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A MENSAGEIRA
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11

LONDRES

— Como está o velhote? — perguntou Adrian Carter. Caminhavam lado a lado em Eaton Place, abrigados de um aguaceiro noturno debaixo do guarda-chuva de Carter. Tinham-se encontrado cinco minutos antes em Belgrave Square, como que por acaso. Carter envergava uma capa e segurava um exemplar do The Independent. Era ortodoxo, no que dizia respeito às regras do ofício. Segundo as piadas que corriam na sede em Langley, Adrian Carter deixava marcas de giz na cabeceira da cama sempre que queria fazer amor com a esposa.

— Continua inconsciente — respondeu Gabriel —, mas resistiu à noite e já não está perdendo sangue.

— Vai sobreviver?

— Ontem à noite, diria que não.

— E agora?

— Estou mais preocupado com as possíveis sequelas. Se ficar com lesões cerebrais, ou preso dentro de um corpo que não obedece... — A voz de Gabriel esmoreceu. — Para Shamron só há uma coisa na vida, o trabalho. Se não puder trabalhar, vai se sentir miserável... bem como todos os que o rodeiam.

— E as novidades? — Carter olhou discretamente para a porta da casa georgiana de número 24. — O apartamento fica ali. Vamos dar mais uma volta no quarteirão, sim? Gosto de seguir as regras.

— Não sabia, Adrian? A União Soviética acabou há anos. O KGB já desapareceu. Agora vocês e os russos são amigos.

— Cuidado nunca é demais, Gabriel.

— Seus rapazes da segurança não definiram um percurso para a identificação de vigilância?

— Não há rapazes, Gabriel.

— É uma casa de segurança da Agência?

— Não exatamente — observou Carter. — Pertence a um amigo.

— Um amigo da Agência?

— Na verdade, um amigo do presidente.

Carter puxou de leve a manga do blusão de Gabriel e conduziu-o pela rua escura. Percorreram lentamente Eaton Square, que estava em silêncio, exceto pelo murmúrio do trânsito noturno em Kings Road. Carter deslocava-se a um ritmo fastidioso, como um homem com um compromisso que preferia não ter de cumprir. Gabriel debatia-se com um único pensamento: por que razão o diretor delegado das operações da CIA desejava falar num local onde o seu próprio Governo não estivesse à escuta?

Regressaram a Eaton Place. Desta vez, Carter guiou Gabriel pelos degraus até a entrada na cave. Quando Carter introduziu a chave na fechadura, Gabriel levantou silenciosamente a tampa do balde do lixo e viu que este se encontrava vazio. Carter abriu a porta e entraram para o tipo de cozinha que os panfletos das agências imobiliárias descreviam como cozinha gourmet. As bancadas eram de granito e tinham uma iluminação agradável, fornecida por lâmpadas de halogêneo ocultas por baixo do armário feito sob medida. O chão era da pedra calcária de Jerusalém, tão apreciada pelos ingleses e americanos refinados que procuravam estabelecer uma ligação com as suas raízes mediterrânicas. Carter dirigiu-se à bancada de aço inoxidável e encheu a chaleira eléctrica com água. Não se deu ao trabalho de perguntar se Gabriel queria algo mais forte. Sabia que ele apenas bebia um copo de vinho ocasional e que nunca misturava o álcool com o trabalho, salvo por necessidade de disfarce.

— É um duplex — explicou Carter. — A sala fica lá em cima. Ponha-se à vontade. — Estás a dar-me autorização para dar uma olhada pela casa, Adrian? Carter abria e fechava as portas do armário com uma expressão perplexa no rosto. Gabriel foi até a despensa, encontrou uma caixa de chá Earl Grey e lançou-a a Carter antes de se dirigir ao andar de cima. A sala estava confortavelmente mobilada, mas denotava um ar de anonimato comum às segundas habitações. A Gabriel parecia que nunca ninguém ali amara, nem brigara. Pegou numa fotografia emoldurada que estava em cima de uma mesa de apoio e viu o que parecia ser o típico americano próspero,

Com três filhos bem alimentados e uma esposa com demasiadas cirurgias plásticas. Outras duas fotografias mostravam o americano numa posição rígida ao lado do presidente.

Ambas tinham dedicatórias assinadas: Para Bi, com gratidão.

Carter voltou momentos depois, com um tabuleiro de chá equilibrado nas mãos. Tinha cabelo encaracolado que rareava e o tipo de bigode largo em tempos favorecido pelos professores universitários americanos. O comportamento de Carter pouco tinha que sugerisse que era um dos membros mais poderosos da vasta rede de espionagem americana, ou que antes da sua ascensão à atmosfera rarefeita do sexto piso de Langley fora um dos mais conceituados agentes de campo. A tendência natural de Carter para escutar, em vez de falar, levava a maior parte das pessoas a concluir que se travava de uma espécie de terapeuta. Quando se pensava em Adrian Carter, imaginava-se um homem a suportar confissões de rumos de acontecimentos, ou de problemas, ou então uma figura de um romance de Dickens, curvado sobre livros grossos com longas palavras em latim. Normalmente, as pessoas subestimavam Carter. Era uma das suas armas mais poderosas.

— Quem está por trás disso, Adrian? — perguntou Gabriel.

— Diga você. — Carter pousou o tabuleiro sobre a mesa de centro e despiu a capa como se estivesse cansado de muito viajar. — Estamos no seu bairro.

— O bairro é nosso, mas algo me diz que o problema é seu. Caso contrário, não estaria em Londres — Gabriel deu uma olhada na sala —, numa casa de segurança emprestada, sem microfones nem apoio da estação local.

— Poucas são as coisas que te escapam, não é? Conte, Gabriel. Diga o nome dele.

— É um antigo agente saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq.

— Bravo, Gabriel. Muito bem. — Carter largou a capa nas costas de uma cadeira. — Muito bem mesmo.

Carter destapou o bule, sorveu o aroma e decidiu que precisava ficar em infusão mais um momento.

— Como souberam?

— Não soubemos — corrigiu Gabriel. — Foi um palpite, baseado em vestígios de prova.

— Por exemplo?

Gabriel contou a Carter tudo o que sabia. A operação falhada contra o professor Ali Massoudi. As fotografias de vigilância e a informação sobre a conta bancária suíça encontradas no computador de Massoudi. As ligações entre Ibrahim el-Banna e o agente saudita que se dava a conhecer como Khalil. Os relatórios sobre um saudita do mesmo nome que percorria os campos de refugiados do Sul do Líbano em busca de recrutas. Entretanto, Carter atarefava-se com o chá. Serviu a primeira xícara e entregou-a Gabriel. Seu chá exigia uma preparação mais elaborada: uma dose calculada de leite, depois o chá, por fim um torrão de açúcar. Os interrogadores referiam-se a esse óbvio ganhar tempo como atividade de deslocamento. Carter era fumador de cachimbo. Gabriel receava o seu aparecimento em breve. E vocês? — inquiriu Gabriel. — Quando souberam que se tratava de Bin Shafiq?

Carter pegou num segundo torrão com a tenaz e ponderou brevemente se deveria acrescentá-lo à xícara, após o que o devolveu sem cerimônias ao açucareiro. Provavelmente soube-o no dia em que pedimos a Sua Majestade que encerrasse o Grupo 205 — respondeu. — Ou talvez tenha sido no dia em que Bin Shafiq desapareceu da face da Terra. Sabes, Gabriel, uma das coisas que aprendi nesta profissão foi que para cada ação nossa, vai haver uma reação negativa. Afastamos o urso russo do Afeganistão e acabamos por criar uma hidra. Esmagamos o quartel-general da Al-Qaeda e agora as filiais estão a tratar dos seus próprios assuntos. Encerramos a loja de Bin Shafiq no GID e agora parece que ele começou a trabalhar por conta própria.

— Por quê?

— Pergunta o que o levou a atravessar a fronteira? — Carter encolheu os ombros e mexeu o chá com uma expressão lamentosa. — Não foi preciso muito. Ahmed bin Shafiq é um verdadeiro crente wahhabi.

— Neto de um guerreiro ikhwan — acrescentou Gabriel, o que lhe valeu um aceno de admiração por parte de Carter.

— Podemos perguntar por que os sauditas apoiam o terrorismo — disse Carter. — Podemos ter um debate interessante sobre se defendem na verdade os objetivos dos assassinos que armam e financiam, ou se estão numa política inteligente e cínica para controlar o ambiente em redor, garantindo assim sua sobrevivência. Tal debate não é possível sobre o homem que o GID escolheu para executar essa política. Ahmed bin Shafiq é um crente. Ahmed bin Shafiq odeia os Estados Unidos, o Ocidente e o Cristianismo, e ficaria muito feliz se o teu Estado deixasse de existir. Foi por esse motivo que insistimos com Sua Majestade para que encerrasse a sua lojinha dos horrores.

— E quando vocês forçaram o rei a encerrar o Grupo 205, Bin Shafiq perdeu a cabeça? Decidiu utilizar os contatos que foi estabelecendo ao longo dos anos e lançar a sua própria onda de terror? Com certeza que não pôde ter sido assim tão linear, Adrian.

— Receio que tenhamos dado um pequeno empurrão — admitiu Carter. — Invadimos o Iraque contra a vontade do Reino e da maior parte de seus habitantes. Capturamos membros da Al-Qaeda e os trancamos em prisões secretas, que é onde eles devem estar. Isto foi ruim para o mundo islâmico, e serviu para atiçar o fogo da jihad. Vocês também tiveram mão nisso. Para os árabes, seu Muro de Separação não passa de uma fronteira terminal unilateral, e não estão muito satisfeitos com ele.

— Não fique chocado, Adrian, mas não nos interessa o que os sauditas pensam do nosso muro. Se não tivessem injetado milhões nos cofres do Hamas e da Jihad Islâmica, não precisaríamos dele.

— O que nos leva à minha argumentação original — rematou Carter, fazendo uma pausa para beber um gole de chá. — O mundo islâmico ferve de raiva e Ahmed bin Shafiq, um verdadeiro crente wahhabi, tornou-se o porta-estandarte da jihad contra o infiel. Utilizou os contatos de seus dias no Grupo 205 para construir uma nova rede. Está fazendo o que Bin Laden já não consegue, que é planejar e executar atentados terroristas espetaculares, como o do Vaticano. Tem uma rede pequena, extremamente profissional e, como já provou, bem letal.

— E é financiada por dinheiro saudita.

— Sem dúvida — asseverou Carter.

— Aonde chegam as implicações, Adrian?

— Muito alto — respondeu Carter. — Quase ao topo.

— Onde é a base de operações deles? Quem financia? De onde vem o dinheiro?

— Da AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermediários — garantiu Carter. — Ahmed bin Shafiq é um dos melhores investimentos da AAB. Posso servir mais chá?

Seguiu-se outra pausa nos trabalhos, desta vez com Carter tentando adivinhar como acender a lareira a gás. Mirou, perplexo, a grelha por um instante e virou-se para Gabriel, lançando-lhe um apelo com o olhar. Gabriel encontrou a torneira de segurança, abriu o fluxo de gás e acendeu.

— Quantos anos você dá a eles, Gabriel? Quanto tempo até que a Casa de Saud seja derrubada e em seu lugar surja a República Islâmica da Arábia? Cinco anos? Dez? Ou talvez vinte? Nunca fomos muito bons nesse tipo de previsões. Pensamos que o império soviético fosse eterno.

— E nós pensamos que o Hamas nunca conseguiria vencer eleições.

Carter soltou uma risada melancólica.

— As nossas melhores mentes dão-lhes sete anos, no máximo. Sua Majestade está disposta a passar esses sete anos com as regras antigas: fornece-nos petróleo barato e uma suposta amizade, e ao mesmo tempo vai adulando e subornando as forças do Islão para não o atacarem. E, quando chegar a altura, vai fugir para os palácios que tem na

Riviera e passar o resto da vida com um luxo demasiado grotesco para se imaginar, de preferência com a cabeça ainda pegada ao corpo. Carter virou as palmas das mãos para o fogo.

— Não está quente — constatou.

— Os troncos são feitos de cerâmica. Dá-lhe um pouco para aquecer. Carter pareceu incrédulo. Gabriel acercou-se da janela e espreitou para a rua, onde um carro passou lentamente e desapareceu à esquina. Carter desistiu da lareira e regressou ao seu lugar.

— E depois temos os elementos da Família Real que estão dispostos a adoptar regras diferentes. A esses chamamos os Verdadeiros Crentes. Julgam que a única forma da Al-Saud sobreviver é através da renovação da aliança que estabeleceram há dois séculos com Muhammad Abdul Wahhab, no Njad. Mas esta nova aliança terá de contemplar novas realidades. O monstro que a Al-Saud criou há duzentos anos tem agora todas as cartas na mão, e os Verdadeiros Crentes estão preparados para dar ao monstro aquilo que ele quer. Sangue infiel. Jibadsem fim. Alguns desses Verdadeiros Crentes querem ir ainda mais longe. Desejam a expulsão de todos os infiéis da Península. Um embargo às vendas de petróleo à América e a todos os países que tenham negócios com vocês. Acreditam que o petróleo não deve ser visto simplesmente como um poço sem fim de dinheiro líquido que jorra dos terminais de Rãs Tanura para as contas bancárias suíças da Al-Saud. Querem usá-lo como arma... uma arma que possa ser empregue para danificar a economia americana e transformar os wahhabis em mestres do planeta, como Alá o desejou, quando criou o mar de petróleo debaixo das areias do Al-Hassa. E alguns desses Verdadeiros Crentes, como o presidente e CEO da AAB Holdings de Riad, Genebra e outros pontos intermédios, estão eles próprios dispostos a verter algum sangue infiel.

— Refere-se a Abdul Aziz al-Bakari?

— Exatamente — confirmou Carter. — Sabe alguma coisa sobre ele?

— Pelas últimas contas, era o décimo quinto homem mais rico do mundo, com fortuna pessoal na casa dos dez bilhões de dólares.

— Mais milhão, menos milhão.

— É presidente, diretor executivo e imperador da AAB Holdings... A de Abdul, A de Aziz e B de al-Bakari. A AAB é dona de bancos e de casas de investimento. A AAB tem empresas de navegação e metalúrgicas. A AAB está cortando as florestas da Amazônia e explorando minério nos Andes do Peru e da Bolívia. A AAB é dona de uma empresa química belga e de uma farmacêutica holandesa. A divisão de pesquisa e desenvolvimento da AAB é uma das maiores do mundo. Abdul Aziz al-Bakari é dono de mais hotéis do que qualquer outra pessoa.

Carter prosseguiu a enumeração de Gabriel.

— Tem um palácio em Riad que raramente visita e onde vivem duas antigas esposas que nunca vê. É dono de uma mansão na Île de la Cité, em Paris, de um solar principesco na Inglaterra, de uma casa em Mayfair, de villas à beira-mar em Saint-Tropez, Marbella e Maui, de chalés de esqui em Zermatt e Aspen, de um apartamento na Park Avenue que foi há pouco tempo avaliado em quarenta milhões de dólares, e de uma propriedade gigantesca, em frente ao Potomac, por onde passo todos os dias quando vou para o trabalho. Carter parecia considerar a mansão no Potomac, o mais grave de todos os pecados de Al-Bakari. O pai era sacerdote episcopal de New Hampshire e, por baixo do seu exterior plácido, batia um coração puritano.

— Al-Bakari viaja com o séquito por todo o mundo, a bordo de um 747 revestido a ouro — prosseguiu. — Duas vezes por ano, uma em fevereiro e outra em agosto, as operações AAB vão para o mar, quando Al-Bakari e a comitiva se instalam a bordo do Alexandra, o seu iate de noventa metros. Esqueci-me de alguma coisa? — Os amigos tratam-no por Zizi — replicou Gabriel. — Tem uma das maiores coleções mundiais de arte impressionista francesa, e há anos que os andamos a dizer que é um dos maiores financiadores do terrorismo, especialmente contra nós.

— Não tinha noção.

— Noção do quê?

— De que Zizi era um colecionador.

— E muito agressivo.

— Por acaso já esteve com ele?

— Receio que eu e Zizi estejamos em lados opostos do negócio.

— Gabriel franziu o sobrolho. — Qual é a ligação entre Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq?

Pensativo, Carter soprou o chá, sinal de que ainda não estava pronto para responder à questão de Gabriel.

— É um sujeito interessante, o Al-Bakari. Sabias que o pai foi o banqueiro pessoal de Ibn Saud? Tal como seria de esperar, o papai Al-Bakari saiu-se muito bem, o suficiente para dar dez milhões de dólares ao filho, para que este começasse a sua própria empresa. Mas isso não foi nada, quando comparado com o capital que recebeu da Al-Saud, quando o projeto se desenvolveu. A acreditar nos boatos, cem milhões de dólares. A AAB continua a ser o receptáculo preferido do dinheiro real saudita, o que é uma das razões para que Zizi esteja interessado em garantir a sobrevivência da Casa de Saud.

Gabriel sentiu um aperto no coração quando Carter pegou na bolsa do tabaco. — É um dos homens mais ricos do mundo — disse Carter —, e um dos mais caridosos. Erigiu mesquitas e centros islâmicos por toda a Europa. Financiou projetos de desenvolvimento no Delta do Nilo e para o combate à fome no Sudão. Doou milhões aos refugiados palestinos e outros milhões a projetos de urbanização na Cisjordânia e em Gaza.

— E mais de trinta milhões de dólares naquela angariação televisiva de fundos árabes para financiar homens-bomba suicidas — acrescentou Gabriel. — Zizi foi o maior doador individual. Agora, responde-me, Adrian.

— E qual era a pergunta?

— Qual a ligação entre Zizi e Bin Shafiq?

— É bem perspicaz, Gabriel. Diga você, qual a ligação.

— É óbvio que Zizi financia a rede de Bin Shafiq.

— É óbvio — asseverou Carter.

— Mas Bin Shafiq é saudita. Pode obter dinheiro em qualquer outro lugar. Zizi tem algo mais valioso que o dinheiro. Tem uma infraestrutura global, por onde Bin Shafiq pode movimentar homens e material. E Zizi tem o lugar ideal onde esconder um ideólogo como Bin Shafiq.

— A AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermediários.

O silêncio tombou entre eles como uma cortina, enquanto Carter enchia vagarosamente o cachimbo. Gabriel continuava de pé à janela, a olhar a rua. Sentia-se tentado a permanecer aí, pois o tabaco de Carter, quando aceso, cheirava a uma mistura de feno a arder e de cão molhado. Mas também sabia que a conversa chegara a um ponto em que não poderia ser continuada à frente de uma janela insegura. Com relutância, sentou-se na cadeira oposta a Carter e entreolharam-se em silêncio, Carter fumando com expressão meditativa e Gabriel afastando penosamente a fumaça dos olhos.

— Têm certeza?

— Absoluta.

— Como sabem?

— Fontes e método — respondeu Carter, por reflexo. — Fontes e método.

— Como sabem, Adrian?

— Ouvimos — explicou Carter. — A National Security Agency é uma coisa maravilhosa. Também dispomos de fontes no interior da ala moderada da Casa de Saud e do GID, que estão dispostas a contar certas coisas. Ahmed bin Shafiq reside grande parte do tempo no Ocidente, com uma identidade falsa. Está enterrado no império financeiro de Zizi, e os dois conferenciam com regularidade. Estamos certos desse fato.

Ao lado do tabuleiro de Carter, em cima da mesa de centro, estava um dossiê. Tinha no seu interior uma única fotografia, que Carter entregou a Gabriel. Mostrava um homem de sobretudo de lã e chapéu, em frente de um portão de ferro forjado. O rosto estava de perfil e as feições eram um pouco indistintas. Pelo aspeto da imagem, a fotografia fora tirada de alguma distância.

— É ele?

— Achamos que sim — respondeu Carter.

— Onde foi tirada?

— No exterior da casa de Zizi, na Île de la Cité, em Paris. O fotógrafo estava do outro lado do Sena, no Quai de l’Hôtel de Ville, o que explica uma certa falta de clareza da imagem. — Há quanto tempo?

— Seis meses.

Carter ergueu-se lentamente e deambulou até a lareira. Estava prestes a bater o cachimbo na grelha, quando Gabriel o recordou de que era falsa. Voltou a sentar-se e esvaziou o cachimbo para dentro de um grande cinzeiro de vidro lapidado.

— Quantos americanos morreram no Vaticano? — perguntou Gabriel.

— Vinte e oito, incluindo um bispo da Cúria.

— Quanto dinheiro Zizi al-Bakari deu a terroristas, ao longo dos anos?

— Centenas de milhões.

— Vão atrás dele — declarou Gabriel. — Levantem um processo e levem-no a tribunal.

— Contra Zizi al-Bakari?

— Secção 18 U.S.C. 2339B... Já ouviu falar nela, Adrian?

— Agora está me citando a lei americana?

— Dar dinheiro a grupos terroristas assumidos é uma violação da lei americana, quer esse dinheiro tenha, ou não, sido utilizado em atentados específicos. Talvez já pudessem ter processado dezenas de sauditas ricos por fornecerem apoio material aos inimigos, incluindo Zizi al-Bakari.

— Você me desaponta, Gabriel. Sempre te imaginei uma pessoa razoável... por vezes preocupado demais com questões de certo e errado, mas razoável. Não podemos ir atrás de Zizi al-Bakari.

— Por quê?

— Dinheiro — justificou-se Carter, ao que acrescentou: — E petróleo, é claro.

— É claro.

Carter brincou com o isqueiro.

— A Família Real Saudita tem muitos amigos em Washington. O tipo de amigos que só o dinheiro pode comprar. Zizi também tem amigos. Fundou cátedras acadêmicas e encheu-as de amigos e apoiantes. Garantiu a criação de departamentos de estudos árabes em meia dúzia de universidades americanas importantes. Financiou quase sozinho uma renovação profunda do Kennedy Center. Oferece dinheiro a projetos de caridade de senadores influentes e investe nos negócios de amigos e familiares desses senadores. É dono de boa parte de um dos bancos mais importantes e tem participações numa série de outras empresas americanas também importantes. Também serviu de intermediário em inúmeros negócios entre sauditas e americanos. O quadro está a ficar mais claro?

Estava, mas Gabriel queria ouvir mais.

— Se o bando de advogados de Washington de Zizi sequer desconfiasse que ele ia ser investigado criminalmente, Zizi falaria com Sua Majestade, Sua Majestade falaria com o embaixador Bashir, e o embaixador ia à Casa Branca ter uma conversinha com o presidente. Lembraria o presidente de que uma volta ou duas nas torneiras do petróleo significaria um aumento brutal no preço da gasolina. Talvez chegasse a frisar que um aumento dessa magnitude prejudicaria os habitantes do centro do país, que costumam fazer viagens longas, e que também costumam votar no partido do presidente.

— E assim, para Zizi o crime compensa... literalmente.

— Receio que sim.

— Não pergunte sobre o que, quando explicado, possa te trazer problemas.

— Conhece bem o Corão — disse Carter. — Outra razão para não agir contra Zizi, ou acusá-lo é o medo do que se pode encontrar: enredos com americanos importantes, negócios obscuros com elementos de Washington. Imagine a reação do povo americano se descobrisse que um bilionário saudita com ligações comerciais com figuras importantes de Washington financia as atividades inimigas. A relação mal conseguiu sobreviver ao primeiro Onze de Setembro. Duvido que sobrevivesse a um segundo. Não sobreviveria, pelo menos na forma atual. Já há um movimento no Capitólio para isolar a Arábia Saudita, devido ao apoio prestado ao extremismo islâmico global. Um escândalo que envolvesse Zizi al-Bakari apenas serviria para lançar achas para a fogueira. Várias figuras da política externa do Congresso estão a pensar numa legislação que pressione a Arábia Saudita. Podem dar-se a esse luxo. Se a economia americana for por água abaixo devido a uma subida dos preços do petróleo, não são eles que sofrem, mas sim o presidente.

— E o que quer de nós, Adrian? O que quer me dizer nesta sala, onde mais ninguém nos ouve?

— O presidente dos Estados Unidos quer pedir um favor — explicou Carter, enquanto fitava o fogo. — O tipo de favor em que por acaso você é muito bom. Ele gostaria que pusessem um agente na Casa de Zizi. Gostaria que descobrisse quem entra e quem sai. E se Ahmed bin Shafiq aparecer, ele gostaria que tentasse pegá-lo. A operação será sua, mas pode contar com todo o nosso apoio. Estaremos do outro lado do horizonte... longe o bastante para garantir uma negação plausível em Riad.

— Você me desaponta, Adrian. Sempre pensei que fosse uma pessoa razoável.

— O que eu fiz agora?

— Pensei que ia me pedir para matar Zizi al-Bakari e acabar de vez com o assunto.

— Matar Zizi? — Carter abanou a cabeça. — Zizi é intocável. Zizi é radioativo.

Gabriel regressou ao seu posto à janela e espiou a rua quando um casal de namorados correu pela calçada sob a chuva.

— Não somos assassinos profissionais — protestou. — Não podemos ser contratados para fazer os trabalhos sujos que vocês não podem fazer. Querem Bin Shafiq morto, mas não estão dispostos a correr riscos. Pretendem que sejamos nós a ficar com a culpa.

— Poderia lembrar alguns fatos importantes — adiantou Carter. — Poderia lembrar que este presidente ficou do seu lado enquanto o resto do mundo os tratou como se fossem judeus entre nações. Poderia lembrar que ele permitiu que construíssem o Muro de Separação, enquanto o resto do mundo os acusou de se comportar como os sul-africanos. Poderia lembrar que ele permitiu que trancassem Arafat na Mukata, enquanto o resto do mundo os acusou de agir como tropa de choque nazista. Poderia lembrar as inúmeras vezes em que este presidente tratou de sua roupa suja, mas não o farei, pois isso seria politicamente incorreto. Também poderia sugerir que com este pedido estaríamos numa espécie de saldar contas, o que não é, de todo, o caso.

— Então é o quê?

— Um reconhecimento — explicou Carter. — O reconhecimento de que nós, americanos, não temos estômago, nem coragem, para fazer as coisas que têm de ser feitas nesta luta. Já queimamos os dedos. Nossa imagem já foi debilitada. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vimos. Nossos políticos gostariam que pegássemos o primeiro avião para fora do Iraque, para que possam começar a gastar dinheiro no tipo de coisas que conquistam votos. O povo quer voltar à boa vida. As pessoas querem enterrar a cabeça na areia e fingir que não existe no mundo uma força organizada que procura destruí-las. Pagamos um preço terrível por entrar na sarjeta com os terroristas e combater no nível deles, mas acho que vocês sabiam que isso ia acontecer. Ninguém pagou um preço mais elevado do que vocês.

— E por isso querem que o façamos no seu lugar. Imagino que seja o a que chamam de terceirização. Mas que americano de sua parte, Adrian.

— Dadas as atuais circunstâncias, os Estados Unidos não podem tentar assassinar um antigo oficial da espionagem saudita, caso contrário a nossa relação com Riad ficaria comprometida. Também não podemos prender e acusar Zizi al-Bakari pelas razões que mencionei.

— Por isso querem que o problema desapareça?

— Exatamente.

— Que seja varrido para baixo do tapete? Que se adie o ajuste de contas para uma data mais conveniente?

— Não podia ser mais claro.

— Acha que essa é a melhor forma de derrotar a Hidra? Cortar uma cabeça e esperar que tudo corra bem? É preciso queimar as raízes, como fez Hércules. É preciso atacar o monstro com flechas embebidas em fel.

— Quer atacar a Casa de Saud?

— Não só a Casa de Saud — asseverou Gabriel. — Os fanáticos wahhabitas que fizeram um pacto de sangue, há duzentos anos, no planalto estéril do Najd. São eles seu verdadeiro inimigo, Adrian. Foram eles que criaram a Hidra.

— O príncipe sábio escolhe a data e o local da batalha, e não é hora de derrubar a Casa de Saud.

Gabriel mergulhou num silêncio taciturno. Carter olhava para o fornilho do cachimbo e fazia pequenos ajustes na disposição do tabaco, como um professor à espera da resposta de um aluno menos inteligente.

— Será preciso lembrar que atentaram contra Shamron?

Gabriel fulminou Carter com um olhar que lhe garantia que não se esquecera.

— Nesse caso, por que a hesitação? Depois do que Bin Shafiq fez ao velhote, pensei que estivesse de laço esticado para pegá-lo.

— Quero pegá-lo mais do que ninguém, Adrian, mas nunca estico o laço. É uma operação perigosa... perigosa demais até para você. Se alguma coisa der errado ou se formos apanhados, tudo acaba mal... para os três.

— Três?

— Eu, você e o presidente.

— Nesse caso, siga o décimo primeiro mandamento de Shamron, e não haverá problema. Você não será apanhado.

— Bin Shafiq é um fantasma. Nem sequer temos uma foto.

— Isso não é totalmente verdade. — Carter voltou a pegar o dossiê e retirou outra foto, que colocou em cima da mesa, para que Gabriel a visse. Mostrava um homem de olhos escuros, o rosto em parte oculto por um kaffijeh. — Este é Bin Shafiq, há quase vinte anos, no Afeganistão. Na épica era nosso amigo. Estávamos do mesmo lado. Nós fornecemos as armas. Bin Shafiq e os mestres de Riad forneciam o dinheiro.

— E a ideologia wahhabita que ajudou a dar origem aos talibãs — adiantou Gabriel.

— O inferno está cheio de boas intenções — lamentou-se. — Mas temos algo mais valioso do que uma foto com vinte anos. Temos a voz dele.

Carter pegou um pequeno controle remoto preto, apontou-o a um rádio Bose Wave e pressionou o Play. Momentos depois, dois homens começaram a falar em inglês: um de sotaque americano e o outro de pronúncia árabe.

— Imagino que o árabe seja Bin Shafiq. Carter anuiu.

— Quando foi gravado?

— Em 1988 — explicou Carter. — Numa casa de segurança em Peshawar.

— Quem é o americano? — perguntou Gabriel, embora já soubesse a resposta. Carter pressionou o botão Stop e olhou para o fogo.

— Sou eu — respondeu, com um tom distante. — O americano na casa de segurança da CIA em Peshawar era eu.

— Reconheceria Bin Shafiq se visse?

— Talvez, mas as nossas fontes dizem que fez várias operações plásticas antes de entrar em campo. Mas reconheceria a cicatriz no antebraço direito. Foi atingido por estilhaços durante uma viagem ao Afeganistão, em 1985. A cicatriz vai do pulso ao cotovelo. Não há cirurgião plástico que ajude naquilo.

— No lado de dentro ou de fora?

— De dentro. O ferimento afetou a mão dele. Submeteu-se a várias operações para tentar remediar a situação, mas nada deu certo. Normalmente a mantém no bolso. Não gosta de dar apertos de mão. Bin Shafiq é um beduíno orgulhoso. Não respeita as doenças.

— Imagino que suas fontes em Riad não nos consigam dizer em que zona do império de Zizi ele está escondido.

— Infelizmente, não. Mas sabemos que ele aí está. Se introduzires um agente na Casa de Zizi, talvez Bin Shafiq acabe por entrar pela porta das traseiras. — Introduzir um agente na casa de Zizi al-Bakari? E o que sugeres que façamos para o conseguir, Adrian? Zizi tem mais segurança do que a maior parte dos chefes de Estado.

— Nem me passaria pela cabeça interferir em questões operacionais — escusou-se Carter. — Mas garanto-te que estamos dispostos a ser pacientes e que tencionamos acompanhar a missão até o fim.

— A paciência e o acompanhamento não são exatamente virtudes americanas típicas. Vocês gostam de armar confusão e partir para o problema seguinte. Seguiu-se mais um silêncio longo, desta vez interrompido pelo bater do cachimbo de Carter na borda do cinzeiro. — O que queres, Gabriel?

— Garantias.

— No nosso ramo não há garantias, sabes disso.

— Quero tudo o que tiverem sobre Bin Shafiq e o Al-Bakari.

— Dentro dos limites do razoável — disse Carter. — Não te vou dar um monte de segredos obscuros sobre figuras importantes de Washington.

— Quero proteção — continuou Gabriel. — Quando isto acontecer, seremos os principais suspeitos. Somos sempre, mesmo quando não somos os responsáveis. Vamos precisar da sua ajuda para acalmar a tempestade.

— Apenas posso falar em nome do DO — lembrou Carter. E garanto-te que vamos estar do seu lado.

— Eliminamos Bin Shafiq onde e quando escolhermos, sem qualquer interferência de Langley.

— O presidente ficaria grato se pudessem evitar fazê-lo em território americano.

— No nosso ramo não há garantias, Adrian.

— Touché.

— Talvez custe a acreditar, mas não posso decidir sozinho. Tenho de falar com Amos e o primeiro-ministro.

— Amos e o primeiro-ministro farão o que lhes disser.

— Dentro do razoável.

— O que vai dizer?

— Que o presidente americano precisa de um favor — disse Gabriel. — E que pretendo ajudá-lo.

12

TEL MEGIDDO, ISRAEL

O primeiro-ministro autorizou a operação de Gabriel às duas e trinta da tarde seguinte. Gabriel dirigiu-se de imediato a Armagedon. Imaginou que fosse um bom local para começar.

O tempo parecia glorioso de uma forma perversa para tal ocasião: temperatura fresca, um céu de um azul pálido, uma brisa leve que lhe agitava as mangas da camisa, à medida que seguia a Estrada de Jafa. Ligou o rádio. A música lúgubre que enchera o éter nas horas que se tinham seguido ao atentado à vida de Shamron desaparecera. Um boletim noticioso surgiu de repente. O primeiro-ministro garantira fazer tudo ao seu alcance para localizar e punir os responsáveis pelo atentado contra Shamron. Não mencionou o fato de já saber quem era o responsável, nem que autorizara Gabriel a eliminá-lo.

Gabriel percorreu a Bab al-Wad em direção ao mar, ziguezagueando com impaciência por entre o tráfego mais lento, e depois acompanhou o sol que se punha para norte, ao longo da Planície Costeira. Perto de Hadera havia um alerta de segurança. Segundo o rádio, um alegado homem-bomba suicida conseguira atravessar o Muro de Separação perto de Tulkarm. Gabriel foi obrigado a aguardar na beira da estrada durante vinte minutos, antes de se encaminhar para o vale de Jezreel. A oito quilômetros de Afula, um outeiro redondo surgiu à esquerda. Em hebraico era conhecido por Tel Megiddo, ou Monte Megido. O resto do mundo o conhece como Armagedon, do Livro do Apocalipse, o palco do confronto final entre as forças do bem e do mal. A batalha ainda não começara e o estacionamento estava vazio, salvo por um trio de vans empoeiradas, sinal de que a equipe arqueológica ainda trabalhava.

Gabriel saiu do carro e subiu o caminho íngreme até o topo. O Tel Megiddo era alvo de escavações arqueológicas periódicas há mais de um século, e no alto do monte havia um labirinto de trincheiras compridas e estreitas. Tinham sido encontrados vestígios de mais de vinte cidades debaixo do solo do topo do Tel, incluindo uma que se acreditava ter sido construída pelo rei Salomão. Parou à beira de uma das trincheiras e espreitou para o fundo. Uma pequena figura de casaco de algodão creme estava de gatas, a revirar o solo com uma colher de pedreiro. Gabriel pensou na última vez que estivera acima de um homem num buraco de escavação e sentiu-se como se lhe tivessem deitado um cubo de gelo para as costas. O arqueólogo olhou para cima e fitou-o com um par de olhos castanhos inteligentes. Depois voltou a desviar a atenção para o seu trabalho.

— Tenho estado a tua espera — disse Eli Lavon. — Por que demorou tanto?

Gabriel sentou-se na terra à beira do buraco e observou Lavon a trabalhar. Conheciam-se desde a operação Setembro Negro. Eli Lavon fora um ayin, um batedor. A sua incumbência era seguir os terroristas e tomar conhecimento dos seus hábitos. Em muitos aspetos, essa missão fora ainda mais perigosa do que a de Gabriel, pois Lavon, por vezes, ficara exposto aos terroristas durante dias e semanas a fio, sem qualquer apoio. Após o desmantelamento da unidade, instalara-se em Viena e abrira um pequeno gabinete de investigação chamado Reivindicações e Inquéritos do Tempo da Guerra. Com um orçamento mínimo, conseguira localizar milhões de dólares em bens judeus pilhados e desempenhara um papel importante na obtenção de um acordo milionário com os bancos suíços. Agora, Lavon trabalhava na escavação em Meguido e dava aulas de arqueologia em tempo parcial, na Universidade Hebraica.

— O que tem aí, Eli?

— Um pedaço de cerâmica, creio. — Uma rajada de vento agitou-lhe o cabelo fino e desgrenhado e soprou-o para a testa. — E você?

— Um bilionário saudita que tenta destruir o mundo civilizado.

— Não já conseguiram? — Gabriel sorriu.

— Preciso de você, Eli. Sabe interpretar balancetes. Sabe seguir pista de dinheiro sem que ninguém note.

— Quem é o árabe?

— O presidente e CEO da Jihad Limitada.

— E esse presidente tem nome?

— Abdul Aziz al-Bakari.

— Zizi al-Bakari?

— Esse mesmo.

— Imagino que tenha algo que ver com Shamron.

— E com o Vaticano.

— Qual é a ligação de Zizi?

Gabriel contou.

— Acho que não preciso perguntar o que tenciona fazer com Bin Shafiq — disse Lavon. — O império de Zizi é enorme. Bin Shafiq pode estar trabalhando de qualquer ponto do mundo. Como vai encontrá-lo?

— Vamos introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi e esperar que Bin Shafiq apareça.

— Um agente no território de Zizi? — Lavon abanou a cabeça.

— Não se consegue.

— Consegue-se, sim.

— Como?

— Vou descobrir alguma coisa que Zizi queira — explicou Gabriel. — E depois vou dar a ele.

— Sou todo ouvidos.

Gabriel sentou-se na borda da trincheira de escavação, com as pernas dependuradas para o interior, e disse-lhe como tencionava penetrar na Jihad Limitada. Do fundo do buraco vinha o som do trabalho de Lavon — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— Quem é o agente? — perguntou a Gabriel, quando este terminou.

— Ainda não o tenho.

Lavon ficou em silêncio por um instante — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— O que queres de mim?

— Vira Zizi al-Bakari e a AAB Holdings de pernas para o ar. Quero que disseque cada empresa que ele controle. Perfis de todos os executivos de topo e dos membros da comitiva pessoal. Quero saber como cada pessoa chegou ao seu cargo e como nele tem permanecido. Quero saber mais sobre Zizi do que ele próprio.

— E o que acontece quando entrarmos em campo?

— Você também vai.

— Estou velho e cansado para coisas mais duras.

— É o maior artista de vigilância da história do Escritório, Eli. Não vou conseguir sem você.

Lavon endireitou-se e limpou as mãos na calça.

— Introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi al-Bakari? É louco. — Lançou uma colher de pedreiro a Gabriel. — Venha me ajudar. Estamos ficando sem luz.

Gabriel desceu ao buraco e ajoelhou-se ao lado do velho amigo. Juntos esgaravataram o solo antigo, até que a noite caiu sobre o vale como uma manta.

Quando chegaram ao Boulevard King Saul já passava das nove horas. Lavon saíra havia muito do Escritório, mas continuava a apresentar uma palestra ocasional na Academia e ainda tinha as credenciais para entrar no edifício sempre que quisesse. Gabriel acompanhou-o até a sala de arquivos da divisão de Pesquisa, ao que se dirigiu a um corredor sombrio dois níveis abaixo do solo. No final do corredor ficava a Sala 456C. Afixado à porta estava um letreiro de papel, onde se lia, na caligrafia hebraica de Gabriel: COMITÊ TEMPORÁRIO PARA O ESTUDO DAS AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Decidiu mantê-lo, por enquanto.

Abriu a fechadura com combinação, acendeu as luzes e entrou. A sala parecia congelada no tempo. Era conhecida por vários nomes: a Cápsula, a Choça, o Tanque. Yaakov, um durão de rosto marcado do Departamento de Assuntos Árabes de Shabak, batizara-a de Buraco do Inferno. Yossi, da Pesquisa, denominara-a a Aldeia dos Malditos, mas ele lera clássicos em Oxford e emprestava sempre ao seu trabalho um certo ar de erudição, mesmo quando os temas não o mereciam. Gabriel deteve-se junto à mesa assente em cavaletes que Dina e Rimona tinham partilhado. As constantes altercações territoriais quase tinham dado com ele em doido. A linha de separação que ele traçara no centro da mesa ainda lá estava, a par do aviso que Rimona escrevera do seu lado da fronteira: Atravessar por sua própria conta e risco. Rimona era capita da FDI e trabalhava para Ama, na espionagem militar. Era também sobrinha de Gilah Shamron. Acreditava em fronteiras defensáveis e respondera com incursões de retaliação sempre que Dina cruzara a linha. No lugar de Dina estava a pequena mensagem que ela lá deixara no último dia da operação: Que nunca mais tenhamos de aqui voltar. Que ingênua, pensou Gabriel. Ela devia saber melhor do que ninguém que provavelmente não seria assim.

Continuou a lenta digressão pela sala. Ao canto jazia a mesma pilha de equipamento informático ultrapassado que nunca ninguém se dera ao trabalho de remover. Antes de se transformar no quartel-general do Grupo Khaled, a Sala 456C não passara de uma lixeira onde se despejava mobília velha e aparelhos eletrônicos obsoletos, sendo muitas vezes utilizada pelos membros do turno da noite como local de aventuras românticas. O quadro de giz de Gabriel também ali continuava. Mal conseguia decifrar as últimas palavras que escrevera. Olhou para as paredes, cobertas de fotografias de jovens palestinos. Uma das imagens chamou-lhe a atenção, um rapaz de boina na cabeça e um kaffiyeh sobre os ombros, sentado ao colo de Yasir Arafat: Khaled al-Khalifa no funeral do pai, Sabri. Gabriel matara Sabri, e também matara Khaled.

Retirou as fotografias antigas das paredes e colocou duas novas no seu lugar. Uma delas mostrava um homem de kaffyeh, nas montanhas do Afeganistão. A outra exibia o mesmo homem, agora com um sobretudo de caxemira e chapéu, à frente da casa de um bilionário, em Paris. O Grupo Khaled era agora o Grupo Bin Shafiq.

Durante as primeiras quarenta e oito horas, Gabriel e Lavon trabalharam sozinhos. No terceiro dia chegou Yossi, um homem alto e calvo com o porte de um intelectual britânico. Rimona compareceu no quarto dia, bem como Yaakov, chegado do quartel-general de Shabak, com uma caixa cheia de material sobre os terroristas que tinham atacado o carro de Shamron. Dina foi a última a chegar. Pequena e morena, estivera na Rua Dizengoff de Tel Aviv, no dia 19 de Outubro de 1994, quando um homem-bomba suicida do Hamas transformara o ônibus número 5 num caixão para vinte e uma pessoas. A mãe e duas das suas irmãs encontravam-se entre essas vítimas. Dina ficara gravemente ferida e caminhava agora com um ligeiro coxear. Lidara com a dor tornando-se perita em terrorismo. Com efeito, Dina Sarid era capaz de recitar a data, o local e o número de vítimas de todos os atos terroristas alguma vez cometidos contra o Estado de Israel. Em tempos dissera a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles próprios. Gabriel acreditara.

Dividiram-se em duas áreas de especialidade. Ahmed bin Shafiq e a Irmandade de Alá tornaram-se propriedade de Dina, Yaakov e Rimona, enquanto Yossi se juntou à escavação de Lavon da AAB Holdings. Por enquanto, Gabriel trabalhava sozinho, pois assumira a tarefa nada invejável de tentar identificar todos os quadros alguma vez comprados ou vendidos por Zizi al-Bakari.

À medida que os dias iam passando, as paredes da Sala 456C refletiam a natureza única da operação. Numa das paredes começou a surgir o esboço sombrio de uma nova rede terrorista mortal, liderada por um homem que, em grande medida, não passava de um fantasma. Deram o seu melhor para recriar a longa viagem de Bin Shafiq através da corrente do extremismo islâmico. Ao que parecia, onde quer que tivesse havido problemas, lá estava Bin Shafiq, a distribuir dinheiro saudita do petróleo e propaganda wahhabita às mancheias: Afeganistão, Líbano, Egito, Argélia, Jordânia, Paquistão, Chechênia, Bósnia e, é claro, a Autoridade Palestina. Mas havia pistas de relevo, pois ao levar a cabo dois atentados importantes, Bin Shafiq e a Irmandade tinham deixado mais de uma dúzia de nomes que podiam ser investigados em busca de ligações e de associações. E havia também Ibrahim el-Banna, o imã egípcio mortal, e o professor Ali Massoudi, o angariador e caçador de talentos.

Na parede oposta surgiu outra rede: a AAB Holdings. Utilizando fontes públicas, e outras não tão visíveis, Lavon peneirou a custo as várias camadas do império financeiro de Zizi e reuniu as diversas peças como se fossem pedaços de um artefato antigo. No topo da estrutura encontrava-se a própria AAB. Abaixo desta estava uma rede complexa de empresas subsidiárias e de fachadas corporativas que permitiam que Zizi estendesse a sua influência a quase todos os cantos do globo, em condições de secretismo corporativo quase perfeito. Tendo quase todas as empresas registradas na Suíça e nas Ilhas Caimão, Lavon equiparou Zizi a um caça furtivo financeiro, capaz de levar a cabo ataques à sua vontade, ao mesmo tempo que evitava ser detetado pelos radares inimigos. Apesar da natureza obscura do império de Zizi, Lavon chegou à conclusão de que as contas não batiam certo.

— Zizi nunca poderia ter obtido lucros suficientes com os investimentos iniciais que justificassem as aquisições posteriores — explicou a Gabriel. — A AAB Holdings é uma fachada para a Casa de Saud. — Quanto a tentar descobrir Ahmed bin Shafiq algures no polvo financeiro de Zizi, Lavon comparou-o a tentar encontrar uma agulha no deserto da Arábia. — Não é impossível — disse —, mas provavelmente morremos de sede antes de conseguirmos.

Yossi dedicou-se ao pessoal de Zizi. Concentrou-se na relativamente pequena equipe que trabalhava no quartel-general de Genebra, a par de empresas detidas ou controladas pela AAB. A maior parte do seu tempo, no entanto, era empregue na grande comitiva pessoal de Zizi. Em breve as fotografias cobriam a parede do espaço de trabalho de Yossi, e contrastavam com as da rede de terror de Shafiq. Todos os dias chegavam imagens novas, à medida que Yossi acompanhava os movimentos frenéticos de Zizi por todo o globo. Zizi a chegar a uma reunião em Londres. Zizi em Stuttgart, durante um encontro com fabricantes de automóveis alemães. Zizi a desfrutar da vista para o mar Vermelho, a partir do seu novo hotel em Sharm el-Sheik. Zizi a conferenciar com o rei da Jordânia, sobre um possível negócio imobiliário. Zizi a inaugurar uma central de dessalinização no Yemen. Zizi a receber um prêmio humanitário de um grupo islâmico em Montreal, cuja página de Internet, frisou Yossi, continha um apelo direto à destruição do Estado de Israel.

Quanto ao canto da sala reservado a Gabriel, era um santuário, quando comparado com os reinos do terror e das finanças. A sua parede estava coberta não com os rostos de terroristas ou de executivos, mas com dezenas de fotografias de obras impressionistas francesas. Enquanto Lavon e Yossi passavam os dias a vasculhar monótonos balancetes e folhas impressas, Gabriel folheava catálogos antigos, monografias impressionistas e recortes de impressa que descreviam os feitos de Zizi na cena artística mundial. Ao fim do décimo dia, Gabriel decidira como iria introduzir um agente na Jihad Limitada. Dirigiu-se à coleção de fotografias de Yossi e fitou uma única imagem. Mostrava um inglês magro e grisalho, sentado ao lado de Zizi, seis meses antes, no leilão de Arte Moderna e Impressionista da Christies, em Nova Iorque. Gabriel retirou a fotografia e ergueu-a, para que os outros a vissem. — Este homem — disse. — Tem de desaparecer. — Depois ligou para Adrian Carter através de um número privado seguro de Langley e contou como planejava entrar na Casa de Zizi.

— Agora você só precisa de um quadro e de uma garota — concluiu Carter. — Encontre o quadro e eu consigo a garota.

Gabriel saiu um pouco mais cedo do que o habitual do Boulevard King Saul e dirigiu-se a Ein Kerem. A unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah continuava vigiada por vários guardas, mas Shamron estava sozinho quando Gabriel entrou no quarto.

— O filho pródigo decidiu me visitar — comentou, em tom amargo. — Ainda bem que somos um povo do deserto, caso contrário punham-me em cima de um bloco de gelo e me jogavam no mar.

Gabriel sentou-se ao lado da cama.

— Já vim pelo menos umas seis vezes.

— Quando?

— À noite, quando já está dormindo.

— Anda pairando sobre mim? Como Gilah e os médicos? Por que não vem durante o dia, como uma pessoa normal?

— Tenho estado ocupado.

— O primeiro-ministro não está ocupado para me visitar em horários decentes. — com o pescoço ferido imobilizado por um aparelho de plástico,

Shamron lançou um olhar rancoroso a Gabriel. — Ele contou-me que vai autorizar o Amos a encontrar alguém para as Operações Especiais, para que tu possas levar a cabo esse projeto ridículo para o Adrian Carter e para os americanos.

— Imagino que não o aprove.

— com veemência. — Shamron fechou os olhos durante longos instantes, o suficiente para Gabriel olhar nervosamente para os monitores ao lado da cama. — Azul e branco — acabou por dizer. — Fazemos as nossas coisas sozinhos. Não pedimos a ajuda de ninguém, nem ajudamos os outros com os seus problemas. E, acima de tudo, não nos oferecemos como paus-mandados do Adrian Carter. — Está nesta cama de hospital e não no Gabinete do primeiro-ministro. Isso faz com que Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq também sejam problemas meus. Além disso, o mundo mudou, Ari. Temos de trabalhar juntos, se queremos sobreviver. As regras antigas já não se aplicam.

Shamron ergueu a mão de veias salientes e apontou para o copo de plástico sobre a mesa-de-cabeceira. Gabriel levou-o aos lábios de Shamron, que bebeu a água por uma palhinha.

— Vai empreender essa missão a pedido de quem? — indagou Shamron. — Adrian Carter, ou de alguém mais acima? — Ao receber o silêncio de Gabriel, Shamron afastou, zangado, o copo de água. — Pretende me tratar como uma espécie de inválido? Ainda sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados a segurança e informações. Ainda sou... — A voz sumiu, com uma fadiga súbita.

— Ainda é o memuneh — concluiu Gabriel.

Em hebraico, memuneh significava o responsável. Durante muitos anos, esse título fora reservado a Shamron. — Não vai atrás de um garoto qualquer de Nablus, Gabriel.Seus alvos são Ahmed bin Shafiq e Zizi al-Bakari. Se alguma coisa sair mal, o mundo vai cair em cima, e de muito alto. E seu amigo Adrian Carter não estará lá para catar teus pedaços. Talvez fosse melhor falar comigo. Já fiz esse tipo de coisas uma ou duas vezes.

Gabriel espreitou para o corredor e pediu aos agentes de segurança ali destacados que garantissem que qualquer sistema de vigilância de Shamron fosse desligado. Voltou então a sentar-se na cadeira ao lado da cama e, com a boca perto do ouvido de Shamron, contou tudo. Pelo menos por um instante, o olhar de Shamron pareceu mais concentrado. Quando lhe apresentou a primeira questão, Gabriel quase foi capaz de imaginar o homem de ferro que lhe entrara na vida durante uma tarde de Setembro de 1972.

— Já se decidiu a usar uma mulher? Gabriel anuiu.

— Vai precisar de alguém cujos antecedentes aguentem o escrutínio dos seguranças de Zizi, pagos a peso de ouro. Não pode usar uma das nossas garotas, nem uma judia não israelense. Se Zizi desconfiar que está olhando para uma judia, vai afastar-se dela. Precisa de uma gentia.

— O que eu preciso — explicou Gabriel — é de uma garota americana.

— Onde vai consegui-la?

A palavra única com que Gabriel respondeu fez Shamron franzir o sobrolho. — Não gosto da ideia de sermos responsáveis por uma agente deles. E se alguma coisa der errado?

— O que poderia dar errado?

— Tudo — retorquiu Shamron. — Sabe disso melhor do que ninguém.

Shamron pareceu subitamente exausto. Gabriel baixou a luz do abajur da mesa-de-cabeceira.

— O que vai fazer? — interrogou Shamron. — Vais ler-me uma história?

— Vou fazer-lhe companhia até que adormeça.

— Gilah pode fazer isso. Vai para casa descansar. Bem vais precisar.

— Fico mais um pouco.

— Vai para casa — insistiu Shamron. — Tens uma pessoa a sua espera que está ansiosa para vê-lo.

Vinte minutos depois, quando Gabriel virou para a Rua Narkiss, viu luzes acesas no seu apartamento. Estacionou o Skoda à esquina e percorreu em silêncio o passeio escurecido até o prédio. Quando entrou no apartamento, o ar estava carregado com o aroma a baunilha. Chiara estava sentada de pernas cruzadas em cima da mesa de trabalho, banhada pela luz forte das lâmpadas de halogêneo. Observou Gabriel quando este entrou, desviando então mais uma vez o olhar para o que em tempos fora uma sala de estar meticulosamente decorada.

— Gostei do que fizeste com a casa, Gabriel. Por favor, diz-me que não te livraste da nossa cama também.

Gabriel abanou a cabeça e beijou-a.

— Quanto tempo vais ficar por cá? — perguntou Chiara.

— Tenho de partir amanhã de manhã.

— Para variar, o meu sentido de oportunidade foi perfeito. Quanto tempo vais estar ausente?

— Não te sei dizer.

— Podes levar-me contigo? Desta vez, não.

— Para onde vais?

Gabriel ergueu-a da mesa de trabalho e apagou as luzes.

13

LONDRES

— Preciso de um Van Gogh, Julian.

— Precisamos todos, meu querido.

Isherwood puxou a manga do casaco e olhou para o relógio. Eram dez da manhã. Em geral, por essa hora já se encontrava na galeria, e não a passear à beira do lago de St. Jamess Park. Fez uma breve pausa para observar uma flotilha de patos que cruzavam a água calma em direção à ilha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos ao parque, para ver se estavam a ser seguidos. Depois agarrou em Isherwood pelo cotovelo e puxou-o para a Horse Guards Road. Eram um par díspar, figuras de quadros diferentes. Gabriel trazia jeans escuros e sapatos de camurça que não emitiam qualquer ruído quando andava. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de couro, os ombros curvados para a frente e os olhos verdes saltavam, inquietos, por todo o parque. Quinze anos mais velho do que

Gabriel e vários centímetros mais alto, Isherwood vestia um fato completo cinzento com riscas brancas e um sobretudo de lã. Os caracóis grisalhos tombavam soltos sobre a gola do sobretudo e saltitavam a cada passo desajeitado. Julian Isherwood tinha algo de precário na sua atitude. Como sempre, Gabriel teve de resistir ao impulso de ajudá-lo a equilibrar-se. Conheciam-se há trinta anos. O apelido tipicamente inglês e a posição social britânica ocultavam o fato de não ser, pelo menos tecnicamente, inglês de todo. Sim, tinha nacionalidade e passaporte britânicos, mas era de ascendência alemã, fora educado na França e era judeu de religião. Apenas um punhado de amigos de confiança sabia que Isherwood chegara a Londres em 1942 na condição de criança refugiada, depois de ter sido levado através dos Pirenéus por um par de pastores bascos. Ou que o pai, o afamado negociante de arte parisiense Samuel Isakowitz, fora assassinado no campo da morte de Sobibor, juntamente com a mãe de Isherwood. Havia mais uma coisa que Isherwood ocultava dos competidores no mundo da arte londrino, bem como do resto do mundo. Segundo o léxico do Escritório, Julian Isherwood era um sayan, um ajudante judaico voluntário. Fora recrutado por Ari Shamron com um único objetivo: ajudar a construir e a manter o disfarce de um único agente muito especial.

— Como está o meu amigo Mario Delvecchio? — perguntou Isherwood. — Desapareceu sem deixar rasto — respondeu Gabriel. — Espero que a minha revelação não te tenha causado problemas.

— De todo.

— Não houve comentários nas ruas? Não fizeram perguntas embaraçosas nos leilões? Não tiveste visitas dos agentes do MI5?

— Estás a perguntar-me se as pessoas de Londres me veem como um espião israelense venenoso?

— É exatamente isso que estou a perguntar-te.

— Está tudo calmo nesta frente, mas também nunca tivemos uma relação muito visível, certo? É a tua maneira de ser. Não és visível com nada. És um dos dois ou três melhores restauradores de arte do mundo e ninguém sabe quem tu és. É uma pena.

Chegaram à esquina da Great George Street. Gabriel cortou à direita, para

Birdeage Walk.

Quem sabe acerca de nós em Londres, Julian? Quem sabe que mantinhas uma relação profissional com o Mario?

Isherwood olhou para as árvores que ladeavam o passeio.

— Muito pouca gente. Jeremy Crabbe, da Bonhams, é claro. Continua possesso por lhe teres roubado aquele Rubens. — Isherwood levou a mão comprida e ossuda ao ombro de Gabriel. — Tenho um comprador. Agora só preciso do quadro. — Apliquei-lhe o verniz ontem, antes de sair de Jerusalém — explicou Gabriel.

