Avisei-o de que não o fizesse, mas não me deu ouvidos. Agora pretende vir à Europa recuperar a credibilidade junto dos seus antigos aliados. Desejo-lhe felicidades, mas acredito que as suas hipóteses sejam escassas.
Gabriel olhou para Donati em busca de uma explicação.
— A Casa Branca informou-nos ontem à noite que o presidente virá a Roma no início do próximo ano, para uma digressão pelas capitais europeias. Os homens do presidente esperam conseguir projetar uma imagem mais calorosa e menos conflituosa e reparar alguns dos estragos acarretados pela decisão de entrar em guerra com o Iraque.
— Uma guerra à qual me opus com veemência — lembrou o papa.
— Ele vem ao Vaticano? — perguntou Gabriel.
— Vem a Roma... pelo menos isso sabemos. A Casa Branca ainda não nos disse se o presidente gostaria de ter uma audiência com o Santo Padre. Esperamos que em breve nos chegue um pedido.
— Seria impensável que ele viesse a Roma sem passar pelo Vaticano — garantiu o papa. — Os católicos conservadores são parte importante do eleitorado. Vai querer a oportunidade de tirar uma foto e receber algumas palavras agradáveis de minha parte. Vai ter sua foto. Quanto às palavras agradáveis... — A voz do papa esmoreceu. — Receio que tenha de procurá-las noutro lado.
Donati convidou Gabriel a sentar-se e depois acomodou-se na cadeira ao lado. — O presidente é um homem que gosta de conversas francas, como os nossos amigos americanos gostam de dizer. Vai ouvir o que Sua Santidade tem a dizer.
— Devia ter-me ouvido logo ao início. Quando esteve no Vaticano, antes da guerra, deixei bem claro que acreditava que ele estava a embarcar numa viagem desastrosa. Disse-lhe que a guerra não se justificava, certo havia uma verdadeira ameaça iminente à América e aos seus aliados. Disse-lhe que ainda não esgotara todas as vias para evitar o conflito e que as Nações Unidas, e não os Estados Unidos, eram a autoridade competente para lidar com o problema. Mas guardei boa parte do meu ardor para o argumento final contra a guerra. Disse ao presidente que a América venceria uma batalha campal rápida. "Vocês são fortes", disse-lhe eu, "e o seu inimigo é fraco". Mas também previ que depois da guerra a América iria ver-se a braços com anos de insurreição violenta. Avisei-o que ao tentar resolver uma crise com violência, estaria apenas a criar outra ainda mais perigosa. Que a guerra seria vista pelo mundo islâmico como uma nova Cruzada dos cristãos brancos. Que o terrorismo não podia ser derrotado por mais terrorismo, mas apenas através de justiça econômica e social.
Tendo concluído a sua homilia, o papa olhou para a pequena assistência, à espera de uma reação. Os olhos deslocaram-se várias vezes, antes de repousarem em Gabriel.
— Algo me diz que pretende discordar de algo que eu tenha dito.
— Sua Santidade é um homem muito eloquente.
— Está entre amigos, Gabriel. Diga o que lhe vai na alma.
— As forças islâmicas radicais declararam-nos guerra... contra a América, contra o Ocidente, contra o Cristianismo, contra Israel. Segundo a lei de Deus, e as leis dos homens, temos o direito, até mesmo o dever moral, de resistir. — Resistam aos terroristas com justiça e oportunidades e não com violência e derrame de sangue. Quando os políticos recorrem à violência, quem sofre é a humanidade.
— Parece acreditar que o problema do terrorismo e do Islamismo radical poderia ser eliminado se eles fossem mais parecidos conosco. Que se a pobreza, o analfabetismo e a tirania não fossem tão comuns no mundo islâmico, não haveria jovens dispostos a sacrificar a vida para mutilar e matar os outros. Mas eles viram o nosso modo de vida e não querem ter nada que ver com ele. Viram a nossa democracia e rejeitaram-na. Veem a democracia como uma religião que vai contra os pilares do Islamismo, e por isso vão resistir-lhe com uma fúria sagrada. Como poderemos levar a justiça e a prosperidade a estes homens muçulmanos que só acreditam na morte?
— Decerto não poderão ser impostas com o cano da arma do homem branco. — Concordo, Sua Santidade. Só quando o Islamismo se reformar poderá existir justiça social e uma verdadeira prosperidade no mundo árabe. Mas entretanto não podemos ficar sentados sem fazer nada, enquanto os radicais muçulmanos tramam a nossa destruição. Também isso, Sua Santidade, é imoral. O papa levantou-se da secretária e abriu a grande janela em frente à Praça de S. Pedro. A noite caíra. Roma agitava-se a seus pés.
— Eu tinha razão quanto à guerra, Gabriel, e estou certo quanto ao futuro que nos aguarda a todos, Muçulmanos, Cristãos e Judeus, caso não escolhamos outro caminho. Mas quem irá escutar as minhas palavras? Não passo de um velho de sotaina que vive numa gaiola dourada. Nem mesmo os meus paroquianos me ouvem. Na Europa vivemos como se Deus não existisse. O Antiamericanismo é a nossa única religião. — Virou-se e olhou para Gabriel. — E o Antissemitismo.
Gabriel estava em silêncio. O papa comentou:
— O Luigi contou que descobriu provas de uma trama contra a minha vida. Mais uma trama — acrescentou, com um sorriso triste.
— Receio que assim seja, Sua Santidade.
— Não é irônico? Fui o único a tentar evitar a guerra no Iraque. Fui o único a tentar construir uma ponte entre os cristãos e os muçulmanos. Contudo, é a mim que querem matar. — O papa olhou pela janela. — Talvez estivesse errado. Talvez, afinal de contas, não queiram uma ponte.
Em geral, o papa Paulo VII e o monsenhor Donati jantavam sozinhos nos aposentos privados pontífices, com a companhia de um ou dois convidados. Donati fazia por manter um ambiente propositadamente leve e descontraído, e as conversas profissionais costumavam limitar-se aos mexericos curiais que o papa adorava em segredo.
Nesse serão, contudo, a atmosfera na sala de jantar papal era diferente. A lista 43 de convidados rapidamente elaborada consistia não de velhos amigos, mas de homens responsáveis pela proteção da vida do pontífice: o coronel Karl Brunner, comandante da Guarda Suíça Pontifical, o general Cario Marchese, dos Carabinieri, e Martino Bellano, diretor-adjunto do serviço de segurança italiano. Gabriel fez passar as fotografias e deixou-os a par de tudo no seu italiano marcado pelo sotaque veneziano. A apresentação foi menos detalhada do que a que fizera a Donati nessa manhã, em Jerusalém, e o nome de Ali Massoudi não foi mencionado. Mesmo assim, o tom das suas palavras não dava margem para dúvidas de que os serviços de espionagem israelenses consideravam a ameaça credível e de que era necessário tomar medidas para garantir a salvaguarda do pontífice e do território da Santa Sé. Quando acabou de falar, as expressões dos homens encarregues da segurança estavam sombrias, mas não havia uma sensação visível de pânico. Tinham passado por situações semelhantes inúmeras vezes, e juntos tinham preparado certos procedimentos automáticos para aumentar a segurança em redor do Vaticano e do Santo Padre, sempre que tal parecesse necessário. Gabriel ouviu os três homens reverem os procedimentos.
Durante uma pausa na conversa, pigarreou cuidadosamente.
— Deseja fazer alguma sugestão? — perguntou Donati.
— Talvez fosse aconselhável mudar a cerimônia de amanhã para o interior. Para a Câmara de Audiências papal.
— Amanhã o Santo Padre vai anunciar a beatificação de uma freira portuguesa — explicou Donati. — Esperamos vários milhares de peregrinos portugueses, a par da multidão habitual. Se mudarmos a audiência para a câmara, muitas dessas pessoas serão obrigadas a perdê-la.
— É melhor afastar alguns peregrinos do que expor o Santo Padre sem necessidade.
O papa olhou para Gabriel.
— Tem provas concretas de que os terroristas pretendem atacar amanha? — Não, Sua Santidade. É muito difícil obter informações operacionais desta natureza.
— Se mudarmos a audiência para a câmara e rejeitarmos boas pessoas, será que os terroristas não terão saído vencedores?
— Por vezes é melhor conceder uma pequena vitória ao adversário do que sofrer uma derrota devastadora.
— O seu povo é famoso por viver uma vida normal, mesmo sob a ameaça do terrorismo.
— Não deixamos de tomar medidas sensatas — contrapôs Gabriel. — Por exemplo, não se pode entrar na maioria dos locais públicos sem que se seja revistado. — Pois revistem os peregrinos e tomem outras medidas sensatas — retorquiu o papa —, mas amanhã à tarde vou estar na Praça de S. Pedro, onde é o meu lugar. E o seu trabalho é garantir que não acontece nada.
Pouco passava das dez horas quando Donati acompanhou Gabriel pela escadaria que ia do Palácio Apostólico à Via Belvedere. Caía uma névoa leve. Gabriel fechou o blusão e colocou o saco com a roupa ao ombro. Em mangas de camisa, Donati parecia ignorar o tempo. Manteve os olhos no pavimento quando passaram pela estação central dos correios do Vaticano, em direção à Porta de Santa Ana.
— Com certeza que não quer boleia?
— Até esta manhã, pensei que nunca mais pudesse voltar aqui. Vou aproveitar a oportunidade para andar um pouco.
— Se a Polícia italiana o prender antes de chegar ao seu apartamento, diga-lhes para me telefonarem. Sua Santidade vai atestar o seu bom caráter. — Caminharam em silêncio durante alguns instantes.
— Por que não regressa de vez?
— A Itália? Receio que Shamron tenha outros planos para a minha pessoa.
— Sentimos a sua falta — confessou Donati. — E Tiepolo também.
Francesco Tiepolo, amigo do papa e de Donati, era dono da melhor firma de restauração da região do Veneto. Gabriel restaurara-lhe dois dos melhores retábulos de Bellini. Quase dois, pensou. Tiepolo tivera de terminar o retábulo de San Giovanni Crisóstomo de Bellini, depois da fuga de Gabriel de Veneza. — Algo me diz que Tiepolo vai sobreviver sem mim.
— E Chiara?
Com seu silêncio taciturno, Gabriel deixou bem claro que não pretendia discutir o estado lastimoso da sua vida amorosa com o secretário particular do papa. Donati mudou habilmente de assunto.
— Lamento que o Santo Padre o tenha feito sentir-se posto em causa. Receio que ele tenha perdido muita da sua antiga paciência. Acontece-lhes a todos, depois de alguns anos de papado. Quando se é visto como o Vigário de Cristo, é difícil não se ganhar uma certa arrogância.
— Continua a ser a mesma alma gentil que conheci há três anos, Luigi. Apenas um pouco mais velho.
— Já não era jovem quando foi eleito para o cargo. Os cardeais queriam um papa de transição, alguém que mantivesse o trono de S. Pedro quente, enquanto os reformistas e os reacionários esclareciam suas diferenças. Como bem sabe, o meu mestre nunca teve intenção de ser uma mera figura de transição. Tem muito trabalho a fazer antes de morrer... coisas que talvez não agradem aos reacionários. É óbvio que não quero o seu mandato abreviado.
— Eu também não.
— Razão pela qual é o homem ideal para estar ao seu lado amanhã, durante a audiência geral.
— A Guarda Suíça e os ajudantes Carabinieri são bem capazes de tomar conta do seu mestre.
— São muito bons, mas nunca viveram um atentado terrorista a sério. — Pouca gente viveu — corroborou Gabriel. — E normalmente não sobrevivem para contar como foi.
Donati olhou para o companheiro.
— Gabriel sobreviveu — lembrou. — Esteve junto dos terroristas. E viu a expressão nos olhos de um homem antes de carregar no botão do detonador. Detiveram-se a poucos metros da Porta de Santa Ana. À esquerda ficava a Igreja de Santa Ana, redonda e da cor da manteiga, a igreja da paróquia da Cidade do Vaticano. À direita, a entrada para o aquartelamento da Guarda Suíça. Um dos guardas estava de sentinela ao portão, com a sua simples farda azul. — Que quer que eu faça, Luigi?
— Isso fica nas suas mãos capazes. Seja incômodo. Se vir um problema, faça por resolvê-lo. — com que autoridade?
— A minha — respondeu Donati, resoluto. Tirou do bolso da sotaina um cartão plastificado, o qual entregou a Gabriel. Era um cartão de identificação do Vaticano, com a marca do Escritório de Segurança. — Vai permitir-lhe o acesso a qualquer lado do Vaticano... excepto aos Arquivos Secretos, é claro. Receio não poder deixá-lo andar por aí.
— Já andei — recordou Gabriel, ao que enfiou o cartão no bolso e avançou para a rua. Donati esperou junto à Porta de Santa Ana até que Gabriel tivesse desaparecido na escuridão. Depois virou-se e regressou ao palácio. Embora só mais tarde se tivesse apercebido, murmurou uma ave-maria.
Gabriel atravessou a Ponte Umberto sobre o Tibre. Na margem oposta, virou à esquerda e dirigiu-se à Piazza di Spagna. A praça estava deserta e os Degraus Espanhóis brilhavam à luz dos postes, como madeira polida. Uma garota estava sentada no vigésimo oitavo degrau. Tinha o cabelo semelhante ao de Chiara e, por um instante, Gabriel pensou que pudesse mesmo ser ela. Ao subir mais um pouco, viu que se tratava apenas de Nurit, um correio carrancudo da Estação de Roma. A jovem entregou-lhe uma chave para o apartamento de segurança e, em hebraico, disse-lhe que atrás das latas de sopa na despensa encontraria uma Beretta pronta e um carregador adicional.
Subiu o resto dos degraus até a Igreja da Trinità dei Monti. A casa ficava a menos de cinquenta metros da igreja, na Via Gregoriana. Tinha dois quartos e uma pequena varanda. Gabriel foi buscar a Beretta à despensa e depois entrou no quarto maior. O telefone, como era hábito nesse tipo de casa, não tinha campainha, apenas uma luz vermelha que indicava quando estava a receber uma chamada. Deitado na cama com as roupas que vestira para se encontrar com o primeiro-ministro, Gabriel pegou no fone e marcou um número de Veneza. Foi uma voz de mulher que atendeu.
— O que foi? — perguntou a voz, em italiano. Não tendo uma resposta, resmungou uma praga e bateu com o telefone, com força suficiente para obrigar Gabriel a desviar o fone do ouvido, antes de voltar a pousá-lo gentilmente. Tirou a roupa e deitou a cabeça na almofada, mas, quando estava a adormecer, o quarto foi subitamente iluminado por um relâmpago. Começou a contar instintivamente para calcular a distância a que se encontrava a trovoada. Viu um rapazinho magro, de cabelo preto e olhos verdes como esmeraldas, a correr atrás dos relâmpagos nas colinas de Nazaré. O trovão explodiu antes de Gabriel contar até quatro. O prédio estremeceu.
Sucederam-se mais estrondos numa sucessão rápida e a chuva martelou a janela do quarto. Gabriel tentou adormecer, mas não foi capaz. Acendeu o abajur da mesa de cabeceira, abriu o dossiê que continha as fotografias retiradas do computador de Ali Massoudi, e observou-as lentamente uma a uma, decorando cada imagem. Uma hora depois, apagou a luz e reviu mais uma vez as imagens na sua mente. Um relâmpago faiscou por cima dos campanários da igreja. Gabriel fechou os olhos e contou.
5
CIDADE DO VATICANO
A chuva parara com a alvorada. Gabriel deixou cedo o apartamento e regressou ao Vaticano pelas ruas vazias. Ao atravessar o rio, a luz rosada banhava o pinheiro-manso no alto do Monte Janiculum, mas a Praça de S. Pedro estava mergulhada nas sombras e as lâmpadas dos postes ainda estavam acesas na Colunata. Um café estava aberto a pouca distância da Sala de Imprensa do Vaticano. Gabriel bebeu duas xícaras de cappuccino na esplanada e leu os matutinos. Nenhum dos principais diários romanos parecia saber que o secretário privado do papa visitara Jerusalém no dia anterior. Também não se sabia que na véspera a segurança italiana e a do Vaticano se tinham reunido na sala de jantar papal, onde se discutira uma ameaça terrorista à vida do Santo Padre.
Às oito horas, os preparativos para a audiência geral na Praça de S. Pedro estavam em marcha. Equipas de trabalho do Vaticano montavam cadeiras desdobráveis e barreiras metálicas temporárias na praça em frente à Basílica, e pessoal da segurança dispunha magnetômetros ao longo da Colunata. Gabriel saiu do café e foi até a barricada de aço que separava o território da Santa Sé do solo italiano. Agiu propositadamente de uma forma tensa e agitada, olhou várias vezes para o relógio e prestou uma atenção especial às operações dos magnetômetros. Em resumo, exibiu todos os comportamentos para os quais os Carabinieri e a Vigilanza, a força policial do Vaticano, deveriam estar alerta. Foram precisos dez minutos para que um carabiniere fardado se acercasse e lhe pedisse a identificação. Com um italiano perfeito, Gabriel informou o agente de que estava ligado ao Escritório de Segurança do Vaticano.
— As minhas desculpas — disse o carabiniere, e afastou-se.
— Espere — chamou Gabriel. O carabiniere deteve-se e virou-se.
— Não vai pedir-me a identificação? — O agente estendeu a mão. Lançou um olhar enfadado ao cartão e devolveu-o. — Não confie em ninguém — alertou Gabriel. — Peça sempre a identificação e, se desconfiar de alguma coisa, chame o seu superior.
Gabriel dirigiu-se à Porta de Santa Ana, onde um grupo de freiras de hábitos cinzentos recebia autorização para passar, dizendo simplesmente "Annona", o nome do supermercado do Vaticano. Experimentou a mesma táctica e, como as freiras, foi-lhe concedida a entrada no território do Vaticano. Logo a seguir ao posto de controle, exibiu a identificação do Vaticano e admoestou o guarda suíço com o seu alemão berlinense que aprendera com a mãe. Em seguida, voltou à rua. Momentos depois, surgiu um padre idoso, de cabelo muito branco, que informou o guarda suíço de que ia à farmácia do Vaticano. O guarda deteve o sacerdote ao portão, até que pudesse apresentar a identificação que retirou do bolso da sotaina.
Gabriel decidiu confirmar a segurança na outra entrada principal do Vaticano, o Arco dos Sinos. Aí chegou cinco minutos depois, a tempo de ver um cardeal da Cúria e os seus dois assistentes a passarem pelo arco, sem que o guarda suíço em sentido na sua guarita lhes prestasse a menor atenção. Gabriel exibiu seu cartão à frente dos olhos do guarda.
— Por que não pediu a identificação àquele cardeal?
— O chapéu cardinalício e a cruz peitoral são as suas identificações.
— Hoje, não — avisou Gabriel. — Confirme a identidade de todos.
Deu meia volta e percorreu o exterior da Colunata, a pensar nas cenas a que assistira. Pesasse embora a sua vastidão, a Praça de S. Pedro era, em grande medida, segura. Mas, a haver uma brecha na armadura do Vaticano, seria no número relativamente grande de pessoas com liberdade de movimentos atrás da praça. Pensou nas fotografias encontradas no computador de Ali Massoudi e interrogou-se se os terroristas teriam descoberto a mesma coisa.
Atravessou a praça até as Portas de Bronze. Não havia palavras mágicas para se atravessar aquela que era, basicamente, a entrada principal do Palácio Apostólico. O cartão de Gabriel foi examinado no exterior por um guarda suíço fardado e uma segunda vez no hall, por um guarda à paisana. A autorização do Escritório de Segurança permitia que entrasse no Palácio sem que assinasse a folha de entrada, mas foi-lhe exigido que deixasse a arma, o que fez com uma certa relutância.
Os degraus de mármore da Scala Regia erguiam-se à sua frente, cintilantes com o brilho dos enormes postes de ferro. Gabriel subiu até o Cortile di San Damaso e cruzou o pátio até o outro lado, de onde um elevador o levou até o segundo andar. Fez uma breve pausa na galeria para apreciar o fresco de Rafael e depois atravessou o vasto corredor até os aposentos papais. Donati, de sotaina com uma faixa escarlate, estava sentado à secretária no seu pequeno gabinete adjacente ao do papa. Gabriel entrou e fechou a porta.
— Quantas pessoas trabalham dentro do Vaticano? — disse Donati, repetindo a pergunta de Gabriel. — Cerca de metade.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Perdoe-me — lamentou Donati. — É uma velha piada do Vaticano. A resposta é cerca de mil e duzentas. O número inclui os padres e os prelados que trabalham na Secretaria de Estado e nas várias congregações e conselhos, bem como os respetivos funcionários laicos. Depois temos ainda os empregados laicos que fazem com que o Vaticano funcione: os guias turísticos, os jardineiros e todas as pessoas que tratam da manutenção, os funcionários de estabelecimentos como a estação dos correios, a farmácia e o supermercado. E ainda a equipe de segurança, é claro.
Gabriel exibiu o cartão de identificação do Vaticano. — E todos têm um cartão destes?
— Nem todos podem entrar no Palácio Apostólico, mas possuem credenciais que lhes dão acesso a outras seções do Vaticano que não as que estão abertas ao público.
— Refere-se à praça e à Basílica? — Exatamente.
— Qual o tipo de verificação de antecedentes que lhes é feita?
— Imagino que não se esteja a referir aos cardeais, aos bispos, aos monsenhores e aos sacerdotes.
— Deixemo-los à margem. — Gabriel franziu o sobrolho, ao que acrescentou: — Por agora.
— Os empregos no Vaticano são extremamente cobiçados. Os salários não são muito altos, mas todos os nossos funcionários têm benefícios nas compras na farmácia e no supermercado. Os preços são subsidiados e muito mais baixos do que no mercado italiano. O mesmo se passa com os preços na nossa bomba de combustível. Para além disso, os horários são razoáveis, as férias longas e as regalias são bastante boas.
— E fazem a confirmação dos antecedentes das pessoas que ficam com esses empregos?
Os postos são tão cobiçados, e são tão poucos, que vão quase sempre para alguém com ligações familiares, por isso a verificação de antecedentes é bastante superficial.
— Receava que assim fosse — admitiu Gabriel. — E quanto às pessoas como eu? Indivíduos com credenciais temporárias?
— Está a perguntar-me quantas são? — Donati encolheu os ombros. — Diria que há sempre várias centenas de pessoas com acesso temporário ao Vaticano.
— Como funciona o sistema?
— Geralmente estão ligadas a um dos vários conselhos ou comissões pontífices, como pessoal de apoio ou consultores profissionais. Os chefes de gabinete, ou um sub-secretário, garantem o caráter do indivíduo, e o Escritório de Segurança do Vaticano emite os cartões.
— O Escritório de Segurança guarda toda a papelada?
— É claro.
Gabriel levantou o fone do telefone e estendeu-o a Donati.
Passaram-se vinte minutos até que o telefone de Donati voltasse a tocar. Escutou em silêncio, depois desligou e olhou para Gabriel, que estava de pé à janela em frente à praça, a observar a multidão que nela entrava.
— Começam a selecionar a papelada.
— Começam?
— Foi preciso obter autorização do chefe, que estava numa reunião. Estará pronta daqui a um quarto de hora.
Gabriel viu a hora. Quase dez e meia.
— Mude a cerimônia para o interior — avisou.
— O Santo Padre nem quer ouvir falar nisso. — Donati juntou-se a Gabriel à janela. — Além do mais, é demasiado tarde. Os convidados já começaram a chegar. Instalaram-no numa cela minúscula, com uma janela encardida com vista para o Pado do Belvedere, e destacaram um carabiniere de ar ameninado chamado Luca Angelli para lhe trazer os arquivos. Restringiu a busca apenas a laicos. Nem mesmo Gabriel, um homem desconfiado por natureza, seria capaz de imaginar um cenário em que um padre católico fosse atraído, voluntária ou involuntariamente, para a causa da Al-Qaeda. Eliminou também da sua lista os membros da Guarda Suíça e da Vigilanza. Esta era composta quase na totalidade por antigos oficiais dos Carabinieri e da Polizia di Stato. Quando à Guarda Suíça, os seus elementos eram recrutados exclusivamente entre famílias católicas da Suíça, e provinham, na sua grande maioria, dos cantões franceses e alemães do centro montanhoso do país, longe de ser um baluarte de extremismo islâmico.
Começou com os funcionários laicos da cidade-estado do Vaticano. Para restringir os parâmetros da pesquisa, viu apenas os arquivos dos indivíduos contratados nos últimos cinco anos. Só isso levou-lhe quase trinta minutos. Quando acabou, tinha separado meia dúzia de arquivos para uma verificação mais aprofundada (um empregado de balcão da farmácia do Vaticano, um jardineiro, dois repositores do Annona, um porteiro do museu do Vaticano e uma mulher que trabalhava numa das lojas de recordações do Vaticano) e devolveu o resto a Angelli.
Os arquivos seguintes referiam-se aos funcionários laicos ligados às várias congregações da Cúria romana. As congregações eram o equivalente aproximado dos ministérios governamentais e tratavam de áreas centrais da administração eclesiástica, tais como a doutrina, a fé, o clero, os santos e a educação católica. Cada congregação era liderada por um cardeal, o qual tinha vários bispos e monsenhores abaixo de si. Gabriel viu os dossiês dos funcionários de cada uma das nove congregações e, não encontrando nada de interesse, devolveu-os a Angelli.
— O que falta?
As comissões e os conselhos pontífices — respondeu Angelli.
— E os outros gabinetes. — Outros gabinetes?
— A Administração do Patrimônio da Santa Sé, a Prefeitura dos Assuntos
Econômicos da Santa Sé...
— Estou a ver — atalhou Gabriel. — Quantos são?
Angelli abriu as mãos para indicar que a pilha tinha mais de trinta centímetros de altura. Gabriel viu a hora: 11h20...
— Traga-os.
Angelli começou pelas comissões pontífices. Gabriel separou mais dois arquivos para uma análise posterior, um consultor da Comissão para a Arqueologia Sagrada, e um estudioso argentino ligado à comissão pontífice para a América Latina. Devolveu o resto a Angelli e olhou para o relógio: 11h45... Prometera a Donati que ficaria de guarda ao papa na praça, durante a audiência geral, ao meio-dia. Já só tinha tempo para mais alguns arquivos. — Ignore os departamentos financeiros — disse Gabriel. Traga-me os arquivos dos conselhos pontífices.
Angelli regressou instantes depois com uma pilha de quinze centímetros de dossiês. Gabriel examinou-os pela ordem que Angelli os entregava. Conselho Papal do Laicado... Conselho Papal de Promoção da Unidade Cristã... Conselho Papal da Família... Conselho Papal de Justiça e Paz... Conselho Papal de Apoio a Migrantes e Povos Itinerantes... Conselho Papal de Textos Legislativos... Conselho Papal do Diálogo Inter-Refígioso...
Gabriel levantou a mão. Tinha encontrado o que procurava.
Leu durante um momento e depois ergueu abruptamente o olhar.
— Isto quer dizer que ele tem acesso ao Vaticano?
Angelli dobrou o corpo magro pela cintura e espiou sobre o ombro de Gabriel.
— O professor Ibrahim el-Banna? Está aqui há mais de um ano.
— Fazendo o quê?
— É membro de uma comissão especial que procura formas de melhorar as relações entre os mundos cristão e muçulmano. São doze membros ao todo, uma equipe ecumênica de seis estudiosos cristãos e de seis estudiosos muçulmanos que representam as várias seitas islâmicas e as escolas do direito islâmico. Ibrahim el-Banna é professor de jurisprudência islâmica na Universidade Al-Azhar, no Cairo. É um dos mais respeitados professores do mundo, da escola Hanafi de direito islâmico. A Hanafi é muito importante entre os...
— Muçulmanos sunitas — atalhou Gabriel, concluindo a frase de Angelli. — Vocês não sabem que Al-Azhar é um foco de militância islâmica? Está cheia de elementos da Al-Qaeda e da Irmandade Islâmica.
— É também uma das mais antigas e prestigiadas escolas de teologia e de direito islâmicos do mundo. O professor El-Banna foi escolhido para este lugar devido à sua posição moderada. Já se encontrou por várias vezes com o Santo Padre.
Em duas ocasiões estiveram sozinhos.
— Onde se reúne a comissão?
— O professor El-Banna tem um gabinete num edifício junto à Piazza Santa Marta, perto do Arco dos Sinos.
Gabriel olhou para o relógio: 11h55... Não tinha hipótese de falar com Donati, que naquele momento estaria com o papa, preparando-se para entrar na praça. Recordou as ordens que recebera na noite anterior, na Via Belvedere. Seja incômodo. Se vir um problema, faça por resolvê-lo. Levantou-se e olhou para Angelli.
— Gostaria de trocar umas palavras com o imã. Angelli hesitou. A iniciativa é muito importante para o Santo Padre. Se fizer uma acusação sem justa causa contra o professor El-Banna, ele vai sentir-se muito ofendido e o trabalho da comissão ficará em perigo.
— É melhor um imã furioso do que um papa morto. Qual é o caminho mais rápido para a Piazza Santa Marta?
— Utilizaremos o atalho — disse Angelli. — Através da Basílica. Atravessaram a passagem entre a Scala Regia e a Capela do Sagrado Sacramento, e depois cruzaram na diagonal a vasta nave. Por baixo do Monumento a Alexandre VII ficava uma porta que dava para a Piazza Santa Marta. Quando saíram para o sol intenso, fez-se ouvir um estrondo de aplausos vindo da Praça de S. Pedro. O papa chegara para a Audiência Geral. Angelli conduziu Gabriel através da pequena praça até um edifício de escritórios barroco de aspeto sombrio. No hall, uma freira estava sentada, imóvel, à mesa da recepção. Quando Gabriel e Angelli irromperam no edifício, fitou-os com um ar de desaprovação. — Ibrahim el-Banna — disse Angelli, sem mais explicações. A freira pestanejou rapidamente um par de vezes.
— Quarto quatro-doze.
Subiram a escada, com Angelli à frente e Gabriel logo atrás dele. Quando se ouviu mais uma onda de aplausos vinda da praça, Gabriel empurrou Angelli e o agente de segurança do Vaticano começou a subir os degraus dois de cada vez. Chegados ao Quarto 412, encontraram a porta fechada. Gabriel fez menção de agarrar na maçaneta, mas Angelli deteve-lhe a mão e bateu com firmeza, mas decoro.
— Professor El-Banna? Professor El-Banna? Está aí?
Tendo apenas o silêncio como resposta, Gabriel afastou Angelli e examinou a fechadura antiga. Com a esguia gazua de metal que tinha na carteira, seria capaz de abri-la numa questão de segundos, mas o novo clamor vindo da praça recordou-o de que não havia tempo. Agarrou a maçaneta com as duas mãos e lançou o ombro contra a porta, que resistiu. Atirou o corpo uma segunda vez de encontro à porta, e uma terceira. À quarta tentativa, Angelli juntou-se a ele. A ombreira fragmentou-se e os dois homens quase caíram para o interior do quarto.
A divisão estava vazia. Não apenas vazia, pensou Gabriel. Abandonada. Não havia livros, nem dossiês, não se viam canetas, nem papéis soltos. Apenas um envelope simples, deixado precisamente ao centro da secretária. Angelli levou a mão ao interruptor, mas Gabriel bradou-lhe para que não lhe tocasse, após o que voltou a empurrar o italiano para o corredor. Retirou do bolso do blusão uma caneta que utilizou como instrumento para examinar a densidade do conteúdo do sobrescrito. Ao ficar convencido de que apenas continha papel, agarrou-o e abriu-o com cuidado. Lá dentro estava uma única folha, dobrada em três, e que tinha escrito em árabe:
Declaramos guerra aos Cruzados, com a destruição do seu templo infiel ao politeísmo e com a morte do seu Supremo Pontífice, esse homem de branco que tratam como se fosse um deus. É esse o seu castigo pelos pecados do Iraque, por Abu Ghraib e pela Baía de Guantánamo. Os ataques continuarão até que o Iraque se liberte do jugo americano e a Palestina tenha sido arrancada das garras dos Judeus. Somos a Irmandade de Alá. Alá é o Deus único e todos o louvam. Gabriel correu escadas abaixo, com Angelli atrás de si.
6
CIDADE DO VATICANO
In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.
A voz do papa, amplificada pelo sistema de som do Vaticano, ressoou através da Praça de S. Pedro e pela Via delia Conciliazione. Vinte mil vozes replicaram: Amém.
Gabriel e Luca Angelli correram pela Piazza Santa Marta e depois ao longo da parede exterior da Basílica. Antes de chegarem ao Arco dos Sinos, Angelli virou à direita e entrou no Escritório de Autorizações, o principal controle de segurança para a maior parte dos visitantes do Vaticano. Se Ibrahim el-Banna tivesse introduzido mais alguém no Vaticano, a documentação estaria aí. Gabriel prosseguiu para o Arco dos Sinos. O guarda suíço de serviço baixou a alabarda num gesto defensivo, alarmado por ver um homem a correr na sua direção. Voltou a erguê-la quando Gabriel acenou com o cartão de identificação do Escritório de Segurança.
— Dê-me a sua arma — ordenou Gabriel.
— Desculpe?
— Dê-me a sua arma! — bradou Gabriel em alemão.
O guarda levou a mão ao interior da túnica renascentista multicolorida e retirou uma SIG-Sauer 9 mm bastante moderna. Nesse momento, Luca Angelli cruzou a arcada.
— Às onze e meia El-Banna trouxe uma delegação de três padres alemães para o Vaticano.
— Não são padres, Luca. São shaheeds. Mártires. — Gabriel olhou para a multidão reunida na praça. — E duvido que continuem no Vaticano. Devem estar ali, armados com explosivos e sabe Deus o que mais.
— Por que entraram no Vaticano pelo Arco dos Sinos?
— Para irem buscar as bombas, é claro. — Era a brecha na armadura do Vaticano. Os terroristas tinham-na descoberto graças à vigilância contínua e tinham utilizado a iniciativa de paz do Santo Padre para a explorar. — El-Banna deve ter levado as bombas para sua sala ao longo do tempo. Os shaheeds foram buscá-las quando receberam permissão de entrada no Gabinete de Autorizações e depois foram até a praça por um qualquer percurso sem detectores de metal.
— A Basílica — sugeriu Angelli. — Podem ter entrado na Basílica por uma porta lateral e saído pela frente. Podemos ter-nos cruzado com eles sem dar por nada. Gabriel e Angelli saltaram a vedação de madeira que separava a zona de entrada do Arco dos Sinos do resto da praça e subiram ao palco. O movimento súbito criou um burburinho pela assistência. Donati estava de pé atrás do papa. Gabriel foi até ele rapidamente e entregou-lhe a mensagem que encontrara no gabinete de El-Banna.
— Estão aqui.
Donati baixou o olhar, viu a escrita árabe e voltou a encarar Gabriel. — Encontramos na sala de El-Banna. Diz que vão destruir a Basílica. Diz que vão matar o Santo Padre. Temos de o tirar do palco. Já, Luigi.
Donati olhou para a multidão na praça: peregrinos católicos e dignitários de todo o mundo, crianças de branco, grupos de doentes e de idosos à espera de receber a bênção do pontífice. O papa estava sentado num trono cerimonial escarlate. Segundo a tradição herdada do seu antecessor, recebia os peregrinos nas suas línguas nativas, passando rapidamente de uma para a outra.
— E os peregrinos? — indagou Donati. — Como vamos protegê-los?
— Talvez seja demasiado tarde. Pelo menos para alguns. Se tentarmos avisá-los, vai instalar-se o pânico. Retire o Santo Padre da praça o mais depressa e discretamente possível. Depois começamos a evacuar a praça.
O coronel Brunner, comandante da Guarda Suíça, subiu também ao palco. Tal como os restantes elementos do destacamento de segurança pessoal do papa, vestia um fato completo escuro e usava um auricular. Quando Donati explicou a situação, o rosto de Brunner ficou pálido.
— Vamos levá-lo pela Basílica.
— E se tiverem escondido lá bombas? — interrogou Gabriel. Brunner abriu a boca para responder, mas as suas palavras foram abafadas por uma onda de choque escaldante. O som chegou um milésimo de segundo depois, um trovão ensurdecedor tornado ainda mais intenso pela vasta câmara de ressonância da Praça de S. Pedro. Gabriel foi impelido do palco, como um pedaço de papel levado por um temporal. O seu corpo voou e deu pelo menos uma volta no ar. Depois embateu nos degraus da Basílica e desmaiou.
Quando abriu os olhos, viu os Apóstolos de Cristo a olhá-lo do seu pouso no cimo da fachada. Não sabia quanto tempo estivera inconsciente. Alguns segundos, talvez, mas não mais do que isso. Com os ouvidos a retinir, sentou-se e olhou em volta. À sua direita estavam os prelados da Cúria que acompanhavam o papa no palco. Pareciam em choque e desalinhados, mas ilesos. À sua esquerda viu Donati, com Karl Brunner a seu lado. O comandante tinha os olhos fechados e sangrava com abundância de um ferimento na cabeça.
Gabriel levantou-se e olhou em seu redor.
Onde estava o papa?
Ibrahim el-Banna levara três padres para o Vaticano.
Gabriel imaginou que ainda fossem ocorrer mais duas explosões.
Encontrou a SIG-Sauer que pedira ao Guarda Suíço e gritou aos prelados que se baixassem. Depois, quando voltou a subir ao palco em busca de Lucchesi, a segunda bomba explodiu.
Outra onda de calor e vento escaldantes.
Mais um trovão.
Gabriel foi lançado para trás. Desta vez aterrou em cima de Donati. Voltou a levantar-se. Não conseguiu chegar ao palco antes da deflagração da terceira bomba.
Quando o estrondo acabou finalmente por esmorecer, Gabriel subiu à plataforma e testemunhou a devastação. Os shaheeds tinham-se distribuído uniformemente pela multidão perto da frente do palco: um junto às Portas de Bronze, o segundo no meio da praça e o terceiro perto do Arco dos Sinos. Deles apenas restavam três plumas de fumo negro que se elevavam para o céu limpo e azul. Nos pontos onde os homens-bomba tinham estado, as lajes do pavimento estavam escurecidas pelo fogo, ensopadas em sangue e cobertas de membros e fragmentos humanos. A pouca distância dos centros das explosões, era possível imaginar que os cadáveres desfeitos tinham sido seres humanos poucos momentos antes. As cadeiras desdobráveis que Gabriel vira serem montadas nessa manhã tinham-se espalhado como cartas, e havia sapatos um pouco por todo o lado. Quantos mortos? Centenas, pensou. Mas nesse momento a sua preocupação não se dirigia aos mortos, mas sim ao Santo Padre. Declaramos guerra aos Cruzados, com a destruição do seu templo infiel ao politeísmo...
Gabriel sabia que o ataque ainda não terminara.
Nesse instante, através da cortina de fumo negro, viu o desenrolar da fase seguinte. Uma van parara junto à barricada ao fundo da praça. Tinha as portas de carga abertas, de onde saíam três homens. Cada um empunhava um lançador de mísseis.
Foi então que Gabriel viu o trono onde o papa estivera sentado. Tinha sido derrubado pela força da primeira explosão e jazia agora ao contrário, nos degraus da Basílica. Por baixo dele via-se uma pequena mão com um anel de ouro... e a saia de uma sotaina branca, manchada de sangue.
Gabriel olhou para Donati.
— Eles têm mísseis, Luigi! Afaste todos da Basílica.
Saltou do palco e levantou o trono. O papa tinha os olhos fechados e sangrava de vários pequenos cortes. Quando Gabriel se baixou e aninhou o papa nos braços, ouviu o silvo inconfundível de um RPG-7 a aproximar-se. Virou a cabeça o suficiente para avistar o míssil a cruzar a praça, em direção à Basílica.
No instante seguinte, a ogiva bateu na cúpula de Miguel Angelo e explodiu, numa chuva de,-fogo, vidro e pedra. Gabriel protegeu o papa dos destroços, depois ergueu-o e começou a correr para as Portas de Bronze. Antes de chegarem ao abrigo proporcionado pela Colunata, o segundo míssil atravessou a praça. Acertou na fachada da Basílica, logo abaixo da balaustrada na galeria das Bênçãos.
Gabriel perdeu o equilíbrio e tombou nas lajes. Levantou a cabeça e viu o terceiro míssil a caminho. Seguia uma trajetória mais baixa dos que os anteriores e voava diretamente para o palco. No momento antes do impacto, Gabriel viu uma imagem de pesadelo: Luigi Donati em desespero, a tentar colocar em segurança os cardeais e os prelados da Cúria. Gabriel continuou baixo e protegeu o corpo do papa com o seu, no momento em que outra chuva de fragmentos caiu sobre eles.
— É você, Gabriel? — indagou o papa, com os olhos ainda fechados.
— Sim, Sua Santidade.
— Já acabou?
Três bombas, três mísseis: simbólico da Santíssima Trindade, pensou Gabriel.
Um insulto propositado aos mushrikun. — Sim, Sua Santidade. Creio que sim.
— Onde está Luigi?
Gabriel olhou para os restos em chamas do palco e viu Donati sair a cambalear do fumo, com o corpo de um cardeal morto nos braços.
— Está vivo, Sua Santidade. O papa fechou os olhos e murmurou:
— Graças a Deus.
Gabriel sentiu uma mão a apertar-lhe o ombro. Virou-se e viu um quarteto de homens de fatos azuis, de armas em riste.
— Largue-o — gritou um dos homens. — Nós levamo-lo. Gabriel fitou o homem por um instante, ao que abanou lentamente a cabeça.
— Eu o levo — declarou. Depois levantou-se e, rodeado por guardas suíços, transportou o papa até o Palácio Apostólico.
O prédio ficava perto da Igreja de Santa Maria, em Trastevere. Com três pisos, o exterior desbotado estava coberto de pó e de linhas telefônicas e ostentava grandes manchas de tijolos expostos. No rés-do-chão ficava uma pequena oficina de motorizadas que se estendia até a rua. À direita da oficina localizava-se a porta que dava acesso aos pisos superiores. Ibrahim El-Banna tinha a chave no bolso.
O ataque começara cinco minutos antes da saída de El-Banna do Vaticano. No Borgo Santo Spirito aproveitara-se do pânico para retirar cuidadosamente o kufi e pendurar uma grande cruz de madeira ao pescoço. A partir daí caminhara até o Parque Janiculum, descendo então a colina até Trastevere. Na Via delia Paglia, uma mulher agitada pediu a bênção a El-Banna. O muçulmano concedera-a, imitando as palavras e os gestos que observara no Vaticano. Em seguida, pediu a Alá que o perdoasse pela blasfêmia.
Em segurança no interior do prédio, retirou a cruz ofensiva do pescoço e subiu os degraus mal iluminados. Recebera ordens do saudita que concebera e planejara o ataque para se dirigir ali. Um saudita que conhecia apenas por Khalil. Seria a primeira parada de uma viagem secreta para fora da Europa e de regresso ao mundo islâmico. Esperara voltar ao seu Egito nativo, mas Khalil convencera-o de que aí nunca estaria em segurança. O lacaio americano Mubarak vai entregar-te aos infiéis num abrir e fechar de olhos, avisara Khalil. Só há um lugar na Terra onde os infiéis não te podem chegar.
Esse lugar era a Arábia Saudita, terra do Profeta, berço do Islamismo Wahhabita. A Ibrahim el-Banna tinha sido prometida uma nova identidade, um professorado na afamada Universidade de Medina e uma conta bancária com meio milhão de dólares. O santuário era a recompensa do príncipe Nabil, o ministro da Administração Interna saudita. O dinheiro era um presente do bilionário saudita que financiara a operação.
Assim, o clérigo muçulmano que subiu os degraus do prédio de apartamentos romano era um homem satisfeito. Acabara de participar numa das mais importantes ações da jihad na longa e gloriosa história islâmica. Agora partia para uma nova vida na Arábia Saudita, onde as suas palavras e as suas crenças ajudariam a inspirar a geração seguinte de guerreiros islâmicos. Apenas o Paraíso seria melhor.
Chegou ao patamar do segundo andar e dirigiu-se à porta do apartamento 3A. Quando introduziu a chave na fechadura, sentiu um choque eléctrico diminuto nos dedos. Quando a girou, a porta explodiu. E a partir daí não sentiu mais nada.
Nesse preciso instante, na zona de Washington conhecida como Foggy Bottom, uma mulher despertou de um pesadelo. O sonho estava repleto das imagens que via todas as manhãs àquela hora. Uma hospedeira com o pescoço cortado. Um jovem passageiro elegante a fazer um último telefonema. Um inferno. Rebolou na cama e olhou para o relógio sobre a mesa-de-cabeceira. Seis e meia. Pegou o controle remoto, apontou-o à televisão e pressionou o botão Power. Meu Deus, não, pensou, quando viu a Basílica em chamas. Outra vez não.
7
ROMA
Durante a semana seguinte, Gabriel permaneceu no apartamento de segurança perto da Igreja da Trinità dei Monti. Houve momentos em que parecia que nada acontecera.
Mas depois ia até a varanda e via a cúpula da Basílica erguer-se sobre os telhados da cidade, despedaçada e enegrecida pelo fogo, como se Deus, num momento de desaprovação ou de descuido, tivesse arrasado o trabalho dos seus filhos. Gabriel, o restaurador, desejava que fosse apenas um quadro, uma tela ferida que ele pudesse sarar com uma garrafa de óleo de linhaça e um pouco de pigmento.
A contagem de baixas aumentava a cada dia. No final da quarta-feira — Quarta-Feira Negra, como os jornais de Roma a tinham batizado — o número era de seiscentos mortos. Na quinta-feira era de seiscentos e cinquenta e, no fim-de-semana, ultrapassara os setecentos. O coronel Karl Brunner, dos Guardas Suíços Pontífices, encontrava-se entre as vítimas mortais. Luca
Angelli também, depois de ter passados três dias entre a vida e a morte, na Clínica Gemelli, antes de as máquinas terem sido desligadas. O papa administrou-lhe os Últimos Sacramentos e permaneceu ao lado de Angelli até que este morreu. A Cúria Romana sofreu perdas terríveis. Entre os mortos encontravam-se quatro cardeais, a par de oito bispos curiais e três monsenhores. Os funerais tiveram de ser conduzidos na Basílica de São João de Latrão, pois dois dias após o ataque uma equipe internacional de engenheiros concluíra que não era seguro entrar na Basílica. O maior jornal de Roma, La Repubblica, dera a notícia com uma fotografia de página inteira da cúpula arruinada, com um único título: CONDENADA.
O governo de Israel não tinha posição oficial na investigação, mas Gabriel, graças à sua proximidade de Donati e do papa, em breve ficou a saber tanto sobre o atentado como qualquer agente de serviços secretos do mundo. A maior parte das informações era obtida à mesa de jantar do papa, onde se sentava todas as noites com os homens que conduziam a investigação: o general Marchese, dos Carabinieri, e Martino Bellano, dos serviços de segurança italianos. Falavam quase sempre livremente na presença de Gabriel e tudo o que sonegavam era-lhe transmitido por Donati. Por sua vez, Gabriel enviava toda a informação para O Boulevard King Saul, razão pela qual Shamron não tinha pressa em retirá-lo de Roma.
Quarenta e oito horas depois do atentado, os italianos tinham conseguido identificar todos os envolvidos. O ataque com os mísseis fora levado a cabo por uma equipe de quatro homens. O motorista do veículo era de origem tunisina. Os três homens com os RPG-7 eram de nacionalidade jordana e veteranos da revolta no Iraque. Os quatro tinham sido abatidos por uma salva de tiros dos Carabinieri segundos após terem disparado as armas. Quanto aos homens que se tinham feito passar por sacerdotes alemães, apenas um era mesmo germânico, um jovem estudante de engenharia de Hamburgo chamado Manfred Zeigler. O segundo era um holandês de Rotterdam, e o terceiro um belga flamengo de Antuérpia. Os três eram convertidos muçulmanos e tinham participado em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Embora não dispusesse de provas, Gabriel desconfiava que tivessem sido recrutados pelo professor Ali Massoudi. Graças à vigilância das câmeras de circuito fechado e a relatos de testemunhas, as autoridades italianas e do Vaticano conseguiram reconstruir os últimos momentos da vida dos homens-bomba. Após terem sido admitidos no Vaticano por um adetto do Escritório de Autorização, os três homens tinham-se dirigido ao gabinete de Ibrahim el-Banna, perto da Piazza Santa Marta. Quando de lá saíram, cada homem levava uma pasta grande. Tal como Angelli imaginara, os homens tinham penetrado na Basílica por uma entrada lateral. Chegaram à Praça de S. Pedro, apropriadamente, pela Porta da Morte. Como as outras quatro que davam acesso à praça através da Basílica, essa porta devia estar trancada. No fim da primeira semana, a polícia do Vaticano ainda não conseguira determinar por que não estava.
O corpo de Ibrahim el-Banna foi identificado três dias após ter sido retirado dos escombros do prédio de apartamentos em Trastevere. Por enquanto, a sua verdadeira afiliação permanecia incógnita. Quem era a Irmandade de Alá? Seria um ramo da Al-Qaeda, ou simplesmente a Al-Qaeda com outro nome? E quem planejara e financiara uma operação tão elaborada? Uma coisa era perfeitamente clara. O ataque ao lar da Cristandade voltara a atear o fogo do movimento extremista global. Celebrações de rua tinham tido lugar em Teerão, no Cairo, em Beirute e nos territórios palestinos, ao mesmo tempo que analistas, de Washington a Londres e a Tel Aviv, detectavam de imediato um aumento drástico de atividade e de recrutamento.
Na quarta-feira seguinte, uma semana depois do atentado, Shamron decidiu que chegara a altura de Gabriel voltar a casa. Enquanto fazia a mala no apartamento de segurança, a luz vermelha do telefone começou a piscar, indicando uma chamada. Levantou o fone e ouviu a voz de Donati. — O Santo Padre gostaria de falar com você em particular.
— Quando?
— Esta tarde, antes de partir para o aeroporto.
— Falar sobre o quê?
— Gabriel Allon é membro de um clube muito restrito.
— E que clube é esse?
— De homens que se atreveriam a fazer essa pergunta.
— Onde e quando? — perguntou Gabriel, com um tom conciliatório.
Donati transmitiu-lhe a informação. Gabriel desligou e acabou de arrumar as suas coisas.
Gabriel passou por um posto de controle dos Carabinieri no extremo da Colunata e atravessou a Praça de S. Pedro à luz esmaecente do entardecer. Continuava fechada ao público. As equipes de perícia tinham completado a sua tarefa macabra, mas as barreiras opacas erguidas à volta dos três centros de explosão continuavam no seu lugar. Um gigantesco encerado branco estava pendurado na fachada da Basílica, ocultando os estragos por baixo da Galeria das Bênçãos. Ostentava a imagem de uma pomba e uma única palavra: PAZ.