— Vou utilizar um dos nossos exportadores para o trazer o mais depressa possível. Deves recebê-lo no final da semana. Por sinal, deves-me cento e cinquenta mil libras. — O cheque já está no correio, meu querido.

— Quem mais? — perguntou Gabriel. — Quem mais sabe de nós? Isherwood assumiu uma expressão pensativa.

— O maldito Oliver Dimbleby — respondeu. — Lembras-te do Oliver? Apresentei-o no Greens, uma bela tarde em que nós estávamos a almoçar. Aquele negociante atarracado de King Street. Certa vez tentou comprar-me a galeria. Gabriel lembrava-se. Ainda tinha, algures, o espalhafatoso cartão de visita dourado que Oliver lhe impingira. Oliver mal olhara na sua direção. Era a sua maneira de ser.

— Ao longo dos anos fiz muitos favores ao Crabbe — notou Isherwood. — O tipo de favores dos quais não gostamos de falar, no nosso ramo. Quanto ao Oliver Dimbleby, ajudei-o a resolver uma grande trapalhada que ele fez com uma garota que trabalhava na galeria dele. Recebi a desgraçada. Dei-lhe trabalho. Ela trocou-me por outro negociante. É o que as minhas garotas fazem sempre. O que se passa comigo para afastar sempre as mulheres? Sou um alvo fácil, é o que é. As mulheres percebem isso. O teu bando também. O Herr Heller percebeu-o bem.

Herr Rudolf Heller, investidor de Zurique, era uma das identidades preferidas de Shamron. Fora nesse papel que recrutara Isherwood.

— Por sinal, como está ele?

— Enviou-te cumprimentos.

Gabriel baixou o olhar para a calçada úmida de Birdeage Walk. Do parque levantou-se um vento frio. Folhas mortas restolhavam no caminho dos dois homens.

— Preciso de um Van Gogh — repetiu Gabriel.

— Sim, eu ouvi da primeira vez. O problema é que eu não tenho um Van Gogh. Caso te tenhas esquecido, a Isherwood Fine Arts é especializada em pintores renascentistas.

Se queres impressionistas, tens de procurar noutro lado.

— Mas sabes onde posso encontrar um.

— A menos que o queiras roubar, neste momento não há nada no mercado... pelo menos que eu saiba.

— Mas isso não é verdade, certo, Julian? Tu sabes de um Van Gogh. Falaste-me sobre ele há séculos... uma história acerca de um O quadro desconhecido que o teu pai vira em Paris, entre as guerras. — Não foi só o meu pai — corrigiu Isherwood. — Também eu o vi. O Vincent pintou-o em Auvers, durante os últimos tempos de vida. Diz-se que pode ter sido a sua desgraça.

O problema o quadro não está à venda, e talvez nunca venha a estar. A família deixou-me bem claro que nunca se vai separar dele. E também fazem tenção de manter a sua existência em segredo.

— Conta-me outra vez essa história.

— Agora não posso, Gabriel. Tenho um compromisso na galeria às dez e meia. Cancela esse compromisso, Julian. Conta-me sobre o quadro.

Isherwood cruzou a ponte pedonal sobre o lago e dirigiu-se à galeria em St. Jamess. Gabriel enfiou as mãos um pouco mais fundo nos bolsos do blusão e seguiu-o.

— Alguma vez o limpaste? — perguntou Isherwood.

— Ao Vincent? Nunca.

— O que sabes sobre os seus últimos tempos de vida?

— O que toda a gente sabe, creio eu.

— Tretas, Gabriel. Não te faças de desentendido comigo. A tua cabeça é como um dicionário de arte.

— Foi no Verão de 1890, não foi?

Isherwood acenou a sua concordância professoral. — Continua, por favor. — Depois de o Vincent ter deixado o sanatório em Saint-Rémy, foi para Paris, ver o Theo e a Johanna. Visitou algumas galerias e exposições, e parou na loja de material artístico de Père Tanguy, para ver algumas telas que lá tinha guardadas. Três dias depois começou a ficar impaciente, por isso apanhou um trem para Auvers-sur-Oise, a cerca de trinta quilômetros de Paris. Pensou que Auvers seria ideal, um ambiente bucólico sossegado para o seu trabalho, mas próximo de Theo, a tábua de salvação financeira e emocional. Alugou um quarto por cima do Café Ravoux e entregou-se aos cuidados do Dr. Paul Gachet. Gabriel agarrou o braço de Isherwood e juntos aproveitaram uma brecha no trânsito e entraram na Marlborough Road. — Começou a pintar imediatamente. Tal como o espírito, o estilo estava mais calmo e discreto. A agitação e a violência que caraterizaram grande parte do seu trabalho em Saint-Rémy e em Aries desaparecera. Foi também extraordinariamente prolífico. Durante os dois meses que Vincent ficou em Auvers, produziu mais de oitenta quadros. Um quadro por dia. Às vezes dois.

Viraram para King Street. Gabriel parou de repente. Mais à frente, a bambolear-se pelo passeio na direção da entrada da casa de leilões Christies, estava Oliver

Dimbleby. Isherwood cortou de súbito para Bury Street e retomou a narrativa no ponto onde Gabriel parara.

— Quando o Vincent não estava à frente da tela, normalmente encontrava-se no quarto por cima do Café Ravoux, ou na casa de Gachet. Este era um viúvo com dois filhos, um rapaz de quinze anos e uma filha que fez vinte e um durante a estadia de Vincent em Auvers.

— Marguerite. Isherwood anuiu.

— Era uma jovem bonita, que se sentia bastante atraída pelo Vincent. Acedeu em posar para ele... infelizmente sem a autorização do pai. Pintou-a no jardim da casa da família, vestida com uma túnica branca.

— Marguerite Gachet no Jardim — disse Gabriel.

— E quando o pai descobriu, ficou furioso.

— Mas ela voltou a posar.

— Correto — asseverou Isherwood. — O segundo quadro é Marguerite Gachet ao Piano. Também surge em Vegetação com Duas Figuras, um trabalho profundamente simbólico que alguns historiadores de arte viram como uma profecia da morte do próprio Vincent. Mas acredito que sejam Vincent e Marguerite a percorrer o corredor da igreja... a premonição de casamento de Vincent.

— Mas houve um quarto quadro de Marguerite?

Marguerite Gachet ao Toucador — clarificou Isherwood. — É de longe o melhor de todos. Apenas meia dúzia de pessoas o viu, ou sequer sabe que ele existe. O Vincent pintou-o poucos dias antes de morrer. E depois a obra desapareceu.

Caminharam até Duke Street e depois entraram numa passagem estreita, que dava acesso a um pátio quadrangular de tijolo chamado Masons Yard. A galeria de Isherwood ocupava um velho armazém vitoriano num canto, entalada entre os escritórios de uma empresa de navegação grega de pouca importância e um pub cheio de bonitas empregadas de escritório que dirigiam scooters. Isherwood fez menção de cruzar o pátio para se dirigir à galeria, mas Gabriel agarrou-lhe na lapela e puxou-o na direção oposta. Enquanto atravessavam o perímetro pelo meio das sombras frias, Isherwood comentou a morte de Vincent.

— Na noite de 27 de julho, Vincent voltou ao Café Ravoux, visivelmente em sofrimento, e subiu a custo a escada até seu quarto. Madame Ravoux seguiu-o e descobriu que fora alvejado. Mandou chamar um médico. Este, é claro, era o próprio Gachet. Decidiu deixar a bala na barriga do Vincent e convocou Theo a Auvers. Quando Theo chegou, na manhã seguinte, encontrou Vincent sentado na cama, fumando cachimbo. Morreu no fim desse dia.

Chegaram a uma zona iluminada pelo sol. Isherwood protegeu os olhos com a mão comprida.

— Existem muitas perguntas sem resposta quanto ao suicídio de Vincent. Não é claro onde conseguiu a arma, nem o local exato onde se alvejou. Também existem questões sobre a motivação. Terá sido o suicídio o culminar de uma longa batalha contra a loucura? Teria ficado perturbado com uma carta que recebera de Theo, onde este sugeria que não ia poder continuar a sustentá-lo, juntamente com a sua própria mulher e filho? Será que o Vincent se matou como parte de um plano para fazer com que o seu trabalho se tornasse relevante e comercialmente viável? Nunca fiquei muito satisfeito com nenhuma destas teorias. Acredito que tenha que ver com Gachet. Mais concretamente, com a filha do Dr. Gachet.

Voltaram a mergulhar nas sombras do pátio. Isherwood baixou a mão.

— No dia antes de se ter alvejado, Vincent foi a casa de Gachet. Discutiram violentamente e Vincent ameaçou Gachet com uma arma. Qual o motivo da discussão? Mais tarde, Gachet disse que teve que ver com uma moldura, consegues imaginar? Acredito que tenha sido por causa de Marguerite. Julgo que possa ter tido que ver com o Marguerite Gachet ao Toucador. É um trabalho maravilhoso, um dos melhores retratos do Vincent. A pose e o cenário representam claramente uma noiva na noite de núpcias.

O significado não teria passado despercebido a um homem como Paul Gachet. Se viu o quadro, e não há razão para acreditar que não tivesse visto, terá ficado enraivecido. Talvez Gachet tenha dito a Vincent que o casamento com a filha estava fora de questão. Talvez tenha proibido o Vincent de voltar a pintá-la. Talvez o tenha proibido de voltar a vê-la. Apenas sabemos que Marguerite Gachet não esteve presente no funeral de Vincent, embora tenha sido vista no dia seguinte, lavada em lágrimas, a deixar girassóis na campa dele. Nunca se casou e viveu em Auvers quase como uma reclusa até que morreu, em 1949. Passaram a entrada da galeria de Isherwood e continuaram a andar.

— Depois da morte do Vincent, os quadros tornaram-se propriedade do Theo. Preparou o envio dos trabalhos que o Vincent produzira em Auvers e armazenou-os em Père Tanguy, em Paris. Claro que o Theo morreu pouco depois do Vincent, e os quadros passaram para Johanna. Nenhum outro familiar de Vincent quis algum dos seus trabalhos. O irmão de Johanna considerou-os inúteis e sugeriu que fossem queimados. — Isherwood parou. — Consegues imaginar? — Voltou a avançar com um passo largo. -Johanna catalogou o inventário e foi incansável a criar a reputação do Vincent. Deve-se a Johanna que Vincent van Gogh seja considerado um grande artista. Mas há uma omissão notória na lista de trabalhos conhecidos.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Precisamente — confirmou Isherwood. — Terá sido um acidente, ou foi intencional? Nunca saberemos, claro está, mas tenho uma teoria. Acredito que Johanna soubesse que o quadro pode ter contribuído para a morte de Vincent. Seja qual for o caso, foi vendido por tuta-e-meia, cerca de um ano após a morte de Vincent, e nunca mais foi visto. E é nesse ponto que o meu pai entra na história.

Terminaram a primeira volta ao pátio e começaram uma segunda. Isherwood reduziu o ritmo quando começou a falar sobre o pai.

— Sempre foi um berlinense de coração. Teria lá permanecido sempre. Claro que não foi possível. O meu pai viu a tempestade que se aproximava e não perdeu tempo a sair da cidade. No final de 1936 tínhamos deixado Berlim e mudado para Paris. — Olhou para Gabriel.

— É pena que o teu avô não tenha feito o mesmo. Era um grande pintor, o teu avô. Descendes de uma bela linhagem, meu rapaz.

Gabriel mudou rapidamente de assunto.

— A galeria do teu pai ficava na rue de Ia Boétie, não era?

— É claro — replicou Isherwood. — Nessa altura, a rue de la Boétie era o centro do mundo da arte. Paul Rosenberg tinha a sua galeria no número 21. O Picasso e a Olga viviam no outro lado do pátio, no número 23. Georges Wildenstein, Paul Guillaume, Josse Hessel, Étienne Bignou... estava lá ioda a gente. A Isakowitz Fine Arts ficava ao lado da galeria do Paul Rosenberg. Vivíamos num apartamento por cima das salas de exposição. Picasso era o meu "Tio Pablo". Costumava deixar-me vê-lo a pintar e a Olga dava-me chocolates até ficar maldisposto.

Isherwood permitiu-se esboçar um sorriso, que se desvaneceu rapidamente quando regressou à história do pai em Paris.

— Os alemães chegaram em Maio de 1940 e começaram a pilhar tudo. O meu pai alugou uma casa de campo em Bordeaux, no lado de Vichy da linha, e mudou para lá a maior parte de suas peças importantes. Seguimos pouco tempo depois. Os alemães entraram na zona não ocupada em 1942 e tiveram início as rusgas e as deportações. Ficamos encurralados. O meu pai pagou a dois pastores bascos para me levarem através das montanhas até Espanha. Entregou-me documentos, um inventário profissional e alguns diários. Foi a última vez que o vi. Ouviu-se uma buzina sonora em Duke Street e um esquadrão de pombos alçou voo no pátio envolto em sombras.

— Foram precisos anos até ler os diários. Num deles descobri uma entrada sobre um quadro que o meu vira certa noite em Paris, na casa de um homem chamado Isaac Weinberg.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Weinberg disse ao meu pai que tinha comprado o quadro a Johanna, pouco depois da morte do Vincent, e que o oferecera à esposa como prenda de aniversário. Ao que parece, Mrs. Weinberg era parecida com Marguerite. O meu pai perguntou ao Isaac se estaria disposto a vendê-lo, mas a resposta foi negativa. Pediu ao meu pai que não mencionasse o quadro a ninguém, e ele fez-lhe a vontade. O celular de Isherwood chilreou e ele ignorou-o.

— No início da década de setenta, pouco antes de nos conhecermos, estive em Paris, em negócios. Fiquei com algumas horas entre compromissos e decidi procurar Isaac Weinberg. Fui à morada de Marais que estava nos cadernos do meu pai, mas Weinberg já lá não se encontrava. Não tinha sobrevivido à guerra. Mas conheci o filho, Marc, e falei-lhe da entrada no diário do meu pai. De início negou a história, mas acabou por ceder e permitiu-me que visse o quadro, não sem primeiro fazer-me jurar segredo eterno. Estava no quarto da filha. Perguntei-lhe se estaria interessado em desfazer-se dele. Recusou a oferta, é claro.

— Tens certeza de que é do Vincent?

— Sem sombra de dúvida. — E nunca mais lá voltaste?

— Monsieur Weinberg deixou bem claro que a pintura nunca estaria à venda. Achei que não fazia sentido lá voltar. — Isherwood deteve-se e encarou Gabriel. — Muito bem, meu querido. Já te contei a história. Imagino que me queiras explicar o que se passa.

— Preciso desse Van Gogh, Julian.

— Para quê?

Gabriel agarrou na manga de Isherwood e levou-o até a porta da galeria. Ao lado da porta de vidro havia um painel com intercomunicador, com quatro botões e respetivas placas de identificação. Num deles lia-se ISHRR OO FINE AR S: só com MARCAÇÃO. Isherwood abriu a porta com uma chave e conduziu Gabriel por um lance de escadas coberto por carpete marrom puído. À esquerda ficava uma pequena agência de viagens melancólica. A dona, uma solteirona chamada Miss Archer, estava sentada à secretária, à frente de um cartaz com um casal de ar feliz a chapinhar na água azul. A porta de Isherwood ficava à direita. A secretária mais recente, uma criatura de ar apologético chamada Tanya, olhou-os furtivamente quando Isherwood e Gabriel entraram.

— Este é Mr. Klein — apresentou-o Isherwood. — Quer ver uma coisa lá em cima. Sem interrupções, por favor. Bonita menina, Tanya, minha querida. Entraram para um elevador do tamanho de uma cabine telefônica e subiram tão próximos um do outro que Gabriel pôde sentir o cheiro do clarete da noite anterior no hálito de Isherwood. Segundos depois, o elevador parou com um solavanco e a porta abriu-se com um gemido. A sala de exposições de Isherwood encontrava-se na obscuridade, iluminada apenas pelo sol da manhã filtrado pela claraboia. Isherwood acomodou-se no divã forrado a veludo no centro da sala, enquanto Gabriel iniciava uma pequena visita. Os quadros eram quase invisíveis nas sombras profundas, mas conhecia-os bem: uma Vênus de Luini, uma natividade de Ferino dei Vaga, um batismo de Cristo de Bordone, uma paisagem luminosa de Claude.

Isherwood abriu a boca para falar, mas Gabriel levou um dedo aos lábios e retirou do bolso o que parecia ser um vulgar celular Nokia. Era com efeito um Nokia, mas o aparelho continha várias caraterísticas adicionais que não estavam disponíveis para clientes normais, como por exemplo um sinalizador GPS e um instrumento capaz de detectar a presença de transmissores ocultos. Gabriel deu mais uma volta à sala, desta vez com os olhos na tela do telefone. Depois sentou-se ao lado de Isherwood e, em voz baixa, disse-lhe por que precisava do Van Gogh.

— Zizi al-Bakari? — perguntou Isherwood, incrédulo. — É um diabo de um terrorista? Tem certeza?

— Não é ele que coloca as bombas, Julian. Nem sequer fabrica as bombas. Mas financia as bombas e usa seu império empresarial para facilitar o movimento de homens e materiais pelo globo. Atualmente, é tão ruim quanto ser terrorista. Pior.

— Conheci-o há tempos, mas ele não se lembraria. Fui a uma festa na propriedade dele em Gloucestershire. Uma festa enorme. Um mar de gente. Zizi nunca esteve presente. Desceu no fim, como se fosse um Gatsby. Cercado por guarda-costas, mesmo dentro da casa dele. Um tipo estranho. Mas é um colecionador voraz, não é? Arte. Mulheres. Tudo o que o dinheiro possa comprar. É um rapace, pelo que ouvi dizer. Nunca fiz negócios com ele, claro está. Zizi não se sente inclinado para os Renascentistas. Prefere os Impressionistas e mais algumas coisas modernas. Os árabes são todos assim. Não gostam da imagética cristã da Renascença.

Gabriel sentou-se ao lado de Isherwood.

— Ele não tem um Van Gogh, Julian. De vez em quando dá a entender que anda à procura de um. E não de um Van Gogh qualquer. Deseja algo especial. — Pelo que ouvi dizer, é muito cuidadoso com o que compra. Gasta rios de dinheiro, mas fá-lo com prudência. Tem uma coleção digna de um museu, mas nunca me tinha apercebido de que lhe faltava um Van Gogh.

— O conselheiro de arte dele é um inglês chamado Andrew Malone. Conhece-o?

— Infelizmente, Andrew e eu nos conhecemo bem. Tem enfiado bem as mãos nos bolsos de Zizi. Passa férias no iate de Zizi. Segundo parece, é grande como um Titanic. Andrew é velhaco. E porco, também.

— Em que sentido?

— Recebe de dois lados, meu querido.

— Que quer dizer com isso, Julian?

— Andrew tem um acordo exclusivo com Zizi, o que significa que não deve receber dinheiro de outros negociantes ou colecionadores de arte. É assim que os tubarões como Zizi garantem que os conselhos que recebem não são maculados por conflitos de interesse.

— O que anda a tramar o Malone?

— Extorsão, duplas comissões, de tudo um pouco.

— Tens certeza?

— Absoluta, meu querido. Toda a gente sabe que para fazer negócio com Zizi é preciso pagar ao Andrew Malone.

De repente, Isherwood levantou-se do divã e percorreu a sala de exposições. — Então e qual é seu plano? Fazer Zizi do buraco dele com um Van Gogh? Aparecer com ele diante dos olhos dele e esperar que engula anzol, linha e boia? Mas do outro lado da linha vai estar alguma coisa, não é? Um dos seus agentes?

— Algo do gênero.

— E onde pensa fazer isso? Aqui, imagino?

Gabriel olhou para a sala com um ar de aprovação.

— Sim — respondeu. — Acho que serve perfeitamente.

— Já receava.

— Preciso de um negociante — explicou Gabriel. — Alguém bem conhecido no ramo. Alguém em que eu possa confiar.

— Trabalho com pintores renascentistas, não com impressionistas.

— Isso não interessa, com um negócio discreto como este.

Isherwood não argumentou. Sabia que Gabriel tinha razão.

— Já pensaste nas consequências para mói, se o teu esquema der resultado? vou ficar marcado. Desenrasco-me bem com fuinhas como o Oliver Dimbleby, mas o raios parta da Al-Qaeda é outra história.

— É óbvio que teremos de tomar medidas pós-operacionais para tua segurança. — Adoro os teus eufemismos, Gabriel. Sempre que a verdade é demasiado horrível, tu e Shamron recorrem a eufemismos. Vão pôr a minha cabeça a prêmio. Vou ter de acabar com o negócio e me esconder.

Gabriel pareceu insensível aos protestos de Isherwood.

— Não está ficando mais jovem, Julian. Está quase no fim da linha. Não tem filhos. Não tem herdeiros. Quem vai ficar com a galeria? Além disso, já parou para pensar na comissão que vai receber pela venda particular de um Van Gogh desconhecido? Se juntar a isso o que vai ganhar com uma liquidação total, parece que as coisas podiam ser piores, Julian.

— Estou imaginando uma casinha no Sul da França. Um nome novo. Uma equipe de agentes do Escritório a protegerem-me durante a minha velhice. — Não te esqueças de me reservar um quarto. Isherwood voltou a sentar-se.

— O teu plano tem uma falha grave, meu querido. Vai ser mais fácil apanhares esse teu terrorista do que conseguir o Van Gogh. Partindo do princípio de que ainda está nas mãos da família Weinberg, o que te leva a pensar que vão abdicar dele?

— Ninguém disse que tinham de abdicar dele.

Isherwood sorriu.

— Vou buscar o endereço.

14

MARAIS, PARIS

— Devia comer alguma coisa — disse Uzi Navot.

Gabriel abanou a cabeça. Almoçara no trem de Londres.

— Experimenta o borscht — insistiu Navot. — Não pode vir ao Jo Goldenberg sem comer borscht.

— Posso, sim — contrapôs Gabriel. — Comida roxa me deixa nervoso.

Navot chamou a atenção do empregado e pediu uma dose dupla de borscht e um copo de vinho tinto. Gabriel franziu o sobrolho e olhou pela janela. Uma chuva constante açoitava o pavimento da rue des Rosiers e quase que anoitecera. Pretendera encontrar-se com Navot noutro local que não no mais famoso restaurante do mais importante bairro judaico de Paris, mas Navot insistira no Jo Goldenberg, com base na sua crença de que o melhor lugar para esconder um pinheiro era numa floresta.

— Este sítio está a deixar-me nervoso — murmurou Gabriel. Vamos dar uma volta. — com este tempo? Nem penses. Além disso, ninguém te vai reconhecer nessa figura. Até eu mal reparei em ti quando entraste.

Gabriel olhou para o rosto fantasmagórico refletido no copo. Tinha um boné de bombazina, lentes de contato que lhe transformavam os olhos verdes em castanho e uma barbicha falsa que lhe acentuava as feições já por si estreitas. Viajara para Paris com um passaporte alemão com o nome Heinrich Kiever. Depois de chegar à Gare du Nord, passara duas horas a caminhar pelas margens do Sena, a confirmar que não estava a ser seguido. Na mochila tinha um exemplar usado de Voltaire que comprara numa bouquiniste no Quai Montebello.

Dirigiu a atenção para Navot. Era um homem entroncado, vários anos mais novo do que Gabriel, de cabelo louro curto e olhos azuis pálidos. Segundo o léxico do Escritório, era um katsa, um agente de campo infiltrado. Armado com toda uma série de línguas, um encanto velhaco e uma arrogância fatalista, penetrara em células terroristas palestinas e recrutara agentes em embaixadas árabes espalhadas pela Europa Ocidental. Tinha fontes em quase todos os serviços de espionagem e de segurança europeus e geria uma rede vasta de sayanim. Podia sempre contar com a melhor mesa da churrascaria do Ritz de Paris, pois o maître d’hôtel era um informante pago, como também o chefe das empregadas de limpeza. Vestia agora um casaco cinzento de tweed e uma camisola de gola alta preta, pois a sua identidade em Paris era a de Vincent Laffont, um escritor freelance de livros de viagens, de ascendência bretã, que passava a maior parte do tempo na estrada. Em Londres era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura empresa de software canadiana. Em Madrid era um alemão de recursos independentes que passava o tempo em cafés e em bares, e que viajava para aliviar o fardo de uma alma agitada e complexa.

Navot tirou da pasta um dossiê que colocou na mesa à frente de Gabriel.

— Aqui está a dona do teu Van Gogh — disse. — Dá uma olhada.

Gabriel levantou discretamente a capa. A fotografia mostrava uma atraente mulher de meia-idade com cabelo escuro ondulado, pele cor de azeitona e um longo nariz aquilino. Segurava um guarda-chuva aberto e descia um lance de degraus de pedra em Montmartre.

— Hannah Weinberg — informou Navot. — Quarenta e quatro anos, solteira, sem filhos. É um bom exemplo da atual demografia judaica. Filha única sem filhos. Pelo andar da carruagem, não vamos precisar de um Estado. — Navot baixou o olhar e revirou, taciturno, o prato de frango recheado com legumes. Tendia para períodos de desânimo, especialmente quando se tratava do futuro do povo judeu. — É dona de uma pequena boutique em Montmartre, na rue Lepic. Chama-se Boutique Lepic. Tirei a foto no início da tarde, quando estava a sair para almoçar. Ficamos com a impressão de que a boutique é mais um passatempo do que vocação. Dei uma vista de olhos às contas bancárias dela. O Marc Weinberg deixou à filha uma vida desafogada.

O empregado aproximou-se e colocou um prato de uma mistela roxa à frente de Gabriel, que o empurrou de imediato para o centro da mesa. Não suportava o cheiro do borscht. Navot deitou um naco de pão para dentro do caldo e mergulhou-o com a colher.

— O Weinberg era um homem interessante. Era um advogado importante, aqui em Paris. Era também um militante das recordações. Pressionou bastante o Governo para que assumisse o papel dos franceses no Holocausto. Como resultado, ganhou uma certa impopularidade em alguns círculos parisienses.

— E a filha? Qual é a cor dela?

— Euro-socialista moderada, mas na França isso não é crime. Também herdou alguma militância do pai. Está envolvida com um grupo que tenta combater o anti-semitismo. Já se encontrou com o presidente francês. Vê debaixo da fotografia.

Gabriel encontrou um recorte de uma revista francesa sobre a onda de anti-semitismo na França. A fotografia acompanhante mostrava manifestantes judaicos numa marcha sobre as pontes do Sena. À frente da coluna, com um cartaz que dizia ACABEM com o ÓDIO JÁ, seguia Hannah Weinberg.

— Alguma vez foi a Israel?

— Pelo menos quatro vezes. Shabak está a investigar para garantir que ela não esteve em Ramallah, a conspirar com os terroristas. Tenho certeza de que não vão encontrar nada. Ela é sincera, Gabriel. Uma dádiva dos deuses da inteligência.

— Preferências sexuais?

— Homens, segundo julgamos. Está envolvida com um funcionário público.

— Judeu?

— Graças a Deus.

— Esteve na casa dela?

— Entrei com a equipe neviot.

As equipes neviot eram especializadas na obtenção de informações de locais como apartamentos, escritórios e quartos de hotel. A unidade empregava alguns dos melhores arrombadores e ladrões do mundo. Mais à frente na operação, Gabriel tinha outros planos para eles isso é claro, desde que Hannah Weinberg aceitasse separar-se do seu Van Gogh.

— Viste o quadro? Navot anuiu.

— Está no quarto de quando era pequena.

— Qual era o aspeto dele?

— Queres a minha avaliação de um Van Gogh? — Navot encolheu os ombros maciços. — É um quadro bonito, de uma garota sentada a um toucador. Não tenho uma veia artística, como tu. Sou mais virado para frango estufado e uma boa história de amor no cinema. Não estás a comer a tua sopa. — Não gosto, Uzi. Eu disse-te que não gostava.

Navot pegou na colher de Gabriel e mexeu o creme picante, aclarando o tom da mistura roxa.

— Demos uma vista de olhos aos papéis dela — continuou Navot. — Revistamos os armários e as gavetas. Também deixamos umas coisas no telefone e no computador. Nestas situações, todo o cuidado é pouco. — A casa está vigiada?

Navot pareceu ficar magoado com a pergunta.

— E claro — respondeu.

— O que estão a usar como posto de escuta?

— Por enquanto, uma van. Se ela concordar em ajudar-nos, vamos precisar de algo mais permanente. Um dos rapazes da neviot já anda no bairro à procura de um apartamento adequado.

Navot afastou os restos do frango estufado e atacou o borscht de Gabriel. Apesar da sua sofisticação europeia, no fundo continuava a ser um camponês do shtetl. — Já sei no que isso vai dar — comentou, entre colheradas. — Vais à procura do mau da fira, e eu fico um ano inteiro a vigiar uma mulher. Mas sempre foi assim, não é? Ficas com a glória toda, enquanto a mão de obra de campo faz o trabalho sujo. Meu Deus, salvaste o papa. Como um simples morcomo eu pode competir com isso?

— Cala-te e come a sopa, Uzi.

Ser o favorito de Shamron tinha o seu preço. Gabriel estava habituado à inveja profissional dos colegas.

— Amanhã tenho de sair de Paris — disse Navot. — Vou estar fora apenas um dia.

— Aonde vai?

— Amos quer falar comigo. — Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Acho que tem a ver com o cargo das Operações Especiais. O cargo que tu recusaste. Fazia sentido, pensou Gabriel. Navot era um agente de campo extremamente capaz, que participara em várias operações de monta, incluindo algumas com Gabriel. — É isso que quer, Uzi? Um trabalho no Boulevard King Saul?

Navot encolheu os ombros.

— Já ando no campo há muito tempo. Bella quer se casar. É difícil ter uma vida pessoal estável quando se vive assim. Às vezes, quando acordo de manhã, não faço ideia de onde vou estar no fim do dia. Posso tomar o pequeno-almoço em Berlim, almoçar em Amsterdam e estar no Rei Saul à meia-noite, apresentando relatório ao diretor. — Navot ofereceu um sorriso cúmplice a Gabriel. — É isso que os americanos não entendem. Enfiam os agentes em caixinhas e depois os castigam quando pisam na risca. O Escritório não é assim. Nunca foi. É por isso que temos o melhor trabalho do mundo... e é por isso que os nossos serviços são muito melhores que os deles. Não saberiam o que fazer com um homem como você.

Navot perdera o interesse no borscht. Empurrou-o, para que parecesse que Gabriel o comera. Gabriel pegou no copo de vinho, mas depois reconsiderou. Doía-lhe a cabeça por causa da viagem de trem e do tempo chuvoso de Paris, e o vinho tinha um cheiro tão apelativo como diluente.

— Mas tem o seu preço nos casamentos e nas relações, não é, Gabriel? Quantos de nós são divorciados? Quantos de nós tiveram romances com garotas no campo? Pelo menos se trabalhar em Tel Aviv vou estar mais vezes em casa. Continua a ser preciso viajar muito, mas não tanto como agora. A Bella tem uma casa perto da praia, em Cesareia. Vai ser uma boa vida. — Voltou a encolher os ombros.

— Escutem só. Estou falando como se Amos tivesse me oferecido o cargo. Amos não me ofereceu nada. Até pode estar me chamando ao Boulevard King Saul para me despedir.

— Não seja ridículo. É o homem mais indicado para o cargo. Vai ser meu chefe, Uzi.

— Seu chefe? Por favor. Você não tem chefes, Gabriel. Só o velhote.

A expressão de Navot tornou-se subitamente grave. — Como está ele? Ouvi dizer que não está bem.

— Vai se recuperar — assegurou-lhe Gabriel.

Ficaram em silêncio quando o empregado se aproximou da mesa e levantou os pratos. Ao afastar-se, Gabriel devolveu o dossiê a Navot, que o voltou a guardar na pasta.

— Como vai agir com Hannah Weinberg?

— Vou pedir que ceda um quadro que vale oitenta milhões de dólares. Tenho que contar a verdade... ou pelo menos uma versão da verdade. E depois teremos de lidar com as consequências da segurança.

— E quanto à abordagem? Vai dançar um pouco, ou vai cair matando?

— Eu não danço, Uzi. Nunca tive tempo para dançar.

— Pelo menos não terá problema em convencê-la de quem é. Graças aos serviços de segurança franceses, todos em Paris conhecem seu nome e seu rosto. Quando pretende começar?

— Esta noite.

— Nesse caso, está com sorte.

Navot fitou a janela. Gabriel seguiu seu olhar e viu uma mulher de cabelo escuro descendo a rue des Rosiers, abrigada por um guarda-chuva. Levantou-se sem uma palavra e dirigiu-se à porta.

— Não se preocupe, Gabriel — resmungou Navot entre dentes. — Eu pago a conta.

No final da rua, ela virou à esquerda e desapareceu. Gabriel fez uma pausa à esquina e observou alguns ortodoxos de casaco negro a entrarem para uma sinagoga, para as orações da tarde. Depois olhou para a rue Pavée e viu a silhueta de Hannah Weinberg a entrar nas sombras. Parou à porta de um prédio de apartamentos e procurou a chave na mala. Gabriel cruzou o passeio e deteve-se a pouca distância dela, no momento em que a mulher esticava a mão para a fechadura.

— Mademoiselle Weinberg?

Virou-se e olhou-o calmamente na escuridão. Dos olhos emanava uma inteligência calma e sofisticada. Se ficou sobressaltada com a abordagem, não o mostrou.

— É Hannah Weinberg, não é?

— Em que posso ajudá-lo, Monsieur?

— Preciso da sua ajuda — disse Gabriel. — Pensei que talvez pudéssemos conversar em privado.

— Conhecemo-nos, Monsieur?

— Não — respondeu Gabriel.

— Nesse caso, como poderei ajudá-lo?

— Seria preferível discutirmos o assunto em particular, Mademoiselle.

— Não costumo ir a locais privados com desconhecidos, Monsieur. Agora, se me dá licença.

Virou-se e dirigiu outra vez a mão à fechadura.

— Tem que ver com o seu quadro, Mademoiselle Weinberg. Preciso falar com você sobre o seu Van Gogh.

Ela imobilizou-se e voltou a fitá-lo. O olhar continuava calmo.

— Lamento desapontá-lo, Monsieur, mas não tenho um Van Gogh. Se gostaria de ver algumas pinturas de Vincent, sugiro que visite o Musée d’Orsay.

Voltou a desviar o olhar.

— Marguerite Gachet ao Toucador — disse Gabriel calmamente. Foi adquirido pelo seu avô à viúva de Theo van Gogh, Johanna, e oferecido à sua avó como presente de aniversário. A sua avó tinha uma vaga semelhança com Mademoiselle Gachet.

Quando era pequena, o quadro estava no seu quarto. Devo continuar? A compostura dela desapareceu. Quando voltou a falar, após um momento de silêncio espantado, a voz denotava uma veemência inesperada.

— Como sabe do meu quadro?

— Não tenho liberdade para o revelar.

— É claro que não. — A frase foi proferida como um insulto.

— O meu pai sempre me avisou que, um dia, um negociante de arte francês ganancioso iria tentar retirar-me o quadro. Não está à venda e, se por acaso desaparecer, garanto que a Polícia vai receber a sua descrição.

— Não sou negociante de arte... e não sou francês

— Então quem é o senhor? — questionou. — E o que pretende do meu quadro?


15

MARAIS, PARIS

O patio encontrava-se vazio e escuro, iluminado apenas pelas luzes das janelas dos apartamentos mais acima. Cruzaram-no em silêncio e entraram no hall, onde um antiquado elevador de portas de grades os aguardava. Ela preferiu a escada amplas e guiou-o até o terceiro andar. No patamar viam-se duas portas imponentes de mogno. A porta à direita não tinha identificação. Hannah Weinberg abriu-a e entraram. Gabriel registrou o fato de ela ter digitado um código no teclado antes de acender as luzes. Não havia dúvida de que Hannah Weinberg era boa a guardar segredos. O apartamento era grande, com um hall de entrada formal e uma biblioteca adjacente à sala. Via-se mobília antiga coberta de brocado, cortinados grossos de veludo nas janelas, e um relógio de ouropel com as horas erradas tiquetaqueava calmamente no rebordo da lareira. O olhar profissional de Gabriel dirigiu-se de imediato aos seis quadros a óleo bastante decentes que estavam pendurados nas paredes. A decoração criava o ar de uma era passada. Gabriel não ficaria surpreendido se visse Paul Gachet a ler o jornal à luz do gás.

Hannah Weinberg tirou o casaco e desapareceu na cozinha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos à biblioteca. Volumes encadernados a couro enchiam estantes de madeira com portas de vidro. Havia mais pinturas na divisão, paisagens prosaicas, um homem a cavalo, a obrigatória batalha marítima, mas nada que sugerisse que a dona pudesse também deter um Van Gogh perdido.

Regressou à sala no momento em que Hannah Weinberg surgia da cozinha com uma garrafa de Sancerre e dois copos. Entregou-lhe a garrafa e um saca-rolhas e observou-lhe cuidadosamente as mãos enquanto puxava a rolha. Não era tão atraente como parecera na fotografia de Uzi Navot. Talvez se devesse à luz parisiense, ou talvez praticamente qualquer mulher parecesse atraente a descer um lance de escadas em Montmartre. A saia de lã pregueada e a camisola pesada ocultavam o que Gabriel imaginava ser uma figura roliça. As sobrancelhas eram muito largas e emprestavam-lhe um ar de profunda seriedade ao rosto. Sentada como estava naquele momento, cercada pelas peças datadas da sala, parecia ter muito mais de quarenta e quatro anos de idade.

— Surpreende-me vê-lo em Paris, Monsieur Allon. Da última vez que li o seu nome no jornal, ainda era procurado para ser interrogado pela Polícia francesa. — Receio que ainda seja o caso.

— Mesmo assim, veio à França... só para falar comigo? Deve ser muito importante.

— É verdade, Mademoiselle Weinberg.

Gabriel serviu dois copos de vinho, entregou-lhe um e ergueu o outro num brinde silencioso. Ela imitou-o, ao que levou o copo aos lábios.

— Tem noção do que aconteceu aqui em Marais depois do atentado? — Hannah Weinberg respondeu à sua própria questão. — As coisas ficaram muito tensas. Dizia-se que tinha sido levado a cabo por Israel. Todos acreditavam que era verdade e, infelizmente, o Governo francês demorou muito tempo a lidar com a situação, mesmo depois de saberem que era mentira. Os nossos filhos foram agredidos nas ruas. Atiraram pedras às janelas e às vitrines. Escreveram coisas terríveis nas paredes de Marais e de outros bairros judeus. Sofremos bastante devido ao que aconteceu naquela estação ferroviária. — Lançou-lhe um olhar perscrutador, como se tentasse avaliar se fora mesmo aquele homem que vira nos jornais e na televisão. — Mas também sofreu, não foi? É verdade que a sua mulher esteve envolvida?

O tom direto da pergunta surpreendeu Gabriel. O seu primeiro instinto foi mentir, ocultar, levar mais uma vez a conversa para outro terreno. Mas tratava-se de um recrutamento — e Shamron dizia sempre que um recrutamento perfeito é, em essência, uma sedução perfeita.

E quando se estava a seduzir, obrigou-se Gabriel a recordar-se, era preciso revelar algo pessoal.

— Raptaram a minha esposa para me atraírem para a Gare de Lyon explicou. — Pretendiam matar-nos a ambos, mas também queriam desacreditar Israel e tornar a vida insuportável para os judeus da França.

— E conseguiram... pelo menos durante algum tempo. Não me interprete mal, Monsieur Allon, a situação continua difícil para nós. Apenas não tão má como nos dias que se seguiram ao atentado. — Bebeu mais um pouco de vinho, depois cruzou as pernas e alisou as pregas da saia. — Isto pode soar tolo, quando pensamos para quem trabalha, mas como descobriu o meu Van Gogh? Gabriel ficou em silêncio por um instante e depois respondeu-lhe com sinceridade. A menção da visita de Isherwood àquele apartamento havia mais de trinta anos fez com que esboçasse um vago sorriso de recordação. — Acho que me lembro dele — disse. — Um homem alto, muito elegante, cheio de charme e de graciosidade, mas, ao mesmo tempo, um tanto ou quanto vulnerável.

— Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Tal como o senhor.

— Charme e graciosidade são qualidades que raramente me atribuem. — E vulnerabilidade? — Ofereceu-lhe mais um sorriso breve, que lhe aliviou a seriedade do rosto. — Todos nós somos vulneráveis até certo ponto, não é verdade? Até mesmo alguém como o senhor? Os terroristas descobriram o seu ponto fraco e exploraram-no. É o que fazem de melhor. Exploram a nossa decência.

O nosso respeito pela vida. Atacam o que nos é mais caro. Navot tinha razão, pensou Gabriel. Ela era uma dádiva dos deuses da inteligência. Pousou o copo sobre a mesa de centro. Os olhos de Hannah seguiram os movimentos.

— O que aconteceu a esse homem, Samuel Isakowitz? — perguntou Hannah. — Conseguiu se salvar?

Gabriel abanou a cabeça.

— Ele e a mulher foram capturados em Bordeaux, quando os alemães se deslocaram para o sul.

— Para onde foram enviados?

— Sobibor.

Sabia o que isso significava. Gabriel não precisava dizer mais nada.

— E seu avô? — perguntou ele.

Hannah olhou para o Sancerre por um momento, antes de responder.

— Jeudi Noir — disse. — Conhece o termo?

Gabriel aquiesceu com solenidade. Jeudi Noir. Quinta-Feira Negra. — Na manhã do dia 16 de Julho de 1942, quatro mil agentes da Polícia francesa invadiram Marais e outros bairros judeus de Paris, com ordens para deter vinte e sete mil judeus imigrantes da Alemanha, da Áustria, da Polônia, da União Soviética e da Checoslováquia. Meu pai e os meus avós estavam na lista. Sabe, os meus avós eram de Lublin, na Polónia. Os dois polícias que bateram à porta deste apartamento tiveram pena do meu pai e disseram-lhe que fugisse. Uma família católica que vivia no andar de baixo acolheu-o e aí ficou até a libertação. Os meus avós não tiveram a mesma sorte. Foram enviados para o campo de detenção de Drancy. Cinco dias depois, partiram num vagão selado para

Auschwitz. É claro que foi o seu fim.

— E o Van Gogh?

— Não houve tempo para tomar providências, e não havia ninguém em Paris em quem o meu avô pudesse confiar. Estávamos em guerra, sabe. As pessoas traíam-se por meias e por cigarros. Quando ouviu dizer que estavam a prender os judeus, retirou a pintura do esticador e escondeu-a por baixo de uma tábua do soalho da biblioteca. Depois da guerra passaram-se anos até que o meu pai conseguisse recuperar o apartamento. Uma família francesa tinha-se mudado para cá depois de os meus avós terem sido presos, e não estavam dispostos a abdicar de um bom apartamento na rue Pavée. Não se podia censurá-los.

— Em que ano o seu pai recuperou a posse da casa?

— Em 1952.

— Dez anos — disse Gabriel. — E o Van Gogh ainda lá estava?

— Tal como o meu avô o deixara, escondido debaixo do soalho da biblioteca.

— Espantoso.

— Sim — concordou. — O quadro está na família Weinberg há mais de um século, atravessou a guerra e o Holocausto. E agora está a pedir-me para abrir mão dele.

— Não quero que abra mão da pintura — asseverou Gabriel.

— Então de que se trata?

— Apenas preciso de... — Fez uma pausa, em busca da palavra correta. — Preciso alugá-lo.

— Alugar? Durante quanto tempo?

— Não lhe sei dizer. Talvez um mês. Talvez seis meses. Talvez um ano, ou mais. — com que objetivo?

Gabriel não estava preparado para responder. Pegou a rolha e usou a unha do polegar para arrancar uma lasca.

— Sabe quanto vale aquele quadro? — indagou Hannah. — Se está pedindo que o ceda, mesmo que por pouco tempo, creio que tenho o direito de saber o motivo.

— É verdade — concordou Gabriel —, mas também deve saber que se lhe contar a verdade sua vida nunca mais será a mesma.

Hannah serviu-se de mais vinho e segurou o copo de encontro ao corpo por um momento, sem o beber.

— Há dois anos, houve um ataque particularmente violento aqui em Marais. Um menino ortodoxo foi emboscado por um bando de norte-africanos, quando ia para casa. Pegaram-lhe fogo ao cabelo e gravaram-lhe uma suástica na testa. Ainda tem a cicatriz. Organizamos uma manifestação com o objetivo de pressionar o Governo francês a fazer alguma coisa quanto ao antissemitismo. Quando nos manifestávamos na place de la Republique, houve uma contramanifestação anti-israelense. Sabe o que eles nos gritavam?

— Morte aos judeus.

— E sabe o que disse o presidente francês?

— Não há antissemitismo na França.

— Desde esse dia, a minha vida nunca mais foi a mesma. Além disso, como já deve ter percebido, sei guardar um segredo. Diga-me para que quer o meu Van Gogh, Monsieur Allon. Talvez possamos chegar a um acordo.

A van de vigilância neviot estava estacionada junto ao Parc Royal. Uzi Navot bateu duas vezes com os nós dos dedos no vidro traseiro espelhado e a porta foi-lhe aberta de imediato. Um agente neviot estava sentado ao volante. O outro estava nas traseiras, curvado sobre uma consola eletrônica com um par de fones nos ouvidos. — O que há? — perguntou Navot.

— Gabriel já a conquistou — respondeu o neviot. — E agora vai cair matando.

Navot colocou os fones e ouviu Gabriel contar a Hannah Weinberg a forma como usaria o Van Gogh para localizar o homem mais perigoso do mundo. A chave estava guardada na gaveta de cima da secretária da biblioteca. Hannah utilizou-a para destrancar a porta ao fundo do corredor escuro. A divisão atrás da porta era um quarto de criança. O quarto de Hannah imobilizado no tempo, pensou Gabriel. Uma cama de dossel com pálio de renda. Prateleiras repletas de animais de pelúcia e brinquedos. Um poster de um ator americano charmoso. E, pendurado sobre uma cômoda provençal francesa, envolto nas sombras profundas, um quadro perdido de Vincent van Gogh.

Gabriel avançou lentamente e deteve-se à frente dele, a mão direita no queixo, a cabeça um pouco inclinada. Depois estendeu a mão e tocou de leve nas pinceladas sumptuosas. Eram de Vincent — Gabriel tinha certeza. Vincent em chamas. Vincent apaixonado. O restaurador avaliou calmamente o alvo. O quadro parecia nunca ter sido limpo. Estava coberto por uma leve camada de sujidade e apresentava três rachas horizontais — resultado, imaginou Gabriel, de ter sido enrolado com demasiada força por Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. — Imagino que devamos falar sobre o dinheiro — comentou Hannah. — Quanto pensa o Julian que vai render?

— À volta de oitenta milhões. Permiti que retirasse uma comissão de dez por cento, como compensação pelo papel na operação. O restante dinheiro será de imediato transferido para si.

— Setenta e dois milhões de dólares?

— Mais milhão, menos milhão, é claro. E quando a operação terminar?

— Recupero o quadro. — Como pretende fazê-lo?

— Deixe isso comigo, Mademoiselle Weinberg.

— E o que acontece aos setenta e dois milhões, quando me devolver o quadro? Mais milhão, menos milhão, é claro.

— Pode ficar com os juros acumulados. Para além disso, vou pagar-lhe uma taxa de aluguer. O que acha de cinco milhões de dólares?

Hannah sorriu.

— Parece-me bem, mas não pretendo ficar com o dinheiro para mim. Não quero o dinheiro deles.

— Nesse caso, o que tenciona fazer? Hannah explicou-lhe.

— Parece-me muito bem — replicou Gabriel. — Negócio fechado, Mademoiselle Weinberg?

— Sim — assentiu ela. — Negócio fechado.

Depois de sair do apartamento de Hannah Weinberg, Gabriel dirigiu-se a uma casa de segurança do Escritório, perto do Bois de Boulogne. Vigiaram-na durante três dias. Gabriel apenas a viu nas fotografias de vigilância e só ouviu a sua voz nas gravações. Todas as noites as escutava, em busca de sinais de traição, ou de indiscrição, mas apenas encontrou fidelidade. Na véspera do dia em que deveria entregar o quadro, ouviu-a a chorar baixinho e percebeu que se despedia de Marguerite.

Na manhã seguinte, Navot trouxe o quadro, enrolado numa manta velha que viera do apartamento de Hannah. Gabriel chegou a pensar em enviá-lo para Tel Aviv através de um correio, mas acabou por decidir ser ele próprio a levá-lo da França. Retirou-o da moldura e depois soltou a tela da armação. Quando a enrolou cuidadosamente, pensou em Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. Agora, em vez de escondida por baixo do soalho, estava oculta em segurança por baixo do forro falso da mala de Gabriel. Navot levou-a à Gare du Nord. Um agente da Estação de Londres estará à espera em Waterloo — disse Navot. — Ele o leva a Heathrow. El Al está à espera. Vão garantir que não tenha problema com a bagagem.

— Obrigado, Uzi. Não demora e vai deixar de me fazer preparativos para as viagens.

— Eu não teria assim tanta certeza.

— As coisas não correram bem com Amos?

— Ele é muito fechado.

— O que disse ele?

— Disse que precisava de uns dias para pensar.

— Não estava esperava que ele te oferecesse o cargo de mão beijada, certo?

— Nem sei o que esperava.

— Não se preocupe, Uzi. Vai ficar com o cargo.

Navot parou no acostamento, a um quarteirão da estação.

— Pode dar uma palavrinha por mim na King Saul, Gabriel? Amos gosta de você.

— O que leva você a dizer isso?

— É fácil de ver — explicou-lhe. — Todos gostam de você.

Gabriel saiu do carro, retirou a mala do banco traseiro e desapareceu no interior da estação. Navot esperou na beira até cinco minutos depois da hora da partida de Gabriel. Depois arrancou para o meio do trânsito e afastou-se.

Quando Gabriel chegou, o apartamento estava às escuras. Acendeu uma lâmpada e ficou aliviado ao ver o estúdio intato. Entrou no quarto e viu Chiara sentada na cama. Lavara o cabelo e o prendera com um elástico de veludo. Gabriel retirou-o e desabotoou sua camisola. Enquanto faziam amor, o quadro ficou a seu lado.

— Sabe — comentou Chiara —, a maior parte dos homens volta de Paris com um lenço Hermès e um perfume.

À meia-noite, o telefone tocou. Gabriel atendeu antes do segundo toque. — Estarei lá amanhã — disse, após um momento, e desligou.

— Quem era? — perguntou Chiara. — Adrian Carter.

— O que ele queria?

— Quer que vá imediatamente para Washington.

— O que há em Washington?

— Uma garota — explicou Gabriel. — Carter encontrou a garota.

16

MCLEAN, VIRGÍNIA

— Como foi o voo?

— Nunca mais acabava.

— São as correntes de jato do outono — explicou Carter, com um certo pedantismo. — Atrasa pelo menos duas horas os voos da Europa para a América.

— Israel não fica na Europa, Adrian. Israel fica no Oriente Médio.

— Sério?

— Pergunte a seu diretor de informações. Ele esclarece a confusão.

Carter lançou um olhar de desdém a Gabriel, ao que devolveu a atenção à estrada. Dirigiam-se a Washington no Volvo amolgado de Carter, através da Dulles Access Road. Carter vestia um casaco de bombazina com remendos nos cotovelos, o que reforçava a imagem acadêmica. Só lhe faltava o saco de lona para os livros e a caneca personalizada. Conduzia bem abaixo do limite de velocidade e olhava com frequência para o espelho retrovisor.

— Estamos a ser seguidos? — perguntou Gabriel.

— Polícia de trânsito — explicou Carter. — São fanáticos, nesta estrada. Algum problema com o controle do passaporte?

— Nenhum — respondeu Gabriel. — Por acaso, pareciam muito contentes por me verem.

Era algo que Gabriel nunca compreendera em relação à América

— a cordialidade dos agentes de fronteira. Sempre vira algo de reconfortante no mau humor enfadado dos israelenses que carimbavam passaportes no Aeroporto Ben-Gurion. Os funcionários aduaneiros americanos eram demasiado cordiais. Olhou pela janela. Tinham deixado a Dulles Access Road e seguiam agora por McLean. Apenas estivera uma vez na Virgínia, para uma visita breve a uma casa de segurança da CIA, nas profundezas da terra dos cavalos, perto de Middleburg. Considerou McLean o típico subúrbio americano, limpo e próspero, mas com uma certa falta de vida. Atravessaram o bairro comercial da baixa e depois entraram numa secção residencial com grandes casas que pareciam saídas de um panfleto imobiliário. Os empreendimentos tinham nomes como Merrywood e Colonial Estates. Um sinal rodoviário flutuou na sua direção: CENTRO DE INFORMAÇÃO GEORGE BUSH.

— Não vais levar-me à sede, certo?

— É claro que não — garantiu Carter. — Vamos para o Bairro.

Gabriel sabia que o Bairro era a forma como os habitantes de Washington se referiam à pequena aldeia no Potomac. Cruzaram um viaduto sobre a autoestrada e entraram numa zona de encostas e matas densas. Por entre as árvores, Gabriel avistou casas imponentes em frentes ao rio.

— Como se chama?

— Sarah Bancroft — respondeu Carter. — O pai era executivo da divisão internacional do Citibank. Cresceu quase sempre na Europa. Ao contrário da maioria dos americanos, sente-se confortável no estrangeiro. Fala algumas línguas estrangeiras. Sabe usar os talheres na altura correta.

— Estudos?

— Regressou à América para fazer o curso superior. Licenciou-se em História da Arte em Dartmouth, e depois estudou no Courtauld Institute of Art, em Londres. Imagino que conheças o Courtauld?

Gabriel anuiu. Era uma das mais prestigiadas escolas de arte do mundo. Nele tinham-se formado nomes como um certo negociante de arte de St. James chamado Julian Isherwood.

— Depois do Courtauld, fez um doutorado em Harvard prosseguiu Carter. — Agora é conservadora do Phillips Colletion, em Washington. É um pequeno museu, perto de...

— Eu conheço o Phillips Colletion, Adrian.

— Desculpe — lamentou-se Adrian, sinceramente. Um veado surgiu de entre as árvores e cruzou-se no caminho do carro. Adrian levantou o pé do acelerador e observou o animal a desaparecer em silêncio na mata escura.

— Como ficaram sabendo dela? — perguntou Gabriel, mas Carter não respondeu. Estava inclinado sobre o volante, a perscrutar as árvores ao longo da estrada, à procura demais veados.

— Quando aparece um — explicou —, normalmente há mais.

— Como os terroristas — comentou Gabriel. Repetiu a pergunta.

— Ela candidatou-se aos nossos serviços poucos meses depois do onze de Setembro — explicou Carter. — Tinha acabado o doutorado. Parecia interessante na ficha, por isso a chamamos e entregamos aos psiquiatras do RH. Interrogaram-na e não gostaram do que viram. Independente demais, foi o que disseram. Talvez até um pouco inteligente demais para seu próprio bem. Quando a recusamos, foi parar no Phillips. — Estás a oferecer-me uma das suas rejeitadas?

— Não é um termo que se aplique a Sarah Bancroft. — Carter retirou uma fotografia do bolso do casaco, que entregou a Gabriel. Sarah Bancroft era uma mulher extremamente bonita, de cabelo louro à altura dos ombros, maçãs do rosto largas e olhos grandes da cor de um céu límpido de Verão.

— Idade?

— Trinta e um.

— Por que não é casada?

Carter hesitou por um momento.

— Por que não é casada, Adrian?

— Teve um namorado em Harvard, um jovem advogado chamado Ben Callahan. As coisas acabaram mal.

— O que aconteceu com Ben?

— Pegou um avião para Los Angeles no Logan Airport na manhã do 11 de setembro de 2001.

Gabriel estendeu a fotografia a Carter.

— Zizi não vai contratar alguém que tenha sido afetado pelo Onze de Setembro. Trouxe-me aqui para nada, Adrian.

Carter manteve as mãos no volante.

— Ben Callahan era um namorado de escola, não era um marido. Além disso, Sarah nunca fala sobre ele com ninguém. Quase tivemos de arrancar essa informação. Ela receava que a morte do Ben a perseguisse para o resto da vida, que as pessoas a tratassem como se fosse uma viúva aos vinte e seis anos. Ela não fala no assunto. Esta semana demos por aí uma olhada. Ninguém sabe.

— Os cães de guarda de Zizi vão fazer mais do que dar uma vista de olhos, Adrian. E se lhes der o cheiro do onze de Setembro, ele vai fugir dela a sete pés. — Por falar em Zizi, a casa dele é já ali à frente.

Carter reduziu para fazer uma curva. Um enorme portão de segurança em ferro e tijolo surgiu-lhes à esquerda. Por detrás do portão, um extenso caminho de acesso alcatroado subia até uma imponente mansão em frente ao rio. Gabriel desviou o olhar quando passaram pela propriedade.

— Zizi nunca vai ficar a saber do Ben — garantiu Carter. — Estás disposto a apostar a vida da Sarah quanto a isso?

— Fala com ela, Gabriel. Dá-me a tua opinião. -Já sei qual é a minha opinião.

Ela é perfeita.

— Então qual é o problema?

— Se cometermos um erro que seja, Zizi vai dar cabo dela. É esse o problema, Adrian.