Passou pelo Arco dos Sinos e percorreu o flanco esquerdo da Basílica. As entradas laterais estavam fechadas e barricadas, e agentes da Vigilanza montavam guarda a cada uma. Nos Jardins do Vaticano era possível imaginar que nada acontecera. Era possível, pensou Gabriel, até que se olhasse para a cúpula arruinada, iluminada naquele momento por um pôr do Sol avermelhado. O papa aguardava junto à Casa do Jardineiro. Cumprimentou Gabriel calorosamente e, juntos, dirigiram-se ao canto mais extremo do Vaticano. Uma dúzia de guardas suíços à paisana acompanhavam-nos por entre os pinheiros mansos, as sombras compridas e estreitas sobre a grama.
Luigi e eu imploramos à Guarda Suíça que reduzisse o destacamento — comentou o papa. — Por agora esse assunto não está aberto a negociações. Andam um pouco enervados... por razões óbvias. Desde o Saque de Roma que um comandante da Guarda Suíça não morria a defender o Vaticano de um ataque inimigo.
Caminharam em silêncio por alguns instantes.
— Será este o meu destino, Gabriel? Ficar para sempre rodeado de homens com armas e rádios? Como poderei comunicar com o meu rebanho? Como poderei reconfortar os enfermos e os necessitados se estiver isolado deles por uma falange de guarda-costas?
Gabriel não tinha resposta para lhe dar.
— As coisas não voltarão a ser como eram, certo, Gabriel?
— Não, Sua Santidade, receio que não.
— Eles pretendiam me matar?
— Sem dúvida.
— Voltarão a tentar?
— Quando estabelecem um objetivo, regra geral não desistem até o cumprirem. Mas, neste caso, conseguiram matar setecentos peregrinos e sete cardeais e bispos. Já para não falar do comandante da Guarda Suíça. Também conseguiram infligir sérios danos físicos à própria Basílica. Na minha opinião, terão saldado as suas contas históricas.
— Podem não ter conseguido matar-me, mas fizeram de mim um prisioneiro do Vaticano. — O papa deteve-se e olhou para a cúpula arruinada. — A minha gaiola já não é tão dourada. Demorou mais de um século a construir e foram precisos poucos segundos para destruí-la.
— Não está destruída, Sua Santidade. A cúpula pode ser restaurada. — Isso ainda não foi decidido — contrapôs o papa, com um tom sombrio nada caraterístico. — Os engenheiros e os arquitetos não sabem se o poderão fazer. Talvez tenha de ser demolida e totalmente reconstruída. E o baldaquino sofreu danos graves quando os destroços lhe caíram em cima. Não é algo que possa ser substituído, mas o Gabriel tem bem noção do que isso significa.
Gabriel mirou o relógio. Teria de partir rapidamente para o aeroporto, caso contrário perderia o avião. Interrogou-se por que motivo o papa o teria convocado. Decerto não seria para discutir a restauração da Basílica. O papa virou-se e recomeçou a andar. Dirigiam-se à Torre de S. João, no canto sudoeste do Vaticano.
— A única razão para eu não estar morto — disse o papa — é o Gabriel. Com toda a mágoa e confusão desta semana terrível, ainda não tive oportunidade de lhe agradecer devidamente. Faço-o agora. Quem me dera poder fazê-lo em público. O papel de Gabriel no assunto fora cuidadosamente ocultado dos órgãos de comunicação social. Até então, contra todas as expetativas, permanecera em segredo.
— E quem me dera ter encontrado Ibrahim el-Banna mais cedo — replicou Gabriel.
— Setecentas pessoas poderiam ainda estar vivas.
— Fez tudo o que podia ser feito.
— Talvez, Sua Santidade, mas, ainda assim, não foi suficiente.
Chegaram ao muro do Vaticano. O papa subiu uma escadaria de pedra, com Gabriel a segui-lo em silêncio. Chegaram ao parapeito e olharam Roma. As luzes acendiam-se um pouco por toda a cidade. Gabriel olhou sobre o ombro e viu os guardas suíços a agitarem-se nervosamente lá em baixo. Descansou-os com um gesto da mão e fitou o papa, que espreitava os carros que percorriam velozmente o Viale Vaticano.
— Luigi disse que tem uma promoção a sua espera em Tel Aviv. — Foi obrigado a subir o tom de voz por causa do barulho do trânsito. — É uma promoção que ambicionava ou é obra de Shamron?
— Há quem seja obrigado a aceitar a grandeza, Sua Santidade.
Pela primeira vez desde que chegara a Roma, Gabriel viu o papa sorrir.
— Posso dar-lhe um conselho?
Gabriel anuiu.
— Use o seu poder sabiamente. Mesmo que esteja em posição de castigar seus inimigos, use seu poder como forma de procurar a paz a cada momento. Busque a justiça e não a vingança.
Gabriel sentiu-se tentado a recordar o papa de que era apenas um servidor secreto do Estado, que a decisão sobre a paz e a guerra estavam nas mãos de homens bem mais poderosos do que ele. Em vez disso, garantiu ao papa que faria bom uso do conselho que lhe fora dado.
— Vai procurar os homens que atacaram o Vaticano?
— Não é nossa luta. Pelo menos por enquanto.
— Algo me diz que em breve será.
O papa observava o tráfego abaixo dele com um fascínio infantil.
— A ideia de colocar a pomba da paz na mortalha cobrindo a fachada da Basílica foi minha. Imagino que considere esse sentimento profundamente ingênuo. Talvez me ache ingênuo também.
— Não ia querer viver num mundo sem homens como Sua Santidade.
Quando voltou a olhar para o relógio, Gabriel não tentou disfarçá-lo.
— Tem o avião à espera? — perguntou o papa.
— Sim, Sua Santidade.
— Vamos — disse. — Eu acompanho-o.
Gabriel começou a descer os degraus, mas o papa deixou-se ficar no parapeito. — Francesco Tiepolo ligou-me esta manhã, de Veneza. Manda-lhe cumprimentos.
— Virou-se e olhou para Gabriel. — Chiara também.
Gabriel permaneceu em silêncio.
— Ela diz que gostaria de vê-lo antes de voltar a Israel. Estava a pensar que talvez parasse em Veneza, quando saísse do país. — O papa segurou no cotovelo de
Gabriel e, a sorrir, acompanhou-o pelos degraus abaixo. — Sei que tenho muito pouca experiência no que diz respeito a assuntos do coração, mas talvez permita que um velho lhe dê mais um conselho.
8
VENEZA
Era uma pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre, no sestiere de Cannaregio. O terreno onde se erguia era demasiado pequeno para um adro de igreja decente, por isso a entrada principal acedia diretamente à atarefada Salizzada San Giovanni Crisóstomo. Em tempos, Gabriel levara no bolso uma chave da igreja.
Entrava agora como um turista normal e fez uma pausa no hall, onde esperou que os olhos se habituassem à luz ténue, enquanto um sopro de ar fresco, permeado pelo odor a cera e a incenso, lhe acariciou o rosto. Pensou na última vez que entrara naquela igreja. Fora na noite em que Shamron se deslocara a Veneza para avisar Gabriel de que tinha sido descoberto pelos seus inimigos e de que chegara a altura de voltar a casa. Não vai haver sinais da tua passagem por aqui, garantira-lhe Shamron. Será como se nunca tivesses existido.
Cruzou a nave acolhedora até a Capela de S. Jerônimo, no lado direito da igreja. O retábulo encontrava-se oculto por uma sombra densa. Gabriel introduziu uma moeda no contador de luz e as lâmpadas ganharam vida, iluminando o último grande trabalho de Giovanni Bellini. Deixou-se ficar ali de pé por um instante, a mão direita pressionada contra o queixo, a cabeça inclinada de leve para o lado, e examinou a pintura à luz indireta. Francesco Tiepolo fizera um bom trabalho finalizando sua restauração. Gabriel quase não podia dizer onde terminava a sua mão e começava a de Tiepolo. Não era de admirar, pensou. Ambos tinham sido aprendizes do grande mestre restaurador veneziano Umberto Conti.
O tempo chegou ao fim e as luzes desligaram-se automaticamente, o que fez com que a pintura voltasse a mergulhar na escuridão. Gabriel regressou ao exterior e dirigiu-se para ocidente, através de Cannaregio, até chegar a uma ponte de ferro, a única do gênero em Veneza. Na Idade Média existira um portão no centro da ponte e, à noite, um vigia cristão ficava de guarda, para que os prisioneiros do outro lado não pudessem fugir. Atravessou a ponte e entrou num sottoportego escurecido. Ao fim da passagem abria-se uma praça vasta, o Campo dei Ghetto Nuovo, centro do antigo gueto de Veneza. Outrora tinham aí vivido mais de cinco mil judeus. Agora era o lar de apenas vinte dos quatrocentos judeus da cidade, cuja maioria era idosa e residia na Casa di Riposo Israelitica.
Atravessou o campo e deteve-se no número 2899. Uma diminuta placa de latão dizia COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA — Comunidade Judaica de Veneza. Tocou à campainha e virou rapidamente as costas à câmera de segurança por cima da porta. Após um longo silêncio, uma voz familiar de mulher crocitou pelo intercomunicador.
— Vire-se — ordenou. — Deixe-me ver seu rosto.
Gabriel aguardou onde ela lhe disse, um banco de madeira a um canto do campo banhado pelo sol, perto de um monumento aos judeus venezianos que tinham sido reunidos em Dezembro de 1943 e enviados para morrer em Auschwitz. Passaram-se dez minutos, e depois outros dez. Quando finalmente ela saiu do escritório, demorou o seu tempo a atravessar a praça, ao que parou a alguns metros dele, como se receasse aproximar-se mais. Ainda sentado, Gabriel puxou os óculos de sol para a testa e mirou-a à luz encantadora do Outono. Vestia jeans desbotados, justos nas coxas compridas e largos nas bainhas, e botas de camurça de salto alto. A blusa branca tinha um corte que não levantava dúvidas quanto à figura generosa por baixo.
O cabelo castanho revolto estava preso atrás por uma fita de cetim cor de chocolate, e em volta do pescoço, uma echarpe de seda. A pele cor de azeitona estava muito escura. Gabriel imaginou que ela tivesse passado uma temporada recente ao sol.
Os olhos, grandes e com um formato oriental, eram da cor do caramelo, com lampejos dourados. Costumavam mudar de tom, consoante o seu estado de espírito. Da última vez que Gabriel vira os olhos de Chiara, estes tinham assumido um negro de fúria e ficado orlados pelo rímel que escorrera. Ela cruzou os braços por baixo dos seios numa posição defensiva e perguntou-lhe o que fazia em Veneza.
— Olá, Chiara. Está muito bonita.
A brisa agitou-lhe o cabelo e soprou-lhe alguns fios no rosto. Desviou-os com a mão esquerda. No dedo faltava-lhe o anel de noivado que Gabriel lhe dera. Tinha agora outros anéis nos dedos e um relógio de ouro novo no pulso. Gabriel interrogou-se se seriam prendas de outro alguém.
— Não sei de você desde que saí de Jerusalém — comentou Chiara, no tom neutro proposital que assumia sempre que tentava reprimir as emoções. — São meses. Agora aparece de surpresa e espera que o receba de braços abertos e sorriso nos lábios?
— Surpresa? Estou aqui porque você me pediu que viesse.
— Eu? Mas do que está falando?
Gabriel perscrutou-lhe os olhos. Podia ver que não havia dissimulação. — Sinto muito — disse. — Parece que fui enganado para vir aqui.
Chiara brincou com as pontas da echarpe, com um prazer óbvio pelo desconforto que via.
— Enganado por quem?
Donati e Tiepolo, imaginou Gabriel. Talvez mesmo Sua Santidade. Levantou-se de repente.
— Não interessa — garantiu. — Sinto muito, Chiara. Foi bom vê-la novamente.
Virou-se e começou a afastar-se, mas Chiara segurou-lhe o braço.
— Espere — pediu. — Fique mais um pouco.
— Vai ser civilizada?
— Civilidade é para casais divorciados com filhos.
Gabriel voltou a sentar-se, mas Chiara deixou-se ficar de pé. Um homem de óculos escuros e casaco amarelado surgiu do sottoportego. Lançou um olhar de admiração a Chiara, depois cruzou o campo e desapareceu sobre a ponte que levava ao par de antigas sinagogas sefarditas no extremo sul do gueto. Chiara observou o percurso do homem, depois meneou a cabeça e estudou a aparência de Gabriel.
— Alguém já te disse que você é idêntico ao homem que salvou o papa?
— Esse é italiano — escusou-se Gabriel. — Não leu sobre ele nos jornais?
Chiara ignorou-o.
— Quando vi as imagens na televisão, pensei que estivesse com alucinações. Sabia que era você. Nessa noite, depois de as coisas acalmarem, falei com Roma. Shimon disse que você tinha estado no Vaticano.
Um movimento súbito no campo a fez virar a cabeça. Viu um homem de barba salpicada de grisalho e chapéu de feltro apressar-se na entrada do centro comunitário. Era o pai, o principal rabi de Veneza. Chiara ergueu a ponta da bota direita e equilibrou o peso no calcanhar. Gabriel conhecia bem o movimento, que significava uma provocação a caminho.
— Por que está aqui, Gabriel Allon?
— Disseram-me que queria me ver.
— E só por isso veio?
— Só por isso.
Os cantos da boca de Chiara começaram a curvar-se no esboço de um sorriso.
— Qual é a piada? — perguntou ele.
— Pobre Gabriel. Continua apaixonado por mim, não é?
— Nunca deixei de estar.
— Mas não o suficiente para se casar comigo?
— Podemos falar sobre isto em particular?
— Por enquanto não. Tenho de ficar com atenção ao escritório. O meu outro trabalho — rematou, com um tom de conspiração fingida.
— Dê meus cumprimentos ao rabi Zolli.
— Imagino que não seja boa ideia. O rabi Zolli continua furioso com você.
Tirou uma chave do bolso e lançou-a. Gabriel fitou a chave na mão durante um instante muito longo. Mesmo depois de meses de separação, continuava a ter dificuldade em imaginá-la com vida própria.
— Para o caso de querer saber, moro sozinha. Nem sei se merece saber, mas é verdade. Fique confortável. Descanse. Está com péssimo aspeto.
— Estamos muito elogiosos, hoje. — Enfiou a chave no bolso. — Qual é o endereço?
— Sabes, mente muito mal, para um espião.
— De que está falando?
— Sabe meu endereço, Gabriel. Ficou sabendo em Operações, que também te disse meu número de telefone.
Inclinou-se e beijou o rosto dele. Quando o cabelo passou pelo rosto, Gabriel fechou os olhos e inspirou o aroma de baunilha.
O prédio ficava do outro lado do Grande Canal, em Santa Croce, num corte pequeno e fechado, com apenas uma passagem de entrada e saída. Quando entrou no apartamento, Gabriel teve a sensação de voltar ao seu próprio passado. A sala parecia à espera de uma sessão de fotografias. Até mesmo as revistas e os jornais velhos aparentavam ter sido dispostos por um fanático em busca da perfeição visual. Dirigiu-se a uma camilha e deu uma vista de olhos às fotografias emolduradas: Chiara e os pais; Chiara e um irmão mais velho que vivia em Pádua; Chiara com uma pessoa amiga na costa do mar da Galileia. Foi durante essa viagem, quando ela tinha apenas vinte e cinco anos, que chamara a atenção de um caçador de talentos do Escritório. Seis meses depois, após ter sido avaliada e treinada, regressou à Europa como bat leveyha, uma agente de acompanhamento. Não havia fotografias de Chiara com Gabriel, certo existia nenhuma.
Chegou-se à janela e olhou para o exterior. Dez metros lá em baixo, as águas verdes oleosas do rio dei Megio fluíam vagarosas. Uma corda de roupa chegava ao prédio oposto. Camisas e calças estavam penduradas ao sol e, no outro extremo da corda, uma idosa estava sentada à janela aberta com o braço carnudo apoiado no parapeito. Pareceu surpresa ao ver Gabriel, que ergueu a chave e disse que era um amigo de Chiara, vindo de Milão.
Baixou as persianas e dirigiu-se à cozinha. No lava-louça jazia uma caneca meio bebida de café com leite e uma côdea de torrada com manteiga. Exigente com tudo o resto, Chiara deixava sempre a louça do pequeno-almoço à espera do fim do dia. Com uma atitude de mesquinhice doméstica, deixou-a onde estava e foi até o quarto.
Largou a mala em cima da cama desfeita e, combatendo a tentação de revistar o roupeiro e as gavetas, entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. No armário de medicamentos procurou lâminas de barbear, água de colônia ou outros vestígios da presença de um homem. Encontrou duas coisas que nunca vira antes: um frasco de comprimidos para dormir e outro de antidepressivos. Voltou a colocá-los na posição original. Tal como Gabriel, Chiara fora treinada para reparar na mais sutil das alterações.
Despiu-se e atirou as roupas para o corredor, e depois passou muito tempo debaixo da água corrente. Quando terminou, enrolou uma toalha na cintura e voltou ao quarto. O edredão cheirava ao corpo de Chiara. Quando deitou a cabeça na almofada, os sinos de Santa Croce repicaram o meio-dia. Fechou os olhos e mergulhou num sono profundo.
Acordou ao fim da tarde com o som de uma chave a ser introduzida na fechadura, seguido pelo ruído dos saltos das botas de Chiara no bali de entrada. Ela não se preocupou em avisar que chegara a casa. Sabia que ele acordava ao mais pequeno som, ou movimento. Quando entrou no quarto, trauteava baixinho uma música pop italiana que sabia que ele detestava.
Sentou-se à beira da cama, suficientemente perto para que o quadril roçasse a coxa de Gabriel. Ele abriu os olhos e observou-a tirando as botas e e o jeans. Chiara pousou a mão no peito de Gabriel. Quando ele soltou a fita de seu cabelo, os caracóis ruivos se espalharam pelo rosto e os ombros dela. Chiara repetiu a pergunta que fizera no gueto: Por que está aqui, Gabriel Allon?
— Estava pensando que podíamos voltar a experimentar — respondeu Gabriel.
— Não preciso experimentar. Já o fiz uma vez e gostei muito.
Gabriel retirou a echarpe e desabotoou lentamente a blusa dela. Chiara inclinou-se e beijou-o na boca. Era como se estivesse sendo beijado pela Alba Madonna de Rafael.
— Se me magoar outra vez vou odiar você para sempre!
— Não vou.
— Nunca deixei de sonhar com você.
— Sonhos bons?
— Não — respondeu. — Sonhava com sua morte.
O único vestígio de Gabriel no apartamento era um velho caderno de esboços. Abriu-o numa página nova e mirou Chiara com um distanciamento profissional. Estava sentada na extremidade do sofá, com as pernas compridas debaixo do corpo, enrolada num lençol de seda. Tinha o rosto virado para a janela e iluminado pelo sol do ocaso. Gabriel sentiu-se aliviado ao ver as primeiras rugas à volta dos olhos de Chiara. Sempre receara que ela fosse jovem demais, e um dia, quando ele fosse velho, o trocaria por outro homem. Puxou o lençol, expondo seus seios. Chiara susteve o olhar por um instante e depois fechou os olhos.
— Teve sorte em me encontrar — disse. — Podia estar ausente, em missão.
Ela era faladora. Gabriel aprendera que era inútil pedir que ficasse em silêncio enquanto posava.
— Não trabalha desde aquela missão na Suíça.
— Como sabe dessa operação?
Gabriel lançou-lhe um olhar inescrutável por cima do caderno e lembrou-a que não devia se mexer.
— Lá se vai o conceito de secretismo. Ao que parece, sempre que quer entra em Operações e descobre o que estou fazendo.
Fez menção de virar a cabeça, mas Gabriel imobilizou-a com um tsc-tsc abrupto. — Mas não devia ficar admirada. Já te deram o comando?
— Que comando? — disse Gabriel, fazendo-se de desentendido.
— Operações Especiais.
Gabriel confessou que a posição foi oferecida e aceita.
— Quer dizer que agora é meu chefe — frisou ela. — Imagino que tenhamos quebrado meia dúzia de diretrizes do Escritório sobre a confraternização entre oficiais e funcionários.
— No mínimo — admitiu Gabriel. — Mas a promoção ainda não é oficial.
— Graças a Deus. Não queria que o grande Gabriel se metesse em encrenca por sua vida sexual. Por quanto tempo podemos usar o corpo um do outro antes de termos problema com o Departamento de Pessoal?
— Quanto tempo quisermos. Apenas temos, eventualmente, de ser sinceros com eles.
— E quanto a Deus, Gabriel? Desta vez vai ser sincero com Deus? — O silêncio abateu-se, salvo pelo raspar do lápis de carvão no papel. Chiara mudou de assunto. — O que sabe sobre minha missão na Suíça?
— Sei que foi a Zermatt seduzir um traficante de armas suíço que estava prestes a concluir uma transação com alguém que não defende nossos interesses. O Boulevard King Saul queria saber a data da partida e o destino do carregamento.
Após um longo silêncio, perguntou-lhe se dormira com o suíço.
— Não se tratava desse tipo de operação. Estava a trabalhar com outro agente. Limitei-me a entreter o traficante no bar, enquanto o outro agente lhe entrou no quarto e roubou o conteúdo do computador. Além disso, sabes que uma bat leveyha não deve ser usada para sexo. Contratamos profissionais para esse tipo de coisas.
— Nem sempre.
— Seria incapaz de usar o meu corpo dessa maneira. Sou uma miúda religiosa. — Lançou-lhe um sorriso atrevido. — Por sinal, conseguimos. O barco sofreu um acidente misterioso, ao largo da costa de Creta. As armas estão no fundo do mar.
— Eu sei — asseverou Gabriel. — Volta a fechar os olhos.
— Feche você — replicou. Depois sorriu e fez o que ele pediu. — Não vai perguntar se estive com alguém durante nossa separação?
— Não tenho nada a ver com isso.
— Mas deve estar curioso. Nem quero imaginar o que fez no meu apartamento quando entrou aqui.
— Se está insinuando que revistei suas coisas, fique sabendo que não o fiz.
— Não brinque.
— Por que não consegues dormir?
— Quer mesmo que responda?
Gabriel não falou.
— Não houve mais ninguém, Gabriel, mas já sabia disso, não é? Como poderia? — Ofereceu-lhe um sorriso amargo. — Quando nos convidam para um clube exclusivo nunca nos dizem tudo. Não dizem que as mentiras começam a se acumular, nem que nunca estaremos confortáveis com pessoas de fora do clube. Foi só por isso que se apaixonou por mim, Gabriel? Por eu fazer parte do Escritório?
— Gostei de seu fettucini com cogumelo. São os melhores de Veneza.
— E quanto a você? Esteve com outras mulheres neste período?
— Este período foi passado com uma tela muito grande.
— Pois é, esqueci do seu problema. Não consegue fazer amor com uma mulher, a menos que ela saiba que mata por seu país. Se quisesse, encontraria uma pessoa adequada no Boulevard King Saul. Não há mulher no Escritório que não te deseje.
— Está falando demais. Se não se calar, não consigo acabar.
— Estou com fome. Não devia ter falado em comida. Aliás, como vai Leah?
Gabriel parou de desenhar e fitou Chiara por cima do bloco, como que reprovando a justaposição um pouco depreciativa de comida com sua esposa.
— Desculpe — disse Chiara. — Como está ela?
Gabriel ouviu-se a dizer que Leah estava bem, que duas ou três vezes por semana a visitava no hospital psiquiátrico no cimo do Monte Herzl, onde passava alguns minutos com ela. Mas, ao contar-lhe sobre isso, a sua mente encontrava-se em outro lugar: em Viena, perto da Juden Platz; na bomba no carro que matara seu filho, e no inferno que destruíra o corpo de Leah e roubara sua memória. Durante treze anos, ela ficara em silêncio na presença de Gabriel. Agora, por breves períodos, falava com ele. Recentemente, no jardim do hospital, fez a mesma pergunta que Chiara, momentos antes: houve outras mulheres neste período? Respondeu com sinceridade.
— Amava essa moça, Gabriel?
— Amava, mas deixei-a por você.
— E por que o fez, meu amor? Olhe para mim. Não resta nada meu, apenas uma recordação.
Chiara ficara em silêncio. A luz que banhava seu rosto desvanecia-se lentamente, passando de um vermelho coral a tons de cinza. A mulher rechonchuda surgiu na janela do prédio oposto e começou a recolher a roupa estendida. Chiara puxou o lençol até o pescoço. — O que está fazendo?
— Não quero que a Signora Lorenzetto me veja nua.
Ao devolver o lençol à posição original, Gabriel deixou uma mancha de carvão no seio.
— Imagino que tenha de voltar a Jerusalém — comentou. — A menos que diga a Shamron que não pode assumir Operações Especiais porque vai voltar para Veneza.
— É tentador — admitiu Gabriel.
— Tentador, mas não possível. É um soldado leal, Gabriel. Faz sempre o que mandam. Sempre fez. — Limpou o carvão do seio.
— Pelo menos não vou ter que decorar o apartamento.
Gabriel manteve os olhos presos no caderno. Chiara analisou a expressão dele e perguntou:
— Gabriel, o que fez no apartamento?
— Precisava de um lugar para trabalhar.
— Por isso mudou a mobília de lugar?
— Sabe, também estou ficando com fome.
— Gabriel Allon, sobrou alguma coisa?
— A noite está agradável — comentou ele. — Vamos de barco até Murano comer peixe.
9
JERUSALÉM
Gabriel voltou à Rua Narkiss às oito da noite seguinte. O carro de Shamron estava estacionado junto ao meio-fio e Rami, o guarda-costas, vigiava na calçada em frente ao número 16. Lá em cima, Gabriel encontrou todas as luzes acesas e Shamron tomando café na mesa da cozinha.
— Como entrou?
— Caso te tenhas esquecido, este costumava ser um apartamento de segurança do Escritório. A Gestão Imobiliária tem uma chave.
— Eu sei, mas mudei as fechaduras no Verão.
— A sério?
— Imagino que tenha de voltar a mudá-las.
— Não vale a pena dares-te ao trabalho.
Gabriel abriu a janela para arejar a divisão. Seis beatas de cigarro jaziam num dos pires de Gabriel, como invólucros de munições gastas. Shamron já ali estava há algum tempo.
— Como estava Veneza? — perguntou Shamron.
— Veneza estava ótima, mas da próxima vez que arrombar meu apartamento, peço que tenha a amabilidade de não fumar. — Gabriel pegou o pires pela borda e despejou as pontas de cigarro no lixo. — O que pode ser tão urgente que não podia esperar a manhã?
— Outro elo saudita no ataque ao Vaticano.
E Gabriel ergueu o olhar para Shamron. — Qual é?
— Ibrahim el-Banna.
— O clérigo islâmico? Não posso dizer que esteja surpreso.
Gabriel sentou-se à mesa.
— Há duas noites, o chefe de estação do Cairo reuniu-se em segredo com uma das nossas principais fontes no interior do Mukhabarat egípcio. Ao que parece, o professor Ibrahim el-Banna já tinha um bom currículo de militância, muito antes de ter ido para o Vaticano. O irmão mais velho era membro da Irmandade Islâmica e era próximo de Ayman al-Zawahiri, o número dois da Al-Qaeda. Um sobrinho foi para o Iraque combater os americanos e foi morto no cerco a Fallujah. Aparentemente, as gravações dos sermões do imã são obrigatórias entre os militantes islâmicos egípcios.
— É pena que o nosso amigo do Mukhabarat não tenha contado ao Vaticano a verdade sobre El-Banna. Setecentas pessoas talvez ainda estivessem vivas... e a cúpula da Basílica talvez não tivesse um buraco.
— Os egípcios sabiam mais uma coisa sobre o professor El-Banna — continuou Shamron. — Ao longo de grande parte das décadas de oitenta e de noventa, quando o problema do fundamentalismo islâmico estava a ganhar proporções alarmantes no Egito, o professor El-Banna recebia pagamentos regulares e ordens de um saudita que se fazia passar por agente da Organização Internacional de Apoio Islâmico, uma das principais obras de caridade sauditas. Este homem dizia chamar-se Khalil, mas o serviço secreto egípcios sabiam o seu nome verdadeiro: Ahmed bin Shafiq. O que torna tudo isto ainda mais interessante é a ocupação de Shafiq na altura.
— Pertencia ao GID — disse Gabriel.
— Exatamente.
O GID, ou Departamento Geral de Informações, era o nome do serviço secreto sauditas.
— O que sabemos sobre ele?
— Até há quatro anos, Bin Shafiq liderava uma unidade clandestina do GID, com o nome de código Grupo 205, que era responsável pela criação e manutenção de ligações entre a Arábia Saudita e os grupos islâmicos militantes espalhados pelo Oriente Médio. O Egito era uma das prioridades do Grupo 205, a par do Afeganistão, claro está.
— Qual o significado desse número?
— Era a extensão do gabinete de Bin Shafiq no quartel-general do GID.
— O que aconteceu há quatro anos?
— Bin Shafiq e os seus agentes estavam a canalizar material e verbas para os terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica. Um informante palestino contou-nos sobre a operação e nós relatamos a informação aos americanos. O presidente americano mostrou as nossas provas ao rei e pressionou-o para que encerrasse o Grupo 205. Isso passou-se seis meses depois do onze de Setembro, e o rei foi obrigado a satisfazer o desejo do presidente, para desalento de Bin Shafiq e de outros extremistas do reino. O Grupo 205 foi eliminado e Bin Shafiq foi expulso do GID.
— Ele atravessou a estrada?
— Estás a perguntar se ele é um terrorista? A resposta não sabemos. Aquilo que sabemos a militância islâmica está-lhe no sangue. O avô era comandante do Ikhwan, o movimento islâmico criado por Ibn Saud, no final do século XIX, no Najd.
Gabriel conhecia bem o Ikhwan. Em muitos aspetos, era o protótipo e o precursor espiritual dos grupos militantes islâmicos da atualidade.
— Em que outros locais Bin Shafiq agiu enquanto pertencia ao Grupo 205?
— Afeganistão, Paquistão, Jordânia, Líbano, Argélia. Desconfiamos que tenha estado até na Cisjordânia.
— Assim sendo, é possível que estejamos a lidar com alguém que possui contatos terroristas que vão da Al-Qaeda ao Hamas e à Irmandade Islâmica do Egito. Se Bin Shafiq passou mesmo para o outro lado, é um cenário de pesadelo. O ideólogo terrorista perfeito.
— Encontramos outra informação interessante nos nossos próprios arquivos — acrescentou Shamron. — Há cerca de dois anos, estávamos a receber relatórios que davam conta de um saudita a percorrer os campos do Sul do Líbano, à procura de guerreiros experientes. Segundo os relatórios, esse saudita dizia chamar-se Khalil.
— O mesmo nome que Bin Shafiq usou no Cairo.
— Infelizmente, não o perseguimos. Para ser sincero, se andássemos atrás de cada saudita rico que tenta organizar um exército para a jihad, não faríamos mais nada. É como dizem, se na hora soubesse o que sei hoje...
— O que mais temos sobre Bin Shafiq?
— Muito pouco, receio.
— E uma fotografia? Shamron abanou a cabeça.
— Tal como seria de imaginar, é um bocadinho tímido à frente das câmeras. — Temos de partilhar as informações, Ari. Os italianos têm de saber que pode haver uma ligação com os sauditas. E os americanos também.
— Eu sei. — O tom de Shamron era sombrio. A noção de partilhar informações obtidas a custo soava-lhe a heresia, especialmente quando não havia nada a ganhar em troca. — Costumava ser branco e azul — disse, referindo-se às cores nacionais de Israel. — Era esse o nosso lema. A nossa crença. Fazíamos as coisas por nós. Não pedíamos ajuda a ninguém, e não ajudávamos os outros com os seus próprios problemas.
— O mundo mudou, Ari.
— Talvez eu não esteja talhado para este mundo. Quando combatíamos a OLP, ou o Setembro Negro, era tudo uma questão de física simples. Acertamos aqui, apertamos ali. Observávamos, escutávamos, identificávamos os membros da organização, eliminávamos os líderes. Agora estamos a combater um movimento... um cancro com metástases em cada órgão vital do corpo. É como tentar apanhar nevoeiro com um copo. As regras antigas já não se aplicam. O azul e o branco já não chegam. Mas posso dizer-te uma coisa. Isto não vai cair bem em Washington. Os sauditas têm muitos amigos por lá.
— É o que faz o dinheiro — rematou Gabriel. — Mas os americanos têm de saber a verdade sobre os seus melhores amigos no mundo árabe.
— Eles sabem a verdade. Só não querem enfrentá-la. Os americanos sabem que, de muitas formas, os sauditas são a fonte do terrorismo islâmico, que os sauditas plantaram as sementes, regaram-nas com petrodólares e fertilizaram-nas com o ódio wahhabita e com a propaganda. Os americanos parecem não se importar de viver assim, como se o terrorismo inspirado pelos sauditas não passasse demais um pequeno imposto nos depósitos de gasolina. O que eles não percebem 89 o terrorismo nunca será derrotado, a menos que ataquem a origem: Riad e os Al-Saud.
— Mais uma razão para partilhar com eles a informação que liga o GID e os Al-Saud ao ataque ao Vaticano.
— Ainda bem que pensa assim, pois foi nomeado para ir a Washington contar tudo.
— Quando parto?
— Amanhã de manhã.
Shamron olhou distraidamente pela janela e, pela segunda vez, perguntou a Gabriel como foi a estada em Veneza.
— Fui enganado para ir lá — respondeu Gabriel. — Mas ainda bem que fui.
— Quem te enganou?
Gabriel contou. O sorriso no rosto de Shamron levou-o a se perguntar se ele também estaria envolvido na trama.
— Ela vem para cá?
— Passamos um dia juntos — explicou Gabriel. — Não tivemos tempo de fazer planos.
— Não sei se acredito nisso — duvidou Shamron. — Decerto não estás a considerar a hipótese de voltar a Veneza. Já te esqueceste de que te comprometeste a assumir as Operações Especiais?
— Não, não me esqueci.
— Por falar nisso, a nomeação vai ser oficializada quando voltares de
Washington.
— Mal posso esperar. Shamron olhou em seu redor.
— Já confessaste à Chiara que te livraste da mobília dela?
— Sabe que fiz algumas mudanças para acomodar o meu estúdio.
— Ela não vai ficar contente — avisou Shamron. — Dava tudo para ver a cara dela quando entrar nesta casa.
Shamron ficou por mais uma hora, pondo Gabriel a par de todos os pormenores relativos ao atentado no Vaticano. Às nove e um quarto, Gabriel acompanhou-o ao carro, deixando-se ficar na rua por alguns momentos, enquanto via as luzes traseiras a desaparecerem à esquina. Regressou ao apartamento e arrumou a cozinha, depois apagou as luzes e foi para o quarto. Nesse momento, o prédio estremeceu com o clamor de uma explosão tremenda. Tal como todos os Israelitas, habituara-se a fazer uma estimativa das vítimas dos homens-bomba suicidas através do número de sirenes. Quanto mais sirenes, mais ambulâncias. Quanto mais ambulâncias, mais mortos e feridos. Ouviu uma única sirene, depois outra, e por fim uma terceira. Não foi muito grande, pensou. Ligou a televisão e esperou pelo primeiro boletim informativo. Todavia, quinze minutos depois da explosão continuavam sem dizer nada. Frustrado, pegou no telefone e ligou para o carro de Shamron. Não houve resposta.
PARTE DOIS
A Filha do Dr. Gachet
10
EIN KEREM, JERUSALÉM
A vida de Gilah Shamron fora uma sucessão de vigílias tensas. Suportara as missões secretas a territórios perigosos, as guerras e o terror, as crises e as reuniões do Escritório de Segurança que nunca pareciam acabar antes da meia-noite. Sempre receara que um inimigo do passado de Shamron se erguesse um dia e executasse sua vingança. Sempre soube que, nesse dia, seria obrigada a esperar para saber se ele viveria ou morreria.
Gabriel encontrou-a sentada calmamente numa sala de espera particular na unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah. Tinha o famoso blusão de Shamron no colo e dedilhava, absorta, o rasgão no lado direito do peito, que Shamron nunca quis remendar. Gabriel sempre viu um pouco de Golda Meir nos olhos tristes e no cabelo grisalho revolto de Gilah. Não conseguia olhar para ela sem recordar o dia em que Golda prendera uma medalha em seu peito em segredo e, de lágrimas nos olhos, agradeceu por ter vingado os onze israelenses assassinados em Munique.
— O que aconteceu, Gabriel? Como puderam pegar Ari em plena Jerusalém?
— Provavelmente tem sido vigiado há muito tempo. Quando saiu do meu apartamento disse que ia trabalhar mais um pouco no Gabinete do primeiro-ministro. — Gabriel sentou-se e pegou na mão de Gilah. — O atentado ocorreu num sinal na Rua King George.
— Um homem-bomba suicida?
— Acreditamos que foram dois homens. Estavam numa van, disfarçados de judeus haredi. A bomba era incomumente grande.
Gilah olhou para o televisor num suporte na parede.
— Bem se pode ver pelas imagens. É espantoso que alguém tenha sobrevivido. — Uma testemunha viu o carro do Ari acelerar de repente, um instante antes de a bomba explodir. Rami, ou o motorista, deve ter visto alguma coisa que o deixou desconfiado. A blindagem aguentou o impacto da explosão, mas o carro foi lançado pelos ares. Ao que parece, capotou pelo menos duas vezes.
— Quem fez isto? Foi o Hamas? A Jihad Islâmica? As Brigadas de Mártires Al-Aqsa?
— Foi reivindicado pela Irmandade de Alá.
— As mesmas pessoas responsáveis pelo atentado no Vaticano?
— Sim, Gilah.
— Acreditas neles?
— Ainda é cedo para isso — respondeu Gabriel. — O que lhe disseram os médicos?
— A operação vai durar pelo menos mais três horas. Dizem que o poderemos ver quando sair, mas apenas um minuto ou dois. Avisaram que não terá bom aspeto. — Gilah observou-o por um momento e depois voltou a olhar para o televisor. — Receia que ele possa não sobreviver, não é, Gabriel?
— É claro que sim.
— Não se preocupe — descansou-o Gilah. — Shamron é indestrutível. Shamron é eterno.
— O que lhe disseram sobre as lesões?
Gilah recitou-as calmamente. O inventário de órgãos danificados, traumatismo craniano e ossos fraturados tornava claro que a sobrevivência de Shamron não era, de todo, garantida.
— Dos três, Ari é quem ficou melhor — explicou Gilah. Ao que parece, Rami e o motorista ficaram em muito pior estado. Pobre Rami. Há anos que protege Ari, e agora isto.
— Onde está Yonatan?
— Estava de serviço no Norte. Está chegando.
O único filho de Shamron era um coronel da Força de Defesa Israelita. Ronit, a filha caprichosa, mudara-se para a Nova Zelândia para fugir ao pai dominador. Vivia numa fazenda de criação de galinhas com um gentio. Há anos que ela e Shamron não se falavam.
— Ronit também está a caminho — disse Gilah. — Quem sabe? Talvez esta situação traga alguma coisa de bom. A ausência da Ronit tem sido muito difícil para ele. Culpa-se e tem razão. Ari é muito duro para os filhos. Mas já sabias disso, não é, Gabriel?
Gilah fitou diretamente os olhos de Gabriel por um momento, ao que desviou de súbito o olhar. Durante anos pensara que ele era uma espécie de agente de secretária com vastos conhecimentos sobre arte e que passava muito tempo na Europa. Tal como o resto do país, ficara a saber a verdadeira natureza do seu trabalho através dos jornais. A atitude para com ele mudara desde que fora desmascarado. Ficava calada, tendo o cuidado de não o perturbar e sendo incapaz de o olhar nos olhos durante muito tempo. Gabriel já testemunhara comportamentos como o de Gilah, em criança, sempre que alguém entrava na casa Allon. A morte deixara a sua marca no rosto de Gabriel, como Birkenau maculara a expressão de sua mãe. Gilah não conseguia fitar-lhe os olhos, com medo do que neles pudesse ver.
— Ele já não andava bem. Claro que o tem escondido, até mesmo do primeiro-ministro.
Gabriel não ficou surpreendido. Sabia que Shamron ocultava várias maleitas desde há anos. Tal como quase todos os restantes aspetos da sua vida, a saúde do idoso era um segredo bem guardado.
— São os rins?
Gilah abanou a cabeça. — O cancro voltou.
— Pensei que o tivessem eliminado.
— Também o Ari — retorquiu ela. — E não é tudo. Tem os pulmões numa lástima, por causa dos cigarros. Diz-lhe que não fume tanto.
— Ele nunca me escuta.
— Ele só te escuta a ti. Adora-te como a um filho, Gabriel. Por vezes julgo que gosta mais de ti do que do Yonatan.
— Não seja tonta, Gilah.
— Nunca fica tão feliz como quando vocês estão juntos, no terraço em Tiberíades.
— Normalmente estamos a discutir.
— Ele gosta de discutir contigo, Gabriel.
— Pois, já tinha percebido.
Na televisão, ministros do Governo e chefes de segurança chegavam ao Gabinete do primeiro-ministro para uma sessão de emergência. Em circunstâncias normais, Shamron teria estado entre eles. Gabriel olhou para Gilah, que puxava a pele rasgada do blusão de Shamron.
— Foi o Ari, não foi? — perguntou ela. — Foi o Ari que te arrastou para esta vida... depois de Munique.
Gabriel olhou para as luzes de emergência que piscavam na tela do televisor e anuiu distraidamente. — Estavas no exército?
— Não, já tinha cumprido o serviço militar e na altura estudava na Academia de Arte Bezalel. O Ari foi falar comigo poucos dias depois de os reféns terem sido assassinados. Ainda ninguém sabia, mas Golda já tinha dado ordens para que todos os envolvidos fossem mortos.
— Por que te escolheu ele a ti?
— Falava línguas estrangeiras, e viu certas coisas nos meus relatórios do exército... qualidades que acreditava serem ideais para o tipo de trabalho que tinha em mente.
— Matar à queima-roupa, cara a cara. Foi assim que o fizeste, não foi?
— Sim, Gilah.
— Quantos?
— Gilah.
— Quantos, Gabriel?
— Seis — respondeu. — Matei seis.
Gilah tocou-lhe nos cabelos grisalhos nas têmporas.
— Mas não passavas de um rapaz.
— É mais fácil quando se é novo. À medida que vamos envelhecendo, torna-se mais difícil.
— Mesmo assim fizeste-o. Foi a ti que mandaram matar Abu Jihad, não foi?
Entraste na sua casa em Tunes e mataste-o à frente da mulher e dos filhos. E depois vingaram-se, não no país, mas em ti. Colocaram uma bomba debaixo do teu carro, em Viena.
Gilah puxava o rasgão do blusão de Shamron cada vez com mais força. Gabriel segurou-lhe a mão.
— Está tudo bem, Gilah. Já foi há muito tempo.
— Lembro-me do telefonema. Ari disse que uma bomba tinha explodido embaixo do carro de um diplomata em Viena. Lembro-me de ter ido à cozinha fazer café para ele, e quando voltei ao quarto estava chorando. Ele disse: "A culpa é toda minha. Matei a mulher e o filho dele." Foi a única vez que o vi chorar. Não o vi por uma semana. Quando finalmente voltou, perguntei o que acontecera. Não respondeu, é claro. Já estava recomposto. Mas sei que isso o atormenta em todos estes anos. Ele se culpa pelo que aconteceu.
— Não devia — garantiu Gabriel.
— Nem sequer pôde ter luto devidamente, certo? O Governo disse ao mundo que a esposa e o filho do diplomata israelense tinham morrido. Enterrou seu filho em segredo no Monte das Oliveiras, só você, Ari e um rabi, e escondeu sua mulher na Inglaterra, com um nome falso. Mas Khaled a encontrou. Ele sequestrou sua mulher e usou-a para te atrair à Gare de Lyon. — Uma lágrima escorreu pela face de Gilah. Gabriel limpou-a e sentiu que a pele enrugada continuava macia como veludo. — Tudo porque meu marido foi a sua procura numa tarde de setembro, há tanto tempo. Sua vida podia ter sido tão diferente. Podia ter sido um grande artista. Em vez disso, transformamos você num assassino. Por que não ficou amargo, Gabriel? Por que não odeia Ari, como os filhos?
— O rumo da minha vida foi traçado no dia em que os alemães escolheram aquele cabo austríaco para seu chanceler. Ari foi apenas o homem do leme no turno da noite.
— É assim tão fatalista?
— Acredite, Gilah, atravessei um período em que não suportava olhar para Ari. Mas acabei por entender que sou mais parecido com ele do que imaginava.
— Talvez tenha sido essa qualidade que ele viu em seu relatório do exército.
Gabriel esboçou um sorriso. — Talvez tenha sido.
Gilah passou com os dedos pelo rasgão no blusão de Shamron.
— Sabe a história deste rasgão?
— É um dos grandes mistérios no Escritório — declarou Gabriel. — Há um sem-número de teorias sobre como pode ter acontecido, mas ele sempre se negou a contar.
— Foi na noite do atentado em Viena. Ari tinha pressa de chegar ao Boulevard King Saul. Quando entrava no carro, o blusão ficou preso na porta e rasgou. — Passou com o dedo ao longo do rasgo. — Tentei remendá-lo muitas vezes, mas ele nunca me deixou. Era por Leah e Dani, dizia. Passou estes anos todos usando um blusão rasgado pelo que aconteceu com sua mulher e seu filho.
O telefone tocou. Gabriel atendeu e escutou em silêncio por um instante.
— Estou a caminho — disse, momentos depois, e desligou.
— Era o primeiro-ministro. Quer falar comigo imediatamente. Volto assim que puder.
— Não se preocupe, Gabriel. Yonatan está quase chegando.
— Eu volto, Gilah.
O tom da voz saiu-lhe com um certo excesso de dureza. Beijou a face dela de um modo apologético e levantou-se. Gilah agarrou-lhe o braço quando Gabriel se dirigia à porta.
— Leve isso — disse, estendendo-lhe o blusão de Shamron. Ele gostaria que ficasses com ele.
— Não fale como se ele não fosse sobreviver.
— Leva o blusão e vai embora. — Ofereceu-lhe um sorriso amargo. — Não deixa o primeiro-ministro à espera.
Gabriel saiu para o corredor e apressou-se a chegar aos elevadores. Não pode deixar o primeiro-ministro esperando. Era o que Gilah dizia sempre a Shamron, quando este partia.
Um carro e um destacamento de segurança aguardavam à entrada do centro médico. Apenas precisaram de cinco minutos para chegarem ao Gabinete do primeiro-ministro, no número 3 da Rua Kaplan. Os guardas levaram Gabriel para o interior do edifício através de uma entrada subterrânea e acompanharam-no escadas acima, até o gabinete espaçoso de uma sobriedade inesperada no último andar. A sala estava na obscuridade. Banhado por um círculo de luz, o primeiro-ministro encontrava-se à secretária. Parecia mínimo, devido ao retrato imponente do líder sionista Theodore Herzl pendurado na parede atrás de si. Passara mais de um ano desde que Gabriel estivera na sua presença. Nesse tempo, o cabelo prateado embranquecera e os olhos castanhos tinham assumido o ar lacrimoso de um velho. A reunião do Escritório de Segurança terminara havia pouco e o primeiro-ministro estava sozinho, excepto pela presença de Amos Sharret, o novo diretor-geral do Escritório, sentado numa pose rígida num cadeirão de pele.
Gabriel apertou-lhe a mão pela primeira vez.
— É um prazer conhecê-lo finalmente — cumprimentou Amos. — Gostaria que as circunstâncias fossem outras.
Gabriel sentou-se.
— É a jaqueta de Shamron — comentou o primeiro-ministro.
— Gilah insistiu para que ficasse com ela.
— Fica-lhe bem. — Sorriu, absorto. — Sabe, está até ficando parecido com ele.
— Devo considerar a observação como um elogio?
— Ele era muito elegante, quando jovem.
— Shamron nunca foi jovem, Excelência.
— Nenhum de nós foi. Todos envelhecemos antes do tempo. Abdicamos da nossa juventude para construir este país. Shamron não tem um dia de folga desde 1947. E é assim que tudo termina? — O primeiro-ministro abanou a cabeça. — Não, ele vai sobreviver. Acredite, conheço há mais tempo do que o Gabriel.
— Shamron é eterno. É o que diz Gilah.
— Eterno, talvez não, mas não vai ser morto por um bando de terroristas.
O primeiro-ministro olhou de relance para o relógio.
— Queria falar comigo?
— A promoção para chefe de Operações Especiais.
— Já aceitei o cargo.
— Eu sei, mas talvez não seja a melhor hora.
— Posso perguntar por quê?
— Porque a sua atenção tem que se concentrar na descoberta e na punição dos homens que fizeram isto a Shamron.
O primeiro-ministro silenciou repentinamente, como se pretendesse dar a Gabriel a oportunidade de apresentar a sua objecção. Gabriel permaneceu imóvel, o olhar nas mãos.
— Surpreende-me — comentou o primeiro-ministro.
— Como assim?
— Receava que fosse dizer para encontrar outra pessoa para fazê-lo.
— Não se contradiz o primeiro-ministro.
— Mas com certeza existe outro motivo.
— Estava em Roma quando os terroristas atacaram o Vaticano, e acompanhei Shamron ao carro. Ouvi a bomba explodir. — Fez uma pausa. — Esta rede, sejam eles quem forem, e quaisquer que sejam os seus objetivos, tem de ser eliminada... depressa.
— Parece querer vingança.
Gabriel ergueu o olhar das mãos.
— E quero, Excelência. Talvez, dadas as circunstâncias, não seja a pessoa indicada para a missão.
— Na verdade, e dadas as circunstâncias, é o homem ideal. Foi Amos quem disse.
Gabriel virou-se e observou-o com atenção pela primeira vez. Era um homem baixo e entroncado, com uma forma quadrada. Tinha uma franja monacal de cabelo escuro e uma fronte carregada. Detinha ainda a patente de general da FDI, mas trajava agora um fato de um cinza-claro. A sua sinceridade era uma mudança agradável. Lev sempre tivera uma personalidade de dentista, eternamente em busca de fraquezas e de podres. O estilo de Amos aproximava-se mais de um carpinteiro. Gabriel teria de ser cuidadoso, para não vir a ser vítima do martelo.
— Mas veja se a sua raiva não lhe tolda o raciocínio — acrescentou Amos.
— Isso nunca se passou — asseverou Gabriel, sustendo-lhe o olhar sombrio.
Amos ofereceu-lhe um sorriso frio, como se dissesse, Comigo não vai haver destruição de estações de trens francesas, seja qual for a circunstância. O primeiro-ministro chegou-se à frente e apoiou-se sobre os cotovelos.
— Acredita que os sauditas foram os responsáveis?
— Temos algumas provas que apontam para uma ligação saudita com a Irmandade de Alá — adiantou Gabriel, à cautela —, mas precisamos demais informações antes de começarmos a procurar um indivíduo específico.
— Como Ahmed bin Shafiq, por exemplo.
— Sim, Excelência.
— E se for ele?
— Na minha opinião, estamos a lidar com uma rede, e não com um movimento. Uma rede sustentada pelo dinheiro saudita. Se cortarmos a cabeça, a rede morre. Mas não vai ser fácil, Excelência. Sabemos muito pouco acerca dele. Nem sequer conhecemos a sua verdadeira aparência. Também será complicado a nível político, devido aos americanos.