A rapidez com que chegaram ao centro de Washington surpreendeu Gabriel. Num momento estavam numa estrada rural de duas vias, no extremo do vale do Potomac, e no outro arrastavam-se pela Q Street, no meio da hora de ponta de Georgetown. Assumindo o papel de guia turístico, Carter disse as casas dos residentes mais conhecidos do bairro. Com a cabeça encostada ao vidro, Gabriel nem sequer era capaz de reunir energias para fingir estar interessado. Atravessaram uma ponte curta, guardada em cada extremidade por um par de enormes búfalos manchados, e entraram na zona diplomática da cidade. Logo a seguir à Massachusetts Avenue, Carter apontou para uma estrutura atorreada de tijolo, do lado esquerdo da rua.

— Aquele é o Phillips — disse Adrian, prestativo. Gabriel olhou para a direita e viu uma versão em bronze de Mohandas Gandhi a caminhar num parque triangular minúsculo. Porquê Gandhi? interrogou-se. O que teriam os ideais do Mahatma que ver com aquele centro de poder americano?

Carter percorreu mais um quarteirão e estacionou na zona diplomática reservada à frente de uma embaixada latino-americana de aspeto banal. Deixou o motor ligado e não deu indicação de pretender sair do carro.

— Esta zona da cidade chama-se Dupont Circle — explicou, ainda à laia de guia turístico. — É o que pretende ser a vanguarda de Washington.

Um agente da Divisão Uniformizada do Serviço Secreto bateu ao vidro de Carter e fez-lhe sinal para seguir viagem. Sempre a olhar em frente, Carter encostou a identificação ao vidro e o agente regressou ao carro patrulha. Momentos depois, algo no espelho retrovisor chamou a atenção de Carter.

— Aí vem ela — disse.

Gabriel olhou pela janela quando Sarah Bancroft passou por eles, vestindo um sobretudo comprido de cintura estreita. Tinha uma pasta de pele numa mão e um celular na outra. Gabriel ouviu-lhe a voz quando ela passou. Grave, sofisticada, um toque de pronúncia inglesa — remanescente, sem dúvida, do tempo passado em Courtauld, e de uma infância vivida em escolas internacionais no estrangeiro.

— O que acha? — perguntou Carter.

— Já te digo.

Chegou à esquina da Q Street com a 20th Street. Na esquina oposta ficava uma praça repleta de vendedores ambulantes e com um par de escadas rolantes que davam na estação de metrô de Dupont Circle. O semáforo de Sarah estava vermelho. Sem parar, desceu do passeio e começou a atravessar a estrada. Quando um taxista buzinou em protesto, ela lançou-lhe um olhar capaz de derreter gelo e prosseguiu com a conversa. Depois cruzou lentamente o passeio e entrou na escada rolante descendente. Com admiração, Gabriel observou-a a desaparecer de vista.

— Tem mais alguma como ela?

Carter tirou um celular do bolso e marcou um número.

— Vamos embora — disse. Momentos depois, uma grande Suburban preta contornou a esquina e estacionou ilegalmente na Q Street, em frente às escadas rolantes. Cinco minutos mais tarde, Gabriel voltou a vê-la, desta vez a surgir lentamente das profundezas da estação de metro. Já não estava a falar ao telefone, nem se encontrava sozinha. Era acompanhada por dois agentes de Carter, um homem e uma mulher, um em cada braço, para o caso de ela mudar repentinamente de ideias. A porta traseira da Suburban abriu-se e Sarah Bancroft desapareceu. Carter ligou o motor e regressou a Georgetown.

17

 

GEORGETOWN

A Suburban preta deteve-se quinze minutos mais tarde à porta de uma casa de estilo federal em N Street. Quando Sarah subiu os degraus curvos de tijolo, a porta abriu-se de repente e uma figura surgiu nas sombras do pórtico. Vestia calça caqui e jaqueta com remendos nos cotovelos. O olhar denotava um curioso distanciamento clínico que lembrou a Sarah o terapeuta que consultara após a morte de Ben.

— Chamo-me Carter — apresentou-se, como se disso se tivesse lembrado de súbito. Não disse se era o nome próprio ou o apelido, apenas que era verdadeiro. — Já não uso nomes esquisitos — explicou. — Agora pertenço à Sede.

Sorriu. Era um sorriso artificial, como o foi o breve aperto de mão. Convidou-a a entrar e, mais uma vez, conseguiu transmitir a ideia de uma inspiração súbita.

— E você é a Sarah — informou-a, enquanto a guiava pelo vasto salão central. — Sarah Bancroft, conservadora do conceituado Phillips Colletion. Sarah Bancroft, que num ato de coragem nos ofereceu os seus serviços depois do onze de Setembro, mas que foi recusada e a quem lhe disseram que não fazia falta.

Como vai o seu pai?

Sarah ficou surpreendida com a repentina mudança de assunto.

— Conhece o meu pai?

— Nunca nos encontramos. Trabalha para a Citicorp, não é?

— Sabe muito bem para quem ele trabalha. Por que me pergunta?

Por onde anda ele? Londres? Bruxelas? Hong Kong? Paris — respondeu. — É a última comissão. Vai reformar-se para o ano que vem.

— E depois volta para casa? Sarah abanou a cabeça.

— Vai ficar em Paris. Com a nova mulher. Os meus pais divorciaram-se há dois anos. Ele voltou a casar-se de imediato. Para ele, tempo é dinheiro.

— E a sua mãe? Onde está ela?

— Em Manhattan.

— Costuma ver o seu pai?

— Festas. Casamentos. O típico almoço constrangedor, sempre que ele vem à América. O divórcio dos meus pais foi mau. Todos tomaram partidos, incluindo os filhos. Por que está a fazer-me essas perguntas? O que pretende de...

— Acredita nisso? — atalhou Carter.

— Acredito no quê? — Em tomar partidos.

— Acho que depende das circunstâncias. Isto faz parte dos testes? Pensei que tivesse chumbado nos testes.

— E chumbou — garantiu Carter. — Redondamente. Entraram na sala. Estava mobilada com a elegância formal mas anônima normalmente reservada às suítes dos hotéis. Carter ajudou-a a despir o casaco e convidou-a a sentar-se.

— Nesse caso, por que voltei?

— Este é um mundo fluido, Sarah. As coisas mudam. Diga-me uma coisa, em que circunstâncias julga que é correto tomar partidos?

— Nunca pensei muito no assunto.

— Claro que pensou — contrapôs Carter e, pela segunda vez, Sarah viu o terapeuta, sentado no cadeirão de motivos florais, com a caneca de cerâmica equilibrada no joelho, levando-a a visitar locais onde ela preferia não entrar. — Vamos, Sarah — dizia Carter. — Dê-me um exemplo em que acredite que se deve tomar partidos.

— Acredito no bem e no mal — respondeu, erguendo um pouco o queixo. — O que talvez sirva para explicar o motivo por que chumbei nos testes. O seu mundo é em tons de cinzento. Em geral, vejo as coisas a preto e branco.

— Foi isso que o seu pai lhe disse? era Ben quem a acusava dessa falha.

— Qual o objetivo disto? — perguntou. — Por que estou aqui? Mas Carter continuava a analisar as implicações da última resposta.

— E quanto aos terroristas? — perguntou, e Sarah ficou mais uma vez com a impressão de que o homem acabara de pensar na questão. — É sobre isso que me questiono. Como eles se encaixam no mundo do bem e do mal da Sarah Bancroft? Serão maus, ou será que a sua causa é legítima? Seremos vítimas inocentes, ou será que fomos nós que provocamos esta calamidade? Devemos ficar sentados e aguentar, ou teremos o direito de lhes resistir com toda a nossa força e raiva?

— Sou conservadora-assistente do Phillips Colletion — disse-lhe.

— Quer mesmo que teça considerações sobre a moral do contraterrorismo?

— Nesse caso, vamos restringir a nossa questão. Sempre me pareceu útil fazê-lo. Vejamos como exemplo o homem que levou o avião do Ben contra o World Trade Center. — Carter fez uma pausa. — Recorde-me, Sarah, em que avião estava Ben?

— Sabe muito bem em que avião ele estava — retorquiu. — No Voo 175 da United.

— Que era pilotado por...

— Marwan al-Shehhi.

— Imaginemos por um momento que Marwan al-Shehhi conseguiu sobreviver. Eu sei que é uma loucura, Sarah, mas acompanhe meu raciocínio. Imagine que ele conseguiu voltar ao Afeganistão ou ao Paquistão ou a qualquer outro santuário terrorista. Imagine que sabíamos quem era. Deveríamos enviar o FBI com um mandado de captura, ou deveríamos tratar dele de modo mais eficaz? Homens de negro? Forças especiais? Um míssil Hellfire lançado de um drone?

— Creio que sabe o que faria.

— Imagine que desejo ouvi-lo de sua boca, antes de continuarmos.

— Os terroristas declararam guerra — acusou Sarah. — Atacaram nossas cidades, mataram os nossos cidadãos e tentaram prejudicar a estabilidade do nosso governo.

— Nesse caso, o que deveríamos fazer?

— Deviam ser enfrentados com dureza.

— E o que significa isso?

— Homens de negro. Forças especiais. Um míssil Hellfire lançado de um drone.

— E quanto ao homem que lhes dê dinheiro? Será igualmente culpado? E, se assim for, até que ponto?

— Talvez dependa de ele saber para que serve esse dinheiro.

— E se ele soubesse muito bem para que serve esse dinheiro?

— Nesse caso, é tão culpado como o homem que jogou o avião na torre.

— Estaria confortável, ou mesmo justificada, em agir contra tal indivíduo?

— Ofereci ajuda há cinco anos — acusou, com um tom de desprezo. — Disseram que não era adequada para este tipo de trabalho. E agora querem minha ajuda?

Carter não pareceu abalado com o protesto. Sarah sentiu uma empatia súbita pela mulher daquele homem.

— Ofereceu ajuda e nós a tratamos de uma forma miserável. Receio que sejamos muito bons nisso. Queria poder dizer o quanto estávamos errados. Talvez pudesse confortá-la com um pedido de desculpas falso. Mas sinceramente, Miss Bancroft, não há tempo. — A voz apresentava agora um tom que até então estava ausente. — Assim sendo, acho que preciso de uma resposta direta. Ainda quer ajudar? Quer combater os terroristas, ou prefere voltar a sua vida e esperar que não volte a acontecer?

— Combater? — indagou Sarah. — Certamente há pessoas mais indicadas para isso.

— Há muitas formas de combate, Sarah.

A jovem hesitou. Carter acentuou o silêncio repentino com uma observação prolongada das próprias mãos. Não era o tipo de homem que repetia perguntas. Nesse aspeto, era muito parecido com o pai dela.

— Sim — acabou por dizer. — Quero.

— E se para isso tivesse de trabalhar com uma agência de espionagem que não a CIA? — perguntou Carter, como se debatesse uma teoria abstrata. — Uma agência bastante próxima de nós na luta contra o terrorismo islâmico? — E qual seria essa agência?

Carter era bom a esquivar-se a perguntas e voltou a prová-lo.

— Gostaria que conhecesse uma pessoa. É um homem sério. Uma espécie de diamante em bruto. Vai colocar-lhe algumas questões. Na verdade, vai interrogá-la durante algumas horas. Por vezes talvez se torne um pouco pessoal. Se gostar do que vir, vai pedir-lhe que nos ajude num empreendimento muito importante. Não é isento de riscos, mas é essencial para a segurança dos Estados Unidos, e tem o nosso apoio incondicional. Se estiver interessada, permaneça onde está. Caso contrário, saia, e fingimos que entrou aqui por acaso.

Sarah nunca saberia ao certo a forma como Carter o chamara, ou de onde surgira. Era pequeno e magro, com cabelo muito curto e têmporas grisalhas. Tinha os olhos mais verdes que Sarah alguma vez vira. Tal como o de Carter, o aperto de mão foi breve, mas analisador, como o toque de um médico. Falava um inglês fluente, mas com uma pronúncia cerrada. Se tinha nome, não era relevante. Instalaram-se na mesa comprida da sala de jantar formal, Carter e o colaborador anônimo de um lado, e Sarah do outro, como se de um suspeito numa sala de interrogatório se tratasse. O colaborador detinha agora a posse do seu dossiê da CIA. Folheava lentamente as páginas, como se as visse pela primeira vez, o que ela duvidava fosse o caso. A primeira questão foi-lhe apresentada com um leve tom acusatório.

— A sua dissertação para o doutorado em Harvard teve como tema os expressionistas alemães.

Parecia um ponto estranho para começar. Sentiu-se tentada a perguntar qual o interesse no tema da dissertação, mas limitou-se a acenar com a cabeça e a responder:

— Sim, exatamente. Deparou-se com um homem chamado Viktor Frankel, durante a sua pesquisa?

— Era discípulo de Max Beckmann — disse Sarah. — Hoje em dia Frankel é pouco conhecido, mas na altura era considerado de extrema influência e era tido em muito boa consideração pelos contemporâneos. Em 1936, os nazistas consideraram seu trabalho degenerado e foi proibido de continuar a pintar. Infelizmente, decidiu permanecer na Alemanha. Quando resolveu partir, era demasiado tarde. Foi deportado para Auschwitz em 1942, juntamente com a esposa e com a filha adolescente, Irene. Apenas Irene sobreviveu. Foi para Israel depois da guerra e tornou-se uma das artistas mais influentes do país nas décadas de cinquenta e sessenta. Acho que morreu há alguns anos.

— Exatamente — asseverou o colaborador de Carter, os olhos ainda no dossiê de Sarah.

— Por que ficou interessado em Viktor Frankel?

— Porque era meu avô.

— É filho da Irene?

— Sim. Irene era minha mãe.

Sarah olhou para Carter, que fitava as próprias mãos.

— Acho que sei quem comanda este seu empreendimento. Voltou a dirigir a atenção para o homem de têmporas grisalhas e olhos verdes. — É israelense.

— Sou culpado desse crime. Continuamos, Sarah, ou prefere que eu saia?

Sarah hesitou por um instante, e depois anuiu.

— Posso ter um nome, ou são proibidos?

O colaborador deu-lhe um nome. Era vagamente familiar. E então lembrou-se de onde o vira. O agente israelense que esteve envolvido no atentado na Gare de Lyon, em Paris... — Foi o homem que...

— Sim — atalhou ele. — Fui eu.

Voltou a olhar para o dossiê e virou a página.

— Mas voltemos a você, está bem? Temos muito que fazer e estamos limitados de tempo.

Começou lentamente, um montanhista a abrir caminho nos contrafortes, a guardar as forças para os perigos invisíveis que o esperavam mais à frente. As questões eram breves, eficientes e apresentadas de forma metódica, como se as lesse de uma lista previamente elaborada, o que não era o caso. Dedicou a primeira hora à família. O pai, o importante executivo da Citicorp, que não dispusera de tempo para os filhos, mas encontrara muito para outras mulheres. A mãe, cuja vida se desmoronara após o divórcio e que vivia agora como uma eremita, no seu apartamento de Manhattan, na Quinta Avenida. A irmã mais velha, que Sarah descreveu como "aquela que ficou com a inteligência e com a beleza". O irmão mais novo, que abandonara a família cedo e que naquele momento, para desapontamento do pai, trabalhava por um ordenado mísero numa loja de aluguer de esquis, algures no Colorado.

Depois da família, a hora seguinte foi dedicada em exclusivo à dispendiosa educação na Europa. A jovem americana em St. Johns Wood, onde completara a escola primária.

A escola internacional de Paris, onde aprendera a falar francês e a meter-se em sarilhos. O internato feminino nos arredores de Genebra, onde fora encarcerada pelo pai, com o objetivo de "pôr a cabeça no lugar". Fora na Suíça, adiantou Sarah de moto próprio, que descobrira a paixão pela arte. Cada resposta era recebida pelo arranhar da caneta. Escrevia com tinta vermelha num bloco de folhas da cor dos girassóis. Ao início, Sarah julgou que ele escrevia em estenografia, ou com algum tipo de hieróglifos. Depois percebeu que tirava notas em hebraico. O fato de estar a escrever da direita para a esquerda, e de escrever com a mesma rapidez com ambas as mãos, apenas servia para aprofundar a sensação de que atravessara para o outro lado do espelho.

Por vezes, era como se ele dispusesse de todo o tempo do mundo. De outras vezes, lançava olhares ao relógio de pulso e franzia o sobrolho, como se calculasse até onde poderia avançar, antes de fazer alto para a noite. A espaços, utilizava outras línguas. O francês era muito bom. O italiano era impecável, embora dotado de um vago sotaque que traía o fato de não ser falante nativo. Quando se dirigiu a Sarah em alemão, verificou-se uma mudança. As costas endireitaram-se. As feições severas endureceram. Sarah respondeu-lhe na língua da questão, mesmo tendo as palavras sido registradas em hebraico no bloco amarelo. Em geral não a pôs em causa, embora quaisquer inconsistências, reais ou imaginadas, fossem avaliadas com um zelo inquisitorial.

— Esta paixão pela arte — referiu ele. — Como julga que começou? Porquê arte?

Por que não literatura, ou música? Por que não cinema, ou drama?

— Os quadros viraram refúgio. Um santuário.

— Do quê?

— Da vida real.

— Era uma menina rica das melhores escolas da Europa.

O que havia de mal com sua vida? — Mudou do inglês para o alemão no meio da frase.

— Fugia do quê?

— Está me julgando — respondeu Sarah, na mesma língua.

— É claro.

— Podemos falar em inglês?

— Se tiver de ser.

— Os quadros são outros mundos. Outras vidas. Um instante no tempo que existe na tela e em mais lado nenhum. — Gosta de habitar esses locais.

Foi uma observação e não uma pergunta. Sarah aquiesceu em resposta. — Gosta de viver outras vidas? Assumir outras personalidades? Gosta de passear através dos campos de trigo de Vincent, pelos jardins floridos de Monet?

— Até mesmo pelos pesadelos de Frankel.

A caneta foi colocada de lado pela primeira vez.

— Foi por isso que se candidatou à CIA? Porque queria ter outra vida? Porque queria transformar-se noutra pessoa?

— Não. Queria servir meu país.

Sarah recebeu um franzir de cenho reprovador, como se a resposta fosse ingênua. O colaborador olhou mais uma vez para o relógio. O tempo estava contra ele.

— Conheceu árabes enquanto crescia na Europa?

— Claro.

— Rapazes? Garotas?

— Ambos.

— Que tipo de árabe?

— Árabes com duas pernas. Árabes de países árabes.

— Você é mais inteligente do que isso.

— Libaneses. Palestinos. Jordanianos. Egípcios.

— E sauditas? Estudou com sauditas?

— Havia duas garotas sauditas na escola suíça.

— Eram ricas, essas garotas sauditas?

— Éramos todas ricas.

— Foi amiga delas?

— Era difícil conhecê-las. Afastavam-se muito. Eram reservadas.

— E os rapazes árabes?

— O quê?

— Foi amiga de algum?

— É possível.

— Chegou a namorar algum? Dormiu com algum?

— Não.

— Por que não?

— Acho que as minhas preferências não incluíam árabes.

— Teve namorados franceses?

— Alguns.

— Ingleses?

— Claro.

— Mas árabes não?

— Árabes não.

— Tem preconceito com árabes?

— Não seja ridículo.

— Nesse caso, é concebível que poderia ter namorado um árabe. Só por acaso não o fez.

— Espero que não peça para servir de isca com meu corpo, pois...

— Não seja ridícula.

— Então por que faz estas perguntas?

— Porque quero saber se estaria confortável num ambiente social e profissional com árabes.

— A resposta é sim.

— Não vê automaticamente um terrorista quando olha para um árabe?

— Não.

— Tem certeza. Sarah?

— Dependa do tipo de árabe em que se pensa.

Gabriel olhou para o relógio.

— Está ficando tarde — disse, para ninguém em especial. A pobre Sarah deve estar esfomeada. — Traçou uma linha vermelha grossa pela folha de hieróglifos. — Vamos encomendar comida, sim? Vai se sentir melhor depois de comer alguma coisa.

Encomendaram espetos de um restaurante no centro de Georgetown. A comida chegou vinte minutos depois, entregue pela mesma Suburban preta que trouxera Sarah três horas antes. Gabriel considerou a chegada como sinal para dar início à sessão da noite. Ao longo dos noventa minutos seguintes, concentrou-se na educação de Sarah e no seu conhecimento de história da arte. As perguntas sucediam-se tão rapidamente que ela mal teve tempo de comer. Quanto ao prato de Gabriel, permaneceu intato ao lado do bloco de notas amarelo. E um asceta, pensou Sarah. Não se deixa incomodar pelos alimentos. Vive num quarto vaio e subsiste com pão e algumas gotas de água por dia. Pouco depois da meia-noite, Gabriel levou o prato até a cozinha e deixou-o sobre a bancada. Quando regressou à sala de jantar, ficou alguns momentos de pé, atrás da cadeira, uma mão no queixo e a cabeça inclinada de leve. A luz do candelabro dera-lhe um tom esmeralda aos olhos, que a perscrutavam sem dó, como holofotes, já vê o cume, pensou Sarah. Está a preparar o assalto final.

— Pelo seu dossiê, vejo que é solteira.

— Exatamente.

— Está envolvida com alguém, neste momento?

— Não.

— Anda a dormir com alguém?

Sarah mirou Carter, que lhe respondeu com um olhar triste, como se dissesse, Eu avisei que as coisas podiam tornar-se pessoais.

— Não, não ando a dormir com ninguém.

— Por que não? — Já perdeu alguém que lhe fosse próximo?

A expressão sombria que lhe assomou o rosto, a par da mudança agitada de posição de Carter, alertou-a para o fato de estar a entrar em território proibido. — Sinto muito — desculpou-se. — Não queria...

— Imagino que seja por causa do Ben. O Ben é a razão para não estar envolvida com ninguém?

— Sim, é o Ben. É claro que é o Ben.

— Fale-me dele.

Sarah abanou a cabeça.

— Não — respondeu, em voz baixa. — Não vai saber sobre o Ben. Ele é meu. Ben não faz parte do acordo.

— Quanto tempo namoraram?

— Já lhe disse...

— Quanto tempo andou com ele, Sarah? É importante, ou não perguntaria.

— Uns nove meses.

— E depois terminou?

— Sim, terminou.

— Foi você que terminou a relação, não foi?

— Sim.

— Ben estava apaixonado por você. Ben queria se casar com você.

— Sim.

— Mas não sentia o mesmo. Não estava interessada em casamento. Talvez não estivesse interessada em Ben.

— Gostava muito dele...

— Mas?

— Mas não estava apaixonada.

— Fale-me sobre a morte dele.

— Não pode estar falando sério....

— Falo muito sério.

— Não falo sobre a morte dele. Nunca falo sobre a morte de Ben. Além disso, sabe muito bem como foi. Ben morreu às nove e três da manhã, hora do Leste, ao vivo, na televisão. O mundo inteiro viu Ben a morrer. Por acaso não viu?

— Alguns passageiros do Voo 175 conseguiram dar telefonemas.

— Verdade.

— O Ben foi um deles?

— Sim.

— Telefonou ao pai? — Não.

— Telefonou à mãe?

— Não.

— Ao irmão? À irmã?

— Não.

— Para quem ele telefonou, Sarah?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

— Telefonou para mim, seu filho da puta.

— O que disse ele?

— Disse que o avião tinha sido desviado. Disse que tinham matado os comissários. Disse que o avião fazia movimentos bruscos. Disse que me amava e que sentia muito. Estava prestes a morrer e pediu desculpas. E depois a ligação caiu.

— O que fez?

— Liguei a televisão e vi a fumaça saindo da Torre Norte do World Trade Center. Foi alguns minutos depois da colisão do Voo 11. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Telefonei para a FAA e contei sobre a ligação de Ben. Telefonei para o FBI. Telefonei para Polícia de Boston. Sentia-me tão impotente.

— E depois?

— Vi televisão. Esperei que o telefone voltasse a tocar. Não tocou. Às nove e três da manhã, hora de leste, o segundo avião colidiu com o World Trade Center. A Torre Sul estava em chamas. Ben estava queimando.

Uma lágrima única escorreu-lhe pela face. Sarah limpou-a e lançou um olhar furioso a Gabriel, — Está satisfeito?

Gabriel permaneceu em silêncio.

— Agora é a minha vez de fazer uma pergunta. Se não me responder com sinceridade, vou-me embora.

Pergunte-me o que quiser, Sarah. — O que pretende de mim?

— Queremos que se despeça do seu emprego no Phillips Colletion e que vá trabalhar para a Jihad Limitada. Continua interessada?

Ficou para Carter a tarefa de lhe apresentar o contrato. Carter, com a sua integridade puritana e o casaco de bombazina. Carter, com a sua atitude terapêutica e o inglês de pronúncia americana. Gabriel esgueirou-se como um gatuno na noite e atravessou a estrada até o Volvo amolgado de Carter. Sabia qual iria ser a resposta de Sarah. Já a tivera. A Torre Sul estava em chamas, dissera ela. O Ben estava a arder. E assim, Gabriel não ficou preocupado com a expressão de quem ia para a forca no rosto de Sarah quando, vinte minutos depois, saiu, estoica, da casa e desceu o lance de escadas até a van que a aguardava. Também não ficou incomodado com a visão de Carter, cinco minutos mais tarde, a atravessar lentamente a rua, como um cangalheiro a dirigir-se a um caixão. Sentou-se ao volante e ligou o motor.

— Há um avião em Andrews à espera para levá-lo de volta a Israel — disse. — Faremos uma parada no caminho. Há uma pessoa que quer dar uma palavrinha com você antes de partir.

Passava da meia-noite. A rua era dos caminhões de entregas noturnas e dos táxis. Carter seguia a uma velocidade acima do normal e olhava com frequência para o relógio.

— Ela não será barata, sabe. Vai ter um preço. Tem de ser realojada quando a operação terminar, e vai ser protegida por muito tempo.

— Mas vai tratar disso, não vai, Adrian? Você tem o dinheiro. O orçamento da espionagem americana é bem maior que o do nosso país inteiro.

— Esqueceu que esta operação não existe? Além disso, você vai ficar com muito dinheiro de Zizi.

— Certo — disse Gabriel. — Diga a Sarah Bancroft que ela vai passar os próximos dez anos num kibbutz na Galileia, escondida das forças da jihad global.

— Está bem, pagamos o realojamento.

Carter deu uma série de voltas. Por momentos, Gabriel perdeu a noção da rua em que se encontravam. Passaram pela fachada de um grande edifício neoclássico e depois entraram num acesso de aspeto oficial. À esquerda ficava uma guarita fortificada, com vidros à prova de bala. Carter baixou o vidro e entregou a identificação ao guarda.

— Estão a nossa espera.

O guarda consultou uma prancheta e depois devolveu a identificação de Carter. — Avancem e parem à frente da barricada à esquerda. Os cães vão dar a volta ao carro e depois podem entrar.

Carter aquiesceu e subiu o vidro. Gabriel perguntou:

— Onde estamos?

Carter contornou as barricadas e parou onde lhe tinha sido indicado.

— Na porta das traseiras da Casa Branca — explicou.

— com quem vamos falar? — indagou Gabriel, mas Carter trocava impressões com outro agente, que procurava controlar um grande pastor alemão que puxava a grossa coleira de couro. Gabriel, cujo pavor de cães era lendário no Escritório, permaneceu imóvel, enquanto o animal esquadrinhava cada centímetro do Volvo, em busca de explosivos ocultos. Momentos depois, atravessavam outro portão de segurança. Carter estacionou num lugar vago no Acesso Executivo Leste e desligou o motor.

— Só venho até aqui.

— com quem vou falar, Adrian?

— Entra por aquele portão e vai até a casa. Ele sai não tarda nada.

Os cães foram os primeiros a aparecer, dois terriers pretos que saíram disparados pela Entrada Diplomática como balas do cano de uma arma, e atacaram a calça de Gabriel. O presidente surgiu alguns segundos depois.

Avançou para Gabriel com a mão estendida, enquanto a outra gesticulava para que os terriers cessassem a investida. Os dois homens apertaram brevemente as mãos e depois começaram a percorrer o caminho que contornava o Gramado Sul. Os terriers lançaram mais um ataque aos tornozelos de Gabriel. Carter observou Gabriel a virar-se e a murmurar algumas palavras em hebraico que fizeram com que os cães procurassem o abrigo de um agente do Serviço Secreto.

A conversa durou apenas cinco minutos e pareceu a Carter que o presidente tomara conta das palavras. Moveram-se rapidamente, parando apenas uma vez para resolver o que parecera um pequeno desentendimento. Gabriel retirou as mãos dos bolsos e usou-as para ilustrar um argumento que tentava defender. De início, o presidente não pareceu convencido, mas depois aquiesceu e deu uma palmada forte nos ombros de Gabriel.

Completaram o circuito e separaram-se junto à Entrada Diplomática. Quando Gabriel começou a voltar ao estacionamento, os cães partiram atrás dele, mas rapidamente se viraram e correram para a Casa Branca, atrás do dono. Gabriel atravessou o portão aberto e entrou no carro.

— Como te pareceu ele? — perguntou Carter quando viraram para a 5th Street.

— Resoluto.

— Parece que chegaram a discutir.

— Diria que foi um desacordo político.

— Sobre o quê?

— Foi uma conversa privada, Adrian, e vai continuar assim.

— Bonito menino — disse Carter.

CONTINUA

11

LONDRES

— Como está o velhote? — perguntou Adrian Carter. Caminhavam lado a lado em Eaton Place, abrigados de um aguaceiro noturno debaixo do guarda-chuva de Carter. Tinham-se encontrado cinco minutos antes em Belgrave Square, como que por acaso. Carter envergava uma capa e segurava um exemplar do The Independent. Era ortodoxo, no que dizia respeito às regras do ofício. Segundo as piadas que corriam na sede em Langley, Adrian Carter deixava marcas de giz na cabeceira da cama sempre que queria fazer amor com a esposa.

— Continua inconsciente — respondeu Gabriel —, mas resistiu à noite e já não está perdendo sangue.

— Vai sobreviver?

— Ontem à noite, diria que não.

— E agora?

— Estou mais preocupado com as possíveis sequelas. Se ficar com lesões cerebrais, ou preso dentro de um corpo que não obedece... — A voz de Gabriel esmoreceu. — Para Shamron só há uma coisa na vida, o trabalho. Se não puder trabalhar, vai se sentir miserável... bem como todos os que o rodeiam.

— E as novidades? — Carter olhou discretamente para a porta da casa georgiana de número 24. — O apartamento fica ali. Vamos dar mais uma volta no quarteirão, sim? Gosto de seguir as regras.

— Não sabia, Adrian? A União Soviética acabou há anos. O KGB já desapareceu. Agora vocês e os russos são amigos.

— Cuidado nunca é demais, Gabriel.

— Seus rapazes da segurança não definiram um percurso para a identificação de vigilância?

— Não há rapazes, Gabriel.

— É uma casa de segurança da Agência?

— Não exatamente — observou Carter. — Pertence a um amigo.

— Um amigo da Agência?

— Na verdade, um amigo do presidente.

Carter puxou de leve a manga do blusão de Gabriel e conduziu-o pela rua escura. Percorreram lentamente Eaton Square, que estava em silêncio, exceto pelo murmúrio do trânsito noturno em Kings Road. Carter deslocava-se a um ritmo fastidioso, como um homem com um compromisso que preferia não ter de cumprir. Gabriel debatia-se com um único pensamento: por que razão o diretor delegado das operações da CIA desejava falar num local onde o seu próprio Governo não estivesse à escuta?

Regressaram a Eaton Place. Desta vez, Carter guiou Gabriel pelos degraus até a entrada na cave. Quando Carter introduziu a chave na fechadura, Gabriel levantou silenciosamente a tampa do balde do lixo e viu que este se encontrava vazio. Carter abriu a porta e entraram para o tipo de cozinha que os panfletos das agências imobiliárias descreviam como cozinha gourmet. As bancadas eram de granito e tinham uma iluminação agradável, fornecida por lâmpadas de halogêneo ocultas por baixo do armário feito sob medida. O chão era da pedra calcária de Jerusalém, tão apreciada pelos ingleses e americanos refinados que procuravam estabelecer uma ligação com as suas raízes mediterrânicas. Carter dirigiu-se à bancada de aço inoxidável e encheu a chaleira eléctrica com água. Não se deu ao trabalho de perguntar se Gabriel queria algo mais forte. Sabia que ele apenas bebia um copo de vinho ocasional e que nunca misturava o álcool com o trabalho, salvo por necessidade de disfarce.

— É um duplex — explicou Carter. — A sala fica lá em cima. Ponha-se à vontade. — Estás a dar-me autorização para dar uma olhada pela casa, Adrian? Carter abria e fechava as portas do armário com uma expressão perplexa no rosto. Gabriel foi até a despensa, encontrou uma caixa de chá Earl Grey e lançou-a a Carter antes de se dirigir ao andar de cima. A sala estava confortavelmente mobilada, mas denotava um ar de anonimato comum às segundas habitações. A Gabriel parecia que nunca ninguém ali amara, nem brigara. Pegou numa fotografia emoldurada que estava em cima de uma mesa de apoio e viu o que parecia ser o típico americano próspero,

Com três filhos bem alimentados e uma esposa com demasiadas cirurgias plásticas. Outras duas fotografias mostravam o americano numa posição rígida ao lado do presidente.

Ambas tinham dedicatórias assinadas: Para Bi, com gratidão.

Carter voltou momentos depois, com um tabuleiro de chá equilibrado nas mãos. Tinha cabelo encaracolado que rareava e o tipo de bigode largo em tempos favorecido pelos professores universitários americanos. O comportamento de Carter pouco tinha que sugerisse que era um dos membros mais poderosos da vasta rede de espionagem americana, ou que antes da sua ascensão à atmosfera rarefeita do sexto piso de Langley fora um dos mais conceituados agentes de campo. A tendência natural de Carter para escutar, em vez de falar, levava a maior parte das pessoas a concluir que se travava de uma espécie de terapeuta. Quando se pensava em Adrian Carter, imaginava-se um homem a suportar confissões de rumos de acontecimentos, ou de problemas, ou então uma figura de um romance de Dickens, curvado sobre livros grossos com longas palavras em latim. Normalmente, as pessoas subestimavam Carter. Era uma das suas armas mais poderosas.

— Quem está por trás disso, Adrian? — perguntou Gabriel.

— Diga você. — Carter pousou o tabuleiro sobre a mesa de centro e despiu a capa como se estivesse cansado de muito viajar. — Estamos no seu bairro.

— O bairro é nosso, mas algo me diz que o problema é seu. Caso contrário, não estaria em Londres — Gabriel deu uma olhada na sala —, numa casa de segurança emprestada, sem microfones nem apoio da estação local.

— Poucas são as coisas que te escapam, não é? Conte, Gabriel. Diga o nome dele.

— É um antigo agente saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq.

— Bravo, Gabriel. Muito bem. — Carter largou a capa nas costas de uma cadeira. — Muito bem mesmo.

Carter destapou o bule, sorveu o aroma e decidiu que precisava ficar em infusão mais um momento.

— Como souberam?

— Não soubemos — corrigiu Gabriel. — Foi um palpite, baseado em vestígios de prova.

— Por exemplo?

Gabriel contou a Carter tudo o que sabia. A operação falhada contra o professor Ali Massoudi. As fotografias de vigilância e a informação sobre a conta bancária suíça encontradas no computador de Massoudi. As ligações entre Ibrahim el-Banna e o agente saudita que se dava a conhecer como Khalil. Os relatórios sobre um saudita do mesmo nome que percorria os campos de refugiados do Sul do Líbano em busca de recrutas. Entretanto, Carter atarefava-se com o chá. Serviu a primeira xícara e entregou-a Gabriel. Seu chá exigia uma preparação mais elaborada: uma dose calculada de leite, depois o chá, por fim um torrão de açúcar. Os interrogadores referiam-se a esse óbvio ganhar tempo como atividade de deslocamento. Carter era fumador de cachimbo. Gabriel receava o seu aparecimento em breve. E vocês? — inquiriu Gabriel. — Quando souberam que se tratava de Bin Shafiq?

Carter pegou num segundo torrão com a tenaz e ponderou brevemente se deveria acrescentá-lo à xícara, após o que o devolveu sem cerimônias ao açucareiro. Provavelmente soube-o no dia em que pedimos a Sua Majestade que encerrasse o Grupo 205 — respondeu. — Ou talvez tenha sido no dia em que Bin Shafiq desapareceu da face da Terra. Sabes, Gabriel, uma das coisas que aprendi nesta profissão foi que para cada ação nossa, vai haver uma reação negativa. Afastamos o urso russo do Afeganistão e acabamos por criar uma hidra. Esmagamos o quartel-general da Al-Qaeda e agora as filiais estão a tratar dos seus próprios assuntos. Encerramos a loja de Bin Shafiq no GID e agora parece que ele começou a trabalhar por conta própria.

— Por quê?

— Pergunta o que o levou a atravessar a fronteira? — Carter encolheu os ombros e mexeu o chá com uma expressão lamentosa. — Não foi preciso muito. Ahmed bin Shafiq é um verdadeiro crente wahhabi.

— Neto de um guerreiro ikhwan — acrescentou Gabriel, o que lhe valeu um aceno de admiração por parte de Carter.

— Podemos perguntar por que os sauditas apoiam o terrorismo — disse Carter. — Podemos ter um debate interessante sobre se defendem na verdade os objetivos dos assassinos que armam e financiam, ou se estão numa política inteligente e cínica para controlar o ambiente em redor, garantindo assim sua sobrevivência. Tal debate não é possível sobre o homem que o GID escolheu para executar essa política. Ahmed bin Shafiq é um crente. Ahmed bin Shafiq odeia os Estados Unidos, o Ocidente e o Cristianismo, e ficaria muito feliz se o teu Estado deixasse de existir. Foi por esse motivo que insistimos com Sua Majestade para que encerrasse a sua lojinha dos horrores.

— E quando vocês forçaram o rei a encerrar o Grupo 205, Bin Shafiq perdeu a cabeça? Decidiu utilizar os contatos que foi estabelecendo ao longo dos anos e lançar a sua própria onda de terror? Com certeza que não pôde ter sido assim tão linear, Adrian.

— Receio que tenhamos dado um pequeno empurrão — admitiu Carter. — Invadimos o Iraque contra a vontade do Reino e da maior parte de seus habitantes. Capturamos membros da Al-Qaeda e os trancamos em prisões secretas, que é onde eles devem estar. Isto foi ruim para o mundo islâmico, e serviu para atiçar o fogo da jihad. Vocês também tiveram mão nisso. Para os árabes, seu Muro de Separação não passa de uma fronteira terminal unilateral, e não estão muito satisfeitos com ele.

— Não fique chocado, Adrian, mas não nos interessa o que os sauditas pensam do nosso muro. Se não tivessem injetado milhões nos cofres do Hamas e da Jihad Islâmica, não precisaríamos dele.

— O que nos leva à minha argumentação original — rematou Carter, fazendo uma pausa para beber um gole de chá. — O mundo islâmico ferve de raiva e Ahmed bin Shafiq, um verdadeiro crente wahhabi, tornou-se o porta-estandarte da jihad contra o infiel. Utilizou os contatos de seus dias no Grupo 205 para construir uma nova rede. Está fazendo o que Bin Laden já não consegue, que é planejar e executar atentados terroristas espetaculares, como o do Vaticano. Tem uma rede pequena, extremamente profissional e, como já provou, bem letal.

— E é financiada por dinheiro saudita.

— Sem dúvida — asseverou Carter.

— Aonde chegam as implicações, Adrian?

— Muito alto — respondeu Carter. — Quase ao topo.

— Onde é a base de operações deles? Quem financia? De onde vem o dinheiro?

— Da AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermediários — garantiu Carter. — Ahmed bin Shafiq é um dos melhores investimentos da AAB. Posso servir mais chá?

Seguiu-se outra pausa nos trabalhos, desta vez com Carter tentando adivinhar como acender a lareira a gás. Mirou, perplexo, a grelha por um instante e virou-se para Gabriel, lançando-lhe um apelo com o olhar. Gabriel encontrou a torneira de segurança, abriu o fluxo de gás e acendeu.

— Quantos anos você dá a eles, Gabriel? Quanto tempo até que a Casa de Saud seja derrubada e em seu lugar surja a República Islâmica da Arábia? Cinco anos? Dez? Ou talvez vinte? Nunca fomos muito bons nesse tipo de previsões. Pensamos que o império soviético fosse eterno.

— E nós pensamos que o Hamas nunca conseguiria vencer eleições.

Carter soltou uma risada melancólica.

— As nossas melhores mentes dão-lhes sete anos, no máximo. Sua Majestade está disposta a passar esses sete anos com as regras antigas: fornece-nos petróleo barato e uma suposta amizade, e ao mesmo tempo vai adulando e subornando as forças do Islão para não o atacarem. E, quando chegar a altura, vai fugir para os palácios que tem na

Riviera e passar o resto da vida com um luxo demasiado grotesco para se imaginar, de preferência com a cabeça ainda pegada ao corpo. Carter virou as palmas das mãos para o fogo.

— Não está quente — constatou.

— Os troncos são feitos de cerâmica. Dá-lhe um pouco para aquecer. Carter pareceu incrédulo. Gabriel acercou-se da janela e espreitou para a rua, onde um carro passou lentamente e desapareceu à esquina. Carter desistiu da lareira e regressou ao seu lugar.

— E depois temos os elementos da Família Real que estão dispostos a adoptar regras diferentes. A esses chamamos os Verdadeiros Crentes. Julgam que a única forma da Al-Saud sobreviver é através da renovação da aliança que estabeleceram há dois séculos com Muhammad Abdul Wahhab, no Njad. Mas esta nova aliança terá de contemplar novas realidades. O monstro que a Al-Saud criou há duzentos anos tem agora todas as cartas na mão, e os Verdadeiros Crentes estão preparados para dar ao monstro aquilo que ele quer. Sangue infiel. Jibadsem fim. Alguns desses Verdadeiros Crentes querem ir ainda mais longe. Desejam a expulsão de todos os infiéis da Península. Um embargo às vendas de petróleo à América e a todos os países que tenham negócios com vocês. Acreditam que o petróleo não deve ser visto simplesmente como um poço sem fim de dinheiro líquido que jorra dos terminais de Rãs Tanura para as contas bancárias suíças da Al-Saud. Querem usá-lo como arma... uma arma que possa ser empregue para danificar a economia americana e transformar os wahhabis em mestres do planeta, como Alá o desejou, quando criou o mar de petróleo debaixo das areias do Al-Hassa. E alguns desses Verdadeiros Crentes, como o presidente e CEO da AAB Holdings de Riad, Genebra e outros pontos intermédios, estão eles próprios dispostos a verter algum sangue infiel.

— Refere-se a Abdul Aziz al-Bakari?

— Exatamente — confirmou Carter. — Sabe alguma coisa sobre ele?

— Pelas últimas contas, era o décimo quinto homem mais rico do mundo, com fortuna pessoal na casa dos dez bilhões de dólares.

— Mais milhão, menos milhão.

— É presidente, diretor executivo e imperador da AAB Holdings... A de Abdul, A de Aziz e B de al-Bakari. A AAB é dona de bancos e de casas de investimento. A AAB tem empresas de navegação e metalúrgicas. A AAB está cortando as florestas da Amazônia e explorando minério nos Andes do Peru e da Bolívia. A AAB é dona de uma empresa química belga e de uma farmacêutica holandesa. A divisão de pesquisa e desenvolvimento da AAB é uma das maiores do mundo. Abdul Aziz al-Bakari é dono de mais hotéis do que qualquer outra pessoa.

Carter prosseguiu a enumeração de Gabriel.

— Tem um palácio em Riad que raramente visita e onde vivem duas antigas esposas que nunca vê. É dono de uma mansão na Île de la Cité, em Paris, de um solar principesco na Inglaterra, de uma casa em Mayfair, de villas à beira-mar em Saint-Tropez, Marbella e Maui, de chalés de esqui em Zermatt e Aspen, de um apartamento na Park Avenue que foi há pouco tempo avaliado em quarenta milhões de dólares, e de uma propriedade gigantesca, em frente ao Potomac, por onde passo todos os dias quando vou para o trabalho. Carter parecia considerar a mansão no Potomac, o mais grave de todos os pecados de Al-Bakari. O pai era sacerdote episcopal de New Hampshire e, por baixo do seu exterior plácido, batia um coração puritano.

— Al-Bakari viaja com o séquito por todo o mundo, a bordo de um 747 revestido a ouro — prosseguiu. — Duas vezes por ano, uma em fevereiro e outra em agosto, as operações AAB vão para o mar, quando Al-Bakari e a comitiva se instalam a bordo do Alexandra, o seu iate de noventa metros. Esqueci-me de alguma coisa? — Os amigos tratam-no por Zizi — replicou Gabriel. — Tem uma das maiores coleções mundiais de arte impressionista francesa, e há anos que os andamos a dizer que é um dos maiores financiadores do terrorismo, especialmente contra nós.

— Não tinha noção.

— Noção do quê?

— De que Zizi era um colecionador.

— E muito agressivo.

— Por acaso já esteve com ele?

— Receio que eu e Zizi estejamos em lados opostos do negócio.

— Gabriel franziu o sobrolho. — Qual é a ligação entre Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq?

Pensativo, Carter soprou o chá, sinal de que ainda não estava pronto para responder à questão de Gabriel.

— É um sujeito interessante, o Al-Bakari. Sabias que o pai foi o banqueiro pessoal de Ibn Saud? Tal como seria de esperar, o papai Al-Bakari saiu-se muito bem, o suficiente para dar dez milhões de dólares ao filho, para que este começasse a sua própria empresa. Mas isso não foi nada, quando comparado com o capital que recebeu da Al-Saud, quando o projeto se desenvolveu. A acreditar nos boatos, cem milhões de dólares. A AAB continua a ser o receptáculo preferido do dinheiro real saudita, o que é uma das razões para que Zizi esteja interessado em garantir a sobrevivência da Casa de Saud.

Gabriel sentiu um aperto no coração quando Carter pegou na bolsa do tabaco. — É um dos homens mais ricos do mundo — disse Carter —, e um dos mais caridosos. Erigiu mesquitas e centros islâmicos por toda a Europa. Financiou projetos de desenvolvimento no Delta do Nilo e para o combate à fome no Sudão. Doou milhões aos refugiados palestinos e outros milhões a projetos de urbanização na Cisjordânia e em Gaza.

— E mais de trinta milhões de dólares naquela angariação televisiva de fundos árabes para financiar homens-bomba suicidas — acrescentou Gabriel. — Zizi foi o maior doador individual. Agora, responde-me, Adrian.

— E qual era a pergunta?

— Qual a ligação entre Zizi e Bin Shafiq?

— É bem perspicaz, Gabriel. Diga você, qual a ligação.

— É óbvio que Zizi financia a rede de Bin Shafiq.

— É óbvio — asseverou Carter.

— Mas Bin Shafiq é saudita. Pode obter dinheiro em qualquer outro lugar. Zizi tem algo mais valioso que o dinheiro. Tem uma infraestrutura global, por onde Bin Shafiq pode movimentar homens e material. E Zizi tem o lugar ideal onde esconder um ideólogo como Bin Shafiq.

— A AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermediários.

O silêncio tombou entre eles como uma cortina, enquanto Carter enchia vagarosamente o cachimbo. Gabriel continuava de pé à janela, a olhar a rua. Sentia-se tentado a permanecer aí, pois o tabaco de Carter, quando aceso, cheirava a uma mistura de feno a arder e de cão molhado. Mas também sabia que a conversa chegara a um ponto em que não poderia ser continuada à frente de uma janela insegura. Com relutância, sentou-se na cadeira oposta a Carter e entreolharam-se em silêncio, Carter fumando com expressão meditativa e Gabriel afastando penosamente a fumaça dos olhos.

— Têm certeza?

— Absoluta.

— Como sabem?

— Fontes e método — respondeu Carter, por reflexo. — Fontes e método.

— Como sabem, Adrian?

— Ouvimos — explicou Carter. — A National Security Agency é uma coisa maravilhosa. Também dispomos de fontes no interior da ala moderada da Casa de Saud e do GID, que estão dispostas a contar certas coisas. Ahmed bin Shafiq reside grande parte do tempo no Ocidente, com uma identidade falsa. Está enterrado no império financeiro de Zizi, e os dois conferenciam com regularidade. Estamos certos desse fato.

Ao lado do tabuleiro de Carter, em cima da mesa de centro, estava um dossiê. Tinha no seu interior uma única fotografia, que Carter entregou a Gabriel. Mostrava um homem de sobretudo de lã e chapéu, em frente de um portão de ferro forjado. O rosto estava de perfil e as feições eram um pouco indistintas. Pelo aspeto da imagem, a fotografia fora tirada de alguma distância.

— É ele?

— Achamos que sim — respondeu Carter.

— Onde foi tirada?

— No exterior da casa de Zizi, na Île de la Cité, em Paris. O fotógrafo estava do outro lado do Sena, no Quai de l’Hôtel de Ville, o que explica uma certa falta de clareza da imagem. — Há quanto tempo?

— Seis meses.

Carter ergueu-se lentamente e deambulou até a lareira. Estava prestes a bater o cachimbo na grelha, quando Gabriel o recordou de que era falsa. Voltou a sentar-se e esvaziou o cachimbo para dentro de um grande cinzeiro de vidro lapidado.

— Quantos americanos morreram no Vaticano? — perguntou Gabriel.

— Vinte e oito, incluindo um bispo da Cúria.

— Quanto dinheiro Zizi al-Bakari deu a terroristas, ao longo dos anos?

— Centenas de milhões.

— Vão atrás dele — declarou Gabriel. — Levantem um processo e levem-no a tribunal.

— Contra Zizi al-Bakari?

— Secção 18 U.S.C. 2339B... Já ouviu falar nela, Adrian?

— Agora está me citando a lei americana?

— Dar dinheiro a grupos terroristas assumidos é uma violação da lei americana, quer esse dinheiro tenha, ou não, sido utilizado em atentados específicos. Talvez já pudessem ter processado dezenas de sauditas ricos por fornecerem apoio material aos inimigos, incluindo Zizi al-Bakari.

— Você me desaponta, Gabriel. Sempre te imaginei uma pessoa razoável... por vezes preocupado demais com questões de certo e errado, mas razoável. Não podemos ir atrás de Zizi al-Bakari.

— Por quê?

— Dinheiro — justificou-se Carter, ao que acrescentou: — E petróleo, é claro.

— É claro.

Carter brincou com o isqueiro.

— A Família Real Saudita tem muitos amigos em Washington. O tipo de amigos que só o dinheiro pode comprar. Zizi também tem amigos. Fundou cátedras acadêmicas e encheu-as de amigos e apoiantes. Garantiu a criação de departamentos de estudos árabes em meia dúzia de universidades americanas importantes. Financiou quase sozinho uma renovação profunda do Kennedy Center. Oferece dinheiro a projetos de caridade de senadores influentes e investe nos negócios de amigos e familiares desses senadores. É dono de boa parte de um dos bancos mais importantes e tem participações numa série de outras empresas americanas também importantes. Também serviu de intermediário em inúmeros negócios entre sauditas e americanos. O quadro está a ficar mais claro?

Estava, mas Gabriel queria ouvir mais.

— Se o bando de advogados de Washington de Zizi sequer desconfiasse que ele ia ser investigado criminalmente, Zizi falaria com Sua Majestade, Sua Majestade falaria com o embaixador Bashir, e o embaixador ia à Casa Branca ter uma conversinha com o presidente. Lembraria o presidente de que uma volta ou duas nas torneiras do petróleo significaria um aumento brutal no preço da gasolina. Talvez chegasse a frisar que um aumento dessa magnitude prejudicaria os habitantes do centro do país, que costumam fazer viagens longas, e que também costumam votar no partido do presidente.

— E assim, para Zizi o crime compensa... literalmente.

— Receio que sim.

— Não pergunte sobre o que, quando explicado, possa te trazer problemas.

— Conhece bem o Corão — disse Carter. — Outra razão para não agir contra Zizi, ou acusá-lo é o medo do que se pode encontrar: enredos com americanos importantes, negócios obscuros com elementos de Washington. Imagine a reação do povo americano se descobrisse que um bilionário saudita com ligações comerciais com figuras importantes de Washington financia as atividades inimigas. A relação mal conseguiu sobreviver ao primeiro Onze de Setembro. Duvido que sobrevivesse a um segundo. Não sobreviveria, pelo menos na forma atual. Já há um movimento no Capitólio para isolar a Arábia Saudita, devido ao apoio prestado ao extremismo islâmico global. Um escândalo que envolvesse Zizi al-Bakari apenas serviria para lançar achas para a fogueira. Várias figuras da política externa do Congresso estão a pensar numa legislação que pressione a Arábia Saudita. Podem dar-se a esse luxo. Se a economia americana for por água abaixo devido a uma subida dos preços do petróleo, não são eles que sofrem, mas sim o presidente.

— E o que quer de nós, Adrian? O que quer me dizer nesta sala, onde mais ninguém nos ouve?

— O presidente dos Estados Unidos quer pedir um favor — explicou Carter, enquanto fitava o fogo. — O tipo de favor em que por acaso você é muito bom. Ele gostaria que pusessem um agente na Casa de Zizi. Gostaria que descobrisse quem entra e quem sai. E se Ahmed bin Shafiq aparecer, ele gostaria que tentasse pegá-lo. A operação será sua, mas pode contar com todo o nosso apoio. Estaremos do outro lado do horizonte... longe o bastante para garantir uma negação plausível em Riad.

— Você me desaponta, Adrian. Sempre pensei que fosse uma pessoa razoável.

— O que eu fiz agora?

— Pensei que ia me pedir para matar Zizi al-Bakari e acabar de vez com o assunto.

— Matar Zizi? — Carter abanou a cabeça. — Zizi é intocável. Zizi é radioativo.

Gabriel regressou ao seu posto à janela e espiou a rua quando um casal de namorados correu pela calçada sob a chuva.

— Não somos assassinos profissionais — protestou. — Não podemos ser contratados para fazer os trabalhos sujos que vocês não podem fazer. Querem Bin Shafiq morto, mas não estão dispostos a correr riscos. Pretendem que sejamos nós a ficar com a culpa.

— Poderia lembrar alguns fatos importantes — adiantou Carter. — Poderia lembrar que este presidente ficou do seu lado enquanto o resto do mundo os tratou como se fossem judeus entre nações. Poderia lembrar que ele permitiu que construíssem o Muro de Separação, enquanto o resto do mundo os acusou de se comportar como os sul-africanos. Poderia lembrar que ele permitiu que trancassem Arafat na Mukata, enquanto o resto do mundo os acusou de agir como tropa de choque nazista. Poderia lembrar as inúmeras vezes em que este presidente tratou de sua roupa suja, mas não o farei, pois isso seria politicamente incorreto. Também poderia sugerir que com este pedido estaríamos numa espécie de saldar contas, o que não é, de todo, o caso.

— Então é o quê?

— Um reconhecimento — explicou Carter. — O reconhecimento de que nós, americanos, não temos estômago, nem coragem, para fazer as coisas que têm de ser feitas nesta luta. Já queimamos os dedos. Nossa imagem já foi debilitada. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vimos. Nossos políticos gostariam que pegássemos o primeiro avião para fora do Iraque, para que possam começar a gastar dinheiro no tipo de coisas que conquistam votos. O povo quer voltar à boa vida. As pessoas querem enterrar a cabeça na areia e fingir que não existe no mundo uma força organizada que procura destruí-las. Pagamos um preço terrível por entrar na sarjeta com os terroristas e combater no nível deles, mas acho que vocês sabiam que isso ia acontecer. Ninguém pagou um preço mais elevado do que vocês.

— E por isso querem que o façamos no seu lugar. Imagino que seja o a que chamam de terceirização. Mas que americano de sua parte, Adrian.

— Dadas as atuais circunstâncias, os Estados Unidos não podem tentar assassinar um antigo oficial da espionagem saudita, caso contrário a nossa relação com Riad ficaria comprometida. Também não podemos prender e acusar Zizi al-Bakari pelas razões que mencionei.

— Por isso querem que o problema desapareça?

— Exatamente.

— Que seja varrido para baixo do tapete? Que se adie o ajuste de contas para uma data mais conveniente?

— Não podia ser mais claro.

— Acha que essa é a melhor forma de derrotar a Hidra? Cortar uma cabeça e esperar que tudo corra bem? É preciso queimar as raízes, como fez Hércules. É preciso atacar o monstro com flechas embebidas em fel.

— Quer atacar a Casa de Saud?

— Não só a Casa de Saud — asseverou Gabriel. — Os fanáticos wahhabitas que fizeram um pacto de sangue, há duzentos anos, no planalto estéril do Najd. São eles seu verdadeiro inimigo, Adrian. Foram eles que criaram a Hidra.

— O príncipe sábio escolhe a data e o local da batalha, e não é hora de derrubar a Casa de Saud.

Gabriel mergulhou num silêncio taciturno. Carter olhava para o fornilho do cachimbo e fazia pequenos ajustes na disposição do tabaco, como um professor à espera da resposta de um aluno menos inteligente.

— Será preciso lembrar que atentaram contra Shamron?

Gabriel fulminou Carter com um olhar que lhe garantia que não se esquecera.

— Nesse caso, por que a hesitação? Depois do que Bin Shafiq fez ao velhote, pensei que estivesse de laço esticado para pegá-lo.

— Quero pegá-lo mais do que ninguém, Adrian, mas nunca estico o laço. É uma operação perigosa... perigosa demais até para você. Se alguma coisa der errado ou se formos apanhados, tudo acaba mal... para os três.

— Três?

— Eu, você e o presidente.

— Nesse caso, siga o décimo primeiro mandamento de Shamron, e não haverá problema. Você não será apanhado.

— Bin Shafiq é um fantasma. Nem sequer temos uma foto.

— Isso não é totalmente verdade. — Carter voltou a pegar o dossiê e retirou outra foto, que colocou em cima da mesa, para que Gabriel a visse. Mostrava um homem de olhos escuros, o rosto em parte oculto por um kaffijeh. — Este é Bin Shafiq, há quase vinte anos, no Afeganistão. Na épica era nosso amigo. Estávamos do mesmo lado. Nós fornecemos as armas. Bin Shafiq e os mestres de Riad forneciam o dinheiro.

— E a ideologia wahhabita que ajudou a dar origem aos talibãs — adiantou Gabriel.

— O inferno está cheio de boas intenções — lamentou-se. — Mas temos algo mais valioso do que uma foto com vinte anos. Temos a voz dele.

Carter pegou um pequeno controle remoto preto, apontou-o a um rádio Bose Wave e pressionou o Play. Momentos depois, dois homens começaram a falar em inglês: um de sotaque americano e o outro de pronúncia árabe.

— Imagino que o árabe seja Bin Shafiq. Carter anuiu.

— Quando foi gravado?

— Em 1988 — explicou Carter. — Numa casa de segurança em Peshawar.

— Quem é o americano? — perguntou Gabriel, embora já soubesse a resposta. Carter pressionou o botão Stop e olhou para o fogo.

— Sou eu — respondeu, com um tom distante. — O americano na casa de segurança da CIA em Peshawar era eu.

— Reconheceria Bin Shafiq se visse?

— Talvez, mas as nossas fontes dizem que fez várias operações plásticas antes de entrar em campo. Mas reconheceria a cicatriz no antebraço direito. Foi atingido por estilhaços durante uma viagem ao Afeganistão, em 1985. A cicatriz vai do pulso ao cotovelo. Não há cirurgião plástico que ajude naquilo.

— No lado de dentro ou de fora?

— De dentro. O ferimento afetou a mão dele. Submeteu-se a várias operações para tentar remediar a situação, mas nada deu certo. Normalmente a mantém no bolso. Não gosta de dar apertos de mão. Bin Shafiq é um beduíno orgulhoso. Não respeita as doenças.

— Imagino que suas fontes em Riad não nos consigam dizer em que zona do império de Zizi ele está escondido.

— Infelizmente, não. Mas sabemos que ele aí está. Se introduzires um agente na Casa de Zizi, talvez Bin Shafiq acabe por entrar pela porta das traseiras. — Introduzir um agente na casa de Zizi al-Bakari? E o que sugeres que façamos para o conseguir, Adrian? Zizi tem mais segurança do que a maior parte dos chefes de Estado.

— Nem me passaria pela cabeça interferir em questões operacionais — escusou-se Carter. — Mas garanto-te que estamos dispostos a ser pacientes e que tencionamos acompanhar a missão até o fim.

— A paciência e o acompanhamento não são exatamente virtudes americanas típicas. Vocês gostam de armar confusão e partir para o problema seguinte. Seguiu-se mais um silêncio longo, desta vez interrompido pelo bater do cachimbo de Carter na borda do cinzeiro. — O que queres, Gabriel?

— Garantias.

— No nosso ramo não há garantias, sabes disso.

— Quero tudo o que tiverem sobre Bin Shafiq e o Al-Bakari.

— Dentro dos limites do razoável — disse Carter. — Não te vou dar um monte de segredos obscuros sobre figuras importantes de Washington.

— Quero proteção — continuou Gabriel. — Quando isto acontecer, seremos os principais suspeitos. Somos sempre, mesmo quando não somos os responsáveis. Vamos precisar da sua ajuda para acalmar a tempestade.

— Apenas posso falar em nome do DO — lembrou Carter. E garanto-te que vamos estar do seu lado.

— Eliminamos Bin Shafiq onde e quando escolhermos, sem qualquer interferência de Langley.

— O presidente ficaria grato se pudessem evitar fazê-lo em território americano.

— No nosso ramo não há garantias, Adrian.

— Touché.

— Talvez custe a acreditar, mas não posso decidir sozinho. Tenho de falar com Amos e o primeiro-ministro.

— Amos e o primeiro-ministro farão o que lhes disser.

— Dentro do razoável.

— O que vai dizer?

— Que o presidente americano precisa de um favor — disse Gabriel. — E que pretendo ajudá-lo.

12

TEL MEGIDDO, ISRAEL

O primeiro-ministro autorizou a operação de Gabriel às duas e trinta da tarde seguinte. Gabriel dirigiu-se de imediato a Armagedon. Imaginou que fosse um bom local para começar.

O tempo parecia glorioso de uma forma perversa para tal ocasião: temperatura fresca, um céu de um azul pálido, uma brisa leve que lhe agitava as mangas da camisa, à medida que seguia a Estrada de Jafa. Ligou o rádio. A música lúgubre que enchera o éter nas horas que se tinham seguido ao atentado à vida de Shamron desaparecera. Um boletim noticioso surgiu de repente. O primeiro-ministro garantira fazer tudo ao seu alcance para localizar e punir os responsáveis pelo atentado contra Shamron. Não mencionou o fato de já saber quem era o responsável, nem que autorizara Gabriel a eliminá-lo.

Gabriel percorreu a Bab al-Wad em direção ao mar, ziguezagueando com impaciência por entre o tráfego mais lento, e depois acompanhou o sol que se punha para norte, ao longo da Planície Costeira. Perto de Hadera havia um alerta de segurança. Segundo o rádio, um alegado homem-bomba suicida conseguira atravessar o Muro de Separação perto de Tulkarm. Gabriel foi obrigado a aguardar na beira da estrada durante vinte minutos, antes de se encaminhar para o vale de Jezreel. A oito quilômetros de Afula, um outeiro redondo surgiu à esquerda. Em hebraico era conhecido por Tel Megiddo, ou Monte Megido. O resto do mundo o conhece como Armagedon, do Livro do Apocalipse, o palco do confronto final entre as forças do bem e do mal. A batalha ainda não começara e o estacionamento estava vazio, salvo por um trio de vans empoeiradas, sinal de que a equipe arqueológica ainda trabalhava.

Gabriel saiu do carro e subiu o caminho íngreme até o topo. O Tel Megiddo era alvo de escavações arqueológicas periódicas há mais de um século, e no alto do monte havia um labirinto de trincheiras compridas e estreitas. Tinham sido encontrados vestígios de mais de vinte cidades debaixo do solo do topo do Tel, incluindo uma que se acreditava ter sido construída pelo rei Salomão. Parou à beira de uma das trincheiras e espreitou para o fundo. Uma pequena figura de casaco de algodão creme estava de gatas, a revirar o solo com uma colher de pedreiro. Gabriel pensou na última vez que estivera acima de um homem num buraco de escavação e sentiu-se como se lhe tivessem deitado um cubo de gelo para as costas. O arqueólogo olhou para cima e fitou-o com um par de olhos castanhos inteligentes. Depois voltou a desviar a atenção para o seu trabalho.

— Tenho estado a tua espera — disse Eli Lavon. — Por que demorou tanto?

Gabriel sentou-se na terra à beira do buraco e observou Lavon a trabalhar. Conheciam-se desde a operação Setembro Negro. Eli Lavon fora um ayin, um batedor. A sua incumbência era seguir os terroristas e tomar conhecimento dos seus hábitos. Em muitos aspetos, essa missão fora ainda mais perigosa do que a de Gabriel, pois Lavon, por vezes, ficara exposto aos terroristas durante dias e semanas a fio, sem qualquer apoio. Após o desmantelamento da unidade, instalara-se em Viena e abrira um pequeno gabinete de investigação chamado Reivindicações e Inquéritos do Tempo da Guerra. Com um orçamento mínimo, conseguira localizar milhões de dólares em bens judeus pilhados e desempenhara um papel importante na obtenção de um acordo milionário com os bancos suíços. Agora, Lavon trabalhava na escavação em Meguido e dava aulas de arqueologia em tempo parcial, na Universidade Hebraica.

— O que tem aí, Eli?

— Um pedaço de cerâmica, creio. — Uma rajada de vento agitou-lhe o cabelo fino e desgrenhado e soprou-o para a testa. — E você?

— Um bilionário saudita que tenta destruir o mundo civilizado.

— Não já conseguiram? — Gabriel sorriu.

— Preciso de você, Eli. Sabe interpretar balancetes. Sabe seguir pista de dinheiro sem que ninguém note.

— Quem é o árabe?

— O presidente e CEO da Jihad Limitada.

— E esse presidente tem nome?

— Abdul Aziz al-Bakari.

— Zizi al-Bakari?

— Esse mesmo.

— Imagino que tenha algo que ver com Shamron.

— E com o Vaticano.

— Qual é a ligação de Zizi?

Gabriel contou.

— Acho que não preciso perguntar o que tenciona fazer com Bin Shafiq — disse Lavon. — O império de Zizi é enorme. Bin Shafiq pode estar trabalhando de qualquer ponto do mundo. Como vai encontrá-lo?

— Vamos introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi e esperar que Bin Shafiq apareça.

— Um agente no território de Zizi? — Lavon abanou a cabeça.

— Não se consegue.

— Consegue-se, sim.

— Como?

— Vou descobrir alguma coisa que Zizi queira — explicou Gabriel. — E depois vou dar a ele.

— Sou todo ouvidos.

Gabriel sentou-se na borda da trincheira de escavação, com as pernas dependuradas para o interior, e disse-lhe como tencionava penetrar na Jihad Limitada. Do fundo do buraco vinha o som do trabalho de Lavon — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— Quem é o agente? — perguntou a Gabriel, quando este terminou.

— Ainda não o tenho.

Lavon ficou em silêncio por um instante — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— O que queres de mim?

— Vira Zizi al-Bakari e a AAB Holdings de pernas para o ar. Quero que disseque cada empresa que ele controle. Perfis de todos os executivos de topo e dos membros da comitiva pessoal. Quero saber como cada pessoa chegou ao seu cargo e como nele tem permanecido. Quero saber mais sobre Zizi do que ele próprio.

— E o que acontece quando entrarmos em campo?

— Você também vai.

— Estou velho e cansado para coisas mais duras.

— É o maior artista de vigilância da história do Escritório, Eli. Não vou conseguir sem você.

Lavon endireitou-se e limpou as mãos na calça.

— Introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi al-Bakari? É louco. — Lançou uma colher de pedreiro a Gabriel. — Venha me ajudar. Estamos ficando sem luz.

Gabriel desceu ao buraco e ajoelhou-se ao lado do velho amigo. Juntos esgaravataram o solo antigo, até que a noite caiu sobre o vale como uma manta.

Quando chegaram ao Boulevard King Saul já passava das nove horas. Lavon saíra havia muito do Escritório, mas continuava a apresentar uma palestra ocasional na Academia e ainda tinha as credenciais para entrar no edifício sempre que quisesse. Gabriel acompanhou-o até a sala de arquivos da divisão de Pesquisa, ao que se dirigiu a um corredor sombrio dois níveis abaixo do solo. No final do corredor ficava a Sala 456C. Afixado à porta estava um letreiro de papel, onde se lia, na caligrafia hebraica de Gabriel: COMITÊ TEMPORÁRIO PARA O ESTUDO DAS AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Decidiu mantê-lo, por enquanto.

Abriu a fechadura com combinação, acendeu as luzes e entrou. A sala parecia congelada no tempo. Era conhecida por vários nomes: a Cápsula, a Choça, o Tanque. Yaakov, um durão de rosto marcado do Departamento de Assuntos Árabes de Shabak, batizara-a de Buraco do Inferno. Yossi, da Pesquisa, denominara-a a Aldeia dos Malditos, mas ele lera clássicos em Oxford e emprestava sempre ao seu trabalho um certo ar de erudição, mesmo quando os temas não o mereciam. Gabriel deteve-se junto à mesa assente em cavaletes que Dina e Rimona tinham partilhado. As constantes altercações territoriais quase tinham dado com ele em doido. A linha de separação que ele traçara no centro da mesa ainda lá estava, a par do aviso que Rimona escrevera do seu lado da fronteira: Atravessar por sua própria conta e risco. Rimona era capita da FDI e trabalhava para Ama, na espionagem militar. Era também sobrinha de Gilah Shamron. Acreditava em fronteiras defensáveis e respondera com incursões de retaliação sempre que Dina cruzara a linha. No lugar de Dina estava a pequena mensagem que ela lá deixara no último dia da operação: Que nunca mais tenhamos de aqui voltar. Que ingênua, pensou Gabriel. Ela devia saber melhor do que ninguém que provavelmente não seria assim.

Continuou a lenta digressão pela sala. Ao canto jazia a mesma pilha de equipamento informático ultrapassado que nunca ninguém se dera ao trabalho de remover. Antes de se transformar no quartel-general do Grupo Khaled, a Sala 456C não passara de uma lixeira onde se despejava mobília velha e aparelhos eletrônicos obsoletos, sendo muitas vezes utilizada pelos membros do turno da noite como local de aventuras românticas. O quadro de giz de Gabriel também ali continuava. Mal conseguia decifrar as últimas palavras que escrevera. Olhou para as paredes, cobertas de fotografias de jovens palestinos. Uma das imagens chamou-lhe a atenção, um rapaz de boina na cabeça e um kaffiyeh sobre os ombros, sentado ao colo de Yasir Arafat: Khaled al-Khalifa no funeral do pai, Sabri. Gabriel matara Sabri, e também matara Khaled.

Retirou as fotografias antigas das paredes e colocou duas novas no seu lugar. Uma delas mostrava um homem de kaffyeh, nas montanhas do Afeganistão. A outra exibia o mesmo homem, agora com um sobretudo de caxemira e chapéu, à frente da casa de um bilionário, em Paris. O Grupo Khaled era agora o Grupo Bin Shafiq.

Durante as primeiras quarenta e oito horas, Gabriel e Lavon trabalharam sozinhos. No terceiro dia chegou Yossi, um homem alto e calvo com o porte de um intelectual britânico. Rimona compareceu no quarto dia, bem como Yaakov, chegado do quartel-general de Shabak, com uma caixa cheia de material sobre os terroristas que tinham atacado o carro de Shamron. Dina foi a última a chegar. Pequena e morena, estivera na Rua Dizengoff de Tel Aviv, no dia 19 de Outubro de 1994, quando um homem-bomba suicida do Hamas transformara o ônibus número 5 num caixão para vinte e uma pessoas. A mãe e duas das suas irmãs encontravam-se entre essas vítimas. Dina ficara gravemente ferida e caminhava agora com um ligeiro coxear. Lidara com a dor tornando-se perita em terrorismo. Com efeito, Dina Sarid era capaz de recitar a data, o local e o número de vítimas de todos os atos terroristas alguma vez cometidos contra o Estado de Israel. Em tempos dissera a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles próprios. Gabriel acreditara.

Dividiram-se em duas áreas de especialidade. Ahmed bin Shafiq e a Irmandade de Alá tornaram-se propriedade de Dina, Yaakov e Rimona, enquanto Yossi se juntou à escavação de Lavon da AAB Holdings. Por enquanto, Gabriel trabalhava sozinho, pois assumira a tarefa nada invejável de tentar identificar todos os quadros alguma vez comprados ou vendidos por Zizi al-Bakari.

À medida que os dias iam passando, as paredes da Sala 456C refletiam a natureza única da operação. Numa das paredes começou a surgir o esboço sombrio de uma nova rede terrorista mortal, liderada por um homem que, em grande medida, não passava de um fantasma. Deram o seu melhor para recriar a longa viagem de Bin Shafiq através da corrente do extremismo islâmico. Ao que parecia, onde quer que tivesse havido problemas, lá estava Bin Shafiq, a distribuir dinheiro saudita do petróleo e propaganda wahhabita às mancheias: Afeganistão, Líbano, Egito, Argélia, Jordânia, Paquistão, Chechênia, Bósnia e, é claro, a Autoridade Palestina. Mas havia pistas de relevo, pois ao levar a cabo dois atentados importantes, Bin Shafiq e a Irmandade tinham deixado mais de uma dúzia de nomes que podiam ser investigados em busca de ligações e de associações. E havia também Ibrahim el-Banna, o imã egípcio mortal, e o professor Ali Massoudi, o angariador e caçador de talentos.

Na parede oposta surgiu outra rede: a AAB Holdings. Utilizando fontes públicas, e outras não tão visíveis, Lavon peneirou a custo as várias camadas do império financeiro de Zizi e reuniu as diversas peças como se fossem pedaços de um artefato antigo. No topo da estrutura encontrava-se a própria AAB. Abaixo desta estava uma rede complexa de empresas subsidiárias e de fachadas corporativas que permitiam que Zizi estendesse a sua influência a quase todos os cantos do globo, em condições de secretismo corporativo quase perfeito. Tendo quase todas as empresas registradas na Suíça e nas Ilhas Caimão, Lavon equiparou Zizi a um caça furtivo financeiro, capaz de levar a cabo ataques à sua vontade, ao mesmo tempo que evitava ser detetado pelos radares inimigos. Apesar da natureza obscura do império de Zizi, Lavon chegou à conclusão de que as contas não batiam certo.

— Zizi nunca poderia ter obtido lucros suficientes com os investimentos iniciais que justificassem as aquisições posteriores — explicou a Gabriel. — A AAB Holdings é uma fachada para a Casa de Saud. — Quanto a tentar descobrir Ahmed bin Shafiq algures no polvo financeiro de Zizi, Lavon comparou-o a tentar encontrar uma agulha no deserto da Arábia. — Não é impossível — disse —, mas provavelmente morremos de sede antes de conseguirmos.

Yossi dedicou-se ao pessoal de Zizi. Concentrou-se na relativamente pequena equipe que trabalhava no quartel-general de Genebra, a par de empresas detidas ou controladas pela AAB. A maior parte do seu tempo, no entanto, era empregue na grande comitiva pessoal de Zizi. Em breve as fotografias cobriam a parede do espaço de trabalho de Yossi, e contrastavam com as da rede de terror de Shafiq. Todos os dias chegavam imagens novas, à medida que Yossi acompanhava os movimentos frenéticos de Zizi por todo o globo. Zizi a chegar a uma reunião em Londres. Zizi em Stuttgart, durante um encontro com fabricantes de automóveis alemães. Zizi a desfrutar da vista para o mar Vermelho, a partir do seu novo hotel em Sharm el-Sheik. Zizi a conferenciar com o rei da Jordânia, sobre um possível negócio imobiliário. Zizi a inaugurar uma central de dessalinização no Yemen. Zizi a receber um prêmio humanitário de um grupo islâmico em Montreal, cuja página de Internet, frisou Yossi, continha um apelo direto à destruição do Estado de Israel.

Quanto ao canto da sala reservado a Gabriel, era um santuário, quando comparado com os reinos do terror e das finanças. A sua parede estava coberta não com os rostos de terroristas ou de executivos, mas com dezenas de fotografias de obras impressionistas francesas. Enquanto Lavon e Yossi passavam os dias a vasculhar monótonos balancetes e folhas impressas, Gabriel folheava catálogos antigos, monografias impressionistas e recortes de impressa que descreviam os feitos de Zizi na cena artística mundial. Ao fim do décimo dia, Gabriel decidira como iria introduzir um agente na Jihad Limitada. Dirigiu-se à coleção de fotografias de Yossi e fitou uma única imagem. Mostrava um inglês magro e grisalho, sentado ao lado de Zizi, seis meses antes, no leilão de Arte Moderna e Impressionista da Christies, em Nova Iorque. Gabriel retirou a fotografia e ergueu-a, para que os outros a vissem. — Este homem — disse. — Tem de desaparecer. — Depois ligou para Adrian Carter através de um número privado seguro de Langley e contou como planejava entrar na Casa de Zizi.

— Agora você só precisa de um quadro e de uma garota — concluiu Carter. — Encontre o quadro e eu consigo a garota.

Gabriel saiu um pouco mais cedo do que o habitual do Boulevard King Saul e dirigiu-se a Ein Kerem. A unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah continuava vigiada por vários guardas, mas Shamron estava sozinho quando Gabriel entrou no quarto.

— O filho pródigo decidiu me visitar — comentou, em tom amargo. — Ainda bem que somos um povo do deserto, caso contrário punham-me em cima de um bloco de gelo e me jogavam no mar.

Gabriel sentou-se ao lado da cama.

— Já vim pelo menos umas seis vezes.

— Quando?

— À noite, quando já está dormindo.

— Anda pairando sobre mim? Como Gilah e os médicos? Por que não vem durante o dia, como uma pessoa normal?

— Tenho estado ocupado.

— O primeiro-ministro não está ocupado para me visitar em horários decentes. — com o pescoço ferido imobilizado por um aparelho de plástico,

Shamron lançou um olhar rancoroso a Gabriel. — Ele contou-me que vai autorizar o Amos a encontrar alguém para as Operações Especiais, para que tu possas levar a cabo esse projeto ridículo para o Adrian Carter e para os americanos.

— Imagino que não o aprove.

— com veemência. — Shamron fechou os olhos durante longos instantes, o suficiente para Gabriel olhar nervosamente para os monitores ao lado da cama. — Azul e branco — acabou por dizer. — Fazemos as nossas coisas sozinhos. Não pedimos a ajuda de ninguém, nem ajudamos os outros com os seus problemas. E, acima de tudo, não nos oferecemos como paus-mandados do Adrian Carter. — Está nesta cama de hospital e não no Gabinete do primeiro-ministro. Isso faz com que Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq também sejam problemas meus. Além disso, o mundo mudou, Ari. Temos de trabalhar juntos, se queremos sobreviver. As regras antigas já não se aplicam.

Shamron ergueu a mão de veias salientes e apontou para o copo de plástico sobre a mesa-de-cabeceira. Gabriel levou-o aos lábios de Shamron, que bebeu a água por uma palhinha.

— Vai empreender essa missão a pedido de quem? — indagou Shamron. — Adrian Carter, ou de alguém mais acima? — Ao receber o silêncio de Gabriel, Shamron afastou, zangado, o copo de água. — Pretende me tratar como uma espécie de inválido? Ainda sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados a segurança e informações. Ainda sou... — A voz sumiu, com uma fadiga súbita.

— Ainda é o memuneh — concluiu Gabriel.

Em hebraico, memuneh significava o responsável. Durante muitos anos, esse título fora reservado a Shamron. — Não vai atrás de um garoto qualquer de Nablus, Gabriel.Seus alvos são Ahmed bin Shafiq e Zizi al-Bakari. Se alguma coisa sair mal, o mundo vai cair em cima, e de muito alto. E seu amigo Adrian Carter não estará lá para catar teus pedaços. Talvez fosse melhor falar comigo. Já fiz esse tipo de coisas uma ou duas vezes.

Gabriel espreitou para o corredor e pediu aos agentes de segurança ali destacados que garantissem que qualquer sistema de vigilância de Shamron fosse desligado. Voltou então a sentar-se na cadeira ao lado da cama e, com a boca perto do ouvido de Shamron, contou tudo. Pelo menos por um instante, o olhar de Shamron pareceu mais concentrado. Quando lhe apresentou a primeira questão, Gabriel quase foi capaz de imaginar o homem de ferro que lhe entrara na vida durante uma tarde de Setembro de 1972.

— Já se decidiu a usar uma mulher? Gabriel anuiu.

— Vai precisar de alguém cujos antecedentes aguentem o escrutínio dos seguranças de Zizi, pagos a peso de ouro. Não pode usar uma das nossas garotas, nem uma judia não israelense. Se Zizi desconfiar que está olhando para uma judia, vai afastar-se dela. Precisa de uma gentia.

— O que eu preciso — explicou Gabriel — é de uma garota americana.

— Onde vai consegui-la?

A palavra única com que Gabriel respondeu fez Shamron franzir o sobrolho. — Não gosto da ideia de sermos responsáveis por uma agente deles. E se alguma coisa der errado?

— O que poderia dar errado?

— Tudo — retorquiu Shamron. — Sabe disso melhor do que ninguém.

Shamron pareceu subitamente exausto. Gabriel baixou a luz do abajur da mesa-de-cabeceira.

— O que vai fazer? — interrogou Shamron. — Vais ler-me uma história?

— Vou fazer-lhe companhia até que adormeça.

— Gilah pode fazer isso. Vai para casa descansar. Bem vais precisar.

— Fico mais um pouco.

— Vai para casa — insistiu Shamron. — Tens uma pessoa a sua espera que está ansiosa para vê-lo.

Vinte minutos depois, quando Gabriel virou para a Rua Narkiss, viu luzes acesas no seu apartamento. Estacionou o Skoda à esquina e percorreu em silêncio o passeio escurecido até o prédio. Quando entrou no apartamento, o ar estava carregado com o aroma a baunilha. Chiara estava sentada de pernas cruzadas em cima da mesa de trabalho, banhada pela luz forte das lâmpadas de halogêneo. Observou Gabriel quando este entrou, desviando então mais uma vez o olhar para o que em tempos fora uma sala de estar meticulosamente decorada.

— Gostei do que fizeste com a casa, Gabriel. Por favor, diz-me que não te livraste da nossa cama também.

Gabriel abanou a cabeça e beijou-a.

— Quanto tempo vais ficar por cá? — perguntou Chiara.

— Tenho de partir amanhã de manhã.

— Para variar, o meu sentido de oportunidade foi perfeito. Quanto tempo vais estar ausente?

— Não te sei dizer.

— Podes levar-me contigo? Desta vez, não.

— Para onde vais?

Gabriel ergueu-a da mesa de trabalho e apagou as luzes.

13

LONDRES

— Preciso de um Van Gogh, Julian.

— Precisamos todos, meu querido.

Isherwood puxou a manga do casaco e olhou para o relógio. Eram dez da manhã. Em geral, por essa hora já se encontrava na galeria, e não a passear à beira do lago de St. Jamess Park. Fez uma breve pausa para observar uma flotilha de patos que cruzavam a água calma em direção à ilha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos ao parque, para ver se estavam a ser seguidos. Depois agarrou em Isherwood pelo cotovelo e puxou-o para a Horse Guards Road. Eram um par díspar, figuras de quadros diferentes. Gabriel trazia jeans escuros e sapatos de camurça que não emitiam qualquer ruído quando andava. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de couro, os ombros curvados para a frente e os olhos verdes saltavam, inquietos, por todo o parque. Quinze anos mais velho do que

Gabriel e vários centímetros mais alto, Isherwood vestia um fato completo cinzento com riscas brancas e um sobretudo de lã. Os caracóis grisalhos tombavam soltos sobre a gola do sobretudo e saltitavam a cada passo desajeitado. Julian Isherwood tinha algo de precário na sua atitude. Como sempre, Gabriel teve de resistir ao impulso de ajudá-lo a equilibrar-se. Conheciam-se há trinta anos. O apelido tipicamente inglês e a posição social britânica ocultavam o fato de não ser, pelo menos tecnicamente, inglês de todo. Sim, tinha nacionalidade e passaporte britânicos, mas era de ascendência alemã, fora educado na França e era judeu de religião. Apenas um punhado de amigos de confiança sabia que Isherwood chegara a Londres em 1942 na condição de criança refugiada, depois de ter sido levado através dos Pirenéus por um par de pastores bascos. Ou que o pai, o afamado negociante de arte parisiense Samuel Isakowitz, fora assassinado no campo da morte de Sobibor, juntamente com a mãe de Isherwood. Havia mais uma coisa que Isherwood ocultava dos competidores no mundo da arte londrino, bem como do resto do mundo. Segundo o léxico do Escritório, Julian Isherwood era um sayan, um ajudante judaico voluntário. Fora recrutado por Ari Shamron com um único objetivo: ajudar a construir e a manter o disfarce de um único agente muito especial.

— Como está o meu amigo Mario Delvecchio? — perguntou Isherwood. — Desapareceu sem deixar rasto — respondeu Gabriel. — Espero que a minha revelação não te tenha causado problemas.

— De todo.

— Não houve comentários nas ruas? Não fizeram perguntas embaraçosas nos leilões? Não tiveste visitas dos agentes do MI5?

— Estás a perguntar-me se as pessoas de Londres me veem como um espião israelense venenoso?

— É exatamente isso que estou a perguntar-te.

— Está tudo calmo nesta frente, mas também nunca tivemos uma relação muito visível, certo? É a tua maneira de ser. Não és visível com nada. És um dos dois ou três melhores restauradores de arte do mundo e ninguém sabe quem tu és. É uma pena.

Chegaram à esquina da Great George Street. Gabriel cortou à direita, para

Birdeage Walk.

Quem sabe acerca de nós em Londres, Julian? Quem sabe que mantinhas uma relação profissional com o Mario?

Isherwood olhou para as árvores que ladeavam o passeio.

— Muito pouca gente. Jeremy Crabbe, da Bonhams, é claro. Continua possesso por lhe teres roubado aquele Rubens. — Isherwood levou a mão comprida e ossuda ao ombro de Gabriel. — Tenho um comprador. Agora só preciso do quadro. — Apliquei-lhe o verniz ontem, antes de sair de Jerusalém — explicou Gabriel.

— Vou utilizar um dos nossos exportadores para o trazer o mais depressa possível. Deves recebê-lo no final da semana. Por sinal, deves-me cento e cinquenta mil libras. — O cheque já está no correio, meu querido.

— Quem mais? — perguntou Gabriel. — Quem mais sabe de nós? Isherwood assumiu uma expressão pensativa.

— O maldito Oliver Dimbleby — respondeu. — Lembras-te do Oliver? Apresentei-o no Greens, uma bela tarde em que nós estávamos a almoçar. Aquele negociante atarracado de King Street. Certa vez tentou comprar-me a galeria. Gabriel lembrava-se. Ainda tinha, algures, o espalhafatoso cartão de visita dourado que Oliver lhe impingira. Oliver mal olhara na sua direção. Era a sua maneira de ser.

— Ao longo dos anos fiz muitos favores ao Crabbe — notou Isherwood. — O tipo de favores dos quais não gostamos de falar, no nosso ramo. Quanto ao Oliver Dimbleby, ajudei-o a resolver uma grande trapalhada que ele fez com uma garota que trabalhava na galeria dele. Recebi a desgraçada. Dei-lhe trabalho. Ela trocou-me por outro negociante. É o que as minhas garotas fazem sempre. O que se passa comigo para afastar sempre as mulheres? Sou um alvo fácil, é o que é. As mulheres percebem isso. O teu bando também. O Herr Heller percebeu-o bem.

Herr Rudolf Heller, investidor de Zurique, era uma das identidades preferidas de Shamron. Fora nesse papel que recrutara Isherwood.

— Por sinal, como está ele?

— Enviou-te cumprimentos.

Gabriel baixou o olhar para a calçada úmida de Birdeage Walk. Do parque levantou-se um vento frio. Folhas mortas restolhavam no caminho dos dois homens.

— Preciso de um Van Gogh — repetiu Gabriel.

— Sim, eu ouvi da primeira vez. O problema é que eu não tenho um Van Gogh. Caso te tenhas esquecido, a Isherwood Fine Arts é especializada em pintores renascentistas.

Se queres impressionistas, tens de procurar noutro lado.

— Mas sabes onde posso encontrar um.

— A menos que o queiras roubar, neste momento não há nada no mercado... pelo menos que eu saiba.

— Mas isso não é verdade, certo, Julian? Tu sabes de um Van Gogh. Falaste-me sobre ele há séculos... uma história acerca de um O quadro desconhecido que o teu pai vira em Paris, entre as guerras. — Não foi só o meu pai — corrigiu Isherwood. — Também eu o vi. O Vincent pintou-o em Auvers, durante os últimos tempos de vida. Diz-se que pode ter sido a sua desgraça.

O problema o quadro não está à venda, e talvez nunca venha a estar. A família deixou-me bem claro que nunca se vai separar dele. E também fazem tenção de manter a sua existência em segredo.

— Conta-me outra vez essa história.

— Agora não posso, Gabriel. Tenho um compromisso na galeria às dez e meia. Cancela esse compromisso, Julian. Conta-me sobre o quadro.

Isherwood cruzou a ponte pedonal sobre o lago e dirigiu-se à galeria em St. Jamess. Gabriel enfiou as mãos um pouco mais fundo nos bolsos do blusão e seguiu-o.

— Alguma vez o limpaste? — perguntou Isherwood.

— Ao Vincent? Nunca.

— O que sabes sobre os seus últimos tempos de vida?

— O que toda a gente sabe, creio eu.

— Tretas, Gabriel. Não te faças de desentendido comigo. A tua cabeça é como um dicionário de arte.

— Foi no Verão de 1890, não foi?

Isherwood acenou a sua concordância professoral. — Continua, por favor. — Depois de o Vincent ter deixado o sanatório em Saint-Rémy, foi para Paris, ver o Theo e a Johanna. Visitou algumas galerias e exposições, e parou na loja de material artístico de Père Tanguy, para ver algumas telas que lá tinha guardadas. Três dias depois começou a ficar impaciente, por isso apanhou um trem para Auvers-sur-Oise, a cerca de trinta quilômetros de Paris. Pensou que Auvers seria ideal, um ambiente bucólico sossegado para o seu trabalho, mas próximo de Theo, a tábua de salvação financeira e emocional. Alugou um quarto por cima do Café Ravoux e entregou-se aos cuidados do Dr. Paul Gachet. Gabriel agarrou o braço de Isherwood e juntos aproveitaram uma brecha no trânsito e entraram na Marlborough Road. — Começou a pintar imediatamente. Tal como o espírito, o estilo estava mais calmo e discreto. A agitação e a violência que caraterizaram grande parte do seu trabalho em Saint-Rémy e em Aries desaparecera. Foi também extraordinariamente prolífico. Durante os dois meses que Vincent ficou em Auvers, produziu mais de oitenta quadros. Um quadro por dia. Às vezes dois.

Viraram para King Street. Gabriel parou de repente. Mais à frente, a bambolear-se pelo passeio na direção da entrada da casa de leilões Christies, estava Oliver

Dimbleby. Isherwood cortou de súbito para Bury Street e retomou a narrativa no ponto onde Gabriel parara.

— Quando o Vincent não estava à frente da tela, normalmente encontrava-se no quarto por cima do Café Ravoux, ou na casa de Gachet. Este era um viúvo com dois filhos, um rapaz de quinze anos e uma filha que fez vinte e um durante a estadia de Vincent em Auvers.

— Marguerite. Isherwood anuiu.

— Era uma jovem bonita, que se sentia bastante atraída pelo Vincent. Acedeu em posar para ele... infelizmente sem a autorização do pai. Pintou-a no jardim da casa da família, vestida com uma túnica branca.

— Marguerite Gachet no Jardim — disse Gabriel.

— E quando o pai descobriu, ficou furioso.

— Mas ela voltou a posar.

— Correto — asseverou Isherwood. — O segundo quadro é Marguerite Gachet ao Piano. Também surge em Vegetação com Duas Figuras, um trabalho profundamente simbólico que alguns historiadores de arte viram como uma profecia da morte do próprio Vincent. Mas acredito que sejam Vincent e Marguerite a percorrer o corredor da igreja... a premonição de casamento de Vincent.

— Mas houve um quarto quadro de Marguerite?

Marguerite Gachet ao Toucador — clarificou Isherwood. — É de longe o melhor de todos. Apenas meia dúzia de pessoas o viu, ou sequer sabe que ele existe. O Vincent pintou-o poucos dias antes de morrer. E depois a obra desapareceu.

Caminharam até Duke Street e depois entraram numa passagem estreita, que dava acesso a um pátio quadrangular de tijolo chamado Masons Yard. A galeria de Isherwood ocupava um velho armazém vitoriano num canto, entalada entre os escritórios de uma empresa de navegação grega de pouca importância e um pub cheio de bonitas empregadas de escritório que dirigiam scooters. Isherwood fez menção de cruzar o pátio para se dirigir à galeria, mas Gabriel agarrou-lhe na lapela e puxou-o na direção oposta. Enquanto atravessavam o perímetro pelo meio das sombras frias, Isherwood comentou a morte de Vincent.

— Na noite de 27 de julho, Vincent voltou ao Café Ravoux, visivelmente em sofrimento, e subiu a custo a escada até seu quarto. Madame Ravoux seguiu-o e descobriu que fora alvejado. Mandou chamar um médico. Este, é claro, era o próprio Gachet. Decidiu deixar a bala na barriga do Vincent e convocou Theo a Auvers. Quando Theo chegou, na manhã seguinte, encontrou Vincent sentado na cama, fumando cachimbo. Morreu no fim desse dia.

Chegaram a uma zona iluminada pelo sol. Isherwood protegeu os olhos com a mão comprida.

— Existem muitas perguntas sem resposta quanto ao suicídio de Vincent. Não é claro onde conseguiu a arma, nem o local exato onde se alvejou. Também existem questões sobre a motivação. Terá sido o suicídio o culminar de uma longa batalha contra a loucura? Teria ficado perturbado com uma carta que recebera de Theo, onde este sugeria que não ia poder continuar a sustentá-lo, juntamente com a sua própria mulher e filho? Será que o Vincent se matou como parte de um plano para fazer com que o seu trabalho se tornasse relevante e comercialmente viável? Nunca fiquei muito satisfeito com nenhuma destas teorias. Acredito que tenha que ver com Gachet. Mais concretamente, com a filha do Dr. Gachet.

Voltaram a mergulhar nas sombras do pátio. Isherwood baixou a mão.

— No dia antes de se ter alvejado, Vincent foi a casa de Gachet. Discutiram violentamente e Vincent ameaçou Gachet com uma arma. Qual o motivo da discussão? Mais tarde, Gachet disse que teve que ver com uma moldura, consegues imaginar? Acredito que tenha sido por causa de Marguerite. Julgo que possa ter tido que ver com o Marguerite Gachet ao Toucador. É um trabalho maravilhoso, um dos melhores retratos do Vincent. A pose e o cenário representam claramente uma noiva na noite de núpcias.

O significado não teria passado despercebido a um homem como Paul Gachet. Se viu o quadro, e não há razão para acreditar que não tivesse visto, terá ficado enraivecido. Talvez Gachet tenha dito a Vincent que o casamento com a filha estava fora de questão. Talvez tenha proibido o Vincent de voltar a pintá-la. Talvez o tenha proibido de voltar a vê-la. Apenas sabemos que Marguerite Gachet não esteve presente no funeral de Vincent, embora tenha sido vista no dia seguinte, lavada em lágrimas, a deixar girassóis na campa dele. Nunca se casou e viveu em Auvers quase como uma reclusa até que morreu, em 1949. Passaram a entrada da galeria de Isherwood e continuaram a andar.

— Depois da morte do Vincent, os quadros tornaram-se propriedade do Theo. Preparou o envio dos trabalhos que o Vincent produzira em Auvers e armazenou-os em Père Tanguy, em Paris. Claro que o Theo morreu pouco depois do Vincent, e os quadros passaram para Johanna. Nenhum outro familiar de Vincent quis algum dos seus trabalhos. O irmão de Johanna considerou-os inúteis e sugeriu que fossem queimados. — Isherwood parou. — Consegues imaginar? — Voltou a avançar com um passo largo. -Johanna catalogou o inventário e foi incansável a criar a reputação do Vincent. Deve-se a Johanna que Vincent van Gogh seja considerado um grande artista. Mas há uma omissão notória na lista de trabalhos conhecidos.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Precisamente — confirmou Isherwood. — Terá sido um acidente, ou foi intencional? Nunca saberemos, claro está, mas tenho uma teoria. Acredito que Johanna soubesse que o quadro pode ter contribuído para a morte de Vincent. Seja qual for o caso, foi vendido por tuta-e-meia, cerca de um ano após a morte de Vincent, e nunca mais foi visto. E é nesse ponto que o meu pai entra na história.

Terminaram a primeira volta ao pátio e começaram uma segunda. Isherwood reduziu o ritmo quando começou a falar sobre o pai.

— Sempre foi um berlinense de coração. Teria lá permanecido sempre. Claro que não foi possível. O meu pai viu a tempestade que se aproximava e não perdeu tempo a sair da cidade. No final de 1936 tínhamos deixado Berlim e mudado para Paris. — Olhou para Gabriel.

— É pena que o teu avô não tenha feito o mesmo. Era um grande pintor, o teu avô. Descendes de uma bela linhagem, meu rapaz.

Gabriel mudou rapidamente de assunto.

— A galeria do teu pai ficava na rue de Ia Boétie, não era?

— É claro — replicou Isherwood. — Nessa altura, a rue de la Boétie era o centro do mundo da arte. Paul Rosenberg tinha a sua galeria no número 21. O Picasso e a Olga viviam no outro lado do pátio, no número 23. Georges Wildenstein, Paul Guillaume, Josse Hessel, Étienne Bignou... estava lá ioda a gente. A Isakowitz Fine Arts ficava ao lado da galeria do Paul Rosenberg. Vivíamos num apartamento por cima das salas de exposição. Picasso era o meu "Tio Pablo". Costumava deixar-me vê-lo a pintar e a Olga dava-me chocolates até ficar maldisposto.

Isherwood permitiu-se esboçar um sorriso, que se desvaneceu rapidamente quando regressou à história do pai em Paris.

— Os alemães chegaram em Maio de 1940 e começaram a pilhar tudo. O meu pai alugou uma casa de campo em Bordeaux, no lado de Vichy da linha, e mudou para lá a maior parte de suas peças importantes. Seguimos pouco tempo depois. Os alemães entraram na zona não ocupada em 1942 e tiveram início as rusgas e as deportações. Ficamos encurralados. O meu pai pagou a dois pastores bascos para me levarem através das montanhas até Espanha. Entregou-me documentos, um inventário profissional e alguns diários. Foi a última vez que o vi. Ouviu-se uma buzina sonora em Duke Street e um esquadrão de pombos alçou voo no pátio envolto em sombras.

— Foram precisos anos até ler os diários. Num deles descobri uma entrada sobre um quadro que o meu vira certa noite em Paris, na casa de um homem chamado Isaac Weinberg.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Weinberg disse ao meu pai que tinha comprado o quadro a Johanna, pouco depois da morte do Vincent, e que o oferecera à esposa como prenda de aniversário. Ao que parece, Mrs. Weinberg era parecida com Marguerite. O meu pai perguntou ao Isaac se estaria disposto a vendê-lo, mas a resposta foi negativa. Pediu ao meu pai que não mencionasse o quadro a ninguém, e ele fez-lhe a vontade. O celular de Isherwood chilreou e ele ignorou-o.

— No início da década de setenta, pouco antes de nos conhecermos, estive em Paris, em negócios. Fiquei com algumas horas entre compromissos e decidi procurar Isaac Weinberg. Fui à morada de Marais que estava nos cadernos do meu pai, mas Weinberg já lá não se encontrava. Não tinha sobrevivido à guerra. Mas conheci o filho, Marc, e falei-lhe da entrada no diário do meu pai. De início negou a história, mas acabou por ceder e permitiu-me que visse o quadro, não sem primeiro fazer-me jurar segredo eterno. Estava no quarto da filha. Perguntei-lhe se estaria interessado em desfazer-se dele. Recusou a oferta, é claro.

— Tens certeza de que é do Vincent?

— Sem sombra de dúvida. — E nunca mais lá voltaste?

— Monsieur Weinberg deixou bem claro que a pintura nunca estaria à venda. Achei que não fazia sentido lá voltar. — Isherwood deteve-se e encarou Gabriel. — Muito bem, meu querido. Já te contei a história. Imagino que me queiras explicar o que se passa.

— Preciso desse Van Gogh, Julian.

— Para quê?

Gabriel agarrou na manga de Isherwood e levou-o até a porta da galeria. Ao lado da porta de vidro havia um painel com intercomunicador, com quatro botões e respetivas placas de identificação. Num deles lia-se ISHRR OO FINE AR S: só com MARCAÇÃO. Isherwood abriu a porta com uma chave e conduziu Gabriel por um lance de escadas coberto por carpete marrom puído. À esquerda ficava uma pequena agência de viagens melancólica. A dona, uma solteirona chamada Miss Archer, estava sentada à secretária, à frente de um cartaz com um casal de ar feliz a chapinhar na água azul. A porta de Isherwood ficava à direita. A secretária mais recente, uma criatura de ar apologético chamada Tanya, olhou-os furtivamente quando Isherwood e Gabriel entraram.

— Este é Mr. Klein — apresentou-o Isherwood. — Quer ver uma coisa lá em cima. Sem interrupções, por favor. Bonita menina, Tanya, minha querida. Entraram para um elevador do tamanho de uma cabine telefônica e subiram tão próximos um do outro que Gabriel pôde sentir o cheiro do clarete da noite anterior no hálito de Isherwood. Segundos depois, o elevador parou com um solavanco e a porta abriu-se com um gemido. A sala de exposições de Isherwood encontrava-se na obscuridade, iluminada apenas pelo sol da manhã filtrado pela claraboia. Isherwood acomodou-se no divã forrado a veludo no centro da sala, enquanto Gabriel iniciava uma pequena visita. Os quadros eram quase invisíveis nas sombras profundas, mas conhecia-os bem: uma Vênus de Luini, uma natividade de Ferino dei Vaga, um batismo de Cristo de Bordone, uma paisagem luminosa de Claude.

Isherwood abriu a boca para falar, mas Gabriel levou um dedo aos lábios e retirou do bolso o que parecia ser um vulgar celular Nokia. Era com efeito um Nokia, mas o aparelho continha várias caraterísticas adicionais que não estavam disponíveis para clientes normais, como por exemplo um sinalizador GPS e um instrumento capaz de detectar a presença de transmissores ocultos. Gabriel deu mais uma volta à sala, desta vez com os olhos na tela do telefone. Depois sentou-se ao lado de Isherwood e, em voz baixa, disse-lhe por que precisava do Van Gogh.

— Zizi al-Bakari? — perguntou Isherwood, incrédulo. — É um diabo de um terrorista? Tem certeza?

— Não é ele que coloca as bombas, Julian. Nem sequer fabrica as bombas. Mas financia as bombas e usa seu império empresarial para facilitar o movimento de homens e materiais pelo globo. Atualmente, é tão ruim quanto ser terrorista. Pior.

— Conheci-o há tempos, mas ele não se lembraria. Fui a uma festa na propriedade dele em Gloucestershire. Uma festa enorme. Um mar de gente. Zizi nunca esteve presente. Desceu no fim, como se fosse um Gatsby. Cercado por guarda-costas, mesmo dentro da casa dele. Um tipo estranho. Mas é um colecionador voraz, não é? Arte. Mulheres. Tudo o que o dinheiro possa comprar. É um rapace, pelo que ouvi dizer. Nunca fiz negócios com ele, claro está. Zizi não se sente inclinado para os Renascentistas. Prefere os Impressionistas e mais algumas coisas modernas. Os árabes são todos assim. Não gostam da imagética cristã da Renascença.

Gabriel sentou-se ao lado de Isherwood.

— Ele não tem um Van Gogh, Julian. De vez em quando dá a entender que anda à procura de um. E não de um Van Gogh qualquer. Deseja algo especial. — Pelo que ouvi dizer, é muito cuidadoso com o que compra. Gasta rios de dinheiro, mas fá-lo com prudência. Tem uma coleção digna de um museu, mas nunca me tinha apercebido de que lhe faltava um Van Gogh.

— O conselheiro de arte dele é um inglês chamado Andrew Malone. Conhece-o?

— Infelizmente, Andrew e eu nos conhecemo bem. Tem enfiado bem as mãos nos bolsos de Zizi. Passa férias no iate de Zizi. Segundo parece, é grande como um Titanic. Andrew é velhaco. E porco, também.

— Em que sentido?

— Recebe de dois lados, meu querido.

— Que quer dizer com isso, Julian?

— Andrew tem um acordo exclusivo com Zizi, o que significa que não deve receber dinheiro de outros negociantes ou colecionadores de arte. É assim que os tubarões como Zizi garantem que os conselhos que recebem não são maculados por conflitos de interesse.

— O que anda a tramar o Malone?

— Extorsão, duplas comissões, de tudo um pouco.

— Tens certeza?

— Absoluta, meu querido. Toda a gente sabe que para fazer negócio com Zizi é preciso pagar ao Andrew Malone.

De repente, Isherwood levantou-se do divã e percorreu a sala de exposições. — Então e qual é seu plano? Fazer Zizi do buraco dele com um Van Gogh? Aparecer com ele diante dos olhos dele e esperar que engula anzol, linha e boia? Mas do outro lado da linha vai estar alguma coisa, não é? Um dos seus agentes?

— Algo do gênero.

— E onde pensa fazer isso? Aqui, imagino?

Gabriel olhou para a sala com um ar de aprovação.

— Sim — respondeu. — Acho que serve perfeitamente.

— Já receava.

— Preciso de um negociante — explicou Gabriel. — Alguém bem conhecido no ramo. Alguém em que eu possa confiar.

— Trabalho com pintores renascentistas, não com impressionistas.

— Isso não interessa, com um negócio discreto como este.

Isherwood não argumentou. Sabia que Gabriel tinha razão.

— Já pensaste nas consequências para mói, se o teu esquema der resultado? vou ficar marcado. Desenrasco-me bem com fuinhas como o Oliver Dimbleby, mas o raios parta da Al-Qaeda é outra história.

— É óbvio que teremos de tomar medidas pós-operacionais para tua segurança. — Adoro os teus eufemismos, Gabriel. Sempre que a verdade é demasiado horrível, tu e Shamron recorrem a eufemismos. Vão pôr a minha cabeça a prêmio. Vou ter de acabar com o negócio e me esconder.

Gabriel pareceu insensível aos protestos de Isherwood.

— Não está ficando mais jovem, Julian. Está quase no fim da linha. Não tem filhos. Não tem herdeiros. Quem vai ficar com a galeria? Além disso, já parou para pensar na comissão que vai receber pela venda particular de um Van Gogh desconhecido? Se juntar a isso o que vai ganhar com uma liquidação total, parece que as coisas podiam ser piores, Julian.

— Estou imaginando uma casinha no Sul da França. Um nome novo. Uma equipe de agentes do Escritório a protegerem-me durante a minha velhice. — Não te esqueças de me reservar um quarto. Isherwood voltou a sentar-se.

— O teu plano tem uma falha grave, meu querido. Vai ser mais fácil apanhares esse teu terrorista do que conseguir o Van Gogh. Partindo do princípio de que ainda está nas mãos da família Weinberg, o que te leva a pensar que vão abdicar dele?

— Ninguém disse que tinham de abdicar dele.

Isherwood sorriu.

— Vou buscar o endereço.

14

MARAIS, PARIS

— Devia comer alguma coisa — disse Uzi Navot.

Gabriel abanou a cabeça. Almoçara no trem de Londres.

— Experimenta o borscht — insistiu Navot. — Não pode vir ao Jo Goldenberg sem comer borscht.

— Posso, sim — contrapôs Gabriel. — Comida roxa me deixa nervoso.

Navot chamou a atenção do empregado e pediu uma dose dupla de borscht e um copo de vinho tinto. Gabriel franziu o sobrolho e olhou pela janela. Uma chuva constante açoitava o pavimento da rue des Rosiers e quase que anoitecera. Pretendera encontrar-se com Navot noutro local que não no mais famoso restaurante do mais importante bairro judaico de Paris, mas Navot insistira no Jo Goldenberg, com base na sua crença de que o melhor lugar para esconder um pinheiro era numa floresta.

— Este sítio está a deixar-me nervoso — murmurou Gabriel. Vamos dar uma volta. — com este tempo? Nem penses. Além disso, ninguém te vai reconhecer nessa figura. Até eu mal reparei em ti quando entraste.

Gabriel olhou para o rosto fantasmagórico refletido no copo. Tinha um boné de bombazina, lentes de contato que lhe transformavam os olhos verdes em castanho e uma barbicha falsa que lhe acentuava as feições já por si estreitas. Viajara para Paris com um passaporte alemão com o nome Heinrich Kiever. Depois de chegar à Gare du Nord, passara duas horas a caminhar pelas margens do Sena, a confirmar que não estava a ser seguido. Na mochila tinha um exemplar usado de Voltaire que comprara numa bouquiniste no Quai Montebello.

Dirigiu a atenção para Navot. Era um homem entroncado, vários anos mais novo do que Gabriel, de cabelo louro curto e olhos azuis pálidos. Segundo o léxico do Escritório, era um katsa, um agente de campo infiltrado. Armado com toda uma série de línguas, um encanto velhaco e uma arrogância fatalista, penetrara em células terroristas palestinas e recrutara agentes em embaixadas árabes espalhadas pela Europa Ocidental. Tinha fontes em quase todos os serviços de espionagem e de segurança europeus e geria uma rede vasta de sayanim. Podia sempre contar com a melhor mesa da churrascaria do Ritz de Paris, pois o maître d’hôtel era um informante pago, como também o chefe das empregadas de limpeza. Vestia agora um casaco cinzento de tweed e uma camisola de gola alta preta, pois a sua identidade em Paris era a de Vincent Laffont, um escritor freelance de livros de viagens, de ascendência bretã, que passava a maior parte do tempo na estrada. Em Londres era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura empresa de software canadiana. Em Madrid era um alemão de recursos independentes que passava o tempo em cafés e em bares, e que viajava para aliviar o fardo de uma alma agitada e complexa.

Navot tirou da pasta um dossiê que colocou na mesa à frente de Gabriel.

— Aqui está a dona do teu Van Gogh — disse. — Dá uma olhada.

Gabriel levantou discretamente a capa. A fotografia mostrava uma atraente mulher de meia-idade com cabelo escuro ondulado, pele cor de azeitona e um longo nariz aquilino. Segurava um guarda-chuva aberto e descia um lance de degraus de pedra em Montmartre.

— Hannah Weinberg — informou Navot. — Quarenta e quatro anos, solteira, sem filhos. É um bom exemplo da atual demografia judaica. Filha única sem filhos. Pelo andar da carruagem, não vamos precisar de um Estado. — Navot baixou o olhar e revirou, taciturno, o prato de frango recheado com legumes. Tendia para períodos de desânimo, especialmente quando se tratava do futuro do povo judeu. — É dona de uma pequena boutique em Montmartre, na rue Lepic. Chama-se Boutique Lepic. Tirei a foto no início da tarde, quando estava a sair para almoçar. Ficamos com a impressão de que a boutique é mais um passatempo do que vocação. Dei uma vista de olhos às contas bancárias dela. O Marc Weinberg deixou à filha uma vida desafogada.

O empregado aproximou-se e colocou um prato de uma mistela roxa à frente de Gabriel, que o empurrou de imediato para o centro da mesa. Não suportava o cheiro do borscht. Navot deitou um naco de pão para dentro do caldo e mergulhou-o com a colher.

— O Weinberg era um homem interessante. Era um advogado importante, aqui em Paris. Era também um militante das recordações. Pressionou bastante o Governo para que assumisse o papel dos franceses no Holocausto. Como resultado, ganhou uma certa impopularidade em alguns círculos parisienses.

— E a filha? Qual é a cor dela?

— Euro-socialista moderada, mas na França isso não é crime. Também herdou alguma militância do pai. Está envolvida com um grupo que tenta combater o anti-semitismo. Já se encontrou com o presidente francês. Vê debaixo da fotografia.

Gabriel encontrou um recorte de uma revista francesa sobre a onda de anti-semitismo na França. A fotografia acompanhante mostrava manifestantes judaicos numa marcha sobre as pontes do Sena. À frente da coluna, com um cartaz que dizia ACABEM com o ÓDIO JÁ, seguia Hannah Weinberg.

— Alguma vez foi a Israel?

— Pelo menos quatro vezes. Shabak está a investigar para garantir que ela não esteve em Ramallah, a conspirar com os terroristas. Tenho certeza de que não vão encontrar nada. Ela é sincera, Gabriel. Uma dádiva dos deuses da inteligência.

— Preferências sexuais?

— Homens, segundo julgamos. Está envolvida com um funcionário público.

— Judeu?

— Graças a Deus.

— Esteve na casa dela?

— Entrei com a equipe neviot.

As equipes neviot eram especializadas na obtenção de informações de locais como apartamentos, escritórios e quartos de hotel. A unidade empregava alguns dos melhores arrombadores e ladrões do mundo. Mais à frente na operação, Gabriel tinha outros planos para eles isso é claro, desde que Hannah Weinberg aceitasse separar-se do seu Van Gogh.

— Viste o quadro? Navot anuiu.

— Está no quarto de quando era pequena.

— Qual era o aspeto dele?

— Queres a minha avaliação de um Van Gogh? — Navot encolheu os ombros maciços. — É um quadro bonito, de uma garota sentada a um toucador. Não tenho uma veia artística, como tu. Sou mais virado para frango estufado e uma boa história de amor no cinema. Não estás a comer a tua sopa. — Não gosto, Uzi. Eu disse-te que não gostava.

Navot pegou na colher de Gabriel e mexeu o creme picante, aclarando o tom da mistura roxa.

— Demos uma vista de olhos aos papéis dela — continuou Navot. — Revistamos os armários e as gavetas. Também deixamos umas coisas no telefone e no computador. Nestas situações, todo o cuidado é pouco. — A casa está vigiada?

Navot pareceu ficar magoado com a pergunta.

— E claro — respondeu.

— O que estão a usar como posto de escuta?