— Não vai ser complicado de todo. Ahmed bin Shafiq tentou matar o meu conselheiro mais chegado, por isso Ahmed bin Shafiq tem de morrer. — E se ele estiver a agir a mando do príncipe Nabil, ou de alguém da Família Real, uma família com uma relação histórica e econômica muito próxima do nosso aliado mais importante? — Em breve o saberemos.
O primeiro-ministro lançou um olhar a Amos.
— O Adrian Carter, da CIA, gostaria de falar com você — disse Amos. — Fiquei de viajar para Washington amanhã, para o deixar ao corrente das nossas informações sobre o atentado no Vaticano.
— O Carter pediu uma alteração do local de encontro. — Onde se quer reunir?
— Em Londres.
— Porquê Londres?
— Foi sugestão do Carter — explicou Amos. — Queria um local neutro.
— Desde quando uma casa de segurança da CIA em Londres é terreno neutro? — Gabriel olhou para o primeiro-ministro e depois para Amos. — Não quero deixar Jerusalém... pelo menos até saber se Shamron vai sobreviver.
— Carter diz que é urgente — contrapôs Amos. — Quer encontrar com você amanhã à noite.
— Então mande outra pessoa.
— Não podemos — interveio o primeiro-ministro. — Você foi o único convidado.
C0NTINUA
Gabriel Allon, restaurador de arte e espião, está prestes a enfrentar o maior desafio de sua vida. Um alegado simpatizante da Al-Qaeda é morto em Londres, e no seu computador são encontradas fotos que levam o serviço secreto israelense a desconfiar de que a organização terrorista prepara um dos mais arrojados atentados no coração do Vaticano.
Allon avisa seu velho amigo, monsenhor Luigi Donati, secretário pessoal do Papa, e parte para Roma a fim de ajudar na segurança.
O que nem ele nem Donati sabem é que o inimigo já se infiltrou no Vaticano. Nas semanas seguintes, Allon travará mortífero duelo de astúcia contra um dos homens mais perigosos do mundo, que o levará de uma galeria londrina a uma ilha paradisíaca no Caribe, a um isolado vale na Suíça e, por fim, de volta ao Vaticano. Allon monta uma armadilha e espera não ser ele a presa.
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PARTE UM
A Porta da Morte
1
LONDRES
Foi Ali Massoudi quem, involuntariamente, arrancou Gabriel Allon de sua aposentadoria breve e inquieta: Massoudi, o grande inteletual e livre-pensador eurófilo que, num momento de pânico, se esqueceu de que os ingleses dirigem do lado esquerdo da estrada.
O cenário de sua morte foi um fim de tarde chuvoso de outubro, em Bloomsbury. A data, a sessão final do primeiro Fórum Político anual para a Paz e Segurança na Palestina, Iraque e Países Vizinhos. A conferência tivera início nessa manhã bem cedo, por entre votos de esperança e grande fanfarra. Ao fim do dia, contudo, assumira a qualidade de uma peça medíocre em digressão. Até mesmo os manifestantes que ali tinham comparecido, na esperança de partilhar um pouco da luz da ribalta, pareciam ter consciência de que representavam um guião já muito batido. O presidente americano foi queimado em efígie às dez. O primeiro-ministro israelense foi lançado às chamas purificadoras às onze. Por volta da hora de almoço, sob um dilúvio que por momentos transformou Russell Square num lago, tivera lugar uma qualquer tolice relacionada com os direitos das mulheres na Arábia Saudita. Às oito e meia, quando o painel final foi dado por encerrado, as duas dúzias de estoicos que tinham permanecido até o fim arrastaram-se para as saídas. Os organizadores do acontecimento detetaram pouco apetite para uma repetição do encontro, no Outono seguinte.
Um aderecista adiantou-se e removeu do púlpito um cartaz que dizia: Gaza foi libertada — e agora? O primeiro congressista a levantar-se foi Sayyid, da London School of Economics, defensor dos homens-bomba suicidas e apologista da Al-Qaeda. Em seguida, o austero camareiro-mor de Cambridge, que falava da Palestina e dos judeus como se estes ainda fossem uma pedra no sapato dos elementos sisudos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ao longo de toda a discussão, o idoso camareiro servira de Muro de Separação entre o inflamável Sayyid e uma pobre alma da embaixada israelense, chamada Rachel, que suscitara apupos e vaias de desaprovação sempre que abrira a boca. O camareiro procurava agora servir de soldado da paz, com Sayyid a perseguir Rachel até a porta, lançando-lhe invetivas em que lhe dizia que os dias de colonizadora chegavam ao fim.
Ali Massoudi, professor de Administração Global e de Teoria Social da Universidade de Bremen, foi o último a levantar-se. Tal não seria de surpreender, poderiam ter dito os colegas invejosos, pois no mundo incestuoso dos estudos sobre o Oriente Médio, Massoudi tinha a reputação de ser alguém que nunca abandonava de bom grado um palco. Palestino de nascimento, jordano de passaporte e europeu de formação e estudos, o professor Massoudi surgia ao mundo como um homem moderado. O futuro brilhante da Arábia, assim lhe chamavam. O rosto do progresso. Era conhecido por desconfiar da religião em geral e do islamismo militante em particular. Aproveitava todas as oportunidades, quer fosse em editoriais de jornais, nas salas de aula ou na televisão, para se lamentar da disfunção vivida pelo mundo árabe. Do seu fracasso em educar o povo. Da tendência para culpar os Americanos e os Sionistas pelas maleitas de que padecia. O seu último livro fora basicamente um apelo a uma Reforma Islâmica. Os membros da jihad acusaram-no de ser herege. Os moderados proclamaram que tinha a coragem de Martinho Lutero. Nessa tarde, argumentara, para consternação de Sayyid, que a bola se encontrava no campo palestino. Enquanto os Palestinos não abandonassem a cultura do terror, alertara Massoudi, não se poderia esperar que os Israelitas cedessem um milímetro que fosse da Cisjordânia. Nem o deveriam fazer. Sacrilégio, bradara Sayyid. Apostasia.
O professor Massoudi era alto, tendo um pouco mais de um metro e oitenta de altura, e era demasiado bem-apessoado para um homem que trabalhava com jovens mulheres impressionáveis. Tinha o cabelo escuro e encaracolado, malares largos e fortes e um queixo quadrado com uma covinha marcada ao centro. Os olhos castanhos e profundos conferiam-lhe ao rosto um ar de inteligência acentuada e tranquilizadora. Vestido como estava, com um casaco desportivo de caxemira e uma camisola de gola alta creme, parecia o arquétipo do inteletual europeu. Era uma imagem que lhe dava muito trabalho a transmitir. Com gestos deliberados, guardou metodicamente os papéis e as canetas na pasta coçada e desceu os degraus do palco, ao que se dirigiu ao corredor central, em direção à saída.
Vários elementos da assistência demoravam-se na entrada. A um lado, uma ilha tempestuosa no centro de um mar de tranquilidade, estava a garota. Vestia jeans desbotados, um blusão de couro e um kaffiyeh palestino axadrezado ao pescoço. O cabelo preto brilhava como a asa de um corvo. Os olhos eram também quase pretos, mas cintilavam com outro fulgor. Seu nome era Hamida al-Tatari. Dissera ser refugiada. Nascera em Ama, fora criada em Hamburgo e era agora uma cidadã canadiana que residia no Norte de Londres. Massoudi conhecera-a nessa tarde, durante uma recepção na associação de estudantes. Com um café na mão, acusara-o com fervor de mostrar insuficiente afronta contra os crimes dos americanos e dos judeus. Massoudi gostara do que vira. Tinham combinado tomar uma bebida nesse serão, no bar ao lado do teatro de Sloane Square. As intenções dele não eram românticas. Não queria o corpo de Hamida. Queria o seu entusiasmo e o seu rosto limpo. O inglês perfeito e o passaporte canadiano. A jovem lançou-lhe um olhar furtivo quando ele cruzou o hall, mas não tentou falar-lhe. Mantém a distância após o simpósio, indicara-lhe ele nessa tarde. Um homem da minha posição tem de ter cuidado com quem é visto. No exterior, abrigou-se por um momento debaixo do pórtico e olhou o trânsito que se arrastava ao longo da estrada molhada. Sentiu alguém a encostar-se ao seu cotovelo e depois observou Hamida a mergulhar silenciosamente na chuvada. Esperou que desaparecesse, pendurou a pasta no ombro e afastou-se na direção oposta, para o hotel em Russell Square.
Deixou-se transformar, a mudança que ocorria sempre que alternava entre vidas. A aceleração do ritmo cardíaco, o aguçar dos sentidos, a repentina inclinação para os pormenores. Como o jovem calvo que vinha em sua direção, ao abrigo de um guarda-chuva, e cujo olhar pareceu demorar-se no rosto de Massoudi por um instante mais do que deveria. Ou o vendedor do quiosque que fitara, sem pudor, seus olhos, quando comprara o Evening Standard. Ou o taxista que o observou, trinta segundos depois, quando jogou esse mesmo jornal numa lixeira em Upper Woburn Place.
Um ônibus cruzou com ele. Enquanto passava ruidosamente, Massoudi espiou as janelas embaciadas e viu uma dúzia de rostos cansados, quase todos negros ou castanhos. Os novos londrinos, pensou, e, por um instante, o professor de Administração Global e Teoria Social debateu-se com as implicações. Quantos apoiariam em silêncio a sua causa? Quantos assinariam por baixo, se lhes apresentasse um contrato de morte?
Logo depois de o ônibus ter passado, viu no passeio oposto um único pedestre: capa de plástico, rabo-de-cavalo, duas linhas estreitas como sobrancelhas. Massoudi reconheceu-o de imediato. O jovem estivera na conferência, na mesma fila de Hamida, mas no lado oposto do auditório. Ocupara o mesmo lugar nessa manhã, quando Massoudi fora a única voz opositora durante uma discussão sobre os benefícios da proibição de acadêmicos israelenses nas costas europeias. Massoudi baixou os olhos e continuou a andar, levando involuntariamente a mão à alça da pasta. Estaria a ser seguido? Se assim fosse, por quem? O MI5 seria a explicação mais plausível. A mais provável, pensou, mas não a única. A BND alemã poderia tê-lo seguido de Bremen até Londres. Ou talvez estivesse vigiado pela CIA.
Mas foi a quarta possibilidade que fez o coração de Massoudi dar um salto no peito. E se o homem não fosse inglês, nem alemão, nem americano? E se trabalhasse para um serviço de espionagem que mostrava poucos escrúpulos em liquidar os inimigos, mesmo nas ruas das capitais estrangeiras? Um serviço de espionagem que usava habitualmente mulheres como isca? Pensou no que Hamida lhe dissera nessa tarde.
— Vivi quase toda a minha infância e juventude em Toronto.
— E antes disso?
— Aman, em pequena. Depois um ano em Hamburgo. Sou palestina, professor. Meu lar é uma mala.
Massoudi saiu de repente de Woburn Place, entrando no labirinto de ruas secundárias de St. Pancras. Abrandou depois de alguns passos e olhou por cima do ombro. O indivíduo de oleado atravessara a rua e seguia-o. Estugou o passo e dobrou algumas esquinas, à direita e à esquerda. Passou por uma fiada de casas antigas restauradas, por um bloco de apartamentos, por uma praça vazia, coberta de folhas secas. Massoudi não prestava atenção a nada disso. Tentava orientar-se. Conhecia razoavelmente as artérias principais de Londres, mas as ruas secundárias eram um mistério. Ignorou os cuidados do ofício e passou a olhar para trás com regularidade. A cada vislumbre, o homem parecia um ou dois passos mais próximo.
Chegou a um cruzamento, olhou para a esquerda e viu o trânsito intenso de Euston Road. Sabia que do lado oposto ficavam as estações de Kings Cross e de St. Pancras. Tomou essa direção e, segundos depois, voltou a olhar por cima do ombro. O homem contornara a esquina e vinha atrás dele.
Começou a correr. Nunca fora grande atleta e os anos de vida acadêmica tinham-lhe roubado a preparação física. O peso do computador portátil que tinha na pasta era como uma âncora. A cada passada, a sua carga batia-lhe na anca. Firmou a pasta com o cotovelo e segurou a alça com a outra mão, mas isso obrigou-o a andar com um ritmo galopante desajeitado, que o atrasava ainda mais. Pensou em livrar-se do peso, mas resolveu manter a pasta. Se caísse nas mãos erradas, o computador seria uma arca do tesouro de informações. Operacionais, fotografias de vigilância, comunicações, contas bancárias... Deteve-se em Euston Road. Olhou por cima do ombro e viu o perseguidor continuar a avançar metodicamente na sua direção, de mãos nos bolsos, os olhos baixos. Olhou para a esquerda, viu asfalto vazio e desceu do passeio.
O gemido da buzina do caminhão foi o último som que Ali Massoudi ouviu. A pasta soltou-se com o impacto. Alçou voo, rodopiou algumas vezes no trajeto por cima da estrada e aterrou no passeio com um baque sólido. O homem da capa de oleado mal reduziu o passo quando se baixou para a agarrar pela alça. Pendurou-a ao ombro, atravessou a Euston Road e seguiu a multidão para Kings Cross.
2
JERUSALÉM
A pasta chegara a Paris de madrugada e, pelas onze horas, estava a ser levada para um bloco de escritórios anônimo no Boulevard King Saul, em Tel Aviv. Aí, os objetos pessoais do professor foram rapidamente investigados e o disco rígido do computador portátil submetido a um assalto por uma equipe de técnicos informáticos. Às três da tarde, as primeiras informações tinham sido enviadas para o Gabinete do primeiro-ministro, em Jerusalém, e às cinco, um dossiê com o material mais alarmante viajava no banco de trás de uma limusina Peugeot blindada que se dirigia à Rua Narkiss, uma ruela sossegada perto da Avenida Ben Yehuda.
O carro parou em frente do pequeno prédio de apartamentos que tinha o número 16. Ari Shamron, o antigo chefe do serviço secreto israelense e agora conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados com segurança e informações, saiu do banco traseiro. Rami, o chefe de olhos negros do destacamento especial de segurança, seguiu-o de perto. Shamron fizera multidões de inimigos durante a sua longa e agitada carreira. Devido ao emaranhado demográfico israelense, muitos deles encontravam-se a uma distância perigosamente curta. Mesmo em sua villa fortificada em Tiberíades, Shamron estava sempre cercado por guarda-costas. Fez uma breve pausa no acesso do jardim e olhou para cima. Era um pequeno edifício nada elegante de dois andares, construído em calcário de Jerusalém, com um eucalipto imponente à frente que lançava uma sombra agradável sobre as varandas da fachada. Os ramos da árvore agitavam-se com o primeiro vento frio de Outono, e da janela aberta no segundo andar vinha um odor forte a diluente.
No hall, Shamron olhou para a caixa do correio do apartamento número três e viu que não tinha nome. Dirigiu-se às escadas e subiu-as com lentidão. Era baixo e vestia, como habitualmente, calça caqui e blusão de couro puído com um rasgão no lado direito do peito. Tinha o rosto cheio de fissuras e o que lhe restava de cabelo grisalho fora cortado tão curto que era quase invisível. As mãos pareciam couro e estavam salpicadas de manchas de idade, e pareciam ter vindo de um homem com o dobro do tamanho. Uma delas segurava o dossiê.
Quando chegou ao segundo andar, a porta estava entreaberta. Chegou-lhe os dedos e empurrou-a com suavidade. O apartamento em que entrou fora cuidadosamente decorado por uma bela mulher ítalo-judaica de gosto impecável. Agora, a mobília, como a mulher, tinha desaparecido e o apartamento fora transformado no estúdio de um artista. Shamron teve de se recordar de que não era um artista. Gabriel Allon era um restaurador, um dos três ou quatro restauradores mais procurados do mundo. Encontrava-se de pé, à frente de uma tela enorme que representava um homem cercado por gatos avantajados de ar voraz. Shamron acomodou-se num banco sujo de tinta e observou-o a trabalhar durante alguns momentos. Sempre ficara espantado com a capacidade de Gabriel de imitar as pinceladas dos pintores renascentistas. Para Shamron, era uma espécie de truque, apenas mais um dos dons a serem utilizados, a par do conhecimento de línguas e da capacidade de sacar uma Beretta e colocá-la em posição de disparo no tempo que a maior parte dos homens demora para bater as palmas.
— Parece muito melhor do que quando chegou — comentou Shamron —, mas continuo sem entender por que haveria alguém que querer tê-lo em casa.
— Não vai para uma casa particular — retorquiu Gabriel, o pincel ainda na tela. — É uma peça de museu.
— Quem o pintou? — inquiriu Shamron repentinamente, como se perguntasse pelo responsável por um atentado de homem-bomba.
— A casa de leilões Bonhams de Londres achava que tinha sido Erasmo Quellinus — respondeu Gabriel. — Quellinus pode ter feito a base, mas para mim é óbvio que foi Rubens quem o terminou. — Passou a mão pela tela enorme. — As pinceladas dele estão um pouco por todo o lado.
— Qual a diferença?
— Uns dez milhões de libras — explicou Gabriel. — Julian vai se sair muito bem com este.
Julian Isherwood era um negociante de arte londrino, que por vezes trabalhava para o serviço secreto israelense. O departamento tinha um nome comprido que pouco tinha a ver com a verdadeira natureza do trabalho executado. Homens como Shamron e Gabriel referiam-se a ele como o Escritório, e nada mais.
— Espero que Julian pague bem.
— Os honorários de restauração, mais uma pequena comissão sobre a venda.
— Qual será o total?
Gabriel bateu com o pincel na paleta e voltou ao trabalho.
— Temos que falar — disse Shamron.
— Pois fale.
— Não vou falar para stuas costas. — Gabriel virou-se e olhou novamente para Shamron através das lentes do visor de ampliação. E também não vou falar contigo enquanto continuares com isso na cara. Até parece que saíste de um pesadelo. Com relutância, Gabriel pousou a paleta em cima da mesa de trabalho e retirou o visor, deixando ver um par de olhos de um tom verde-esmeralda brilhante. Tinha uma altura abaixo da média e o físico seco de um ciclista. O rosto era alto na testa e estreito no queixo, e tinha um nariz comprido e ossudo que parecia ter sido esculpido em madeira. O cabelo era muito curto e estava salpicado de grisalho nas têmporas. Devia-se a Shamron o fato de Gabriel ser restaurador de arte e não um dos melhores pintores da sua geração. Fora também por causa dele que ficara com as têmporas brancas quase da noite para o dia, quando tinha pouco mais de vinte anos. Shamron fora o oficial do serviço secreto escolhido por Golda Meir para encontrar e assassinar os perpetradores do Massacre de Munique de 1972, e um jovem e promissor estudante de arte chamado Gabriel Allon tinha sido o pistoleiro principal.
Passou alguns momentos a limpar a paleta e os pincéis, após o que se dirigiu à cozinha. Shamron sentou-se à pequena mesa e esperou que Gabriel virasse as costas, antes de acender rapidamente um dos seus cigarros turcos pestilentos. Ao ouvir o clique-clique familiar do velho isqueiro Zippo de Shamron, Gabriel apontou, exasperado, para o Rubens. Mas Shamron acenou com a mão e levou o cigarro aos lábios, numa atitude de desafio. Um silêncio confortável instalou-se entre os dois homens. Gabriel verteu água engarrafada para a chaleira e despejou algumas colheres de café na cafeteira. Shamron ouvia com agrado o vento nos eucaliptos do jardim. Sendo um homem profundamente secular, marcava a passagem do tempo não através das celebrações judaicas, mas sim pelo ritmo da terra: o dia em que as chuvas começavam, o dia em que as flores silvestres desabrochavam na Galileia, o dia em que o vento frio regressava. Gabriel conseguia ler-lhe o pensamento. Mais um Outono e ainda aqui estamos. A aliança não foi revogada.
— O primeiro-ministro quer uma resposta. — O olhar de Shamron continuava fito no pequeno jardim. — É um homem paciente, mas não vai esperar para sempre — Já lhe disse que terei uma resposta quando acabar o quadro. Shamron olhou para Gabriel.
— Será que a tua arrogância não tem limites? O primeiro-ministro do Estado de Israel quer que sejas chefe das Operações Especiais, e tu troca-lo por um pedaço de tela com quinhentos anos.
Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron despejou açúcar para o seu e mexeu-o violentamente uma única vez.
— Você mesmo disse que o quadro está quase terminado. Qual vai ser sua resposta?
— Ainda não decidi.
— Posso dar um conselho útil?
— E se eu não quiser seu conselho?
— Dou assim mesmo. — Shamron extinguiu a vida da guimba do cigarro. — Devia aceitar a oferta do primeiro-ministro, antes que ele procure outra pessoa.
— Ficaria muito feliz.
— Sério? E o que fará de sua vida? — Ao ter o silêncio como resposta, Shamron insistiu. — Deixe pintar um quadro, Gabriel. Vou dar o meu melhor. Não tenho seus dotes. Não venho de uma grande família de inteletuais germano-judaicos. Sou apenas um pobre judeu polaco cujo pai vendia vasos num carrinho de mão.
A terrível pronúncia polaca de Shamron acentuara-se. Gabriel não pôde deixar de sorrir. Sabia que sempre que Shamron desempenhava o papel de judeu oprimido de Lvov algo divertido se seguiria.
— Não tens para onde ir, Gabriel. Tu próprio o disseste, da primeira vez que te oferecemos este cargo. O que vais fazer quando acabares este teu Rubens? Tens mais algum trabalho à espera? — A pausa de Shamron foi teatral, pois sabia que a resposta seria negativa. — Não podes voltar à Europa, antes de seres oficialmente ilibado do ataque homem-bomba na Gare de Lyon. O Julian poderá enviar-te outro quadro, mas eventualmente também isso vai acabar, pois as despesas de embalagem e de envio vão delapidar-lhe a margem de lucro que já não é famosa. Percebes onde quero chegar, Gabriel?
— Perfeitamente. Está a tentar usar a minha situação infeliz como chantagem para me obrigar a aceitar as Operações.
— Chantagem? Não, Gabriel. Eu sei o que é a chantagem, e Deus sabe que já a usei para alcançar os meus objetivos. Mas isto não é chantagem. Estou a tentar ajudar-te.
— Ajudar?
— Diz-me uma coisa, Gabriel: o que estás a pensar fazer em relação ao dinheiro? — Eu tenho dinheiro.
— Que chega para viver como um eremita, mas que não é suficiente para viver. — Shamron ficou em silêncio durante alguns momentos e escutou o vento. — Está calmo, não está? Quase tranquilo. É tentador pensar que pode ficar assim para sempre. Mas não vai durar. Entregamos Gaza sem exigir nada em troca e a paga que eles nos deram foi eleger livremente o Hamas como líder. Não tarda nada vão querer a Cisjordânia e, se não cedermos a curto prazo, vai haver mais derrame de sangue, ainda pior do que a segunda intifada. Acredita, Gabriel, um dia tudo isso vai recomeçar. E não só aqui, mas por todo o lado. Julgas que estão indolentes? É claro que não. Estão a planejar a campanha seguinte. Andam a falar com o Osama e com os amiguinhos dele. Sabemos de fonte segura que a Autoridade Palestina está cheia de elementos da Al-Qaeda e seus simpatizantes. Também sabemos que estão a planejar grandes ataques contra Israel e contra alvos israelenses no estrangeiro, num futuro próximo. O Escritório também acredita que o primeiro-ministro é um alvo a abater, a par de alguns conselheiros principais.
— O senhor incluído?
— É claro — asseverou Shamron. — Afinal de contas, sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados com a segurança e com o terrorismo. Para eles, a minha morte seria uma tremenda vitória simbólica.
Voltou a olhar pela janela, para o vento que soprava entre as árvores. — É irônico, não achas? Este lugar devia ser o nosso santuário. Agora, por estranho que pareça, deixou-nos mais vulneráveis do que nunca. Quase metade de todos os judeus do mundo vivem nesta faixa de terra minúscula. Bastava um engenho nuclear pequeno. Os Americanos eram capazes de sobreviver. Os Russos talvez mal dessem por ele. Mas nós? Uma bomba em Tel Aviv ia matar um quarto da população do país... talvez mais.
— E precisa de mim para impedir esse apocalipse? Pensei que o Escritório estivesse em boas mãos.
— As coisas estão melhores desde que o Lev foi convidado a sair. O Amos é um líder nato, e um administrador de uma competência extraordinária, mas por vezes julgo que tem demasiado espírito de soldado dentro dele. — Foi chefe do Sayeret Matkal e do Aman. O que esperava?
— Sabíamos o que esperar do Amos, mas agora o primeiro-ministro e eu estamos preocupados que esteja a transformar O Boulevard King Saul num posto da FDI.
Queremos que o Escritório mantenha o seu caráter original.
— A insanidade?
— A coragem — contrapôs Shamron. — A audácia. Gostava que o Amos pensasse um pouco menos como comandante de batalha e um pouco mais como... — Fez uma pausa, enquanto procurava o termo correto. Quando o encontrou, esfregou os dois primeiros dedos no polegar e concluiu: — Como um artista. Preciso de alguém ao lado dele que pense como Caravaggio. — Caravaggio era louco.
— Exatamente.
Shamron fez menção de acender outro cigarro, mas desta vez Gabriel conseguiu deter seu movimento antes que acionasse o isqueiro. Shamron fitou-o, os olhos assumindo de súbito uma expressão séria.
— Precisamos de você já, Gabriel. Há duas horas, o chefe de Operações Especiais entregou a Amos a carta de demissão.
— Por quê?
— Londres. — Shamron olhou para a mão cativa. — Devolve minha mão? Gabriel largou o pulso grosso. Shamron rolou o cigarro apagado entre o polegar e o indicador.
— O que aconteceu em Londres? — perguntou Gabriel.
— Receio que ontem à noite tenhamos sofrido um contratempo.
— Um contratempo? Quando o Escritório tem um contratempo morre um.
Shamron anuiu.
— Mas pelo menos são consistentes.
— O nome Ali Massoudi diz alguma coisa a você?
— É professor de alguma coisa numa universidade alemã — retorquiu Gabriel. — Gosta de desempenhar o papel de iconoclasta e reformista. Cheguei a conhecê-lo.
As sobrancelhas de Shamron ergueram-se de surpresa.
— Sério? Onde?
— Foi a Veneza há uns dois anos, para um grande simpósio sobre o Oriente Médio. O roteiro dos participantes incluía visita guiada à cidade. Uma das paradas foi na Igreja de San Zaccaria, onde eu estava a restaurar o retábulo de Bellini.
Durante anos, Gabriel vivera e trabalhara em Veneza, dando pelo nome de Mario Delvecchio. Seis meses antes fora obrigado a fugir da cidade, depois de ter sido descoberto por um mestre terrorista palestino chamado Khaled al-Khalifa. O assunto terminara na Gare de
Lyon e, em consequência, o nome e o passado secreto de Gabriel fizeram as primeiras páginas da imprensa francesa e europeia, incluindo um artigo no The Sunday Times que o considerava o "Anjo da Morte de Israel". Era ainda procurado para ser interrogado pela Polícia de Paris, e um grupo de direitos civis palestino apresentara queixa em Londres, alegando crimes de guerra.
— E chegaste mesmo a falar com o Massoudi? — perguntou Shamron, incrédulo. — Apertaram as mãos?
— Como Mario Delvecchio, é claro.
— Imagino que não te tenhas apercebido de que estavas a apertar a mão a um terrorista.
Shamron enfiou a ponta do cigarro entre os lábios e acendeu o Zippo. Desta vez, Gabriel não interferiu.
— Há três meses recebemos uma informação de um amigo do GID jordano, que nos dizia que o professor Ali Massoudi, o grande moderado e reformista, era na verdade um caçador de talentos da Al-Qaeda. Segundo os jordanos, ele estava à procura de recrutas para atacar alvos israelenses e judaicos na Europa. As conferências de paz e as manifestações anti-israelenses eram o seu terreno de caça preferido. Não ficamos surpreendidos com essa parte. Há já algum tempo que sabemos que as conferências de paz se tornaram ponto de encontro entre operacionais da Al-Qaeda e extremistas europeus, tanto de esquerda como de direita. Decidimos que seria bom vigiar o professor Massoudi. Pusemos sob escuta o telefone do apartamento de Bremen, mas os resultados foram, no mínimo, decepcionantes. Era muito bom ao telefone. Depois, há cerca de um mês, a Estação de Londres contribuiu com uma informação oportuna. Ao que parece, a Secção Cultural da embaixada de Londres foi convidada a incluir um participante numa coisa chamada Fórum Político para a Paz e Segurança na Palestina, Iraque e Países Vizinhos. Quando a Cultural pediu uma lista dos outros participantes, imagina qual foi o nome que apareceu.
— O professor Ali Massoudi.
— A Cultural acedeu em enviar um representante à conferência, e as Operações Especiais começaram a vigiar o Massoudi.
— Que tipo de operação era?
— Simples — explicou Shamron. — Apanhá-lo com a mão na massa. Comprometê-lo. Ameaçá-lo. Dar-lhe a volta. Estás a imaginar? Um agente no interior do departamento de pessoal da Al-Qaeda? com a ajuda do Massoudi, poderíamos ter chegado à rede europeia.
— O que aconteceu?
— Pusemos uma garota à frente dele. Apresentou-se como Hamida al-Tatari. O nome verdadeiro é Aviva e é de Ramat Gan, mas isso pouco importa. Conheceu Massoudi durante uma recepção. Ele. ficou intrigado e acedeu a que se voltassem a encontrar nessa noite, para uma conversa mais elaborada sobre o estado atual do mundo. Seguimos o Massoudi depois da última sessão da conferência, mas, ao que parece, o professor detetou o agente e começou a fugir. Olhou para o lado errado quando atravessou a Euston Road e meteu-se à frente de um caminhão. Gabriel estremeceu.
— Felizmente não saímos de lá de mãos a abanar — prosseguiu Shamron. — O agente conseguiu resgatar a pasta de Massoudi. Lá dentro, entre outras coisas, estava um computador portátil. Ao que parece, o professor Ali Massoudi não era um mero caçador de talentos.
Shamron pousou o dossiê à frente de Gabriel e, com um aceno breve da cabeça, disse que deveria abrir a capa. Lá dentro, encontrou uma pilha de fotografias de vigilância: a Praça de S. Pedro a partir de vários ângulos; a fachada e o interior da Basílica; a Guarda Suíça de sentinela ao Arco dos Sinos. Era óbvio que as fotografias não tinham sido tiradas por um turista vulgar, pois o fotógrafo estivera muito menos interessado na estética visual do Vaticano do que nas medidas de segurança em seu redor. Havia várias imagens das barricadas no extremo ocidental da praça e dos detetores de metal ao longo da Colunata de Bernini, e muitas outras da Vigilanza e dos Carabinieri que patrulhavam a praça durante os ajuntamentos de pessoas, e que incluíam grandes planos das armas pessoais. As últimas três fotografias mostravam o papa Paulo VII a saudar a multidão na Praça de S. Pedro, a partir do papamóvel envidraçado. A lente da câmera não se focara no Santo Padre, mas sim nos elementos à paisana da Guarda Suíça que o acompanhavam.
Gabriel viu as fotografias uma segunda vez. Com base na qualidade da luz e nas roupas usadas pelas multidões de peregrinos, parecia que tinham sido tiradas em pelo menos três ocasiões diferentes. Sabia que a vigilância fotográfica repetida do mesmo alvo era caraterística de uma operação séria da Al-Qaeda. Fechou o dossiê e estendeu-o a Shamron, mas este não o aceitou. Gabriel olhou para o rosto do idoso com a mesma intensidade com que analisara as fotografias.
Sabia que se avizinhavam mais más notícias.
— A Técnica descobriu outra coisa no computador do Massoudi — disse Shamron. — Instruções sobre como acessar uma conta bancária em Zurique. Uma conta que já conhecemos há algum tempo, pois tem recebido infusões regulares de dinheiro de uma coisa chamada Comitê para a Libertação de Al-Quds.
Al-Quds era o nome árabe para Jerusalém.
— Quem está por trás dela? — questionou Gabriel.
— A Arábia Saudita — respondeu Shamron. — Mais concretamente, o ministro da Administração Interna da Arábia Saudita, o príncipe Nabil.
No Escritório, Nabil era conhecido por Príncipe das Trevas, devido ao seu ódio por Israel e pelos Estados Unidos, e pelo apoio concedido aos militantes islâmicos espalhados pelo mundo.
— Nabil criou o Comitê no auge da segunda intifada — prosseguiu Shamron. — É ele quem angaria o dinheiro e gere pessoalmente a sua distribuição. Acreditamos que tenha cem milhões de dólares à sua disposição e está a canalizá-lo para alguns dos mais violentos grupos terroristas do mundo, incluindo a Al-Qaeda. — Quem dá o dinheiro a Nabil?
— Ao contrário das outras obras de caridade sauditas, o Comitê para a Libertação de Al-Quds tem uma base de doadores muito pequena. Julgamos que Nabil recebe o dinheiro de um punhado de multimilionários sauditas.
Shamron olhou para o café por um instante.
— Caridade — disse, com um tom de desprezo. — Uma bela palavra, não é? Mas a caridade saudita sempre foi uma espada de dois gumes. A Liga Mundial Muçulmana, a Organização Internacional para o Apoio Islâmico, a Fundação Islâmica al-Haramayn, a Fundação Internacional para a Benevolência, tudo isto está para a Arábia Saudita como o Comintern estava para a antiga União Soviética. Um meio de propagação da fé. O islamismo. E não é um islamismo qualquer. O tipo de islamismo puritano da Arábia Saudita. O wahhabismo. As obras de caridade constroem mesquitas e centros islâmicos um pouco por todo o mundo, e madrassas que cospem os militantes wahhabis de amanhã. Também entregam verbas diretamente aos terroristas, incluindo os nossos amigos do Hamas. Os motores da América trabalham com petróleo saudita, mas as redes do terrorismo islâmico mundial trabalham em grande parte com dinheiro saudita.
— A caridade é o terceiro pilar do islamismo — comentou Gabriel.
— Zakat.
— E é uma qualidade muito nobre — asseverou Shamron —, exceto quando a akat acaba nas mãos de assassinos.
— Acha que Ali Massoudi tinha mais alguma ligação com os sauditas, além do dinheiro?
— Talvez nunca venhamos a saber, pois o grande professor já não está entre nós. Mas quem quer que seja o seu empregador, tem os olhos no Vaticano... e alguém tem que avisá-los.
— Imagino que já tenha pensado em alguém para a tarefa.
— Encare como sua primeira missão como chefe de Operações Especiais — disse Shamron. — O primeiro-ministro quer que assuma imediatamente.
— E Amos?
— Amos tem outro nome em mente, mas o primeiro-ministro e eu deixamos bem claro quem queremos no cargo.
— Meu cadastro tem sua conta de escândalos e, infelizmente, o mundo sabe deles.
— O caso da Gare de Lyon? — Shamron encolheu os ombros. — Caiu numa cilada armada por um adversário inteligente. Além disso, sempre acreditei que uma carreira livre de controvérsia nem sequer chega a ser uma carreira. O primeiro-ministro também é dessa opinião.
— Isso talvez seja por ter estado envolvido nos seus próprios escândalos. — Gabriel suspirou profundamente e voltou a olhar para as fotos. — Enviar-me a Roma acarreta riscos. Se os franceses descobrirem que estou em solo italiano...
— Não precisa ir a Roma — atalhou Shamron. — Roma vem até você.
— Donati?
Shamron anuiu.
— O que lhe disse?
— O suficiente para ter pedido à Alitalia que emprestasse um avião por algumas horas — disse Shamron. — Chega logo de manhã. Mostre as fotos. Conte o que for necessário para convencê-lo de que acreditamos que a ameaça é real.
— E se ele pedir ajuda?
Shamron encolheu os ombros.
— Dê tudo o que ele precisar.
3
JERUSALÉM
Às onze horas do dia seguinte, o monsenhor Luigi Donati, secretário pessoal de Sua Santidade, o papa Paulo VII, esperava por Gabriel no hall do Hotel Rei David.
Era alto, magro e elegante como um ídolo do cinema italiano. O corte do fato eclesiástico preto e o colarinho romano sugeriam que o monsenhor, embora casto, não era completamente isento de uma certa vaidade pessoal. A mesma indicação era transmitida pelo dispendioso relógio suíço que tinha no pulso e pela caneta de ouro alojada no bolso do peito do casaco. Nos olhos escuros brilhava uma inteligência feroz e inflexível, e a rigidez do maxilar revelava que era um homem perigoso quando contrariado. Os jornalistas do Vaticano descreviam-no como um Rasputin eclesiástico, o poder por trás do trono papal. Os seus inimigos na Cúria Romana referiam-se com frequência a Donati como sendo "o papa Negro", numa alusão pouco lisonjeira ao seu passado jesuíta. Tinham-se conhecido havia três anos. Gabriel investigava o assassínio de um estudioso israelense que vivia em Munique, um antigo agente do Escritório, chamado Benjamin Stern. O rasto de pistas levara Gabriel até o Vaticano, e até as mãos capazes de Donati, e juntos tinham destruído uma grave ameaça ao papado. Um ano mais tarde, Donati ajudara Gabriel a descobrir elementos num arquivo da Igreja que lhe tinham permitido identificar e capturar Erich Radek, um criminoso de guerra nazi que vivia em Viena. Mas a ligação entre Donati e Gabriel não se limitava a dois homens. O mestre de Donati, o papa Paulo VII, encontrava-se mais próximo de Israel do que qualquer dos seus antecessores alguma vez tinha estado, e dera passos monumentais para melhorar a relação entre Católicos e Judeus. Mante-lo vivo era uma das mais elevadas prioridades de Shamron.
Quando Donati avistou Gabriel a cruzar o hall, esboçou um sorriso caloroso e estendeu a mão comprida e morena.
— É um prazer vê-lo, meu amigo. Apenas gostaria que as circunstâncias fossem diferentes.
— Já deu entrada? Donati exibiu a chave.
— Vamos subir. Tenho de lhe mostrar uma coisa.
Dirigiram-se aos elevadores e entraram num que aguardava. Mesmo antes de Donati estender a mão para o painel, Gabriel soube que iria carregar no botão do sexto piso, como sabia que a chave na mão de Donati abria a porta do Quarto 616. A suíte espaçosa em frente às muralhas da Cidade Velha estava constantemente reservada para os assuntos do Escritório. A par dos luxos habituais, continha um sistema de gravação incorporado, o qual podia ser ativado por um interruptor minúsculo oculto por baixo do lavatório da casa de banho. Antes de mostrar as fotografias a Donati, Gabriel confirmou que o sistema estava desligado. Enquanto via cuidadosamente cada imagem, o rosto do padre não revelou qualquer emoção. Momentos depois, quando Donati foi até a janela olhar para a Cúpula da Pedra a cintilar à distância, Gabriel reparou que os músculos do maxilar do clérigo contraíam-se e descontraíam-se devido ao stresse. — Já passamos por isto muitas vezes, Gabriel. O Milênio, o Jubileu, quase sempre pelo Natal e pela Páscoa. Por vezes os alertas são-nos dados pelos serviços de segurança italianos, e de outras vezes chegam-nos pelas mãos dos nossos amigos da CIA. Respondemos sempre com um intensificar da segurança, até que se julgue que a ameaça já passou. Até agora, nada se concretizou. A Basílica continua de pé. Satisfaz-me poder dizer que o mesmo se passa com o Santo Padre.
— Mesmo que não tenham sido bem sucedidos, isso não quer dizer que não continuem a tentar, Luigi. Os terroristas da Al-Qaeda inspirados pelo wahhabismo veem todos os que não seguem o seu ramo do islamismo como kafur e mushrikun, merecedores unicamente da morte. Os kafur, os infiéis, e os mushrikun, os politeístas. Consideram até mesmo os muçulmanos sunitas e xiitas mushrikun, mas, para eles, o maior símbolo do politeísmo é o Vaticano e o Santo Padre.
— Entendo tudo isso, mas, como vocês dizem no Seder da sua Páscoa, por que será esta noite diferente de todas as outras?
— Está a perguntar-me por que deverão levar esta ameaça a sério?
— Precisamente.
— Por causa do mensageiro — explicou Gabriel. — O homem em cujo computador encontramos estas fotografias.
— De quem se trata?
— Receio não poder dizer-lhe.
Donati virou lentamente as costas à janela e olhou Gabriel com autoridade. — Revelei-lhe alguns dos maiores segredos da Igreja Católica Apostólica. O mínimo que pode fazer em troca é dizer-me onde conseguiram as fotografias.
Gabriel hesitou.
— O nome Ali Massoudi diz-lhe alguma coisa?
— O professor Ali Massoudi? — Donati assumiu uma expressão sombria. — Ele não foi morto em Londres, há duas noites?
— Ele não foi morto — corrigiu Gabriel. — Morreu num acidente.
— Meu Deus, Gabriel, por favor, não me diga que o empurrou para baixo daquele caminhão.
— Guarde a sua mágoa para alguém que a mereça. Sabemos que Massoudi angariava terroristas. E, com base naquilo que encontramos no seu computador portátil, também poderia ser um estratego.
— É pena que tenha morrido. Poderíamos tê-lo torturado até que nos revelasse o que queríamos ouvir. — Donati olhou para as mãos. Perdoe-me pelo meu tom sarcástico, Gabriel, mas não apoio a guerra ao terror que travamos. Nem o Santo Padre.
Donati voltou a olhar pela janela, para os muros da Cidade Velha. — É irônico, não é? É a primeira vez que visito esta sua cidade santa, e é esta a razão que me traz.
— A sério que nunca a tinha visitado? Donati abanou lentamente a cabeça.
— Quer ver onde tudo começou? Donati sorriu.
— Na verdade, nada me daria mais prazer.
Cruzaram o vale de Hinnom e subiram a encosta do monte até a muralha oriental da Cidade Velha. O caminho na base da parede encontrava-se nas sombras. Seguiram-no para sul, até a Igreja da Dormição, depois contornaram a esquina e atravessaram a Porta de Sião. Na Estrada do Bairro Judaico, Donati retirou um pedaço de papel do bolso das suas vestes eclesiásticas.
— O Santo Padre pediu-me que deixasse isto no Muro Ocidental.
Seguiram um grupo de haredim ao longo do Tiferet Yisrael. Donati, com a sua roupa negra, parecia fazer parte do grupo. No fim da rua, desceram os largos degraus de pedra que desciam até a praça à frente do muro. Uma longa fila estendia-se desde o posto de segurança. Após murmurar algumas palavras a uma agente da Polícia, Gabriel levou Donati à volta do detetor de metais, até a praça.
— Será que não faz nada como uma pessoa normal?
— Pode ir — disse Gabriel. — Eu espero aqui.
Donati virou-se e dirigiu-se inadvertidamente ao lado do muro reservado às mulheres. Com um estalar discreto da língua, Gabriel disse-lhe a zona reservada aos homens. Donati escolheu um kippab do cesto público e colocou-o de modo precário no topo da cabeça. Ficou defronte do muro por um momento, orando em silêncio, e depois enfiou o pequeno rolo de papel numa racha na pedra herodiana castanha.
— O que dizia? — perguntou Gabriel, quando Donati regressou.
— Era um apelo à paz.
— Devia tê-lo deixado ali em cima — sugeriu Gabriel, apontando na direção da mesquita Al-Aqsa.
— Gabriel mudou — notou Donati. — O homem que conheci há três anos nunca teria dito isso.
— Todos nós mudamos, Luigi. Já não há um campo de paz neste país, apenas um campo de segurança. Arafat não contou com isso quando enviou os homens-bomba suicidas.
— Arafat já morreu.
— Sim, mas vai ser preciso pelo menos uma geração para reparar os estragos que ele deixou. — Encolheu os ombros. — Quem sabe? Talvez as feridas da segunda intifada nunca venham a sarar.
— E por isso a matança vai continuar? Decerto não poderemos contemplar um futuro assim.
— É claro que podemos, Luigi. Sempre assim foi, por aqui. Deixaram o Bairro Judeu e dirigiram-se à Igreja do Santo Sepulcro.
Gabriel aguardou no adro enquanto Donati entrou, após ter rejeitado o guia turístico palestino que se lhe oferecera. Regressou dez minutos depois.
— Está escuro — comentou. — Muito sinceramente, é um pouco decepcionante.
— Receio que toda a gente diga o mesmo.
Deixaram o adro e percorreram a Via Dolorosa. Um grupo de peregrinos americanos, conduzidos por um monge de sotaina castanha com um balão de hélio na mão, aproximou-se deles, vindo da direção oposta. Donati observou o espetáculo com uma expressão divertida.
— Ainda acredita? — perguntou Gabriel de súbito. Donati demorou um instante a responder.
— Tal como já deve ter imaginado, a minha fé pessoal é uma questão bastante complexa. Mas acredito no poder da Igreja Católica enquanto força do bem, num mundo repleto de mal. E acredito neste papa.
— Quer dizer que é um homem sem fé, ao lado de um homem de grande fé. — Bem dito — asseverou Donati. — E quanto a si? Ainda acredita? Alguma vez acreditou? Gabriel deteve-se.
— Os Canaanitas, os Hititas, os Amalequitas, os Moabitas, todos eles desapareceram. Mas, por alguma razão, continuamos aqui. Será porque Deus estabeleceu uma aliança com Abraão há quatro mil anos? Quem sabe? — "Abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar" — citou Donati o capítulo vinte e dois do Gênesis.
— "Ela se apoderará das portas dos seus inimigos" — replicou Gabriel, concluindo a passagem. — E agora o meu inimigo quer essas portas de volta, e está disposto a fazer tudo, incluindo sacrificar o seu próprio filho, para as recuperar.
Donati sorriu com a interpretação engenhosa das Escrituras.
— Nós dois não somos muito diferentes. Ambos entregamos a nossa vida a poderes mais elevados. No meu caso, à Igreja. No caso do Gabriel, ao seu povo. — Fez uma pausa. — E à terra.
Percorreram mais um pouco da Via Dolorosa, até chegarem ao Bairro Muçulmano. Quando a rua ficou envolta em sombras, Gabriel subiu os óculos de sol para a testa. Vendedores palestinos olhavam-no com curiosidade a partir das bancas concorridas.
— Não há problema em estarmos aqui?
— Estamos seguros.
— Imagino que esteja armado.
Gabriel deixou que o silêncio fosse a sua resposta. O olhar de Donati manteve-se na calçada enquanto caminhavam e tinha a fronte morena franzida em concentração.
— Uma vez que sabe que Ali Massoudi está morto, poderemos imaginar que os camaradas dele também saibam?
— É claro.
— Também sabem que o computador continha aquelas fotografias? E que caíram nas suas mãos?
— É possível.
— Será que isso os poderá encorajar a acelerarem os planos?
— Ou poderá levá-los a adiar a operação, até que vocês e os italianos voltem a baixar a guarda.
Atravessaram o Porta de Damasco. Gabriel baixou os óculos quando entraram no mercado apinhado e cacofônico do outro lado das muralhas.
— Há uma coisa que devia saber acerca dessas fotografias — disse Donati. — Foram todas tiradas durante a audiência geral do Santo Padre, quando ele recebe peregrinos de todo o mundo na Praça de S. Pedro.
Gabriel parou de andar e olhou para a Cúpula da Pedra, dourada, que parecia flutuar acima das muralhas de pedra.
— A audiência geral tem lugar à quarta-feira, não é verdade?
— Exatamente.
Gabriel mirou Donati e disse:
— Hoje é terça-feira.
Donati olhou para o relógio.
— Pode dar-me boleia até o aeroporto? Se nos despacharmos, chegamos a Roma a horas de jantar.
— Nós?
— Paramos no seu apartamento a caminho da cidade, para que possa fazer a mala — disse Donati. — Em Roma tem estado a chover. Não se esqueça de levar uma capa.
Não era apenas uma capa que teria de levar, pensou Gabriel, enquanto guiava Donati pelo mercado cheio de gente. Ia também precisar de um passaporte falso.
4
CIDADE DO VATICANO
Era um gabinete um tanto ou quanto vulgar para um homem tão poderoso. O tapete oriental estava desbotado e puído e os cortinados eram pesados e baços. Quando Gabriel e Donati entraram, a pequena figura de branco sentada a uma secretária grande e austera fitava a tela de um televisor. Aí desenrolava-se uma cena de violência: chamas e fumo, sobreviventes cobertos de sangue que puxavam o cabelo e choravam os corpos esfacelados dos mortos. O papa Paulo VII, bispo de Roma, Pontifex Maximus, sucessor de S. Pedro, pressionou o botão Power do controle remoto e a tela ficou preta.
— Gabriel — disse. — É um prazer voltar a vê-lo.
O papa ergueu-se lentamente e ofereceu a mão pequena, não com o anel do pescador voltado para cima, como costumava fazer com a maior parte das pessoas, mas com a palma de lado. O aperto era ainda forte e os olhos que miravam Gabriel com cordialidade eram ainda vibrantes e límpidos. Gabriel esquecera-se de como Pietro Lucchesi era, na verdade, diminuto. Pensou na tarde em que Lucchesi surgira do conclave, uma figura delicada, a nadar na sotaina preparada à pressa, e mal visível acima da balaustrada da imponente galeria da Basílica. Um comentador da televisão italiana chamara-o de Pietro, o Improvável. O cardeal Marco Brindisi, o secretário de Estado reacionário que imaginara ser ele a sair do conclave vestido de branco, referira-se acidamente a Lucchesi como o "papa Acidental".
Para Gabriel, a imagem de Pietro Lucchesi que lhe vinha à mente primeiro seria sempre outra. Vê-lo de pé, na tribuna da Grande Sinagoga de Roma, dizendo palavras que nenhum papa alguma vez proferira. Destes pecados, e de outros que em breve serão revelados, apresentamos a nossa confissão, e imploramos o seu perdão. Não há palavras que descrevam o tamanho do nosso pesar. Na hora da sua maior necessidade, quando as forças da Alemanha nai os arrancaram das suas casas, nas mas à volta desta sinagoga, implorastes a nossa ajuda, mas as suas súplicas foram recebidas pelo silêncio. Por isso, ao implorar o seu perdão, fá-lo-ei da mesma forma. em silêncio...
O papa retomou o seu lugar e olhou para a tela, como se as imagens do massacre longínquo ainda lá estivessem para serem vistas.
— Avisei-o de que não o fizesse, mas não me deu ouvidos. Agora pretende vir à Europa recuperar a credibilidade junto dos seus antigos aliados. Desejo-lhe felicidades, mas acredito que as suas hipóteses sejam escassas.
Gabriel olhou para Donati em busca de uma explicação.
— A Casa Branca informou-nos ontem à noite que o presidente virá a Roma no início do próximo ano, para uma digressão pelas capitais europeias. Os homens do presidente esperam conseguir projetar uma imagem mais calorosa e menos conflituosa e reparar alguns dos estragos acarretados pela decisão de entrar em guerra com o Iraque.
— Uma guerra à qual me opus com veemência — lembrou o papa.