— Por enquanto, uma van. Se ela concordar em ajudar-nos, vamos precisar de algo mais permanente. Um dos rapazes da neviot já anda no bairro à procura de um apartamento adequado.

Navot afastou os restos do frango estufado e atacou o borscht de Gabriel. Apesar da sua sofisticação europeia, no fundo continuava a ser um camponês do shtetl. — Já sei no que isso vai dar — comentou, entre colheradas. — Vais à procura do mau da fira, e eu fico um ano inteiro a vigiar uma mulher. Mas sempre foi assim, não é? Ficas com a glória toda, enquanto a mão de obra de campo faz o trabalho sujo. Meu Deus, salvaste o papa. Como um simples morcomo eu pode competir com isso?

— Cala-te e come a sopa, Uzi.

Ser o favorito de Shamron tinha o seu preço. Gabriel estava habituado à inveja profissional dos colegas.

— Amanhã tenho de sair de Paris — disse Navot. — Vou estar fora apenas um dia.

— Aonde vai?

— Amos quer falar comigo. — Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Acho que tem a ver com o cargo das Operações Especiais. O cargo que tu recusaste. Fazia sentido, pensou Gabriel. Navot era um agente de campo extremamente capaz, que participara em várias operações de monta, incluindo algumas com Gabriel. — É isso que quer, Uzi? Um trabalho no Boulevard King Saul?

Navot encolheu os ombros.

— Já ando no campo há muito tempo. Bella quer se casar. É difícil ter uma vida pessoal estável quando se vive assim. Às vezes, quando acordo de manhã, não faço ideia de onde vou estar no fim do dia. Posso tomar o pequeno-almoço em Berlim, almoçar em Amsterdam e estar no Rei Saul à meia-noite, apresentando relatório ao diretor. — Navot ofereceu um sorriso cúmplice a Gabriel. — É isso que os americanos não entendem. Enfiam os agentes em caixinhas e depois os castigam quando pisam na risca. O Escritório não é assim. Nunca foi. É por isso que temos o melhor trabalho do mundo... e é por isso que os nossos serviços são muito melhores que os deles. Não saberiam o que fazer com um homem como você.

Navot perdera o interesse no borscht. Empurrou-o, para que parecesse que Gabriel o comera. Gabriel pegou no copo de vinho, mas depois reconsiderou. Doía-lhe a cabeça por causa da viagem de trem e do tempo chuvoso de Paris, e o vinho tinha um cheiro tão apelativo como diluente.

— Mas tem o seu preço nos casamentos e nas relações, não é, Gabriel? Quantos de nós são divorciados? Quantos de nós tiveram romances com garotas no campo? Pelo menos se trabalhar em Tel Aviv vou estar mais vezes em casa. Continua a ser preciso viajar muito, mas não tanto como agora. A Bella tem uma casa perto da praia, em Cesareia. Vai ser uma boa vida. — Voltou a encolher os ombros.

— Escutem só. Estou falando como se Amos tivesse me oferecido o cargo. Amos não me ofereceu nada. Até pode estar me chamando ao Boulevard King Saul para me despedir.

— Não seja ridículo. É o homem mais indicado para o cargo. Vai ser meu chefe, Uzi.

— Seu chefe? Por favor. Você não tem chefes, Gabriel. Só o velhote.

A expressão de Navot tornou-se subitamente grave. — Como está ele? Ouvi dizer que não está bem.

— Vai se recuperar — assegurou-lhe Gabriel.

Ficaram em silêncio quando o empregado se aproximou da mesa e levantou os pratos. Ao afastar-se, Gabriel devolveu o dossiê a Navot, que o voltou a guardar na pasta.

— Como vai agir com Hannah Weinberg?

— Vou pedir que ceda um quadro que vale oitenta milhões de dólares. Tenho que contar a verdade... ou pelo menos uma versão da verdade. E depois teremos de lidar com as consequências da segurança.

— E quanto à abordagem? Vai dançar um pouco, ou vai cair matando?

— Eu não danço, Uzi. Nunca tive tempo para dançar.

— Pelo menos não terá problema em convencê-la de quem é. Graças aos serviços de segurança franceses, todos em Paris conhecem seu nome e seu rosto. Quando pretende começar?

— Esta noite.

— Nesse caso, está com sorte.

Navot fitou a janela. Gabriel seguiu seu olhar e viu uma mulher de cabelo escuro descendo a rue des Rosiers, abrigada por um guarda-chuva. Levantou-se sem uma palavra e dirigiu-se à porta.

— Não se preocupe, Gabriel — resmungou Navot entre dentes. — Eu pago a conta.

No final da rua, ela virou à esquerda e desapareceu. Gabriel fez uma pausa à esquina e observou alguns ortodoxos de casaco negro a entrarem para uma sinagoga, para as orações da tarde. Depois olhou para a rue Pavée e viu a silhueta de Hannah Weinberg a entrar nas sombras. Parou à porta de um prédio de apartamentos e procurou a chave na mala. Gabriel cruzou o passeio e deteve-se a pouca distância dela, no momento em que a mulher esticava a mão para a fechadura.

— Mademoiselle Weinberg?

Virou-se e olhou-o calmamente na escuridão. Dos olhos emanava uma inteligência calma e sofisticada. Se ficou sobressaltada com a abordagem, não o mostrou.

— É Hannah Weinberg, não é?

— Em que posso ajudá-lo, Monsieur?

— Preciso da sua ajuda — disse Gabriel. — Pensei que talvez pudéssemos conversar em privado.

— Conhecemo-nos, Monsieur?

— Não — respondeu Gabriel.

— Nesse caso, como poderei ajudá-lo?

— Seria preferível discutirmos o assunto em particular, Mademoiselle.

— Não costumo ir a locais privados com desconhecidos, Monsieur. Agora, se me dá licença.

Virou-se e dirigiu outra vez a mão à fechadura.

— Tem que ver com o seu quadro, Mademoiselle Weinberg. Preciso falar com você sobre o seu Van Gogh.

Ela imobilizou-se e voltou a fitá-lo. O olhar continuava calmo.

— Lamento desapontá-lo, Monsieur, mas não tenho um Van Gogh. Se gostaria de ver algumas pinturas de Vincent, sugiro que visite o Musée d’Orsay.

Voltou a desviar o olhar.

— Marguerite Gachet ao Toucador — disse Gabriel calmamente. Foi adquirido pelo seu avô à viúva de Theo van Gogh, Johanna, e oferecido à sua avó como presente de aniversário. A sua avó tinha uma vaga semelhança com Mademoiselle Gachet.

Quando era pequena, o quadro estava no seu quarto. Devo continuar? A compostura dela desapareceu. Quando voltou a falar, após um momento de silêncio espantado, a voz denotava uma veemência inesperada.

— Como sabe do meu quadro?

— Não tenho liberdade para o revelar.

— É claro que não. — A frase foi proferida como um insulto.

— O meu pai sempre me avisou que, um dia, um negociante de arte francês ganancioso iria tentar retirar-me o quadro. Não está à venda e, se por acaso desaparecer, garanto que a Polícia vai receber a sua descrição.

— Não sou negociante de arte... e não sou francês

— Então quem é o senhor? — questionou. — E o que pretende do meu quadro?


15

MARAIS, PARIS

O patio encontrava-se vazio e escuro, iluminado apenas pelas luzes das janelas dos apartamentos mais acima. Cruzaram-no em silêncio e entraram no hall, onde um antiquado elevador de portas de grades os aguardava. Ela preferiu a escada amplas e guiou-o até o terceiro andar. No patamar viam-se duas portas imponentes de mogno. A porta à direita não tinha identificação. Hannah Weinberg abriu-a e entraram. Gabriel registrou o fato de ela ter digitado um código no teclado antes de acender as luzes. Não havia dúvida de que Hannah Weinberg era boa a guardar segredos. O apartamento era grande, com um hall de entrada formal e uma biblioteca adjacente à sala. Via-se mobília antiga coberta de brocado, cortinados grossos de veludo nas janelas, e um relógio de ouropel com as horas erradas tiquetaqueava calmamente no rebordo da lareira. O olhar profissional de Gabriel dirigiu-se de imediato aos seis quadros a óleo bastante decentes que estavam pendurados nas paredes. A decoração criava o ar de uma era passada. Gabriel não ficaria surpreendido se visse Paul Gachet a ler o jornal à luz do gás.

Hannah Weinberg tirou o casaco e desapareceu na cozinha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos à biblioteca. Volumes encadernados a couro enchiam estantes de madeira com portas de vidro. Havia mais pinturas na divisão, paisagens prosaicas, um homem a cavalo, a obrigatória batalha marítima, mas nada que sugerisse que a dona pudesse também deter um Van Gogh perdido.

Regressou à sala no momento em que Hannah Weinberg surgia da cozinha com uma garrafa de Sancerre e dois copos. Entregou-lhe a garrafa e um saca-rolhas e observou-lhe cuidadosamente as mãos enquanto puxava a rolha. Não era tão atraente como parecera na fotografia de Uzi Navot. Talvez se devesse à luz parisiense, ou talvez praticamente qualquer mulher parecesse atraente a descer um lance de escadas em Montmartre. A saia de lã pregueada e a camisola pesada ocultavam o que Gabriel imaginava ser uma figura roliça. As sobrancelhas eram muito largas e emprestavam-lhe um ar de profunda seriedade ao rosto. Sentada como estava naquele momento, cercada pelas peças datadas da sala, parecia ter muito mais de quarenta e quatro anos de idade.

— Surpreende-me vê-lo em Paris, Monsieur Allon. Da última vez que li o seu nome no jornal, ainda era procurado para ser interrogado pela Polícia francesa. — Receio que ainda seja o caso.

— Mesmo assim, veio à França... só para falar comigo? Deve ser muito importante.

— É verdade, Mademoiselle Weinberg.

Gabriel serviu dois copos de vinho, entregou-lhe um e ergueu o outro num brinde silencioso. Ela imitou-o, ao que levou o copo aos lábios.

— Tem noção do que aconteceu aqui em Marais depois do atentado? — Hannah Weinberg respondeu à sua própria questão. — As coisas ficaram muito tensas. Dizia-se que tinha sido levado a cabo por Israel. Todos acreditavam que era verdade e, infelizmente, o Governo francês demorou muito tempo a lidar com a situação, mesmo depois de saberem que era mentira. Os nossos filhos foram agredidos nas ruas. Atiraram pedras às janelas e às vitrines. Escreveram coisas terríveis nas paredes de Marais e de outros bairros judeus. Sofremos bastante devido ao que aconteceu naquela estação ferroviária. — Lançou-lhe um olhar perscrutador, como se tentasse avaliar se fora mesmo aquele homem que vira nos jornais e na televisão. — Mas também sofreu, não foi? É verdade que a sua mulher esteve envolvida?

O tom direto da pergunta surpreendeu Gabriel. O seu primeiro instinto foi mentir, ocultar, levar mais uma vez a conversa para outro terreno. Mas tratava-se de um recrutamento — e Shamron dizia sempre que um recrutamento perfeito é, em essência, uma sedução perfeita.

E quando se estava a seduzir, obrigou-se Gabriel a recordar-se, era preciso revelar algo pessoal.

— Raptaram a minha esposa para me atraírem para a Gare de Lyon explicou. — Pretendiam matar-nos a ambos, mas também queriam desacreditar Israel e tornar a vida insuportável para os judeus da França.

— E conseguiram... pelo menos durante algum tempo. Não me interprete mal, Monsieur Allon, a situação continua difícil para nós. Apenas não tão má como nos dias que se seguiram ao atentado. — Bebeu mais um pouco de vinho, depois cruzou as pernas e alisou as pregas da saia. — Isto pode soar tolo, quando pensamos para quem trabalha, mas como descobriu o meu Van Gogh? Gabriel ficou em silêncio por um instante e depois respondeu-lhe com sinceridade. A menção da visita de Isherwood àquele apartamento havia mais de trinta anos fez com que esboçasse um vago sorriso de recordação. — Acho que me lembro dele — disse. — Um homem alto, muito elegante, cheio de charme e de graciosidade, mas, ao mesmo tempo, um tanto ou quanto vulnerável.

— Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Tal como o senhor.

— Charme e graciosidade são qualidades que raramente me atribuem. — E vulnerabilidade? — Ofereceu-lhe mais um sorriso breve, que lhe aliviou a seriedade do rosto. — Todos nós somos vulneráveis até certo ponto, não é verdade? Até mesmo alguém como o senhor? Os terroristas descobriram o seu ponto fraco e exploraram-no. É o que fazem de melhor. Exploram a nossa decência.

O nosso respeito pela vida. Atacam o que nos é mais caro. Navot tinha razão, pensou Gabriel. Ela era uma dádiva dos deuses da inteligência. Pousou o copo sobre a mesa de centro. Os olhos de Hannah seguiram os movimentos.

— O que aconteceu a esse homem, Samuel Isakowitz? — perguntou Hannah. — Conseguiu se salvar?

Gabriel abanou a cabeça.

— Ele e a mulher foram capturados em Bordeaux, quando os alemães se deslocaram para o sul.

— Para onde foram enviados?

— Sobibor.

Sabia o que isso significava. Gabriel não precisava dizer mais nada.

— E seu avô? — perguntou ele.

Hannah olhou para o Sancerre por um momento, antes de responder.

— Jeudi Noir — disse. — Conhece o termo?

Gabriel aquiesceu com solenidade. Jeudi Noir. Quinta-Feira Negra. — Na manhã do dia 16 de Julho de 1942, quatro mil agentes da Polícia francesa invadiram Marais e outros bairros judeus de Paris, com ordens para deter vinte e sete mil judeus imigrantes da Alemanha, da Áustria, da Polônia, da União Soviética e da Checoslováquia. Meu pai e os meus avós estavam na lista. Sabe, os meus avós eram de Lublin, na Polónia. Os dois polícias que bateram à porta deste apartamento tiveram pena do meu pai e disseram-lhe que fugisse. Uma família católica que vivia no andar de baixo acolheu-o e aí ficou até a libertação. Os meus avós não tiveram a mesma sorte. Foram enviados para o campo de detenção de Drancy. Cinco dias depois, partiram num vagão selado para

Auschwitz. É claro que foi o seu fim.

— E o Van Gogh?

— Não houve tempo para tomar providências, e não havia ninguém em Paris em quem o meu avô pudesse confiar. Estávamos em guerra, sabe. As pessoas traíam-se por meias e por cigarros. Quando ouviu dizer que estavam a prender os judeus, retirou a pintura do esticador e escondeu-a por baixo de uma tábua do soalho da biblioteca. Depois da guerra passaram-se anos até que o meu pai conseguisse recuperar o apartamento. Uma família francesa tinha-se mudado para cá depois de os meus avós terem sido presos, e não estavam dispostos a abdicar de um bom apartamento na rue Pavée. Não se podia censurá-los.

— Em que ano o seu pai recuperou a posse da casa?

— Em 1952.

— Dez anos — disse Gabriel. — E o Van Gogh ainda lá estava?

— Tal como o meu avô o deixara, escondido debaixo do soalho da biblioteca.

— Espantoso.

— Sim — concordou. — O quadro está na família Weinberg há mais de um século, atravessou a guerra e o Holocausto. E agora está a pedir-me para abrir mão dele.

— Não quero que abra mão da pintura — asseverou Gabriel.

— Então de que se trata?

— Apenas preciso de... — Fez uma pausa, em busca da palavra correta. — Preciso alugá-lo.

— Alugar? Durante quanto tempo?

— Não lhe sei dizer. Talvez um mês. Talvez seis meses. Talvez um ano, ou mais. — com que objetivo?

Gabriel não estava preparado para responder. Pegou a rolha e usou a unha do polegar para arrancar uma lasca.

— Sabe quanto vale aquele quadro? — indagou Hannah. — Se está pedindo que o ceda, mesmo que por pouco tempo, creio que tenho o direito de saber o motivo.

— É verdade — concordou Gabriel —, mas também deve saber que se lhe contar a verdade sua vida nunca mais será a mesma.

Hannah serviu-se de mais vinho e segurou o copo de encontro ao corpo por um momento, sem o beber.

— Há dois anos, houve um ataque particularmente violento aqui em Marais. Um menino ortodoxo foi emboscado por um bando de norte-africanos, quando ia para casa. Pegaram-lhe fogo ao cabelo e gravaram-lhe uma suástica na testa. Ainda tem a cicatriz. Organizamos uma manifestação com o objetivo de pressionar o Governo francês a fazer alguma coisa quanto ao antissemitismo. Quando nos manifestávamos na place de la Republique, houve uma contramanifestação anti-israelense. Sabe o que eles nos gritavam?

— Morte aos judeus.

— E sabe o que disse o presidente francês?

— Não há antissemitismo na França.

— Desde esse dia, a minha vida nunca mais foi a mesma. Além disso, como já deve ter percebido, sei guardar um segredo. Diga-me para que quer o meu Van Gogh, Monsieur Allon. Talvez possamos chegar a um acordo.

A van de vigilância neviot estava estacionada junto ao Parc Royal. Uzi Navot bateu duas vezes com os nós dos dedos no vidro traseiro espelhado e a porta foi-lhe aberta de imediato. Um agente neviot estava sentado ao volante. O outro estava nas traseiras, curvado sobre uma consola eletrônica com um par de fones nos ouvidos. — O que há? — perguntou Navot.

— Gabriel já a conquistou — respondeu o neviot. — E agora vai cair matando.

Navot colocou os fones e ouviu Gabriel contar a Hannah Weinberg a forma como usaria o Van Gogh para localizar o homem mais perigoso do mundo. A chave estava guardada na gaveta de cima da secretária da biblioteca. Hannah utilizou-a para destrancar a porta ao fundo do corredor escuro. A divisão atrás da porta era um quarto de criança. O quarto de Hannah imobilizado no tempo, pensou Gabriel. Uma cama de dossel com pálio de renda. Prateleiras repletas de animais de pelúcia e brinquedos. Um poster de um ator americano charmoso. E, pendurado sobre uma cômoda provençal francesa, envolto nas sombras profundas, um quadro perdido de Vincent van Gogh.

Gabriel avançou lentamente e deteve-se à frente dele, a mão direita no queixo, a cabeça um pouco inclinada. Depois estendeu a mão e tocou de leve nas pinceladas sumptuosas. Eram de Vincent — Gabriel tinha certeza. Vincent em chamas. Vincent apaixonado. O restaurador avaliou calmamente o alvo. O quadro parecia nunca ter sido limpo. Estava coberto por uma leve camada de sujidade e apresentava três rachas horizontais — resultado, imaginou Gabriel, de ter sido enrolado com demasiada força por Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. — Imagino que devamos falar sobre o dinheiro — comentou Hannah. — Quanto pensa o Julian que vai render?

— À volta de oitenta milhões. Permiti que retirasse uma comissão de dez por cento, como compensação pelo papel na operação. O restante dinheiro será de imediato transferido para si.

— Setenta e dois milhões de dólares?

— Mais milhão, menos milhão, é claro. E quando a operação terminar?

— Recupero o quadro. — Como pretende fazê-lo?

— Deixe isso comigo, Mademoiselle Weinberg.

— E o que acontece aos setenta e dois milhões, quando me devolver o quadro? Mais milhão, menos milhão, é claro.

— Pode ficar com os juros acumulados. Para além disso, vou pagar-lhe uma taxa de aluguer. O que acha de cinco milhões de dólares?

Hannah sorriu.

— Parece-me bem, mas não pretendo ficar com o dinheiro para mim. Não quero o dinheiro deles.

— Nesse caso, o que tenciona fazer? Hannah explicou-lhe.

— Parece-me muito bem — replicou Gabriel. — Negócio fechado, Mademoiselle Weinberg?

— Sim — assentiu ela. — Negócio fechado.

Depois de sair do apartamento de Hannah Weinberg, Gabriel dirigiu-se a uma casa de segurança do Escritório, perto do Bois de Boulogne. Vigiaram-na durante três dias. Gabriel apenas a viu nas fotografias de vigilância e só ouviu a sua voz nas gravações. Todas as noites as escutava, em busca de sinais de traição, ou de indiscrição, mas apenas encontrou fidelidade. Na véspera do dia em que deveria entregar o quadro, ouviu-a a chorar baixinho e percebeu que se despedia de Marguerite.

Na manhã seguinte, Navot trouxe o quadro, enrolado numa manta velha que viera do apartamento de Hannah. Gabriel chegou a pensar em enviá-lo para Tel Aviv através de um correio, mas acabou por decidir ser ele próprio a levá-lo da França. Retirou-o da moldura e depois soltou a tela da armação. Quando a enrolou cuidadosamente, pensou em Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. Agora, em vez de escondida por baixo do soalho, estava oculta em segurança por baixo do forro falso da mala de Gabriel. Navot levou-a à Gare du Nord. Um agente da Estação de Londres estará à espera em Waterloo — disse Navot. — Ele o leva a Heathrow. El Al está à espera. Vão garantir que não tenha problema com a bagagem.

— Obrigado, Uzi. Não demora e vai deixar de me fazer preparativos para as viagens.

— Eu não teria assim tanta certeza.

— As coisas não correram bem com Amos?

— Ele é muito fechado.

— O que disse ele?

— Disse que precisava de uns dias para pensar.

— Não estava esperava que ele te oferecesse o cargo de mão beijada, certo?

— Nem sei o que esperava.

— Não se preocupe, Uzi. Vai ficar com o cargo.

Navot parou no acostamento, a um quarteirão da estação.

— Pode dar uma palavrinha por mim na King Saul, Gabriel? Amos gosta de você.

— O que leva você a dizer isso?

— É fácil de ver — explicou-lhe. — Todos gostam de você.

Gabriel saiu do carro, retirou a mala do banco traseiro e desapareceu no interior da estação. Navot esperou na beira até cinco minutos depois da hora da partida de Gabriel. Depois arrancou para o meio do trânsito e afastou-se.

Quando Gabriel chegou, o apartamento estava às escuras. Acendeu uma lâmpada e ficou aliviado ao ver o estúdio intato. Entrou no quarto e viu Chiara sentada na cama. Lavara o cabelo e o prendera com um elástico de veludo. Gabriel retirou-o e desabotoou sua camisola. Enquanto faziam amor, o quadro ficou a seu lado.

— Sabe — comentou Chiara —, a maior parte dos homens volta de Paris com um lenço Hermès e um perfume.

À meia-noite, o telefone tocou. Gabriel atendeu antes do segundo toque. — Estarei lá amanhã — disse, após um momento, e desligou.

— Quem era? — perguntou Chiara. — Adrian Carter.

— O que ele queria?

— Quer que vá imediatamente para Washington.

— O que há em Washington?

— Uma garota — explicou Gabriel. — Carter encontrou a garota.

16

MCLEAN, VIRGÍNIA

— Como foi o voo?

— Nunca mais acabava.

— São as correntes de jato do outono — explicou Carter, com um certo pedantismo. — Atrasa pelo menos duas horas os voos da Europa para a América.

— Israel não fica na Europa, Adrian. Israel fica no Oriente Médio.

— Sério?

— Pergunte a seu diretor de informações. Ele esclarece a confusão.

Carter lançou um olhar de desdém a Gabriel, ao que devolveu a atenção à estrada. Dirigiam-se a Washington no Volvo amolgado de Carter, através da Dulles Access Road. Carter vestia um casaco de bombazina com remendos nos cotovelos, o que reforçava a imagem acadêmica. Só lhe faltava o saco de lona para os livros e a caneca personalizada. Conduzia bem abaixo do limite de velocidade e olhava com frequência para o espelho retrovisor.

— Estamos a ser seguidos? — perguntou Gabriel.

— Polícia de trânsito — explicou Carter. — São fanáticos, nesta estrada. Algum problema com o controle do passaporte?

— Nenhum — respondeu Gabriel. — Por acaso, pareciam muito contentes por me verem.

Era algo que Gabriel nunca compreendera em relação à América

— a cordialidade dos agentes de fronteira. Sempre vira algo de reconfortante no mau humor enfadado dos israelenses que carimbavam passaportes no Aeroporto Ben-Gurion. Os funcionários aduaneiros americanos eram demasiado cordiais. Olhou pela janela. Tinham deixado a Dulles Access Road e seguiam agora por McLean. Apenas estivera uma vez na Virgínia, para uma visita breve a uma casa de segurança da CIA, nas profundezas da terra dos cavalos, perto de Middleburg. Considerou McLean o típico subúrbio americano, limpo e próspero, mas com uma certa falta de vida. Atravessaram o bairro comercial da baixa e depois entraram numa secção residencial com grandes casas que pareciam saídas de um panfleto imobiliário. Os empreendimentos tinham nomes como Merrywood e Colonial Estates. Um sinal rodoviário flutuou na sua direção: CENTRO DE INFORMAÇÃO GEORGE BUSH.

— Não vais levar-me à sede, certo?

— É claro que não — garantiu Carter. — Vamos para o Bairro.

Gabriel sabia que o Bairro era a forma como os habitantes de Washington se referiam à pequena aldeia no Potomac. Cruzaram um viaduto sobre a autoestrada e entraram numa zona de encostas e matas densas. Por entre as árvores, Gabriel avistou casas imponentes em frentes ao rio.

— Como se chama?

— Sarah Bancroft — respondeu Carter. — O pai era executivo da divisão internacional do Citibank. Cresceu quase sempre na Europa. Ao contrário da maioria dos americanos, sente-se confortável no estrangeiro. Fala algumas línguas estrangeiras. Sabe usar os talheres na altura correta.

— Estudos?

— Regressou à América para fazer o curso superior. Licenciou-se em História da Arte em Dartmouth, e depois estudou no Courtauld Institute of Art, em Londres. Imagino que conheças o Courtauld?

Gabriel anuiu. Era uma das mais prestigiadas escolas de arte do mundo. Nele tinham-se formado nomes como um certo negociante de arte de St. James chamado Julian Isherwood.

— Depois do Courtauld, fez um doutorado em Harvard prosseguiu Carter. — Agora é conservadora do Phillips Colletion, em Washington. É um pequeno museu, perto de...

— Eu conheço o Phillips Colletion, Adrian.

— Desculpe — lamentou-se Adrian, sinceramente. Um veado surgiu de entre as árvores e cruzou-se no caminho do carro. Adrian levantou o pé do acelerador e observou o animal a desaparecer em silêncio na mata escura.

— Como ficaram sabendo dela? — perguntou Gabriel, mas Carter não respondeu. Estava inclinado sobre o volante, a perscrutar as árvores ao longo da estrada, à procura demais veados.

— Quando aparece um — explicou —, normalmente há mais.

— Como os terroristas — comentou Gabriel. Repetiu a pergunta.

— Ela candidatou-se aos nossos serviços poucos meses depois do onze de Setembro — explicou Carter. — Tinha acabado o doutorado. Parecia interessante na ficha, por isso a chamamos e entregamos aos psiquiatras do RH. Interrogaram-na e não gostaram do que viram. Independente demais, foi o que disseram. Talvez até um pouco inteligente demais para seu próprio bem. Quando a recusamos, foi parar no Phillips. — Estás a oferecer-me uma das suas rejeitadas?

— Não é um termo que se aplique a Sarah Bancroft. — Carter retirou uma fotografia do bolso do casaco, que entregou a Gabriel. Sarah Bancroft era uma mulher extremamente bonita, de cabelo louro à altura dos ombros, maçãs do rosto largas e olhos grandes da cor de um céu límpido de Verão.

— Idade?

— Trinta e um.

— Por que não é casada?

Carter hesitou por um momento.

— Por que não é casada, Adrian?

— Teve um namorado em Harvard, um jovem advogado chamado Ben Callahan. As coisas acabaram mal.

— O que aconteceu com Ben?

— Pegou um avião para Los Angeles no Logan Airport na manhã do 11 de setembro de 2001.

Gabriel estendeu a fotografia a Carter.

— Zizi não vai contratar alguém que tenha sido afetado pelo Onze de Setembro. Trouxe-me aqui para nada, Adrian.

Carter manteve as mãos no volante.

— Ben Callahan era um namorado de escola, não era um marido. Além disso, Sarah nunca fala sobre ele com ninguém. Quase tivemos de arrancar essa informação. Ela receava que a morte do Ben a perseguisse para o resto da vida, que as pessoas a tratassem como se fosse uma viúva aos vinte e seis anos. Ela não fala no assunto. Esta semana demos por aí uma olhada. Ninguém sabe.

— Os cães de guarda de Zizi vão fazer mais do que dar uma vista de olhos, Adrian. E se lhes der o cheiro do onze de Setembro, ele vai fugir dela a sete pés. — Por falar em Zizi, a casa dele é já ali à frente.

Carter reduziu para fazer uma curva. Um enorme portão de segurança em ferro e tijolo surgiu-lhes à esquerda. Por detrás do portão, um extenso caminho de acesso alcatroado subia até uma imponente mansão em frente ao rio. Gabriel desviou o olhar quando passaram pela propriedade.

— Zizi nunca vai ficar a saber do Ben — garantiu Carter. — Estás disposto a apostar a vida da Sarah quanto a isso?

— Fala com ela, Gabriel. Dá-me a tua opinião. -Já sei qual é a minha opinião.

Ela é perfeita.

— Então qual é o problema?

— Se cometermos um erro que seja, Zizi vai dar cabo dela. É esse o problema, Adrian.

A rapidez com que chegaram ao centro de Washington surpreendeu Gabriel. Num momento estavam numa estrada rural de duas vias, no extremo do vale do Potomac, e no outro arrastavam-se pela Q Street, no meio da hora de ponta de Georgetown. Assumindo o papel de guia turístico, Carter disse as casas dos residentes mais conhecidos do bairro. Com a cabeça encostada ao vidro, Gabriel nem sequer era capaz de reunir energias para fingir estar interessado. Atravessaram uma ponte curta, guardada em cada extremidade por um par de enormes búfalos manchados, e entraram na zona diplomática da cidade. Logo a seguir à Massachusetts Avenue, Carter apontou para uma estrutura atorreada de tijolo, do lado esquerdo da rua.

— Aquele é o Phillips — disse Adrian, prestativo. Gabriel olhou para a direita e viu uma versão em bronze de Mohandas Gandhi a caminhar num parque triangular minúsculo. Porquê Gandhi? interrogou-se. O que teriam os ideais do Mahatma que ver com aquele centro de poder americano?

Carter percorreu mais um quarteirão e estacionou na zona diplomática reservada à frente de uma embaixada latino-americana de aspeto banal. Deixou o motor ligado e não deu indicação de pretender sair do carro.

— Esta zona da cidade chama-se Dupont Circle — explicou, ainda à laia de guia turístico. — É o que pretende ser a vanguarda de Washington.

Um agente da Divisão Uniformizada do Serviço Secreto bateu ao vidro de Carter e fez-lhe sinal para seguir viagem. Sempre a olhar em frente, Carter encostou a identificação ao vidro e o agente regressou ao carro patrulha. Momentos depois, algo no espelho retrovisor chamou a atenção de Carter.

— Aí vem ela — disse.

Gabriel olhou pela janela quando Sarah Bancroft passou por eles, vestindo um sobretudo comprido de cintura estreita. Tinha uma pasta de pele numa mão e um celular na outra. Gabriel ouviu-lhe a voz quando ela passou. Grave, sofisticada, um toque de pronúncia inglesa — remanescente, sem dúvida, do tempo passado em Courtauld, e de uma infância vivida em escolas internacionais no estrangeiro.

— O que acha? — perguntou Carter.

— Já te digo.

Chegou à esquina da Q Street com a 20th Street. Na esquina oposta ficava uma praça repleta de vendedores ambulantes e com um par de escadas rolantes que davam na estação de metrô de Dupont Circle. O semáforo de Sarah estava vermelho. Sem parar, desceu do passeio e começou a atravessar a estrada. Quando um taxista buzinou em protesto, ela lançou-lhe um olhar capaz de derreter gelo e prosseguiu com a conversa. Depois cruzou lentamente o passeio e entrou na escada rolante descendente. Com admiração, Gabriel observou-a a desaparecer de vista.

— Tem mais alguma como ela?

Carter tirou um celular do bolso e marcou um número.

— Vamos embora — disse. Momentos depois, uma grande Suburban preta contornou a esquina e estacionou ilegalmente na Q Street, em frente às escadas rolantes. Cinco minutos mais tarde, Gabriel voltou a vê-la, desta vez a surgir lentamente das profundezas da estação de metro. Já não estava a falar ao telefone, nem se encontrava sozinha. Era acompanhada por dois agentes de Carter, um homem e uma mulher, um em cada braço, para o caso de ela mudar repentinamente de ideias. A porta traseira da Suburban abriu-se e Sarah Bancroft desapareceu. Carter ligou o motor e regressou a Georgetown.

17

 

GEORGETOWN

A Suburban preta deteve-se quinze minutos mais tarde à porta de uma casa de estilo federal em N Street. Quando Sarah subiu os degraus curvos de tijolo, a porta abriu-se de repente e uma figura surgiu nas sombras do pórtico. Vestia calça caqui e jaqueta com remendos nos cotovelos. O olhar denotava um curioso distanciamento clínico que lembrou a Sarah o terapeuta que consultara após a morte de Ben.

— Chamo-me Carter — apresentou-se, como se disso se tivesse lembrado de súbito. Não disse se era o nome próprio ou o apelido, apenas que era verdadeiro. — Já não uso nomes esquisitos — explicou. — Agora pertenço à Sede.

Sorriu. Era um sorriso artificial, como o foi o breve aperto de mão. Convidou-a a entrar e, mais uma vez, conseguiu transmitir a ideia de uma inspiração súbita.

— E você é a Sarah — informou-a, enquanto a guiava pelo vasto salão central. — Sarah Bancroft, conservadora do conceituado Phillips Colletion. Sarah Bancroft, que num ato de coragem nos ofereceu os seus serviços depois do onze de Setembro, mas que foi recusada e a quem lhe disseram que não fazia falta.

Como vai o seu pai?

Sarah ficou surpreendida com a repentina mudança de assunto.

— Conhece o meu pai?

— Nunca nos encontramos. Trabalha para a Citicorp, não é?

— Sabe muito bem para quem ele trabalha. Por que me pergunta?

Por onde anda ele? Londres? Bruxelas? Hong Kong? Paris — respondeu. — É a última comissão. Vai reformar-se para o ano que vem.

— E depois volta para casa? Sarah abanou a cabeça.

— Vai ficar em Paris. Com a nova mulher. Os meus pais divorciaram-se há dois anos. Ele voltou a casar-se de imediato. Para ele, tempo é dinheiro.

— E a sua mãe? Onde está ela?

— Em Manhattan.

— Costuma ver o seu pai?

— Festas. Casamentos. O típico almoço constrangedor, sempre que ele vem à América. O divórcio dos meus pais foi mau. Todos tomaram partidos, incluindo os filhos. Por que está a fazer-me essas perguntas? O que pretende de...

— Acredita nisso? — atalhou Carter.

— Acredito no quê? — Em tomar partidos.

— Acho que depende das circunstâncias. Isto faz parte dos testes? Pensei que tivesse chumbado nos testes.

— E chumbou — garantiu Carter. — Redondamente. Entraram na sala. Estava mobilada com a elegância formal mas anônima normalmente reservada às suítes dos hotéis. Carter ajudou-a a despir o casaco e convidou-a a sentar-se.

— Nesse caso, por que voltei?

— Este é um mundo fluido, Sarah. As coisas mudam. Diga-me uma coisa, em que circunstâncias julga que é correto tomar partidos?

— Nunca pensei muito no assunto.

— Claro que pensou — contrapôs Carter e, pela segunda vez, Sarah viu o terapeuta, sentado no cadeirão de motivos florais, com a caneca de cerâmica equilibrada no joelho, levando-a a visitar locais onde ela preferia não entrar. — Vamos, Sarah — dizia Carter. — Dê-me um exemplo em que acredite que se deve tomar partidos.

— Acredito no bem e no mal — respondeu, erguendo um pouco o queixo. — O que talvez sirva para explicar o motivo por que chumbei nos testes. O seu mundo é em tons de cinzento. Em geral, vejo as coisas a preto e branco.

— Foi isso que o seu pai lhe disse? era Ben quem a acusava dessa falha.

— Qual o objetivo disto? — perguntou. — Por que estou aqui? Mas Carter continuava a analisar as implicações da última resposta.

— E quanto aos terroristas? — perguntou, e Sarah ficou mais uma vez com a impressão de que o homem acabara de pensar na questão. — É sobre isso que me questiono. Como eles se encaixam no mundo do bem e do mal da Sarah Bancroft? Serão maus, ou será que a sua causa é legítima? Seremos vítimas inocentes, ou será que fomos nós que provocamos esta calamidade? Devemos ficar sentados e aguentar, ou teremos o direito de lhes resistir com toda a nossa força e raiva?

— Sou conservadora-assistente do Phillips Colletion — disse-lhe.

— Quer mesmo que teça considerações sobre a moral do contraterrorismo?

— Nesse caso, vamos restringir a nossa questão. Sempre me pareceu útil fazê-lo. Vejamos como exemplo o homem que levou o avião do Ben contra o World Trade Center. — Carter fez uma pausa. — Recorde-me, Sarah, em que avião estava Ben?

— Sabe muito bem em que avião ele estava — retorquiu. — No Voo 175 da United.

— Que era pilotado por...

— Marwan al-Shehhi.

— Imaginemos por um momento que Marwan al-Shehhi conseguiu sobreviver. Eu sei que é uma loucura, Sarah, mas acompanhe meu raciocínio. Imagine que ele conseguiu voltar ao Afeganistão ou ao Paquistão ou a qualquer outro santuário terrorista. Imagine que sabíamos quem era. Deveríamos enviar o FBI com um mandado de captura, ou deveríamos tratar dele de modo mais eficaz? Homens de negro? Forças especiais? Um míssil Hellfire lançado de um drone?

— Creio que sabe o que faria.

— Imagine que desejo ouvi-lo de sua boca, antes de continuarmos.

— Os terroristas declararam guerra — acusou Sarah. — Atacaram nossas cidades, mataram os nossos cidadãos e tentaram prejudicar a estabilidade do nosso governo.

— Nesse caso, o que deveríamos fazer?

— Deviam ser enfrentados com dureza.

— E o que significa isso?

— Homens de negro. Forças especiais. Um míssil Hellfire lançado de um drone.

— E quanto ao homem que lhes dê dinheiro? Será igualmente culpado? E, se assim for, até que ponto?

— Talvez dependa de ele saber para que serve esse dinheiro.

— E se ele soubesse muito bem para que serve esse dinheiro?

— Nesse caso, é tão culpado como o homem que jogou o avião na torre.

— Estaria confortável, ou mesmo justificada, em agir contra tal indivíduo?

— Ofereci ajuda há cinco anos — acusou, com um tom de desprezo. — Disseram que não era adequada para este tipo de trabalho. E agora querem minha ajuda?

Carter não pareceu abalado com o protesto. Sarah sentiu uma empatia súbita pela mulher daquele homem.

— Ofereceu ajuda e nós a tratamos de uma forma miserável. Receio que sejamos muito bons nisso. Queria poder dizer o quanto estávamos errados. Talvez pudesse confortá-la com um pedido de desculpas falso. Mas sinceramente, Miss Bancroft, não há tempo. — A voz apresentava agora um tom que até então estava ausente. — Assim sendo, acho que preciso de uma resposta direta. Ainda quer ajudar? Quer combater os terroristas, ou prefere voltar a sua vida e esperar que não volte a acontecer?

— Combater? — indagou Sarah. — Certamente há pessoas mais indicadas para isso.

— Há muitas formas de combate, Sarah.

A jovem hesitou. Carter acentuou o silêncio repentino com uma observação prolongada das próprias mãos. Não era o tipo de homem que repetia perguntas. Nesse aspeto, era muito parecido com o pai dela.

— Sim — acabou por dizer. — Quero.

— E se para isso tivesse de trabalhar com uma agência de espionagem que não a CIA? — perguntou Carter, como se debatesse uma teoria abstrata. — Uma agência bastante próxima de nós na luta contra o terrorismo islâmico? — E qual seria essa agência?

Carter era bom a esquivar-se a perguntas e voltou a prová-lo.

— Gostaria que conhecesse uma pessoa. É um homem sério. Uma espécie de diamante em bruto. Vai colocar-lhe algumas questões. Na verdade, vai interrogá-la durante algumas horas. Por vezes talvez se torne um pouco pessoal. Se gostar do que vir, vai pedir-lhe que nos ajude num empreendimento muito importante. Não é isento de riscos, mas é essencial para a segurança dos Estados Unidos, e tem o nosso apoio incondicional. Se estiver interessada, permaneça onde está. Caso contrário, saia, e fingimos que entrou aqui por acaso.

Sarah nunca saberia ao certo a forma como Carter o chamara, ou de onde surgira. Era pequeno e magro, com cabelo muito curto e têmporas grisalhas. Tinha os olhos mais verdes que Sarah alguma vez vira. Tal como o de Carter, o aperto de mão foi breve, mas analisador, como o toque de um médico. Falava um inglês fluente, mas com uma pronúncia cerrada. Se tinha nome, não era relevante. Instalaram-se na mesa comprida da sala de jantar formal, Carter e o colaborador anônimo de um lado, e Sarah do outro, como se de um suspeito numa sala de interrogatório se tratasse. O colaborador detinha agora a posse do seu dossiê da CIA. Folheava lentamente as páginas, como se as visse pela primeira vez, o que ela duvidava fosse o caso. A primeira questão foi-lhe apresentada com um leve tom acusatório.

— A sua dissertação para o doutorado em Harvard teve como tema os expressionistas alemães.

Parecia um ponto estranho para começar. Sentiu-se tentada a perguntar qual o interesse no tema da dissertação, mas limitou-se a acenar com a cabeça e a responder:

— Sim, exatamente. Deparou-se com um homem chamado Viktor Frankel, durante a sua pesquisa?

— Era discípulo de Max Beckmann — disse Sarah. — Hoje em dia Frankel é pouco conhecido, mas na altura era considerado de extrema influência e era tido em muito boa consideração pelos contemporâneos. Em 1936, os nazistas consideraram seu trabalho degenerado e foi proibido de continuar a pintar. Infelizmente, decidiu permanecer na Alemanha. Quando resolveu partir, era demasiado tarde. Foi deportado para Auschwitz em 1942, juntamente com a esposa e com a filha adolescente, Irene. Apenas Irene sobreviveu. Foi para Israel depois da guerra e tornou-se uma das artistas mais influentes do país nas décadas de cinquenta e sessenta. Acho que morreu há alguns anos.

— Exatamente — asseverou o colaborador de Carter, os olhos ainda no dossiê de Sarah.

— Por que ficou interessado em Viktor Frankel?

— Porque era meu avô.

— É filho da Irene?

— Sim. Irene era minha mãe.

Sarah olhou para Carter, que fitava as próprias mãos.

— Acho que sei quem comanda este seu empreendimento. Voltou a dirigir a atenção para o homem de têmporas grisalhas e olhos verdes. — É israelense.

— Sou culpado desse crime. Continuamos, Sarah, ou prefere que eu saia?

Sarah hesitou por um instante, e depois anuiu.

— Posso ter um nome, ou são proibidos?

O colaborador deu-lhe um nome. Era vagamente familiar. E então lembrou-se de onde o vira. O agente israelense que esteve envolvido no atentado na Gare de Lyon, em Paris... — Foi o homem que...

— Sim — atalhou ele. — Fui eu.

Voltou a olhar para o dossiê e virou a página.

— Mas voltemos a você, está bem? Temos muito que fazer e estamos limitados de tempo.

Começou lentamente, um montanhista a abrir caminho nos contrafortes, a guardar as forças para os perigos invisíveis que o esperavam mais à frente. As questões eram breves, eficientes e apresentadas de forma metódica, como se as lesse de uma lista previamente elaborada, o que não era o caso. Dedicou a primeira hora à família. O pai, o importante executivo da Citicorp, que não dispusera de tempo para os filhos, mas encontrara muito para outras mulheres. A mãe, cuja vida se desmoronara após o divórcio e que vivia agora como uma eremita, no seu apartamento de Manhattan, na Quinta Avenida. A irmã mais velha, que Sarah descreveu como "aquela que ficou com a inteligência e com a beleza". O irmão mais novo, que abandonara a família cedo e que naquele momento, para desapontamento do pai, trabalhava por um ordenado mísero numa loja de aluguer de esquis, algures no Colorado.

Depois da família, a hora seguinte foi dedicada em exclusivo à dispendiosa educação na Europa. A jovem americana em St. Johns Wood, onde completara a escola primária.

A escola internacional de Paris, onde aprendera a falar francês e a meter-se em sarilhos. O internato feminino nos arredores de Genebra, onde fora encarcerada pelo pai, com o objetivo de "pôr a cabeça no lugar". Fora na Suíça, adiantou Sarah de moto próprio, que descobrira a paixão pela arte. Cada resposta era recebida pelo arranhar da caneta. Escrevia com tinta vermelha num bloco de folhas da cor dos girassóis. Ao início, Sarah julgou que ele escrevia em estenografia, ou com algum tipo de hieróglifos. Depois percebeu que tirava notas em hebraico. O fato de estar a escrever da direita para a esquerda, e de escrever com a mesma rapidez com ambas as mãos, apenas servia para aprofundar a sensação de que atravessara para o outro lado do espelho.

Por vezes, era como se ele dispusesse de todo o tempo do mundo. De outras vezes, lançava olhares ao relógio de pulso e franzia o sobrolho, como se calculasse até onde poderia avançar, antes de fazer alto para a noite. A espaços, utilizava outras línguas. O francês era muito bom. O italiano era impecável, embora dotado de um vago sotaque que traía o fato de não ser falante nativo. Quando se dirigiu a Sarah em alemão, verificou-se uma mudança. As costas endireitaram-se. As feições severas endureceram. Sarah respondeu-lhe na língua da questão, mesmo tendo as palavras sido registradas em hebraico no bloco amarelo. Em geral não a pôs em causa, embora quaisquer inconsistências, reais ou imaginadas, fossem avaliadas com um zelo inquisitorial.

— Esta paixão pela arte — referiu ele. — Como julga que começou? Porquê arte?

Por que não literatura, ou música? Por que não cinema, ou drama?

— Os quadros viraram refúgio. Um santuário.

— Do quê?

— Da vida real.

— Era uma menina rica das melhores escolas da Europa.

O que havia de mal com sua vida? — Mudou do inglês para o alemão no meio da frase.

— Fugia do quê?

— Está me julgando — respondeu Sarah, na mesma língua.

— É claro.

— Podemos falar em inglês?

— Se tiver de ser.

— Os quadros são outros mundos. Outras vidas. Um instante no tempo que existe na tela e em mais lado nenhum. — Gosta de habitar esses locais.

Foi uma observação e não uma pergunta. Sarah aquiesceu em resposta. — Gosta de viver outras vidas? Assumir outras personalidades? Gosta de passear através dos campos de trigo de Vincent, pelos jardins floridos de Monet?

— Até mesmo pelos pesadelos de Frankel.

A caneta foi colocada de lado pela primeira vez.

— Foi por isso que se candidatou à CIA? Porque queria ter outra vida? Porque queria transformar-se noutra pessoa?

— Não. Queria servir meu país.

Sarah recebeu um franzir de cenho reprovador, como se a resposta fosse ingênua. O colaborador olhou mais uma vez para o relógio. O tempo estava contra ele.

— Conheceu árabes enquanto crescia na Europa?

— Claro.

— Rapazes? Garotas?

— Ambos.

— Que tipo de árabe?

— Árabes com duas pernas. Árabes de países árabes.

— Você é mais inteligente do que isso.

— Libaneses. Palestinos. Jordanianos. Egípcios.

— E sauditas? Estudou com sauditas?

— Havia duas garotas sauditas na escola suíça.

— Eram ricas, essas garotas sauditas?

— Éramos todas ricas.

— Foi amiga delas?

— Era difícil conhecê-las. Afastavam-se muito. Eram reservadas.

— E os rapazes árabes?

— O quê?

— Foi amiga de algum?

— É possível.

— Chegou a namorar algum? Dormiu com algum?

— Não.

— Por que não?

— Acho que as minhas preferências não incluíam árabes.

— Teve namorados franceses?

— Alguns.

— Ingleses?

— Claro.

— Mas árabes não?

— Árabes não.

— Tem preconceito com árabes?

— Não seja ridículo.

— Nesse caso, é concebível que poderia ter namorado um árabe. Só por acaso não o fez.

— Espero que não peça para servir de isca com meu corpo, pois...

— Não seja ridícula.

— Então por que faz estas perguntas?

— Porque quero saber se estaria confortável num ambiente social e profissional com árabes.

— A resposta é sim.

— Não vê automaticamente um terrorista quando olha para um árabe?

— Não.

— Tem certeza. Sarah?

— Dependa do tipo de árabe em que se pensa.

Gabriel olhou para o relógio.

— Está ficando tarde — disse, para ninguém em especial. A pobre Sarah deve estar esfomeada. — Traçou uma linha vermelha grossa pela folha de hieróglifos. — Vamos encomendar comida, sim? Vai se sentir melhor depois de comer alguma coisa.

Encomendaram espetos de um restaurante no centro de Georgetown. A comida chegou vinte minutos depois, entregue pela mesma Suburban preta que trouxera Sarah três horas antes. Gabriel considerou a chegada como sinal para dar início à sessão da noite. Ao longo dos noventa minutos seguintes, concentrou-se na educação de Sarah e no seu conhecimento de história da arte. As perguntas sucediam-se tão rapidamente que ela mal teve tempo de comer. Quanto ao prato de Gabriel, permaneceu intato ao lado do bloco de notas amarelo. E um asceta, pensou Sarah. Não se deixa incomodar pelos alimentos. Vive num quarto vaio e subsiste com pão e algumas gotas de água por dia. Pouco depois da meia-noite, Gabriel levou o prato até a cozinha e deixou-o sobre a bancada. Quando regressou à sala de jantar, ficou alguns momentos de pé, atrás da cadeira, uma mão no queixo e a cabeça inclinada de leve. A luz do candelabro dera-lhe um tom esmeralda aos olhos, que a perscrutavam sem dó, como holofotes, já vê o cume, pensou Sarah. Está a preparar o assalto final.

— Pelo seu dossiê, vejo que é solteira.

— Exatamente.

— Está envolvida com alguém, neste momento?

— Não.

— Anda a dormir com alguém?

Sarah mirou Carter, que lhe respondeu com um olhar triste, como se dissesse, Eu avisei que as coisas podiam tornar-se pessoais.

— Não, não ando a dormir com ninguém.

— Por que não? — Já perdeu alguém que lhe fosse próximo?

A expressão sombria que lhe assomou o rosto, a par da mudança agitada de posição de Carter, alertou-a para o fato de estar a entrar em território proibido. — Sinto muito — desculpou-se. — Não queria...

— Imagino que seja por causa do Ben. O Ben é a razão para não estar envolvida com ninguém?

— Sim, é o Ben. É claro que é o Ben.

— Fale-me dele.

Sarah abanou a cabeça.

— Não — respondeu, em voz baixa. — Não vai saber sobre o Ben. Ele é meu. Ben não faz parte do acordo.

— Quanto tempo namoraram?

— Já lhe disse...

— Quanto tempo andou com ele, Sarah? É importante, ou não perguntaria.

— Uns nove meses.

— E depois terminou?

— Sim, terminou.

— Foi você que terminou a relação, não foi?

— Sim.

— Ben estava apaixonado por você. Ben queria se casar com você.

— Sim.

— Mas não sentia o mesmo. Não estava interessada em casamento. Talvez não estivesse interessada em Ben.

— Gostava muito dele...

— Mas?

— Mas não estava apaixonada.

— Fale-me sobre a morte dele.

— Não pode estar falando sério....

— Falo muito sério.

— Não falo sobre a morte dele. Nunca falo sobre a morte de Ben. Além disso, sabe muito bem como foi. Ben morreu às nove e três da manhã, hora do Leste, ao vivo, na televisão. O mundo inteiro viu Ben a morrer. Por acaso não viu?

— Alguns passageiros do Voo 175 conseguiram dar telefonemas.

— Verdade.

— O Ben foi um deles?

— Sim.

— Telefonou ao pai? — Não.

— Telefonou à mãe?

— Não.

— Ao irmão? À irmã?

— Não.

— Para quem ele telefonou, Sarah?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

— Telefonou para mim, seu filho da puta.

— O que disse ele?

— Disse que o avião tinha sido desviado. Disse que tinham matado os comissários. Disse que o avião fazia movimentos bruscos. Disse que me amava e que sentia muito. Estava prestes a morrer e pediu desculpas. E depois a ligação caiu.

— O que fez?

— Liguei a televisão e vi a fumaça saindo da Torre Norte do World Trade Center. Foi alguns minutos depois da colisão do Voo 11. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Telefonei para a FAA e contei sobre a ligação de Ben. Telefonei para o FBI. Telefonei para Polícia de Boston. Sentia-me tão impotente.

— E depois?

— Vi televisão. Esperei que o telefone voltasse a tocar. Não tocou. Às nove e três da manhã, hora de leste, o segundo avião colidiu com o World Trade Center. A Torre Sul estava em chamas. Ben estava queimando.

Uma lágrima única escorreu-lhe pela face. Sarah limpou-a e lançou um olhar furioso a Gabriel, — Está satisfeito?

Gabriel permaneceu em silêncio.

— Agora é a minha vez de fazer uma pergunta. Se não me responder com sinceridade, vou-me embora.

Pergunte-me o que quiser, Sarah. — O que pretende de mim?

— Queremos que se despeça do seu emprego no Phillips Colletion e que vá trabalhar para a Jihad Limitada. Continua interessada?

Ficou para Carter a tarefa de lhe apresentar o contrato. Carter, com a sua integridade puritana e o casaco de bombazina. Carter, com a sua atitude terapêutica e o inglês de pronúncia americana. Gabriel esgueirou-se como um gatuno na noite e atravessou a estrada até o Volvo amolgado de Carter. Sabia qual iria ser a resposta de Sarah. Já a tivera. A Torre Sul estava em chamas, dissera ela. O Ben estava a arder. E assim, Gabriel não ficou preocupado com a expressão de quem ia para a forca no rosto de Sarah quando, vinte minutos depois, saiu, estoica, da casa e desceu o lance de escadas até a van que a aguardava. Também não ficou incomodado com a visão de Carter, cinco minutos mais tarde, a atravessar lentamente a rua, como um cangalheiro a dirigir-se a um caixão. Sentou-se ao volante e ligou o motor.

— Há um avião em Andrews à espera para levá-lo de volta a Israel — disse. — Faremos uma parada no caminho. Há uma pessoa que quer dar uma palavrinha com você antes de partir.

Passava da meia-noite. A rua era dos caminhões de entregas noturnas e dos táxis. Carter seguia a uma velocidade acima do normal e olhava com frequência para o relógio.

— Ela não será barata, sabe. Vai ter um preço. Tem de ser realojada quando a operação terminar, e vai ser protegida por muito tempo.

— Mas vai tratar disso, não vai, Adrian? Você tem o dinheiro. O orçamento da espionagem americana é bem maior que o do nosso país inteiro.

— Esqueceu que esta operação não existe? Além disso, você vai ficar com muito dinheiro de Zizi.

— Certo — disse Gabriel. — Diga a Sarah Bancroft que ela vai passar os próximos dez anos num kibbutz na Galileia, escondida das forças da jihad global.

— Está bem, pagamos o realojamento.

Carter deu uma série de voltas. Por momentos, Gabriel perdeu a noção da rua em que se encontravam. Passaram pela fachada de um grande edifício neoclássico e depois entraram num acesso de aspeto oficial. À esquerda ficava uma guarita fortificada, com vidros à prova de bala. Carter baixou o vidro e entregou a identificação ao guarda.

— Estão a nossa espera.

O guarda consultou uma prancheta e depois devolveu a identificação de Carter. — Avancem e parem à frente da barricada à esquerda. Os cães vão dar a volta ao carro e depois podem entrar.

Carter aquiesceu e subiu o vidro. Gabriel perguntou:

— Onde estamos?

Carter contornou as barricadas e parou onde lhe tinha sido indicado.

— Na porta das traseiras da Casa Branca — explicou.

— com quem vamos falar? — indagou Gabriel, mas Carter trocava impressões com outro agente, que procurava controlar um grande pastor alemão que puxava a grossa coleira de couro. Gabriel, cujo pavor de cães era lendário no Escritório, permaneceu imóvel, enquanto o animal esquadrinhava cada centímetro do Volvo, em busca de explosivos ocultos. Momentos depois, atravessavam outro portão de segurança. Carter estacionou num lugar vago no Acesso Executivo Leste e desligou o motor.

— Só venho até aqui.

— com quem vou falar, Adrian?

— Entra por aquele portão e vai até a casa. Ele sai não tarda nada.

Os cães foram os primeiros a aparecer, dois terriers pretos que saíram disparados pela Entrada Diplomática como balas do cano de uma arma, e atacaram a calça de Gabriel. O presidente surgiu alguns segundos depois.

Avançou para Gabriel com a mão estendida, enquanto a outra gesticulava para que os terriers cessassem a investida. Os dois homens apertaram brevemente as mãos e depois começaram a percorrer o caminho que contornava o Gramado Sul. Os terriers lançaram mais um ataque aos tornozelos de Gabriel. Carter observou Gabriel a virar-se e a murmurar algumas palavras em hebraico que fizeram com que os cães procurassem o abrigo de um agente do Serviço Secreto.