— Ele vem ao Vaticano? — perguntou Gabriel.
— Vem a Roma... pelo menos isso sabemos. A Casa Branca ainda não nos disse se o presidente gostaria de ter uma audiência com o Santo Padre. Esperamos que em breve nos chegue um pedido.
— Seria impensável que ele viesse a Roma sem passar pelo Vaticano — garantiu o papa. — Os católicos conservadores são parte importante do eleitorado. Vai querer a oportunidade de tirar uma foto e receber algumas palavras agradáveis de minha parte. Vai ter sua foto. Quanto às palavras agradáveis... — A voz do papa esmoreceu. — Receio que tenha de procurá-las noutro lado.
Donati convidou Gabriel a sentar-se e depois acomodou-se na cadeira ao lado. — O presidente é um homem que gosta de conversas francas, como os nossos amigos americanos gostam de dizer. Vai ouvir o que Sua Santidade tem a dizer.
— Devia ter-me ouvido logo ao início. Quando esteve no Vaticano, antes da guerra, deixei bem claro que acreditava que ele estava a embarcar numa viagem desastrosa. Disse-lhe que a guerra não se justificava, certo havia uma verdadeira ameaça iminente à América e aos seus aliados. Disse-lhe que ainda não esgotara todas as vias para evitar o conflito e que as Nações Unidas, e não os Estados Unidos, eram a autoridade competente para lidar com o problema. Mas guardei boa parte do meu ardor para o argumento final contra a guerra. Disse ao presidente que a América venceria uma batalha campal rápida. "Vocês são fortes", disse-lhe eu, "e o seu inimigo é fraco". Mas também previ que depois da guerra a América iria ver-se a braços com anos de insurreição violenta. Avisei-o que ao tentar resolver uma crise com violência, estaria apenas a criar outra ainda mais perigosa. Que a guerra seria vista pelo mundo islâmico como uma nova Cruzada dos cristãos brancos. Que o terrorismo não podia ser derrotado por mais terrorismo, mas apenas através de justiça econômica e social.
Tendo concluído a sua homilia, o papa olhou para a pequena assistência, à espera de uma reação. Os olhos deslocaram-se várias vezes, antes de repousarem em Gabriel.
— Algo me diz que pretende discordar de algo que eu tenha dito.
— Sua Santidade é um homem muito eloquente.
— Está entre amigos, Gabriel. Diga o que lhe vai na alma.
— As forças islâmicas radicais declararam-nos guerra... contra a América, contra o Ocidente, contra o Cristianismo, contra Israel. Segundo a lei de Deus, e as leis dos homens, temos o direito, até mesmo o dever moral, de resistir. — Resistam aos terroristas com justiça e oportunidades e não com violência e derrame de sangue. Quando os políticos recorrem à violência, quem sofre é a humanidade.
— Parece acreditar que o problema do terrorismo e do Islamismo radical poderia ser eliminado se eles fossem mais parecidos conosco. Que se a pobreza, o analfabetismo e a tirania não fossem tão comuns no mundo islâmico, não haveria jovens dispostos a sacrificar a vida para mutilar e matar os outros. Mas eles viram o nosso modo de vida e não querem ter nada que ver com ele. Viram a nossa democracia e rejeitaram-na. Veem a democracia como uma religião que vai contra os pilares do Islamismo, e por isso vão resistir-lhe com uma fúria sagrada. Como poderemos levar a justiça e a prosperidade a estes homens muçulmanos que só acreditam na morte?
— Decerto não poderão ser impostas com o cano da arma do homem branco. — Concordo, Sua Santidade. Só quando o Islamismo se reformar poderá existir justiça social e uma verdadeira prosperidade no mundo árabe. Mas entretanto não podemos ficar sentados sem fazer nada, enquanto os radicais muçulmanos tramam a nossa destruição. Também isso, Sua Santidade, é imoral. O papa levantou-se da secretária e abriu a grande janela em frente à Praça de S. Pedro. A noite caíra. Roma agitava-se a seus pés.
— Eu tinha razão quanto à guerra, Gabriel, e estou certo quanto ao futuro que nos aguarda a todos, Muçulmanos, Cristãos e Judeus, caso não escolhamos outro caminho. Mas quem irá escutar as minhas palavras? Não passo de um velho de sotaina que vive numa gaiola dourada. Nem mesmo os meus paroquianos me ouvem. Na Europa vivemos como se Deus não existisse. O Antiamericanismo é a nossa única religião. — Virou-se e olhou para Gabriel. — E o Antissemitismo.
Gabriel estava em silêncio. O papa comentou:
— O Luigi contou que descobriu provas de uma trama contra a minha vida. Mais uma trama — acrescentou, com um sorriso triste.
— Receio que assim seja, Sua Santidade.
— Não é irônico? Fui o único a tentar evitar a guerra no Iraque. Fui o único a tentar construir uma ponte entre os cristãos e os muçulmanos. Contudo, é a mim que querem matar. — O papa olhou pela janela. — Talvez estivesse errado. Talvez, afinal de contas, não queiram uma ponte.
Em geral, o papa Paulo VII e o monsenhor Donati jantavam sozinhos nos aposentos privados pontífices, com a companhia de um ou dois convidados. Donati fazia por manter um ambiente propositadamente leve e descontraído, e as conversas profissionais costumavam limitar-se aos mexericos curiais que o papa adorava em segredo.
Nesse serão, contudo, a atmosfera na sala de jantar papal era diferente. A lista 43 de convidados rapidamente elaborada consistia não de velhos amigos, mas de homens responsáveis pela proteção da vida do pontífice: o coronel Karl Brunner, comandante da Guarda Suíça Pontifical, o general Cario Marchese, dos Carabinieri, e Martino Bellano, diretor-adjunto do serviço de segurança italiano. Gabriel fez passar as fotografias e deixou-os a par de tudo no seu italiano marcado pelo sotaque veneziano. A apresentação foi menos detalhada do que a que fizera a Donati nessa manhã, em Jerusalém, e o nome de Ali Massoudi não foi mencionado. Mesmo assim, o tom das suas palavras não dava margem para dúvidas de que os serviços de espionagem israelenses consideravam a ameaça credível e de que era necessário tomar medidas para garantir a salvaguarda do pontífice e do território da Santa Sé. Quando acabou de falar, as expressões dos homens encarregues da segurança estavam sombrias, mas não havia uma sensação visível de pânico. Tinham passado por situações semelhantes inúmeras vezes, e juntos tinham preparado certos procedimentos automáticos para aumentar a segurança em redor do Vaticano e do Santo Padre, sempre que tal parecesse necessário. Gabriel ouviu os três homens reverem os procedimentos.
Durante uma pausa na conversa, pigarreou cuidadosamente.
— Deseja fazer alguma sugestão? — perguntou Donati.
— Talvez fosse aconselhável mudar a cerimônia de amanhã para o interior. Para a Câmara de Audiências papal.
— Amanhã o Santo Padre vai anunciar a beatificação de uma freira portuguesa — explicou Donati. — Esperamos vários milhares de peregrinos portugueses, a par da multidão habitual. Se mudarmos a audiência para a câmara, muitas dessas pessoas serão obrigadas a perdê-la.
— É melhor afastar alguns peregrinos do que expor o Santo Padre sem necessidade.
O papa olhou para Gabriel.
— Tem provas concretas de que os terroristas pretendem atacar amanha? — Não, Sua Santidade. É muito difícil obter informações operacionais desta natureza.
— Se mudarmos a audiência para a câmara e rejeitarmos boas pessoas, será que os terroristas não terão saído vencedores?
— Por vezes é melhor conceder uma pequena vitória ao adversário do que sofrer uma derrota devastadora.
— O seu povo é famoso por viver uma vida normal, mesmo sob a ameaça do terrorismo.
— Não deixamos de tomar medidas sensatas — contrapôs Gabriel. — Por exemplo, não se pode entrar na maioria dos locais públicos sem que se seja revistado. — Pois revistem os peregrinos e tomem outras medidas sensatas — retorquiu o papa —, mas amanhã à tarde vou estar na Praça de S. Pedro, onde é o meu lugar. E o seu trabalho é garantir que não acontece nada.
Pouco passava das dez horas quando Donati acompanhou Gabriel pela escadaria que ia do Palácio Apostólico à Via Belvedere. Caía uma névoa leve. Gabriel fechou o blusão e colocou o saco com a roupa ao ombro. Em mangas de camisa, Donati parecia ignorar o tempo. Manteve os olhos no pavimento quando passaram pela estação central dos correios do Vaticano, em direção à Porta de Santa Ana.
— Com certeza que não quer boleia?
— Até esta manhã, pensei que nunca mais pudesse voltar aqui. Vou aproveitar a oportunidade para andar um pouco.
— Se a Polícia italiana o prender antes de chegar ao seu apartamento, diga-lhes para me telefonarem. Sua Santidade vai atestar o seu bom caráter. — Caminharam em silêncio durante alguns instantes.
— Por que não regressa de vez?
— A Itália? Receio que Shamron tenha outros planos para a minha pessoa.
— Sentimos a sua falta — confessou Donati. — E Tiepolo também.
Francesco Tiepolo, amigo do papa e de Donati, era dono da melhor firma de restauração da região do Veneto. Gabriel restaurara-lhe dois dos melhores retábulos de Bellini. Quase dois, pensou. Tiepolo tivera de terminar o retábulo de San Giovanni Crisóstomo de Bellini, depois da fuga de Gabriel de Veneza. — Algo me diz que Tiepolo vai sobreviver sem mim.
— E Chiara?
Com seu silêncio taciturno, Gabriel deixou bem claro que não pretendia discutir o estado lastimoso da sua vida amorosa com o secretário particular do papa. Donati mudou habilmente de assunto.
— Lamento que o Santo Padre o tenha feito sentir-se posto em causa. Receio que ele tenha perdido muita da sua antiga paciência. Acontece-lhes a todos, depois de alguns anos de papado. Quando se é visto como o Vigário de Cristo, é difícil não se ganhar uma certa arrogância.
— Continua a ser a mesma alma gentil que conheci há três anos, Luigi. Apenas um pouco mais velho.
— Já não era jovem quando foi eleito para o cargo. Os cardeais queriam um papa de transição, alguém que mantivesse o trono de S. Pedro quente, enquanto os reformistas e os reacionários esclareciam suas diferenças. Como bem sabe, o meu mestre nunca teve intenção de ser uma mera figura de transição. Tem muito trabalho a fazer antes de morrer... coisas que talvez não agradem aos reacionários. É óbvio que não quero o seu mandato abreviado.
— Eu também não.
— Razão pela qual é o homem ideal para estar ao seu lado amanhã, durante a audiência geral.
— A Guarda Suíça e os ajudantes Carabinieri são bem capazes de tomar conta do seu mestre.
— São muito bons, mas nunca viveram um atentado terrorista a sério. — Pouca gente viveu — corroborou Gabriel. — E normalmente não sobrevivem para contar como foi.
Donati olhou para o companheiro.
— Gabriel sobreviveu — lembrou. — Esteve junto dos terroristas. E viu a expressão nos olhos de um homem antes de carregar no botão do detonador. Detiveram-se a poucos metros da Porta de Santa Ana. À esquerda ficava a Igreja de Santa Ana, redonda e da cor da manteiga, a igreja da paróquia da Cidade do Vaticano. À direita, a entrada para o aquartelamento da Guarda Suíça. Um dos guardas estava de sentinela ao portão, com a sua simples farda azul. — Que quer que eu faça, Luigi?
— Isso fica nas suas mãos capazes. Seja incômodo. Se vir um problema, faça por resolvê-lo. — com que autoridade?
— A minha — respondeu Donati, resoluto. Tirou do bolso da sotaina um cartão plastificado, o qual entregou a Gabriel. Era um cartão de identificação do Vaticano, com a marca do Escritório de Segurança. — Vai permitir-lhe o acesso a qualquer lado do Vaticano... excepto aos Arquivos Secretos, é claro. Receio não poder deixá-lo andar por aí.
— Já andei — recordou Gabriel, ao que enfiou o cartão no bolso e avançou para a rua. Donati esperou junto à Porta de Santa Ana até que Gabriel tivesse desaparecido na escuridão. Depois virou-se e regressou ao palácio. Embora só mais tarde se tivesse apercebido, murmurou uma ave-maria.
Gabriel atravessou a Ponte Umberto sobre o Tibre. Na margem oposta, virou à esquerda e dirigiu-se à Piazza di Spagna. A praça estava deserta e os Degraus Espanhóis brilhavam à luz dos postes, como madeira polida. Uma garota estava sentada no vigésimo oitavo degrau. Tinha o cabelo semelhante ao de Chiara e, por um instante, Gabriel pensou que pudesse mesmo ser ela. Ao subir mais um pouco, viu que se tratava apenas de Nurit, um correio carrancudo da Estação de Roma. A jovem entregou-lhe uma chave para o apartamento de segurança e, em hebraico, disse-lhe que atrás das latas de sopa na despensa encontraria uma Beretta pronta e um carregador adicional.
Subiu o resto dos degraus até a Igreja da Trinità dei Monti. A casa ficava a menos de cinquenta metros da igreja, na Via Gregoriana. Tinha dois quartos e uma pequena varanda. Gabriel foi buscar a Beretta à despensa e depois entrou no quarto maior. O telefone, como era hábito nesse tipo de casa, não tinha campainha, apenas uma luz vermelha que indicava quando estava a receber uma chamada. Deitado na cama com as roupas que vestira para se encontrar com o primeiro-ministro, Gabriel pegou no fone e marcou um número de Veneza. Foi uma voz de mulher que atendeu.
— O que foi? — perguntou a voz, em italiano. Não tendo uma resposta, resmungou uma praga e bateu com o telefone, com força suficiente para obrigar Gabriel a desviar o fone do ouvido, antes de voltar a pousá-lo gentilmente. Tirou a roupa e deitou a cabeça na almofada, mas, quando estava a adormecer, o quarto foi subitamente iluminado por um relâmpago. Começou a contar instintivamente para calcular a distância a que se encontrava a trovoada. Viu um rapazinho magro, de cabelo preto e olhos verdes como esmeraldas, a correr atrás dos relâmpagos nas colinas de Nazaré. O trovão explodiu antes de Gabriel contar até quatro. O prédio estremeceu.
Sucederam-se mais estrondos numa sucessão rápida e a chuva martelou a janela do quarto. Gabriel tentou adormecer, mas não foi capaz. Acendeu o abajur da mesa de cabeceira, abriu o dossiê que continha as fotografias retiradas do computador de Ali Massoudi, e observou-as lentamente uma a uma, decorando cada imagem. Uma hora depois, apagou a luz e reviu mais uma vez as imagens na sua mente. Um relâmpago faiscou por cima dos campanários da igreja. Gabriel fechou os olhos e contou.
5
CIDADE DO VATICANO
A chuva parara com a alvorada. Gabriel deixou cedo o apartamento e regressou ao Vaticano pelas ruas vazias. Ao atravessar o rio, a luz rosada banhava o pinheiro-manso no alto do Monte Janiculum, mas a Praça de S. Pedro estava mergulhada nas sombras e as lâmpadas dos postes ainda estavam acesas na Colunata. Um café estava aberto a pouca distância da Sala de Imprensa do Vaticano. Gabriel bebeu duas xícaras de cappuccino na esplanada e leu os matutinos. Nenhum dos principais diários romanos parecia saber que o secretário privado do papa visitara Jerusalém no dia anterior. Também não se sabia que na véspera a segurança italiana e a do Vaticano se tinham reunido na sala de jantar papal, onde se discutira uma ameaça terrorista à vida do Santo Padre.
Às oito horas, os preparativos para a audiência geral na Praça de S. Pedro estavam em marcha. Equipas de trabalho do Vaticano montavam cadeiras desdobráveis e barreiras metálicas temporárias na praça em frente à Basílica, e pessoal da segurança dispunha magnetômetros ao longo da Colunata. Gabriel saiu do café e foi até a barricada de aço que separava o território da Santa Sé do solo italiano. Agiu propositadamente de uma forma tensa e agitada, olhou várias vezes para o relógio e prestou uma atenção especial às operações dos magnetômetros. Em resumo, exibiu todos os comportamentos para os quais os Carabinieri e a Vigilanza, a força policial do Vaticano, deveriam estar alerta. Foram precisos dez minutos para que um carabiniere fardado se acercasse e lhe pedisse a identificação. Com um italiano perfeito, Gabriel informou o agente de que estava ligado ao Escritório de Segurança do Vaticano.
— As minhas desculpas — disse o carabiniere, e afastou-se.
— Espere — chamou Gabriel. O carabiniere deteve-se e virou-se.
— Não vai pedir-me a identificação? — O agente estendeu a mão. Lançou um olhar enfadado ao cartão e devolveu-o. — Não confie em ninguém — alertou Gabriel. — Peça sempre a identificação e, se desconfiar de alguma coisa, chame o seu superior.
Gabriel dirigiu-se à Porta de Santa Ana, onde um grupo de freiras de hábitos cinzentos recebia autorização para passar, dizendo simplesmente "Annona", o nome do supermercado do Vaticano. Experimentou a mesma táctica e, como as freiras, foi-lhe concedida a entrada no território do Vaticano. Logo a seguir ao posto de controle, exibiu a identificação do Vaticano e admoestou o guarda suíço com o seu alemão berlinense que aprendera com a mãe. Em seguida, voltou à rua. Momentos depois, surgiu um padre idoso, de cabelo muito branco, que informou o guarda suíço de que ia à farmácia do Vaticano. O guarda deteve o sacerdote ao portão, até que pudesse apresentar a identificação que retirou do bolso da sotaina.
Gabriel decidiu confirmar a segurança na outra entrada principal do Vaticano, o Arco dos Sinos. Aí chegou cinco minutos depois, a tempo de ver um cardeal da Cúria e os seus dois assistentes a passarem pelo arco, sem que o guarda suíço em sentido na sua guarita lhes prestasse a menor atenção. Gabriel exibiu seu cartão à frente dos olhos do guarda.
— Por que não pediu a identificação àquele cardeal?
— O chapéu cardinalício e a cruz peitoral são as suas identificações.
— Hoje, não — avisou Gabriel. — Confirme a identidade de todos.
Deu meia volta e percorreu o exterior da Colunata, a pensar nas cenas a que assistira. Pesasse embora a sua vastidão, a Praça de S. Pedro era, em grande medida, segura. Mas, a haver uma brecha na armadura do Vaticano, seria no número relativamente grande de pessoas com liberdade de movimentos atrás da praça. Pensou nas fotografias encontradas no computador de Ali Massoudi e interrogou-se se os terroristas teriam descoberto a mesma coisa.
Atravessou a praça até as Portas de Bronze. Não havia palavras mágicas para se atravessar aquela que era, basicamente, a entrada principal do Palácio Apostólico. O cartão de Gabriel foi examinado no exterior por um guarda suíço fardado e uma segunda vez no hall, por um guarda à paisana. A autorização do Escritório de Segurança permitia que entrasse no Palácio sem que assinasse a folha de entrada, mas foi-lhe exigido que deixasse a arma, o que fez com uma certa relutância.
Os degraus de mármore da Scala Regia erguiam-se à sua frente, cintilantes com o brilho dos enormes postes de ferro. Gabriel subiu até o Cortile di San Damaso e cruzou o pátio até o outro lado, de onde um elevador o levou até o segundo andar. Fez uma breve pausa na galeria para apreciar o fresco de Rafael e depois atravessou o vasto corredor até os aposentos papais. Donati, de sotaina com uma faixa escarlate, estava sentado à secretária no seu pequeno gabinete adjacente ao do papa. Gabriel entrou e fechou a porta.
— Quantas pessoas trabalham dentro do Vaticano? — disse Donati, repetindo a pergunta de Gabriel. — Cerca de metade.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Perdoe-me — lamentou Donati. — É uma velha piada do Vaticano. A resposta é cerca de mil e duzentas. O número inclui os padres e os prelados que trabalham na Secretaria de Estado e nas várias congregações e conselhos, bem como os respetivos funcionários laicos. Depois temos ainda os empregados laicos que fazem com que o Vaticano funcione: os guias turísticos, os jardineiros e todas as pessoas que tratam da manutenção, os funcionários de estabelecimentos como a estação dos correios, a farmácia e o supermercado. E ainda a equipe de segurança, é claro.
Gabriel exibiu o cartão de identificação do Vaticano. — E todos têm um cartão destes?
— Nem todos podem entrar no Palácio Apostólico, mas possuem credenciais que lhes dão acesso a outras seções do Vaticano que não as que estão abertas ao público.
— Refere-se à praça e à Basílica? — Exatamente.
— Qual o tipo de verificação de antecedentes que lhes é feita?
— Imagino que não se esteja a referir aos cardeais, aos bispos, aos monsenhores e aos sacerdotes.
— Deixemo-los à margem. — Gabriel franziu o sobrolho, ao que acrescentou: — Por agora.
— Os empregos no Vaticano são extremamente cobiçados. Os salários não são muito altos, mas todos os nossos funcionários têm benefícios nas compras na farmácia e no supermercado. Os preços são subsidiados e muito mais baixos do que no mercado italiano. O mesmo se passa com os preços na nossa bomba de combustível. Para além disso, os horários são razoáveis, as férias longas e as regalias são bastante boas.
— E fazem a confirmação dos antecedentes das pessoas que ficam com esses empregos?
Os postos são tão cobiçados, e são tão poucos, que vão quase sempre para alguém com ligações familiares, por isso a verificação de antecedentes é bastante superficial.
— Receava que assim fosse — admitiu Gabriel. — E quanto às pessoas como eu? Indivíduos com credenciais temporárias?
— Está a perguntar-me quantas são? — Donati encolheu os ombros. — Diria que há sempre várias centenas de pessoas com acesso temporário ao Vaticano.
— Como funciona o sistema?
— Geralmente estão ligadas a um dos vários conselhos ou comissões pontífices, como pessoal de apoio ou consultores profissionais. Os chefes de gabinete, ou um sub-secretário, garantem o caráter do indivíduo, e o Escritório de Segurança do Vaticano emite os cartões.
— O Escritório de Segurança guarda toda a papelada?
— É claro.
Gabriel levantou o fone do telefone e estendeu-o a Donati.
Passaram-se vinte minutos até que o telefone de Donati voltasse a tocar. Escutou em silêncio, depois desligou e olhou para Gabriel, que estava de pé à janela em frente à praça, a observar a multidão que nela entrava.
— Começam a selecionar a papelada.
— Começam?
— Foi preciso obter autorização do chefe, que estava numa reunião. Estará pronta daqui a um quarto de hora.
Gabriel viu a hora. Quase dez e meia.
— Mude a cerimônia para o interior — avisou.
— O Santo Padre nem quer ouvir falar nisso. — Donati juntou-se a Gabriel à janela. — Além do mais, é demasiado tarde. Os convidados já começaram a chegar. Instalaram-no numa cela minúscula, com uma janela encardida com vista para o Pado do Belvedere, e destacaram um carabiniere de ar ameninado chamado Luca Angelli para lhe trazer os arquivos. Restringiu a busca apenas a laicos. Nem mesmo Gabriel, um homem desconfiado por natureza, seria capaz de imaginar um cenário em que um padre católico fosse atraído, voluntária ou involuntariamente, para a causa da Al-Qaeda. Eliminou também da sua lista os membros da Guarda Suíça e da Vigilanza. Esta era composta quase na totalidade por antigos oficiais dos Carabinieri e da Polizia di Stato. Quando à Guarda Suíça, os seus elementos eram recrutados exclusivamente entre famílias católicas da Suíça, e provinham, na sua grande maioria, dos cantões franceses e alemães do centro montanhoso do país, longe de ser um baluarte de extremismo islâmico.
Começou com os funcionários laicos da cidade-estado do Vaticano. Para restringir os parâmetros da pesquisa, viu apenas os arquivos dos indivíduos contratados nos últimos cinco anos. Só isso levou-lhe quase trinta minutos. Quando acabou, tinha separado meia dúzia de arquivos para uma verificação mais aprofundada (um empregado de balcão da farmácia do Vaticano, um jardineiro, dois repositores do Annona, um porteiro do museu do Vaticano e uma mulher que trabalhava numa das lojas de recordações do Vaticano) e devolveu o resto a Angelli.
Os arquivos seguintes referiam-se aos funcionários laicos ligados às várias congregações da Cúria romana. As congregações eram o equivalente aproximado dos ministérios governamentais e tratavam de áreas centrais da administração eclesiástica, tais como a doutrina, a fé, o clero, os santos e a educação católica. Cada congregação era liderada por um cardeal, o qual tinha vários bispos e monsenhores abaixo de si. Gabriel viu os dossiês dos funcionários de cada uma das nove congregações e, não encontrando nada de interesse, devolveu-os a Angelli.
— O que falta?
As comissões e os conselhos pontífices — respondeu Angelli.
— E os outros gabinetes. — Outros gabinetes?
— A Administração do Patrimônio da Santa Sé, a Prefeitura dos Assuntos
Econômicos da Santa Sé...
— Estou a ver — atalhou Gabriel. — Quantos são?
Angelli abriu as mãos para indicar que a pilha tinha mais de trinta centímetros de altura. Gabriel viu a hora: 11h20...
— Traga-os.
Angelli começou pelas comissões pontífices. Gabriel separou mais dois arquivos para uma análise posterior, um consultor da Comissão para a Arqueologia Sagrada, e um estudioso argentino ligado à comissão pontífice para a América Latina. Devolveu o resto a Angelli e olhou para o relógio: 11h45... Prometera a Donati que ficaria de guarda ao papa na praça, durante a audiência geral, ao meio-dia. Já só tinha tempo para mais alguns arquivos. — Ignore os departamentos financeiros — disse Gabriel. Traga-me os arquivos dos conselhos pontífices.
Angelli regressou instantes depois com uma pilha de quinze centímetros de dossiês. Gabriel examinou-os pela ordem que Angelli os entregava. Conselho Papal do Laicado... Conselho Papal de Promoção da Unidade Cristã... Conselho Papal da Família... Conselho Papal de Justiça e Paz... Conselho Papal de Apoio a Migrantes e Povos Itinerantes... Conselho Papal de Textos Legislativos... Conselho Papal do Diálogo Inter-Refígioso...
Gabriel levantou a mão. Tinha encontrado o que procurava.
Leu durante um momento e depois ergueu abruptamente o olhar.
— Isto quer dizer que ele tem acesso ao Vaticano?
Angelli dobrou o corpo magro pela cintura e espiou sobre o ombro de Gabriel.
— O professor Ibrahim el-Banna? Está aqui há mais de um ano.
— Fazendo o quê?
— É membro de uma comissão especial que procura formas de melhorar as relações entre os mundos cristão e muçulmano. São doze membros ao todo, uma equipe ecumênica de seis estudiosos cristãos e de seis estudiosos muçulmanos que representam as várias seitas islâmicas e as escolas do direito islâmico. Ibrahim el-Banna é professor de jurisprudência islâmica na Universidade Al-Azhar, no Cairo. É um dos mais respeitados professores do mundo, da escola Hanafi de direito islâmico. A Hanafi é muito importante entre os...
— Muçulmanos sunitas — atalhou Gabriel, concluindo a frase de Angelli. — Vocês não sabem que Al-Azhar é um foco de militância islâmica? Está cheia de elementos da Al-Qaeda e da Irmandade Islâmica.
— É também uma das mais antigas e prestigiadas escolas de teologia e de direito islâmicos do mundo. O professor El-Banna foi escolhido para este lugar devido à sua posição moderada. Já se encontrou por várias vezes com o Santo Padre.
Em duas ocasiões estiveram sozinhos.
— Onde se reúne a comissão?
— O professor El-Banna tem um gabinete num edifício junto à Piazza Santa Marta, perto do Arco dos Sinos.
Gabriel olhou para o relógio: 11h55... Não tinha hipótese de falar com Donati, que naquele momento estaria com o papa, preparando-se para entrar na praça. Recordou as ordens que recebera na noite anterior, na Via Belvedere. Seja incômodo. Se vir um problema, faça por resolvê-lo. Levantou-se e olhou para Angelli.
— Gostaria de trocar umas palavras com o imã. Angelli hesitou. A iniciativa é muito importante para o Santo Padre. Se fizer uma acusação sem justa causa contra o professor El-Banna, ele vai sentir-se muito ofendido e o trabalho da comissão ficará em perigo.
— É melhor um imã furioso do que um papa morto. Qual é o caminho mais rápido para a Piazza Santa Marta?
— Utilizaremos o atalho — disse Angelli. — Através da Basílica. Atravessaram a passagem entre a Scala Regia e a Capela do Sagrado Sacramento, e depois cruzaram na diagonal a vasta nave. Por baixo do Monumento a Alexandre VII ficava uma porta que dava para a Piazza Santa Marta. Quando saíram para o sol intenso, fez-se ouvir um estrondo de aplausos vindo da Praça de S. Pedro. O papa chegara para a Audiência Geral. Angelli conduziu Gabriel através da pequena praça até um edifício de escritórios barroco de aspeto sombrio. No hall, uma freira estava sentada, imóvel, à mesa da recepção. Quando Gabriel e Angelli irromperam no edifício, fitou-os com um ar de desaprovação. — Ibrahim el-Banna — disse Angelli, sem mais explicações. A freira pestanejou rapidamente um par de vezes.
— Quarto quatro-doze.
Subiram a escada, com Angelli à frente e Gabriel logo atrás dele. Quando se ouviu mais uma onda de aplausos vinda da praça, Gabriel empurrou Angelli e o agente de segurança do Vaticano começou a subir os degraus dois de cada vez. Chegados ao Quarto 412, encontraram a porta fechada. Gabriel fez menção de agarrar na maçaneta, mas Angelli deteve-lhe a mão e bateu com firmeza, mas decoro.
— Professor El-Banna? Professor El-Banna? Está aí?
Tendo apenas o silêncio como resposta, Gabriel afastou Angelli e examinou a fechadura antiga. Com a esguia gazua de metal que tinha na carteira, seria capaz de abri-la numa questão de segundos, mas o novo clamor vindo da praça recordou-o de que não havia tempo. Agarrou a maçaneta com as duas mãos e lançou o ombro contra a porta, que resistiu. Atirou o corpo uma segunda vez de encontro à porta, e uma terceira. À quarta tentativa, Angelli juntou-se a ele. A ombreira fragmentou-se e os dois homens quase caíram para o interior do quarto.
A divisão estava vazia. Não apenas vazia, pensou Gabriel. Abandonada. Não havia livros, nem dossiês, não se viam canetas, nem papéis soltos. Apenas um envelope simples, deixado precisamente ao centro da secretária. Angelli levou a mão ao interruptor, mas Gabriel bradou-lhe para que não lhe tocasse, após o que voltou a empurrar o italiano para o corredor. Retirou do bolso do blusão uma caneta que utilizou como instrumento para examinar a densidade do conteúdo do sobrescrito. Ao ficar convencido de que apenas continha papel, agarrou-o e abriu-o com cuidado. Lá dentro estava uma única folha, dobrada em três, e que tinha escrito em árabe:
Declaramos guerra aos Cruzados, com a destruição do seu templo infiel ao politeísmo e com a morte do seu Supremo Pontífice, esse homem de branco que tratam como se fosse um deus. É esse o seu castigo pelos pecados do Iraque, por Abu Ghraib e pela Baía de Guantánamo. Os ataques continuarão até que o Iraque se liberte do jugo americano e a Palestina tenha sido arrancada das garras dos Judeus. Somos a Irmandade de Alá. Alá é o Deus único e todos o louvam. Gabriel correu escadas abaixo, com Angelli atrás de si.
6
CIDADE DO VATICANO
In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.
A voz do papa, amplificada pelo sistema de som do Vaticano, ressoou através da Praça de S. Pedro e pela Via delia Conciliazione. Vinte mil vozes replicaram: Amém.
Gabriel e Luca Angelli correram pela Piazza Santa Marta e depois ao longo da parede exterior da Basílica. Antes de chegarem ao Arco dos Sinos, Angelli virou à direita e entrou no Escritório de Autorizações, o principal controle de segurança para a maior parte dos visitantes do Vaticano. Se Ibrahim el-Banna tivesse introduzido mais alguém no Vaticano, a documentação estaria aí. Gabriel prosseguiu para o Arco dos Sinos. O guarda suíço de serviço baixou a alabarda num gesto defensivo, alarmado por ver um homem a correr na sua direção. Voltou a erguê-la quando Gabriel acenou com o cartão de identificação do Escritório de Segurança.
— Dê-me a sua arma — ordenou Gabriel.
— Desculpe?
— Dê-me a sua arma! — bradou Gabriel em alemão.
O guarda levou a mão ao interior da túnica renascentista multicolorida e retirou uma SIG-Sauer 9 mm bastante moderna. Nesse momento, Luca Angelli cruzou a arcada.
— Às onze e meia El-Banna trouxe uma delegação de três padres alemães para o Vaticano.
— Não são padres, Luca. São shaheeds. Mártires. — Gabriel olhou para a multidão reunida na praça. — E duvido que continuem no Vaticano. Devem estar ali, armados com explosivos e sabe Deus o que mais.
— Por que entraram no Vaticano pelo Arco dos Sinos?
— Para irem buscar as bombas, é claro. — Era a brecha na armadura do Vaticano. Os terroristas tinham-na descoberto graças à vigilância contínua e tinham utilizado a iniciativa de paz do Santo Padre para a explorar. — El-Banna deve ter levado as bombas para sua sala ao longo do tempo. Os shaheeds foram buscá-las quando receberam permissão de entrada no Gabinete de Autorizações e depois foram até a praça por um qualquer percurso sem detectores de metal.
— A Basílica — sugeriu Angelli. — Podem ter entrado na Basílica por uma porta lateral e saído pela frente. Podemos ter-nos cruzado com eles sem dar por nada. Gabriel e Angelli saltaram a vedação de madeira que separava a zona de entrada do Arco dos Sinos do resto da praça e subiram ao palco. O movimento súbito criou um burburinho pela assistência. Donati estava de pé atrás do papa. Gabriel foi até ele rapidamente e entregou-lhe a mensagem que encontrara no gabinete de El-Banna.
— Estão aqui.
Donati baixou o olhar, viu a escrita árabe e voltou a encarar Gabriel. — Encontramos na sala de El-Banna. Diz que vão destruir a Basílica. Diz que vão matar o Santo Padre. Temos de o tirar do palco. Já, Luigi.
Donati olhou para a multidão na praça: peregrinos católicos e dignitários de todo o mundo, crianças de branco, grupos de doentes e de idosos à espera de receber a bênção do pontífice. O papa estava sentado num trono cerimonial escarlate. Segundo a tradição herdada do seu antecessor, recebia os peregrinos nas suas línguas nativas, passando rapidamente de uma para a outra.
— E os peregrinos? — indagou Donati. — Como vamos protegê-los?
— Talvez seja demasiado tarde. Pelo menos para alguns. Se tentarmos avisá-los, vai instalar-se o pânico. Retire o Santo Padre da praça o mais depressa e discretamente possível. Depois começamos a evacuar a praça.
O coronel Brunner, comandante da Guarda Suíça, subiu também ao palco. Tal como os restantes elementos do destacamento de segurança pessoal do papa, vestia um fato completo escuro e usava um auricular. Quando Donati explicou a situação, o rosto de Brunner ficou pálido.
— Vamos levá-lo pela Basílica.
— E se tiverem escondido lá bombas? — interrogou Gabriel. Brunner abriu a boca para responder, mas as suas palavras foram abafadas por uma onda de choque escaldante. O som chegou um milésimo de segundo depois, um trovão ensurdecedor tornado ainda mais intenso pela vasta câmara de ressonância da Praça de S. Pedro. Gabriel foi impelido do palco, como um pedaço de papel levado por um temporal. O seu corpo voou e deu pelo menos uma volta no ar. Depois embateu nos degraus da Basílica e desmaiou.
Quando abriu os olhos, viu os Apóstolos de Cristo a olhá-lo do seu pouso no cimo da fachada. Não sabia quanto tempo estivera inconsciente. Alguns segundos, talvez, mas não mais do que isso. Com os ouvidos a retinir, sentou-se e olhou em volta. À sua direita estavam os prelados da Cúria que acompanhavam o papa no palco. Pareciam em choque e desalinhados, mas ilesos. À sua esquerda viu Donati, com Karl Brunner a seu lado. O comandante tinha os olhos fechados e sangrava com abundância de um ferimento na cabeça.
Gabriel levantou-se e olhou em seu redor.
Onde estava o papa?
Ibrahim el-Banna levara três padres para o Vaticano.
Gabriel imaginou que ainda fossem ocorrer mais duas explosões.
Encontrou a SIG-Sauer que pedira ao Guarda Suíço e gritou aos prelados que se baixassem. Depois, quando voltou a subir ao palco em busca de Lucchesi, a segunda bomba explodiu.
Outra onda de calor e vento escaldantes.
Mais um trovão.
Gabriel foi lançado para trás. Desta vez aterrou em cima de Donati. Voltou a levantar-se. Não conseguiu chegar ao palco antes da deflagração da terceira bomba.
Quando o estrondo acabou finalmente por esmorecer, Gabriel subiu à plataforma e testemunhou a devastação. Os shaheeds tinham-se distribuído uniformemente pela multidão perto da frente do palco: um junto às Portas de Bronze, o segundo no meio da praça e o terceiro perto do Arco dos Sinos. Deles apenas restavam três plumas de fumo negro que se elevavam para o céu limpo e azul. Nos pontos onde os homens-bomba tinham estado, as lajes do pavimento estavam escurecidas pelo fogo, ensopadas em sangue e cobertas de membros e fragmentos humanos. A pouca distância dos centros das explosões, era possível imaginar que os cadáveres desfeitos tinham sido seres humanos poucos momentos antes. As cadeiras desdobráveis que Gabriel vira serem montadas nessa manhã tinham-se espalhado como cartas, e havia sapatos um pouco por todo o lado. Quantos mortos? Centenas, pensou. Mas nesse momento a sua preocupação não se dirigia aos mortos, mas sim ao Santo Padre. Declaramos guerra aos Cruzados, com a destruição do seu templo infiel ao politeísmo...
Gabriel sabia que o ataque ainda não terminara.
Nesse instante, através da cortina de fumo negro, viu o desenrolar da fase seguinte. Uma van parara junto à barricada ao fundo da praça. Tinha as portas de carga abertas, de onde saíam três homens. Cada um empunhava um lançador de mísseis.
Foi então que Gabriel viu o trono onde o papa estivera sentado. Tinha sido derrubado pela força da primeira explosão e jazia agora ao contrário, nos degraus da Basílica. Por baixo dele via-se uma pequena mão com um anel de ouro... e a saia de uma sotaina branca, manchada de sangue.
Gabriel olhou para Donati.
— Eles têm mísseis, Luigi! Afaste todos da Basílica.
Saltou do palco e levantou o trono. O papa tinha os olhos fechados e sangrava de vários pequenos cortes. Quando Gabriel se baixou e aninhou o papa nos braços, ouviu o silvo inconfundível de um RPG-7 a aproximar-se. Virou a cabeça o suficiente para avistar o míssil a cruzar a praça, em direção à Basílica.
No instante seguinte, a ogiva bateu na cúpula de Miguel Angelo e explodiu, numa chuva de,-fogo, vidro e pedra. Gabriel protegeu o papa dos destroços, depois ergueu-o e começou a correr para as Portas de Bronze. Antes de chegarem ao abrigo proporcionado pela Colunata, o segundo míssil atravessou a praça. Acertou na fachada da Basílica, logo abaixo da balaustrada na galeria das Bênçãos.
Gabriel perdeu o equilíbrio e tombou nas lajes. Levantou a cabeça e viu o terceiro míssil a caminho. Seguia uma trajetória mais baixa dos que os anteriores e voava diretamente para o palco. No momento antes do impacto, Gabriel viu uma imagem de pesadelo: Luigi Donati em desespero, a tentar colocar em segurança os cardeais e os prelados da Cúria. Gabriel continuou baixo e protegeu o corpo do papa com o seu, no momento em que outra chuva de fragmentos caiu sobre eles.
— É você, Gabriel? — indagou o papa, com os olhos ainda fechados.
— Sim, Sua Santidade.
— Já acabou?
Três bombas, três mísseis: simbólico da Santíssima Trindade, pensou Gabriel.
Um insulto propositado aos mushrikun. — Sim, Sua Santidade. Creio que sim.
— Onde está Luigi?
Gabriel olhou para os restos em chamas do palco e viu Donati sair a cambalear do fumo, com o corpo de um cardeal morto nos braços.
— Está vivo, Sua Santidade. O papa fechou os olhos e murmurou:
— Graças a Deus.
Gabriel sentiu uma mão a apertar-lhe o ombro. Virou-se e viu um quarteto de homens de fatos azuis, de armas em riste.
— Largue-o — gritou um dos homens. — Nós levamo-lo. Gabriel fitou o homem por um instante, ao que abanou lentamente a cabeça.
— Eu o levo — declarou. Depois levantou-se e, rodeado por guardas suíços, transportou o papa até o Palácio Apostólico.
O prédio ficava perto da Igreja de Santa Maria, em Trastevere. Com três pisos, o exterior desbotado estava coberto de pó e de linhas telefônicas e ostentava grandes manchas de tijolos expostos. No rés-do-chão ficava uma pequena oficina de motorizadas que se estendia até a rua. À direita da oficina localizava-se a porta que dava acesso aos pisos superiores. Ibrahim El-Banna tinha a chave no bolso.
O ataque começara cinco minutos antes da saída de El-Banna do Vaticano. No Borgo Santo Spirito aproveitara-se do pânico para retirar cuidadosamente o kufi e pendurar uma grande cruz de madeira ao pescoço. A partir daí caminhara até o Parque Janiculum, descendo então a colina até Trastevere. Na Via delia Paglia, uma mulher agitada pediu a bênção a El-Banna. O muçulmano concedera-a, imitando as palavras e os gestos que observara no Vaticano. Em seguida, pediu a Alá que o perdoasse pela blasfêmia.
Em segurança no interior do prédio, retirou a cruz ofensiva do pescoço e subiu os degraus mal iluminados. Recebera ordens do saudita que concebera e planejara o ataque para se dirigir ali. Um saudita que conhecia apenas por Khalil. Seria a primeira parada de uma viagem secreta para fora da Europa e de regresso ao mundo islâmico. Esperara voltar ao seu Egito nativo, mas Khalil convencera-o de que aí nunca estaria em segurança. O lacaio americano Mubarak vai entregar-te aos infiéis num abrir e fechar de olhos, avisara Khalil. Só há um lugar na Terra onde os infiéis não te podem chegar.
Esse lugar era a Arábia Saudita, terra do Profeta, berço do Islamismo Wahhabita. A Ibrahim el-Banna tinha sido prometida uma nova identidade, um professorado na afamada Universidade de Medina e uma conta bancária com meio milhão de dólares. O santuário era a recompensa do príncipe Nabil, o ministro da Administração Interna saudita. O dinheiro era um presente do bilionário saudita que financiara a operação.
Assim, o clérigo muçulmano que subiu os degraus do prédio de apartamentos romano era um homem satisfeito. Acabara de participar numa das mais importantes ações da jihad na longa e gloriosa história islâmica. Agora partia para uma nova vida na Arábia Saudita, onde as suas palavras e as suas crenças ajudariam a inspirar a geração seguinte de guerreiros islâmicos. Apenas o Paraíso seria melhor.
Chegou ao patamar do segundo andar e dirigiu-se à porta do apartamento 3A. Quando introduziu a chave na fechadura, sentiu um choque eléctrico diminuto nos dedos. Quando a girou, a porta explodiu. E a partir daí não sentiu mais nada.
Nesse preciso instante, na zona de Washington conhecida como Foggy Bottom, uma mulher despertou de um pesadelo. O sonho estava repleto das imagens que via todas as manhãs àquela hora. Uma hospedeira com o pescoço cortado. Um jovem passageiro elegante a fazer um último telefonema. Um inferno. Rebolou na cama e olhou para o relógio sobre a mesa-de-cabeceira. Seis e meia. Pegou o controle remoto, apontou-o à televisão e pressionou o botão Power. Meu Deus, não, pensou, quando viu a Basílica em chamas. Outra vez não.
7
ROMA
Durante a semana seguinte, Gabriel permaneceu no apartamento de segurança perto da Igreja da Trinità dei Monti. Houve momentos em que parecia que nada acontecera.
Mas depois ia até a varanda e via a cúpula da Basílica erguer-se sobre os telhados da cidade, despedaçada e enegrecida pelo fogo, como se Deus, num momento de desaprovação ou de descuido, tivesse arrasado o trabalho dos seus filhos. Gabriel, o restaurador, desejava que fosse apenas um quadro, uma tela ferida que ele pudesse sarar com uma garrafa de óleo de linhaça e um pouco de pigmento.
A contagem de baixas aumentava a cada dia. No final da quarta-feira — Quarta-Feira Negra, como os jornais de Roma a tinham batizado — o número era de seiscentos mortos. Na quinta-feira era de seiscentos e cinquenta e, no fim-de-semana, ultrapassara os setecentos. O coronel Karl Brunner, dos Guardas Suíços Pontífices, encontrava-se entre as vítimas mortais. Luca
Angelli também, depois de ter passados três dias entre a vida e a morte, na Clínica Gemelli, antes de as máquinas terem sido desligadas. O papa administrou-lhe os Últimos Sacramentos e permaneceu ao lado de Angelli até que este morreu. A Cúria Romana sofreu perdas terríveis. Entre os mortos encontravam-se quatro cardeais, a par de oito bispos curiais e três monsenhores. Os funerais tiveram de ser conduzidos na Basílica de São João de Latrão, pois dois dias após o ataque uma equipe internacional de engenheiros concluíra que não era seguro entrar na Basílica. O maior jornal de Roma, La Repubblica, dera a notícia com uma fotografia de página inteira da cúpula arruinada, com um único título: CONDENADA.
O governo de Israel não tinha posição oficial na investigação, mas Gabriel, graças à sua proximidade de Donati e do papa, em breve ficou a saber tanto sobre o atentado como qualquer agente de serviços secretos do mundo. A maior parte das informações era obtida à mesa de jantar do papa, onde se sentava todas as noites com os homens que conduziam a investigação: o general Marchese, dos Carabinieri, e Martino Bellano, dos serviços de segurança italianos. Falavam quase sempre livremente na presença de Gabriel e tudo o que sonegavam era-lhe transmitido por Donati. Por sua vez, Gabriel enviava toda a informação para O Boulevard King Saul, razão pela qual Shamron não tinha pressa em retirá-lo de Roma.
Quarenta e oito horas depois do atentado, os italianos tinham conseguido identificar todos os envolvidos. O ataque com os mísseis fora levado a cabo por uma equipe de quatro homens. O motorista do veículo era de origem tunisina. Os três homens com os RPG-7 eram de nacionalidade jordana e veteranos da revolta no Iraque. Os quatro tinham sido abatidos por uma salva de tiros dos Carabinieri segundos após terem disparado as armas. Quanto aos homens que se tinham feito passar por sacerdotes alemães, apenas um era mesmo germânico, um jovem estudante de engenharia de Hamburgo chamado Manfred Zeigler. O segundo era um holandês de Rotterdam, e o terceiro um belga flamengo de Antuérpia. Os três eram convertidos muçulmanos e tinham participado em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Embora não dispusesse de provas, Gabriel desconfiava que tivessem sido recrutados pelo professor Ali Massoudi. Graças à vigilância das câmeras de circuito fechado e a relatos de testemunhas, as autoridades italianas e do Vaticano conseguiram reconstruir os últimos momentos da vida dos homens-bomba. Após terem sido admitidos no Vaticano por um adetto do Escritório de Autorização, os três homens tinham-se dirigido ao gabinete de Ibrahim el-Banna, perto da Piazza Santa Marta. Quando de lá saíram, cada homem levava uma pasta grande. Tal como Angelli imaginara, os homens tinham penetrado na Basílica por uma entrada lateral. Chegaram à Praça de S. Pedro, apropriadamente, pela Porta da Morte. Como as outras quatro que davam acesso à praça através da Basílica, essa porta devia estar trancada. No fim da primeira semana, a polícia do Vaticano ainda não conseguira determinar por que não estava.
O corpo de Ibrahim el-Banna foi identificado três dias após ter sido retirado dos escombros do prédio de apartamentos em Trastevere. Por enquanto, a sua verdadeira afiliação permanecia incógnita. Quem era a Irmandade de Alá? Seria um ramo da Al-Qaeda, ou simplesmente a Al-Qaeda com outro nome? E quem planejara e financiara uma operação tão elaborada? Uma coisa era perfeitamente clara. O ataque ao lar da Cristandade voltara a atear o fogo do movimento extremista global. Celebrações de rua tinham tido lugar em Teerão, no Cairo, em Beirute e nos territórios palestinos, ao mesmo tempo que analistas, de Washington a Londres e a Tel Aviv, detectavam de imediato um aumento drástico de atividade e de recrutamento.
Na quarta-feira seguinte, uma semana depois do atentado, Shamron decidiu que chegara a altura de Gabriel voltar a casa. Enquanto fazia a mala no apartamento de segurança, a luz vermelha do telefone começou a piscar, indicando uma chamada. Levantou o fone e ouviu a voz de Donati. — O Santo Padre gostaria de falar com você em particular.
— Quando?
— Esta tarde, antes de partir para o aeroporto.
— Falar sobre o quê?
— Gabriel Allon é membro de um clube muito restrito.
— E que clube é esse?
— De homens que se atreveriam a fazer essa pergunta.
— Onde e quando? — perguntou Gabriel, com um tom conciliatório.
Donati transmitiu-lhe a informação. Gabriel desligou e acabou de arrumar as suas coisas.
Gabriel passou por um posto de controle dos Carabinieri no extremo da Colunata e atravessou a Praça de S. Pedro à luz esmaecente do entardecer. Continuava fechada ao público. As equipes de perícia tinham completado a sua tarefa macabra, mas as barreiras opacas erguidas à volta dos três centros de explosão continuavam no seu lugar. Um gigantesco encerado branco estava pendurado na fachada da Basílica, ocultando os estragos por baixo da Galeria das Bênçãos. Ostentava a imagem de uma pomba e uma única palavra: PAZ.
Passou pelo Arco dos Sinos e percorreu o flanco esquerdo da Basílica. As entradas laterais estavam fechadas e barricadas, e agentes da Vigilanza montavam guarda a cada uma. Nos Jardins do Vaticano era possível imaginar que nada acontecera. Era possível, pensou Gabriel, até que se olhasse para a cúpula arruinada, iluminada naquele momento por um pôr do Sol avermelhado. O papa aguardava junto à Casa do Jardineiro. Cumprimentou Gabriel calorosamente e, juntos, dirigiram-se ao canto mais extremo do Vaticano. Uma dúzia de guardas suíços à paisana acompanhavam-nos por entre os pinheiros mansos, as sombras compridas e estreitas sobre a grama.
Luigi e eu imploramos à Guarda Suíça que reduzisse o destacamento — comentou o papa. — Por agora esse assunto não está aberto a negociações. Andam um pouco enervados... por razões óbvias. Desde o Saque de Roma que um comandante da Guarda Suíça não morria a defender o Vaticano de um ataque inimigo.
Caminharam em silêncio por alguns instantes.
— Será este o meu destino, Gabriel? Ficar para sempre rodeado de homens com armas e rádios? Como poderei comunicar com o meu rebanho? Como poderei reconfortar os enfermos e os necessitados se estiver isolado deles por uma falange de guarda-costas?
Gabriel não tinha resposta para lhe dar.
— As coisas não voltarão a ser como eram, certo, Gabriel?
— Não, Sua Santidade, receio que não.
— Eles pretendiam me matar?
— Sem dúvida.
— Voltarão a tentar?
— Quando estabelecem um objetivo, regra geral não desistem até o cumprirem. Mas, neste caso, conseguiram matar setecentos peregrinos e sete cardeais e bispos. Já para não falar do comandante da Guarda Suíça. Também conseguiram infligir sérios danos físicos à própria Basílica. Na minha opinião, terão saldado as suas contas históricas.
— Podem não ter conseguido matar-me, mas fizeram de mim um prisioneiro do Vaticano. — O papa deteve-se e olhou para a cúpula arruinada. — A minha gaiola já não é tão dourada. Demorou mais de um século a construir e foram precisos poucos segundos para destruí-la.
— Não está destruída, Sua Santidade. A cúpula pode ser restaurada. — Isso ainda não foi decidido — contrapôs o papa, com um tom sombrio nada caraterístico. — Os engenheiros e os arquitetos não sabem se o poderão fazer. Talvez tenha de ser demolida e totalmente reconstruída. E o baldaquino sofreu danos graves quando os destroços lhe caíram em cima. Não é algo que possa ser substituído, mas o Gabriel tem bem noção do que isso significa.
Gabriel mirou o relógio. Teria de partir rapidamente para o aeroporto, caso contrário perderia o avião. Interrogou-se por que motivo o papa o teria convocado. Decerto não seria para discutir a restauração da Basílica. O papa virou-se e recomeçou a andar. Dirigiam-se à Torre de S. João, no canto sudoeste do Vaticano.
— A única razão para eu não estar morto — disse o papa — é o Gabriel. Com toda a mágoa e confusão desta semana terrível, ainda não tive oportunidade de lhe agradecer devidamente. Faço-o agora. Quem me dera poder fazê-lo em público. O papel de Gabriel no assunto fora cuidadosamente ocultado dos órgãos de comunicação social. Até então, contra todas as expetativas, permanecera em segredo.
— E quem me dera ter encontrado Ibrahim el-Banna mais cedo — replicou Gabriel.
— Setecentas pessoas poderiam ainda estar vivas.
— Fez tudo o que podia ser feito.
— Talvez, Sua Santidade, mas, ainda assim, não foi suficiente.
Chegaram ao muro do Vaticano. O papa subiu uma escadaria de pedra, com Gabriel a segui-lo em silêncio. Chegaram ao parapeito e olharam Roma. As luzes acendiam-se um pouco por toda a cidade. Gabriel olhou sobre o ombro e viu os guardas suíços a agitarem-se nervosamente lá em baixo. Descansou-os com um gesto da mão e fitou o papa, que espreitava os carros que percorriam velozmente o Viale Vaticano.
— Luigi disse que tem uma promoção a sua espera em Tel Aviv. — Foi obrigado a subir o tom de voz por causa do barulho do trânsito. — É uma promoção que ambicionava ou é obra de Shamron?
— Há quem seja obrigado a aceitar a grandeza, Sua Santidade.
Pela primeira vez desde que chegara a Roma, Gabriel viu o papa sorrir.
— Posso dar-lhe um conselho?
Gabriel anuiu.
— Use o seu poder sabiamente. Mesmo que esteja em posição de castigar seus inimigos, use seu poder como forma de procurar a paz a cada momento. Busque a justiça e não a vingança.
Gabriel sentiu-se tentado a recordar o papa de que era apenas um servidor secreto do Estado, que a decisão sobre a paz e a guerra estavam nas mãos de homens bem mais poderosos do que ele. Em vez disso, garantiu ao papa que faria bom uso do conselho que lhe fora dado.
— Vai procurar os homens que atacaram o Vaticano?
— Não é nossa luta. Pelo menos por enquanto.
— Algo me diz que em breve será.
O papa observava o tráfego abaixo dele com um fascínio infantil.
— A ideia de colocar a pomba da paz na mortalha cobrindo a fachada da Basílica foi minha. Imagino que considere esse sentimento profundamente ingênuo. Talvez me ache ingênuo também.
— Não ia querer viver num mundo sem homens como Sua Santidade.
Quando voltou a olhar para o relógio, Gabriel não tentou disfarçá-lo.
— Tem o avião à espera? — perguntou o papa.
— Sim, Sua Santidade.
— Vamos — disse. — Eu acompanho-o.
Gabriel começou a descer os degraus, mas o papa deixou-se ficar no parapeito. — Francesco Tiepolo ligou-me esta manhã, de Veneza. Manda-lhe cumprimentos.
— Virou-se e olhou para Gabriel. — Chiara também.
Gabriel permaneceu em silêncio.
— Ela diz que gostaria de vê-lo antes de voltar a Israel. Estava a pensar que talvez parasse em Veneza, quando saísse do país. — O papa segurou no cotovelo de
Gabriel e, a sorrir, acompanhou-o pelos degraus abaixo. — Sei que tenho muito pouca experiência no que diz respeito a assuntos do coração, mas talvez permita que um velho lhe dê mais um conselho.
8
VENEZA
Era uma pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre, no sestiere de Cannaregio. O terreno onde se erguia era demasiado pequeno para um adro de igreja decente, por isso a entrada principal acedia diretamente à atarefada Salizzada San Giovanni Crisóstomo. Em tempos, Gabriel levara no bolso uma chave da igreja.
Entrava agora como um turista normal e fez uma pausa no hall, onde esperou que os olhos se habituassem à luz ténue, enquanto um sopro de ar fresco, permeado pelo odor a cera e a incenso, lhe acariciou o rosto. Pensou na última vez que entrara naquela igreja. Fora na noite em que Shamron se deslocara a Veneza para avisar Gabriel de que tinha sido descoberto pelos seus inimigos e de que chegara a altura de voltar a casa. Não vai haver sinais da tua passagem por aqui, garantira-lhe Shamron. Será como se nunca tivesses existido.
Cruzou a nave acolhedora até a Capela de S. Jerônimo, no lado direito da igreja. O retábulo encontrava-se oculto por uma sombra densa. Gabriel introduziu uma moeda no contador de luz e as lâmpadas ganharam vida, iluminando o último grande trabalho de Giovanni Bellini. Deixou-se ficar ali de pé por um instante, a mão direita pressionada contra o queixo, a cabeça inclinada de leve para o lado, e examinou a pintura à luz indireta. Francesco Tiepolo fizera um bom trabalho finalizando sua restauração. Gabriel quase não podia dizer onde terminava a sua mão e começava a de Tiepolo. Não era de admirar, pensou. Ambos tinham sido aprendizes do grande mestre restaurador veneziano Umberto Conti.
O tempo chegou ao fim e as luzes desligaram-se automaticamente, o que fez com que a pintura voltasse a mergulhar na escuridão. Gabriel regressou ao exterior e dirigiu-se para ocidente, através de Cannaregio, até chegar a uma ponte de ferro, a única do gênero em Veneza. Na Idade Média existira um portão no centro da ponte e, à noite, um vigia cristão ficava de guarda, para que os prisioneiros do outro lado não pudessem fugir. Atravessou a ponte e entrou num sottoportego escurecido. Ao fim da passagem abria-se uma praça vasta, o Campo dei Ghetto Nuovo, centro do antigo gueto de Veneza. Outrora tinham aí vivido mais de cinco mil judeus. Agora era o lar de apenas vinte dos quatrocentos judeus da cidade, cuja maioria era idosa e residia na Casa di Riposo Israelitica.
Atravessou o campo e deteve-se no número 2899. Uma diminuta placa de latão dizia COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA — Comunidade Judaica de Veneza. Tocou à campainha e virou rapidamente as costas à câmera de segurança por cima da porta. Após um longo silêncio, uma voz familiar de mulher crocitou pelo intercomunicador.
— Vire-se — ordenou. — Deixe-me ver seu rosto.
Gabriel aguardou onde ela lhe disse, um banco de madeira a um canto do campo banhado pelo sol, perto de um monumento aos judeus venezianos que tinham sido reunidos em Dezembro de 1943 e enviados para morrer em Auschwitz. Passaram-se dez minutos, e depois outros dez. Quando finalmente ela saiu do escritório, demorou o seu tempo a atravessar a praça, ao que parou a alguns metros dele, como se receasse aproximar-se mais. Ainda sentado, Gabriel puxou os óculos de sol para a testa e mirou-a à luz encantadora do Outono. Vestia jeans desbotados, justos nas coxas compridas e largos nas bainhas, e botas de camurça de salto alto. A blusa branca tinha um corte que não levantava dúvidas quanto à figura generosa por baixo.
O cabelo castanho revolto estava preso atrás por uma fita de cetim cor de chocolate, e em volta do pescoço, uma echarpe de seda. A pele cor de azeitona estava muito escura. Gabriel imaginou que ela tivesse passado uma temporada recente ao sol.
Os olhos, grandes e com um formato oriental, eram da cor do caramelo, com lampejos dourados. Costumavam mudar de tom, consoante o seu estado de espírito. Da última vez que Gabriel vira os olhos de Chiara, estes tinham assumido um negro de fúria e ficado orlados pelo rímel que escorrera. Ela cruzou os braços por baixo dos seios numa posição defensiva e perguntou-lhe o que fazia em Veneza.
— Olá, Chiara. Está muito bonita.
A brisa agitou-lhe o cabelo e soprou-lhe alguns fios no rosto. Desviou-os com a mão esquerda. No dedo faltava-lhe o anel de noivado que Gabriel lhe dera. Tinha agora outros anéis nos dedos e um relógio de ouro novo no pulso. Gabriel interrogou-se se seriam prendas de outro alguém.
— Não sei de você desde que saí de Jerusalém — comentou Chiara, no tom neutro proposital que assumia sempre que tentava reprimir as emoções. — São meses. Agora aparece de surpresa e espera que o receba de braços abertos e sorriso nos lábios?
— Surpresa? Estou aqui porque você me pediu que viesse.
— Eu? Mas do que está falando?
Gabriel perscrutou-lhe os olhos. Podia ver que não havia dissimulação. — Sinto muito — disse. — Parece que fui enganado para vir aqui.
Chiara brincou com as pontas da echarpe, com um prazer óbvio pelo desconforto que via.
— Enganado por quem?
Donati e Tiepolo, imaginou Gabriel. Talvez mesmo Sua Santidade. Levantou-se de repente.
— Não interessa — garantiu. — Sinto muito, Chiara. Foi bom vê-la novamente.
Virou-se e começou a afastar-se, mas Chiara segurou-lhe o braço.
— Espere — pediu. — Fique mais um pouco.
— Vai ser civilizada?
— Civilidade é para casais divorciados com filhos.
Gabriel voltou a sentar-se, mas Chiara deixou-se ficar de pé. Um homem de óculos escuros e casaco amarelado surgiu do sottoportego. Lançou um olhar de admiração a Chiara, depois cruzou o campo e desapareceu sobre a ponte que levava ao par de antigas sinagogas sefarditas no extremo sul do gueto. Chiara observou o percurso do homem, depois meneou a cabeça e estudou a aparência de Gabriel.
— Alguém já te disse que você é idêntico ao homem que salvou o papa?
— Esse é italiano — escusou-se Gabriel. — Não leu sobre ele nos jornais?
Chiara ignorou-o.
— Quando vi as imagens na televisão, pensei que estivesse com alucinações. Sabia que era você. Nessa noite, depois de as coisas acalmarem, falei com Roma. Shimon disse que você tinha estado no Vaticano.
Um movimento súbito no campo a fez virar a cabeça. Viu um homem de barba salpicada de grisalho e chapéu de feltro apressar-se na entrada do centro comunitário. Era o pai, o principal rabi de Veneza. Chiara ergueu a ponta da bota direita e equilibrou o peso no calcanhar. Gabriel conhecia bem o movimento, que significava uma provocação a caminho.
— Por que está aqui, Gabriel Allon?
— Disseram-me que queria me ver.
— E só por isso veio?
— Só por isso.
Os cantos da boca de Chiara começaram a curvar-se no esboço de um sorriso.
— Qual é a piada? — perguntou ele.
— Pobre Gabriel. Continua apaixonado por mim, não é?
— Nunca deixei de estar.
— Mas não o suficiente para se casar comigo?
— Podemos falar sobre isto em particular?
— Por enquanto não. Tenho de ficar com atenção ao escritório. O meu outro trabalho — rematou, com um tom de conspiração fingida.
— Dê meus cumprimentos ao rabi Zolli.
— Imagino que não seja boa ideia. O rabi Zolli continua furioso com você.
Tirou uma chave do bolso e lançou-a. Gabriel fitou a chave na mão durante um instante muito longo. Mesmo depois de meses de separação, continuava a ter dificuldade em imaginá-la com vida própria.
— Para o caso de querer saber, moro sozinha. Nem sei se merece saber, mas é verdade. Fique confortável. Descanse. Está com péssimo aspeto.
— Estamos muito elogiosos, hoje. — Enfiou a chave no bolso. — Qual é o endereço?
— Sabes, mente muito mal, para um espião.
— De que está falando?
— Sabe meu endereço, Gabriel. Ficou sabendo em Operações, que também te disse meu número de telefone.
Inclinou-se e beijou o rosto dele. Quando o cabelo passou pelo rosto, Gabriel fechou os olhos e inspirou o aroma de baunilha.
O prédio ficava do outro lado do Grande Canal, em Santa Croce, num corte pequeno e fechado, com apenas uma passagem de entrada e saída. Quando entrou no apartamento, Gabriel teve a sensação de voltar ao seu próprio passado. A sala parecia à espera de uma sessão de fotografias. Até mesmo as revistas e os jornais velhos aparentavam ter sido dispostos por um fanático em busca da perfeição visual. Dirigiu-se a uma camilha e deu uma vista de olhos às fotografias emolduradas: Chiara e os pais; Chiara e um irmão mais velho que vivia em Pádua; Chiara com uma pessoa amiga na costa do mar da Galileia. Foi durante essa viagem, quando ela tinha apenas vinte e cinco anos, que chamara a atenção de um caçador de talentos do Escritório. Seis meses depois, após ter sido avaliada e treinada, regressou à Europa como bat leveyha, uma agente de acompanhamento. Não havia fotografias de Chiara com Gabriel, certo existia nenhuma.
Chegou-se à janela e olhou para o exterior. Dez metros lá em baixo, as águas verdes oleosas do rio dei Megio fluíam vagarosas. Uma corda de roupa chegava ao prédio oposto. Camisas e calças estavam penduradas ao sol e, no outro extremo da corda, uma idosa estava sentada à janela aberta com o braço carnudo apoiado no parapeito. Pareceu surpresa ao ver Gabriel, que ergueu a chave e disse que era um amigo de Chiara, vindo de Milão.
Baixou as persianas e dirigiu-se à cozinha. No lava-louça jazia uma caneca meio bebida de café com leite e uma côdea de torrada com manteiga. Exigente com tudo o resto, Chiara deixava sempre a louça do pequeno-almoço à espera do fim do dia. Com uma atitude de mesquinhice doméstica, deixou-a onde estava e foi até o quarto.
Largou a mala em cima da cama desfeita e, combatendo a tentação de revistar o roupeiro e as gavetas, entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. No armário de medicamentos procurou lâminas de barbear, água de colônia ou outros vestígios da presença de um homem. Encontrou duas coisas que nunca vira antes: um frasco de comprimidos para dormir e outro de antidepressivos. Voltou a colocá-los na posição original. Tal como Gabriel, Chiara fora treinada para reparar na mais sutil das alterações.
Despiu-se e atirou as roupas para o corredor, e depois passou muito tempo debaixo da água corrente. Quando terminou, enrolou uma toalha na cintura e voltou ao quarto. O edredão cheirava ao corpo de Chiara. Quando deitou a cabeça na almofada, os sinos de Santa Croce repicaram o meio-dia. Fechou os olhos e mergulhou num sono profundo.
Acordou ao fim da tarde com o som de uma chave a ser introduzida na fechadura, seguido pelo ruído dos saltos das botas de Chiara no bali de entrada. Ela não se preocupou em avisar que chegara a casa. Sabia que ele acordava ao mais pequeno som, ou movimento. Quando entrou no quarto, trauteava baixinho uma música pop italiana que sabia que ele detestava.
Sentou-se à beira da cama, suficientemente perto para que o quadril roçasse a coxa de Gabriel. Ele abriu os olhos e observou-a tirando as botas e e o jeans. Chiara pousou a mão no peito de Gabriel. Quando ele soltou a fita de seu cabelo, os caracóis ruivos se espalharam pelo rosto e os ombros dela. Chiara repetiu a pergunta que fizera no gueto: Por que está aqui, Gabriel Allon?
— Estava pensando que podíamos voltar a experimentar — respondeu Gabriel.
— Não preciso experimentar. Já o fiz uma vez e gostei muito.
Gabriel retirou a echarpe e desabotoou lentamente a blusa dela. Chiara inclinou-se e beijou-o na boca. Era como se estivesse sendo beijado pela Alba Madonna de Rafael.
— Se me magoar outra vez vou odiar você para sempre!
— Não vou.
— Nunca deixei de sonhar com você.
— Sonhos bons?
— Não — respondeu. — Sonhava com sua morte.
O único vestígio de Gabriel no apartamento era um velho caderno de esboços. Abriu-o numa página nova e mirou Chiara com um distanciamento profissional. Estava sentada na extremidade do sofá, com as pernas compridas debaixo do corpo, enrolada num lençol de seda. Tinha o rosto virado para a janela e iluminado pelo sol do ocaso. Gabriel sentiu-se aliviado ao ver as primeiras rugas à volta dos olhos de Chiara. Sempre receara que ela fosse jovem demais, e um dia, quando ele fosse velho, o trocaria por outro homem. Puxou o lençol, expondo seus seios. Chiara susteve o olhar por um instante e depois fechou os olhos.
— Teve sorte em me encontrar — disse. — Podia estar ausente, em missão.
Ela era faladora. Gabriel aprendera que era inútil pedir que ficasse em silêncio enquanto posava.
— Não trabalha desde aquela missão na Suíça.
— Como sabe dessa operação?
Gabriel lançou-lhe um olhar inescrutável por cima do caderno e lembrou-a que não devia se mexer.
— Lá se vai o conceito de secretismo. Ao que parece, sempre que quer entra em Operações e descobre o que estou fazendo.
Fez menção de virar a cabeça, mas Gabriel imobilizou-a com um tsc-tsc abrupto. — Mas não devia ficar admirada. Já te deram o comando?
— Que comando? — disse Gabriel, fazendo-se de desentendido.
— Operações Especiais.
Gabriel confessou que a posição foi oferecida e aceita.
— Quer dizer que agora é meu chefe — frisou ela. — Imagino que tenhamos quebrado meia dúzia de diretrizes do Escritório sobre a confraternização entre oficiais e funcionários.
— No mínimo — admitiu Gabriel. — Mas a promoção ainda não é oficial.
— Graças a Deus. Não queria que o grande Gabriel se metesse em encrenca por sua vida sexual. Por quanto tempo podemos usar o corpo um do outro antes de termos problema com o Departamento de Pessoal?
— Quanto tempo quisermos. Apenas temos, eventualmente, de ser sinceros com eles.
— E quanto a Deus, Gabriel? Desta vez vai ser sincero com Deus? — O silêncio abateu-se, salvo pelo raspar do lápis de carvão no papel. Chiara mudou de assunto. — O que sabe sobre minha missão na Suíça?
— Sei que foi a Zermatt seduzir um traficante de armas suíço que estava prestes a concluir uma transação com alguém que não defende nossos interesses. O Boulevard King Saul queria saber a data da partida e o destino do carregamento.
Após um longo silêncio, perguntou-lhe se dormira com o suíço.
— Não se tratava desse tipo de operação. Estava a trabalhar com outro agente. Limitei-me a entreter o traficante no bar, enquanto o outro agente lhe entrou no quarto e roubou o conteúdo do computador. Além disso, sabes que uma bat leveyha não deve ser usada para sexo. Contratamos profissionais para esse tipo de coisas.
— Nem sempre.
— Seria incapaz de usar o meu corpo dessa maneira. Sou uma miúda religiosa. — Lançou-lhe um sorriso atrevido. — Por sinal, conseguimos. O barco sofreu um acidente misterioso, ao largo da costa de Creta. As armas estão no fundo do mar.
— Eu sei — asseverou Gabriel. — Volta a fechar os olhos.
— Feche você — replicou. Depois sorriu e fez o que ele pediu. — Não vai perguntar se estive com alguém durante nossa separação?
— Não tenho nada a ver com isso.
— Mas deve estar curioso. Nem quero imaginar o que fez no meu apartamento quando entrou aqui.
— Se está insinuando que revistei suas coisas, fique sabendo que não o fiz.
— Não brinque.
— Por que não consegues dormir?
— Quer mesmo que responda?
Gabriel não falou.
— Não houve mais ninguém, Gabriel, mas já sabia disso, não é? Como poderia? — Ofereceu-lhe um sorriso amargo. — Quando nos convidam para um clube exclusivo nunca nos dizem tudo. Não dizem que as mentiras começam a se acumular, nem que nunca estaremos confortáveis com pessoas de fora do clube. Foi só por isso que se apaixonou por mim, Gabriel? Por eu fazer parte do Escritório?
— Gostei de seu fettucini com cogumelo. São os melhores de Veneza.
— E quanto a você? Esteve com outras mulheres neste período?
— Este período foi passado com uma tela muito grande.
— Pois é, esqueci do seu problema. Não consegue fazer amor com uma mulher, a menos que ela saiba que mata por seu país. Se quisesse, encontraria uma pessoa adequada no Boulevard King Saul. Não há mulher no Escritório que não te deseje.
— Está falando demais. Se não se calar, não consigo acabar.
— Estou com fome. Não devia ter falado em comida. Aliás, como vai Leah?
Gabriel parou de desenhar e fitou Chiara por cima do bloco, como que reprovando a justaposição um pouco depreciativa de comida com sua esposa.
— Desculpe — disse Chiara. — Como está ela?
Gabriel ouviu-se a dizer que Leah estava bem, que duas ou três vezes por semana a visitava no hospital psiquiátrico no cimo do Monte Herzl, onde passava alguns minutos com ela. Mas, ao contar-lhe sobre isso, a sua mente encontrava-se em outro lugar: em Viena, perto da Juden Platz; na bomba no carro que matara seu filho, e no inferno que destruíra o corpo de Leah e roubara sua memória. Durante treze anos, ela ficara em silêncio na presença de Gabriel. Agora, por breves períodos, falava com ele. Recentemente, no jardim do hospital, fez a mesma pergunta que Chiara, momentos antes: houve outras mulheres neste período? Respondeu com sinceridade.
— Amava essa moça, Gabriel?
— Amava, mas deixei-a por você.
— E por que o fez, meu amor? Olhe para mim. Não resta nada meu, apenas uma recordação.
Chiara ficara em silêncio. A luz que banhava seu rosto desvanecia-se lentamente, passando de um vermelho coral a tons de cinza. A mulher rechonchuda surgiu na janela do prédio oposto e começou a recolher a roupa estendida. Chiara puxou o lençol até o pescoço. — O que está fazendo?
— Não quero que a Signora Lorenzetto me veja nua.
Ao devolver o lençol à posição original, Gabriel deixou uma mancha de carvão no seio.
— Imagino que tenha de voltar a Jerusalém — comentou. — A menos que diga a Shamron que não pode assumir Operações Especiais porque vai voltar para Veneza.
— É tentador — admitiu Gabriel.
— Tentador, mas não possível. É um soldado leal, Gabriel. Faz sempre o que mandam. Sempre fez. — Limpou o carvão do seio.
— Pelo menos não vou ter que decorar o apartamento.
Gabriel manteve os olhos presos no caderno. Chiara analisou a expressão dele e perguntou:
— Gabriel, o que fez no apartamento?
— Precisava de um lugar para trabalhar.
— Por isso mudou a mobília de lugar?
— Sabe, também estou ficando com fome.
— Gabriel Allon, sobrou alguma coisa?
— A noite está agradável — comentou ele. — Vamos de barco até Murano comer peixe.
9
JERUSALÉM
Gabriel voltou à Rua Narkiss às oito da noite seguinte. O carro de Shamron estava estacionado junto ao meio-fio e Rami, o guarda-costas, vigiava na calçada em frente ao número 16. Lá em cima, Gabriel encontrou todas as luzes acesas e Shamron tomando café na mesa da cozinha.
— Como entrou?
— Caso te tenhas esquecido, este costumava ser um apartamento de segurança do Escritório. A Gestão Imobiliária tem uma chave.
— Eu sei, mas mudei as fechaduras no Verão.
— A sério?
— Imagino que tenha de voltar a mudá-las.
— Não vale a pena dares-te ao trabalho.
Gabriel abriu a janela para arejar a divisão. Seis beatas de cigarro jaziam num dos pires de Gabriel, como invólucros de munições gastas. Shamron já ali estava há algum tempo.
— Como estava Veneza? — perguntou Shamron.
— Veneza estava ótima, mas da próxima vez que arrombar meu apartamento, peço que tenha a amabilidade de não fumar. — Gabriel pegou o pires pela borda e despejou as pontas de cigarro no lixo. — O que pode ser tão urgente que não podia esperar a manhã?
— Outro elo saudita no ataque ao Vaticano.
E Gabriel ergueu o olhar para Shamron. — Qual é?
— Ibrahim el-Banna.
— O clérigo islâmico? Não posso dizer que esteja surpreso.
Gabriel sentou-se à mesa.
— Há duas noites, o chefe de estação do Cairo reuniu-se em segredo com uma das nossas principais fontes no interior do Mukhabarat egípcio. Ao que parece, o professor Ibrahim el-Banna já tinha um bom currículo de militância, muito antes de ter ido para o Vaticano. O irmão mais velho era membro da Irmandade Islâmica e era próximo de Ayman al-Zawahiri, o número dois da Al-Qaeda. Um sobrinho foi para o Iraque combater os americanos e foi morto no cerco a Fallujah. Aparentemente, as gravações dos sermões do imã são obrigatórias entre os militantes islâmicos egípcios.
— É pena que o nosso amigo do Mukhabarat não tenha contado ao Vaticano a verdade sobre El-Banna. Setecentas pessoas talvez ainda estivessem vivas... e a cúpula da Basílica talvez não tivesse um buraco.
— Os egípcios sabiam mais uma coisa sobre o professor El-Banna — continuou Shamron. — Ao longo de grande parte das décadas de oitenta e de noventa, quando o problema do fundamentalismo islâmico estava a ganhar proporções alarmantes no Egito, o professor El-Banna recebia pagamentos regulares e ordens de um saudita que se fazia passar por agente da Organização Internacional de Apoio Islâmico, uma das principais obras de caridade sauditas. Este homem dizia chamar-se Khalil, mas o serviço secreto egípcios sabiam o seu nome verdadeiro: Ahmed bin Shafiq. O que torna tudo isto ainda mais interessante é a ocupação de Shafiq na altura.
— Pertencia ao GID — disse Gabriel.
— Exatamente.
O GID, ou Departamento Geral de Informações, era o nome do serviço secreto sauditas.
— O que sabemos sobre ele?
— Até há quatro anos, Bin Shafiq liderava uma unidade clandestina do GID, com o nome de código Grupo 205, que era responsável pela criação e manutenção de ligações entre a Arábia Saudita e os grupos islâmicos militantes espalhados pelo Oriente Médio. O Egito era uma das prioridades do Grupo 205, a par do Afeganistão, claro está.
— Qual o significado desse número?
— Era a extensão do gabinete de Bin Shafiq no quartel-general do GID.
— O que aconteceu há quatro anos?
— Bin Shafiq e os seus agentes estavam a canalizar material e verbas para os terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica. Um informante palestino contou-nos sobre a operação e nós relatamos a informação aos americanos. O presidente americano mostrou as nossas provas ao rei e pressionou-o para que encerrasse o Grupo 205. Isso passou-se seis meses depois do onze de Setembro, e o rei foi obrigado a satisfazer o desejo do presidente, para desalento de Bin Shafiq e de outros extremistas do reino. O Grupo 205 foi eliminado e Bin Shafiq foi expulso do GID.
— Ele atravessou a estrada?
— Estás a perguntar se ele é um terrorista? A resposta não sabemos. Aquilo que sabemos a militância islâmica está-lhe no sangue. O avô era comandante do Ikhwan, o movimento islâmico criado por Ibn Saud, no final do século XIX, no Najd.
Gabriel conhecia bem o Ikhwan. Em muitos aspetos, era o protótipo e o precursor espiritual dos grupos militantes islâmicos da atualidade.
— Em que outros locais Bin Shafiq agiu enquanto pertencia ao Grupo 205?
— Afeganistão, Paquistão, Jordânia, Líbano, Argélia. Desconfiamos que tenha estado até na Cisjordânia.
— Assim sendo, é possível que estejamos a lidar com alguém que possui contatos terroristas que vão da Al-Qaeda ao Hamas e à Irmandade Islâmica do Egito. Se Bin Shafiq passou mesmo para o outro lado, é um cenário de pesadelo. O ideólogo terrorista perfeito.
— Encontramos outra informação interessante nos nossos próprios arquivos — acrescentou Shamron. — Há cerca de dois anos, estávamos a receber relatórios que davam conta de um saudita a percorrer os campos do Sul do Líbano, à procura de guerreiros experientes. Segundo os relatórios, esse saudita dizia chamar-se Khalil.
— O mesmo nome que Bin Shafiq usou no Cairo.
— Infelizmente, não o perseguimos. Para ser sincero, se andássemos atrás de cada saudita rico que tenta organizar um exército para a jihad, não faríamos mais nada. É como dizem, se na hora soubesse o que sei hoje...
— O que mais temos sobre Bin Shafiq?
— Muito pouco, receio.
— E uma fotografia? Shamron abanou a cabeça.
— Tal como seria de imaginar, é um bocadinho tímido à frente das câmeras. — Temos de partilhar as informações, Ari. Os italianos têm de saber que pode haver uma ligação com os sauditas. E os americanos também.
— Eu sei. — O tom de Shamron era sombrio. A noção de partilhar informações obtidas a custo soava-lhe a heresia, especialmente quando não havia nada a ganhar em troca. — Costumava ser branco e azul — disse, referindo-se às cores nacionais de Israel. — Era esse o nosso lema. A nossa crença. Fazíamos as coisas por nós. Não pedíamos ajuda a ninguém, e não ajudávamos os outros com os seus próprios problemas.
— O mundo mudou, Ari.
— Talvez eu não esteja talhado para este mundo. Quando combatíamos a OLP, ou o Setembro Negro, era tudo uma questão de física simples. Acertamos aqui, apertamos ali. Observávamos, escutávamos, identificávamos os membros da organização, eliminávamos os líderes. Agora estamos a combater um movimento... um cancro com metástases em cada órgão vital do corpo. É como tentar apanhar nevoeiro com um copo. As regras antigas já não se aplicam. O azul e o branco já não chegam. Mas posso dizer-te uma coisa. Isto não vai cair bem em Washington. Os sauditas têm muitos amigos por lá.
— É o que faz o dinheiro — rematou Gabriel. — Mas os americanos têm de saber a verdade sobre os seus melhores amigos no mundo árabe.
— Eles sabem a verdade. Só não querem enfrentá-la. Os americanos sabem que, de muitas formas, os sauditas são a fonte do terrorismo islâmico, que os sauditas plantaram as sementes, regaram-nas com petrodólares e fertilizaram-nas com o ódio wahhabita e com a propaganda. Os americanos parecem não se importar de viver assim, como se o terrorismo inspirado pelos sauditas não passasse demais um pequeno imposto nos depósitos de gasolina. O que eles não percebem 89 o terrorismo nunca será derrotado, a menos que ataquem a origem: Riad e os Al-Saud.
— Mais uma razão para partilhar com eles a informação que liga o GID e os Al-Saud ao ataque ao Vaticano.
— Ainda bem que pensa assim, pois foi nomeado para ir a Washington contar tudo.
— Quando parto?
— Amanhã de manhã.
Shamron olhou distraidamente pela janela e, pela segunda vez, perguntou a Gabriel como foi a estada em Veneza.
— Fui enganado para ir lá — respondeu Gabriel. — Mas ainda bem que fui.
— Quem te enganou?
Gabriel contou. O sorriso no rosto de Shamron levou-o a se perguntar se ele também estaria envolvido na trama.
— Ela vem para cá?
— Passamos um dia juntos — explicou Gabriel. — Não tivemos tempo de fazer planos.
— Não sei se acredito nisso — duvidou Shamron. — Decerto não estás a considerar a hipótese de voltar a Veneza. Já te esqueceste de que te comprometeste a assumir as Operações Especiais?
— Não, não me esqueci.
— Por falar nisso, a nomeação vai ser oficializada quando voltares de
Washington.
— Mal posso esperar. Shamron olhou em seu redor.
— Já confessaste à Chiara que te livraste da mobília dela?
— Sabe que fiz algumas mudanças para acomodar o meu estúdio.
— Ela não vai ficar contente — avisou Shamron. — Dava tudo para ver a cara dela quando entrar nesta casa.
Shamron ficou por mais uma hora, pondo Gabriel a par de todos os pormenores relativos ao atentado no Vaticano. Às nove e um quarto, Gabriel acompanhou-o ao carro, deixando-se ficar na rua por alguns momentos, enquanto via as luzes traseiras a desaparecerem à esquina. Regressou ao apartamento e arrumou a cozinha, depois apagou as luzes e foi para o quarto. Nesse momento, o prédio estremeceu com o clamor de uma explosão tremenda. Tal como todos os Israelitas, habituara-se a fazer uma estimativa das vítimas dos homens-bomba suicidas através do número de sirenes. Quanto mais sirenes, mais ambulâncias. Quanto mais ambulâncias, mais mortos e feridos. Ouviu uma única sirene, depois outra, e por fim uma terceira. Não foi muito grande, pensou. Ligou a televisão e esperou pelo primeiro boletim informativo. Todavia, quinze minutos depois da explosão continuavam sem dizer nada. Frustrado, pegou no telefone e ligou para o carro de Shamron. Não houve resposta.
PARTE DOIS
A Filha do Dr. Gachet
10
EIN KEREM, JERUSALÉM
A vida de Gilah Shamron fora uma sucessão de vigílias tensas. Suportara as missões secretas a territórios perigosos, as guerras e o terror, as crises e as reuniões do Escritório de Segurança que nunca pareciam acabar antes da meia-noite. Sempre receara que um inimigo do passado de Shamron se erguesse um dia e executasse sua vingança. Sempre soube que, nesse dia, seria obrigada a esperar para saber se ele viveria ou morreria.
Gabriel encontrou-a sentada calmamente numa sala de espera particular na unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah. Tinha o famoso blusão de Shamron no colo e dedilhava, absorta, o rasgão no lado direito do peito, que Shamron nunca quis remendar. Gabriel sempre viu um pouco de Golda Meir nos olhos tristes e no cabelo grisalho revolto de Gilah. Não conseguia olhar para ela sem recordar o dia em que Golda prendera uma medalha em seu peito em segredo e, de lágrimas nos olhos, agradeceu por ter vingado os onze israelenses assassinados em Munique.
— O que aconteceu, Gabriel? Como puderam pegar Ari em plena Jerusalém?
— Provavelmente tem sido vigiado há muito tempo. Quando saiu do meu apartamento disse que ia trabalhar mais um pouco no Gabinete do primeiro-ministro. — Gabriel sentou-se e pegou na mão de Gilah. — O atentado ocorreu num sinal na Rua King George.
— Um homem-bomba suicida?
— Acreditamos que foram dois homens. Estavam numa van, disfarçados de judeus haredi. A bomba era incomumente grande.
Gilah olhou para o televisor num suporte na parede.
— Bem se pode ver pelas imagens. É espantoso que alguém tenha sobrevivido. — Uma testemunha viu o carro do Ari acelerar de repente, um instante antes de a bomba explodir. Rami, ou o motorista, deve ter visto alguma coisa que o deixou desconfiado. A blindagem aguentou o impacto da explosão, mas o carro foi lançado pelos ares. Ao que parece, capotou pelo menos duas vezes.
— Quem fez isto? Foi o Hamas? A Jihad Islâmica? As Brigadas de Mártires Al-Aqsa?
— Foi reivindicado pela Irmandade de Alá.
— As mesmas pessoas responsáveis pelo atentado no Vaticano?
— Sim, Gilah.
— Acreditas neles?
— Ainda é cedo para isso — respondeu Gabriel. — O que lhe disseram os médicos?
— A operação vai durar pelo menos mais três horas. Dizem que o poderemos ver quando sair, mas apenas um minuto ou dois. Avisaram que não terá bom aspeto. — Gilah observou-o por um momento e depois voltou a olhar para o televisor. — Receia que ele possa não sobreviver, não é, Gabriel?
— É claro que sim.
— Não se preocupe — descansou-o Gilah. — Shamron é indestrutível. Shamron é eterno.
— O que lhe disseram sobre as lesões?
Gilah recitou-as calmamente. O inventário de órgãos danificados, traumatismo craniano e ossos fraturados tornava claro que a sobrevivência de Shamron não era, de todo, garantida.
— Dos três, Ari é quem ficou melhor — explicou Gilah. Ao que parece, Rami e o motorista ficaram em muito pior estado. Pobre Rami. Há anos que protege Ari, e agora isto.
— Onde está Yonatan?
— Estava de serviço no Norte. Está chegando.
O único filho de Shamron era um coronel da Força de Defesa Israelita. Ronit, a filha caprichosa, mudara-se para a Nova Zelândia para fugir ao pai dominador. Vivia numa fazenda de criação de galinhas com um gentio. Há anos que ela e Shamron não se falavam.
— Ronit também está a caminho — disse Gilah. — Quem sabe? Talvez esta situação traga alguma coisa de bom. A ausência da Ronit tem sido muito difícil para ele. Culpa-se e tem razão. Ari é muito duro para os filhos. Mas já sabias disso, não é, Gabriel?
Gilah fitou diretamente os olhos de Gabriel por um momento, ao que desviou de súbito o olhar. Durante anos pensara que ele era uma espécie de agente de secretária com vastos conhecimentos sobre arte e que passava muito tempo na Europa. Tal como o resto do país, ficara a saber a verdadeira natureza do seu trabalho através dos jornais. A atitude para com ele mudara desde que fora desmascarado. Ficava calada, tendo o cuidado de não o perturbar e sendo incapaz de o olhar nos olhos durante muito tempo. Gabriel já testemunhara comportamentos como o de Gilah, em criança, sempre que alguém entrava na casa Allon. A morte deixara a sua marca no rosto de Gabriel, como Birkenau maculara a expressão de sua mãe. Gilah não conseguia fitar-lhe os olhos, com medo do que neles pudesse ver.
— Ele já não andava bem. Claro que o tem escondido, até mesmo do primeiro-ministro.
Gabriel não ficou surpreendido. Sabia que Shamron ocultava várias maleitas desde há anos. Tal como quase todos os restantes aspetos da sua vida, a saúde do idoso era um segredo bem guardado.
— São os rins?
Gilah abanou a cabeça. — O cancro voltou.
— Pensei que o tivessem eliminado.
— Também o Ari — retorquiu ela. — E não é tudo. Tem os pulmões numa lástima, por causa dos cigarros. Diz-lhe que não fume tanto.
— Ele nunca me escuta.
— Ele só te escuta a ti. Adora-te como a um filho, Gabriel. Por vezes julgo que gosta mais de ti do que do Yonatan.
— Não seja tonta, Gilah.
— Nunca fica tão feliz como quando vocês estão juntos, no terraço em Tiberíades.
— Normalmente estamos a discutir.
— Ele gosta de discutir contigo, Gabriel.
— Pois, já tinha percebido.
Na televisão, ministros do Governo e chefes de segurança chegavam ao Gabinete do primeiro-ministro para uma sessão de emergência. Em circunstâncias normais, Shamron teria estado entre eles. Gabriel olhou para Gilah, que puxava a pele rasgada do blusão de Shamron.
— Foi o Ari, não foi? — perguntou ela. — Foi o Ari que te arrastou para esta vida... depois de Munique.
Gabriel olhou para as luzes de emergência que piscavam na tela do televisor e anuiu distraidamente. — Estavas no exército?
— Não, já tinha cumprido o serviço militar e na altura estudava na Academia de Arte Bezalel. O Ari foi falar comigo poucos dias depois de os reféns terem sido assassinados. Ainda ninguém sabia, mas Golda já tinha dado ordens para que todos os envolvidos fossem mortos.
— Por que te escolheu ele a ti?
— Falava línguas estrangeiras, e viu certas coisas nos meus relatórios do exército... qualidades que acreditava serem ideais para o tipo de trabalho que tinha em mente.
— Matar à queima-roupa, cara a cara. Foi assim que o fizeste, não foi?
— Sim, Gilah.
— Quantos?
— Gilah.
— Quantos, Gabriel?
— Seis — respondeu. — Matei seis.
Gilah tocou-lhe nos cabelos grisalhos nas têmporas.
— Mas não passavas de um rapaz.
— É mais fácil quando se é novo. À medida que vamos envelhecendo, torna-se mais difícil.
— Mesmo assim fizeste-o. Foi a ti que mandaram matar Abu Jihad, não foi?
Entraste na sua casa em Tunes e mataste-o à frente da mulher e dos filhos. E depois vingaram-se, não no país, mas em ti. Colocaram uma bomba debaixo do teu carro, em Viena.
Gilah puxava o rasgão do blusão de Shamron cada vez com mais força. Gabriel segurou-lhe a mão.
— Está tudo bem, Gilah. Já foi há muito tempo.
— Lembro-me do telefonema. Ari disse que uma bomba tinha explodido embaixo do carro de um diplomata em Viena. Lembro-me de ter ido à cozinha fazer café para ele, e quando voltei ao quarto estava chorando. Ele disse: "A culpa é toda minha. Matei a mulher e o filho dele." Foi a única vez que o vi chorar. Não o vi por uma semana. Quando finalmente voltou, perguntei o que acontecera. Não respondeu, é claro. Já estava recomposto. Mas sei que isso o atormenta em todos estes anos. Ele se culpa pelo que aconteceu.
— Não devia — garantiu Gabriel.
— Nem sequer pôde ter luto devidamente, certo? O Governo disse ao mundo que a esposa e o filho do diplomata israelense tinham morrido. Enterrou seu filho em segredo no Monte das Oliveiras, só você, Ari e um rabi, e escondeu sua mulher na Inglaterra, com um nome falso. Mas Khaled a encontrou. Ele sequestrou sua mulher e usou-a para te atrair à Gare de Lyon. — Uma lágrima escorreu pela face de Gilah. Gabriel limpou-a e sentiu que a pele enrugada continuava macia como veludo. — Tudo porque meu marido foi a sua procura numa tarde de setembro, há tanto tempo. Sua vida podia ter sido tão diferente. Podia ter sido um grande artista. Em vez disso, transformamos você num assassino. Por que não ficou amargo, Gabriel? Por que não odeia Ari, como os filhos?
— O rumo da minha vida foi traçado no dia em que os alemães escolheram aquele cabo austríaco para seu chanceler. Ari foi apenas o homem do leme no turno da noite.
— É assim tão fatalista?
— Acredite, Gilah, atravessei um período em que não suportava olhar para Ari. Mas acabei por entender que sou mais parecido com ele do que imaginava.
— Talvez tenha sido essa qualidade que ele viu em seu relatório do exército.
Gabriel esboçou um sorriso. — Talvez tenha sido.
Gilah passou com os dedos pelo rasgão no blusão de Shamron.
— Sabe a história deste rasgão?
— É um dos grandes mistérios no Escritório — declarou Gabriel. — Há um sem-número de teorias sobre como pode ter acontecido, mas ele sempre se negou a contar.
— Foi na noite do atentado em Viena. Ari tinha pressa de chegar ao Boulevard King Saul. Quando entrava no carro, o blusão ficou preso na porta e rasgou. — Passou com o dedo ao longo do rasgo. — Tentei remendá-lo muitas vezes, mas ele nunca me deixou. Era por Leah e Dani, dizia. Passou estes anos todos usando um blusão rasgado pelo que aconteceu com sua mulher e seu filho.
O telefone tocou. Gabriel atendeu e escutou em silêncio por um instante.
— Estou a caminho — disse, momentos depois, e desligou.
— Era o primeiro-ministro. Quer falar comigo imediatamente. Volto assim que puder.
— Não se preocupe, Gabriel. Yonatan está quase chegando.
— Eu volto, Gilah.
O tom da voz saiu-lhe com um certo excesso de dureza. Beijou a face dela de um modo apologético e levantou-se. Gilah agarrou-lhe o braço quando Gabriel se dirigia à porta.
— Leve isso — disse, estendendo-lhe o blusão de Shamron. Ele gostaria que ficasses com ele.
— Não fale como se ele não fosse sobreviver.
— Leva o blusão e vai embora. — Ofereceu-lhe um sorriso amargo. — Não deixa o primeiro-ministro à espera.
Gabriel saiu para o corredor e apressou-se a chegar aos elevadores. Não pode deixar o primeiro-ministro esperando. Era o que Gilah dizia sempre a Shamron, quando este partia.
Um carro e um destacamento de segurança aguardavam à entrada do centro médico. Apenas precisaram de cinco minutos para chegarem ao Gabinete do primeiro-ministro, no número 3 da Rua Kaplan. Os guardas levaram Gabriel para o interior do edifício através de uma entrada subterrânea e acompanharam-no escadas acima, até o gabinete espaçoso de uma sobriedade inesperada no último andar. A sala estava na obscuridade. Banhado por um círculo de luz, o primeiro-ministro encontrava-se à secretária. Parecia mínimo, devido ao retrato imponente do líder sionista Theodore Herzl pendurado na parede atrás de si. Passara mais de um ano desde que Gabriel estivera na sua presença. Nesse tempo, o cabelo prateado embranquecera e os olhos castanhos tinham assumido o ar lacrimoso de um velho. A reunião do Escritório de Segurança terminara havia pouco e o primeiro-ministro estava sozinho, excepto pela presença de Amos Sharret, o novo diretor-geral do Escritório, sentado numa pose rígida num cadeirão de pele.
Gabriel apertou-lhe a mão pela primeira vez.
— É um prazer conhecê-lo finalmente — cumprimentou Amos. — Gostaria que as circunstâncias fossem outras.
Gabriel sentou-se.
— É a jaqueta de Shamron — comentou o primeiro-ministro.
— Gilah insistiu para que ficasse com ela.
— Fica-lhe bem. — Sorriu, absorto. — Sabe, está até ficando parecido com ele.
— Devo considerar a observação como um elogio?
— Ele era muito elegante, quando jovem.
— Shamron nunca foi jovem, Excelência.
— Nenhum de nós foi. Todos envelhecemos antes do tempo. Abdicamos da nossa juventude para construir este país. Shamron não tem um dia de folga desde 1947. E é assim que tudo termina? — O primeiro-ministro abanou a cabeça. — Não, ele vai sobreviver. Acredite, conheço há mais tempo do que o Gabriel.
— Shamron é eterno. É o que diz Gilah.
— Eterno, talvez não, mas não vai ser morto por um bando de terroristas.
O primeiro-ministro olhou de relance para o relógio.
— Queria falar comigo?
— A promoção para chefe de Operações Especiais.
— Já aceitei o cargo.
— Eu sei, mas talvez não seja a melhor hora.
— Posso perguntar por quê?
— Porque a sua atenção tem que se concentrar na descoberta e na punição dos homens que fizeram isto a Shamron.
O primeiro-ministro silenciou repentinamente, como se pretendesse dar a Gabriel a oportunidade de apresentar a sua objecção. Gabriel permaneceu imóvel, o olhar nas mãos.
— Surpreende-me — comentou o primeiro-ministro.
— Como assim?
— Receava que fosse dizer para encontrar outra pessoa para fazê-lo.
— Não se contradiz o primeiro-ministro.
— Mas com certeza existe outro motivo.
— Estava em Roma quando os terroristas atacaram o Vaticano, e acompanhei Shamron ao carro. Ouvi a bomba explodir. — Fez uma pausa. — Esta rede, sejam eles quem forem, e quaisquer que sejam os seus objetivos, tem de ser eliminada... depressa.
— Parece querer vingança.
Gabriel ergueu o olhar das mãos.
— E quero, Excelência. Talvez, dadas as circunstâncias, não seja a pessoa indicada para a missão.
— Na verdade, e dadas as circunstâncias, é o homem ideal. Foi Amos quem disse.
Gabriel virou-se e observou-o com atenção pela primeira vez. Era um homem baixo e entroncado, com uma forma quadrada. Tinha uma franja monacal de cabelo escuro e uma fronte carregada. Detinha ainda a patente de general da FDI, mas trajava agora um fato de um cinza-claro. A sua sinceridade era uma mudança agradável. Lev sempre tivera uma personalidade de dentista, eternamente em busca de fraquezas e de podres. O estilo de Amos aproximava-se mais de um carpinteiro. Gabriel teria de ser cuidadoso, para não vir a ser vítima do martelo.
— Mas veja se a sua raiva não lhe tolda o raciocínio — acrescentou Amos.
— Isso nunca se passou — asseverou Gabriel, sustendo-lhe o olhar sombrio.
Amos ofereceu-lhe um sorriso frio, como se dissesse, Comigo não vai haver destruição de estações de trens francesas, seja qual for a circunstância. O primeiro-ministro chegou-se à frente e apoiou-se sobre os cotovelos.
— Acredita que os sauditas foram os responsáveis?
— Temos algumas provas que apontam para uma ligação saudita com a Irmandade de Alá — adiantou Gabriel, à cautela —, mas precisamos demais informações antes de começarmos a procurar um indivíduo específico.
— Como Ahmed bin Shafiq, por exemplo.
— Sim, Excelência.
— E se for ele?
— Na minha opinião, estamos a lidar com uma rede, e não com um movimento. Uma rede sustentada pelo dinheiro saudita. Se cortarmos a cabeça, a rede morre. Mas não vai ser fácil, Excelência. Sabemos muito pouco acerca dele. Nem sequer conhecemos a sua verdadeira aparência. Também será complicado a nível político, devido aos americanos.
— Não vai ser complicado de todo. Ahmed bin Shafiq tentou matar o meu conselheiro mais chegado, por isso Ahmed bin Shafiq tem de morrer. — E se ele estiver a agir a mando do príncipe Nabil, ou de alguém da Família Real, uma família com uma relação histórica e econômica muito próxima do nosso aliado mais importante? — Em breve o saberemos.
O primeiro-ministro lançou um olhar a Amos.
— O Adrian Carter, da CIA, gostaria de falar com você — disse Amos. — Fiquei de viajar para Washington amanhã, para o deixar ao corrente das nossas informações sobre o atentado no Vaticano.