A conversa durou apenas cinco minutos e pareceu a Carter que o presidente tomara conta das palavras. Moveram-se rapidamente, parando apenas uma vez para resolver o que parecera um pequeno desentendimento. Gabriel retirou as mãos dos bolsos e usou-as para ilustrar um argumento que tentava defender. De início, o presidente não pareceu convencido, mas depois aquiesceu e deu uma palmada forte nos ombros de Gabriel.

Completaram o circuito e separaram-se junto à Entrada Diplomática. Quando Gabriel começou a voltar ao estacionamento, os cães partiram atrás dele, mas rapidamente se viraram e correram para a Casa Branca, atrás do dono. Gabriel atravessou o portão aberto e entrou no carro.

— Como te pareceu ele? — perguntou Carter quando viraram para a 5th Street.

— Resoluto.

— Parece que chegaram a discutir.

— Diria que foi um desacordo político.

— Sobre o quê?

— Foi uma conversa privada, Adrian, e vai continuar assim.

— Bonito menino — disse Carter.

CONTINUA

11

LONDRES

— Como está o velhote? — perguntou Adrian Carter. Caminhavam lado a lado em Eaton Place, abrigados de um aguaceiro noturno debaixo do guarda-chuva de Carter. Tinham-se encontrado cinco minutos antes em Belgrave Square, como que por acaso. Carter envergava uma capa e segurava um exemplar do The Independent. Era ortodoxo, no que dizia respeito às regras do ofício. Segundo as piadas que corriam na sede em Langley, Adrian Carter deixava marcas de giz na cabeceira da cama sempre que queria fazer amor com a esposa.

— Continua inconsciente — respondeu Gabriel —, mas resistiu à noite e já não está perdendo sangue.

— Vai sobreviver?

— Ontem à noite, diria que não.

— E agora?

— Estou mais preocupado com as possíveis sequelas. Se ficar com lesões cerebrais, ou preso dentro de um corpo que não obedece... — A voz de Gabriel esmoreceu. — Para Shamron só há uma coisa na vida, o trabalho. Se não puder trabalhar, vai se sentir miserável... bem como todos os que o rodeiam.

— E as novidades? — Carter olhou discretamente para a porta da casa georgiana de número 24. — O apartamento fica ali. Vamos dar mais uma volta no quarteirão, sim? Gosto de seguir as regras.

— Não sabia, Adrian? A União Soviética acabou há anos. O KGB já desapareceu. Agora vocês e os russos são amigos.

— Cuidado nunca é demais, Gabriel.

— Seus rapazes da segurança não definiram um percurso para a identificação de vigilância?

— Não há rapazes, Gabriel.

— É uma casa de segurança da Agência?

— Não exatamente — observou Carter. — Pertence a um amigo.

— Um amigo da Agência?

— Na verdade, um amigo do presidente.

Carter puxou de leve a manga do blusão de Gabriel e conduziu-o pela rua escura. Percorreram lentamente Eaton Square, que estava em silêncio, exceto pelo murmúrio do trânsito noturno em Kings Road. Carter deslocava-se a um ritmo fastidioso, como um homem com um compromisso que preferia não ter de cumprir. Gabriel debatia-se com um único pensamento: por que razão o diretor delegado das operações da CIA desejava falar num local onde o seu próprio Governo não estivesse à escuta?

Regressaram a Eaton Place. Desta vez, Carter guiou Gabriel pelos degraus até a entrada na cave. Quando Carter introduziu a chave na fechadura, Gabriel levantou silenciosamente a tampa do balde do lixo e viu que este se encontrava vazio. Carter abriu a porta e entraram para o tipo de cozinha que os panfletos das agências imobiliárias descreviam como cozinha gourmet. As bancadas eram de granito e tinham uma iluminação agradável, fornecida por lâmpadas de halogêneo ocultas por baixo do armário feito sob medida. O chão era da pedra calcária de Jerusalém, tão apreciada pelos ingleses e americanos refinados que procuravam estabelecer uma ligação com as suas raízes mediterrânicas. Carter dirigiu-se à bancada de aço inoxidável e encheu a chaleira eléctrica com água. Não se deu ao trabalho de perguntar se Gabriel queria algo mais forte. Sabia que ele apenas bebia um copo de vinho ocasional e que nunca misturava o álcool com o trabalho, salvo por necessidade de disfarce.

— É um duplex — explicou Carter. — A sala fica lá em cima. Ponha-se à vontade. — Estás a dar-me autorização para dar uma olhada pela casa, Adrian? Carter abria e fechava as portas do armário com uma expressão perplexa no rosto. Gabriel foi até a despensa, encontrou uma caixa de chá Earl Grey e lançou-a a Carter antes de se dirigir ao andar de cima. A sala estava confortavelmente mobilada, mas denotava um ar de anonimato comum às segundas habitações. A Gabriel parecia que nunca ninguém ali amara, nem brigara. Pegou numa fotografia emoldurada que estava em cima de uma mesa de apoio e viu o que parecia ser o típico americano próspero,

Com três filhos bem alimentados e uma esposa com demasiadas cirurgias plásticas. Outras duas fotografias mostravam o americano numa posição rígida ao lado do presidente.

Ambas tinham dedicatórias assinadas: Para Bi, com gratidão.

Carter voltou momentos depois, com um tabuleiro de chá equilibrado nas mãos. Tinha cabelo encaracolado que rareava e o tipo de bigode largo em tempos favorecido pelos professores universitários americanos. O comportamento de Carter pouco tinha que sugerisse que era um dos membros mais poderosos da vasta rede de espionagem americana, ou que antes da sua ascensão à atmosfera rarefeita do sexto piso de Langley fora um dos mais conceituados agentes de campo. A tendência natural de Carter para escutar, em vez de falar, levava a maior parte das pessoas a concluir que se travava de uma espécie de terapeuta. Quando se pensava em Adrian Carter, imaginava-se um homem a suportar confissões de rumos de acontecimentos, ou de problemas, ou então uma figura de um romance de Dickens, curvado sobre livros grossos com longas palavras em latim. Normalmente, as pessoas subestimavam Carter. Era uma das suas armas mais poderosas.

— Quem está por trás disso, Adrian? — perguntou Gabriel.

— Diga você. — Carter pousou o tabuleiro sobre a mesa de centro e despiu a capa como se estivesse cansado de muito viajar. — Estamos no seu bairro.

— O bairro é nosso, mas algo me diz que o problema é seu. Caso contrário, não estaria em Londres — Gabriel deu uma olhada na sala —, numa casa de segurança emprestada, sem microfones nem apoio da estação local.

— Poucas são as coisas que te escapam, não é? Conte, Gabriel. Diga o nome dele.

— É um antigo agente saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq.

— Bravo, Gabriel. Muito bem. — Carter largou a capa nas costas de uma cadeira. — Muito bem mesmo.

Carter destapou o bule, sorveu o aroma e decidiu que precisava ficar em infusão mais um momento.

— Como souberam?

— Não soubemos — corrigiu Gabriel. — Foi um palpite, baseado em vestígios de prova.

— Por exemplo?

Gabriel contou a Carter tudo o que sabia. A operação falhada contra o professor Ali Massoudi. As fotografias de vigilância e a informação sobre a conta bancária suíça encontradas no computador de Massoudi. As ligações entre Ibrahim el-Banna e o agente saudita que se dava a conhecer como Khalil. Os relatórios sobre um saudita do mesmo nome que percorria os campos de refugiados do Sul do Líbano em busca de recrutas. Entretanto, Carter atarefava-se com o chá. Serviu a primeira xícara e entregou-a Gabriel. Seu chá exigia uma preparação mais elaborada: uma dose calculada de leite, depois o chá, por fim um torrão de açúcar. Os interrogadores referiam-se a esse óbvio ganhar tempo como atividade de deslocamento. Carter era fumador de cachimbo. Gabriel receava o seu aparecimento em breve. E vocês? — inquiriu Gabriel. — Quando souberam que se tratava de Bin Shafiq?

Carter pegou num segundo torrão com a tenaz e ponderou brevemente se deveria acrescentá-lo à xícara, após o que o devolveu sem cerimônias ao açucareiro. Provavelmente soube-o no dia em que pedimos a Sua Majestade que encerrasse o Grupo 205 — respondeu. — Ou talvez tenha sido no dia em que Bin Shafiq desapareceu da face da Terra. Sabes, Gabriel, uma das coisas que aprendi nesta profissão foi que para cada ação nossa, vai haver uma reação negativa. Afastamos o urso russo do Afeganistão e acabamos por criar uma hidra. Esmagamos o quartel-general da Al-Qaeda e agora as filiais estão a tratar dos seus próprios assuntos. Encerramos a loja de Bin Shafiq no GID e agora parece que ele começou a trabalhar por conta própria.

— Por quê?

— Pergunta o que o levou a atravessar a fronteira? — Carter encolheu os ombros e mexeu o chá com uma expressão lamentosa. — Não foi preciso muito. Ahmed bin Shafiq é um verdadeiro crente wahhabi.

— Neto de um guerreiro ikhwan — acrescentou Gabriel, o que lhe valeu um aceno de admiração por parte de Carter.

— Podemos perguntar por que os sauditas apoiam o terrorismo — disse Carter. — Podemos ter um debate interessante sobre se defendem na verdade os objetivos dos assassinos que armam e financiam, ou se estão numa política inteligente e cínica para controlar o ambiente em redor, garantindo assim sua sobrevivência. Tal debate não é possível sobre o homem que o GID escolheu para executar essa política. Ahmed bin Shafiq é um crente. Ahmed bin Shafiq odeia os Estados Unidos, o Ocidente e o Cristianismo, e ficaria muito feliz se o teu Estado deixasse de existir. Foi por esse motivo que insistimos com Sua Majestade para que encerrasse a sua lojinha dos horrores.

— E quando vocês forçaram o rei a encerrar o Grupo 205, Bin Shafiq perdeu a cabeça? Decidiu utilizar os contatos que foi estabelecendo ao longo dos anos e lançar a sua própria onda de terror? Com certeza que não pôde ter sido assim tão linear, Adrian.

— Receio que tenhamos dado um pequeno empurrão — admitiu Carter. — Invadimos o Iraque contra a vontade do Reino e da maior parte de seus habitantes. Capturamos membros da Al-Qaeda e os trancamos em prisões secretas, que é onde eles devem estar. Isto foi ruim para o mundo islâmico, e serviu para atiçar o fogo da jihad. Vocês também tiveram mão nisso. Para os árabes, seu Muro de Separação não passa de uma fronteira terminal unilateral, e não estão muito satisfeitos com ele.

— Não fique chocado, Adrian, mas não nos interessa o que os sauditas pensam do nosso muro. Se não tivessem injetado milhões nos cofres do Hamas e da Jihad Islâmica, não precisaríamos dele.

— O que nos leva à minha argumentação original — rematou Carter, fazendo uma pausa para beber um gole de chá. — O mundo islâmico ferve de raiva e Ahmed bin Shafiq, um verdadeiro crente wahhabi, tornou-se o porta-estandarte da jihad contra o infiel. Utilizou os contatos de seus dias no Grupo 205 para construir uma nova rede. Está fazendo o que Bin Laden já não consegue, que é planejar e executar atentados terroristas espetaculares, como o do Vaticano. Tem uma rede pequena, extremamente profissional e, como já provou, bem letal.

— E é financiada por dinheiro saudita.

— Sem dúvida — asseverou Carter.

— Aonde chegam as implicações, Adrian?

— Muito alto — respondeu Carter. — Quase ao topo.

— Onde é a base de operações deles? Quem financia? De onde vem o dinheiro?

— Da AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermediários — garantiu Carter. — Ahmed bin Shafiq é um dos melhores investimentos da AAB. Posso servir mais chá?

Seguiu-se outra pausa nos trabalhos, desta vez com Carter tentando adivinhar como acender a lareira a gás. Mirou, perplexo, a grelha por um instante e virou-se para Gabriel, lançando-lhe um apelo com o olhar. Gabriel encontrou a torneira de segurança, abriu o fluxo de gás e acendeu.

— Quantos anos você dá a eles, Gabriel? Quanto tempo até que a Casa de Saud seja derrubada e em seu lugar surja a República Islâmica da Arábia? Cinco anos? Dez? Ou talvez vinte? Nunca fomos muito bons nesse tipo de previsões. Pensamos que o império soviético fosse eterno.

— E nós pensamos que o Hamas nunca conseguiria vencer eleições.

Carter soltou uma risada melancólica.

— As nossas melhores mentes dão-lhes sete anos, no máximo. Sua Majestade está disposta a passar esses sete anos com as regras antigas: fornece-nos petróleo barato e uma suposta amizade, e ao mesmo tempo vai adulando e subornando as forças do Islão para não o atacarem. E, quando chegar a altura, vai fugir para os palácios que tem na

Riviera e passar o resto da vida com um luxo demasiado grotesco para se imaginar, de preferência com a cabeça ainda pegada ao corpo. Carter virou as palmas das mãos para o fogo.

— Não está quente — constatou.

— Os troncos são feitos de cerâmica. Dá-lhe um pouco para aquecer. Carter pareceu incrédulo. Gabriel acercou-se da janela e espreitou para a rua, onde um carro passou lentamente e desapareceu à esquina. Carter desistiu da lareira e regressou ao seu lugar.

— E depois temos os elementos da Família Real que estão dispostos a adoptar regras diferentes. A esses chamamos os Verdadeiros Crentes. Julgam que a única forma da Al-Saud sobreviver é através da renovação da aliança que estabeleceram há dois séculos com Muhammad Abdul Wahhab, no Njad. Mas esta nova aliança terá de contemplar novas realidades. O monstro que a Al-Saud criou há duzentos anos tem agora todas as cartas na mão, e os Verdadeiros Crentes estão preparados para dar ao monstro aquilo que ele quer. Sangue infiel. Jibadsem fim. Alguns desses Verdadeiros Crentes querem ir ainda mais longe. Desejam a expulsão de todos os infiéis da Península. Um embargo às vendas de petróleo à América e a todos os países que tenham negócios com vocês. Acreditam que o petróleo não deve ser visto simplesmente como um poço sem fim de dinheiro líquido que jorra dos terminais de Rãs Tanura para as contas bancárias suíças da Al-Saud. Querem usá-lo como arma... uma arma que possa ser empregue para danificar a economia americana e transformar os wahhabis em mestres do planeta, como Alá o desejou, quando criou o mar de petróleo debaixo das areias do Al-Hassa. E alguns desses Verdadeiros Crentes, como o presidente e CEO da AAB Holdings de Riad, Genebra e outros pontos intermédios, estão eles próprios dispostos a verter algum sangue infiel.

— Refere-se a Abdul Aziz al-Bakari?

— Exatamente — confirmou Carter. — Sabe alguma coisa sobre ele?

— Pelas últimas contas, era o décimo quinto homem mais rico do mundo, com fortuna pessoal na casa dos dez bilhões de dólares.

— Mais milhão, menos milhão.

— É presidente, diretor executivo e imperador da AAB Holdings... A de Abdul, A de Aziz e B de al-Bakari. A AAB é dona de bancos e de casas de investimento. A AAB tem empresas de navegação e metalúrgicas. A AAB está cortando as florestas da Amazônia e explorando minério nos Andes do Peru e da Bolívia. A AAB é dona de uma empresa química belga e de uma farmacêutica holandesa. A divisão de pesquisa e desenvolvimento da AAB é uma das maiores do mundo. Abdul Aziz al-Bakari é dono de mais hotéis do que qualquer outra pessoa.

Carter prosseguiu a enumeração de Gabriel.

— Tem um palácio em Riad que raramente visita e onde vivem duas antigas esposas que nunca vê. É dono de uma mansão na Île de la Cité, em Paris, de um solar principesco na Inglaterra, de uma casa em Mayfair, de villas à beira-mar em Saint-Tropez, Marbella e Maui, de chalés de esqui em Zermatt e Aspen, de um apartamento na Park Avenue que foi há pouco tempo avaliado em quarenta milhões de dólares, e de uma propriedade gigantesca, em frente ao Potomac, por onde passo todos os dias quando vou para o trabalho. Carter parecia considerar a mansão no Potomac, o mais grave de todos os pecados de Al-Bakari. O pai era sacerdote episcopal de New Hampshire e, por baixo do seu exterior plácido, batia um coração puritano.

— Al-Bakari viaja com o séquito por todo o mundo, a bordo de um 747 revestido a ouro — prosseguiu. — Duas vezes por ano, uma em fevereiro e outra em agosto, as operações AAB vão para o mar, quando Al-Bakari e a comitiva se instalam a bordo do Alexandra, o seu iate de noventa metros. Esqueci-me de alguma coisa? — Os amigos tratam-no por Zizi — replicou Gabriel. — Tem uma das maiores coleções mundiais de arte impressionista francesa, e há anos que os andamos a dizer que é um dos maiores financiadores do terrorismo, especialmente contra nós.

— Não tinha noção.

— Noção do quê?

— De que Zizi era um colecionador.

— E muito agressivo.

— Por acaso já esteve com ele?

— Receio que eu e Zizi estejamos em lados opostos do negócio.

— Gabriel franziu o sobrolho. — Qual é a ligação entre Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq?

Pensativo, Carter soprou o chá, sinal de que ainda não estava pronto para responder à questão de Gabriel.

— É um sujeito interessante, o Al-Bakari. Sabias que o pai foi o banqueiro pessoal de Ibn Saud? Tal como seria de esperar, o papai Al-Bakari saiu-se muito bem, o suficiente para dar dez milhões de dólares ao filho, para que este começasse a sua própria empresa. Mas isso não foi nada, quando comparado com o capital que recebeu da Al-Saud, quando o projeto se desenvolveu. A acreditar nos boatos, cem milhões de dólares. A AAB continua a ser o receptáculo preferido do dinheiro real saudita, o que é uma das razões para que Zizi esteja interessado em garantir a sobrevivência da Casa de Saud.

Gabriel sentiu um aperto no coração quando Carter pegou na bolsa do tabaco. — É um dos homens mais ricos do mundo — disse Carter —, e um dos mais caridosos. Erigiu mesquitas e centros islâmicos por toda a Europa. Financiou projetos de desenvolvimento no Delta do Nilo e para o combate à fome no Sudão. Doou milhões aos refugiados palestinos e outros milhões a projetos de urbanização na Cisjordânia e em Gaza.

— E mais de trinta milhões de dólares naquela angariação televisiva de fundos árabes para financiar homens-bomba suicidas — acrescentou Gabriel. — Zizi foi o maior doador individual. Agora, responde-me, Adrian.

— E qual era a pergunta?

— Qual a ligação entre Zizi e Bin Shafiq?

— É bem perspicaz, Gabriel. Diga você, qual a ligação.

— É óbvio que Zizi financia a rede de Bin Shafiq.

— É óbvio — asseverou Carter.

— Mas Bin Shafiq é saudita. Pode obter dinheiro em qualquer outro lugar. Zizi tem algo mais valioso que o dinheiro. Tem uma infraestrutura global, por onde Bin Shafiq pode movimentar homens e material. E Zizi tem o lugar ideal onde esconder um ideólogo como Bin Shafiq.

— A AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermediários.

O silêncio tombou entre eles como uma cortina, enquanto Carter enchia vagarosamente o cachimbo. Gabriel continuava de pé à janela, a olhar a rua. Sentia-se tentado a permanecer aí, pois o tabaco de Carter, quando aceso, cheirava a uma mistura de feno a arder e de cão molhado. Mas também sabia que a conversa chegara a um ponto em que não poderia ser continuada à frente de uma janela insegura. Com relutância, sentou-se na cadeira oposta a Carter e entreolharam-se em silêncio, Carter fumando com expressão meditativa e Gabriel afastando penosamente a fumaça dos olhos.

— Têm certeza?

— Absoluta.

— Como sabem?

— Fontes e método — respondeu Carter, por reflexo. — Fontes e método.

— Como sabem, Adrian?

— Ouvimos — explicou Carter. — A National Security Agency é uma coisa maravilhosa. Também dispomos de fontes no interior da ala moderada da Casa de Saud e do GID, que estão dispostas a contar certas coisas. Ahmed bin Shafiq reside grande parte do tempo no Ocidente, com uma identidade falsa. Está enterrado no império financeiro de Zizi, e os dois conferenciam com regularidade. Estamos certos desse fato.

Ao lado do tabuleiro de Carter, em cima da mesa de centro, estava um dossiê. Tinha no seu interior uma única fotografia, que Carter entregou a Gabriel. Mostrava um homem de sobretudo de lã e chapéu, em frente de um portão de ferro forjado. O rosto estava de perfil e as feições eram um pouco indistintas. Pelo aspeto da imagem, a fotografia fora tirada de alguma distância.

— É ele?

— Achamos que sim — respondeu Carter.

— Onde foi tirada?

— No exterior da casa de Zizi, na Île de la Cité, em Paris. O fotógrafo estava do outro lado do Sena, no Quai de l’Hôtel de Ville, o que explica uma certa falta de clareza da imagem. — Há quanto tempo?

— Seis meses.

Carter ergueu-se lentamente e deambulou até a lareira. Estava prestes a bater o cachimbo na grelha, quando Gabriel o recordou de que era falsa. Voltou a sentar-se e esvaziou o cachimbo para dentro de um grande cinzeiro de vidro lapidado.

— Quantos americanos morreram no Vaticano? — perguntou Gabriel.

— Vinte e oito, incluindo um bispo da Cúria.

— Quanto dinheiro Zizi al-Bakari deu a terroristas, ao longo dos anos?

— Centenas de milhões.

— Vão atrás dele — declarou Gabriel. — Levantem um processo e levem-no a tribunal.

— Contra Zizi al-Bakari?

— Secção 18 U.S.C. 2339B... Já ouviu falar nela, Adrian?

— Agora está me citando a lei americana?

— Dar dinheiro a grupos terroristas assumidos é uma violação da lei americana, quer esse dinheiro tenha, ou não, sido utilizado em atentados específicos. Talvez já pudessem ter processado dezenas de sauditas ricos por fornecerem apoio material aos inimigos, incluindo Zizi al-Bakari.

— Você me desaponta, Gabriel. Sempre te imaginei uma pessoa razoável... por vezes preocupado demais com questões de certo e errado, mas razoável. Não podemos ir atrás de Zizi al-Bakari.

— Por quê?

— Dinheiro — justificou-se Carter, ao que acrescentou: — E petróleo, é claro.

— É claro.

Carter brincou com o isqueiro.

— A Família Real Saudita tem muitos amigos em Washington. O tipo de amigos que só o dinheiro pode comprar. Zizi também tem amigos. Fundou cátedras acadêmicas e encheu-as de amigos e apoiantes. Garantiu a criação de departamentos de estudos árabes em meia dúzia de universidades americanas importantes. Financiou quase sozinho uma renovação profunda do Kennedy Center. Oferece dinheiro a projetos de caridade de senadores influentes e investe nos negócios de amigos e familiares desses senadores. É dono de boa parte de um dos bancos mais importantes e tem participações numa série de outras empresas americanas também importantes. Também serviu de intermediário em inúmeros negócios entre sauditas e americanos. O quadro está a ficar mais claro?

Estava, mas Gabriel queria ouvir mais.

— Se o bando de advogados de Washington de Zizi sequer desconfiasse que ele ia ser investigado criminalmente, Zizi falaria com Sua Majestade, Sua Majestade falaria com o embaixador Bashir, e o embaixador ia à Casa Branca ter uma conversinha com o presidente. Lembraria o presidente de que uma volta ou duas nas torneiras do petróleo significaria um aumento brutal no preço da gasolina. Talvez chegasse a frisar que um aumento dessa magnitude prejudicaria os habitantes do centro do país, que costumam fazer viagens longas, e que também costumam votar no partido do presidente.

— E assim, para Zizi o crime compensa... literalmente.

— Receio que sim.

— Não pergunte sobre o que, quando explicado, possa te trazer problemas.

— Conhece bem o Corão — disse Carter. — Outra razão para não agir contra Zizi, ou acusá-lo é o medo do que se pode encontrar: enredos com americanos importantes, negócios obscuros com elementos de Washington. Imagine a reação do povo americano se descobrisse que um bilionário saudita com ligações comerciais com figuras importantes de Washington financia as atividades inimigas. A relação mal conseguiu sobreviver ao primeiro Onze de Setembro. Duvido que sobrevivesse a um segundo. Não sobreviveria, pelo menos na forma atual. Já há um movimento no Capitólio para isolar a Arábia Saudita, devido ao apoio prestado ao extremismo islâmico global. Um escândalo que envolvesse Zizi al-Bakari apenas serviria para lançar achas para a fogueira. Várias figuras da política externa do Congresso estão a pensar numa legislação que pressione a Arábia Saudita. Podem dar-se a esse luxo. Se a economia americana for por água abaixo devido a uma subida dos preços do petróleo, não são eles que sofrem, mas sim o presidente.

— E o que quer de nós, Adrian? O que quer me dizer nesta sala, onde mais ninguém nos ouve?

— O presidente dos Estados Unidos quer pedir um favor — explicou Carter, enquanto fitava o fogo. — O tipo de favor em que por acaso você é muito bom. Ele gostaria que pusessem um agente na Casa de Zizi. Gostaria que descobrisse quem entra e quem sai. E se Ahmed bin Shafiq aparecer, ele gostaria que tentasse pegá-lo. A operação será sua, mas pode contar com todo o nosso apoio. Estaremos do outro lado do horizonte... longe o bastante para garantir uma negação plausível em Riad.

— Você me desaponta, Adrian. Sempre pensei que fosse uma pessoa razoável.

— O que eu fiz agora?

— Pensei que ia me pedir para matar Zizi al-Bakari e acabar de vez com o assunto.

— Matar Zizi? — Carter abanou a cabeça. — Zizi é intocável. Zizi é radioativo.

Gabriel regressou ao seu posto à janela e espiou a rua quando um casal de namorados correu pela calçada sob a chuva.

— Não somos assassinos profissionais — protestou. — Não podemos ser contratados para fazer os trabalhos sujos que vocês não podem fazer. Querem Bin Shafiq morto, mas não estão dispostos a correr riscos. Pretendem que sejamos nós a ficar com a culpa.

— Poderia lembrar alguns fatos importantes — adiantou Carter. — Poderia lembrar que este presidente ficou do seu lado enquanto o resto do mundo os tratou como se fossem judeus entre nações. Poderia lembrar que ele permitiu que construíssem o Muro de Separação, enquanto o resto do mundo os acusou de se comportar como os sul-africanos. Poderia lembrar que ele permitiu que trancassem Arafat na Mukata, enquanto o resto do mundo os acusou de agir como tropa de choque nazista. Poderia lembrar as inúmeras vezes em que este presidente tratou de sua roupa suja, mas não o farei, pois isso seria politicamente incorreto. Também poderia sugerir que com este pedido estaríamos numa espécie de saldar contas, o que não é, de todo, o caso.

— Então é o quê?

— Um reconhecimento — explicou Carter. — O reconhecimento de que nós, americanos, não temos estômago, nem coragem, para fazer as coisas que têm de ser feitas nesta luta. Já queimamos os dedos. Nossa imagem já foi debilitada. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vimos. Nossos políticos gostariam que pegássemos o primeiro avião para fora do Iraque, para que possam começar a gastar dinheiro no tipo de coisas que conquistam votos. O povo quer voltar à boa vida. As pessoas querem enterrar a cabeça na areia e fingir que não existe no mundo uma força organizada que procura destruí-las. Pagamos um preço terrível por entrar na sarjeta com os terroristas e combater no nível deles, mas acho que vocês sabiam que isso ia acontecer. Ninguém pagou um preço mais elevado do que vocês.

— E por isso querem que o façamos no seu lugar. Imagino que seja o a que chamam de terceirização. Mas que americano de sua parte, Adrian.

— Dadas as atuais circunstâncias, os Estados Unidos não podem tentar assassinar um antigo oficial da espionagem saudita, caso contrário a nossa relação com Riad ficaria comprometida. Também não podemos prender e acusar Zizi al-Bakari pelas razões que mencionei.

— Por isso querem que o problema desapareça?

— Exatamente.

— Que seja varrido para baixo do tapete? Que se adie o ajuste de contas para uma data mais conveniente?

— Não podia ser mais claro.

— Acha que essa é a melhor forma de derrotar a Hidra? Cortar uma cabeça e esperar que tudo corra bem? É preciso queimar as raízes, como fez Hércules. É preciso atacar o monstro com flechas embebidas em fel.

— Quer atacar a Casa de Saud?

— Não só a Casa de Saud — asseverou Gabriel. — Os fanáticos wahhabitas que fizeram um pacto de sangue, há duzentos anos, no planalto estéril do Najd. São eles seu verdadeiro inimigo, Adrian. Foram eles que criaram a Hidra.

— O príncipe sábio escolhe a data e o local da batalha, e não é hora de derrubar a Casa de Saud.

Gabriel mergulhou num silêncio taciturno. Carter olhava para o fornilho do cachimbo e fazia pequenos ajustes na disposição do tabaco, como um professor à espera da resposta de um aluno menos inteligente.

— Será preciso lembrar que atentaram contra Shamron?

Gabriel fulminou Carter com um olhar que lhe garantia que não se esquecera.

— Nesse caso, por que a hesitação? Depois do que Bin Shafiq fez ao velhote, pensei que estivesse de laço esticado para pegá-lo.

— Quero pegá-lo mais do que ninguém, Adrian, mas nunca estico o laço. É uma operação perigosa... perigosa demais até para você. Se alguma coisa der errado ou se formos apanhados, tudo acaba mal... para os três.

— Três?

— Eu, você e o presidente.

— Nesse caso, siga o décimo primeiro mandamento de Shamron, e não haverá problema. Você não será apanhado.

— Bin Shafiq é um fantasma. Nem sequer temos uma foto.

— Isso não é totalmente verdade. — Carter voltou a pegar o dossiê e retirou outra foto, que colocou em cima da mesa, para que Gabriel a visse. Mostrava um homem de olhos escuros, o rosto em parte oculto por um kaffijeh. — Este é Bin Shafiq, há quase vinte anos, no Afeganistão. Na épica era nosso amigo. Estávamos do mesmo lado. Nós fornecemos as armas. Bin Shafiq e os mestres de Riad forneciam o dinheiro.

— E a ideologia wahhabita que ajudou a dar origem aos talibãs — adiantou Gabriel.

— O inferno está cheio de boas intenções — lamentou-se. — Mas temos algo mais valioso do que uma foto com vinte anos. Temos a voz dele.

Carter pegou um pequeno controle remoto preto, apontou-o a um rádio Bose Wave e pressionou o Play. Momentos depois, dois homens começaram a falar em inglês: um de sotaque americano e o outro de pronúncia árabe.

— Imagino que o árabe seja Bin Shafiq. Carter anuiu.

— Quando foi gravado?

— Em 1988 — explicou Carter. — Numa casa de segurança em Peshawar.

— Quem é o americano? — perguntou Gabriel, embora já soubesse a resposta. Carter pressionou o botão Stop e olhou para o fogo.

— Sou eu — respondeu, com um tom distante. — O americano na casa de segurança da CIA em Peshawar era eu.

— Reconheceria Bin Shafiq se visse?

— Talvez, mas as nossas fontes dizem que fez várias operações plásticas antes de entrar em campo. Mas reconheceria a cicatriz no antebraço direito. Foi atingido por estilhaços durante uma viagem ao Afeganistão, em 1985. A cicatriz vai do pulso ao cotovelo. Não há cirurgião plástico que ajude naquilo.

— No lado de dentro ou de fora?

— De dentro. O ferimento afetou a mão dele. Submeteu-se a várias operações para tentar remediar a situação, mas nada deu certo. Normalmente a mantém no bolso. Não gosta de dar apertos de mão. Bin Shafiq é um beduíno orgulhoso. Não respeita as doenças.

— Imagino que suas fontes em Riad não nos consigam dizer em que zona do império de Zizi ele está escondido.

— Infelizmente, não. Mas sabemos que ele aí está. Se introduzires um agente na Casa de Zizi, talvez Bin Shafiq acabe por entrar pela porta das traseiras. — Introduzir um agente na casa de Zizi al-Bakari? E o que sugeres que façamos para o conseguir, Adrian? Zizi tem mais segurança do que a maior parte dos chefes de Estado.

— Nem me passaria pela cabeça interferir em questões operacionais — escusou-se Carter. — Mas garanto-te que estamos dispostos a ser pacientes e que tencionamos acompanhar a missão até o fim.

— A paciência e o acompanhamento não são exatamente virtudes americanas típicas. Vocês gostam de armar confusão e partir para o problema seguinte. Seguiu-se mais um silêncio longo, desta vez interrompido pelo bater do cachimbo de Carter na borda do cinzeiro. — O que queres, Gabriel?

— Garantias.

— No nosso ramo não há garantias, sabes disso.

— Quero tudo o que tiverem sobre Bin Shafiq e o Al-Bakari.

— Dentro dos limites do razoável — disse Carter. — Não te vou dar um monte de segredos obscuros sobre figuras importantes de Washington.

— Quero proteção — continuou Gabriel. — Quando isto acontecer, seremos os principais suspeitos. Somos sempre, mesmo quando não somos os responsáveis. Vamos precisar da sua ajuda para acalmar a tempestade.

— Apenas posso falar em nome do DO — lembrou Carter. E garanto-te que vamos estar do seu lado.

— Eliminamos Bin Shafiq onde e quando escolhermos, sem qualquer interferência de Langley.

— O presidente ficaria grato se pudessem evitar fazê-lo em território americano.

— No nosso ramo não há garantias, Adrian.

— Touché.

— Talvez custe a acreditar, mas não posso decidir sozinho. Tenho de falar com Amos e o primeiro-ministro.

— Amos e o primeiro-ministro farão o que lhes disser.

— Dentro do razoável.

— O que vai dizer?

— Que o presidente americano precisa de um favor — disse Gabriel. — E que pretendo ajudá-lo.

12

TEL MEGIDDO, ISRAEL

O primeiro-ministro autorizou a operação de Gabriel às duas e trinta da tarde seguinte. Gabriel dirigiu-se de imediato a Armagedon. Imaginou que fosse um bom local para começar.

O tempo parecia glorioso de uma forma perversa para tal ocasião: temperatura fresca, um céu de um azul pálido, uma brisa leve que lhe agitava as mangas da camisa, à medida que seguia a Estrada de Jafa. Ligou o rádio. A música lúgubre que enchera o éter nas horas que se tinham seguido ao atentado à vida de Shamron desaparecera. Um boletim noticioso surgiu de repente. O primeiro-ministro garantira fazer tudo ao seu alcance para localizar e punir os responsáveis pelo atentado contra Shamron. Não mencionou o fato de já saber quem era o responsável, nem que autorizara Gabriel a eliminá-lo.

Gabriel percorreu a Bab al-Wad em direção ao mar, ziguezagueando com impaciência por entre o tráfego mais lento, e depois acompanhou o sol que se punha para norte, ao longo da Planície Costeira. Perto de Hadera havia um alerta de segurança. Segundo o rádio, um alegado homem-bomba suicida conseguira atravessar o Muro de Separação perto de Tulkarm. Gabriel foi obrigado a aguardar na beira da estrada durante vinte minutos, antes de se encaminhar para o vale de Jezreel. A oito quilômetros de Afula, um outeiro redondo surgiu à esquerda. Em hebraico era conhecido por Tel Megiddo, ou Monte Megido. O resto do mundo o conhece como Armagedon, do Livro do Apocalipse, o palco do confronto final entre as forças do bem e do mal. A batalha ainda não começara e o estacionamento estava vazio, salvo por um trio de vans empoeiradas, sinal de que a equipe arqueológica ainda trabalhava.

Gabriel saiu do carro e subiu o caminho íngreme até o topo. O Tel Megiddo era alvo de escavações arqueológicas periódicas há mais de um século, e no alto do monte havia um labirinto de trincheiras compridas e estreitas. Tinham sido encontrados vestígios de mais de vinte cidades debaixo do solo do topo do Tel, incluindo uma que se acreditava ter sido construída pelo rei Salomão. Parou à beira de uma das trincheiras e espreitou para o fundo. Uma pequena figura de casaco de algodão creme estava de gatas, a revirar o solo com uma colher de pedreiro. Gabriel pensou na última vez que estivera acima de um homem num buraco de escavação e sentiu-se como se lhe tivessem deitado um cubo de gelo para as costas. O arqueólogo olhou para cima e fitou-o com um par de olhos castanhos inteligentes. Depois voltou a desviar a atenção para o seu trabalho.

— Tenho estado a tua espera — disse Eli Lavon. — Por que demorou tanto?

Gabriel sentou-se na terra à beira do buraco e observou Lavon a trabalhar. Conheciam-se desde a operação Setembro Negro. Eli Lavon fora um ayin, um batedor. A sua incumbência era seguir os terroristas e tomar conhecimento dos seus hábitos. Em muitos aspetos, essa missão fora ainda mais perigosa do que a de Gabriel, pois Lavon, por vezes, ficara exposto aos terroristas durante dias e semanas a fio, sem qualquer apoio. Após o desmantelamento da unidade, instalara-se em Viena e abrira um pequeno gabinete de investigação chamado Reivindicações e Inquéritos do Tempo da Guerra. Com um orçamento mínimo, conseguira localizar milhões de dólares em bens judeus pilhados e desempenhara um papel importante na obtenção de um acordo milionário com os bancos suíços. Agora, Lavon trabalhava na escavação em Meguido e dava aulas de arqueologia em tempo parcial, na Universidade Hebraica.

— O que tem aí, Eli?

— Um pedaço de cerâmica, creio. — Uma rajada de vento agitou-lhe o cabelo fino e desgrenhado e soprou-o para a testa. — E você?

— Um bilionário saudita que tenta destruir o mundo civilizado.

— Não já conseguiram? — Gabriel sorriu.

— Preciso de você, Eli. Sabe interpretar balancetes. Sabe seguir pista de dinheiro sem que ninguém note.

— Quem é o árabe?

— O presidente e CEO da Jihad Limitada.

— E esse presidente tem nome?

— Abdul Aziz al-Bakari.

— Zizi al-Bakari?

— Esse mesmo.

— Imagino que tenha algo que ver com Shamron.

— E com o Vaticano.

— Qual é a ligação de Zizi?

Gabriel contou.

— Acho que não preciso perguntar o que tenciona fazer com Bin Shafiq — disse Lavon. — O império de Zizi é enorme. Bin Shafiq pode estar trabalhando de qualquer ponto do mundo. Como vai encontrá-lo?

— Vamos introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi e esperar que Bin Shafiq apareça.

— Um agente no território de Zizi? — Lavon abanou a cabeça.

— Não se consegue.

— Consegue-se, sim.

— Como?

— Vou descobrir alguma coisa que Zizi queira — explicou Gabriel. — E depois vou dar a ele.

— Sou todo ouvidos.

Gabriel sentou-se na borda da trincheira de escavação, com as pernas dependuradas para o interior, e disse-lhe como tencionava penetrar na Jihad Limitada. Do fundo do buraco vinha o som do trabalho de Lavon — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— Quem é o agente? — perguntou a Gabriel, quando este terminou.

— Ainda não o tenho.

Lavon ficou em silêncio por um instante — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— O que queres de mim?

— Vira Zizi al-Bakari e a AAB Holdings de pernas para o ar. Quero que disseque cada empresa que ele controle. Perfis de todos os executivos de topo e dos membros da comitiva pessoal. Quero saber como cada pessoa chegou ao seu cargo e como nele tem permanecido. Quero saber mais sobre Zizi do que ele próprio.

— E o que acontece quando entrarmos em campo?

— Você também vai.

— Estou velho e cansado para coisas mais duras.

— É o maior artista de vigilância da história do Escritório, Eli. Não vou conseguir sem você.

Lavon endireitou-se e limpou as mãos na calça.

— Introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi al-Bakari? É louco. — Lançou uma colher de pedreiro a Gabriel. — Venha me ajudar. Estamos ficando sem luz.

Gabriel desceu ao buraco e ajoelhou-se ao lado do velho amigo. Juntos esgaravataram o solo antigo, até que a noite caiu sobre o vale como uma manta.

Quando chegaram ao Boulevard King Saul já passava das nove horas. Lavon saíra havia muito do Escritório, mas continuava a apresentar uma palestra ocasional na Academia e ainda tinha as credenciais para entrar no edifício sempre que quisesse. Gabriel acompanhou-o até a sala de arquivos da divisão de Pesquisa, ao que se dirigiu a um corredor sombrio dois níveis abaixo do solo. No final do corredor ficava a Sala 456C. Afixado à porta estava um letreiro de papel, onde se lia, na caligrafia hebraica de Gabriel: COMITÊ TEMPORÁRIO PARA O ESTUDO DAS AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Decidiu mantê-lo, por enquanto.

Abriu a fechadura com combinação, acendeu as luzes e entrou. A sala parecia congelada no tempo. Era conhecida por vários nomes: a Cápsula, a Choça, o Tanque. Yaakov, um durão de rosto marcado do Departamento de Assuntos Árabes de Shabak, batizara-a de Buraco do Inferno. Yossi, da Pesquisa, denominara-a a Aldeia dos Malditos, mas ele lera clássicos em Oxford e emprestava sempre ao seu trabalho um certo ar de erudição, mesmo quando os temas não o mereciam. Gabriel deteve-se junto à mesa assente em cavaletes que Dina e Rimona tinham partilhado. As constantes altercações territoriais quase tinham dado com ele em doido. A linha de separação que ele traçara no centro da mesa ainda lá estava, a par do aviso que Rimona escrevera do seu lado da fronteira: Atravessar por sua própria conta e risco. Rimona era capita da FDI e trabalhava para Ama, na espionagem militar. Era também sobrinha de Gilah Shamron. Acreditava em fronteiras defensáveis e respondera com incursões de retaliação sempre que Dina cruzara a linha. No lugar de Dina estava a pequena mensagem que ela lá deixara no último dia da operação: Que nunca mais tenhamos de aqui voltar. Que ingênua, pensou Gabriel. Ela devia saber melhor do que ninguém que provavelmente não seria assim.

Continuou a lenta digressão pela sala. Ao canto jazia a mesma pilha de equipamento informático ultrapassado que nunca ninguém se dera ao trabalho de remover. Antes de se transformar no quartel-general do Grupo Khaled, a Sala 456C não passara de uma lixeira onde se despejava mobília velha e aparelhos eletrônicos obsoletos, sendo muitas vezes utilizada pelos membros do turno da noite como local de aventuras românticas. O quadro de giz de Gabriel também ali continuava. Mal conseguia decifrar as últimas palavras que escrevera. Olhou para as paredes, cobertas de fotografias de jovens palestinos. Uma das imagens chamou-lhe a atenção, um rapaz de boina na cabeça e um kaffiyeh sobre os ombros, sentado ao colo de Yasir Arafat: Khaled al-Khalifa no funeral do pai, Sabri. Gabriel matara Sabri, e também matara Khaled.

Retirou as fotografias antigas das paredes e colocou duas novas no seu lugar. Uma delas mostrava um homem de kaffyeh, nas montanhas do Afeganistão. A outra exibia o mesmo homem, agora com um sobretudo de caxemira e chapéu, à frente da casa de um bilionário, em Paris. O Grupo Khaled era agora o Grupo Bin Shafiq.

Durante as primeiras quarenta e oito horas, Gabriel e Lavon trabalharam sozinhos. No terceiro dia chegou Yossi, um homem alto e calvo com o porte de um intelectual britânico. Rimona compareceu no quarto dia, bem como Yaakov, chegado do quartel-general de Shabak, com uma caixa cheia de material sobre os terroristas que tinham atacado o carro de Shamron. Dina foi a última a chegar. Pequena e morena, estivera na Rua Dizengoff de Tel Aviv, no dia 19 de Outubro de 1994, quando um homem-bomba suicida do Hamas transformara o ônibus número 5 num caixão para vinte e uma pessoas. A mãe e duas das suas irmãs encontravam-se entre essas vítimas. Dina ficara gravemente ferida e caminhava agora com um ligeiro coxear. Lidara com a dor tornando-se perita em terrorismo. Com efeito, Dina Sarid era capaz de recitar a data, o local e o número de vítimas de todos os atos terroristas alguma vez cometidos contra o Estado de Israel. Em tempos dissera a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles próprios. Gabriel acreditara.

Dividiram-se em duas áreas de especialidade. Ahmed bin Shafiq e a Irmandade de Alá tornaram-se propriedade de Dina, Yaakov e Rimona, enquanto Yossi se juntou à escavação de Lavon da AAB Holdings. Por enquanto, Gabriel trabalhava sozinho, pois assumira a tarefa nada invejável de tentar identificar todos os quadros alguma vez comprados ou vendidos por Zizi al-Bakari.

À medida que os dias iam passando, as paredes da Sala 456C refletiam a natureza única da operação. Numa das paredes começou a surgir o esboço sombrio de uma nova rede terrorista mortal, liderada por um homem que, em grande medida, não passava de um fantasma. Deram o seu melhor para recriar a longa viagem de Bin Shafiq através da corrente do extremismo islâmico. Ao que parecia, onde quer que tivesse havido problemas, lá estava Bin Shafiq, a distribuir dinheiro saudita do petróleo e propaganda wahhabita às mancheias: Afeganistão, Líbano, Egito, Argélia, Jordânia, Paquistão, Chechênia, Bósnia e, é claro, a Autoridade Palestina. Mas havia pistas de relevo, pois ao levar a cabo dois atentados importantes, Bin Shafiq e a Irmandade tinham deixado mais de uma dúzia de nomes que podiam ser investigados em busca de ligações e de associações. E havia também Ibrahim el-Banna, o imã egípcio mortal, e o professor Ali Massoudi, o angariador e caçador de talentos.

Na parede oposta surgiu outra rede: a AAB Holdings. Utilizando fontes públicas, e outras não tão visíveis, Lavon peneirou a custo as várias camadas do império financeiro de Zizi e reuniu as diversas peças como se fossem pedaços de um artefato antigo. No topo da estrutura encontrava-se a própria AAB. Abaixo desta estava uma rede complexa de empresas subsidiárias e de fachadas corporativas que permitiam que Zizi estendesse a sua influência a quase todos os cantos do globo, em condições de secretismo corporativo quase perfeito. Tendo quase todas as empresas registradas na Suíça e nas Ilhas Caimão, Lavon equiparou Zizi a um caça furtivo financeiro, capaz de levar a cabo ataques à sua vontade, ao mesmo tempo que evitava ser detetado pelos radares inimigos. Apesar da natureza obscura do império de Zizi, Lavon chegou à conclusão de que as contas não batiam certo.

— Zizi nunca poderia ter obtido lucros suficientes com os investimentos iniciais que justificassem as aquisições posteriores — explicou a Gabriel. — A AAB Holdings é uma fachada para a Casa de Saud. — Quanto a tentar descobrir Ahmed bin Shafiq algures no polvo financeiro de Zizi, Lavon comparou-o a tentar encontrar uma agulha no deserto da Arábia. — Não é impossível — disse —, mas provavelmente morremos de sede antes de conseguirmos.

Yossi dedicou-se ao pessoal de Zizi. Concentrou-se na relativamente pequena equipe que trabalhava no quartel-general de Genebra, a par de empresas detidas ou controladas pela AAB. A maior parte do seu tempo, no entanto, era empregue na grande comitiva pessoal de Zizi. Em breve as fotografias cobriam a parede do espaço de trabalho de Yossi, e contrastavam com as da rede de terror de Shafiq. Todos os dias chegavam imagens novas, à medida que Yossi acompanhava os movimentos frenéticos de Zizi por todo o globo. Zizi a chegar a uma reunião em Londres. Zizi em Stuttgart, durante um encontro com fabricantes de automóveis alemães. Zizi a desfrutar da vista para o mar Vermelho, a partir do seu novo hotel em Sharm el-Sheik. Zizi a conferenciar com o rei da Jordânia, sobre um possível negócio imobiliário. Zizi a inaugurar uma central de dessalinização no Yemen. Zizi a receber um prêmio humanitário de um grupo islâmico em Montreal, cuja página de Internet, frisou Yossi, continha um apelo direto à destruição do Estado de Israel.

Quanto ao canto da sala reservado a Gabriel, era um santuário, quando comparado com os reinos do terror e das finanças. A sua parede estava coberta não com os rostos de terroristas ou de executivos, mas com dezenas de fotografias de obras impressionistas francesas. Enquanto Lavon e Yossi passavam os dias a vasculhar monótonos balancetes e folhas impressas, Gabriel folheava catálogos antigos, monografias impressionistas e recortes de impressa que descreviam os feitos de Zizi na cena artística mundial. Ao fim do décimo dia, Gabriel decidira como iria introduzir um agente na Jihad Limitada. Dirigiu-se à coleção de fotografias de Yossi e fitou uma única imagem. Mostrava um inglês magro e grisalho, sentado ao lado de Zizi, seis meses antes, no leilão de Arte Moderna e Impressionista da Christies, em Nova Iorque. Gabriel retirou a fotografia e ergueu-a, para que os outros a vissem. — Este homem — disse. — Tem de desaparecer. — Depois ligou para Adrian Carter através de um número privado seguro de Langley e contou como planejava entrar na Casa de Zizi.

— Agora você só precisa de um quadro e de uma garota — concluiu Carter. — Encontre o quadro e eu consigo a garota.

Gabriel saiu um pouco mais cedo do que o habitual do Boulevard King Saul e dirigiu-se a Ein Kerem. A unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah continuava vigiada por vários guardas, mas Shamron estava sozinho quando Gabriel entrou no quarto.

— O filho pródigo decidiu me visitar — comentou, em tom amargo. — Ainda bem que somos um povo do deserto, caso contrário punham-me em cima de um bloco de gelo e me jogavam no mar.

Gabriel sentou-se ao lado da cama.

— Já vim pelo menos umas seis vezes.

— Quando?

— À noite, quando já está dormindo.

— Anda pairando sobre mim? Como Gilah e os médicos? Por que não vem durante o dia, como uma pessoa normal?

— Tenho estado ocupado.

— O primeiro-ministro não está ocupado para me visitar em horários decentes. — com o pescoço ferido imobilizado por um aparelho de plástico,

Shamron lançou um olhar rancoroso a Gabriel. — Ele contou-me que vai autorizar o Amos a encontrar alguém para as Operações Especiais, para que tu possas levar a cabo esse projeto ridículo para o Adrian Carter e para os americanos.

— Imagino que não o aprove.

— com veemência. — Shamron fechou os olhos durante longos instantes, o suficiente para Gabriel olhar nervosamente para os monitores ao lado da cama. — Azul e branco — acabou por dizer. — Fazemos as nossas coisas sozinhos. Não pedimos a ajuda de ninguém, nem ajudamos os outros com os seus problemas. E, acima de tudo, não nos oferecemos como paus-mandados do Adrian Carter. — Está nesta cama de hospital e não no Gabinete do primeiro-ministro. Isso faz com que Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq também sejam problemas meus. Além disso, o mundo mudou, Ari. Temos de trabalhar juntos, se queremos sobreviver. As regras antigas já não se aplicam.

Shamron ergueu a mão de veias salientes e apontou para o copo de plástico sobre a mesa-de-cabeceira. Gabriel levou-o aos lábios de Shamron, que bebeu a água por uma palhinha.

— Vai empreender essa missão a pedido de quem? — indagou Shamron. — Adrian Carter, ou de alguém mais acima? — Ao receber o silêncio de Gabriel, Shamron afastou, zangado, o copo de água. — Pretende me tratar como uma espécie de inválido? Ainda sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados a segurança e informações. Ainda sou... — A voz sumiu, com uma fadiga súbita.

— Ainda é o memuneh — concluiu Gabriel.

Em hebraico, memuneh significava o responsável. Durante muitos anos, esse título fora reservado a Shamron. — Não vai atrás de um garoto qualquer de Nablus, Gabriel.Seus alvos são Ahmed bin Shafiq e Zizi al-Bakari. Se alguma coisa sair mal, o mundo vai cair em cima, e de muito alto. E seu amigo Adrian Carter não estará lá para catar teus pedaços. Talvez fosse melhor falar comigo. Já fiz esse tipo de coisas uma ou duas vezes.

Gabriel espreitou para o corredor e pediu aos agentes de segurança ali destacados que garantissem que qualquer sistema de vigilância de Shamron fosse desligado. Voltou então a sentar-se na cadeira ao lado da cama e, com a boca perto do ouvido de Shamron, contou tudo. Pelo menos por um instante, o olhar de Shamron pareceu mais concentrado. Quando lhe apresentou a primeira questão, Gabriel quase foi capaz de imaginar o homem de ferro que lhe entrara na vida durante uma tarde de Setembro de 1972.

— Já se decidiu a usar uma mulher? Gabriel anuiu.

— Vai precisar de alguém cujos antecedentes aguentem o escrutínio dos seguranças de Zizi, pagos a peso de ouro. Não pode usar uma das nossas garotas, nem uma judia não israelense. Se Zizi desconfiar que está olhando para uma judia, vai afastar-se dela. Precisa de uma gentia.

— O que eu preciso — explicou Gabriel — é de uma garota americana.

— Onde vai consegui-la?

A palavra única com que Gabriel respondeu fez Shamron franzir o sobrolho. — Não gosto da ideia de sermos responsáveis por uma agente deles. E se alguma coisa der errado?

— O que poderia dar errado?

— Tudo — retorquiu Shamron. — Sabe disso melhor do que ninguém.

Shamron pareceu subitamente exausto. Gabriel baixou a luz do abajur da mesa-de-cabeceira.

— O que vai fazer? — interrogou Shamron. — Vais ler-me uma história?

— Vou fazer-lhe companhia até que adormeça.

— Gilah pode fazer isso. Vai para casa descansar. Bem vais precisar.

— Fico mais um pouco.

— Vai para casa — insistiu Shamron. — Tens uma pessoa a sua espera que está ansiosa para vê-lo.

Vinte minutos depois, quando Gabriel virou para a Rua Narkiss, viu luzes acesas no seu apartamento. Estacionou o Skoda à esquina e percorreu em silêncio o passeio escurecido até o prédio. Quando entrou no apartamento, o ar estava carregado com o aroma a baunilha. Chiara estava sentada de pernas cruzadas em cima da mesa de trabalho, banhada pela luz forte das lâmpadas de halogêneo. Observou Gabriel quando este entrou, desviando então mais uma vez o olhar para o que em tempos fora uma sala de estar meticulosamente decorada.

— Gostei do que fizeste com a casa, Gabriel. Por favor, diz-me que não te livraste da nossa cama também.

Gabriel abanou a cabeça e beijou-a.

— Quanto tempo vais ficar por cá? — perguntou Chiara.

— Tenho de partir amanhã de manhã.

— Para variar, o meu sentido de oportunidade foi perfeito. Quanto tempo vais estar ausente?

— Não te sei dizer.

— Podes levar-me contigo? Desta vez, não.

— Para onde vais?

Gabriel ergueu-a da mesa de trabalho e apagou as luzes.

13

LONDRES

— Preciso de um Van Gogh, Julian.

— Precisamos todos, meu querido.

Isherwood puxou a manga do casaco e olhou para o relógio. Eram dez da manhã. Em geral, por essa hora já se encontrava na galeria, e não a passear à beira do lago de St. Jamess Park. Fez uma breve pausa para observar uma flotilha de patos que cruzavam a água calma em direção à ilha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos ao parque, para ver se estavam a ser seguidos. Depois agarrou em Isherwood pelo cotovelo e puxou-o para a Horse Guards Road. Eram um par díspar, figuras de quadros diferentes. Gabriel trazia jeans escuros e sapatos de camurça que não emitiam qualquer ruído quando andava. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de couro, os ombros curvados para a frente e os olhos verdes saltavam, inquietos, por todo o parque. Quinze anos mais velho do que

Gabriel e vários centímetros mais alto, Isherwood vestia um fato completo cinzento com riscas brancas e um sobretudo de lã. Os caracóis grisalhos tombavam soltos sobre a gola do sobretudo e saltitavam a cada passo desajeitado. Julian Isherwood tinha algo de precário na sua atitude. Como sempre, Gabriel teve de resistir ao impulso de ajudá-lo a equilibrar-se. Conheciam-se há trinta anos. O apelido tipicamente inglês e a posição social britânica ocultavam o fato de não ser, pelo menos tecnicamente, inglês de todo. Sim, tinha nacionalidade e passaporte britânicos, mas era de ascendência alemã, fora educado na França e era judeu de religião. Apenas um punhado de amigos de confiança sabia que Isherwood chegara a Londres em 1942 na condição de criança refugiada, depois de ter sido levado através dos Pirenéus por um par de pastores bascos. Ou que o pai, o afamado negociante de arte parisiense Samuel Isakowitz, fora assassinado no campo da morte de Sobibor, juntamente com a mãe de Isherwood. Havia mais uma coisa que Isherwood ocultava dos competidores no mundo da arte londrino, bem como do resto do mundo. Segundo o léxico do Escritório, Julian Isherwood era um sayan, um ajudante judaico voluntário. Fora recrutado por Ari Shamron com um único objetivo: ajudar a construir e a manter o disfarce de um único agente muito especial.

— Como está o meu amigo Mario Delvecchio? — perguntou Isherwood. — Desapareceu sem deixar rasto — respondeu Gabriel. — Espero que a minha revelação não te tenha causado problemas.

— De todo.

— Não houve comentários nas ruas? Não fizeram perguntas embaraçosas nos leilões? Não tiveste visitas dos agentes do MI5?

— Estás a perguntar-me se as pessoas de Londres me veem como um espião israelense venenoso?