— O Carter pediu uma alteração do local de encontro. — Onde se quer reunir?
— Em Londres.
— Porquê Londres?
— Foi sugestão do Carter — explicou Amos. — Queria um local neutro.
— Desde quando uma casa de segurança da CIA em Londres é terreno neutro? — Gabriel olhou para o primeiro-ministro e depois para Amos. — Não quero deixar Jerusalém... pelo menos até saber se Shamron vai sobreviver.
— Carter diz que é urgente — contrapôs Amos. — Quer encontrar com você amanhã à noite.
— Então mande outra pessoa.
— Não podemos — interveio o primeiro-ministro. — Você foi o único convidado.
C0NTINUA
Gabriel Allon, restaurador de arte e espião, está prestes a enfrentar o maior desafio de sua vida. Um alegado simpatizante da Al-Qaeda é morto em Londres, e no seu computador são encontradas fotos que levam o serviço secreto israelense a desconfiar de que a organização terrorista prepara um dos mais arrojados atentados no coração do Vaticano.
Allon avisa seu velho amigo, monsenhor Luigi Donati, secretário pessoal do Papa, e parte para Roma a fim de ajudar na segurança.
O que nem ele nem Donati sabem é que o inimigo já se infiltrou no Vaticano. Nas semanas seguintes, Allon travará mortífero duelo de astúcia contra um dos homens mais perigosos do mundo, que o levará de uma galeria londrina a uma ilha paradisíaca no Caribe, a um isolado vale na Suíça e, por fim, de volta ao Vaticano. Allon monta uma armadilha e espera não ser ele a presa.
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PARTE UM
A Porta da Morte
1
LONDRES
Foi Ali Massoudi quem, involuntariamente, arrancou Gabriel Allon de sua aposentadoria breve e inquieta: Massoudi, o grande inteletual e livre-pensador eurófilo que, num momento de pânico, se esqueceu de que os ingleses dirigem do lado esquerdo da estrada.
O cenário de sua morte foi um fim de tarde chuvoso de outubro, em Bloomsbury. A data, a sessão final do primeiro Fórum Político anual para a Paz e Segurança na Palestina, Iraque e Países Vizinhos. A conferência tivera início nessa manhã bem cedo, por entre votos de esperança e grande fanfarra. Ao fim do dia, contudo, assumira a qualidade de uma peça medíocre em digressão. Até mesmo os manifestantes que ali tinham comparecido, na esperança de partilhar um pouco da luz da ribalta, pareciam ter consciência de que representavam um guião já muito batido. O presidente americano foi queimado em efígie às dez. O primeiro-ministro israelense foi lançado às chamas purificadoras às onze. Por volta da hora de almoço, sob um dilúvio que por momentos transformou Russell Square num lago, tivera lugar uma qualquer tolice relacionada com os direitos das mulheres na Arábia Saudita. Às oito e meia, quando o painel final foi dado por encerrado, as duas dúzias de estoicos que tinham permanecido até o fim arrastaram-se para as saídas. Os organizadores do acontecimento detetaram pouco apetite para uma repetição do encontro, no Outono seguinte.
Um aderecista adiantou-se e removeu do púlpito um cartaz que dizia: Gaza foi libertada — e agora? O primeiro congressista a levantar-se foi Sayyid, da London School of Economics, defensor dos homens-bomba suicidas e apologista da Al-Qaeda. Em seguida, o austero camareiro-mor de Cambridge, que falava da Palestina e dos judeus como se estes ainda fossem uma pedra no sapato dos elementos sisudos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ao longo de toda a discussão, o idoso camareiro servira de Muro de Separação entre o inflamável Sayyid e uma pobre alma da embaixada israelense, chamada Rachel, que suscitara apupos e vaias de desaprovação sempre que abrira a boca. O camareiro procurava agora servir de soldado da paz, com Sayyid a perseguir Rachel até a porta, lançando-lhe invetivas em que lhe dizia que os dias de colonizadora chegavam ao fim.
Ali Massoudi, professor de Administração Global e de Teoria Social da Universidade de Bremen, foi o último a levantar-se. Tal não seria de surpreender, poderiam ter dito os colegas invejosos, pois no mundo incestuoso dos estudos sobre o Oriente Médio, Massoudi tinha a reputação de ser alguém que nunca abandonava de bom grado um palco. Palestino de nascimento, jordano de passaporte e europeu de formação e estudos, o professor Massoudi surgia ao mundo como um homem moderado. O futuro brilhante da Arábia, assim lhe chamavam. O rosto do progresso. Era conhecido por desconfiar da religião em geral e do islamismo militante em particular. Aproveitava todas as oportunidades, quer fosse em editoriais de jornais, nas salas de aula ou na televisão, para se lamentar da disfunção vivida pelo mundo árabe. Do seu fracasso em educar o povo. Da tendência para culpar os Americanos e os Sionistas pelas maleitas de que padecia. O seu último livro fora basicamente um apelo a uma Reforma Islâmica. Os membros da jihad acusaram-no de ser herege. Os moderados proclamaram que tinha a coragem de Martinho Lutero. Nessa tarde, argumentara, para consternação de Sayyid, que a bola se encontrava no campo palestino. Enquanto os Palestinos não abandonassem a cultura do terror, alertara Massoudi, não se poderia esperar que os Israelitas cedessem um milímetro que fosse da Cisjordânia. Nem o deveriam fazer. Sacrilégio, bradara Sayyid. Apostasia.
O professor Massoudi era alto, tendo um pouco mais de um metro e oitenta de altura, e era demasiado bem-apessoado para um homem que trabalhava com jovens mulheres impressionáveis. Tinha o cabelo escuro e encaracolado, malares largos e fortes e um queixo quadrado com uma covinha marcada ao centro. Os olhos castanhos e profundos conferiam-lhe ao rosto um ar de inteligência acentuada e tranquilizadora. Vestido como estava, com um casaco desportivo de caxemira e uma camisola de gola alta creme, parecia o arquétipo do inteletual europeu. Era uma imagem que lhe dava muito trabalho a transmitir. Com gestos deliberados, guardou metodicamente os papéis e as canetas na pasta coçada e desceu os degraus do palco, ao que se dirigiu ao corredor central, em direção à saída.
Vários elementos da assistência demoravam-se na entrada. A um lado, uma ilha tempestuosa no centro de um mar de tranquilidade, estava a garota. Vestia jeans desbotados, um blusão de couro e um kaffiyeh palestino axadrezado ao pescoço. O cabelo preto brilhava como a asa de um corvo. Os olhos eram também quase pretos, mas cintilavam com outro fulgor. Seu nome era Hamida al-Tatari. Dissera ser refugiada. Nascera em Ama, fora criada em Hamburgo e era agora uma cidadã canadiana que residia no Norte de Londres. Massoudi conhecera-a nessa tarde, durante uma recepção na associação de estudantes. Com um café na mão, acusara-o com fervor de mostrar insuficiente afronta contra os crimes dos americanos e dos judeus. Massoudi gostara do que vira. Tinham combinado tomar uma bebida nesse serão, no bar ao lado do teatro de Sloane Square. As intenções dele não eram românticas. Não queria o corpo de Hamida. Queria o seu entusiasmo e o seu rosto limpo. O inglês perfeito e o passaporte canadiano. A jovem lançou-lhe um olhar furtivo quando ele cruzou o hall, mas não tentou falar-lhe. Mantém a distância após o simpósio, indicara-lhe ele nessa tarde. Um homem da minha posição tem de ter cuidado com quem é visto. No exterior, abrigou-se por um momento debaixo do pórtico e olhou o trânsito que se arrastava ao longo da estrada molhada. Sentiu alguém a encostar-se ao seu cotovelo e depois observou Hamida a mergulhar silenciosamente na chuvada. Esperou que desaparecesse, pendurou a pasta no ombro e afastou-se na direção oposta, para o hotel em Russell Square.
Deixou-se transformar, a mudança que ocorria sempre que alternava entre vidas. A aceleração do ritmo cardíaco, o aguçar dos sentidos, a repentina inclinação para os pormenores. Como o jovem calvo que vinha em sua direção, ao abrigo de um guarda-chuva, e cujo olhar pareceu demorar-se no rosto de Massoudi por um instante mais do que deveria. Ou o vendedor do quiosque que fitara, sem pudor, seus olhos, quando comprara o Evening Standard. Ou o taxista que o observou, trinta segundos depois, quando jogou esse mesmo jornal numa lixeira em Upper Woburn Place.
Um ônibus cruzou com ele. Enquanto passava ruidosamente, Massoudi espiou as janelas embaciadas e viu uma dúzia de rostos cansados, quase todos negros ou castanhos. Os novos londrinos, pensou, e, por um instante, o professor de Administração Global e Teoria Social debateu-se com as implicações. Quantos apoiariam em silêncio a sua causa? Quantos assinariam por baixo, se lhes apresentasse um contrato de morte?
Logo depois de o ônibus ter passado, viu no passeio oposto um único pedestre: capa de plástico, rabo-de-cavalo, duas linhas estreitas como sobrancelhas. Massoudi reconheceu-o de imediato. O jovem estivera na conferência, na mesma fila de Hamida, mas no lado oposto do auditório. Ocupara o mesmo lugar nessa manhã, quando Massoudi fora a única voz opositora durante uma discussão sobre os benefícios da proibição de acadêmicos israelenses nas costas europeias. Massoudi baixou os olhos e continuou a andar, levando involuntariamente a mão à alça da pasta. Estaria a ser seguido? Se assim fosse, por quem? O MI5 seria a explicação mais plausível. A mais provável, pensou, mas não a única. A BND alemã poderia tê-lo seguido de Bremen até Londres. Ou talvez estivesse vigiado pela CIA.
Mas foi a quarta possibilidade que fez o coração de Massoudi dar um salto no peito. E se o homem não fosse inglês, nem alemão, nem americano? E se trabalhasse para um serviço de espionagem que mostrava poucos escrúpulos em liquidar os inimigos, mesmo nas ruas das capitais estrangeiras? Um serviço de espionagem que usava habitualmente mulheres como isca? Pensou no que Hamida lhe dissera nessa tarde.
— Vivi quase toda a minha infância e juventude em Toronto.
— E antes disso?
— Aman, em pequena. Depois um ano em Hamburgo. Sou palestina, professor. Meu lar é uma mala.
Massoudi saiu de repente de Woburn Place, entrando no labirinto de ruas secundárias de St. Pancras. Abrandou depois de alguns passos e olhou por cima do ombro. O indivíduo de oleado atravessara a rua e seguia-o. Estugou o passo e dobrou algumas esquinas, à direita e à esquerda. Passou por uma fiada de casas antigas restauradas, por um bloco de apartamentos, por uma praça vazia, coberta de folhas secas. Massoudi não prestava atenção a nada disso. Tentava orientar-se. Conhecia razoavelmente as artérias principais de Londres, mas as ruas secundárias eram um mistério. Ignorou os cuidados do ofício e passou a olhar para trás com regularidade. A cada vislumbre, o homem parecia um ou dois passos mais próximo.
Chegou a um cruzamento, olhou para a esquerda e viu o trânsito intenso de Euston Road. Sabia que do lado oposto ficavam as estações de Kings Cross e de St. Pancras. Tomou essa direção e, segundos depois, voltou a olhar por cima do ombro. O homem contornara a esquina e vinha atrás dele.
Começou a correr. Nunca fora grande atleta e os anos de vida acadêmica tinham-lhe roubado a preparação física. O peso do computador portátil que tinha na pasta era como uma âncora. A cada passada, a sua carga batia-lhe na anca. Firmou a pasta com o cotovelo e segurou a alça com a outra mão, mas isso obrigou-o a andar com um ritmo galopante desajeitado, que o atrasava ainda mais. Pensou em livrar-se do peso, mas resolveu manter a pasta. Se caísse nas mãos erradas, o computador seria uma arca do tesouro de informações. Operacionais, fotografias de vigilância, comunicações, contas bancárias... Deteve-se em Euston Road. Olhou por cima do ombro e viu o perseguidor continuar a avançar metodicamente na sua direção, de mãos nos bolsos, os olhos baixos. Olhou para a esquerda, viu asfalto vazio e desceu do passeio.
O gemido da buzina do caminhão foi o último som que Ali Massoudi ouviu. A pasta soltou-se com o impacto. Alçou voo, rodopiou algumas vezes no trajeto por cima da estrada e aterrou no passeio com um baque sólido. O homem da capa de oleado mal reduziu o passo quando se baixou para a agarrar pela alça. Pendurou-a ao ombro, atravessou a Euston Road e seguiu a multidão para Kings Cross.
2
JERUSALÉM
A pasta chegara a Paris de madrugada e, pelas onze horas, estava a ser levada para um bloco de escritórios anônimo no Boulevard King Saul, em Tel Aviv. Aí, os objetos pessoais do professor foram rapidamente investigados e o disco rígido do computador portátil submetido a um assalto por uma equipe de técnicos informáticos. Às três da tarde, as primeiras informações tinham sido enviadas para o Gabinete do primeiro-ministro, em Jerusalém, e às cinco, um dossiê com o material mais alarmante viajava no banco de trás de uma limusina Peugeot blindada que se dirigia à Rua Narkiss, uma ruela sossegada perto da Avenida Ben Yehuda.
O carro parou em frente do pequeno prédio de apartamentos que tinha o número 16. Ari Shamron, o antigo chefe do serviço secreto israelense e agora conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados com segurança e informações, saiu do banco traseiro. Rami, o chefe de olhos negros do destacamento especial de segurança, seguiu-o de perto. Shamron fizera multidões de inimigos durante a sua longa e agitada carreira. Devido ao emaranhado demográfico israelense, muitos deles encontravam-se a uma distância perigosamente curta. Mesmo em sua villa fortificada em Tiberíades, Shamron estava sempre cercado por guarda-costas. Fez uma breve pausa no acesso do jardim e olhou para cima. Era um pequeno edifício nada elegante de dois andares, construído em calcário de Jerusalém, com um eucalipto imponente à frente que lançava uma sombra agradável sobre as varandas da fachada. Os ramos da árvore agitavam-se com o primeiro vento frio de Outono, e da janela aberta no segundo andar vinha um odor forte a diluente.
No hall, Shamron olhou para a caixa do correio do apartamento número três e viu que não tinha nome. Dirigiu-se às escadas e subiu-as com lentidão. Era baixo e vestia, como habitualmente, calça caqui e blusão de couro puído com um rasgão no lado direito do peito. Tinha o rosto cheio de fissuras e o que lhe restava de cabelo grisalho fora cortado tão curto que era quase invisível. As mãos pareciam couro e estavam salpicadas de manchas de idade, e pareciam ter vindo de um homem com o dobro do tamanho. Uma delas segurava o dossiê.
Quando chegou ao segundo andar, a porta estava entreaberta. Chegou-lhe os dedos e empurrou-a com suavidade. O apartamento em que entrou fora cuidadosamente decorado por uma bela mulher ítalo-judaica de gosto impecável. Agora, a mobília, como a mulher, tinha desaparecido e o apartamento fora transformado no estúdio de um artista. Shamron teve de se recordar de que não era um artista. Gabriel Allon era um restaurador, um dos três ou quatro restauradores mais procurados do mundo. Encontrava-se de pé, à frente de uma tela enorme que representava um homem cercado por gatos avantajados de ar voraz. Shamron acomodou-se num banco sujo de tinta e observou-o a trabalhar durante alguns momentos. Sempre ficara espantado com a capacidade de Gabriel de imitar as pinceladas dos pintores renascentistas. Para Shamron, era uma espécie de truque, apenas mais um dos dons a serem utilizados, a par do conhecimento de línguas e da capacidade de sacar uma Beretta e colocá-la em posição de disparo no tempo que a maior parte dos homens demora para bater as palmas.
— Parece muito melhor do que quando chegou — comentou Shamron —, mas continuo sem entender por que haveria alguém que querer tê-lo em casa.
— Não vai para uma casa particular — retorquiu Gabriel, o pincel ainda na tela. — É uma peça de museu.
— Quem o pintou? — inquiriu Shamron repentinamente, como se perguntasse pelo responsável por um atentado de homem-bomba.
— A casa de leilões Bonhams de Londres achava que tinha sido Erasmo Quellinus — respondeu Gabriel. — Quellinus pode ter feito a base, mas para mim é óbvio que foi Rubens quem o terminou. — Passou a mão pela tela enorme. — As pinceladas dele estão um pouco por todo o lado.
— Qual a diferença?
— Uns dez milhões de libras — explicou Gabriel. — Julian vai se sair muito bem com este.
Julian Isherwood era um negociante de arte londrino, que por vezes trabalhava para o serviço secreto israelense. O departamento tinha um nome comprido que pouco tinha a ver com a verdadeira natureza do trabalho executado. Homens como Shamron e Gabriel referiam-se a ele como o Escritório, e nada mais.
— Espero que Julian pague bem.
— Os honorários de restauração, mais uma pequena comissão sobre a venda.
— Qual será o total?
Gabriel bateu com o pincel na paleta e voltou ao trabalho.
— Temos que falar — disse Shamron.
— Pois fale.
— Não vou falar para stuas costas. — Gabriel virou-se e olhou novamente para Shamron através das lentes do visor de ampliação. E também não vou falar contigo enquanto continuares com isso na cara. Até parece que saíste de um pesadelo. Com relutância, Gabriel pousou a paleta em cima da mesa de trabalho e retirou o visor, deixando ver um par de olhos de um tom verde-esmeralda brilhante. Tinha uma altura abaixo da média e o físico seco de um ciclista. O rosto era alto na testa e estreito no queixo, e tinha um nariz comprido e ossudo que parecia ter sido esculpido em madeira. O cabelo era muito curto e estava salpicado de grisalho nas têmporas. Devia-se a Shamron o fato de Gabriel ser restaurador de arte e não um dos melhores pintores da sua geração. Fora também por causa dele que ficara com as têmporas brancas quase da noite para o dia, quando tinha pouco mais de vinte anos. Shamron fora o oficial do serviço secreto escolhido por Golda Meir para encontrar e assassinar os perpetradores do Massacre de Munique de 1972, e um jovem e promissor estudante de arte chamado Gabriel Allon tinha sido o pistoleiro principal.
Passou alguns momentos a limpar a paleta e os pincéis, após o que se dirigiu à cozinha. Shamron sentou-se à pequena mesa e esperou que Gabriel virasse as costas, antes de acender rapidamente um dos seus cigarros turcos pestilentos. Ao ouvir o clique-clique familiar do velho isqueiro Zippo de Shamron, Gabriel apontou, exasperado, para o Rubens. Mas Shamron acenou com a mão e levou o cigarro aos lábios, numa atitude de desafio. Um silêncio confortável instalou-se entre os dois homens. Gabriel verteu água engarrafada para a chaleira e despejou algumas colheres de café na cafeteira. Shamron ouvia com agrado o vento nos eucaliptos do jardim. Sendo um homem profundamente secular, marcava a passagem do tempo não através das celebrações judaicas, mas sim pelo ritmo da terra: o dia em que as chuvas começavam, o dia em que as flores silvestres desabrochavam na Galileia, o dia em que o vento frio regressava. Gabriel conseguia ler-lhe o pensamento. Mais um Outono e ainda aqui estamos. A aliança não foi revogada.
— O primeiro-ministro quer uma resposta. — O olhar de Shamron continuava fito no pequeno jardim. — É um homem paciente, mas não vai esperar para sempre — Já lhe disse que terei uma resposta quando acabar o quadro. Shamron olhou para Gabriel.
— Será que a tua arrogância não tem limites? O primeiro-ministro do Estado de Israel quer que sejas chefe das Operações Especiais, e tu troca-lo por um pedaço de tela com quinhentos anos.
Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron despejou açúcar para o seu e mexeu-o violentamente uma única vez.
— Você mesmo disse que o quadro está quase terminado. Qual vai ser sua resposta?
— Ainda não decidi.
— Posso dar um conselho útil?
— E se eu não quiser seu conselho?
— Dou assim mesmo. — Shamron extinguiu a vida da guimba do cigarro. — Devia aceitar a oferta do primeiro-ministro, antes que ele procure outra pessoa.
— Ficaria muito feliz.
— Sério? E o que fará de sua vida? — Ao ter o silêncio como resposta, Shamron insistiu. — Deixe pintar um quadro, Gabriel. Vou dar o meu melhor. Não tenho seus dotes. Não venho de uma grande família de inteletuais germano-judaicos. Sou apenas um pobre judeu polaco cujo pai vendia vasos num carrinho de mão.
A terrível pronúncia polaca de Shamron acentuara-se. Gabriel não pôde deixar de sorrir. Sabia que sempre que Shamron desempenhava o papel de judeu oprimido de Lvov algo divertido se seguiria.
— Não tens para onde ir, Gabriel. Tu próprio o disseste, da primeira vez que te oferecemos este cargo. O que vais fazer quando acabares este teu Rubens? Tens mais algum trabalho à espera? — A pausa de Shamron foi teatral, pois sabia que a resposta seria negativa. — Não podes voltar à Europa, antes de seres oficialmente ilibado do ataque homem-bomba na Gare de Lyon. O Julian poderá enviar-te outro quadro, mas eventualmente também isso vai acabar, pois as despesas de embalagem e de envio vão delapidar-lhe a margem de lucro que já não é famosa. Percebes onde quero chegar, Gabriel?
— Perfeitamente. Está a tentar usar a minha situação infeliz como chantagem para me obrigar a aceitar as Operações.
— Chantagem? Não, Gabriel. Eu sei o que é a chantagem, e Deus sabe que já a usei para alcançar os meus objetivos. Mas isto não é chantagem. Estou a tentar ajudar-te.
— Ajudar?
— Diz-me uma coisa, Gabriel: o que estás a pensar fazer em relação ao dinheiro? — Eu tenho dinheiro.
— Que chega para viver como um eremita, mas que não é suficiente para viver. — Shamron ficou em silêncio durante alguns momentos e escutou o vento. — Está calmo, não está? Quase tranquilo. É tentador pensar que pode ficar assim para sempre. Mas não vai durar. Entregamos Gaza sem exigir nada em troca e a paga que eles nos deram foi eleger livremente o Hamas como líder. Não tarda nada vão querer a Cisjordânia e, se não cedermos a curto prazo, vai haver mais derrame de sangue, ainda pior do que a segunda intifada. Acredita, Gabriel, um dia tudo isso vai recomeçar. E não só aqui, mas por todo o lado. Julgas que estão indolentes? É claro que não. Estão a planejar a campanha seguinte. Andam a falar com o Osama e com os amiguinhos dele. Sabemos de fonte segura que a Autoridade Palestina está cheia de elementos da Al-Qaeda e seus simpatizantes. Também sabemos que estão a planejar grandes ataques contra Israel e contra alvos israelenses no estrangeiro, num futuro próximo. O Escritório também acredita que o primeiro-ministro é um alvo a abater, a par de alguns conselheiros principais.
— O senhor incluído?
— É claro — asseverou Shamron. — Afinal de contas, sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados com a segurança e com o terrorismo. Para eles, a minha morte seria uma tremenda vitória simbólica.
Voltou a olhar pela janela, para o vento que soprava entre as árvores. — É irônico, não achas? Este lugar devia ser o nosso santuário. Agora, por estranho que pareça, deixou-nos mais vulneráveis do que nunca. Quase metade de todos os judeus do mundo vivem nesta faixa de terra minúscula. Bastava um engenho nuclear pequeno. Os Americanos eram capazes de sobreviver. Os Russos talvez mal dessem por ele. Mas nós? Uma bomba em Tel Aviv ia matar um quarto da população do país... talvez mais.
— E precisa de mim para impedir esse apocalipse? Pensei que o Escritório estivesse em boas mãos.
— As coisas estão melhores desde que o Lev foi convidado a sair. O Amos é um líder nato, e um administrador de uma competência extraordinária, mas por vezes julgo que tem demasiado espírito de soldado dentro dele. — Foi chefe do Sayeret Matkal e do Aman. O que esperava?
— Sabíamos o que esperar do Amos, mas agora o primeiro-ministro e eu estamos preocupados que esteja a transformar O Boulevard King Saul num posto da FDI.
Queremos que o Escritório mantenha o seu caráter original.
— A insanidade?
— A coragem — contrapôs Shamron. — A audácia. Gostava que o Amos pensasse um pouco menos como comandante de batalha e um pouco mais como... — Fez uma pausa, enquanto procurava o termo correto. Quando o encontrou, esfregou os dois primeiros dedos no polegar e concluiu: — Como um artista. Preciso de alguém ao lado dele que pense como Caravaggio. — Caravaggio era louco.
— Exatamente.
Shamron fez menção de acender outro cigarro, mas desta vez Gabriel conseguiu deter seu movimento antes que acionasse o isqueiro. Shamron fitou-o, os olhos assumindo de súbito uma expressão séria.
— Precisamos de você já, Gabriel. Há duas horas, o chefe de Operações Especiais entregou a Amos a carta de demissão.
— Por quê?
— Londres. — Shamron olhou para a mão cativa. — Devolve minha mão? Gabriel largou o pulso grosso. Shamron rolou o cigarro apagado entre o polegar e o indicador.
— O que aconteceu em Londres? — perguntou Gabriel.
— Receio que ontem à noite tenhamos sofrido um contratempo.
— Um contratempo? Quando o Escritório tem um contratempo morre um.
Shamron anuiu.
— Mas pelo menos são consistentes.
— O nome Ali Massoudi diz alguma coisa a você?
— É professor de alguma coisa numa universidade alemã — retorquiu Gabriel. — Gosta de desempenhar o papel de iconoclasta e reformista. Cheguei a conhecê-lo.
As sobrancelhas de Shamron ergueram-se de surpresa.
— Sério? Onde?
— Foi a Veneza há uns dois anos, para um grande simpósio sobre o Oriente Médio. O roteiro dos participantes incluía visita guiada à cidade. Uma das paradas foi na Igreja de San Zaccaria, onde eu estava a restaurar o retábulo de Bellini.
Durante anos, Gabriel vivera e trabalhara em Veneza, dando pelo nome de Mario Delvecchio. Seis meses antes fora obrigado a fugir da cidade, depois de ter sido descoberto por um mestre terrorista palestino chamado Khaled al-Khalifa. O assunto terminara na Gare de
Lyon e, em consequência, o nome e o passado secreto de Gabriel fizeram as primeiras páginas da imprensa francesa e europeia, incluindo um artigo no The Sunday Times que o considerava o "Anjo da Morte de Israel". Era ainda procurado para ser interrogado pela Polícia de Paris, e um grupo de direitos civis palestino apresentara queixa em Londres, alegando crimes de guerra.
— E chegaste mesmo a falar com o Massoudi? — perguntou Shamron, incrédulo. — Apertaram as mãos?
— Como Mario Delvecchio, é claro.
— Imagino que não te tenhas apercebido de que estavas a apertar a mão a um terrorista.
Shamron enfiou a ponta do cigarro entre os lábios e acendeu o Zippo. Desta vez, Gabriel não interferiu.
— Há três meses recebemos uma informação de um amigo do GID jordano, que nos dizia que o professor Ali Massoudi, o grande moderado e reformista, era na verdade um caçador de talentos da Al-Qaeda. Segundo os jordanos, ele estava à procura de recrutas para atacar alvos israelenses e judaicos na Europa. As conferências de paz e as manifestações anti-israelenses eram o seu terreno de caça preferido. Não ficamos surpreendidos com essa parte. Há já algum tempo que sabemos que as conferências de paz se tornaram ponto de encontro entre operacionais da Al-Qaeda e extremistas europeus, tanto de esquerda como de direita. Decidimos que seria bom vigiar o professor Massoudi. Pusemos sob escuta o telefone do apartamento de Bremen, mas os resultados foram, no mínimo, decepcionantes. Era muito bom ao telefone. Depois, há cerca de um mês, a Estação de Londres contribuiu com uma informação oportuna. Ao que parece, a Secção Cultural da embaixada de Londres foi convidada a incluir um participante numa coisa chamada Fórum Político para a Paz e Segurança na Palestina, Iraque e Países Vizinhos. Quando a Cultural pediu uma lista dos outros participantes, imagina qual foi o nome que apareceu.
— O professor Ali Massoudi.
— A Cultural acedeu em enviar um representante à conferência, e as Operações Especiais começaram a vigiar o Massoudi.
— Que tipo de operação era?
— Simples — explicou Shamron. — Apanhá-lo com a mão na massa. Comprometê-lo. Ameaçá-lo. Dar-lhe a volta. Estás a imaginar? Um agente no interior do departamento de pessoal da Al-Qaeda? com a ajuda do Massoudi, poderíamos ter chegado à rede europeia.
— O que aconteceu?
— Pusemos uma garota à frente dele. Apresentou-se como Hamida al-Tatari. O nome verdadeiro é Aviva e é de Ramat Gan, mas isso pouco importa. Conheceu Massoudi durante uma recepção. Ele. ficou intrigado e acedeu a que se voltassem a encontrar nessa noite, para uma conversa mais elaborada sobre o estado atual do mundo. Seguimos o Massoudi depois da última sessão da conferência, mas, ao que parece, o professor detetou o agente e começou a fugir. Olhou para o lado errado quando atravessou a Euston Road e meteu-se à frente de um caminhão. Gabriel estremeceu.
— Felizmente não saímos de lá de mãos a abanar — prosseguiu Shamron. — O agente conseguiu resgatar a pasta de Massoudi. Lá dentro, entre outras coisas, estava um computador portátil. Ao que parece, o professor Ali Massoudi não era um mero caçador de talentos.
Shamron pousou o dossiê à frente de Gabriel e, com um aceno breve da cabeça, disse que deveria abrir a capa. Lá dentro, encontrou uma pilha de fotografias de vigilância: a Praça de S. Pedro a partir de vários ângulos; a fachada e o interior da Basílica; a Guarda Suíça de sentinela ao Arco dos Sinos. Era óbvio que as fotografias não tinham sido tiradas por um turista vulgar, pois o fotógrafo estivera muito menos interessado na estética visual do Vaticano do que nas medidas de segurança em seu redor. Havia várias imagens das barricadas no extremo ocidental da praça e dos detetores de metal ao longo da Colunata de Bernini, e muitas outras da Vigilanza e dos Carabinieri que patrulhavam a praça durante os ajuntamentos de pessoas, e que incluíam grandes planos das armas pessoais. As últimas três fotografias mostravam o papa Paulo VII a saudar a multidão na Praça de S. Pedro, a partir do papamóvel envidraçado. A lente da câmera não se focara no Santo Padre, mas sim nos elementos à paisana da Guarda Suíça que o acompanhavam.
Gabriel viu as fotografias uma segunda vez. Com base na qualidade da luz e nas roupas usadas pelas multidões de peregrinos, parecia que tinham sido tiradas em pelo menos três ocasiões diferentes. Sabia que a vigilância fotográfica repetida do mesmo alvo era caraterística de uma operação séria da Al-Qaeda. Fechou o dossiê e estendeu-o a Shamron, mas este não o aceitou. Gabriel olhou para o rosto do idoso com a mesma intensidade com que analisara as fotografias.
Sabia que se avizinhavam mais más notícias.
— A Técnica descobriu outra coisa no computador do Massoudi — disse Shamron. — Instruções sobre como acessar uma conta bancária em Zurique. Uma conta que já conhecemos há algum tempo, pois tem recebido infusões regulares de dinheiro de uma coisa chamada Comitê para a Libertação de Al-Quds.
Al-Quds era o nome árabe para Jerusalém.
— Quem está por trás dela? — questionou Gabriel.
— A Arábia Saudita — respondeu Shamron. — Mais concretamente, o ministro da Administração Interna da Arábia Saudita, o príncipe Nabil.
No Escritório, Nabil era conhecido por Príncipe das Trevas, devido ao seu ódio por Israel e pelos Estados Unidos, e pelo apoio concedido aos militantes islâmicos espalhados pelo mundo.
— Nabil criou o Comitê no auge da segunda intifada — prosseguiu Shamron. — É ele quem angaria o dinheiro e gere pessoalmente a sua distribuição. Acreditamos que tenha cem milhões de dólares à sua disposição e está a canalizá-lo para alguns dos mais violentos grupos terroristas do mundo, incluindo a Al-Qaeda. — Quem dá o dinheiro a Nabil?
— Ao contrário das outras obras de caridade sauditas, o Comitê para a Libertação de Al-Quds tem uma base de doadores muito pequena. Julgamos que Nabil recebe o dinheiro de um punhado de multimilionários sauditas.
Shamron olhou para o café por um instante.
— Caridade — disse, com um tom de desprezo. — Uma bela palavra, não é? Mas a caridade saudita sempre foi uma espada de dois gumes. A Liga Mundial Muçulmana, a Organização Internacional para o Apoio Islâmico, a Fundação Islâmica al-Haramayn, a Fundação Internacional para a Benevolência, tudo isto está para a Arábia Saudita como o Comintern estava para a antiga União Soviética. Um meio de propagação da fé. O islamismo. E não é um islamismo qualquer. O tipo de islamismo puritano da Arábia Saudita. O wahhabismo. As obras de caridade constroem mesquitas e centros islâmicos um pouco por todo o mundo, e madrassas que cospem os militantes wahhabis de amanhã. Também entregam verbas diretamente aos terroristas, incluindo os nossos amigos do Hamas. Os motores da América trabalham com petróleo saudita, mas as redes do terrorismo islâmico mundial trabalham em grande parte com dinheiro saudita.
— A caridade é o terceiro pilar do islamismo — comentou Gabriel.
— Zakat.
— E é uma qualidade muito nobre — asseverou Shamron —, exceto quando a akat acaba nas mãos de assassinos.
— Acha que Ali Massoudi tinha mais alguma ligação com os sauditas, além do dinheiro?
— Talvez nunca venhamos a saber, pois o grande professor já não está entre nós. Mas quem quer que seja o seu empregador, tem os olhos no Vaticano... e alguém tem que avisá-los.
— Imagino que já tenha pensado em alguém para a tarefa.
— Encare como sua primeira missão como chefe de Operações Especiais — disse Shamron. — O primeiro-ministro quer que assuma imediatamente.
— E Amos?
— Amos tem outro nome em mente, mas o primeiro-ministro e eu deixamos bem claro quem queremos no cargo.
— Meu cadastro tem sua conta de escândalos e, infelizmente, o mundo sabe deles.
— O caso da Gare de Lyon? — Shamron encolheu os ombros. — Caiu numa cilada armada por um adversário inteligente. Além disso, sempre acreditei que uma carreira livre de controvérsia nem sequer chega a ser uma carreira. O primeiro-ministro também é dessa opinião.
— Isso talvez seja por ter estado envolvido nos seus próprios escândalos. — Gabriel suspirou profundamente e voltou a olhar para as fotos. — Enviar-me a Roma acarreta riscos. Se os franceses descobrirem que estou em solo italiano...
— Não precisa ir a Roma — atalhou Shamron. — Roma vem até você.
— Donati?
Shamron anuiu.
— O que lhe disse?
— O suficiente para ter pedido à Alitalia que emprestasse um avião por algumas horas — disse Shamron. — Chega logo de manhã. Mostre as fotos. Conte o que for necessário para convencê-lo de que acreditamos que a ameaça é real.
— E se ele pedir ajuda?
Shamron encolheu os ombros.
— Dê tudo o que ele precisar.
3
JERUSALÉM
Às onze horas do dia seguinte, o monsenhor Luigi Donati, secretário pessoal de Sua Santidade, o papa Paulo VII, esperava por Gabriel no hall do Hotel Rei David.
Era alto, magro e elegante como um ídolo do cinema italiano. O corte do fato eclesiástico preto e o colarinho romano sugeriam que o monsenhor, embora casto, não era completamente isento de uma certa vaidade pessoal. A mesma indicação era transmitida pelo dispendioso relógio suíço que tinha no pulso e pela caneta de ouro alojada no bolso do peito do casaco. Nos olhos escuros brilhava uma inteligência feroz e inflexível, e a rigidez do maxilar revelava que era um homem perigoso quando contrariado. Os jornalistas do Vaticano descreviam-no como um Rasputin eclesiástico, o poder por trás do trono papal. Os seus inimigos na Cúria Romana referiam-se com frequência a Donati como sendo "o papa Negro", numa alusão pouco lisonjeira ao seu passado jesuíta. Tinham-se conhecido havia três anos. Gabriel investigava o assassínio de um estudioso israelense que vivia em Munique, um antigo agente do Escritório, chamado Benjamin Stern. O rasto de pistas levara Gabriel até o Vaticano, e até as mãos capazes de Donati, e juntos tinham destruído uma grave ameaça ao papado. Um ano mais tarde, Donati ajudara Gabriel a descobrir elementos num arquivo da Igreja que lhe tinham permitido identificar e capturar Erich Radek, um criminoso de guerra nazi que vivia em Viena. Mas a ligação entre Donati e Gabriel não se limitava a dois homens. O mestre de Donati, o papa Paulo VII, encontrava-se mais próximo de Israel do que qualquer dos seus antecessores alguma vez tinha estado, e dera passos monumentais para melhorar a relação entre Católicos e Judeus. Mante-lo vivo era uma das mais elevadas prioridades de Shamron.
Quando Donati avistou Gabriel a cruzar o hall, esboçou um sorriso caloroso e estendeu a mão comprida e morena.
— É um prazer vê-lo, meu amigo. Apenas gostaria que as circunstâncias fossem diferentes.
— Já deu entrada? Donati exibiu a chave.
— Vamos subir. Tenho de lhe mostrar uma coisa.
Dirigiram-se aos elevadores e entraram num que aguardava. Mesmo antes de Donati estender a mão para o painel, Gabriel soube que iria carregar no botão do sexto piso, como sabia que a chave na mão de Donati abria a porta do Quarto 616. A suíte espaçosa em frente às muralhas da Cidade Velha estava constantemente reservada para os assuntos do Escritório. A par dos luxos habituais, continha um sistema de gravação incorporado, o qual podia ser ativado por um interruptor minúsculo oculto por baixo do lavatório da casa de banho. Antes de mostrar as fotografias a Donati, Gabriel confirmou que o sistema estava desligado. Enquanto via cuidadosamente cada imagem, o rosto do padre não revelou qualquer emoção. Momentos depois, quando Donati foi até a janela olhar para a Cúpula da Pedra a cintilar à distância, Gabriel reparou que os músculos do maxilar do clérigo contraíam-se e descontraíam-se devido ao stresse. — Já passamos por isto muitas vezes, Gabriel. O Milênio, o Jubileu, quase sempre pelo Natal e pela Páscoa. Por vezes os alertas são-nos dados pelos serviços de segurança italianos, e de outras vezes chegam-nos pelas mãos dos nossos amigos da CIA. Respondemos sempre com um intensificar da segurança, até que se julgue que a ameaça já passou. Até agora, nada se concretizou. A Basílica continua de pé. Satisfaz-me poder dizer que o mesmo se passa com o Santo Padre.
— Mesmo que não tenham sido bem sucedidos, isso não quer dizer que não continuem a tentar, Luigi. Os terroristas da Al-Qaeda inspirados pelo wahhabismo veem todos os que não seguem o seu ramo do islamismo como kafur e mushrikun, merecedores unicamente da morte. Os kafur, os infiéis, e os mushrikun, os politeístas. Consideram até mesmo os muçulmanos sunitas e xiitas mushrikun, mas, para eles, o maior símbolo do politeísmo é o Vaticano e o Santo Padre.
— Entendo tudo isso, mas, como vocês dizem no Seder da sua Páscoa, por que será esta noite diferente de todas as outras?
— Está a perguntar-me por que deverão levar esta ameaça a sério?
— Precisamente.
— Por causa do mensageiro — explicou Gabriel. — O homem em cujo computador encontramos estas fotografias.
— De quem se trata?
— Receio não poder dizer-lhe.
Donati virou lentamente as costas à janela e olhou Gabriel com autoridade. — Revelei-lhe alguns dos maiores segredos da Igreja Católica Apostólica. O mínimo que pode fazer em troca é dizer-me onde conseguiram as fotografias.
Gabriel hesitou.
— O nome Ali Massoudi diz-lhe alguma coisa?
— O professor Ali Massoudi? — Donati assumiu uma expressão sombria. — Ele não foi morto em Londres, há duas noites?
— Ele não foi morto — corrigiu Gabriel. — Morreu num acidente.
— Meu Deus, Gabriel, por favor, não me diga que o empurrou para baixo daquele caminhão.
— Guarde a sua mágoa para alguém que a mereça. Sabemos que Massoudi angariava terroristas. E, com base naquilo que encontramos no seu computador portátil, também poderia ser um estratego.
— É pena que tenha morrido. Poderíamos tê-lo torturado até que nos revelasse o que queríamos ouvir. — Donati olhou para as mãos. Perdoe-me pelo meu tom sarcástico, Gabriel, mas não apoio a guerra ao terror que travamos. Nem o Santo Padre.
Donati voltou a olhar pela janela, para os muros da Cidade Velha. — É irônico, não é? É a primeira vez que visito esta sua cidade santa, e é esta a razão que me traz.
— A sério que nunca a tinha visitado? Donati abanou lentamente a cabeça.
— Quer ver onde tudo começou? Donati sorriu.
— Na verdade, nada me daria mais prazer.
Cruzaram o vale de Hinnom e subiram a encosta do monte até a muralha oriental da Cidade Velha. O caminho na base da parede encontrava-se nas sombras. Seguiram-no para sul, até a Igreja da Dormição, depois contornaram a esquina e atravessaram a Porta de Sião. Na Estrada do Bairro Judaico, Donati retirou um pedaço de papel do bolso das suas vestes eclesiásticas.
— O Santo Padre pediu-me que deixasse isto no Muro Ocidental.
Seguiram um grupo de haredim ao longo do Tiferet Yisrael. Donati, com a sua roupa negra, parecia fazer parte do grupo. No fim da rua, desceram os largos degraus de pedra que desciam até a praça à frente do muro. Uma longa fila estendia-se desde o posto de segurança. Após murmurar algumas palavras a uma agente da Polícia, Gabriel levou Donati à volta do detetor de metais, até a praça.
— Será que não faz nada como uma pessoa normal?
— Pode ir — disse Gabriel. — Eu espero aqui.
Donati virou-se e dirigiu-se inadvertidamente ao lado do muro reservado às mulheres. Com um estalar discreto da língua, Gabriel disse-lhe a zona reservada aos homens. Donati escolheu um kippab do cesto público e colocou-o de modo precário no topo da cabeça. Ficou defronte do muro por um momento, orando em silêncio, e depois enfiou o pequeno rolo de papel numa racha na pedra herodiana castanha.
— O que dizia? — perguntou Gabriel, quando Donati regressou.
— Era um apelo à paz.
— Devia tê-lo deixado ali em cima — sugeriu Gabriel, apontando na direção da mesquita Al-Aqsa.
— Gabriel mudou — notou Donati. — O homem que conheci há três anos nunca teria dito isso.
— Todos nós mudamos, Luigi. Já não há um campo de paz neste país, apenas um campo de segurança. Arafat não contou com isso quando enviou os homens-bomba suicidas.
— Arafat já morreu.
— Sim, mas vai ser preciso pelo menos uma geração para reparar os estragos que ele deixou. — Encolheu os ombros. — Quem sabe? Talvez as feridas da segunda intifada nunca venham a sarar.
— E por isso a matança vai continuar? Decerto não poderemos contemplar um futuro assim.
— É claro que podemos, Luigi. Sempre assim foi, por aqui. Deixaram o Bairro Judeu e dirigiram-se à Igreja do Santo Sepulcro.
Gabriel aguardou no adro enquanto Donati entrou, após ter rejeitado o guia turístico palestino que se lhe oferecera. Regressou dez minutos depois.
— Está escuro — comentou. — Muito sinceramente, é um pouco decepcionante.
— Receio que toda a gente diga o mesmo.
Deixaram o adro e percorreram a Via Dolorosa. Um grupo de peregrinos americanos, conduzidos por um monge de sotaina castanha com um balão de hélio na mão, aproximou-se deles, vindo da direção oposta. Donati observou o espetáculo com uma expressão divertida.
— Ainda acredita? — perguntou Gabriel de súbito. Donati demorou um instante a responder.
— Tal como já deve ter imaginado, a minha fé pessoal é uma questão bastante complexa. Mas acredito no poder da Igreja Católica enquanto força do bem, num mundo repleto de mal. E acredito neste papa.
— Quer dizer que é um homem sem fé, ao lado de um homem de grande fé. — Bem dito — asseverou Donati. — E quanto a si? Ainda acredita? Alguma vez acreditou? Gabriel deteve-se.
— Os Canaanitas, os Hititas, os Amalequitas, os Moabitas, todos eles desapareceram. Mas, por alguma razão, continuamos aqui. Será porque Deus estabeleceu uma aliança com Abraão há quatro mil anos? Quem sabe? — "Abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar" — citou Donati o capítulo vinte e dois do Gênesis.
— "Ela se apoderará das portas dos seus inimigos" — replicou Gabriel, concluindo a passagem. — E agora o meu inimigo quer essas portas de volta, e está disposto a fazer tudo, incluindo sacrificar o seu próprio filho, para as recuperar.
Donati sorriu com a interpretação engenhosa das Escrituras.
— Nós dois não somos muito diferentes. Ambos entregamos a nossa vida a poderes mais elevados. No meu caso, à Igreja. No caso do Gabriel, ao seu povo. — Fez uma pausa. — E à terra.
Percorreram mais um pouco da Via Dolorosa, até chegarem ao Bairro Muçulmano. Quando a rua ficou envolta em sombras, Gabriel subiu os óculos de sol para a testa. Vendedores palestinos olhavam-no com curiosidade a partir das bancas concorridas.
— Não há problema em estarmos aqui?
— Estamos seguros.
— Imagino que esteja armado.
Gabriel deixou que o silêncio fosse a sua resposta. O olhar de Donati manteve-se na calçada enquanto caminhavam e tinha a fronte morena franzida em concentração.
— Uma vez que sabe que Ali Massoudi está morto, poderemos imaginar que os camaradas dele também saibam?
— É claro.
— Também sabem que o computador continha aquelas fotografias? E que caíram nas suas mãos?
— É possível.
— Será que isso os poderá encorajar a acelerarem os planos?
— Ou poderá levá-los a adiar a operação, até que vocês e os italianos voltem a baixar a guarda.
Atravessaram o Porta de Damasco. Gabriel baixou os óculos quando entraram no mercado apinhado e cacofônico do outro lado das muralhas.
— Há uma coisa que devia saber acerca dessas fotografias — disse Donati. — Foram todas tiradas durante a audiência geral do Santo Padre, quando ele recebe peregrinos de todo o mundo na Praça de S. Pedro.
Gabriel parou de andar e olhou para a Cúpula da Pedra, dourada, que parecia flutuar acima das muralhas de pedra.
— A audiência geral tem lugar à quarta-feira, não é verdade?
— Exatamente.
Gabriel mirou Donati e disse:
— Hoje é terça-feira.
Donati olhou para o relógio.
— Pode dar-me boleia até o aeroporto? Se nos despacharmos, chegamos a Roma a horas de jantar.
— Nós?
— Paramos no seu apartamento a caminho da cidade, para que possa fazer a mala — disse Donati. — Em Roma tem estado a chover. Não se esqueça de levar uma capa.
Não era apenas uma capa que teria de levar, pensou Gabriel, enquanto guiava Donati pelo mercado cheio de gente. Ia também precisar de um passaporte falso.
4
CIDADE DO VATICANO
Era um gabinete um tanto ou quanto vulgar para um homem tão poderoso. O tapete oriental estava desbotado e puído e os cortinados eram pesados e baços. Quando Gabriel e Donati entraram, a pequena figura de branco sentada a uma secretária grande e austera fitava a tela de um televisor. Aí desenrolava-se uma cena de violência: chamas e fumo, sobreviventes cobertos de sangue que puxavam o cabelo e choravam os corpos esfacelados dos mortos. O papa Paulo VII, bispo de Roma, Pontifex Maximus, sucessor de S. Pedro, pressionou o botão Power do controle remoto e a tela ficou preta.
— Gabriel — disse. — É um prazer voltar a vê-lo.
O papa ergueu-se lentamente e ofereceu a mão pequena, não com o anel do pescador voltado para cima, como costumava fazer com a maior parte das pessoas, mas com a palma de lado. O aperto era ainda forte e os olhos que miravam Gabriel com cordialidade eram ainda vibrantes e límpidos. Gabriel esquecera-se de como Pietro Lucchesi era, na verdade, diminuto. Pensou na tarde em que Lucchesi surgira do conclave, uma figura delicada, a nadar na sotaina preparada à pressa, e mal visível acima da balaustrada da imponente galeria da Basílica. Um comentador da televisão italiana chamara-o de Pietro, o Improvável. O cardeal Marco Brindisi, o secretário de Estado reacionário que imaginara ser ele a sair do conclave vestido de branco, referira-se acidamente a Lucchesi como o "papa Acidental".
Para Gabriel, a imagem de Pietro Lucchesi que lhe vinha à mente primeiro seria sempre outra. Vê-lo de pé, na tribuna da Grande Sinagoga de Roma, dizendo palavras que nenhum papa alguma vez proferira. Destes pecados, e de outros que em breve serão revelados, apresentamos a nossa confissão, e imploramos o seu perdão. Não há palavras que descrevam o tamanho do nosso pesar. Na hora da sua maior necessidade, quando as forças da Alemanha nai os arrancaram das suas casas, nas mas à volta desta sinagoga, implorastes a nossa ajuda, mas as suas súplicas foram recebidas pelo silêncio. Por isso, ao implorar o seu perdão, fá-lo-ei da mesma forma. em silêncio...
O papa retomou o seu lugar e olhou para a tela, como se as imagens do massacre longínquo ainda lá estivessem para serem vistas.
— Avisei-o de que não o fizesse, mas não me deu ouvidos. Agora pretende vir à Europa recuperar a credibilidade junto dos seus antigos aliados. Desejo-lhe felicidades, mas acredito que as suas hipóteses sejam escassas.
Gabriel olhou para Donati em busca de uma explicação.
— A Casa Branca informou-nos ontem à noite que o presidente virá a Roma no início do próximo ano, para uma digressão pelas capitais europeias. Os homens do presidente esperam conseguir projetar uma imagem mais calorosa e menos conflituosa e reparar alguns dos estragos acarretados pela decisão de entrar em guerra com o Iraque.
— Uma guerra à qual me opus com veemência — lembrou o papa.
— Ele vem ao Vaticano? — perguntou Gabriel.
— Vem a Roma... pelo menos isso sabemos. A Casa Branca ainda não nos disse se o presidente gostaria de ter uma audiência com o Santo Padre. Esperamos que em breve nos chegue um pedido.
— Seria impensável que ele viesse a Roma sem passar pelo Vaticano — garantiu o papa. — Os católicos conservadores são parte importante do eleitorado. Vai querer a oportunidade de tirar uma foto e receber algumas palavras agradáveis de minha parte. Vai ter sua foto. Quanto às palavras agradáveis... — A voz do papa esmoreceu. — Receio que tenha de procurá-las noutro lado.
Donati convidou Gabriel a sentar-se e depois acomodou-se na cadeira ao lado. — O presidente é um homem que gosta de conversas francas, como os nossos amigos americanos gostam de dizer. Vai ouvir o que Sua Santidade tem a dizer.
— Devia ter-me ouvido logo ao início. Quando esteve no Vaticano, antes da guerra, deixei bem claro que acreditava que ele estava a embarcar numa viagem desastrosa. Disse-lhe que a guerra não se justificava, certo havia uma verdadeira ameaça iminente à América e aos seus aliados. Disse-lhe que ainda não esgotara todas as vias para evitar o conflito e que as Nações Unidas, e não os Estados Unidos, eram a autoridade competente para lidar com o problema. Mas guardei boa parte do meu ardor para o argumento final contra a guerra. Disse ao presidente que a América venceria uma batalha campal rápida. "Vocês são fortes", disse-lhe eu, "e o seu inimigo é fraco". Mas também previ que depois da guerra a América iria ver-se a braços com anos de insurreição violenta. Avisei-o que ao tentar resolver uma crise com violência, estaria apenas a criar outra ainda mais perigosa. Que a guerra seria vista pelo mundo islâmico como uma nova Cruzada dos cristãos brancos. Que o terrorismo não podia ser derrotado por mais terrorismo, mas apenas através de justiça econômica e social.
Tendo concluído a sua homilia, o papa olhou para a pequena assistência, à espera de uma reação. Os olhos deslocaram-se várias vezes, antes de repousarem em Gabriel.
— Algo me diz que pretende discordar de algo que eu tenha dito.
— Sua Santidade é um homem muito eloquente.
— Está entre amigos, Gabriel. Diga o que lhe vai na alma.
— As forças islâmicas radicais declararam-nos guerra... contra a América, contra o Ocidente, contra o Cristianismo, contra Israel. Segundo a lei de Deus, e as leis dos homens, temos o direito, até mesmo o dever moral, de resistir. — Resistam aos terroristas com justiça e oportunidades e não com violência e derrame de sangue. Quando os políticos recorrem à violência, quem sofre é a humanidade.
— Parece acreditar que o problema do terrorismo e do Islamismo radical poderia ser eliminado se eles fossem mais parecidos conosco. Que se a pobreza, o analfabetismo e a tirania não fossem tão comuns no mundo islâmico, não haveria jovens dispostos a sacrificar a vida para mutilar e matar os outros. Mas eles viram o nosso modo de vida e não querem ter nada que ver com ele. Viram a nossa democracia e rejeitaram-na. Veem a democracia como uma religião que vai contra os pilares do Islamismo, e por isso vão resistir-lhe com uma fúria sagrada. Como poderemos levar a justiça e a prosperidade a estes homens muçulmanos que só acreditam na morte?
— Decerto não poderão ser impostas com o cano da arma do homem branco. — Concordo, Sua Santidade. Só quando o Islamismo se reformar poderá existir justiça social e uma verdadeira prosperidade no mundo árabe. Mas entretanto não podemos ficar sentados sem fazer nada, enquanto os radicais muçulmanos tramam a nossa destruição. Também isso, Sua Santidade, é imoral. O papa levantou-se da secretária e abriu a grande janela em frente à Praça de S. Pedro. A noite caíra. Roma agitava-se a seus pés.
— Eu tinha razão quanto à guerra, Gabriel, e estou certo quanto ao futuro que nos aguarda a todos, Muçulmanos, Cristãos e Judeus, caso não escolhamos outro caminho. Mas quem irá escutar as minhas palavras? Não passo de um velho de sotaina que vive numa gaiola dourada. Nem mesmo os meus paroquianos me ouvem. Na Europa vivemos como se Deus não existisse. O Antiamericanismo é a nossa única religião. — Virou-se e olhou para Gabriel. — E o Antissemitismo.
Gabriel estava em silêncio. O papa comentou:
— O Luigi contou que descobriu provas de uma trama contra a minha vida. Mais uma trama — acrescentou, com um sorriso triste.
— Receio que assim seja, Sua Santidade.
— Não é irônico? Fui o único a tentar evitar a guerra no Iraque. Fui o único a tentar construir uma ponte entre os cristãos e os muçulmanos. Contudo, é a mim que querem matar. — O papa olhou pela janela. — Talvez estivesse errado. Talvez, afinal de contas, não queiram uma ponte.
Em geral, o papa Paulo VII e o monsenhor Donati jantavam sozinhos nos aposentos privados pontífices, com a companhia de um ou dois convidados. Donati fazia por manter um ambiente propositadamente leve e descontraído, e as conversas profissionais costumavam limitar-se aos mexericos curiais que o papa adorava em segredo.
Nesse serão, contudo, a atmosfera na sala de jantar papal era diferente. A lista 43 de convidados rapidamente elaborada consistia não de velhos amigos, mas de homens responsáveis pela proteção da vida do pontífice: o coronel Karl Brunner, comandante da Guarda Suíça Pontifical, o general Cario Marchese, dos Carabinieri, e Martino Bellano, diretor-adjunto do serviço de segurança italiano. Gabriel fez passar as fotografias e deixou-os a par de tudo no seu italiano marcado pelo sotaque veneziano. A apresentação foi menos detalhada do que a que fizera a Donati nessa manhã, em Jerusalém, e o nome de Ali Massoudi não foi mencionado. Mesmo assim, o tom das suas palavras não dava margem para dúvidas de que os serviços de espionagem israelenses consideravam a ameaça credível e de que era necessário tomar medidas para garantir a salvaguarda do pontífice e do território da Santa Sé. Quando acabou de falar, as expressões dos homens encarregues da segurança estavam sombrias, mas não havia uma sensação visível de pânico. Tinham passado por situações semelhantes inúmeras vezes, e juntos tinham preparado certos procedimentos automáticos para aumentar a segurança em redor do Vaticano e do Santo Padre, sempre que tal parecesse necessário. Gabriel ouviu os três homens reverem os procedimentos.
Durante uma pausa na conversa, pigarreou cuidadosamente.
— Deseja fazer alguma sugestão? — perguntou Donati.
— Talvez fosse aconselhável mudar a cerimônia de amanhã para o interior. Para a Câmara de Audiências papal.
— Amanhã o Santo Padre vai anunciar a beatificação de uma freira portuguesa — explicou Donati. — Esperamos vários milhares de peregrinos portugueses, a par da multidão habitual. Se mudarmos a audiência para a câmara, muitas dessas pessoas serão obrigadas a perdê-la.
— É melhor afastar alguns peregrinos do que expor o Santo Padre sem necessidade.
O papa olhou para Gabriel.
— Tem provas concretas de que os terroristas pretendem atacar amanha? — Não, Sua Santidade. É muito difícil obter informações operacionais desta natureza.
— Se mudarmos a audiência para a câmara e rejeitarmos boas pessoas, será que os terroristas não terão saído vencedores?
— Por vezes é melhor conceder uma pequena vitória ao adversário do que sofrer uma derrota devastadora.
— O seu povo é famoso por viver uma vida normal, mesmo sob a ameaça do terrorismo.
— Não deixamos de tomar medidas sensatas — contrapôs Gabriel. — Por exemplo, não se pode entrar na maioria dos locais públicos sem que se seja revistado. — Pois revistem os peregrinos e tomem outras medidas sensatas — retorquiu o papa —, mas amanhã à tarde vou estar na Praça de S. Pedro, onde é o meu lugar. E o seu trabalho é garantir que não acontece nada.
Pouco passava das dez horas quando Donati acompanhou Gabriel pela escadaria que ia do Palácio Apostólico à Via Belvedere. Caía uma névoa leve. Gabriel fechou o blusão e colocou o saco com a roupa ao ombro. Em mangas de camisa, Donati parecia ignorar o tempo. Manteve os olhos no pavimento quando passaram pela estação central dos correios do Vaticano, em direção à Porta de Santa Ana.
— Com certeza que não quer boleia?
— Até esta manhã, pensei que nunca mais pudesse voltar aqui. Vou aproveitar a oportunidade para andar um pouco.
— Se a Polícia italiana o prender antes de chegar ao seu apartamento, diga-lhes para me telefonarem. Sua Santidade vai atestar o seu bom caráter. — Caminharam em silêncio durante alguns instantes.
— Por que não regressa de vez?
— A Itália? Receio que Shamron tenha outros planos para a minha pessoa.
— Sentimos a sua falta — confessou Donati. — E Tiepolo também.
Francesco Tiepolo, amigo do papa e de Donati, era dono da melhor firma de restauração da região do Veneto. Gabriel restaurara-lhe dois dos melhores retábulos de Bellini. Quase dois, pensou. Tiepolo tivera de terminar o retábulo de San Giovanni Crisóstomo de Bellini, depois da fuga de Gabriel de Veneza. — Algo me diz que Tiepolo vai sobreviver sem mim.
— E Chiara?
Com seu silêncio taciturno, Gabriel deixou bem claro que não pretendia discutir o estado lastimoso da sua vida amorosa com o secretário particular do papa. Donati mudou habilmente de assunto.
— Lamento que o Santo Padre o tenha feito sentir-se posto em causa. Receio que ele tenha perdido muita da sua antiga paciência. Acontece-lhes a todos, depois de alguns anos de papado. Quando se é visto como o Vigário de Cristo, é difícil não se ganhar uma certa arrogância.
— Continua a ser a mesma alma gentil que conheci há três anos, Luigi. Apenas um pouco mais velho.
— Já não era jovem quando foi eleito para o cargo. Os cardeais queriam um papa de transição, alguém que mantivesse o trono de S. Pedro quente, enquanto os reformistas e os reacionários esclareciam suas diferenças. Como bem sabe, o meu mestre nunca teve intenção de ser uma mera figura de transição. Tem muito trabalho a fazer antes de morrer... coisas que talvez não agradem aos reacionários. É óbvio que não quero o seu mandato abreviado.
— Eu também não.
— Razão pela qual é o homem ideal para estar ao seu lado amanhã, durante a audiência geral.
— A Guarda Suíça e os ajudantes Carabinieri são bem capazes de tomar conta do seu mestre.
— São muito bons, mas nunca viveram um atentado terrorista a sério. — Pouca gente viveu — corroborou Gabriel. — E normalmente não sobrevivem para contar como foi.
Donati olhou para o companheiro.
— Gabriel sobreviveu — lembrou. — Esteve junto dos terroristas. E viu a expressão nos olhos de um homem antes de carregar no botão do detonador. Detiveram-se a poucos metros da Porta de Santa Ana. À esquerda ficava a Igreja de Santa Ana, redonda e da cor da manteiga, a igreja da paróquia da Cidade do Vaticano. À direita, a entrada para o aquartelamento da Guarda Suíça. Um dos guardas estava de sentinela ao portão, com a sua simples farda azul. — Que quer que eu faça, Luigi?
— Isso fica nas suas mãos capazes. Seja incômodo. Se vir um problema, faça por resolvê-lo. — com que autoridade?
— A minha — respondeu Donati, resoluto. Tirou do bolso da sotaina um cartão plastificado, o qual entregou a Gabriel. Era um cartão de identificação do Vaticano, com a marca do Escritório de Segurança. — Vai permitir-lhe o acesso a qualquer lado do Vaticano... excepto aos Arquivos Secretos, é claro. Receio não poder deixá-lo andar por aí.
— Já andei — recordou Gabriel, ao que enfiou o cartão no bolso e avançou para a rua. Donati esperou junto à Porta de Santa Ana até que Gabriel tivesse desaparecido na escuridão. Depois virou-se e regressou ao palácio. Embora só mais tarde se tivesse apercebido, murmurou uma ave-maria.
Gabriel atravessou a Ponte Umberto sobre o Tibre. Na margem oposta, virou à esquerda e dirigiu-se à Piazza di Spagna. A praça estava deserta e os Degraus Espanhóis brilhavam à luz dos postes, como madeira polida. Uma garota estava sentada no vigésimo oitavo degrau. Tinha o cabelo semelhante ao de Chiara e, por um instante, Gabriel pensou que pudesse mesmo ser ela. Ao subir mais um pouco, viu que se tratava apenas de Nurit, um correio carrancudo da Estação de Roma. A jovem entregou-lhe uma chave para o apartamento de segurança e, em hebraico, disse-lhe que atrás das latas de sopa na despensa encontraria uma Beretta pronta e um carregador adicional.
Subiu o resto dos degraus até a Igreja da Trinità dei Monti. A casa ficava a menos de cinquenta metros da igreja, na Via Gregoriana. Tinha dois quartos e uma pequena varanda. Gabriel foi buscar a Beretta à despensa e depois entrou no quarto maior. O telefone, como era hábito nesse tipo de casa, não tinha campainha, apenas uma luz vermelha que indicava quando estava a receber uma chamada. Deitado na cama com as roupas que vestira para se encontrar com o primeiro-ministro, Gabriel pegou no fone e marcou um número de Veneza. Foi uma voz de mulher que atendeu.
— O que foi? — perguntou a voz, em italiano. Não tendo uma resposta, resmungou uma praga e bateu com o telefone, com força suficiente para obrigar Gabriel a desviar o fone do ouvido, antes de voltar a pousá-lo gentilmente. Tirou a roupa e deitou a cabeça na almofada, mas, quando estava a adormecer, o quarto foi subitamente iluminado por um relâmpago. Começou a contar instintivamente para calcular a distância a que se encontrava a trovoada. Viu um rapazinho magro, de cabelo preto e olhos verdes como esmeraldas, a correr atrás dos relâmpagos nas colinas de Nazaré. O trovão explodiu antes de Gabriel contar até quatro. O prédio estremeceu.
Sucederam-se mais estrondos numa sucessão rápida e a chuva martelou a janela do quarto. Gabriel tentou adormecer, mas não foi capaz. Acendeu o abajur da mesa de cabeceira, abriu o dossiê que continha as fotografias retiradas do computador de Ali Massoudi, e observou-as lentamente uma a uma, decorando cada imagem. Uma hora depois, apagou a luz e reviu mais uma vez as imagens na sua mente. Um relâmpago faiscou por cima dos campanários da igreja. Gabriel fechou os olhos e contou.
5
CIDADE DO VATICANO
A chuva parara com a alvorada. Gabriel deixou cedo o apartamento e regressou ao Vaticano pelas ruas vazias. Ao atravessar o rio, a luz rosada banhava o pinheiro-manso no alto do Monte Janiculum, mas a Praça de S. Pedro estava mergulhada nas sombras e as lâmpadas dos postes ainda estavam acesas na Colunata. Um café estava aberto a pouca distância da Sala de Imprensa do Vaticano. Gabriel bebeu duas xícaras de cappuccino na esplanada e leu os matutinos. Nenhum dos principais diários romanos parecia saber que o secretário privado do papa visitara Jerusalém no dia anterior. Também não se sabia que na véspera a segurança italiana e a do Vaticano se tinham reunido na sala de jantar papal, onde se discutira uma ameaça terrorista à vida do Santo Padre.
Às oito horas, os preparativos para a audiência geral na Praça de S. Pedro estavam em marcha. Equipas de trabalho do Vaticano montavam cadeiras desdobráveis e barreiras metálicas temporárias na praça em frente à Basílica, e pessoal da segurança dispunha magnetômetros ao longo da Colunata. Gabriel saiu do café e foi até a barricada de aço que separava o território da Santa Sé do solo italiano. Agiu propositadamente de uma forma tensa e agitada, olhou várias vezes para o relógio e prestou uma atenção especial às operações dos magnetômetros. Em resumo, exibiu todos os comportamentos para os quais os Carabinieri e a Vigilanza, a força policial do Vaticano, deveriam estar alerta. Foram precisos dez minutos para que um carabiniere fardado se acercasse e lhe pedisse a identificação. Com um italiano perfeito, Gabriel informou o agente de que estava ligado ao Escritório de Segurança do Vaticano.
— As minhas desculpas — disse o carabiniere, e afastou-se.
— Espere — chamou Gabriel. O carabiniere deteve-se e virou-se.
— Não vai pedir-me a identificação? — O agente estendeu a mão. Lançou um olhar enfadado ao cartão e devolveu-o. — Não confie em ninguém — alertou Gabriel. — Peça sempre a identificação e, se desconfiar de alguma coisa, chame o seu superior.
Gabriel dirigiu-se à Porta de Santa Ana, onde um grupo de freiras de hábitos cinzentos recebia autorização para passar, dizendo simplesmente "Annona", o nome do supermercado do Vaticano. Experimentou a mesma táctica e, como as freiras, foi-lhe concedida a entrada no território do Vaticano. Logo a seguir ao posto de controle, exibiu a identificação do Vaticano e admoestou o guarda suíço com o seu alemão berlinense que aprendera com a mãe. Em seguida, voltou à rua. Momentos depois, surgiu um padre idoso, de cabelo muito branco, que informou o guarda suíço de que ia à farmácia do Vaticano. O guarda deteve o sacerdote ao portão, até que pudesse apresentar a identificação que retirou do bolso da sotaina.
Gabriel decidiu confirmar a segurança na outra entrada principal do Vaticano, o Arco dos Sinos. Aí chegou cinco minutos depois, a tempo de ver um cardeal da Cúria e os seus dois assistentes a passarem pelo arco, sem que o guarda suíço em sentido na sua guarita lhes prestasse a menor atenção. Gabriel exibiu seu cartão à frente dos olhos do guarda.
— Por que não pediu a identificação àquele cardeal?
— O chapéu cardinalício e a cruz peitoral são as suas identificações.
— Hoje, não — avisou Gabriel. — Confirme a identidade de todos.
Deu meia volta e percorreu o exterior da Colunata, a pensar nas cenas a que assistira. Pesasse embora a sua vastidão, a Praça de S. Pedro era, em grande medida, segura. Mas, a haver uma brecha na armadura do Vaticano, seria no número relativamente grande de pessoas com liberdade de movimentos atrás da praça. Pensou nas fotografias encontradas no computador de Ali Massoudi e interrogou-se se os terroristas teriam descoberto a mesma coisa.
Atravessou a praça até as Portas de Bronze. Não havia palavras mágicas para se atravessar aquela que era, basicamente, a entrada principal do Palácio Apostólico. O cartão de Gabriel foi examinado no exterior por um guarda suíço fardado e uma segunda vez no hall, por um guarda à paisana. A autorização do Escritório de Segurança permitia que entrasse no Palácio sem que assinasse a folha de entrada, mas foi-lhe exigido que deixasse a arma, o que fez com uma certa relutância.
Os degraus de mármore da Scala Regia erguiam-se à sua frente, cintilantes com o brilho dos enormes postes de ferro. Gabriel subiu até o Cortile di San Damaso e cruzou o pátio até o outro lado, de onde um elevador o levou até o segundo andar. Fez uma breve pausa na galeria para apreciar o fresco de Rafael e depois atravessou o vasto corredor até os aposentos papais. Donati, de sotaina com uma faixa escarlate, estava sentado à secretária no seu pequeno gabinete adjacente ao do papa. Gabriel entrou e fechou a porta.
— Quantas pessoas trabalham dentro do Vaticano? — disse Donati, repetindo a pergunta de Gabriel. — Cerca de metade.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Perdoe-me — lamentou Donati. — É uma velha piada do Vaticano. A resposta é cerca de mil e duzentas. O número inclui os padres e os prelados que trabalham na Secretaria de Estado e nas várias congregações e conselhos, bem como os respetivos funcionários laicos. Depois temos ainda os empregados laicos que fazem com que o Vaticano funcione: os guias turísticos, os jardineiros e todas as pessoas que tratam da manutenção, os funcionários de estabelecimentos como a estação dos correios, a farmácia e o supermercado. E ainda a equipe de segurança, é claro.
Gabriel exibiu o cartão de identificação do Vaticano. — E todos têm um cartão destes?
— Nem todos podem entrar no Palácio Apostólico, mas possuem credenciais que lhes dão acesso a outras seções do Vaticano que não as que estão abertas ao público.
— Refere-se à praça e à Basílica? — Exatamente.
— Qual o tipo de verificação de antecedentes que lhes é feita?
— Imagino que não se esteja a referir aos cardeais, aos bispos, aos monsenhores e aos sacerdotes.
— Deixemo-los à margem. — Gabriel franziu o sobrolho, ao que acrescentou: — Por agora.
— Os empregos no Vaticano são extremamente cobiçados. Os salários não são muito altos, mas todos os nossos funcionários têm benefícios nas compras na farmácia e no supermercado. Os preços são subsidiados e muito mais baixos do que no mercado italiano. O mesmo se passa com os preços na nossa bomba de combustível. Para além disso, os horários são razoáveis, as férias longas e as regalias são bastante boas.
— E fazem a confirmação dos antecedentes das pessoas que ficam com esses empregos?
Os postos são tão cobiçados, e são tão poucos, que vão quase sempre para alguém com ligações familiares, por isso a verificação de antecedentes é bastante superficial.
— Receava que assim fosse — admitiu Gabriel. — E quanto às pessoas como eu? Indivíduos com credenciais temporárias?
— Está a perguntar-me quantas são? — Donati encolheu os ombros. — Diria que há sempre várias centenas de pessoas com acesso temporário ao Vaticano.
— Como funciona o sistema?
— Geralmente estão ligadas a um dos vários conselhos ou comissões pontífices, como pessoal de apoio ou consultores profissionais. Os chefes de gabinete, ou um sub-secretário, garantem o caráter do indivíduo, e o Escritório de Segurança do Vaticano emite os cartões.
— O Escritório de Segurança guarda toda a papelada?
— É claro.
Gabriel levantou o fone do telefone e estendeu-o a Donati.
Passaram-se vinte minutos até que o telefone de Donati voltasse a tocar. Escutou em silêncio, depois desligou e olhou para Gabriel, que estava de pé à janela em frente à praça, a observar a multidão que nela entrava.
— Começam a selecionar a papelada.
— Começam?
— Foi preciso obter autorização do chefe, que estava numa reunião. Estará pronta daqui a um quarto de hora.
Gabriel viu a hora. Quase dez e meia.
— Mude a cerimônia para o interior — avisou.
— O Santo Padre nem quer ouvir falar nisso. — Donati juntou-se a Gabriel à janela. — Além do mais, é demasiado tarde. Os convidados já começaram a chegar. Instalaram-no numa cela minúscula, com uma janela encardida com vista para o Pado do Belvedere, e destacaram um carabiniere de ar ameninado chamado Luca Angelli para lhe trazer os arquivos. Restringiu a busca apenas a laicos. Nem mesmo Gabriel, um homem desconfiado por natureza, seria capaz de imaginar um cenário em que um padre católico fosse atraído, voluntária ou involuntariamente, para a causa da Al-Qaeda. Eliminou também da sua lista os membros da Guarda Suíça e da Vigilanza. Esta era composta quase na totalidade por antigos oficiais dos Carabinieri e da Polizia di Stato. Quando à Guarda Suíça, os seus elementos eram recrutados exclusivamente entre famílias católicas da Suíça, e provinham, na sua grande maioria, dos cantões franceses e alemães do centro montanhoso do país, longe de ser um baluarte de extremismo islâmico.
Começou com os funcionários laicos da cidade-estado do Vaticano. Para restringir os parâmetros da pesquisa, viu apenas os arquivos dos indivíduos contratados nos últimos cinco anos. Só isso levou-lhe quase trinta minutos. Quando acabou, tinha separado meia dúzia de arquivos para uma verificação mais aprofundada (um empregado de balcão da farmácia do Vaticano, um jardineiro, dois repositores do Annona, um porteiro do museu do Vaticano e uma mulher que trabalhava numa das lojas de recordações do Vaticano) e devolveu o resto a Angelli.
Os arquivos seguintes referiam-se aos funcionários laicos ligados às várias congregações da Cúria romana. As congregações eram o equivalente aproximado dos ministérios governamentais e tratavam de áreas centrais da administração eclesiástica, tais como a doutrina, a fé, o clero, os santos e a educação católica. Cada congregação era liderada por um cardeal, o qual tinha vários bispos e monsenhores abaixo de si. Gabriel viu os dossiês dos funcionários de cada uma das nove congregações e, não encontrando nada de interesse, devolveu-os a Angelli.
— O que falta?
As comissões e os conselhos pontífices — respondeu Angelli.
— E os outros gabinetes. — Outros gabinetes?
— A Administração do Patrimônio da Santa Sé, a Prefeitura dos Assuntos
Econômicos da Santa Sé...
— Estou a ver — atalhou Gabriel. — Quantos são?
Angelli abriu as mãos para indicar que a pilha tinha mais de trinta centímetros de altura. Gabriel viu a hora: 11h20...
— Traga-os.
Angelli começou pelas comissões pontífices. Gabriel separou mais dois arquivos para uma análise posterior, um consultor da Comissão para a Arqueologia Sagrada, e um estudioso argentino ligado à comissão pontífice para a América Latina. Devolveu o resto a Angelli e olhou para o relógio: 11h45... Prometera a Donati que ficaria de guarda ao papa na praça, durante a audiência geral, ao meio-dia. Já só tinha tempo para mais alguns arquivos. — Ignore os departamentos financeiros — disse Gabriel. Traga-me os arquivos dos conselhos pontífices.
Angelli regressou instantes depois com uma pilha de quinze centímetros de dossiês. Gabriel examinou-os pela ordem que Angelli os entregava. Conselho Papal do Laicado... Conselho Papal de Promoção da Unidade Cristã... Conselho Papal da Família... Conselho Papal de Justiça e Paz... Conselho Papal de Apoio a Migrantes e Povos Itinerantes... Conselho Papal de Textos Legislativos... Conselho Papal do Diálogo Inter-Refígioso...
Gabriel levantou a mão. Tinha encontrado o que procurava.
Leu durante um momento e depois ergueu abruptamente o olhar.
— Isto quer dizer que ele tem acesso ao Vaticano?
Angelli dobrou o corpo magro pela cintura e espiou sobre o ombro de Gabriel.
— O professor Ibrahim el-Banna? Está aqui há mais de um ano.
— Fazendo o quê?
— É membro de uma comissão especial que procura formas de melhorar as relações entre os mundos cristão e muçulmano. São doze membros ao todo, uma equipe ecumênica de seis estudiosos cristãos e de seis estudiosos muçulmanos que representam as várias seitas islâmicas e as escolas do direito islâmico. Ibrahim el-Banna é professor de jurisprudência islâmica na Universidade Al-Azhar, no Cairo. É um dos mais respeitados professores do mundo, da escola Hanafi de direito islâmico. A Hanafi é muito importante entre os...
— Muçulmanos sunitas — atalhou Gabriel, concluindo a frase de Angelli. — Vocês não sabem que Al-Azhar é um foco de militância islâmica? Está cheia de elementos da Al-Qaeda e da Irmandade Islâmica.
— É também uma das mais antigas e prestigiadas escolas de teologia e de direito islâmicos do mundo. O professor El-Banna foi escolhido para este lugar devido à sua posição moderada. Já se encontrou por várias vezes com o Santo Padre.
Em duas ocasiões estiveram sozinhos.
— Onde se reúne a comissão?
— O professor El-Banna tem um gabinete num edifício junto à Piazza Santa Marta, perto do Arco dos Sinos.
Gabriel olhou para o relógio: 11h55... Não tinha hipótese de falar com Donati, que naquele momento estaria com o papa, preparando-se para entrar na praça. Recordou as ordens que recebera na noite anterior, na Via Belvedere. Seja incômodo. Se vir um problema, faça por resolvê-lo. Levantou-se e olhou para Angelli.
— Gostaria de trocar umas palavras com o imã. Angelli hesitou. A iniciativa é muito importante para o Santo Padre. Se fizer uma acusação sem justa causa contra o professor El-Banna, ele vai sentir-se muito ofendido e o trabalho da comissão ficará em perigo.
— É melhor um imã furioso do que um papa morto. Qual é o caminho mais rápido para a Piazza Santa Marta?
— Utilizaremos o atalho — disse Angelli. — Através da Basílica. Atravessaram a passagem entre a Scala Regia e a Capela do Sagrado Sacramento, e depois cruzaram na diagonal a vasta nave. Por baixo do Monumento a Alexandre VII ficava uma porta que dava para a Piazza Santa Marta. Quando saíram para o sol intenso, fez-se ouvir um estrondo de aplausos vindo da Praça de S. Pedro. O papa chegara para a Audiência Geral. Angelli conduziu Gabriel através da pequena praça até um edifício de escritórios barroco de aspeto sombrio. No hall, uma freira estava sentada, imóvel, à mesa da recepção. Quando Gabriel e Angelli irromperam no edifício, fitou-os com um ar de desaprovação. — Ibrahim el-Banna — disse Angelli, sem mais explicações. A freira pestanejou rapidamente um par de vezes.
— Quarto quatro-doze.
Subiram a escada, com Angelli à frente e Gabriel logo atrás dele. Quando se ouviu mais uma onda de aplausos vinda da praça, Gabriel empurrou Angelli e o agente de segurança do Vaticano começou a subir os degraus dois de cada vez. Chegados ao Quarto 412, encontraram a porta fechada. Gabriel fez menção de agarrar na maçaneta, mas Angelli deteve-lhe a mão e bateu com firmeza, mas decoro.
— Professor El-Banna? Professor El-Banna? Está aí?
Tendo apenas o silêncio como resposta, Gabriel afastou Angelli e examinou a fechadura antiga. Com a esguia gazua de metal que tinha na carteira, seria capaz de abri-la numa questão de segundos, mas o novo clamor vindo da praça recordou-o de que não havia tempo. Agarrou a maçaneta com as duas mãos e lançou o ombro contra a porta, que resistiu. Atirou o corpo uma segunda vez de encontro à porta, e uma terceira. À quarta tentativa, Angelli juntou-se a ele. A ombreira fragmentou-se e os dois homens quase caíram para o interior do quarto.
A divisão estava vazia. Não apenas vazia, pensou Gabriel. Abandonada. Não havia livros, nem dossiês, não se viam canetas, nem papéis soltos. Apenas um envelope simples, deixado precisamente ao centro da secretária. Angelli levou a mão ao interruptor, mas Gabriel bradou-lhe para que não lhe tocasse, após o que voltou a empurrar o italiano para o corredor. Retirou do bolso do blusão uma caneta que utilizou como instrumento para examinar a densidade do conteúdo do sobrescrito. Ao ficar convencido de que apenas continha papel, agarrou-o e abriu-o com cuidado. Lá dentro estava uma única folha, dobrada em três, e que tinha escrito em árabe:
Declaramos guerra aos Cruzados, com a destruição do seu templo infiel ao politeísmo e com a morte do seu Supremo Pontífice, esse homem de branco que tratam como se fosse um deus. É esse o seu castigo pelos pecados do Iraque, por Abu Ghraib e pela Baía de Guantánamo. Os ataques continuarão até que o Iraque se liberte do jugo americano e a Palestina tenha sido arrancada das garras dos Judeus. Somos a Irmandade de Alá. Alá é o Deus único e todos o louvam. Gabriel correu escadas abaixo, com Angelli atrás de si.
6
CIDADE DO VATICANO
In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.
A voz do papa, amplificada pelo sistema de som do Vaticano, ressoou através da Praça de S. Pedro e pela Via delia Conciliazione. Vinte mil vozes replicaram: Amém.
Gabriel e Luca Angelli correram pela Piazza Santa Marta e depois ao longo da parede exterior da Basílica. Antes de chegarem ao Arco dos Sinos, Angelli virou à direita e entrou no Escritório de Autorizações, o principal controle de segurança para a maior parte dos visitantes do Vaticano. Se Ibrahim el-Banna tivesse introduzido mais alguém no Vaticano, a documentação estaria aí. Gabriel prosseguiu para o Arco dos Sinos. O guarda suíço de serviço baixou a alabarda num gesto defensivo, alarmado por ver um homem a correr na sua direção. Voltou a erguê-la quando Gabriel acenou com o cartão de identificação do Escritório de Segurança.
— Dê-me a sua arma — ordenou Gabriel.
— Desculpe?
— Dê-me a sua arma! — bradou Gabriel em alemão.
O guarda levou a mão ao interior da túnica renascentista multicolorida e retirou uma SIG-Sauer 9 mm bastante moderna. Nesse momento, Luca Angelli cruzou a arcada.
— Às onze e meia El-Banna trouxe uma delegação de três padres alemães para o Vaticano.
— Não são padres, Luca. São shaheeds. Mártires. — Gabriel olhou para a multidão reunida na praça. — E duvido que continuem no Vaticano. Devem estar ali, armados com explosivos e sabe Deus o que mais.
— Por que entraram no Vaticano pelo Arco dos Sinos?
— Para irem buscar as bombas, é claro. — Era a brecha na armadura do Vaticano. Os terroristas tinham-na descoberto graças à vigilância contínua e tinham utilizado a iniciativa de paz do Santo Padre para a explorar. — El-Banna deve ter levado as bombas para sua sala ao longo do tempo. Os shaheeds foram buscá-las quando receberam permissão de entrada no Gabinete de Autorizações e depois foram até a praça por um qualquer percurso sem detectores de metal.
— A Basílica — sugeriu Angelli. — Podem ter entrado na Basílica por uma porta lateral e saído pela frente. Podemos ter-nos cruzado com eles sem dar por nada. Gabriel e Angelli saltaram a vedação de madeira que separava a zona de entrada do Arco dos Sinos do resto da praça e subiram ao palco. O movimento súbito criou um burburinho pela assistência. Donati estava de pé atrás do papa. Gabriel foi até ele rapidamente e entregou-lhe a mensagem que encontrara no gabinete de El-Banna.
— Estão aqui.
Donati baixou o olhar, viu a escrita árabe e voltou a encarar Gabriel. — Encontramos na sala de El-Banna. Diz que vão destruir a Basílica. Diz que vão matar o Santo Padre. Temos de o tirar do palco. Já, Luigi.
Donati olhou para a multidão na praça: peregrinos católicos e dignitários de todo o mundo, crianças de branco, grupos de doentes e de idosos à espera de receber a bênção do pontífice. O papa estava sentado num trono cerimonial escarlate. Segundo a tradição herdada do seu antecessor, recebia os peregrinos nas suas línguas nativas, passando rapidamente de uma para a outra.
— E os peregrinos? — indagou Donati. — Como vamos protegê-los?
— Talvez seja demasiado tarde. Pelo menos para alguns. Se tentarmos avisá-los, vai instalar-se o pânico. Retire o Santo Padre da praça o mais depressa e discretamente possível. Depois começamos a evacuar a praça.
O coronel Brunner, comandante da Guarda Suíça, subiu também ao palco. Tal como os restantes elementos do destacamento de segurança pessoal do papa, vestia um fato completo escuro e usava um auricular. Quando Donati explicou a situação, o rosto de Brunner ficou pálido.
— Vamos levá-lo pela Basílica.
— E se tiverem escondido lá bombas? — interrogou Gabriel. Brunner abriu a boca para responder, mas as suas palavras foram abafadas por uma onda de choque escaldante. O som chegou um milésimo de segundo depois, um trovão ensurdecedor tornado ainda mais intenso pela vasta câmara de ressonância da Praça de S. Pedro. Gabriel foi impelido do palco, como um pedaço de papel levado por um temporal. O seu corpo voou e deu pelo menos uma volta no ar. Depois embateu nos degraus da Basílica e desmaiou.
Quando abriu os olhos, viu os Apóstolos de Cristo a olhá-lo do seu pouso no cimo da fachada. Não sabia quanto tempo estivera inconsciente. Alguns segundos, talvez, mas não mais do que isso. Com os ouvidos a retinir, sentou-se e olhou em volta. À sua direita estavam os prelados da Cúria que acompanhavam o papa no palco. Pareciam em choque e desalinhados, mas ilesos. À sua esquerda viu Donati, com Karl Brunner a seu lado. O comandante tinha os olhos fechados e sangrava com abundância de um ferimento na cabeça.
Gabriel levantou-se e olhou em seu redor.
Onde estava o papa?
Ibrahim el-Banna levara três padres para o Vaticano.
Gabriel imaginou que ainda fossem ocorrer mais duas explosões.
Encontrou a SIG-Sauer que pedira ao Guarda Suíço e gritou aos prelados que se baixassem. Depois, quando voltou a subir ao palco em busca de Lucchesi, a segunda bomba explodiu.
Outra onda de calor e vento escaldantes.
Mais um trovão.
Gabriel foi lançado para trás. Desta vez aterrou em cima de Donati. Voltou a levantar-se. Não conseguiu chegar ao palco antes da deflagração da terceira bomba.
Quando o estrondo acabou finalmente por esmorecer, Gabriel subiu à plataforma e testemunhou a devastação. Os shaheeds tinham-se distribuído uniformemente pela multidão perto da frente do palco: um junto às Portas de Bronze, o segundo no meio da praça e o terceiro perto do Arco dos Sinos. Deles apenas restavam três plumas de fumo negro que se elevavam para o céu limpo e azul. Nos pontos onde os homens-bomba tinham estado, as lajes do pavimento estavam escurecidas pelo fogo, ensopadas em sangue e cobertas de membros e fragmentos humanos. A pouca distância dos centros das explosões, era possível imaginar que os cadáveres desfeitos tinham sido seres humanos poucos momentos antes. As cadeiras desdobráveis que Gabriel vira serem montadas nessa manhã tinham-se espalhado como cartas, e havia sapatos um pouco por todo o lado. Quantos mortos? Centenas, pensou. Mas nesse momento a sua preocupação não se dirigia aos mortos, mas sim ao Santo Padre. Declaramos guerra aos Cruzados, com a destruição do seu templo infiel ao politeísmo...
Gabriel sabia que o ataque ainda não terminara.
Nesse instante, através da cortina de fumo negro, viu o desenrolar da fase seguinte. Uma van parara junto à barricada ao fundo da praça. Tinha as portas de carga abertas, de onde saíam três homens. Cada um empunhava um lançador de mísseis.
Foi então que Gabriel viu o trono onde o papa estivera sentado. Tinha sido derrubado pela força da primeira explosão e jazia agora ao contrário, nos degraus da Basílica. Por baixo dele via-se uma pequena mão com um anel de ouro... e a saia de uma sotaina branca, manchada de sangue.
Gabriel olhou para Donati.
— Eles têm mísseis, Luigi! Afaste todos da Basílica.
Saltou do palco e levantou o trono. O papa tinha os olhos fechados e sangrava de vários pequenos cortes. Quando Gabriel se baixou e aninhou o papa nos braços, ouviu o silvo inconfundível de um RPG-7 a aproximar-se. Virou a cabeça o suficiente para avistar o míssil a cruzar a praça, em direção à Basílica.
No instante seguinte, a ogiva bateu na cúpula de Miguel Angelo e explodiu, numa chuva de,-fogo, vidro e pedra. Gabriel protegeu o papa dos destroços, depois ergueu-o e começou a correr para as Portas de Bronze. Antes de chegarem ao abrigo proporcionado pela Colunata, o segundo míssil atravessou a praça. Acertou na fachada da Basílica, logo abaixo da balaustrada na galeria das Bênçãos.
Gabriel perdeu o equilíbrio e tombou nas lajes. Levantou a cabeça e viu o terceiro míssil a caminho. Seguia uma trajetória mais baixa dos que os anteriores e voava diretamente para o palco. No momento antes do impacto, Gabriel viu uma imagem de pesadelo: Luigi Donati em desespero, a tentar colocar em segurança os cardeais e os prelados da Cúria. Gabriel continuou baixo e protegeu o corpo do papa com o seu, no momento em que outra chuva de fragmentos caiu sobre eles.
— É você, Gabriel? — indagou o papa, com os olhos ainda fechados.
— Sim, Sua Santidade.
— Já acabou?
Três bombas, três mísseis: simbólico da Santíssima Trindade, pensou Gabriel.
Um insulto propositado aos mushrikun. — Sim, Sua Santidade. Creio que sim.
— Onde está Luigi?
Gabriel olhou para os restos em chamas do palco e viu Donati sair a cambalear do fumo, com o corpo de um cardeal morto nos braços.
— Está vivo, Sua Santidade. O papa fechou os olhos e murmurou:
— Graças a Deus.
Gabriel sentiu uma mão a apertar-lhe o ombro. Virou-se e viu um quarteto de homens de fatos azuis, de armas em riste.
— Largue-o — gritou um dos homens. — Nós levamo-lo. Gabriel fitou o homem por um instante, ao que abanou lentamente a cabeça.
— Eu o levo — declarou. Depois levantou-se e, rodeado por guardas suíços, transportou o papa até o Palácio Apostólico.
O prédio ficava perto da Igreja de Santa Maria, em Trastevere. Com três pisos, o exterior desbotado estava coberto de pó e de linhas telefônicas e ostentava grandes manchas de tijolos expostos. No rés-do-chão ficava uma pequena oficina de motorizadas que se estendia até a rua. À direita da oficina localizava-se a porta que dava acesso aos pisos superiores. Ibrahim El-Banna tinha a chave no bolso.
O ataque começara cinco minutos antes da saída de El-Banna do Vaticano. No Borgo Santo Spirito aproveitara-se do pânico para retirar cuidadosamente o kufi e pendurar uma grande cruz de madeira ao pescoço. A partir daí caminhara até o Parque Janiculum, descendo então a colina até Trastevere. Na Via delia Paglia, uma mulher agitada pediu a bênção a El-Banna. O muçulmano concedera-a, imitando as palavras e os gestos que observara no Vaticano. Em seguida, pediu a Alá que o perdoasse pela blasfêmia.
Em segurança no interior do prédio, retirou a cruz ofensiva do pescoço e subiu os degraus mal iluminados. Recebera ordens do saudita que concebera e planejara o ataque para se dirigir ali. Um saudita que conhecia apenas por Khalil. Seria a primeira parada de uma viagem secreta para fora da Europa e de regresso ao mundo islâmico. Esperara voltar ao seu Egito nativo, mas Khalil convencera-o de que aí nunca estaria em segurança. O lacaio americano Mubarak vai entregar-te aos infiéis num abrir e fechar de olhos, avisara Khalil. Só há um lugar na Terra onde os infiéis não te podem chegar.
Esse lugar era a Arábia Saudita, terra do Profeta, berço do Islamismo Wahhabita. A Ibrahim el-Banna tinha sido prometida uma nova identidade, um professorado na afamada Universidade de Medina e uma conta bancária com meio milhão de dólares. O santuário era a recompensa do príncipe Nabil, o ministro da Administração Interna saudita. O dinheiro era um presente do bilionário saudita que financiara a operação.
Assim, o clérigo muçulmano que subiu os degraus do prédio de apartamentos romano era um homem satisfeito. Acabara de participar numa das mais importantes ações da jihad na longa e gloriosa história islâmica. Agora partia para uma nova vida na Arábia Saudita, onde as suas palavras e as suas crenças ajudariam a inspirar a geração seguinte de guerreiros islâmicos. Apenas o Paraíso seria melhor.
Chegou ao patamar do segundo andar e dirigiu-se à porta do apartamento 3A. Quando introduziu a chave na fechadura, sentiu um choque eléctrico diminuto nos dedos. Quando a girou, a porta explodiu. E a partir daí não sentiu mais nada.
Nesse preciso instante, na zona de Washington conhecida como Foggy Bottom, uma mulher despertou de um pesadelo. O sonho estava repleto das imagens que via todas as manhãs àquela hora. Uma hospedeira com o pescoço cortado. Um jovem passageiro elegante a fazer um último telefonema. Um inferno. Rebolou na cama e olhou para o relógio sobre a mesa-de-cabeceira. Seis e meia. Pegou o controle remoto, apontou-o à televisão e pressionou o botão Power. Meu Deus, não, pensou, quando viu a Basílica em chamas. Outra vez não.
7
ROMA
Durante a semana seguinte, Gabriel permaneceu no apartamento de segurança perto da Igreja da Trinità dei Monti. Houve momentos em que parecia que nada acontecera.
Mas depois ia até a varanda e via a cúpula da Basílica erguer-se sobre os telhados da cidade, despedaçada e enegrecida pelo fogo, como se Deus, num momento de desaprovação ou de descuido, tivesse arrasado o trabalho dos seus filhos. Gabriel, o restaurador, desejava que fosse apenas um quadro, uma tela ferida que ele pudesse sarar com uma garrafa de óleo de linhaça e um pouco de pigmento.
A contagem de baixas aumentava a cada dia. No final da quarta-feira — Quarta-Feira Negra, como os jornais de Roma a tinham batizado — o número era de seiscentos mortos. Na quinta-feira era de seiscentos e cinquenta e, no fim-de-semana, ultrapassara os setecentos. O coronel Karl Brunner, dos Guardas Suíços Pontífices, encontrava-se entre as vítimas mortais. Luca
Angelli também, depois de ter passados três dias entre a vida e a morte, na Clínica Gemelli, antes de as máquinas terem sido desligadas. O papa administrou-lhe os Últimos Sacramentos e permaneceu ao lado de Angelli até que este morreu. A Cúria Romana sofreu perdas terríveis. Entre os mortos encontravam-se quatro cardeais, a par de oito bispos curiais e três monsenhores. Os funerais tiveram de ser conduzidos na Basílica de São João de Latrão, pois dois dias após o ataque uma equipe internacional de engenheiros concluíra que não era seguro entrar na Basílica. O maior jornal de Roma, La Repubblica, dera a notícia com uma fotografia de página inteira da cúpula arruinada, com um único título: CONDENADA.
O governo de Israel não tinha posição oficial na investigação, mas Gabriel, graças à sua proximidade de Donati e do papa, em breve ficou a saber tanto sobre o atentado como qualquer agente de serviços secretos do mundo. A maior parte das informações era obtida à mesa de jantar do papa, onde se sentava todas as noites com os homens que conduziam a investigação: o general Marchese, dos Carabinieri, e Martino Bellano, dos serviços de segurança italianos. Falavam quase sempre livremente na presença de Gabriel e tudo o que sonegavam era-lhe transmitido por Donati. Por sua vez, Gabriel enviava toda a informação para O Boulevard King Saul, razão pela qual Shamron não tinha pressa em retirá-lo de Roma.
Quarenta e oito horas depois do atentado, os italianos tinham conseguido identificar todos os envolvidos. O ataque com os mísseis fora levado a cabo por uma equipe de quatro homens. O motorista do veículo era de origem tunisina. Os três homens com os RPG-7 eram de nacionalidade jordana e veteranos da revolta no Iraque. Os quatro tinham sido abatidos por uma salva de tiros dos Carabinieri segundos após terem disparado as armas. Quanto aos homens que se tinham feito passar por sacerdotes alemães, apenas um era mesmo germânico, um jovem estudante de engenharia de Hamburgo chamado Manfred Zeigler. O segundo era um holandês de Rotterdam, e o terceiro um belga flamengo de Antuérpia. Os três eram convertidos muçulmanos e tinham participado em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Embora não dispusesse de provas, Gabriel desconfiava que tivessem sido recrutados pelo professor Ali Massoudi. Graças à vigilância das câmeras de circuito fechado e a relatos de testemunhas, as autoridades italianas e do Vaticano conseguiram reconstruir os últimos momentos da vida dos homens-bomba. Após terem sido admitidos no Vaticano por um adetto do Escritório de Autorização, os três homens tinham-se dirigido ao gabinete de Ibrahim el-Banna, perto da Piazza Santa Marta. Quando de lá saíram, cada homem levava uma pasta grande. Tal como Angelli imaginara, os homens tinham penetrado na Basílica por uma entrada lateral. Chegaram à Praça de S. Pedro, apropriadamente, pela Porta da Morte. Como as outras quatro que davam acesso à praça através da Basílica, essa porta devia estar trancada. No fim da primeira semana, a polícia do Vaticano ainda não conseguira determinar por que não estava.
O corpo de Ibrahim el-Banna foi identificado três dias após ter sido retirado dos escombros do prédio de apartamentos em Trastevere. Por enquanto, a sua verdadeira afiliação permanecia incógnita. Quem era a Irmandade de Alá? Seria um ramo da Al-Qaeda, ou simplesmente a Al-Qaeda com outro nome? E quem planejara e financiara uma operação tão elaborada? Uma coisa era perfeitamente clara. O ataque ao lar da Cristandade voltara a atear o fogo do movimento extremista global. Celebrações de rua tinham tido lugar em Teerão, no Cairo, em Beirute e nos territórios palestinos, ao mesmo tempo que analistas, de Washington a Londres e a Tel Aviv, detectavam de imediato um aumento drástico de atividade e de recrutamento.
Na quarta-feira seguinte, uma semana depois do atentado, Shamron decidiu que chegara a altura de Gabriel voltar a casa. Enquanto fazia a mala no apartamento de segurança, a luz vermelha do telefone começou a piscar, indicando uma chamada. Levantou o fone e ouviu a voz de Donati. — O Santo Padre gostaria de falar com você em particular.
— Quando?
— Esta tarde, antes de partir para o aeroporto.
— Falar sobre o quê?
— Gabriel Allon é membro de um clube muito restrito.
— E que clube é esse?
— De homens que se atreveriam a fazer essa pergunta.
— Onde e quando? — perguntou Gabriel, com um tom conciliatório.
Donati transmitiu-lhe a informação. Gabriel desligou e acabou de arrumar as suas coisas.
Gabriel passou por um posto de controle dos Carabinieri no extremo da Colunata e atravessou a Praça de S. Pedro à luz esmaecente do entardecer. Continuava fechada ao público. As equipes de perícia tinham completado a sua tarefa macabra, mas as barreiras opacas erguidas à volta dos três centros de explosão continuavam no seu lugar. Um gigantesco encerado branco estava pendurado na fachada da Basílica, ocultando os estragos por baixo da Galeria das Bênçãos. Ostentava a imagem de uma pomba e uma única palavra: PAZ.
Passou pelo Arco dos Sinos e percorreu o flanco esquerdo da Basílica. As entradas laterais estavam fechadas e barricadas, e agentes da Vigilanza montavam guarda a cada uma. Nos Jardins do Vaticano era possível imaginar que nada acontecera. Era possível, pensou Gabriel, até que se olhasse para a cúpula arruinada, iluminada naquele momento por um pôr do Sol avermelhado. O papa aguardava junto à Casa do Jardineiro. Cumprimentou Gabriel calorosamente e, juntos, dirigiram-se ao canto mais extremo do Vaticano. Uma dúzia de guardas suíços à paisana acompanhavam-nos por entre os pinheiros mansos, as sombras compridas e estreitas sobre a grama.
Luigi e eu imploramos à Guarda Suíça que reduzisse o destacamento — comentou o papa. — Por agora esse assunto não está aberto a negociações. Andam um pouco enervados... por razões óbvias. Desde o Saque de Roma que um comandante da Guarda Suíça não morria a defender o Vaticano de um ataque inimigo.
Caminharam em silêncio por alguns instantes.
— Será este o meu destino, Gabriel? Ficar para sempre rodeado de homens com armas e rádios? Como poderei comunicar com o meu rebanho? Como poderei reconfortar os enfermos e os necessitados se estiver isolado deles por uma falange de guarda-costas?
Gabriel não tinha resposta para lhe dar.
— As coisas não voltarão a ser como eram, certo, Gabriel?
— Não, Sua Santidade, receio que não.
— Eles pretendiam me matar?
— Sem dúvida.
— Voltarão a tentar?