— É exatamente isso que estou a perguntar-te.

— Está tudo calmo nesta frente, mas também nunca tivemos uma relação muito visível, certo? É a tua maneira de ser. Não és visível com nada. És um dos dois ou três melhores restauradores de arte do mundo e ninguém sabe quem tu és. É uma pena.

Chegaram à esquina da Great George Street. Gabriel cortou à direita, para

Birdeage Walk.

Quem sabe acerca de nós em Londres, Julian? Quem sabe que mantinhas uma relação profissional com o Mario?

Isherwood olhou para as árvores que ladeavam o passeio.

— Muito pouca gente. Jeremy Crabbe, da Bonhams, é claro. Continua possesso por lhe teres roubado aquele Rubens. — Isherwood levou a mão comprida e ossuda ao ombro de Gabriel. — Tenho um comprador. Agora só preciso do quadro. — Apliquei-lhe o verniz ontem, antes de sair de Jerusalém — explicou Gabriel.

— Vou utilizar um dos nossos exportadores para o trazer o mais depressa possível. Deves recebê-lo no final da semana. Por sinal, deves-me cento e cinquenta mil libras. — O cheque já está no correio, meu querido.

— Quem mais? — perguntou Gabriel. — Quem mais sabe de nós? Isherwood assumiu uma expressão pensativa.

— O maldito Oliver Dimbleby — respondeu. — Lembras-te do Oliver? Apresentei-o no Greens, uma bela tarde em que nós estávamos a almoçar. Aquele negociante atarracado de King Street. Certa vez tentou comprar-me a galeria. Gabriel lembrava-se. Ainda tinha, algures, o espalhafatoso cartão de visita dourado que Oliver lhe impingira. Oliver mal olhara na sua direção. Era a sua maneira de ser.

— Ao longo dos anos fiz muitos favores ao Crabbe — notou Isherwood. — O tipo de favores dos quais não gostamos de falar, no nosso ramo. Quanto ao Oliver Dimbleby, ajudei-o a resolver uma grande trapalhada que ele fez com uma garota que trabalhava na galeria dele. Recebi a desgraçada. Dei-lhe trabalho. Ela trocou-me por outro negociante. É o que as minhas garotas fazem sempre. O que se passa comigo para afastar sempre as mulheres? Sou um alvo fácil, é o que é. As mulheres percebem isso. O teu bando também. O Herr Heller percebeu-o bem.

Herr Rudolf Heller, investidor de Zurique, era uma das identidades preferidas de Shamron. Fora nesse papel que recrutara Isherwood.

— Por sinal, como está ele?

— Enviou-te cumprimentos.

Gabriel baixou o olhar para a calçada úmida de Birdeage Walk. Do parque levantou-se um vento frio. Folhas mortas restolhavam no caminho dos dois homens.

— Preciso de um Van Gogh — repetiu Gabriel.

— Sim, eu ouvi da primeira vez. O problema é que eu não tenho um Van Gogh. Caso te tenhas esquecido, a Isherwood Fine Arts é especializada em pintores renascentistas.

Se queres impressionistas, tens de procurar noutro lado.

— Mas sabes onde posso encontrar um.

— A menos que o queiras roubar, neste momento não há nada no mercado... pelo menos que eu saiba.

— Mas isso não é verdade, certo, Julian? Tu sabes de um Van Gogh. Falaste-me sobre ele há séculos... uma história acerca de um O quadro desconhecido que o teu pai vira em Paris, entre as guerras. — Não foi só o meu pai — corrigiu Isherwood. — Também eu o vi. O Vincent pintou-o em Auvers, durante os últimos tempos de vida. Diz-se que pode ter sido a sua desgraça.

O problema o quadro não está à venda, e talvez nunca venha a estar. A família deixou-me bem claro que nunca se vai separar dele. E também fazem tenção de manter a sua existência em segredo.

— Conta-me outra vez essa história.

— Agora não posso, Gabriel. Tenho um compromisso na galeria às dez e meia. Cancela esse compromisso, Julian. Conta-me sobre o quadro.

Isherwood cruzou a ponte pedonal sobre o lago e dirigiu-se à galeria em St. Jamess. Gabriel enfiou as mãos um pouco mais fundo nos bolsos do blusão e seguiu-o.

— Alguma vez o limpaste? — perguntou Isherwood.

— Ao Vincent? Nunca.

— O que sabes sobre os seus últimos tempos de vida?

— O que toda a gente sabe, creio eu.

— Tretas, Gabriel. Não te faças de desentendido comigo. A tua cabeça é como um dicionário de arte.

— Foi no Verão de 1890, não foi?

Isherwood acenou a sua concordância professoral. — Continua, por favor. — Depois de o Vincent ter deixado o sanatório em Saint-Rémy, foi para Paris, ver o Theo e a Johanna. Visitou algumas galerias e exposições, e parou na loja de material artístico de Père Tanguy, para ver algumas telas que lá tinha guardadas. Três dias depois começou a ficar impaciente, por isso apanhou um trem para Auvers-sur-Oise, a cerca de trinta quilômetros de Paris. Pensou que Auvers seria ideal, um ambiente bucólico sossegado para o seu trabalho, mas próximo de Theo, a tábua de salvação financeira e emocional. Alugou um quarto por cima do Café Ravoux e entregou-se aos cuidados do Dr. Paul Gachet. Gabriel agarrou o braço de Isherwood e juntos aproveitaram uma brecha no trânsito e entraram na Marlborough Road. — Começou a pintar imediatamente. Tal como o espírito, o estilo estava mais calmo e discreto. A agitação e a violência que caraterizaram grande parte do seu trabalho em Saint-Rémy e em Aries desaparecera. Foi também extraordinariamente prolífico. Durante os dois meses que Vincent ficou em Auvers, produziu mais de oitenta quadros. Um quadro por dia. Às vezes dois.

Viraram para King Street. Gabriel parou de repente. Mais à frente, a bambolear-se pelo passeio na direção da entrada da casa de leilões Christies, estava Oliver

Dimbleby. Isherwood cortou de súbito para Bury Street e retomou a narrativa no ponto onde Gabriel parara.

— Quando o Vincent não estava à frente da tela, normalmente encontrava-se no quarto por cima do Café Ravoux, ou na casa de Gachet. Este era um viúvo com dois filhos, um rapaz de quinze anos e uma filha que fez vinte e um durante a estadia de Vincent em Auvers.

— Marguerite. Isherwood anuiu.

— Era uma jovem bonita, que se sentia bastante atraída pelo Vincent. Acedeu em posar para ele... infelizmente sem a autorização do pai. Pintou-a no jardim da casa da família, vestida com uma túnica branca.

— Marguerite Gachet no Jardim — disse Gabriel.

— E quando o pai descobriu, ficou furioso.

— Mas ela voltou a posar.

— Correto — asseverou Isherwood. — O segundo quadro é Marguerite Gachet ao Piano. Também surge em Vegetação com Duas Figuras, um trabalho profundamente simbólico que alguns historiadores de arte viram como uma profecia da morte do próprio Vincent. Mas acredito que sejam Vincent e Marguerite a percorrer o corredor da igreja... a premonição de casamento de Vincent.

— Mas houve um quarto quadro de Marguerite?

Marguerite Gachet ao Toucador — clarificou Isherwood. — É de longe o melhor de todos. Apenas meia dúzia de pessoas o viu, ou sequer sabe que ele existe. O Vincent pintou-o poucos dias antes de morrer. E depois a obra desapareceu.

Caminharam até Duke Street e depois entraram numa passagem estreita, que dava acesso a um pátio quadrangular de tijolo chamado Masons Yard. A galeria de Isherwood ocupava um velho armazém vitoriano num canto, entalada entre os escritórios de uma empresa de navegação grega de pouca importância e um pub cheio de bonitas empregadas de escritório que dirigiam scooters. Isherwood fez menção de cruzar o pátio para se dirigir à galeria, mas Gabriel agarrou-lhe na lapela e puxou-o na direção oposta. Enquanto atravessavam o perímetro pelo meio das sombras frias, Isherwood comentou a morte de Vincent.

— Na noite de 27 de julho, Vincent voltou ao Café Ravoux, visivelmente em sofrimento, e subiu a custo a escada até seu quarto. Madame Ravoux seguiu-o e descobriu que fora alvejado. Mandou chamar um médico. Este, é claro, era o próprio Gachet. Decidiu deixar a bala na barriga do Vincent e convocou Theo a Auvers. Quando Theo chegou, na manhã seguinte, encontrou Vincent sentado na cama, fumando cachimbo. Morreu no fim desse dia.

Chegaram a uma zona iluminada pelo sol. Isherwood protegeu os olhos com a mão comprida.

— Existem muitas perguntas sem resposta quanto ao suicídio de Vincent. Não é claro onde conseguiu a arma, nem o local exato onde se alvejou. Também existem questões sobre a motivação. Terá sido o suicídio o culminar de uma longa batalha contra a loucura? Teria ficado perturbado com uma carta que recebera de Theo, onde este sugeria que não ia poder continuar a sustentá-lo, juntamente com a sua própria mulher e filho? Será que o Vincent se matou como parte de um plano para fazer com que o seu trabalho se tornasse relevante e comercialmente viável? Nunca fiquei muito satisfeito com nenhuma destas teorias. Acredito que tenha que ver com Gachet. Mais concretamente, com a filha do Dr. Gachet.

Voltaram a mergulhar nas sombras do pátio. Isherwood baixou a mão.

— No dia antes de se ter alvejado, Vincent foi a casa de Gachet. Discutiram violentamente e Vincent ameaçou Gachet com uma arma. Qual o motivo da discussão? Mais tarde, Gachet disse que teve que ver com uma moldura, consegues imaginar? Acredito que tenha sido por causa de Marguerite. Julgo que possa ter tido que ver com o Marguerite Gachet ao Toucador. É um trabalho maravilhoso, um dos melhores retratos do Vincent. A pose e o cenário representam claramente uma noiva na noite de núpcias.

O significado não teria passado despercebido a um homem como Paul Gachet. Se viu o quadro, e não há razão para acreditar que não tivesse visto, terá ficado enraivecido. Talvez Gachet tenha dito a Vincent que o casamento com a filha estava fora de questão. Talvez tenha proibido o Vincent de voltar a pintá-la. Talvez o tenha proibido de voltar a vê-la. Apenas sabemos que Marguerite Gachet não esteve presente no funeral de Vincent, embora tenha sido vista no dia seguinte, lavada em lágrimas, a deixar girassóis na campa dele. Nunca se casou e viveu em Auvers quase como uma reclusa até que morreu, em 1949. Passaram a entrada da galeria de Isherwood e continuaram a andar.

— Depois da morte do Vincent, os quadros tornaram-se propriedade do Theo. Preparou o envio dos trabalhos que o Vincent produzira em Auvers e armazenou-os em Père Tanguy, em Paris. Claro que o Theo morreu pouco depois do Vincent, e os quadros passaram para Johanna. Nenhum outro familiar de Vincent quis algum dos seus trabalhos. O irmão de Johanna considerou-os inúteis e sugeriu que fossem queimados. — Isherwood parou. — Consegues imaginar? — Voltou a avançar com um passo largo. -Johanna catalogou o inventário e foi incansável a criar a reputação do Vincent. Deve-se a Johanna que Vincent van Gogh seja considerado um grande artista. Mas há uma omissão notória na lista de trabalhos conhecidos.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Precisamente — confirmou Isherwood. — Terá sido um acidente, ou foi intencional? Nunca saberemos, claro está, mas tenho uma teoria. Acredito que Johanna soubesse que o quadro pode ter contribuído para a morte de Vincent. Seja qual for o caso, foi vendido por tuta-e-meia, cerca de um ano após a morte de Vincent, e nunca mais foi visto. E é nesse ponto que o meu pai entra na história.

Terminaram a primeira volta ao pátio e começaram uma segunda. Isherwood reduziu o ritmo quando começou a falar sobre o pai.

— Sempre foi um berlinense de coração. Teria lá permanecido sempre. Claro que não foi possível. O meu pai viu a tempestade que se aproximava e não perdeu tempo a sair da cidade. No final de 1936 tínhamos deixado Berlim e mudado para Paris. — Olhou para Gabriel.

— É pena que o teu avô não tenha feito o mesmo. Era um grande pintor, o teu avô. Descendes de uma bela linhagem, meu rapaz.

Gabriel mudou rapidamente de assunto.

— A galeria do teu pai ficava na rue de Ia Boétie, não era?

— É claro — replicou Isherwood. — Nessa altura, a rue de la Boétie era o centro do mundo da arte. Paul Rosenberg tinha a sua galeria no número 21. O Picasso e a Olga viviam no outro lado do pátio, no número 23. Georges Wildenstein, Paul Guillaume, Josse Hessel, Étienne Bignou... estava lá ioda a gente. A Isakowitz Fine Arts ficava ao lado da galeria do Paul Rosenberg. Vivíamos num apartamento por cima das salas de exposição. Picasso era o meu "Tio Pablo". Costumava deixar-me vê-lo a pintar e a Olga dava-me chocolates até ficar maldisposto.

Isherwood permitiu-se esboçar um sorriso, que se desvaneceu rapidamente quando regressou à história do pai em Paris.

— Os alemães chegaram em Maio de 1940 e começaram a pilhar tudo. O meu pai alugou uma casa de campo em Bordeaux, no lado de Vichy da linha, e mudou para lá a maior parte de suas peças importantes. Seguimos pouco tempo depois. Os alemães entraram na zona não ocupada em 1942 e tiveram início as rusgas e as deportações. Ficamos encurralados. O meu pai pagou a dois pastores bascos para me levarem através das montanhas até Espanha. Entregou-me documentos, um inventário profissional e alguns diários. Foi a última vez que o vi. Ouviu-se uma buzina sonora em Duke Street e um esquadrão de pombos alçou voo no pátio envolto em sombras.

— Foram precisos anos até ler os diários. Num deles descobri uma entrada sobre um quadro que o meu vira certa noite em Paris, na casa de um homem chamado Isaac Weinberg.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Weinberg disse ao meu pai que tinha comprado o quadro a Johanna, pouco depois da morte do Vincent, e que o oferecera à esposa como prenda de aniversário. Ao que parece, Mrs. Weinberg era parecida com Marguerite. O meu pai perguntou ao Isaac se estaria disposto a vendê-lo, mas a resposta foi negativa. Pediu ao meu pai que não mencionasse o quadro a ninguém, e ele fez-lhe a vontade. O celular de Isherwood chilreou e ele ignorou-o.

— No início da década de setenta, pouco antes de nos conhecermos, estive em Paris, em negócios. Fiquei com algumas horas entre compromissos e decidi procurar Isaac Weinberg. Fui à morada de Marais que estava nos cadernos do meu pai, mas Weinberg já lá não se encontrava. Não tinha sobrevivido à guerra. Mas conheci o filho, Marc, e falei-lhe da entrada no diário do meu pai. De início negou a história, mas acabou por ceder e permitiu-me que visse o quadro, não sem primeiro fazer-me jurar segredo eterno. Estava no quarto da filha. Perguntei-lhe se estaria interessado em desfazer-se dele. Recusou a oferta, é claro.

— Tens certeza de que é do Vincent?

— Sem sombra de dúvida. — E nunca mais lá voltaste?

— Monsieur Weinberg deixou bem claro que a pintura nunca estaria à venda. Achei que não fazia sentido lá voltar. — Isherwood deteve-se e encarou Gabriel. — Muito bem, meu querido. Já te contei a história. Imagino que me queiras explicar o que se passa.

— Preciso desse Van Gogh, Julian.

— Para quê?

Gabriel agarrou na manga de Isherwood e levou-o até a porta da galeria. Ao lado da porta de vidro havia um painel com intercomunicador, com quatro botões e respetivas placas de identificação. Num deles lia-se ISHRR OO FINE AR S: só com MARCAÇÃO. Isherwood abriu a porta com uma chave e conduziu Gabriel por um lance de escadas coberto por carpete marrom puído. À esquerda ficava uma pequena agência de viagens melancólica. A dona, uma solteirona chamada Miss Archer, estava sentada à secretária, à frente de um cartaz com um casal de ar feliz a chapinhar na água azul. A porta de Isherwood ficava à direita. A secretária mais recente, uma criatura de ar apologético chamada Tanya, olhou-os furtivamente quando Isherwood e Gabriel entraram.

— Este é Mr. Klein — apresentou-o Isherwood. — Quer ver uma coisa lá em cima. Sem interrupções, por favor. Bonita menina, Tanya, minha querida. Entraram para um elevador do tamanho de uma cabine telefônica e subiram tão próximos um do outro que Gabriel pôde sentir o cheiro do clarete da noite anterior no hálito de Isherwood. Segundos depois, o elevador parou com um solavanco e a porta abriu-se com um gemido. A sala de exposições de Isherwood encontrava-se na obscuridade, iluminada apenas pelo sol da manhã filtrado pela claraboia. Isherwood acomodou-se no divã forrado a veludo no centro da sala, enquanto Gabriel iniciava uma pequena visita. Os quadros eram quase invisíveis nas sombras profundas, mas conhecia-os bem: uma Vênus de Luini, uma natividade de Ferino dei Vaga, um batismo de Cristo de Bordone, uma paisagem luminosa de Claude.

Isherwood abriu a boca para falar, mas Gabriel levou um dedo aos lábios e retirou do bolso o que parecia ser um vulgar celular Nokia. Era com efeito um Nokia, mas o aparelho continha várias caraterísticas adicionais que não estavam disponíveis para clientes normais, como por exemplo um sinalizador GPS e um instrumento capaz de detectar a presença de transmissores ocultos. Gabriel deu mais uma volta à sala, desta vez com os olhos na tela do telefone. Depois sentou-se ao lado de Isherwood e, em voz baixa, disse-lhe por que precisava do Van Gogh.

— Zizi al-Bakari? — perguntou Isherwood, incrédulo. — É um diabo de um terrorista? Tem certeza?

— Não é ele que coloca as bombas, Julian. Nem sequer fabrica as bombas. Mas financia as bombas e usa seu império empresarial para facilitar o movimento de homens e materiais pelo globo. Atualmente, é tão ruim quanto ser terrorista. Pior.

— Conheci-o há tempos, mas ele não se lembraria. Fui a uma festa na propriedade dele em Gloucestershire. Uma festa enorme. Um mar de gente. Zizi nunca esteve presente. Desceu no fim, como se fosse um Gatsby. Cercado por guarda-costas, mesmo dentro da casa dele. Um tipo estranho. Mas é um colecionador voraz, não é? Arte. Mulheres. Tudo o que o dinheiro possa comprar. É um rapace, pelo que ouvi dizer. Nunca fiz negócios com ele, claro está. Zizi não se sente inclinado para os Renascentistas. Prefere os Impressionistas e mais algumas coisas modernas. Os árabes são todos assim. Não gostam da imagética cristã da Renascença.

Gabriel sentou-se ao lado de Isherwood.

— Ele não tem um Van Gogh, Julian. De vez em quando dá a entender que anda à procura de um. E não de um Van Gogh qualquer. Deseja algo especial. — Pelo que ouvi dizer, é muito cuidadoso com o que compra. Gasta rios de dinheiro, mas fá-lo com prudência. Tem uma coleção digna de um museu, mas nunca me tinha apercebido de que lhe faltava um Van Gogh.

— O conselheiro de arte dele é um inglês chamado Andrew Malone. Conhece-o?

— Infelizmente, Andrew e eu nos conhecemo bem. Tem enfiado bem as mãos nos bolsos de Zizi. Passa férias no iate de Zizi. Segundo parece, é grande como um Titanic. Andrew é velhaco. E porco, também.

— Em que sentido?

— Recebe de dois lados, meu querido.

— Que quer dizer com isso, Julian?

— Andrew tem um acordo exclusivo com Zizi, o que significa que não deve receber dinheiro de outros negociantes ou colecionadores de arte. É assim que os tubarões como Zizi garantem que os conselhos que recebem não são maculados por conflitos de interesse.

— O que anda a tramar o Malone?

— Extorsão, duplas comissões, de tudo um pouco.

— Tens certeza?

— Absoluta, meu querido. Toda a gente sabe que para fazer negócio com Zizi é preciso pagar ao Andrew Malone.

De repente, Isherwood levantou-se do divã e percorreu a sala de exposições. — Então e qual é seu plano? Fazer Zizi do buraco dele com um Van Gogh? Aparecer com ele diante dos olhos dele e esperar que engula anzol, linha e boia? Mas do outro lado da linha vai estar alguma coisa, não é? Um dos seus agentes?

— Algo do gênero.

— E onde pensa fazer isso? Aqui, imagino?

Gabriel olhou para a sala com um ar de aprovação.

— Sim — respondeu. — Acho que serve perfeitamente.

— Já receava.

— Preciso de um negociante — explicou Gabriel. — Alguém bem conhecido no ramo. Alguém em que eu possa confiar.

— Trabalho com pintores renascentistas, não com impressionistas.

— Isso não interessa, com um negócio discreto como este.

Isherwood não argumentou. Sabia que Gabriel tinha razão.

— Já pensaste nas consequências para mói, se o teu esquema der resultado? vou ficar marcado. Desenrasco-me bem com fuinhas como o Oliver Dimbleby, mas o raios parta da Al-Qaeda é outra história.

— É óbvio que teremos de tomar medidas pós-operacionais para tua segurança. — Adoro os teus eufemismos, Gabriel. Sempre que a verdade é demasiado horrível, tu e Shamron recorrem a eufemismos. Vão pôr a minha cabeça a prêmio. Vou ter de acabar com o negócio e me esconder.

Gabriel pareceu insensível aos protestos de Isherwood.

— Não está ficando mais jovem, Julian. Está quase no fim da linha. Não tem filhos. Não tem herdeiros. Quem vai ficar com a galeria? Além disso, já parou para pensar na comissão que vai receber pela venda particular de um Van Gogh desconhecido? Se juntar a isso o que vai ganhar com uma liquidação total, parece que as coisas podiam ser piores, Julian.

— Estou imaginando uma casinha no Sul da França. Um nome novo. Uma equipe de agentes do Escritório a protegerem-me durante a minha velhice. — Não te esqueças de me reservar um quarto. Isherwood voltou a sentar-se.

— O teu plano tem uma falha grave, meu querido. Vai ser mais fácil apanhares esse teu terrorista do que conseguir o Van Gogh. Partindo do princípio de que ainda está nas mãos da família Weinberg, o que te leva a pensar que vão abdicar dele?

— Ninguém disse que tinham de abdicar dele.

Isherwood sorriu.

— Vou buscar o endereço.

14

MARAIS, PARIS

— Devia comer alguma coisa — disse Uzi Navot.

Gabriel abanou a cabeça. Almoçara no trem de Londres.

— Experimenta o borscht — insistiu Navot. — Não pode vir ao Jo Goldenberg sem comer borscht.

— Posso, sim — contrapôs Gabriel. — Comida roxa me deixa nervoso.

Navot chamou a atenção do empregado e pediu uma dose dupla de borscht e um copo de vinho tinto. Gabriel franziu o sobrolho e olhou pela janela. Uma chuva constante açoitava o pavimento da rue des Rosiers e quase que anoitecera. Pretendera encontrar-se com Navot noutro local que não no mais famoso restaurante do mais importante bairro judaico de Paris, mas Navot insistira no Jo Goldenberg, com base na sua crença de que o melhor lugar para esconder um pinheiro era numa floresta.

— Este sítio está a deixar-me nervoso — murmurou Gabriel. Vamos dar uma volta. — com este tempo? Nem penses. Além disso, ninguém te vai reconhecer nessa figura. Até eu mal reparei em ti quando entraste.

Gabriel olhou para o rosto fantasmagórico refletido no copo. Tinha um boné de bombazina, lentes de contato que lhe transformavam os olhos verdes em castanho e uma barbicha falsa que lhe acentuava as feições já por si estreitas. Viajara para Paris com um passaporte alemão com o nome Heinrich Kiever. Depois de chegar à Gare du Nord, passara duas horas a caminhar pelas margens do Sena, a confirmar que não estava a ser seguido. Na mochila tinha um exemplar usado de Voltaire que comprara numa bouquiniste no Quai Montebello.

Dirigiu a atenção para Navot. Era um homem entroncado, vários anos mais novo do que Gabriel, de cabelo louro curto e olhos azuis pálidos. Segundo o léxico do Escritório, era um katsa, um agente de campo infiltrado. Armado com toda uma série de línguas, um encanto velhaco e uma arrogância fatalista, penetrara em células terroristas palestinas e recrutara agentes em embaixadas árabes espalhadas pela Europa Ocidental. Tinha fontes em quase todos os serviços de espionagem e de segurança europeus e geria uma rede vasta de sayanim. Podia sempre contar com a melhor mesa da churrascaria do Ritz de Paris, pois o maître d’hôtel era um informante pago, como também o chefe das empregadas de limpeza. Vestia agora um casaco cinzento de tweed e uma camisola de gola alta preta, pois a sua identidade em Paris era a de Vincent Laffont, um escritor freelance de livros de viagens, de ascendência bretã, que passava a maior parte do tempo na estrada. Em Londres era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura empresa de software canadiana. Em Madrid era um alemão de recursos independentes que passava o tempo em cafés e em bares, e que viajava para aliviar o fardo de uma alma agitada e complexa.

Navot tirou da pasta um dossiê que colocou na mesa à frente de Gabriel.

— Aqui está a dona do teu Van Gogh — disse. — Dá uma olhada.

Gabriel levantou discretamente a capa. A fotografia mostrava uma atraente mulher de meia-idade com cabelo escuro ondulado, pele cor de azeitona e um longo nariz aquilino. Segurava um guarda-chuva aberto e descia um lance de degraus de pedra em Montmartre.

— Hannah Weinberg — informou Navot. — Quarenta e quatro anos, solteira, sem filhos. É um bom exemplo da atual demografia judaica. Filha única sem filhos. Pelo andar da carruagem, não vamos precisar de um Estado. — Navot baixou o olhar e revirou, taciturno, o prato de frango recheado com legumes. Tendia para períodos de desânimo, especialmente quando se tratava do futuro do povo judeu. — É dona de uma pequena boutique em Montmartre, na rue Lepic. Chama-se Boutique Lepic. Tirei a foto no início da tarde, quando estava a sair para almoçar. Ficamos com a impressão de que a boutique é mais um passatempo do que vocação. Dei uma vista de olhos às contas bancárias dela. O Marc Weinberg deixou à filha uma vida desafogada.

O empregado aproximou-se e colocou um prato de uma mistela roxa à frente de Gabriel, que o empurrou de imediato para o centro da mesa. Não suportava o cheiro do borscht. Navot deitou um naco de pão para dentro do caldo e mergulhou-o com a colher.

— O Weinberg era um homem interessante. Era um advogado importante, aqui em Paris. Era também um militante das recordações. Pressionou bastante o Governo para que assumisse o papel dos franceses no Holocausto. Como resultado, ganhou uma certa impopularidade em alguns círculos parisienses.

— E a filha? Qual é a cor dela?

— Euro-socialista moderada, mas na França isso não é crime. Também herdou alguma militância do pai. Está envolvida com um grupo que tenta combater o anti-semitismo. Já se encontrou com o presidente francês. Vê debaixo da fotografia.

Gabriel encontrou um recorte de uma revista francesa sobre a onda de anti-semitismo na França. A fotografia acompanhante mostrava manifestantes judaicos numa marcha sobre as pontes do Sena. À frente da coluna, com um cartaz que dizia ACABEM com o ÓDIO JÁ, seguia Hannah Weinberg.

— Alguma vez foi a Israel?

— Pelo menos quatro vezes. Shabak está a investigar para garantir que ela não esteve em Ramallah, a conspirar com os terroristas. Tenho certeza de que não vão encontrar nada. Ela é sincera, Gabriel. Uma dádiva dos deuses da inteligência.

— Preferências sexuais?

— Homens, segundo julgamos. Está envolvida com um funcionário público.

— Judeu?

— Graças a Deus.

— Esteve na casa dela?

— Entrei com a equipe neviot.

As equipes neviot eram especializadas na obtenção de informações de locais como apartamentos, escritórios e quartos de hotel. A unidade empregava alguns dos melhores arrombadores e ladrões do mundo. Mais à frente na operação, Gabriel tinha outros planos para eles isso é claro, desde que Hannah Weinberg aceitasse separar-se do seu Van Gogh.

— Viste o quadro? Navot anuiu.

— Está no quarto de quando era pequena.

— Qual era o aspeto dele?

— Queres a minha avaliação de um Van Gogh? — Navot encolheu os ombros maciços. — É um quadro bonito, de uma garota sentada a um toucador. Não tenho uma veia artística, como tu. Sou mais virado para frango estufado e uma boa história de amor no cinema. Não estás a comer a tua sopa. — Não gosto, Uzi. Eu disse-te que não gostava.

Navot pegou na colher de Gabriel e mexeu o creme picante, aclarando o tom da mistura roxa.

— Demos uma vista de olhos aos papéis dela — continuou Navot. — Revistamos os armários e as gavetas. Também deixamos umas coisas no telefone e no computador. Nestas situações, todo o cuidado é pouco. — A casa está vigiada?

Navot pareceu ficar magoado com a pergunta.

— E claro — respondeu.

— O que estão a usar como posto de escuta?

— Por enquanto, uma van. Se ela concordar em ajudar-nos, vamos precisar de algo mais permanente. Um dos rapazes da neviot já anda no bairro à procura de um apartamento adequado.

Navot afastou os restos do frango estufado e atacou o borscht de Gabriel. Apesar da sua sofisticação europeia, no fundo continuava a ser um camponês do shtetl. — Já sei no que isso vai dar — comentou, entre colheradas. — Vais à procura do mau da fira, e eu fico um ano inteiro a vigiar uma mulher. Mas sempre foi assim, não é? Ficas com a glória toda, enquanto a mão de obra de campo faz o trabalho sujo. Meu Deus, salvaste o papa. Como um simples morcomo eu pode competir com isso?

— Cala-te e come a sopa, Uzi.

Ser o favorito de Shamron tinha o seu preço. Gabriel estava habituado à inveja profissional dos colegas.

— Amanhã tenho de sair de Paris — disse Navot. — Vou estar fora apenas um dia.

— Aonde vai?

— Amos quer falar comigo. — Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Acho que tem a ver com o cargo das Operações Especiais. O cargo que tu recusaste. Fazia sentido, pensou Gabriel. Navot era um agente de campo extremamente capaz, que participara em várias operações de monta, incluindo algumas com Gabriel. — É isso que quer, Uzi? Um trabalho no Boulevard King Saul?

Navot encolheu os ombros.

— Já ando no campo há muito tempo. Bella quer se casar. É difícil ter uma vida pessoal estável quando se vive assim. Às vezes, quando acordo de manhã, não faço ideia de onde vou estar no fim do dia. Posso tomar o pequeno-almoço em Berlim, almoçar em Amsterdam e estar no Rei Saul à meia-noite, apresentando relatório ao diretor. — Navot ofereceu um sorriso cúmplice a Gabriel. — É isso que os americanos não entendem. Enfiam os agentes em caixinhas e depois os castigam quando pisam na risca. O Escritório não é assim. Nunca foi. É por isso que temos o melhor trabalho do mundo... e é por isso que os nossos serviços são muito melhores que os deles. Não saberiam o que fazer com um homem como você.

Navot perdera o interesse no borscht. Empurrou-o, para que parecesse que Gabriel o comera. Gabriel pegou no copo de vinho, mas depois reconsiderou. Doía-lhe a cabeça por causa da viagem de trem e do tempo chuvoso de Paris, e o vinho tinha um cheiro tão apelativo como diluente.

— Mas tem o seu preço nos casamentos e nas relações, não é, Gabriel? Quantos de nós são divorciados? Quantos de nós tiveram romances com garotas no campo? Pelo menos se trabalhar em Tel Aviv vou estar mais vezes em casa. Continua a ser preciso viajar muito, mas não tanto como agora. A Bella tem uma casa perto da praia, em Cesareia. Vai ser uma boa vida. — Voltou a encolher os ombros.

— Escutem só. Estou falando como se Amos tivesse me oferecido o cargo. Amos não me ofereceu nada. Até pode estar me chamando ao Boulevard King Saul para me despedir.

— Não seja ridículo. É o homem mais indicado para o cargo. Vai ser meu chefe, Uzi.

— Seu chefe? Por favor. Você não tem chefes, Gabriel. Só o velhote.

A expressão de Navot tornou-se subitamente grave. — Como está ele? Ouvi dizer que não está bem.

— Vai se recuperar — assegurou-lhe Gabriel.

Ficaram em silêncio quando o empregado se aproximou da mesa e levantou os pratos. Ao afastar-se, Gabriel devolveu o dossiê a Navot, que o voltou a guardar na pasta.

— Como vai agir com Hannah Weinberg?

— Vou pedir que ceda um quadro que vale oitenta milhões de dólares. Tenho que contar a verdade... ou pelo menos uma versão da verdade. E depois teremos de lidar com as consequências da segurança.

— E quanto à abordagem? Vai dançar um pouco, ou vai cair matando?

— Eu não danço, Uzi. Nunca tive tempo para dançar.

— Pelo menos não terá problema em convencê-la de quem é. Graças aos serviços de segurança franceses, todos em Paris conhecem seu nome e seu rosto. Quando pretende começar?

— Esta noite.

— Nesse caso, está com sorte.

Navot fitou a janela. Gabriel seguiu seu olhar e viu uma mulher de cabelo escuro descendo a rue des Rosiers, abrigada por um guarda-chuva. Levantou-se sem uma palavra e dirigiu-se à porta.

— Não se preocupe, Gabriel — resmungou Navot entre dentes. — Eu pago a conta.

No final da rua, ela virou à esquerda e desapareceu. Gabriel fez uma pausa à esquina e observou alguns ortodoxos de casaco negro a entrarem para uma sinagoga, para as orações da tarde. Depois olhou para a rue Pavée e viu a silhueta de Hannah Weinberg a entrar nas sombras. Parou à porta de um prédio de apartamentos e procurou a chave na mala. Gabriel cruzou o passeio e deteve-se a pouca distância dela, no momento em que a mulher esticava a mão para a fechadura.

— Mademoiselle Weinberg?

Virou-se e olhou-o calmamente na escuridão. Dos olhos emanava uma inteligência calma e sofisticada. Se ficou sobressaltada com a abordagem, não o mostrou.

— É Hannah Weinberg, não é?

— Em que posso ajudá-lo, Monsieur?

— Preciso da sua ajuda — disse Gabriel. — Pensei que talvez pudéssemos conversar em privado.

— Conhecemo-nos, Monsieur?

— Não — respondeu Gabriel.

— Nesse caso, como poderei ajudá-lo?

— Seria preferível discutirmos o assunto em particular, Mademoiselle.

— Não costumo ir a locais privados com desconhecidos, Monsieur. Agora, se me dá licença.

Virou-se e dirigiu outra vez a mão à fechadura.

— Tem que ver com o seu quadro, Mademoiselle Weinberg. Preciso falar com você sobre o seu Van Gogh.

Ela imobilizou-se e voltou a fitá-lo. O olhar continuava calmo.

— Lamento desapontá-lo, Monsieur, mas não tenho um Van Gogh. Se gostaria de ver algumas pinturas de Vincent, sugiro que visite o Musée d’Orsay.

Voltou a desviar o olhar.

— Marguerite Gachet ao Toucador — disse Gabriel calmamente. Foi adquirido pelo seu avô à viúva de Theo van Gogh, Johanna, e oferecido à sua avó como presente de aniversário. A sua avó tinha uma vaga semelhança com Mademoiselle Gachet.

Quando era pequena, o quadro estava no seu quarto. Devo continuar? A compostura dela desapareceu. Quando voltou a falar, após um momento de silêncio espantado, a voz denotava uma veemência inesperada.

— Como sabe do meu quadro?

— Não tenho liberdade para o revelar.

— É claro que não. — A frase foi proferida como um insulto.

— O meu pai sempre me avisou que, um dia, um negociante de arte francês ganancioso iria tentar retirar-me o quadro. Não está à venda e, se por acaso desaparecer, garanto que a Polícia vai receber a sua descrição.

— Não sou negociante de arte... e não sou francês

— Então quem é o senhor? — questionou. — E o que pretende do meu quadro?


15

MARAIS, PARIS

O patio encontrava-se vazio e escuro, iluminado apenas pelas luzes das janelas dos apartamentos mais acima. Cruzaram-no em silêncio e entraram no hall, onde um antiquado elevador de portas de grades os aguardava. Ela preferiu a escada amplas e guiou-o até o terceiro andar. No patamar viam-se duas portas imponentes de mogno. A porta à direita não tinha identificação. Hannah Weinberg abriu-a e entraram. Gabriel registrou o fato de ela ter digitado um código no teclado antes de acender as luzes. Não havia dúvida de que Hannah Weinberg era boa a guardar segredos. O apartamento era grande, com um hall de entrada formal e uma biblioteca adjacente à sala. Via-se mobília antiga coberta de brocado, cortinados grossos de veludo nas janelas, e um relógio de ouropel com as horas erradas tiquetaqueava calmamente no rebordo da lareira. O olhar profissional de Gabriel dirigiu-se de imediato aos seis quadros a óleo bastante decentes que estavam pendurados nas paredes. A decoração criava o ar de uma era passada. Gabriel não ficaria surpreendido se visse Paul Gachet a ler o jornal à luz do gás.

Hannah Weinberg tirou o casaco e desapareceu na cozinha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos à biblioteca. Volumes encadernados a couro enchiam estantes de madeira com portas de vidro. Havia mais pinturas na divisão, paisagens prosaicas, um homem a cavalo, a obrigatória batalha marítima, mas nada que sugerisse que a dona pudesse também deter um Van Gogh perdido.

Regressou à sala no momento em que Hannah Weinberg surgia da cozinha com uma garrafa de Sancerre e dois copos. Entregou-lhe a garrafa e um saca-rolhas e observou-lhe cuidadosamente as mãos enquanto puxava a rolha. Não era tão atraente como parecera na fotografia de Uzi Navot. Talvez se devesse à luz parisiense, ou talvez praticamente qualquer mulher parecesse atraente a descer um lance de escadas em Montmartre. A saia de lã pregueada e a camisola pesada ocultavam o que Gabriel imaginava ser uma figura roliça. As sobrancelhas eram muito largas e emprestavam-lhe um ar de profunda seriedade ao rosto. Sentada como estava naquele momento, cercada pelas peças datadas da sala, parecia ter muito mais de quarenta e quatro anos de idade.

— Surpreende-me vê-lo em Paris, Monsieur Allon. Da última vez que li o seu nome no jornal, ainda era procurado para ser interrogado pela Polícia francesa. — Receio que ainda seja o caso.

— Mesmo assim, veio à França... só para falar comigo? Deve ser muito importante.

— É verdade, Mademoiselle Weinberg.

Gabriel serviu dois copos de vinho, entregou-lhe um e ergueu o outro num brinde silencioso. Ela imitou-o, ao que levou o copo aos lábios.

— Tem noção do que aconteceu aqui em Marais depois do atentado? — Hannah Weinberg respondeu à sua própria questão. — As coisas ficaram muito tensas. Dizia-se que tinha sido levado a cabo por Israel. Todos acreditavam que era verdade e, infelizmente, o Governo francês demorou muito tempo a lidar com a situação, mesmo depois de saberem que era mentira. Os nossos filhos foram agredidos nas ruas. Atiraram pedras às janelas e às vitrines. Escreveram coisas terríveis nas paredes de Marais e de outros bairros judeus. Sofremos bastante devido ao que aconteceu naquela estação ferroviária. — Lançou-lhe um olhar perscrutador, como se tentasse avaliar se fora mesmo aquele homem que vira nos jornais e na televisão. — Mas também sofreu, não foi? É verdade que a sua mulher esteve envolvida?

O tom direto da pergunta surpreendeu Gabriel. O seu primeiro instinto foi mentir, ocultar, levar mais uma vez a conversa para outro terreno. Mas tratava-se de um recrutamento — e Shamron dizia sempre que um recrutamento perfeito é, em essência, uma sedução perfeita.

E quando se estava a seduzir, obrigou-se Gabriel a recordar-se, era preciso revelar algo pessoal.

— Raptaram a minha esposa para me atraírem para a Gare de Lyon explicou. — Pretendiam matar-nos a ambos, mas também queriam desacreditar Israel e tornar a vida insuportável para os judeus da França.

— E conseguiram... pelo menos durante algum tempo. Não me interprete mal, Monsieur Allon, a situação continua difícil para nós. Apenas não tão má como nos dias que se seguiram ao atentado. — Bebeu mais um pouco de vinho, depois cruzou as pernas e alisou as pregas da saia. — Isto pode soar tolo, quando pensamos para quem trabalha, mas como descobriu o meu Van Gogh? Gabriel ficou em silêncio por um instante e depois respondeu-lhe com sinceridade. A menção da visita de Isherwood àquele apartamento havia mais de trinta anos fez com que esboçasse um vago sorriso de recordação. — Acho que me lembro dele — disse. — Um homem alto, muito elegante, cheio de charme e de graciosidade, mas, ao mesmo tempo, um tanto ou quanto vulnerável.

— Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Tal como o senhor.

— Charme e graciosidade são qualidades que raramente me atribuem. — E vulnerabilidade? — Ofereceu-lhe mais um sorriso breve, que lhe aliviou a seriedade do rosto. — Todos nós somos vulneráveis até certo ponto, não é verdade? Até mesmo alguém como o senhor? Os terroristas descobriram o seu ponto fraco e exploraram-no. É o que fazem de melhor. Exploram a nossa decência.

O nosso respeito pela vida. Atacam o que nos é mais caro. Navot tinha razão, pensou Gabriel. Ela era uma dádiva dos deuses da inteligência. Pousou o copo sobre a mesa de centro. Os olhos de Hannah seguiram os movimentos.

— O que aconteceu a esse homem, Samuel Isakowitz? — perguntou Hannah. — Conseguiu se salvar?

Gabriel abanou a cabeça.

— Ele e a mulher foram capturados em Bordeaux, quando os alemães se deslocaram para o sul.

— Para onde foram enviados?

— Sobibor.

Sabia o que isso significava. Gabriel não precisava dizer mais nada.

— E seu avô? — perguntou ele.

Hannah olhou para o Sancerre por um momento, antes de responder.

— Jeudi Noir — disse. — Conhece o termo?

Gabriel aquiesceu com solenidade. Jeudi Noir. Quinta-Feira Negra. — Na manhã do dia 16 de Julho de 1942, quatro mil agentes da Polícia francesa invadiram Marais e outros bairros judeus de Paris, com ordens para deter vinte e sete mil judeus imigrantes da Alemanha, da Áustria, da Polônia, da União Soviética e da Checoslováquia. Meu pai e os meus avós estavam na lista. Sabe, os meus avós eram de Lublin, na Polónia. Os dois polícias que bateram à porta deste apartamento tiveram pena do meu pai e disseram-lhe que fugisse. Uma família católica que vivia no andar de baixo acolheu-o e aí ficou até a libertação. Os meus avós não tiveram a mesma sorte. Foram enviados para o campo de detenção de Drancy. Cinco dias depois, partiram num vagão selado para

Auschwitz. É claro que foi o seu fim.

— E o Van Gogh?

— Não houve tempo para tomar providências, e não havia ninguém em Paris em quem o meu avô pudesse confiar. Estávamos em guerra, sabe. As pessoas traíam-se por meias e por cigarros. Quando ouviu dizer que estavam a prender os judeus, retirou a pintura do esticador e escondeu-a por baixo de uma tábua do soalho da biblioteca. Depois da guerra passaram-se anos até que o meu pai conseguisse recuperar o apartamento. Uma família francesa tinha-se mudado para cá depois de os meus avós terem sido presos, e não estavam dispostos a abdicar de um bom apartamento na rue Pavée. Não se podia censurá-los.

— Em que ano o seu pai recuperou a posse da casa?

— Em 1952.

— Dez anos — disse Gabriel. — E o Van Gogh ainda lá estava?

— Tal como o meu avô o deixara, escondido debaixo do soalho da biblioteca.

— Espantoso.

— Sim — concordou. — O quadro está na família Weinberg há mais de um século, atravessou a guerra e o Holocausto. E agora está a pedir-me para abrir mão dele.

— Não quero que abra mão da pintura — asseverou Gabriel.

— Então de que se trata?

— Apenas preciso de... — Fez uma pausa, em busca da palavra correta. — Preciso alugá-lo.

— Alugar? Durante quanto tempo?

— Não lhe sei dizer. Talvez um mês. Talvez seis meses. Talvez um ano, ou mais. — com que objetivo?

Gabriel não estava preparado para responder. Pegou a rolha e usou a unha do polegar para arrancar uma lasca.

— Sabe quanto vale aquele quadro? — indagou Hannah. — Se está pedindo que o ceda, mesmo que por pouco tempo, creio que tenho o direito de saber o motivo.

— É verdade — concordou Gabriel —, mas também deve saber que se lhe contar a verdade sua vida nunca mais será a mesma.

Hannah serviu-se de mais vinho e segurou o copo de encontro ao corpo por um momento, sem o beber.

— Há dois anos, houve um ataque particularmente violento aqui em Marais. Um menino ortodoxo foi emboscado por um bando de norte-africanos, quando ia para casa. Pegaram-lhe fogo ao cabelo e gravaram-lhe uma suástica na testa. Ainda tem a cicatriz. Organizamos uma manifestação com o objetivo de pressionar o Governo francês a fazer alguma coisa quanto ao antissemitismo. Quando nos manifestávamos na place de la Republique, houve uma contramanifestação anti-israelense. Sabe o que eles nos gritavam?

— Morte aos judeus.

— E sabe o que disse o presidente francês?

— Não há antissemitismo na França.

— Desde esse dia, a minha vida nunca mais foi a mesma. Além disso, como já deve ter percebido, sei guardar um segredo. Diga-me para que quer o meu Van Gogh, Monsieur Allon. Talvez possamos chegar a um acordo.

A van de vigilância neviot estava estacionada junto ao Parc Royal. Uzi Navot bateu duas vezes com os nós dos dedos no vidro traseiro espelhado e a porta foi-lhe aberta de imediato. Um agente neviot estava sentado ao volante. O outro estava nas traseiras, curvado sobre uma consola eletrônica com um par de fones nos ouvidos. — O que há? — perguntou Navot.

— Gabriel já a conquistou — respondeu o neviot. — E agora vai cair matando.

Navot colocou os fones e ouviu Gabriel contar a Hannah Weinberg a forma como usaria o Van Gogh para localizar o homem mais perigoso do mundo. A chave estava guardada na gaveta de cima da secretária da biblioteca. Hannah utilizou-a para destrancar a porta ao fundo do corredor escuro. A divisão atrás da porta era um quarto de criança. O quarto de Hannah imobilizado no tempo, pensou Gabriel. Uma cama de dossel com pálio de renda. Prateleiras repletas de animais de pelúcia e brinquedos. Um poster de um ator americano charmoso. E, pendurado sobre uma cômoda provençal francesa, envolto nas sombras profundas, um quadro perdido de Vincent van Gogh.

Gabriel avançou lentamente e deteve-se à frente dele, a mão direita no queixo, a cabeça um pouco inclinada. Depois estendeu a mão e tocou de leve nas pinceladas sumptuosas. Eram de Vincent — Gabriel tinha certeza. Vincent em chamas. Vincent apaixonado. O restaurador avaliou calmamente o alvo. O quadro parecia nunca ter sido limpo. Estava coberto por uma leve camada de sujidade e apresentava três rachas horizontais — resultado, imaginou Gabriel, de ter sido enrolado com demasiada força por Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. — Imagino que devamos falar sobre o dinheiro — comentou Hannah. — Quanto pensa o Julian que vai render?

— À volta de oitenta milhões. Permiti que retirasse uma comissão de dez por cento, como compensação pelo papel na operação. O restante dinheiro será de imediato transferido para si.

— Setenta e dois milhões de dólares?

— Mais milhão, menos milhão, é claro. E quando a operação terminar?

— Recupero o quadro. — Como pretende fazê-lo?

— Deixe isso comigo, Mademoiselle Weinberg.

— E o que acontece aos setenta e dois milhões, quando me devolver o quadro? Mais milhão, menos milhão, é claro.

— Pode ficar com os juros acumulados. Para além disso, vou pagar-lhe uma taxa de aluguer. O que acha de cinco milhões de dólares?

Hannah sorriu.

— Parece-me bem, mas não pretendo ficar com o dinheiro para mim. Não quero o dinheiro deles.

— Nesse caso, o que tenciona fazer? Hannah explicou-lhe.

— Parece-me muito bem — replicou Gabriel. — Negócio fechado, Mademoiselle Weinberg?

— Sim — assentiu ela. — Negócio fechado.

Depois de sair do apartamento de Hannah Weinberg, Gabriel dirigiu-se a uma casa de segurança do Escritório, perto do Bois de Boulogne. Vigiaram-na durante três dias. Gabriel apenas a viu nas fotografias de vigilância e só ouviu a sua voz nas gravações. Todas as noites as escutava, em busca de sinais de traição, ou de indiscrição, mas apenas encontrou fidelidade. Na véspera do dia em que deveria entregar o quadro, ouviu-a a chorar baixinho e percebeu que se despedia de Marguerite.

Na manhã seguinte, Navot trouxe o quadro, enrolado numa manta velha que viera do apartamento de Hannah. Gabriel chegou a pensar em enviá-lo para Tel Aviv através de um correio, mas acabou por decidir ser ele próprio a levá-lo da França. Retirou-o da moldura e depois soltou a tela da armação. Quando a enrolou cuidadosamente, pensou em Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. Agora, em vez de escondida por baixo do soalho, estava oculta em segurança por baixo do forro falso da mala de Gabriel. Navot levou-a à Gare du Nord. Um agente da Estação de Londres estará à espera em Waterloo — disse Navot. — Ele o leva a Heathrow. El Al está à espera. Vão garantir que não tenha problema com a bagagem.

— Obrigado, Uzi. Não demora e vai deixar de me fazer preparativos para as viagens.

— Eu não teria assim tanta certeza.

— As coisas não correram bem com Amos?

— Ele é muito fechado.

— O que disse ele?

— Disse que precisava de uns dias para pensar.

— Não estava esperava que ele te oferecesse o cargo de mão beijada, certo?

— Nem sei o que esperava.

— Não se preocupe, Uzi. Vai ficar com o cargo.

Navot parou no acostamento, a um quarteirão da estação.

— Pode dar uma palavrinha por mim na King Saul, Gabriel? Amos gosta de você.

— O que leva você a dizer isso?

— É fácil de ver — explicou-lhe. — Todos gostam de você.

Gabriel saiu do carro, retirou a mala do banco traseiro e desapareceu no interior da estação. Navot esperou na beira até cinco minutos depois da hora da partida de Gabriel. Depois arrancou para o meio do trânsito e afastou-se.

Quando Gabriel chegou, o apartamento estava às escuras. Acendeu uma lâmpada e ficou aliviado ao ver o estúdio intato. Entrou no quarto e viu Chiara sentada na cama. Lavara o cabelo e o prendera com um elástico de veludo. Gabriel retirou-o e desabotoou sua camisola. Enquanto faziam amor, o quadro ficou a seu lado.

— Sabe — comentou Chiara —, a maior parte dos homens volta de Paris com um lenço Hermès e um perfume.

À meia-noite, o telefone tocou. Gabriel atendeu antes do segundo toque. — Estarei lá amanhã — disse, após um momento, e desligou.

— Quem era? — perguntou Chiara. — Adrian Carter.

— O que ele queria?

— Quer que vá imediatamente para Washington.

— O que há em Washington?

— Uma garota — explicou Gabriel. — Carter encontrou a garota.

16

MCLEAN, VIRGÍNIA

— Como foi o voo?

— Nunca mais acabava.

— São as correntes de jato do outono — explicou Carter, com um certo pedantismo. — Atrasa pelo menos duas horas os voos da Europa para a América.

— Israel não fica na Europa, Adrian. Israel fica no Oriente Médio.

— Sério?

— Pergunte a seu diretor de informações. Ele esclarece a confusão.

Carter lançou um olhar de desdém a Gabriel, ao que devolveu a atenção à estrada. Dirigiam-se a Washington no Volvo amolgado de Carter, através da Dulles Access Road. Carter vestia um casaco de bombazina com remendos nos cotovelos, o que reforçava a imagem acadêmica. Só lhe faltava o saco de lona para os livros e a caneca personalizada. Conduzia bem abaixo do limite de velocidade e olhava com frequência para o espelho retrovisor.

— Estamos a ser seguidos? — perguntou Gabriel.

— Polícia de trânsito — explicou Carter. — São fanáticos, nesta estrada. Algum problema com o controle do passaporte?

— Nenhum — respondeu Gabriel. — Por acaso, pareciam muito contentes por me verem.

Era algo que Gabriel nunca compreendera em relação à América

— a cordialidade dos agentes de fronteira. Sempre vira algo de reconfortante no mau humor enfadado dos israelenses que carimbavam passaportes no Aeroporto Ben-Gurion. Os funcionários aduaneiros americanos eram demasiado cordiais. Olhou pela janela. Tinham deixado a Dulles Access Road e seguiam agora por McLean. Apenas estivera uma vez na Virgínia, para uma visita breve a uma casa de segurança da CIA, nas profundezas da terra dos cavalos, perto de Middleburg. Considerou McLean o típico subúrbio americano, limpo e próspero, mas com uma certa falta de vida. Atravessaram o bairro comercial da baixa e depois entraram numa secção residencial com grandes casas que pareciam saídas de um panfleto imobiliário. Os empreendimentos tinham nomes como Merrywood e Colonial Estates. Um sinal rodoviário flutuou na sua direção: CENTRO DE INFORMAÇÃO GEORGE BUSH.

— Não vais levar-me à sede, certo?

— É claro que não — garantiu Carter. — Vamos para o Bairro.

Gabriel sabia que o Bairro era a forma como os habitantes de Washington se referiam à pequena aldeia no Potomac. Cruzaram um viaduto sobre a autoestrada e entraram numa zona de encostas e matas densas. Por entre as árvores, Gabriel avistou casas imponentes em frentes ao rio.

— Como se chama?

— Sarah Bancroft — respondeu Carter. — O pai era executivo da divisão internacional do Citibank. Cresceu quase sempre na Europa. Ao contrário da maioria dos americanos, sente-se confortável no estrangeiro. Fala algumas línguas estrangeiras. Sabe usar os talheres na altura correta.

— Estudos?

— Regressou à América para fazer o curso superior. Licenciou-se em História da Arte em Dartmouth, e depois estudou no Courtauld Institute of Art, em Londres. Imagino que conheças o Courtauld?

Gabriel anuiu. Era uma das mais prestigiadas escolas de arte do mundo. Nele tinham-se formado nomes como um certo negociante de arte de St. James chamado Julian Isherwood.

— Depois do Courtauld, fez um doutorado em Harvard prosseguiu Carter. — Agora é conservadora do Phillips Colletion, em Washington. É um pequeno museu, perto de...

— Eu conheço o Phillips Colletion, Adrian.

— Desculpe — lamentou-se Adrian, sinceramente. Um veado surgiu de entre as árvores e cruzou-se no caminho do carro. Adrian levantou o pé do acelerador e observou o animal a desaparecer em silêncio na mata escura.

— Como ficaram sabendo dela? — perguntou Gabriel, mas Carter não respondeu. Estava inclinado sobre o volante, a perscrutar as árvores ao longo da estrada, à procura demais veados.

— Quando aparece um — explicou —, normalmente há mais.

— Como os terroristas — comentou Gabriel. Repetiu a pergunta.

— Ela candidatou-se aos nossos serviços poucos meses depois do onze de Setembro — explicou Carter. — Tinha acabado o doutorado. Parecia interessante na ficha, por isso a chamamos e entregamos aos psiquiatras do RH. Interrogaram-na e não gostaram do que viram. Independente demais, foi o que disseram. Talvez até um pouco inteligente demais para seu próprio bem. Quando a recusamos, foi parar no Phillips. — Estás a oferecer-me uma das suas rejeitadas?

— Não é um termo que se aplique a Sarah Bancroft. — Carter retirou uma fotografia do bolso do casaco, que entregou a Gabriel. Sarah Bancroft era uma mulher extremamente bonita, de cabelo louro à altura dos ombros, maçãs do rosto largas e olhos grandes da cor de um céu límpido de Verão.

— Idade?

— Trinta e um.

— Por que não é casada?

Carter hesitou por um momento.

— Por que não é casada, Adrian?

— Teve um namorado em Harvard, um jovem advogado chamado Ben Callahan. As coisas acabaram mal.

— O que aconteceu com Ben?

— Pegou um avião para Los Angeles no Logan Airport na manhã do 11 de setembro de 2001.

Gabriel estendeu a fotografia a Carter.

— Zizi não vai contratar alguém que tenha sido afetado pelo Onze de Setembro. Trouxe-me aqui para nada, Adrian.

Carter manteve as mãos no volante.

— Ben Callahan era um namorado de escola, não era um marido. Além disso, Sarah nunca fala sobre ele com ninguém. Quase tivemos de arrancar essa informação. Ela receava que a morte do Ben a perseguisse para o resto da vida, que as pessoas a tratassem como se fosse uma viúva aos vinte e seis anos. Ela não fala no assunto. Esta semana demos por aí uma olhada. Ninguém sabe.

— Os cães de guarda de Zizi vão fazer mais do que dar uma vista de olhos, Adrian. E se lhes der o cheiro do onze de Setembro, ele vai fugir dela a sete pés. — Por falar em Zizi, a casa dele é já ali à frente.