— Quando estabelecem um objetivo, regra geral não desistem até o cumprirem. Mas, neste caso, conseguiram matar setecentos peregrinos e sete cardeais e bispos. Já para não falar do comandante da Guarda Suíça. Também conseguiram infligir sérios danos físicos à própria Basílica. Na minha opinião, terão saldado as suas contas históricas.
— Podem não ter conseguido matar-me, mas fizeram de mim um prisioneiro do Vaticano. — O papa deteve-se e olhou para a cúpula arruinada. — A minha gaiola já não é tão dourada. Demorou mais de um século a construir e foram precisos poucos segundos para destruí-la.
— Não está destruída, Sua Santidade. A cúpula pode ser restaurada. — Isso ainda não foi decidido — contrapôs o papa, com um tom sombrio nada caraterístico. — Os engenheiros e os arquitetos não sabem se o poderão fazer. Talvez tenha de ser demolida e totalmente reconstruída. E o baldaquino sofreu danos graves quando os destroços lhe caíram em cima. Não é algo que possa ser substituído, mas o Gabriel tem bem noção do que isso significa.
Gabriel mirou o relógio. Teria de partir rapidamente para o aeroporto, caso contrário perderia o avião. Interrogou-se por que motivo o papa o teria convocado. Decerto não seria para discutir a restauração da Basílica. O papa virou-se e recomeçou a andar. Dirigiam-se à Torre de S. João, no canto sudoeste do Vaticano.
— A única razão para eu não estar morto — disse o papa — é o Gabriel. Com toda a mágoa e confusão desta semana terrível, ainda não tive oportunidade de lhe agradecer devidamente. Faço-o agora. Quem me dera poder fazê-lo em público. O papel de Gabriel no assunto fora cuidadosamente ocultado dos órgãos de comunicação social. Até então, contra todas as expetativas, permanecera em segredo.
— E quem me dera ter encontrado Ibrahim el-Banna mais cedo — replicou Gabriel.
— Setecentas pessoas poderiam ainda estar vivas.
— Fez tudo o que podia ser feito.
— Talvez, Sua Santidade, mas, ainda assim, não foi suficiente.
Chegaram ao muro do Vaticano. O papa subiu uma escadaria de pedra, com Gabriel a segui-lo em silêncio. Chegaram ao parapeito e olharam Roma. As luzes acendiam-se um pouco por toda a cidade. Gabriel olhou sobre o ombro e viu os guardas suíços a agitarem-se nervosamente lá em baixo. Descansou-os com um gesto da mão e fitou o papa, que espreitava os carros que percorriam velozmente o Viale Vaticano.
— Luigi disse que tem uma promoção a sua espera em Tel Aviv. — Foi obrigado a subir o tom de voz por causa do barulho do trânsito. — É uma promoção que ambicionava ou é obra de Shamron?
— Há quem seja obrigado a aceitar a grandeza, Sua Santidade.
Pela primeira vez desde que chegara a Roma, Gabriel viu o papa sorrir.
— Posso dar-lhe um conselho?
Gabriel anuiu.
— Use o seu poder sabiamente. Mesmo que esteja em posição de castigar seus inimigos, use seu poder como forma de procurar a paz a cada momento. Busque a justiça e não a vingança.
Gabriel sentiu-se tentado a recordar o papa de que era apenas um servidor secreto do Estado, que a decisão sobre a paz e a guerra estavam nas mãos de homens bem mais poderosos do que ele. Em vez disso, garantiu ao papa que faria bom uso do conselho que lhe fora dado.
— Vai procurar os homens que atacaram o Vaticano?
— Não é nossa luta. Pelo menos por enquanto.
— Algo me diz que em breve será.
O papa observava o tráfego abaixo dele com um fascínio infantil.
— A ideia de colocar a pomba da paz na mortalha cobrindo a fachada da Basílica foi minha. Imagino que considere esse sentimento profundamente ingênuo. Talvez me ache ingênuo também.
— Não ia querer viver num mundo sem homens como Sua Santidade.
Quando voltou a olhar para o relógio, Gabriel não tentou disfarçá-lo.
— Tem o avião à espera? — perguntou o papa.
— Sim, Sua Santidade.
— Vamos — disse. — Eu acompanho-o.
Gabriel começou a descer os degraus, mas o papa deixou-se ficar no parapeito. — Francesco Tiepolo ligou-me esta manhã, de Veneza. Manda-lhe cumprimentos.
— Virou-se e olhou para Gabriel. — Chiara também.
Gabriel permaneceu em silêncio.
— Ela diz que gostaria de vê-lo antes de voltar a Israel. Estava a pensar que talvez parasse em Veneza, quando saísse do país. — O papa segurou no cotovelo de
Gabriel e, a sorrir, acompanhou-o pelos degraus abaixo. — Sei que tenho muito pouca experiência no que diz respeito a assuntos do coração, mas talvez permita que um velho lhe dê mais um conselho.
8
VENEZA
Era uma pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre, no sestiere de Cannaregio. O terreno onde se erguia era demasiado pequeno para um adro de igreja decente, por isso a entrada principal acedia diretamente à atarefada Salizzada San Giovanni Crisóstomo. Em tempos, Gabriel levara no bolso uma chave da igreja.
Entrava agora como um turista normal e fez uma pausa no hall, onde esperou que os olhos se habituassem à luz ténue, enquanto um sopro de ar fresco, permeado pelo odor a cera e a incenso, lhe acariciou o rosto. Pensou na última vez que entrara naquela igreja. Fora na noite em que Shamron se deslocara a Veneza para avisar Gabriel de que tinha sido descoberto pelos seus inimigos e de que chegara a altura de voltar a casa. Não vai haver sinais da tua passagem por aqui, garantira-lhe Shamron. Será como se nunca tivesses existido.
Cruzou a nave acolhedora até a Capela de S. Jerônimo, no lado direito da igreja. O retábulo encontrava-se oculto por uma sombra densa. Gabriel introduziu uma moeda no contador de luz e as lâmpadas ganharam vida, iluminando o último grande trabalho de Giovanni Bellini. Deixou-se ficar ali de pé por um instante, a mão direita pressionada contra o queixo, a cabeça inclinada de leve para o lado, e examinou a pintura à luz indireta. Francesco Tiepolo fizera um bom trabalho finalizando sua restauração. Gabriel quase não podia dizer onde terminava a sua mão e começava a de Tiepolo. Não era de admirar, pensou. Ambos tinham sido aprendizes do grande mestre restaurador veneziano Umberto Conti.
O tempo chegou ao fim e as luzes desligaram-se automaticamente, o que fez com que a pintura voltasse a mergulhar na escuridão. Gabriel regressou ao exterior e dirigiu-se para ocidente, através de Cannaregio, até chegar a uma ponte de ferro, a única do gênero em Veneza. Na Idade Média existira um portão no centro da ponte e, à noite, um vigia cristão ficava de guarda, para que os prisioneiros do outro lado não pudessem fugir. Atravessou a ponte e entrou num sottoportego escurecido. Ao fim da passagem abria-se uma praça vasta, o Campo dei Ghetto Nuovo, centro do antigo gueto de Veneza. Outrora tinham aí vivido mais de cinco mil judeus. Agora era o lar de apenas vinte dos quatrocentos judeus da cidade, cuja maioria era idosa e residia na Casa di Riposo Israelitica.
Atravessou o campo e deteve-se no número 2899. Uma diminuta placa de latão dizia COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA — Comunidade Judaica de Veneza. Tocou à campainha e virou rapidamente as costas à câmera de segurança por cima da porta. Após um longo silêncio, uma voz familiar de mulher crocitou pelo intercomunicador.
— Vire-se — ordenou. — Deixe-me ver seu rosto.
Gabriel aguardou onde ela lhe disse, um banco de madeira a um canto do campo banhado pelo sol, perto de um monumento aos judeus venezianos que tinham sido reunidos em Dezembro de 1943 e enviados para morrer em Auschwitz. Passaram-se dez minutos, e depois outros dez. Quando finalmente ela saiu do escritório, demorou o seu tempo a atravessar a praça, ao que parou a alguns metros dele, como se receasse aproximar-se mais. Ainda sentado, Gabriel puxou os óculos de sol para a testa e mirou-a à luz encantadora do Outono. Vestia jeans desbotados, justos nas coxas compridas e largos nas bainhas, e botas de camurça de salto alto. A blusa branca tinha um corte que não levantava dúvidas quanto à figura generosa por baixo.
O cabelo castanho revolto estava preso atrás por uma fita de cetim cor de chocolate, e em volta do pescoço, uma echarpe de seda. A pele cor de azeitona estava muito escura. Gabriel imaginou que ela tivesse passado uma temporada recente ao sol.
Os olhos, grandes e com um formato oriental, eram da cor do caramelo, com lampejos dourados. Costumavam mudar de tom, consoante o seu estado de espírito. Da última vez que Gabriel vira os olhos de Chiara, estes tinham assumido um negro de fúria e ficado orlados pelo rímel que escorrera. Ela cruzou os braços por baixo dos seios numa posição defensiva e perguntou-lhe o que fazia em Veneza.
— Olá, Chiara. Está muito bonita.
A brisa agitou-lhe o cabelo e soprou-lhe alguns fios no rosto. Desviou-os com a mão esquerda. No dedo faltava-lhe o anel de noivado que Gabriel lhe dera. Tinha agora outros anéis nos dedos e um relógio de ouro novo no pulso. Gabriel interrogou-se se seriam prendas de outro alguém.
— Não sei de você desde que saí de Jerusalém — comentou Chiara, no tom neutro proposital que assumia sempre que tentava reprimir as emoções. — São meses. Agora aparece de surpresa e espera que o receba de braços abertos e sorriso nos lábios?
— Surpresa? Estou aqui porque você me pediu que viesse.
— Eu? Mas do que está falando?
Gabriel perscrutou-lhe os olhos. Podia ver que não havia dissimulação. — Sinto muito — disse. — Parece que fui enganado para vir aqui.
Chiara brincou com as pontas da echarpe, com um prazer óbvio pelo desconforto que via.
— Enganado por quem?
Donati e Tiepolo, imaginou Gabriel. Talvez mesmo Sua Santidade. Levantou-se de repente.
— Não interessa — garantiu. — Sinto muito, Chiara. Foi bom vê-la novamente.
Virou-se e começou a afastar-se, mas Chiara segurou-lhe o braço.
— Espere — pediu. — Fique mais um pouco.
— Vai ser civilizada?
— Civilidade é para casais divorciados com filhos.
Gabriel voltou a sentar-se, mas Chiara deixou-se ficar de pé. Um homem de óculos escuros e casaco amarelado surgiu do sottoportego. Lançou um olhar de admiração a Chiara, depois cruzou o campo e desapareceu sobre a ponte que levava ao par de antigas sinagogas sefarditas no extremo sul do gueto. Chiara observou o percurso do homem, depois meneou a cabeça e estudou a aparência de Gabriel.
— Alguém já te disse que você é idêntico ao homem que salvou o papa?
— Esse é italiano — escusou-se Gabriel. — Não leu sobre ele nos jornais?
Chiara ignorou-o.
— Quando vi as imagens na televisão, pensei que estivesse com alucinações. Sabia que era você. Nessa noite, depois de as coisas acalmarem, falei com Roma. Shimon disse que você tinha estado no Vaticano.
Um movimento súbito no campo a fez virar a cabeça. Viu um homem de barba salpicada de grisalho e chapéu de feltro apressar-se na entrada do centro comunitário. Era o pai, o principal rabi de Veneza. Chiara ergueu a ponta da bota direita e equilibrou o peso no calcanhar. Gabriel conhecia bem o movimento, que significava uma provocação a caminho.
— Por que está aqui, Gabriel Allon?
— Disseram-me que queria me ver.
— E só por isso veio?
— Só por isso.
Os cantos da boca de Chiara começaram a curvar-se no esboço de um sorriso.
— Qual é a piada? — perguntou ele.
— Pobre Gabriel. Continua apaixonado por mim, não é?
— Nunca deixei de estar.
— Mas não o suficiente para se casar comigo?
— Podemos falar sobre isto em particular?
— Por enquanto não. Tenho de ficar com atenção ao escritório. O meu outro trabalho — rematou, com um tom de conspiração fingida.
— Dê meus cumprimentos ao rabi Zolli.
— Imagino que não seja boa ideia. O rabi Zolli continua furioso com você.
Tirou uma chave do bolso e lançou-a. Gabriel fitou a chave na mão durante um instante muito longo. Mesmo depois de meses de separação, continuava a ter dificuldade em imaginá-la com vida própria.
— Para o caso de querer saber, moro sozinha. Nem sei se merece saber, mas é verdade. Fique confortável. Descanse. Está com péssimo aspeto.
— Estamos muito elogiosos, hoje. — Enfiou a chave no bolso. — Qual é o endereço?
— Sabes, mente muito mal, para um espião.
— De que está falando?
— Sabe meu endereço, Gabriel. Ficou sabendo em Operações, que também te disse meu número de telefone.
Inclinou-se e beijou o rosto dele. Quando o cabelo passou pelo rosto, Gabriel fechou os olhos e inspirou o aroma de baunilha.
O prédio ficava do outro lado do Grande Canal, em Santa Croce, num corte pequeno e fechado, com apenas uma passagem de entrada e saída. Quando entrou no apartamento, Gabriel teve a sensação de voltar ao seu próprio passado. A sala parecia à espera de uma sessão de fotografias. Até mesmo as revistas e os jornais velhos aparentavam ter sido dispostos por um fanático em busca da perfeição visual. Dirigiu-se a uma camilha e deu uma vista de olhos às fotografias emolduradas: Chiara e os pais; Chiara e um irmão mais velho que vivia em Pádua; Chiara com uma pessoa amiga na costa do mar da Galileia. Foi durante essa viagem, quando ela tinha apenas vinte e cinco anos, que chamara a atenção de um caçador de talentos do Escritório. Seis meses depois, após ter sido avaliada e treinada, regressou à Europa como bat leveyha, uma agente de acompanhamento. Não havia fotografias de Chiara com Gabriel, certo existia nenhuma.
Chegou-se à janela e olhou para o exterior. Dez metros lá em baixo, as águas verdes oleosas do rio dei Megio fluíam vagarosas. Uma corda de roupa chegava ao prédio oposto. Camisas e calças estavam penduradas ao sol e, no outro extremo da corda, uma idosa estava sentada à janela aberta com o braço carnudo apoiado no parapeito. Pareceu surpresa ao ver Gabriel, que ergueu a chave e disse que era um amigo de Chiara, vindo de Milão.
Baixou as persianas e dirigiu-se à cozinha. No lava-louça jazia uma caneca meio bebida de café com leite e uma côdea de torrada com manteiga. Exigente com tudo o resto, Chiara deixava sempre a louça do pequeno-almoço à espera do fim do dia. Com uma atitude de mesquinhice doméstica, deixou-a onde estava e foi até o quarto.
Largou a mala em cima da cama desfeita e, combatendo a tentação de revistar o roupeiro e as gavetas, entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. No armário de medicamentos procurou lâminas de barbear, água de colônia ou outros vestígios da presença de um homem. Encontrou duas coisas que nunca vira antes: um frasco de comprimidos para dormir e outro de antidepressivos. Voltou a colocá-los na posição original. Tal como Gabriel, Chiara fora treinada para reparar na mais sutil das alterações.
Despiu-se e atirou as roupas para o corredor, e depois passou muito tempo debaixo da água corrente. Quando terminou, enrolou uma toalha na cintura e voltou ao quarto. O edredão cheirava ao corpo de Chiara. Quando deitou a cabeça na almofada, os sinos de Santa Croce repicaram o meio-dia. Fechou os olhos e mergulhou num sono profundo.
Acordou ao fim da tarde com o som de uma chave a ser introduzida na fechadura, seguido pelo ruído dos saltos das botas de Chiara no bali de entrada. Ela não se preocupou em avisar que chegara a casa. Sabia que ele acordava ao mais pequeno som, ou movimento. Quando entrou no quarto, trauteava baixinho uma música pop italiana que sabia que ele detestava.
Sentou-se à beira da cama, suficientemente perto para que o quadril roçasse a coxa de Gabriel. Ele abriu os olhos e observou-a tirando as botas e e o jeans. Chiara pousou a mão no peito de Gabriel. Quando ele soltou a fita de seu cabelo, os caracóis ruivos se espalharam pelo rosto e os ombros dela. Chiara repetiu a pergunta que fizera no gueto: Por que está aqui, Gabriel Allon?
— Estava pensando que podíamos voltar a experimentar — respondeu Gabriel.
— Não preciso experimentar. Já o fiz uma vez e gostei muito.
Gabriel retirou a echarpe e desabotoou lentamente a blusa dela. Chiara inclinou-se e beijou-o na boca. Era como se estivesse sendo beijado pela Alba Madonna de Rafael.
— Se me magoar outra vez vou odiar você para sempre!
— Não vou.
— Nunca deixei de sonhar com você.
— Sonhos bons?
— Não — respondeu. — Sonhava com sua morte.
O único vestígio de Gabriel no apartamento era um velho caderno de esboços. Abriu-o numa página nova e mirou Chiara com um distanciamento profissional. Estava sentada na extremidade do sofá, com as pernas compridas debaixo do corpo, enrolada num lençol de seda. Tinha o rosto virado para a janela e iluminado pelo sol do ocaso. Gabriel sentiu-se aliviado ao ver as primeiras rugas à volta dos olhos de Chiara. Sempre receara que ela fosse jovem demais, e um dia, quando ele fosse velho, o trocaria por outro homem. Puxou o lençol, expondo seus seios. Chiara susteve o olhar por um instante e depois fechou os olhos.
— Teve sorte em me encontrar — disse. — Podia estar ausente, em missão.
Ela era faladora. Gabriel aprendera que era inútil pedir que ficasse em silêncio enquanto posava.
— Não trabalha desde aquela missão na Suíça.
— Como sabe dessa operação?
Gabriel lançou-lhe um olhar inescrutável por cima do caderno e lembrou-a que não devia se mexer.
— Lá se vai o conceito de secretismo. Ao que parece, sempre que quer entra em Operações e descobre o que estou fazendo.
Fez menção de virar a cabeça, mas Gabriel imobilizou-a com um tsc-tsc abrupto. — Mas não devia ficar admirada. Já te deram o comando?
— Que comando? — disse Gabriel, fazendo-se de desentendido.
— Operações Especiais.
Gabriel confessou que a posição foi oferecida e aceita.
— Quer dizer que agora é meu chefe — frisou ela. — Imagino que tenhamos quebrado meia dúzia de diretrizes do Escritório sobre a confraternização entre oficiais e funcionários.
— No mínimo — admitiu Gabriel. — Mas a promoção ainda não é oficial.
— Graças a Deus. Não queria que o grande Gabriel se metesse em encrenca por sua vida sexual. Por quanto tempo podemos usar o corpo um do outro antes de termos problema com o Departamento de Pessoal?
— Quanto tempo quisermos. Apenas temos, eventualmente, de ser sinceros com eles.
— E quanto a Deus, Gabriel? Desta vez vai ser sincero com Deus? — O silêncio abateu-se, salvo pelo raspar do lápis de carvão no papel. Chiara mudou de assunto. — O que sabe sobre minha missão na Suíça?
— Sei que foi a Zermatt seduzir um traficante de armas suíço que estava prestes a concluir uma transação com alguém que não defende nossos interesses. O Boulevard King Saul queria saber a data da partida e o destino do carregamento.
Após um longo silêncio, perguntou-lhe se dormira com o suíço.
— Não se tratava desse tipo de operação. Estava a trabalhar com outro agente. Limitei-me a entreter o traficante no bar, enquanto o outro agente lhe entrou no quarto e roubou o conteúdo do computador. Além disso, sabes que uma bat leveyha não deve ser usada para sexo. Contratamos profissionais para esse tipo de coisas.
— Nem sempre.
— Seria incapaz de usar o meu corpo dessa maneira. Sou uma miúda religiosa. — Lançou-lhe um sorriso atrevido. — Por sinal, conseguimos. O barco sofreu um acidente misterioso, ao largo da costa de Creta. As armas estão no fundo do mar.
— Eu sei — asseverou Gabriel. — Volta a fechar os olhos.
— Feche você — replicou. Depois sorriu e fez o que ele pediu. — Não vai perguntar se estive com alguém durante nossa separação?
— Não tenho nada a ver com isso.
— Mas deve estar curioso. Nem quero imaginar o que fez no meu apartamento quando entrou aqui.
— Se está insinuando que revistei suas coisas, fique sabendo que não o fiz.
— Não brinque.
— Por que não consegues dormir?
— Quer mesmo que responda?
Gabriel não falou.
— Não houve mais ninguém, Gabriel, mas já sabia disso, não é? Como poderia? — Ofereceu-lhe um sorriso amargo. — Quando nos convidam para um clube exclusivo nunca nos dizem tudo. Não dizem que as mentiras começam a se acumular, nem que nunca estaremos confortáveis com pessoas de fora do clube. Foi só por isso que se apaixonou por mim, Gabriel? Por eu fazer parte do Escritório?
— Gostei de seu fettucini com cogumelo. São os melhores de Veneza.
— E quanto a você? Esteve com outras mulheres neste período?
— Este período foi passado com uma tela muito grande.
— Pois é, esqueci do seu problema. Não consegue fazer amor com uma mulher, a menos que ela saiba que mata por seu país. Se quisesse, encontraria uma pessoa adequada no Boulevard King Saul. Não há mulher no Escritório que não te deseje.
— Está falando demais. Se não se calar, não consigo acabar.
— Estou com fome. Não devia ter falado em comida. Aliás, como vai Leah?
Gabriel parou de desenhar e fitou Chiara por cima do bloco, como que reprovando a justaposição um pouco depreciativa de comida com sua esposa.
— Desculpe — disse Chiara. — Como está ela?
Gabriel ouviu-se a dizer que Leah estava bem, que duas ou três vezes por semana a visitava no hospital psiquiátrico no cimo do Monte Herzl, onde passava alguns minutos com ela. Mas, ao contar-lhe sobre isso, a sua mente encontrava-se em outro lugar: em Viena, perto da Juden Platz; na bomba no carro que matara seu filho, e no inferno que destruíra o corpo de Leah e roubara sua memória. Durante treze anos, ela ficara em silêncio na presença de Gabriel. Agora, por breves períodos, falava com ele. Recentemente, no jardim do hospital, fez a mesma pergunta que Chiara, momentos antes: houve outras mulheres neste período? Respondeu com sinceridade.
— Amava essa moça, Gabriel?
— Amava, mas deixei-a por você.
— E por que o fez, meu amor? Olhe para mim. Não resta nada meu, apenas uma recordação.
Chiara ficara em silêncio. A luz que banhava seu rosto desvanecia-se lentamente, passando de um vermelho coral a tons de cinza. A mulher rechonchuda surgiu na janela do prédio oposto e começou a recolher a roupa estendida. Chiara puxou o lençol até o pescoço. — O que está fazendo?
— Não quero que a Signora Lorenzetto me veja nua.
Ao devolver o lençol à posição original, Gabriel deixou uma mancha de carvão no seio.
— Imagino que tenha de voltar a Jerusalém — comentou. — A menos que diga a Shamron que não pode assumir Operações Especiais porque vai voltar para Veneza.
— É tentador — admitiu Gabriel.
— Tentador, mas não possível. É um soldado leal, Gabriel. Faz sempre o que mandam. Sempre fez. — Limpou o carvão do seio.
— Pelo menos não vou ter que decorar o apartamento.
Gabriel manteve os olhos presos no caderno. Chiara analisou a expressão dele e perguntou:
— Gabriel, o que fez no apartamento?
— Precisava de um lugar para trabalhar.
— Por isso mudou a mobília de lugar?
— Sabe, também estou ficando com fome.
— Gabriel Allon, sobrou alguma coisa?
— A noite está agradável — comentou ele. — Vamos de barco até Murano comer peixe.
9
JERUSALÉM
Gabriel voltou à Rua Narkiss às oito da noite seguinte. O carro de Shamron estava estacionado junto ao meio-fio e Rami, o guarda-costas, vigiava na calçada em frente ao número 16. Lá em cima, Gabriel encontrou todas as luzes acesas e Shamron tomando café na mesa da cozinha.
— Como entrou?
— Caso te tenhas esquecido, este costumava ser um apartamento de segurança do Escritório. A Gestão Imobiliária tem uma chave.
— Eu sei, mas mudei as fechaduras no Verão.
— A sério?
— Imagino que tenha de voltar a mudá-las.
— Não vale a pena dares-te ao trabalho.
Gabriel abriu a janela para arejar a divisão. Seis beatas de cigarro jaziam num dos pires de Gabriel, como invólucros de munições gastas. Shamron já ali estava há algum tempo.
— Como estava Veneza? — perguntou Shamron.
— Veneza estava ótima, mas da próxima vez que arrombar meu apartamento, peço que tenha a amabilidade de não fumar. — Gabriel pegou o pires pela borda e despejou as pontas de cigarro no lixo. — O que pode ser tão urgente que não podia esperar a manhã?
— Outro elo saudita no ataque ao Vaticano.
E Gabriel ergueu o olhar para Shamron. — Qual é?
— Ibrahim el-Banna.
— O clérigo islâmico? Não posso dizer que esteja surpreso.
Gabriel sentou-se à mesa.
— Há duas noites, o chefe de estação do Cairo reuniu-se em segredo com uma das nossas principais fontes no interior do Mukhabarat egípcio. Ao que parece, o professor Ibrahim el-Banna já tinha um bom currículo de militância, muito antes de ter ido para o Vaticano. O irmão mais velho era membro da Irmandade Islâmica e era próximo de Ayman al-Zawahiri, o número dois da Al-Qaeda. Um sobrinho foi para o Iraque combater os americanos e foi morto no cerco a Fallujah. Aparentemente, as gravações dos sermões do imã são obrigatórias entre os militantes islâmicos egípcios.
— É pena que o nosso amigo do Mukhabarat não tenha contado ao Vaticano a verdade sobre El-Banna. Setecentas pessoas talvez ainda estivessem vivas... e a cúpula da Basílica talvez não tivesse um buraco.
— Os egípcios sabiam mais uma coisa sobre o professor El-Banna — continuou Shamron. — Ao longo de grande parte das décadas de oitenta e de noventa, quando o problema do fundamentalismo islâmico estava a ganhar proporções alarmantes no Egito, o professor El-Banna recebia pagamentos regulares e ordens de um saudita que se fazia passar por agente da Organização Internacional de Apoio Islâmico, uma das principais obras de caridade sauditas. Este homem dizia chamar-se Khalil, mas o serviço secreto egípcios sabiam o seu nome verdadeiro: Ahmed bin Shafiq. O que torna tudo isto ainda mais interessante é a ocupação de Shafiq na altura.
— Pertencia ao GID — disse Gabriel.
— Exatamente.
O GID, ou Departamento Geral de Informações, era o nome do serviço secreto sauditas.
— O que sabemos sobre ele?
— Até há quatro anos, Bin Shafiq liderava uma unidade clandestina do GID, com o nome de código Grupo 205, que era responsável pela criação e manutenção de ligações entre a Arábia Saudita e os grupos islâmicos militantes espalhados pelo Oriente Médio. O Egito era uma das prioridades do Grupo 205, a par do Afeganistão, claro está.
— Qual o significado desse número?
— Era a extensão do gabinete de Bin Shafiq no quartel-general do GID.
— O que aconteceu há quatro anos?
— Bin Shafiq e os seus agentes estavam a canalizar material e verbas para os terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica. Um informante palestino contou-nos sobre a operação e nós relatamos a informação aos americanos. O presidente americano mostrou as nossas provas ao rei e pressionou-o para que encerrasse o Grupo 205. Isso passou-se seis meses depois do onze de Setembro, e o rei foi obrigado a satisfazer o desejo do presidente, para desalento de Bin Shafiq e de outros extremistas do reino. O Grupo 205 foi eliminado e Bin Shafiq foi expulso do GID.
— Ele atravessou a estrada?
— Estás a perguntar se ele é um terrorista? A resposta não sabemos. Aquilo que sabemos a militância islâmica está-lhe no sangue. O avô era comandante do Ikhwan, o movimento islâmico criado por Ibn Saud, no final do século XIX, no Najd.
Gabriel conhecia bem o Ikhwan. Em muitos aspetos, era o protótipo e o precursor espiritual dos grupos militantes islâmicos da atualidade.
— Em que outros locais Bin Shafiq agiu enquanto pertencia ao Grupo 205?
— Afeganistão, Paquistão, Jordânia, Líbano, Argélia. Desconfiamos que tenha estado até na Cisjordânia.
— Assim sendo, é possível que estejamos a lidar com alguém que possui contatos terroristas que vão da Al-Qaeda ao Hamas e à Irmandade Islâmica do Egito. Se Bin Shafiq passou mesmo para o outro lado, é um cenário de pesadelo. O ideólogo terrorista perfeito.
— Encontramos outra informação interessante nos nossos próprios arquivos — acrescentou Shamron. — Há cerca de dois anos, estávamos a receber relatórios que davam conta de um saudita a percorrer os campos do Sul do Líbano, à procura de guerreiros experientes. Segundo os relatórios, esse saudita dizia chamar-se Khalil.
— O mesmo nome que Bin Shafiq usou no Cairo.
— Infelizmente, não o perseguimos. Para ser sincero, se andássemos atrás de cada saudita rico que tenta organizar um exército para a jihad, não faríamos mais nada. É como dizem, se na hora soubesse o que sei hoje...
— O que mais temos sobre Bin Shafiq?
— Muito pouco, receio.
— E uma fotografia? Shamron abanou a cabeça.
— Tal como seria de imaginar, é um bocadinho tímido à frente das câmeras. — Temos de partilhar as informações, Ari. Os italianos têm de saber que pode haver uma ligação com os sauditas. E os americanos também.
— Eu sei. — O tom de Shamron era sombrio. A noção de partilhar informações obtidas a custo soava-lhe a heresia, especialmente quando não havia nada a ganhar em troca. — Costumava ser branco e azul — disse, referindo-se às cores nacionais de Israel. — Era esse o nosso lema. A nossa crença. Fazíamos as coisas por nós. Não pedíamos ajuda a ninguém, e não ajudávamos os outros com os seus próprios problemas.
— O mundo mudou, Ari.
— Talvez eu não esteja talhado para este mundo. Quando combatíamos a OLP, ou o Setembro Negro, era tudo uma questão de física simples. Acertamos aqui, apertamos ali. Observávamos, escutávamos, identificávamos os membros da organização, eliminávamos os líderes. Agora estamos a combater um movimento... um cancro com metástases em cada órgão vital do corpo. É como tentar apanhar nevoeiro com um copo. As regras antigas já não se aplicam. O azul e o branco já não chegam. Mas posso dizer-te uma coisa. Isto não vai cair bem em Washington. Os sauditas têm muitos amigos por lá.
— É o que faz o dinheiro — rematou Gabriel. — Mas os americanos têm de saber a verdade sobre os seus melhores amigos no mundo árabe.
— Eles sabem a verdade. Só não querem enfrentá-la. Os americanos sabem que, de muitas formas, os sauditas são a fonte do terrorismo islâmico, que os sauditas plantaram as sementes, regaram-nas com petrodólares e fertilizaram-nas com o ódio wahhabita e com a propaganda. Os americanos parecem não se importar de viver assim, como se o terrorismo inspirado pelos sauditas não passasse demais um pequeno imposto nos depósitos de gasolina. O que eles não percebem 89 o terrorismo nunca será derrotado, a menos que ataquem a origem: Riad e os Al-Saud.
— Mais uma razão para partilhar com eles a informação que liga o GID e os Al-Saud ao ataque ao Vaticano.
— Ainda bem que pensa assim, pois foi nomeado para ir a Washington contar tudo.
— Quando parto?
— Amanhã de manhã.
Shamron olhou distraidamente pela janela e, pela segunda vez, perguntou a Gabriel como foi a estada em Veneza.
— Fui enganado para ir lá — respondeu Gabriel. — Mas ainda bem que fui.
— Quem te enganou?
Gabriel contou. O sorriso no rosto de Shamron levou-o a se perguntar se ele também estaria envolvido na trama.
— Ela vem para cá?
— Passamos um dia juntos — explicou Gabriel. — Não tivemos tempo de fazer planos.
— Não sei se acredito nisso — duvidou Shamron. — Decerto não estás a considerar a hipótese de voltar a Veneza. Já te esqueceste de que te comprometeste a assumir as Operações Especiais?
— Não, não me esqueci.
— Por falar nisso, a nomeação vai ser oficializada quando voltares de
Washington.
— Mal posso esperar. Shamron olhou em seu redor.
— Já confessaste à Chiara que te livraste da mobília dela?
— Sabe que fiz algumas mudanças para acomodar o meu estúdio.
— Ela não vai ficar contente — avisou Shamron. — Dava tudo para ver a cara dela quando entrar nesta casa.
Shamron ficou por mais uma hora, pondo Gabriel a par de todos os pormenores relativos ao atentado no Vaticano. Às nove e um quarto, Gabriel acompanhou-o ao carro, deixando-se ficar na rua por alguns momentos, enquanto via as luzes traseiras a desaparecerem à esquina. Regressou ao apartamento e arrumou a cozinha, depois apagou as luzes e foi para o quarto. Nesse momento, o prédio estremeceu com o clamor de uma explosão tremenda. Tal como todos os Israelitas, habituara-se a fazer uma estimativa das vítimas dos homens-bomba suicidas através do número de sirenes. Quanto mais sirenes, mais ambulâncias. Quanto mais ambulâncias, mais mortos e feridos. Ouviu uma única sirene, depois outra, e por fim uma terceira. Não foi muito grande, pensou. Ligou a televisão e esperou pelo primeiro boletim informativo. Todavia, quinze minutos depois da explosão continuavam sem dizer nada. Frustrado, pegou no telefone e ligou para o carro de Shamron. Não houve resposta.
PARTE DOIS
A Filha do Dr. Gachet
10
EIN KEREM, JERUSALÉM
A vida de Gilah Shamron fora uma sucessão de vigílias tensas. Suportara as missões secretas a territórios perigosos, as guerras e o terror, as crises e as reuniões do Escritório de Segurança que nunca pareciam acabar antes da meia-noite. Sempre receara que um inimigo do passado de Shamron se erguesse um dia e executasse sua vingança. Sempre soube que, nesse dia, seria obrigada a esperar para saber se ele viveria ou morreria.
Gabriel encontrou-a sentada calmamente numa sala de espera particular na unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah. Tinha o famoso blusão de Shamron no colo e dedilhava, absorta, o rasgão no lado direito do peito, que Shamron nunca quis remendar. Gabriel sempre viu um pouco de Golda Meir nos olhos tristes e no cabelo grisalho revolto de Gilah. Não conseguia olhar para ela sem recordar o dia em que Golda prendera uma medalha em seu peito em segredo e, de lágrimas nos olhos, agradeceu por ter vingado os onze israelenses assassinados em Munique.
— O que aconteceu, Gabriel? Como puderam pegar Ari em plena Jerusalém?
— Provavelmente tem sido vigiado há muito tempo. Quando saiu do meu apartamento disse que ia trabalhar mais um pouco no Gabinete do primeiro-ministro. — Gabriel sentou-se e pegou na mão de Gilah. — O atentado ocorreu num sinal na Rua King George.
— Um homem-bomba suicida?
— Acreditamos que foram dois homens. Estavam numa van, disfarçados de judeus haredi. A bomba era incomumente grande.
Gilah olhou para o televisor num suporte na parede.
— Bem se pode ver pelas imagens. É espantoso que alguém tenha sobrevivido. — Uma testemunha viu o carro do Ari acelerar de repente, um instante antes de a bomba explodir. Rami, ou o motorista, deve ter visto alguma coisa que o deixou desconfiado. A blindagem aguentou o impacto da explosão, mas o carro foi lançado pelos ares. Ao que parece, capotou pelo menos duas vezes.
— Quem fez isto? Foi o Hamas? A Jihad Islâmica? As Brigadas de Mártires Al-Aqsa?
— Foi reivindicado pela Irmandade de Alá.
— As mesmas pessoas responsáveis pelo atentado no Vaticano?
— Sim, Gilah.
— Acreditas neles?
— Ainda é cedo para isso — respondeu Gabriel. — O que lhe disseram os médicos?
— A operação vai durar pelo menos mais três horas. Dizem que o poderemos ver quando sair, mas apenas um minuto ou dois. Avisaram que não terá bom aspeto. — Gilah observou-o por um momento e depois voltou a olhar para o televisor. — Receia que ele possa não sobreviver, não é, Gabriel?
— É claro que sim.
— Não se preocupe — descansou-o Gilah. — Shamron é indestrutível. Shamron é eterno.
— O que lhe disseram sobre as lesões?
Gilah recitou-as calmamente. O inventário de órgãos danificados, traumatismo craniano e ossos fraturados tornava claro que a sobrevivência de Shamron não era, de todo, garantida.
— Dos três, Ari é quem ficou melhor — explicou Gilah. Ao que parece, Rami e o motorista ficaram em muito pior estado. Pobre Rami. Há anos que protege Ari, e agora isto.
— Onde está Yonatan?
— Estava de serviço no Norte. Está chegando.
O único filho de Shamron era um coronel da Força de Defesa Israelita. Ronit, a filha caprichosa, mudara-se para a Nova Zelândia para fugir ao pai dominador. Vivia numa fazenda de criação de galinhas com um gentio. Há anos que ela e Shamron não se falavam.
— Ronit também está a caminho — disse Gilah. — Quem sabe? Talvez esta situação traga alguma coisa de bom. A ausência da Ronit tem sido muito difícil para ele. Culpa-se e tem razão. Ari é muito duro para os filhos. Mas já sabias disso, não é, Gabriel?
Gilah fitou diretamente os olhos de Gabriel por um momento, ao que desviou de súbito o olhar. Durante anos pensara que ele era uma espécie de agente de secretária com vastos conhecimentos sobre arte e que passava muito tempo na Europa. Tal como o resto do país, ficara a saber a verdadeira natureza do seu trabalho através dos jornais. A atitude para com ele mudara desde que fora desmascarado. Ficava calada, tendo o cuidado de não o perturbar e sendo incapaz de o olhar nos olhos durante muito tempo. Gabriel já testemunhara comportamentos como o de Gilah, em criança, sempre que alguém entrava na casa Allon. A morte deixara a sua marca no rosto de Gabriel, como Birkenau maculara a expressão de sua mãe. Gilah não conseguia fitar-lhe os olhos, com medo do que neles pudesse ver.
— Ele já não andava bem. Claro que o tem escondido, até mesmo do primeiro-ministro.
Gabriel não ficou surpreendido. Sabia que Shamron ocultava várias maleitas desde há anos. Tal como quase todos os restantes aspetos da sua vida, a saúde do idoso era um segredo bem guardado.
— São os rins?
Gilah abanou a cabeça. — O cancro voltou.
— Pensei que o tivessem eliminado.
— Também o Ari — retorquiu ela. — E não é tudo. Tem os pulmões numa lástima, por causa dos cigarros. Diz-lhe que não fume tanto.
— Ele nunca me escuta.
— Ele só te escuta a ti. Adora-te como a um filho, Gabriel. Por vezes julgo que gosta mais de ti do que do Yonatan.
— Não seja tonta, Gilah.
— Nunca fica tão feliz como quando vocês estão juntos, no terraço em Tiberíades.
— Normalmente estamos a discutir.
— Ele gosta de discutir contigo, Gabriel.
— Pois, já tinha percebido.
Na televisão, ministros do Governo e chefes de segurança chegavam ao Gabinete do primeiro-ministro para uma sessão de emergência. Em circunstâncias normais, Shamron teria estado entre eles. Gabriel olhou para Gilah, que puxava a pele rasgada do blusão de Shamron.
— Foi o Ari, não foi? — perguntou ela. — Foi o Ari que te arrastou para esta vida... depois de Munique.
Gabriel olhou para as luzes de emergência que piscavam na tela do televisor e anuiu distraidamente. — Estavas no exército?
— Não, já tinha cumprido o serviço militar e na altura estudava na Academia de Arte Bezalel. O Ari foi falar comigo poucos dias depois de os reféns terem sido assassinados. Ainda ninguém sabia, mas Golda já tinha dado ordens para que todos os envolvidos fossem mortos.
— Por que te escolheu ele a ti?
— Falava línguas estrangeiras, e viu certas coisas nos meus relatórios do exército... qualidades que acreditava serem ideais para o tipo de trabalho que tinha em mente.
— Matar à queima-roupa, cara a cara. Foi assim que o fizeste, não foi?
— Sim, Gilah.
— Quantos?
— Gilah.
— Quantos, Gabriel?
— Seis — respondeu. — Matei seis.
Gilah tocou-lhe nos cabelos grisalhos nas têmporas.
— Mas não passavas de um rapaz.
— É mais fácil quando se é novo. À medida que vamos envelhecendo, torna-se mais difícil.
— Mesmo assim fizeste-o. Foi a ti que mandaram matar Abu Jihad, não foi?
Entraste na sua casa em Tunes e mataste-o à frente da mulher e dos filhos. E depois vingaram-se, não no país, mas em ti. Colocaram uma bomba debaixo do teu carro, em Viena.
Gilah puxava o rasgão do blusão de Shamron cada vez com mais força. Gabriel segurou-lhe a mão.
— Está tudo bem, Gilah. Já foi há muito tempo.
— Lembro-me do telefonema. Ari disse que uma bomba tinha explodido embaixo do carro de um diplomata em Viena. Lembro-me de ter ido à cozinha fazer café para ele, e quando voltei ao quarto estava chorando. Ele disse: "A culpa é toda minha. Matei a mulher e o filho dele." Foi a única vez que o vi chorar. Não o vi por uma semana. Quando finalmente voltou, perguntei o que acontecera. Não respondeu, é claro. Já estava recomposto. Mas sei que isso o atormenta em todos estes anos. Ele se culpa pelo que aconteceu.
— Não devia — garantiu Gabriel.
— Nem sequer pôde ter luto devidamente, certo? O Governo disse ao mundo que a esposa e o filho do diplomata israelense tinham morrido. Enterrou seu filho em segredo no Monte das Oliveiras, só você, Ari e um rabi, e escondeu sua mulher na Inglaterra, com um nome falso. Mas Khaled a encontrou. Ele sequestrou sua mulher e usou-a para te atrair à Gare de Lyon. — Uma lágrima escorreu pela face de Gilah. Gabriel limpou-a e sentiu que a pele enrugada continuava macia como veludo. — Tudo porque meu marido foi a sua procura numa tarde de setembro, há tanto tempo. Sua vida podia ter sido tão diferente. Podia ter sido um grande artista. Em vez disso, transformamos você num assassino. Por que não ficou amargo, Gabriel? Por que não odeia Ari, como os filhos?
— O rumo da minha vida foi traçado no dia em que os alemães escolheram aquele cabo austríaco para seu chanceler. Ari foi apenas o homem do leme no turno da noite.
— É assim tão fatalista?
— Acredite, Gilah, atravessei um período em que não suportava olhar para Ari. Mas acabei por entender que sou mais parecido com ele do que imaginava.
— Talvez tenha sido essa qualidade que ele viu em seu relatório do exército.
Gabriel esboçou um sorriso. — Talvez tenha sido.
Gilah passou com os dedos pelo rasgão no blusão de Shamron.
— Sabe a história deste rasgão?
— É um dos grandes mistérios no Escritório — declarou Gabriel. — Há um sem-número de teorias sobre como pode ter acontecido, mas ele sempre se negou a contar.
— Foi na noite do atentado em Viena. Ari tinha pressa de chegar ao Boulevard King Saul. Quando entrava no carro, o blusão ficou preso na porta e rasgou. — Passou com o dedo ao longo do rasgo. — Tentei remendá-lo muitas vezes, mas ele nunca me deixou. Era por Leah e Dani, dizia. Passou estes anos todos usando um blusão rasgado pelo que aconteceu com sua mulher e seu filho.
O telefone tocou. Gabriel atendeu e escutou em silêncio por um instante.
— Estou a caminho — disse, momentos depois, e desligou.
— Era o primeiro-ministro. Quer falar comigo imediatamente. Volto assim que puder.
— Não se preocupe, Gabriel. Yonatan está quase chegando.
— Eu volto, Gilah.
O tom da voz saiu-lhe com um certo excesso de dureza. Beijou a face dela de um modo apologético e levantou-se. Gilah agarrou-lhe o braço quando Gabriel se dirigia à porta.
— Leve isso — disse, estendendo-lhe o blusão de Shamron. Ele gostaria que ficasses com ele.
— Não fale como se ele não fosse sobreviver.
— Leva o blusão e vai embora. — Ofereceu-lhe um sorriso amargo. — Não deixa o primeiro-ministro à espera.
Gabriel saiu para o corredor e apressou-se a chegar aos elevadores. Não pode deixar o primeiro-ministro esperando. Era o que Gilah dizia sempre a Shamron, quando este partia.
Um carro e um destacamento de segurança aguardavam à entrada do centro médico. Apenas precisaram de cinco minutos para chegarem ao Gabinete do primeiro-ministro, no número 3 da Rua Kaplan. Os guardas levaram Gabriel para o interior do edifício através de uma entrada subterrânea e acompanharam-no escadas acima, até o gabinete espaçoso de uma sobriedade inesperada no último andar. A sala estava na obscuridade. Banhado por um círculo de luz, o primeiro-ministro encontrava-se à secretária. Parecia mínimo, devido ao retrato imponente do líder sionista Theodore Herzl pendurado na parede atrás de si. Passara mais de um ano desde que Gabriel estivera na sua presença. Nesse tempo, o cabelo prateado embranquecera e os olhos castanhos tinham assumido o ar lacrimoso de um velho. A reunião do Escritório de Segurança terminara havia pouco e o primeiro-ministro estava sozinho, excepto pela presença de Amos Sharret, o novo diretor-geral do Escritório, sentado numa pose rígida num cadeirão de pele.
Gabriel apertou-lhe a mão pela primeira vez.
— É um prazer conhecê-lo finalmente — cumprimentou Amos. — Gostaria que as circunstâncias fossem outras.
Gabriel sentou-se.
— É a jaqueta de Shamron — comentou o primeiro-ministro.
— Gilah insistiu para que ficasse com ela.
— Fica-lhe bem. — Sorriu, absorto. — Sabe, está até ficando parecido com ele.
— Devo considerar a observação como um elogio?
— Ele era muito elegante, quando jovem.
— Shamron nunca foi jovem, Excelência.
— Nenhum de nós foi. Todos envelhecemos antes do tempo. Abdicamos da nossa juventude para construir este país. Shamron não tem um dia de folga desde 1947. E é assim que tudo termina? — O primeiro-ministro abanou a cabeça. — Não, ele vai sobreviver. Acredite, conheço há mais tempo do que o Gabriel.
— Shamron é eterno. É o que diz Gilah.
— Eterno, talvez não, mas não vai ser morto por um bando de terroristas.
O primeiro-ministro olhou de relance para o relógio.
— Queria falar comigo?
— A promoção para chefe de Operações Especiais.
— Já aceitei o cargo.
— Eu sei, mas talvez não seja a melhor hora.
— Posso perguntar por quê?
— Porque a sua atenção tem que se concentrar na descoberta e na punição dos homens que fizeram isto a Shamron.
O primeiro-ministro silenciou repentinamente, como se pretendesse dar a Gabriel a oportunidade de apresentar a sua objecção. Gabriel permaneceu imóvel, o olhar nas mãos.
— Surpreende-me — comentou o primeiro-ministro.
— Como assim?
— Receava que fosse dizer para encontrar outra pessoa para fazê-lo.
— Não se contradiz o primeiro-ministro.
— Mas com certeza existe outro motivo.
— Estava em Roma quando os terroristas atacaram o Vaticano, e acompanhei Shamron ao carro. Ouvi a bomba explodir. — Fez uma pausa. — Esta rede, sejam eles quem forem, e quaisquer que sejam os seus objetivos, tem de ser eliminada... depressa.
— Parece querer vingança.
Gabriel ergueu o olhar das mãos.
— E quero, Excelência. Talvez, dadas as circunstâncias, não seja a pessoa indicada para a missão.
— Na verdade, e dadas as circunstâncias, é o homem ideal. Foi Amos quem disse.
Gabriel virou-se e observou-o com atenção pela primeira vez. Era um homem baixo e entroncado, com uma forma quadrada. Tinha uma franja monacal de cabelo escuro e uma fronte carregada. Detinha ainda a patente de general da FDI, mas trajava agora um fato de um cinza-claro. A sua sinceridade era uma mudança agradável. Lev sempre tivera uma personalidade de dentista, eternamente em busca de fraquezas e de podres. O estilo de Amos aproximava-se mais de um carpinteiro. Gabriel teria de ser cuidadoso, para não vir a ser vítima do martelo.
— Mas veja se a sua raiva não lhe tolda o raciocínio — acrescentou Amos.
— Isso nunca se passou — asseverou Gabriel, sustendo-lhe o olhar sombrio.
Amos ofereceu-lhe um sorriso frio, como se dissesse, Comigo não vai haver destruição de estações de trens francesas, seja qual for a circunstância. O primeiro-ministro chegou-se à frente e apoiou-se sobre os cotovelos.
— Acredita que os sauditas foram os responsáveis?
— Temos algumas provas que apontam para uma ligação saudita com a Irmandade de Alá — adiantou Gabriel, à cautela —, mas precisamos demais informações antes de começarmos a procurar um indivíduo específico.
— Como Ahmed bin Shafiq, por exemplo.
— Sim, Excelência.
— E se for ele?
— Na minha opinião, estamos a lidar com uma rede, e não com um movimento. Uma rede sustentada pelo dinheiro saudita. Se cortarmos a cabeça, a rede morre. Mas não vai ser fácil, Excelência. Sabemos muito pouco acerca dele. Nem sequer conhecemos a sua verdadeira aparência. Também será complicado a nível político, devido aos americanos.
— Não vai ser complicado de todo. Ahmed bin Shafiq tentou matar o meu conselheiro mais chegado, por isso Ahmed bin Shafiq tem de morrer. — E se ele estiver a agir a mando do príncipe Nabil, ou de alguém da Família Real, uma família com uma relação histórica e econômica muito próxima do nosso aliado mais importante? — Em breve o saberemos.
O primeiro-ministro lançou um olhar a Amos.
— O Adrian Carter, da CIA, gostaria de falar com você — disse Amos. — Fiquei de viajar para Washington amanhã, para o deixar ao corrente das nossas informações sobre o atentado no Vaticano.
— O Carter pediu uma alteração do local de encontro. — Onde se quer reunir?
— Em Londres.
— Porquê Londres?
— Foi sugestão do Carter — explicou Amos. — Queria um local neutro.
— Desde quando uma casa de segurança da CIA em Londres é terreno neutro? — Gabriel olhou para o primeiro-ministro e depois para Amos. — Não quero deixar Jerusalém... pelo menos até saber se Shamron vai sobreviver.
— Carter diz que é urgente — contrapôs Amos. — Quer encontrar com você amanhã à noite.
— Então mande outra pessoa.
— Não podemos — interveio o primeiro-ministro. — Você foi o único convidado.