Carter reduziu para fazer uma curva. Um enorme portão de segurança em ferro e tijolo surgiu-lhes à esquerda. Por detrás do portão, um extenso caminho de acesso alcatroado subia até uma imponente mansão em frente ao rio. Gabriel desviou o olhar quando passaram pela propriedade.

— Zizi nunca vai ficar a saber do Ben — garantiu Carter. — Estás disposto a apostar a vida da Sarah quanto a isso?

— Fala com ela, Gabriel. Dá-me a tua opinião. -Já sei qual é a minha opinião.

Ela é perfeita.

— Então qual é o problema?

— Se cometermos um erro que seja, Zizi vai dar cabo dela. É esse o problema, Adrian.

A rapidez com que chegaram ao centro de Washington surpreendeu Gabriel. Num momento estavam numa estrada rural de duas vias, no extremo do vale do Potomac, e no outro arrastavam-se pela Q Street, no meio da hora de ponta de Georgetown. Assumindo o papel de guia turístico, Carter disse as casas dos residentes mais conhecidos do bairro. Com a cabeça encostada ao vidro, Gabriel nem sequer era capaz de reunir energias para fingir estar interessado. Atravessaram uma ponte curta, guardada em cada extremidade por um par de enormes búfalos manchados, e entraram na zona diplomática da cidade. Logo a seguir à Massachusetts Avenue, Carter apontou para uma estrutura atorreada de tijolo, do lado esquerdo da rua.

— Aquele é o Phillips — disse Adrian, prestativo. Gabriel olhou para a direita e viu uma versão em bronze de Mohandas Gandhi a caminhar num parque triangular minúsculo. Porquê Gandhi? interrogou-se. O que teriam os ideais do Mahatma que ver com aquele centro de poder americano?

Carter percorreu mais um quarteirão e estacionou na zona diplomática reservada à frente de uma embaixada latino-americana de aspeto banal. Deixou o motor ligado e não deu indicação de pretender sair do carro.

— Esta zona da cidade chama-se Dupont Circle — explicou, ainda à laia de guia turístico. — É o que pretende ser a vanguarda de Washington.

Um agente da Divisão Uniformizada do Serviço Secreto bateu ao vidro de Carter e fez-lhe sinal para seguir viagem. Sempre a olhar em frente, Carter encostou a identificação ao vidro e o agente regressou ao carro patrulha. Momentos depois, algo no espelho retrovisor chamou a atenção de Carter.

— Aí vem ela — disse.

Gabriel olhou pela janela quando Sarah Bancroft passou por eles, vestindo um sobretudo comprido de cintura estreita. Tinha uma pasta de pele numa mão e um celular na outra. Gabriel ouviu-lhe a voz quando ela passou. Grave, sofisticada, um toque de pronúncia inglesa — remanescente, sem dúvida, do tempo passado em Courtauld, e de uma infância vivida em escolas internacionais no estrangeiro.

— O que acha? — perguntou Carter.

— Já te digo.

Chegou à esquina da Q Street com a 20th Street. Na esquina oposta ficava uma praça repleta de vendedores ambulantes e com um par de escadas rolantes que davam na estação de metrô de Dupont Circle. O semáforo de Sarah estava vermelho. Sem parar, desceu do passeio e começou a atravessar a estrada. Quando um taxista buzinou em protesto, ela lançou-lhe um olhar capaz de derreter gelo e prosseguiu com a conversa. Depois cruzou lentamente o passeio e entrou na escada rolante descendente. Com admiração, Gabriel observou-a a desaparecer de vista.

— Tem mais alguma como ela?

Carter tirou um celular do bolso e marcou um número.

— Vamos embora — disse. Momentos depois, uma grande Suburban preta contornou a esquina e estacionou ilegalmente na Q Street, em frente às escadas rolantes. Cinco minutos mais tarde, Gabriel voltou a vê-la, desta vez a surgir lentamente das profundezas da estação de metro. Já não estava a falar ao telefone, nem se encontrava sozinha. Era acompanhada por dois agentes de Carter, um homem e uma mulher, um em cada braço, para o caso de ela mudar repentinamente de ideias. A porta traseira da Suburban abriu-se e Sarah Bancroft desapareceu. Carter ligou o motor e regressou a Georgetown.

17

 

GEORGETOWN

A Suburban preta deteve-se quinze minutos mais tarde à porta de uma casa de estilo federal em N Street. Quando Sarah subiu os degraus curvos de tijolo, a porta abriu-se de repente e uma figura surgiu nas sombras do pórtico. Vestia calça caqui e jaqueta com remendos nos cotovelos. O olhar denotava um curioso distanciamento clínico que lembrou a Sarah o terapeuta que consultara após a morte de Ben.

— Chamo-me Carter — apresentou-se, como se disso se tivesse lembrado de súbito. Não disse se era o nome próprio ou o apelido, apenas que era verdadeiro. — Já não uso nomes esquisitos — explicou. — Agora pertenço à Sede.

Sorriu. Era um sorriso artificial, como o foi o breve aperto de mão. Convidou-a a entrar e, mais uma vez, conseguiu transmitir a ideia de uma inspiração súbita.

— E você é a Sarah — informou-a, enquanto a guiava pelo vasto salão central. — Sarah Bancroft, conservadora do conceituado Phillips Colletion. Sarah Bancroft, que num ato de coragem nos ofereceu os seus serviços depois do onze de Setembro, mas que foi recusada e a quem lhe disseram que não fazia falta.

Como vai o seu pai?

Sarah ficou surpreendida com a repentina mudança de assunto.

— Conhece o meu pai?

— Nunca nos encontramos. Trabalha para a Citicorp, não é?

— Sabe muito bem para quem ele trabalha. Por que me pergunta?

Por onde anda ele? Londres? Bruxelas? Hong Kong? Paris — respondeu. — É a última comissão. Vai reformar-se para o ano que vem.

— E depois volta para casa? Sarah abanou a cabeça.

— Vai ficar em Paris. Com a nova mulher. Os meus pais divorciaram-se há dois anos. Ele voltou a casar-se de imediato. Para ele, tempo é dinheiro.

— E a sua mãe? Onde está ela?

— Em Manhattan.

— Costuma ver o seu pai?

— Festas. Casamentos. O típico almoço constrangedor, sempre que ele vem à América. O divórcio dos meus pais foi mau. Todos tomaram partidos, incluindo os filhos. Por que está a fazer-me essas perguntas? O que pretende de...

— Acredita nisso? — atalhou Carter.

— Acredito no quê? — Em tomar partidos.

— Acho que depende das circunstâncias. Isto faz parte dos testes? Pensei que tivesse chumbado nos testes.

— E chumbou — garantiu Carter. — Redondamente. Entraram na sala. Estava mobilada com a elegância formal mas anônima normalmente reservada às suítes dos hotéis. Carter ajudou-a a despir o casaco e convidou-a a sentar-se.

— Nesse caso, por que voltei?

— Este é um mundo fluido, Sarah. As coisas mudam. Diga-me uma coisa, em que circunstâncias julga que é correto tomar partidos?

— Nunca pensei muito no assunto.

— Claro que pensou — contrapôs Carter e, pela segunda vez, Sarah viu o terapeuta, sentado no cadeirão de motivos florais, com a caneca de cerâmica equilibrada no joelho, levando-a a visitar locais onde ela preferia não entrar. — Vamos, Sarah — dizia Carter. — Dê-me um exemplo em que acredite que se deve tomar partidos.

— Acredito no bem e no mal — respondeu, erguendo um pouco o queixo. — O que talvez sirva para explicar o motivo por que chumbei nos testes. O seu mundo é em tons de cinzento. Em geral, vejo as coisas a preto e branco.

— Foi isso que o seu pai lhe disse? era Ben quem a acusava dessa falha.

— Qual o objetivo disto? — perguntou. — Por que estou aqui? Mas Carter continuava a analisar as implicações da última resposta.

— E quanto aos terroristas? — perguntou, e Sarah ficou mais uma vez com a impressão de que o homem acabara de pensar na questão. — É sobre isso que me questiono. Como eles se encaixam no mundo do bem e do mal da Sarah Bancroft? Serão maus, ou será que a sua causa é legítima? Seremos vítimas inocentes, ou será que fomos nós que provocamos esta calamidade? Devemos ficar sentados e aguentar, ou teremos o direito de lhes resistir com toda a nossa força e raiva?

— Sou conservadora-assistente do Phillips Colletion — disse-lhe.

— Quer mesmo que teça considerações sobre a moral do contraterrorismo?

— Nesse caso, vamos restringir a nossa questão. Sempre me pareceu útil fazê-lo. Vejamos como exemplo o homem que levou o avião do Ben contra o World Trade Center. — Carter fez uma pausa. — Recorde-me, Sarah, em que avião estava Ben?

— Sabe muito bem em que avião ele estava — retorquiu. — No Voo 175 da United.

— Que era pilotado por...

— Marwan al-Shehhi.

— Imaginemos por um momento que Marwan al-Shehhi conseguiu sobreviver. Eu sei que é uma loucura, Sarah, mas acompanhe meu raciocínio. Imagine que ele conseguiu voltar ao Afeganistão ou ao Paquistão ou a qualquer outro santuário terrorista. Imagine que sabíamos quem era. Deveríamos enviar o FBI com um mandado de captura, ou deveríamos tratar dele de modo mais eficaz? Homens de negro? Forças especiais? Um míssil Hellfire lançado de um drone?

— Creio que sabe o que faria.

— Imagine que desejo ouvi-lo de sua boca, antes de continuarmos.

— Os terroristas declararam guerra — acusou Sarah. — Atacaram nossas cidades, mataram os nossos cidadãos e tentaram prejudicar a estabilidade do nosso governo.

— Nesse caso, o que deveríamos fazer?

— Deviam ser enfrentados com dureza.

— E o que significa isso?

— Homens de negro. Forças especiais. Um míssil Hellfire lançado de um drone.

— E quanto ao homem que lhes dê dinheiro? Será igualmente culpado? E, se assim for, até que ponto?

— Talvez dependa de ele saber para que serve esse dinheiro.

— E se ele soubesse muito bem para que serve esse dinheiro?

— Nesse caso, é tão culpado como o homem que jogou o avião na torre.

— Estaria confortável, ou mesmo justificada, em agir contra tal indivíduo?

— Ofereci ajuda há cinco anos — acusou, com um tom de desprezo. — Disseram que não era adequada para este tipo de trabalho. E agora querem minha ajuda?

Carter não pareceu abalado com o protesto. Sarah sentiu uma empatia súbita pela mulher daquele homem.

— Ofereceu ajuda e nós a tratamos de uma forma miserável. Receio que sejamos muito bons nisso. Queria poder dizer o quanto estávamos errados. Talvez pudesse confortá-la com um pedido de desculpas falso. Mas sinceramente, Miss Bancroft, não há tempo. — A voz apresentava agora um tom que até então estava ausente. — Assim sendo, acho que preciso de uma resposta direta. Ainda quer ajudar? Quer combater os terroristas, ou prefere voltar a sua vida e esperar que não volte a acontecer?

— Combater? — indagou Sarah. — Certamente há pessoas mais indicadas para isso.

— Há muitas formas de combate, Sarah.

A jovem hesitou. Carter acentuou o silêncio repentino com uma observação prolongada das próprias mãos. Não era o tipo de homem que repetia perguntas. Nesse aspeto, era muito parecido com o pai dela.

— Sim — acabou por dizer. — Quero.

— E se para isso tivesse de trabalhar com uma agência de espionagem que não a CIA? — perguntou Carter, como se debatesse uma teoria abstrata. — Uma agência bastante próxima de nós na luta contra o terrorismo islâmico? — E qual seria essa agência?

Carter era bom a esquivar-se a perguntas e voltou a prová-lo.

— Gostaria que conhecesse uma pessoa. É um homem sério. Uma espécie de diamante em bruto. Vai colocar-lhe algumas questões. Na verdade, vai interrogá-la durante algumas horas. Por vezes talvez se torne um pouco pessoal. Se gostar do que vir, vai pedir-lhe que nos ajude num empreendimento muito importante. Não é isento de riscos, mas é essencial para a segurança dos Estados Unidos, e tem o nosso apoio incondicional. Se estiver interessada, permaneça onde está. Caso contrário, saia, e fingimos que entrou aqui por acaso.

Sarah nunca saberia ao certo a forma como Carter o chamara, ou de onde surgira. Era pequeno e magro, com cabelo muito curto e têmporas grisalhas. Tinha os olhos mais verdes que Sarah alguma vez vira. Tal como o de Carter, o aperto de mão foi breve, mas analisador, como o toque de um médico. Falava um inglês fluente, mas com uma pronúncia cerrada. Se tinha nome, não era relevante. Instalaram-se na mesa comprida da sala de jantar formal, Carter e o colaborador anônimo de um lado, e Sarah do outro, como se de um suspeito numa sala de interrogatório se tratasse. O colaborador detinha agora a posse do seu dossiê da CIA. Folheava lentamente as páginas, como se as visse pela primeira vez, o que ela duvidava fosse o caso. A primeira questão foi-lhe apresentada com um leve tom acusatório.

— A sua dissertação para o doutorado em Harvard teve como tema os expressionistas alemães.

Parecia um ponto estranho para começar. Sentiu-se tentada a perguntar qual o interesse no tema da dissertação, mas limitou-se a acenar com a cabeça e a responder:

— Sim, exatamente. Deparou-se com um homem chamado Viktor Frankel, durante a sua pesquisa?

— Era discípulo de Max Beckmann — disse Sarah. — Hoje em dia Frankel é pouco conhecido, mas na altura era considerado de extrema influência e era tido em muito boa consideração pelos contemporâneos. Em 1936, os nazistas consideraram seu trabalho degenerado e foi proibido de continuar a pintar. Infelizmente, decidiu permanecer na Alemanha. Quando resolveu partir, era demasiado tarde. Foi deportado para Auschwitz em 1942, juntamente com a esposa e com a filha adolescente, Irene. Apenas Irene sobreviveu. Foi para Israel depois da guerra e tornou-se uma das artistas mais influentes do país nas décadas de cinquenta e sessenta. Acho que morreu há alguns anos.

— Exatamente — asseverou o colaborador de Carter, os olhos ainda no dossiê de Sarah.

— Por que ficou interessado em Viktor Frankel?

— Porque era meu avô.

— É filho da Irene?

— Sim. Irene era minha mãe.

Sarah olhou para Carter, que fitava as próprias mãos.

— Acho que sei quem comanda este seu empreendimento. Voltou a dirigir a atenção para o homem de têmporas grisalhas e olhos verdes. — É israelense.

— Sou culpado desse crime. Continuamos, Sarah, ou prefere que eu saia?

Sarah hesitou por um instante, e depois anuiu.

— Posso ter um nome, ou são proibidos?

O colaborador deu-lhe um nome. Era vagamente familiar. E então lembrou-se de onde o vira. O agente israelense que esteve envolvido no atentado na Gare de Lyon, em Paris... — Foi o homem que...

— Sim — atalhou ele. — Fui eu.

Voltou a olhar para o dossiê e virou a página.

— Mas voltemos a você, está bem? Temos muito que fazer e estamos limitados de tempo.

Começou lentamente, um montanhista a abrir caminho nos contrafortes, a guardar as forças para os perigos invisíveis que o esperavam mais à frente. As questões eram breves, eficientes e apresentadas de forma metódica, como se as lesse de uma lista previamente elaborada, o que não era o caso. Dedicou a primeira hora à família. O pai, o importante executivo da Citicorp, que não dispusera de tempo para os filhos, mas encontrara muito para outras mulheres. A mãe, cuja vida se desmoronara após o divórcio e que vivia agora como uma eremita, no seu apartamento de Manhattan, na Quinta Avenida. A irmã mais velha, que Sarah descreveu como "aquela que ficou com a inteligência e com a beleza". O irmão mais novo, que abandonara a família cedo e que naquele momento, para desapontamento do pai, trabalhava por um ordenado mísero numa loja de aluguer de esquis, algures no Colorado.

Depois da família, a hora seguinte foi dedicada em exclusivo à dispendiosa educação na Europa. A jovem americana em St. Johns Wood, onde completara a escola primária.

A escola internacional de Paris, onde aprendera a falar francês e a meter-se em sarilhos. O internato feminino nos arredores de Genebra, onde fora encarcerada pelo pai, com o objetivo de "pôr a cabeça no lugar". Fora na Suíça, adiantou Sarah de moto próprio, que descobrira a paixão pela arte. Cada resposta era recebida pelo arranhar da caneta. Escrevia com tinta vermelha num bloco de folhas da cor dos girassóis. Ao início, Sarah julgou que ele escrevia em estenografia, ou com algum tipo de hieróglifos. Depois percebeu que tirava notas em hebraico. O fato de estar a escrever da direita para a esquerda, e de escrever com a mesma rapidez com ambas as mãos, apenas servia para aprofundar a sensação de que atravessara para o outro lado do espelho.

Por vezes, era como se ele dispusesse de todo o tempo do mundo. De outras vezes, lançava olhares ao relógio de pulso e franzia o sobrolho, como se calculasse até onde poderia avançar, antes de fazer alto para a noite. A espaços, utilizava outras línguas. O francês era muito bom. O italiano era impecável, embora dotado de um vago sotaque que traía o fato de não ser falante nativo. Quando se dirigiu a Sarah em alemão, verificou-se uma mudança. As costas endireitaram-se. As feições severas endureceram. Sarah respondeu-lhe na língua da questão, mesmo tendo as palavras sido registradas em hebraico no bloco amarelo. Em geral não a pôs em causa, embora quaisquer inconsistências, reais ou imaginadas, fossem avaliadas com um zelo inquisitorial.

— Esta paixão pela arte — referiu ele. — Como julga que começou? Porquê arte?

Por que não literatura, ou música? Por que não cinema, ou drama?

— Os quadros viraram refúgio. Um santuário.

— Do quê?

— Da vida real.

— Era uma menina rica das melhores escolas da Europa.

O que havia de mal com sua vida? — Mudou do inglês para o alemão no meio da frase.

— Fugia do quê?

— Está me julgando — respondeu Sarah, na mesma língua.

— É claro.

— Podemos falar em inglês?

— Se tiver de ser.

— Os quadros são outros mundos. Outras vidas. Um instante no tempo que existe na tela e em mais lado nenhum. — Gosta de habitar esses locais.

Foi uma observação e não uma pergunta. Sarah aquiesceu em resposta. — Gosta de viver outras vidas? Assumir outras personalidades? Gosta de passear através dos campos de trigo de Vincent, pelos jardins floridos de Monet?

— Até mesmo pelos pesadelos de Frankel.

A caneta foi colocada de lado pela primeira vez.

— Foi por isso que se candidatou à CIA? Porque queria ter outra vida? Porque queria transformar-se noutra pessoa?

— Não. Queria servir meu país.

Sarah recebeu um franzir de cenho reprovador, como se a resposta fosse ingênua. O colaborador olhou mais uma vez para o relógio. O tempo estava contra ele.

— Conheceu árabes enquanto crescia na Europa?

— Claro.

— Rapazes? Garotas?

— Ambos.

— Que tipo de árabe?

— Árabes com duas pernas. Árabes de países árabes.

— Você é mais inteligente do que isso.

— Libaneses. Palestinos. Jordanianos. Egípcios.

— E sauditas? Estudou com sauditas?

— Havia duas garotas sauditas na escola suíça.

— Eram ricas, essas garotas sauditas?

— Éramos todas ricas.

— Foi amiga delas?

— Era difícil conhecê-las. Afastavam-se muito. Eram reservadas.

— E os rapazes árabes?

— O quê?

— Foi amiga de algum?

— É possível.

— Chegou a namorar algum? Dormiu com algum?

— Não.

— Por que não?

— Acho que as minhas preferências não incluíam árabes.

— Teve namorados franceses?

— Alguns.

— Ingleses?

— Claro.

— Mas árabes não?

— Árabes não.

— Tem preconceito com árabes?

— Não seja ridículo.

— Nesse caso, é concebível que poderia ter namorado um árabe. Só por acaso não o fez.

— Espero que não peça para servir de isca com meu corpo, pois...

— Não seja ridícula.

— Então por que faz estas perguntas?

— Porque quero saber se estaria confortável num ambiente social e profissional com árabes.

— A resposta é sim.

— Não vê automaticamente um terrorista quando olha para um árabe?

— Não.

— Tem certeza. Sarah?

— Dependa do tipo de árabe em que se pensa.

Gabriel olhou para o relógio.

— Está ficando tarde — disse, para ninguém em especial. A pobre Sarah deve estar esfomeada. — Traçou uma linha vermelha grossa pela folha de hieróglifos. — Vamos encomendar comida, sim? Vai se sentir melhor depois de comer alguma coisa.

Encomendaram espetos de um restaurante no centro de Georgetown. A comida chegou vinte minutos depois, entregue pela mesma Suburban preta que trouxera Sarah três horas antes. Gabriel considerou a chegada como sinal para dar início à sessão da noite. Ao longo dos noventa minutos seguintes, concentrou-se na educação de Sarah e no seu conhecimento de história da arte. As perguntas sucediam-se tão rapidamente que ela mal teve tempo de comer. Quanto ao prato de Gabriel, permaneceu intato ao lado do bloco de notas amarelo. E um asceta, pensou Sarah. Não se deixa incomodar pelos alimentos. Vive num quarto vaio e subsiste com pão e algumas gotas de água por dia. Pouco depois da meia-noite, Gabriel levou o prato até a cozinha e deixou-o sobre a bancada. Quando regressou à sala de jantar, ficou alguns momentos de pé, atrás da cadeira, uma mão no queixo e a cabeça inclinada de leve. A luz do candelabro dera-lhe um tom esmeralda aos olhos, que a perscrutavam sem dó, como holofotes, já vê o cume, pensou Sarah. Está a preparar o assalto final.

— Pelo seu dossiê, vejo que é solteira.

— Exatamente.

— Está envolvida com alguém, neste momento?

— Não.

— Anda a dormir com alguém?

Sarah mirou Carter, que lhe respondeu com um olhar triste, como se dissesse, Eu avisei que as coisas podiam tornar-se pessoais.

— Não, não ando a dormir com ninguém.

— Por que não? — Já perdeu alguém que lhe fosse próximo?

A expressão sombria que lhe assomou o rosto, a par da mudança agitada de posição de Carter, alertou-a para o fato de estar a entrar em território proibido. — Sinto muito — desculpou-se. — Não queria...

— Imagino que seja por causa do Ben. O Ben é a razão para não estar envolvida com ninguém?

— Sim, é o Ben. É claro que é o Ben.

— Fale-me dele.

Sarah abanou a cabeça.

— Não — respondeu, em voz baixa. — Não vai saber sobre o Ben. Ele é meu. Ben não faz parte do acordo.

— Quanto tempo namoraram?

— Já lhe disse...

— Quanto tempo andou com ele, Sarah? É importante, ou não perguntaria.

— Uns nove meses.

— E depois terminou?

— Sim, terminou.

— Foi você que terminou a relação, não foi?

— Sim.

— Ben estava apaixonado por você. Ben queria se casar com você.

— Sim.

— Mas não sentia o mesmo. Não estava interessada em casamento. Talvez não estivesse interessada em Ben.

— Gostava muito dele...

— Mas?

— Mas não estava apaixonada.

— Fale-me sobre a morte dele.

— Não pode estar falando sério....

— Falo muito sério.

— Não falo sobre a morte dele. Nunca falo sobre a morte de Ben. Além disso, sabe muito bem como foi. Ben morreu às nove e três da manhã, hora do Leste, ao vivo, na televisão. O mundo inteiro viu Ben a morrer. Por acaso não viu?

— Alguns passageiros do Voo 175 conseguiram dar telefonemas.

— Verdade.

— O Ben foi um deles?

— Sim.

— Telefonou ao pai? — Não.

— Telefonou à mãe?

— Não.

— Ao irmão? À irmã?

— Não.

— Para quem ele telefonou, Sarah?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

— Telefonou para mim, seu filho da puta.

— O que disse ele?

— Disse que o avião tinha sido desviado. Disse que tinham matado os comissários. Disse que o avião fazia movimentos bruscos. Disse que me amava e que sentia muito. Estava prestes a morrer e pediu desculpas. E depois a ligação caiu.

— O que fez?

— Liguei a televisão e vi a fumaça saindo da Torre Norte do World Trade Center. Foi alguns minutos depois da colisão do Voo 11. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Telefonei para a FAA e contei sobre a ligação de Ben. Telefonei para o FBI. Telefonei para Polícia de Boston. Sentia-me tão impotente.

— E depois?

— Vi televisão. Esperei que o telefone voltasse a tocar. Não tocou. Às nove e três da manhã, hora de leste, o segundo avião colidiu com o World Trade Center. A Torre Sul estava em chamas. Ben estava queimando.

Uma lágrima única escorreu-lhe pela face. Sarah limpou-a e lançou um olhar furioso a Gabriel, — Está satisfeito?

Gabriel permaneceu em silêncio.

— Agora é a minha vez de fazer uma pergunta. Se não me responder com sinceridade, vou-me embora.

Pergunte-me o que quiser, Sarah. — O que pretende de mim?

— Queremos que se despeça do seu emprego no Phillips Colletion e que vá trabalhar para a Jihad Limitada. Continua interessada?

Ficou para Carter a tarefa de lhe apresentar o contrato. Carter, com a sua integridade puritana e o casaco de bombazina. Carter, com a sua atitude terapêutica e o inglês de pronúncia americana. Gabriel esgueirou-se como um gatuno na noite e atravessou a estrada até o Volvo amolgado de Carter. Sabia qual iria ser a resposta de Sarah. Já a tivera. A Torre Sul estava em chamas, dissera ela. O Ben estava a arder. E assim, Gabriel não ficou preocupado com a expressão de quem ia para a forca no rosto de Sarah quando, vinte minutos depois, saiu, estoica, da casa e desceu o lance de escadas até a van que a aguardava. Também não ficou incomodado com a visão de Carter, cinco minutos mais tarde, a atravessar lentamente a rua, como um cangalheiro a dirigir-se a um caixão. Sentou-se ao volante e ligou o motor.

— Há um avião em Andrews à espera para levá-lo de volta a Israel — disse. — Faremos uma parada no caminho. Há uma pessoa que quer dar uma palavrinha com você antes de partir.

Passava da meia-noite. A rua era dos caminhões de entregas noturnas e dos táxis. Carter seguia a uma velocidade acima do normal e olhava com frequência para o relógio.

— Ela não será barata, sabe. Vai ter um preço. Tem de ser realojada quando a operação terminar, e vai ser protegida por muito tempo.

— Mas vai tratar disso, não vai, Adrian? Você tem o dinheiro. O orçamento da espionagem americana é bem maior que o do nosso país inteiro.

— Esqueceu que esta operação não existe? Além disso, você vai ficar com muito dinheiro de Zizi.

— Certo — disse Gabriel. — Diga a Sarah Bancroft que ela vai passar os próximos dez anos num kibbutz na Galileia, escondida das forças da jihad global.

— Está bem, pagamos o realojamento.

Carter deu uma série de voltas. Por momentos, Gabriel perdeu a noção da rua em que se encontravam. Passaram pela fachada de um grande edifício neoclássico e depois entraram num acesso de aspeto oficial. À esquerda ficava uma guarita fortificada, com vidros à prova de bala. Carter baixou o vidro e entregou a identificação ao guarda.

— Estão a nossa espera.

O guarda consultou uma prancheta e depois devolveu a identificação de Carter. — Avancem e parem à frente da barricada à esquerda. Os cães vão dar a volta ao carro e depois podem entrar.

Carter aquiesceu e subiu o vidro. Gabriel perguntou:

— Onde estamos?

Carter contornou as barricadas e parou onde lhe tinha sido indicado.

— Na porta das traseiras da Casa Branca — explicou.

— com quem vamos falar? — indagou Gabriel, mas Carter trocava impressões com outro agente, que procurava controlar um grande pastor alemão que puxava a grossa coleira de couro. Gabriel, cujo pavor de cães era lendário no Escritório, permaneceu imóvel, enquanto o animal esquadrinhava cada centímetro do Volvo, em busca de explosivos ocultos. Momentos depois, atravessavam outro portão de segurança. Carter estacionou num lugar vago no Acesso Executivo Leste e desligou o motor.

— Só venho até aqui.

— com quem vou falar, Adrian?

— Entra por aquele portão e vai até a casa. Ele sai não tarda nada.

Os cães foram os primeiros a aparecer, dois terriers pretos que saíram disparados pela Entrada Diplomática como balas do cano de uma arma, e atacaram a calça de Gabriel. O presidente surgiu alguns segundos depois.

Avançou para Gabriel com a mão estendida, enquanto a outra gesticulava para que os terriers cessassem a investida. Os dois homens apertaram brevemente as mãos e depois começaram a percorrer o caminho que contornava o Gramado Sul. Os terriers lançaram mais um ataque aos tornozelos de Gabriel. Carter observou Gabriel a virar-se e a murmurar algumas palavras em hebraico que fizeram com que os cães procurassem o abrigo de um agente do Serviço Secreto.

A conversa durou apenas cinco minutos e pareceu a Carter que o presidente tomara conta das palavras. Moveram-se rapidamente, parando apenas uma vez para resolver o que parecera um pequeno desentendimento. Gabriel retirou as mãos dos bolsos e usou-as para ilustrar um argumento que tentava defender. De início, o presidente não pareceu convencido, mas depois aquiesceu e deu uma palmada forte nos ombros de Gabriel.

Completaram o circuito e separaram-se junto à Entrada Diplomática. Quando Gabriel começou a voltar ao estacionamento, os cães partiram atrás dele, mas rapidamente se viraram e correram para a Casa Branca, atrás do dono. Gabriel atravessou o portão aberto e entrou no carro.

— Como te pareceu ele? — perguntou Carter quando viraram para a 5th Street.

— Resoluto.

— Parece que chegaram a discutir.

— Diria que foi um desacordo político.

— Sobre o quê?

— Foi uma conversa privada, Adrian, e vai continuar assim.

— Bonito menino — disse Carter.

CONTINUA

11

LONDRES

— Como está o velhote? — perguntou Adrian Carter. Caminhavam lado a lado em Eaton Place, abrigados de um aguaceiro noturno debaixo do guarda-chuva de Carter. Tinham-se encontrado cinco minutos antes em Belgrave Square, como que por acaso. Carter envergava uma capa e segurava um exemplar do The Independent. Era ortodoxo, no que dizia respeito às regras do ofício. Segundo as piadas que corriam na sede em Langley, Adrian Carter deixava marcas de giz na cabeceira da cama sempre que queria fazer amor com a esposa.

— Continua inconsciente — respondeu Gabriel —, mas resistiu à noite e já não está perdendo sangue.

— Vai sobreviver?

— Ontem à noite, diria que não.

— E agora?

— Estou mais preocupado com as possíveis sequelas. Se ficar com lesões cerebrais, ou preso dentro de um corpo que não obedece... — A voz de Gabriel esmoreceu. — Para Shamron só há uma coisa na vida, o trabalho. Se não puder trabalhar, vai se sentir miserável... bem como todos os que o rodeiam.

— E as novidades? — Carter olhou discretamente para a porta da casa georgiana de número 24. — O apartamento fica ali. Vamos dar mais uma volta no quarteirão, sim? Gosto de seguir as regras.

— Não sabia, Adrian? A União Soviética acabou há anos. O KGB já desapareceu. Agora vocês e os russos são amigos.

— Cuidado nunca é demais, Gabriel.

— Seus rapazes da segurança não definiram um percurso para a identificação de vigilância?

— Não há rapazes, Gabriel.

— É uma casa de segurança da Agência?

— Não exatamente — observou Carter. — Pertence a um amigo.

— Um amigo da Agência?

— Na verdade, um amigo do presidente.

Carter puxou de leve a manga do blusão de Gabriel e conduziu-o pela rua escura. Percorreram lentamente Eaton Square, que estava em silêncio, exceto pelo murmúrio do trânsito noturno em Kings Road. Carter deslocava-se a um ritmo fastidioso, como um homem com um compromisso que preferia não ter de cumprir. Gabriel debatia-se com um único pensamento: por que razão o diretor delegado das operações da CIA desejava falar num local onde o seu próprio Governo não estivesse à escuta?

Regressaram a Eaton Place. Desta vez, Carter guiou Gabriel pelos degraus até a entrada na cave. Quando Carter introduziu a chave na fechadura, Gabriel levantou silenciosamente a tampa do balde do lixo e viu que este se encontrava vazio. Carter abriu a porta e entraram para o tipo de cozinha que os panfletos das agências imobiliárias descreviam como cozinha gourmet. As bancadas eram de granito e tinham uma iluminação agradável, fornecida por lâmpadas de halogêneo ocultas por baixo do armário feito sob medida. O chão era da pedra calcária de Jerusalém, tão apreciada pelos ingleses e americanos refinados que procuravam estabelecer uma ligação com as suas raízes mediterrânicas. Carter dirigiu-se à bancada de aço inoxidável e encheu a chaleira eléctrica com água. Não se deu ao trabalho de perguntar se Gabriel queria algo mais forte. Sabia que ele apenas bebia um copo de vinho ocasional e que nunca misturava o álcool com o trabalho, salvo por necessidade de disfarce.

— É um duplex — explicou Carter. — A sala fica lá em cima. Ponha-se à vontade. — Estás a dar-me autorização para dar uma olhada pela casa, Adrian? Carter abria e fechava as portas do armário com uma expressão perplexa no rosto. Gabriel foi até a despensa, encontrou uma caixa de chá Earl Grey e lançou-a a Carter antes de se dirigir ao andar de cima. A sala estava confortavelmente mobilada, mas denotava um ar de anonimato comum às segundas habitações. A Gabriel parecia que nunca ninguém ali amara, nem brigara. Pegou numa fotografia emoldurada que estava em cima de uma mesa de apoio e viu o que parecia ser o típico americano próspero,

Com três filhos bem alimentados e uma esposa com demasiadas cirurgias plásticas. Outras duas fotografias mostravam o americano numa posição rígida ao lado do presidente.

Ambas tinham dedicatórias assinadas: Para Bi, com gratidão.

Carter voltou momentos depois, com um tabuleiro de chá equilibrado nas mãos. Tinha cabelo encaracolado que rareava e o tipo de bigode largo em tempos favorecido pelos professores universitários americanos. O comportamento de Carter pouco tinha que sugerisse que era um dos membros mais poderosos da vasta rede de espionagem americana, ou que antes da sua ascensão à atmosfera rarefeita do sexto piso de Langley fora um dos mais conceituados agentes de campo. A tendência natural de Carter para escutar, em vez de falar, levava a maior parte das pessoas a concluir que se travava de uma espécie de terapeuta. Quando se pensava em Adrian Carter, imaginava-se um homem a suportar confissões de rumos de acontecimentos, ou de problemas, ou então uma figura de um romance de Dickens, curvado sobre livros grossos com longas palavras em latim. Normalmente, as pessoas subestimavam Carter. Era uma das suas armas mais poderosas.

— Quem está por trás disso, Adrian? — perguntou Gabriel.

— Diga você. — Carter pousou o tabuleiro sobre a mesa de centro e despiu a capa como se estivesse cansado de muito viajar. — Estamos no seu bairro.

— O bairro é nosso, mas algo me diz que o problema é seu. Caso contrário, não estaria em Londres — Gabriel deu uma olhada na sala —, numa casa de segurança emprestada, sem microfones nem apoio da estação local.

— Poucas são as coisas que te escapam, não é? Conte, Gabriel. Diga o nome dele.

— É um antigo agente saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq.

— Bravo, Gabriel. Muito bem. — Carter largou a capa nas costas de uma cadeira. — Muito bem mesmo.

Carter destapou o bule, sorveu o aroma e decidiu que precisava ficar em infusão mais um momento.

— Como souberam?

— Não soubemos — corrigiu Gabriel. — Foi um palpite, baseado em vestígios de prova.

— Por exemplo?

Gabriel contou a Carter tudo o que sabia. A operação falhada contra o professor Ali Massoudi. As fotografias de vigilância e a informação sobre a conta bancária suíça encontradas no computador de Massoudi. As ligações entre Ibrahim el-Banna e o agente saudita que se dava a conhecer como Khalil. Os relatórios sobre um saudita do mesmo nome que percorria os campos de refugiados do Sul do Líbano em busca de recrutas. Entretanto, Carter atarefava-se com o chá. Serviu a primeira xícara e entregou-a Gabriel. Seu chá exigia uma preparação mais elaborada: uma dose calculada de leite, depois o chá, por fim um torrão de açúcar. Os interrogadores referiam-se a esse óbvio ganhar tempo como atividade de deslocamento. Carter era fumador de cachimbo. Gabriel receava o seu aparecimento em breve. E vocês? — inquiriu Gabriel. — Quando souberam que se tratava de Bin Shafiq?

Carter pegou num segundo torrão com a tenaz e ponderou brevemente se deveria acrescentá-lo à xícara, após o que o devolveu sem cerimônias ao açucareiro. Provavelmente soube-o no dia em que pedimos a Sua Majestade que encerrasse o Grupo 205 — respondeu. — Ou talvez tenha sido no dia em que Bin Shafiq desapareceu da face da Terra. Sabes, Gabriel, uma das coisas que aprendi nesta profissão foi que para cada ação nossa, vai haver uma reação negativa. Afastamos o urso russo do Afeganistão e acabamos por criar uma hidra. Esmagamos o quartel-general da Al-Qaeda e agora as filiais estão a tratar dos seus próprios assuntos. Encerramos a loja de Bin Shafiq no GID e agora parece que ele começou a trabalhar por conta própria.

— Por quê?

— Pergunta o que o levou a atravessar a fronteira? — Carter encolheu os ombros e mexeu o chá com uma expressão lamentosa. — Não foi preciso muito. Ahmed bin Shafiq é um verdadeiro crente wahhabi.

— Neto de um guerreiro ikhwan — acrescentou Gabriel, o que lhe valeu um aceno de admiração por parte de Carter.

— Podemos perguntar por que os sauditas apoiam o terrorismo — disse Carter. — Podemos ter um debate interessante sobre se defendem na verdade os objetivos dos assassinos que armam e financiam, ou se estão numa política inteligente e cínica para controlar o ambiente em redor, garantindo assim sua sobrevivência. Tal debate não é possível sobre o homem que o GID escolheu para executar essa política. Ahmed bin Shafiq é um crente. Ahmed bin Shafiq odeia os Estados Unidos, o Ocidente e o Cristianismo, e ficaria muito feliz se o teu Estado deixasse de existir. Foi por esse motivo que insistimos com Sua Majestade para que encerrasse a sua lojinha dos horrores.

— E quando vocês forçaram o rei a encerrar o Grupo 205, Bin Shafiq perdeu a cabeça? Decidiu utilizar os contatos que foi estabelecendo ao longo dos anos e lançar a sua própria onda de terror? Com certeza que não pôde ter sido assim tão linear, Adrian.

— Receio que tenhamos dado um pequeno empurrão — admitiu Carter. — Invadimos o Iraque contra a vontade do Reino e da maior parte de seus habitantes. Capturamos membros da Al-Qaeda e os trancamos em prisões secretas, que é onde eles devem estar. Isto foi ruim para o mundo islâmico, e serviu para atiçar o fogo da jihad. Vocês também tiveram mão nisso. Para os árabes, seu Muro de Separação não passa de uma fronteira terminal unilateral, e não estão muito satisfeitos com ele.

— Não fique chocado, Adrian, mas não nos interessa o que os sauditas pensam do nosso muro. Se não tivessem injetado milhões nos cofres do Hamas e da Jihad Islâmica, não precisaríamos dele.

— O que nos leva à minha argumentação original — rematou Carter, fazendo uma pausa para beber um gole de chá. — O mundo islâmico ferve de raiva e Ahmed bin Shafiq, um verdadeiro crente wahhabi, tornou-se o porta-estandarte da jihad contra o infiel. Utilizou os contatos de seus dias no Grupo 205 para construir uma nova rede. Está fazendo o que Bin Laden já não consegue, que é planejar e executar atentados terroristas espetaculares, como o do Vaticano. Tem uma rede pequena, extremamente profissional e, como já provou, bem letal.

— E é financiada por dinheiro saudita.

— Sem dúvida — asseverou Carter.

— Aonde chegam as implicações, Adrian?

— Muito alto — respondeu Carter. — Quase ao topo.

— Onde é a base de operações deles? Quem financia? De onde vem o dinheiro?

— Da AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermediários — garantiu Carter. — Ahmed bin Shafiq é um dos melhores investimentos da AAB. Posso servir mais chá?

Seguiu-se outra pausa nos trabalhos, desta vez com Carter tentando adivinhar como acender a lareira a gás. Mirou, perplexo, a grelha por um instante e virou-se para Gabriel, lançando-lhe um apelo com o olhar. Gabriel encontrou a torneira de segurança, abriu o fluxo de gás e acendeu.

— Quantos anos você dá a eles, Gabriel? Quanto tempo até que a Casa de Saud seja derrubada e em seu lugar surja a República Islâmica da Arábia? Cinco anos? Dez? Ou talvez vinte? Nunca fomos muito bons nesse tipo de previsões. Pensamos que o império soviético fosse eterno.

— E nós pensamos que o Hamas nunca conseguiria vencer eleições.

Carter soltou uma risada melancólica.

— As nossas melhores mentes dão-lhes sete anos, no máximo. Sua Majestade está disposta a passar esses sete anos com as regras antigas: fornece-nos petróleo barato e uma suposta amizade, e ao mesmo tempo vai adulando e subornando as forças do Islão para não o atacarem. E, quando chegar a altura, vai fugir para os palácios que tem na

Riviera e passar o resto da vida com um luxo demasiado grotesco para se imaginar, de preferência com a cabeça ainda pegada ao corpo. Carter virou as palmas das mãos para o fogo.

— Não está quente — constatou.

— Os troncos são feitos de cerâmica. Dá-lhe um pouco para aquecer. Carter pareceu incrédulo. Gabriel acercou-se da janela e espreitou para a rua, onde um carro passou lentamente e desapareceu à esquina. Carter desistiu da lareira e regressou ao seu lugar.

— E depois temos os elementos da Família Real que estão dispostos a adoptar regras diferentes. A esses chamamos os Verdadeiros Crentes. Julgam que a única forma da Al-Saud sobreviver é através da renovação da aliança que estabeleceram há dois séculos com Muhammad Abdul Wahhab, no Njad. Mas esta nova aliança terá de contemplar novas realidades. O monstro que a Al-Saud criou há duzentos anos tem agora todas as cartas na mão, e os Verdadeiros Crentes estão preparados para dar ao monstro aquilo que ele quer. Sangue infiel. Jibadsem fim. Alguns desses Verdadeiros Crentes querem ir ainda mais longe. Desejam a expulsão de todos os infiéis da Península. Um embargo às vendas de petróleo à América e a todos os países que tenham negócios com vocês. Acreditam que o petróleo não deve ser visto simplesmente como um poço sem fim de dinheiro líquido que jorra dos terminais de Rãs Tanura para as contas bancárias suíças da Al-Saud. Querem usá-lo como arma... uma arma que possa ser empregue para danificar a economia americana e transformar os wahhabis em mestres do planeta, como Alá o desejou, quando criou o mar de petróleo debaixo das areias do Al-Hassa. E alguns desses Verdadeiros Crentes, como o presidente e CEO da AAB Holdings de Riad, Genebra e outros pontos intermédios, estão eles próprios dispostos a verter algum sangue infiel.

— Refere-se a Abdul Aziz al-Bakari?

— Exatamente — confirmou Carter. — Sabe alguma coisa sobre ele?

— Pelas últimas contas, era o décimo quinto homem mais rico do mundo, com fortuna pessoal na casa dos dez bilhões de dólares.

— Mais milhão, menos milhão.

— É presidente, diretor executivo e imperador da AAB Holdings... A de Abdul, A de Aziz e B de al-Bakari. A AAB é dona de bancos e de casas de investimento. A AAB tem empresas de navegação e metalúrgicas. A AAB está cortando as florestas da Amazônia e explorando minério nos Andes do Peru e da Bolívia. A AAB é dona de uma empresa química belga e de uma farmacêutica holandesa. A divisão de pesquisa e desenvolvimento da AAB é uma das maiores do mundo. Abdul Aziz al-Bakari é dono de mais hotéis do que qualquer outra pessoa.

Carter prosseguiu a enumeração de Gabriel.

— Tem um palácio em Riad que raramente visita e onde vivem duas antigas esposas que nunca vê. É dono de uma mansão na Île de la Cité, em Paris, de um solar principesco na Inglaterra, de uma casa em Mayfair, de villas à beira-mar em Saint-Tropez, Marbella e Maui, de chalés de esqui em Zermatt e Aspen, de um apartamento na Park Avenue que foi há pouco tempo avaliado em quarenta milhões de dólares, e de uma propriedade gigantesca, em frente ao Potomac, por onde passo todos os dias quando vou para o trabalho. Carter parecia considerar a mansão no Potomac, o mais grave de todos os pecados de Al-Bakari. O pai era sacerdote episcopal de New Hampshire e, por baixo do seu exterior plácido, batia um coração puritano.

— Al-Bakari viaja com o séquito por todo o mundo, a bordo de um 747 revestido a ouro — prosseguiu. — Duas vezes por ano, uma em fevereiro e outra em agosto, as operações AAB vão para o mar, quando Al-Bakari e a comitiva se instalam a bordo do Alexandra, o seu iate de noventa metros. Esqueci-me de alguma coisa? — Os amigos tratam-no por Zizi — replicou Gabriel. — Tem uma das maiores coleções mundiais de arte impressionista francesa, e há anos que os andamos a dizer que é um dos maiores financiadores do terrorismo, especialmente contra nós.

— Não tinha noção.

— Noção do quê?

— De que Zizi era um colecionador.

— E muito agressivo.

— Por acaso já esteve com ele?

— Receio que eu e Zizi estejamos em lados opostos do negócio.

— Gabriel franziu o sobrolho. — Qual é a ligação entre Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq?

Pensativo, Carter soprou o chá, sinal de que ainda não estava pronto para responder à questão de Gabriel.

— É um sujeito interessante, o Al-Bakari. Sabias que o pai foi o banqueiro pessoal de Ibn Saud? Tal como seria de esperar, o papai Al-Bakari saiu-se muito bem, o suficiente para dar dez milhões de dólares ao filho, para que este começasse a sua própria empresa. Mas isso não foi nada, quando comparado com o capital que recebeu da Al-Saud, quando o projeto se desenvolveu. A acreditar nos boatos, cem milhões de dólares. A AAB continua a ser o receptáculo preferido do dinheiro real saudita, o que é uma das razões para que Zizi esteja interessado em garantir a sobrevivência da Casa de Saud.

Gabriel sentiu um aperto no coração quando Carter pegou na bolsa do tabaco. — É um dos homens mais ricos do mundo — disse Carter —, e um dos mais caridosos. Erigiu mesquitas e centros islâmicos por toda a Europa. Financiou projetos de desenvolvimento no Delta do Nilo e para o combate à fome no Sudão. Doou milhões aos refugiados palestinos e outros milhões a projetos de urbanização na Cisjordânia e em Gaza.

— E mais de trinta milhões de dólares naquela angariação televisiva de fundos árabes para financiar homens-bomba suicidas — acrescentou Gabriel. — Zizi foi o maior doador individual. Agora, responde-me, Adrian.

— E qual era a pergunta?

— Qual a ligação entre Zizi e Bin Shafiq?

— É bem perspicaz, Gabriel. Diga você, qual a ligação.

— É óbvio que Zizi financia a rede de Bin Shafiq.

— É óbvio — asseverou Carter.

— Mas Bin Shafiq é saudita. Pode obter dinheiro em qualquer outro lugar. Zizi tem algo mais valioso que o dinheiro. Tem uma infraestrutura global, por onde Bin Shafiq pode movimentar homens e material. E Zizi tem o lugar ideal onde esconder um ideólogo como Bin Shafiq.

— A AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermediários.

O silêncio tombou entre eles como uma cortina, enquanto Carter enchia vagarosamente o cachimbo. Gabriel continuava de pé à janela, a olhar a rua. Sentia-se tentado a permanecer aí, pois o tabaco de Carter, quando aceso, cheirava a uma mistura de feno a arder e de cão molhado. Mas também sabia que a conversa chegara a um ponto em que não poderia ser continuada à frente de uma janela insegura. Com relutância, sentou-se na cadeira oposta a Carter e entreolharam-se em silêncio, Carter fumando com expressão meditativa e Gabriel afastando penosamente a fumaça dos olhos.

— Têm certeza?

— Absoluta.

— Como sabem?

— Fontes e método — respondeu Carter, por reflexo. — Fontes e método.

— Como sabem, Adrian?

— Ouvimos — explicou Carter. — A National Security Agency é uma coisa maravilhosa. Também dispomos de fontes no interior da ala moderada da Casa de Saud e do GID, que estão dispostas a contar certas coisas. Ahmed bin Shafiq reside grande parte do tempo no Ocidente, com uma identidade falsa. Está enterrado no império financeiro de Zizi, e os dois conferenciam com regularidade. Estamos certos desse fato.

Ao lado do tabuleiro de Carter, em cima da mesa de centro, estava um dossiê. Tinha no seu interior uma única fotografia, que Carter entregou a Gabriel. Mostrava um homem de sobretudo de lã e chapéu, em frente de um portão de ferro forjado. O rosto estava de perfil e as feições eram um pouco indistintas. Pelo aspeto da imagem, a fotografia fora tirada de alguma distância.

— É ele?

— Achamos que sim — respondeu Carter.

— Onde foi tirada?

— No exterior da casa de Zizi, na Île de la Cité, em Paris. O fotógrafo estava do outro lado do Sena, no Quai de l’Hôtel de Ville, o que explica uma certa falta de clareza da imagem. — Há quanto tempo?

— Seis meses.

Carter ergueu-se lentamente e deambulou até a lareira. Estava prestes a bater o cachimbo na grelha, quando Gabriel o recordou de que era falsa. Voltou a sentar-se e esvaziou o cachimbo para dentro de um grande cinzeiro de vidro lapidado.

— Quantos americanos morreram no Vaticano? — perguntou Gabriel.

— Vinte e oito, incluindo um bispo da Cúria.

— Quanto dinheiro Zizi al-Bakari deu a terroristas, ao longo dos anos?

— Centenas de milhões.

— Vão atrás dele — declarou Gabriel. — Levantem um processo e levem-no a tribunal.

— Contra Zizi al-Bakari?

— Secção 18 U.S.C. 2339B... Já ouviu falar nela, Adrian?

— Agora está me citando a lei americana?

— Dar dinheiro a grupos terroristas assumidos é uma violação da lei americana, quer esse dinheiro tenha, ou não, sido utilizado em atentados específicos. Talvez já pudessem ter processado dezenas de sauditas ricos por fornecerem apoio material aos inimigos, incluindo Zizi al-Bakari.

— Você me desaponta, Gabriel. Sempre te imaginei uma pessoa razoável... por vezes preocupado demais com questões de certo e errado, mas razoável. Não podemos ir atrás de Zizi al-Bakari.

— Por quê?

— Dinheiro — justificou-se Carter, ao que acrescentou: — E petróleo, é claro.

— É claro.

Carter brincou com o isqueiro.

— A Família Real Saudita tem muitos amigos em Washington. O tipo de amigos que só o dinheiro pode comprar. Zizi também tem amigos. Fundou cátedras acadêmicas e encheu-as de amigos e apoiantes. Garantiu a criação de departamentos de estudos árabes em meia dúzia de universidades americanas importantes. Financiou quase sozinho uma renovação profunda do Kennedy Center. Oferece dinheiro a projetos de caridade de senadores influentes e investe nos negócios de amigos e familiares desses senadores. É dono de boa parte de um dos bancos mais importantes e tem participações numa série de outras empresas americanas também importantes. Também serviu de intermediário em inúmeros negócios entre sauditas e americanos. O quadro está a ficar mais claro?

Estava, mas Gabriel queria ouvir mais.

— Se o bando de advogados de Washington de Zizi sequer desconfiasse que ele ia ser investigado criminalmente, Zizi falaria com Sua Majestade, Sua Majestade falaria com o embaixador Bashir, e o embaixador ia à Casa Branca ter uma conversinha com o presidente. Lembraria o presidente de que uma volta ou duas nas torneiras do petróleo significaria um aumento brutal no preço da gasolina. Talvez chegasse a frisar que um aumento dessa magnitude prejudicaria os habitantes do centro do país, que costumam fazer viagens longas, e que também costumam votar no partido do presidente.

— E assim, para Zizi o crime compensa... literalmente.

— Receio que sim.

— Não pergunte sobre o que, quando explicado, possa te trazer problemas.

— Conhece bem o Corão — disse Carter. — Outra razão para não agir contra Zizi, ou acusá-lo é o medo do que se pode encontrar: enredos com americanos importantes, negócios obscuros com elementos de Washington. Imagine a reação do povo americano se descobrisse que um bilionário saudita com ligações comerciais com figuras importantes de Washington financia as atividades inimigas. A relação mal conseguiu sobreviver ao primeiro Onze de Setembro. Duvido que sobrevivesse a um segundo. Não sobreviveria, pelo menos na forma atual. Já há um movimento no Capitólio para isolar a Arábia Saudita, devido ao apoio prestado ao extremismo islâmico global. Um escândalo que envolvesse Zizi al-Bakari apenas serviria para lançar achas para a fogueira. Várias figuras da política externa do Congresso estão a pensar numa legislação que pressione a Arábia Saudita. Podem dar-se a esse luxo. Se a economia americana for por água abaixo devido a uma subida dos preços do petróleo, não são eles que sofrem, mas sim o presidente.

— E o que quer de nós, Adrian? O que quer me dizer nesta sala, onde mais ninguém nos ouve?

— O presidente dos Estados Unidos quer pedir um favor — explicou Carter, enquanto fitava o fogo. — O tipo de favor em que por acaso você é muito bom. Ele gostaria que pusessem um agente na Casa de Zizi. Gostaria que descobrisse quem entra e quem sai. E se Ahmed bin Shafiq aparecer, ele gostaria que tentasse pegá-lo. A operação será sua, mas pode contar com todo o nosso apoio. Estaremos do outro lado do horizonte... longe o bastante para garantir uma negação plausível em Riad.

— Você me desaponta, Adrian. Sempre pensei que fosse uma pessoa razoável.

— O que eu fiz agora?

— Pensei que ia me pedir para matar Zizi al-Bakari e acabar de vez com o assunto.

— Matar Zizi? — Carter abanou a cabeça. — Zizi é intocável. Zizi é radioativo.

Gabriel regressou ao seu posto à janela e espiou a rua quando um casal de namorados correu pela calçada sob a chuva.

— Não somos assassinos profissionais — protestou. — Não podemos ser contratados para fazer os trabalhos sujos que vocês não podem fazer. Querem Bin Shafiq morto, mas não estão dispostos a correr riscos. Pretendem que sejamos nós a ficar com a culpa.

— Poderia lembrar alguns fatos importantes — adiantou Carter. — Poderia lembrar que este presidente ficou do seu lado enquanto o resto do mundo os tratou como se fossem judeus entre nações. Poderia lembrar que ele permitiu que construíssem o Muro de Separação, enquanto o resto do mundo os acusou de se comportar como os sul-africanos. Poderia lembrar que ele permitiu que trancassem Arafat na Mukata, enquanto o resto do mundo os acusou de agir como tropa de choque nazista. Poderia lembrar as inúmeras vezes em que este presidente tratou de sua roupa suja, mas não o farei, pois isso seria politicamente incorreto. Também poderia sugerir que com este pedido estaríamos numa espécie de saldar contas, o que não é, de todo, o caso.

— Então é o quê?

— Um reconhecimento — explicou Carter. — O reconhecimento de que nós, americanos, não temos estômago, nem coragem, para fazer as coisas que têm de ser feitas nesta luta. Já queimamos os dedos. Nossa imagem já foi debilitada. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vimos. Nossos políticos gostariam que pegássemos o primeiro avião para fora do Iraque, para que possam começar a gastar dinheiro no tipo de coisas que conquistam votos. O povo quer voltar à boa vida. As pessoas querem enterrar a cabeça na areia e fingir que não existe no mundo uma força organizada que procura destruí-las. Pagamos um preço terrível por entrar na sarjeta com os terroristas e combater no nível deles, mas acho que vocês sabiam que isso ia acontecer. Ninguém pagou um preço mais elevado do que vocês.

— E por isso querem que o façamos no seu lugar. Imagino que seja o a que chamam de terceirização. Mas que americano de sua parte, Adrian.

— Dadas as atuais circunstâncias, os Estados Unidos não podem tentar assassinar um antigo oficial da espionagem saudita, caso contrário a nossa relação com Riad ficaria comprometida. Também não podemos prender e acusar Zizi al-Bakari pelas razões que mencionei.

— Por isso querem que o problema desapareça?

— Exatamente.

— Que seja varrido para baixo do tapete? Que se adie o ajuste de contas para uma data mais conveniente?

— Não podia ser mais claro.

— Acha que essa é a melhor forma de derrotar a Hidra? Cortar uma cabeça e esperar que tudo corra bem? É preciso queimar as raízes, como fez Hércules. É preciso atacar o monstro com flechas embebidas em fel.

— Quer atacar a Casa de Saud?

— Não só a Casa de Saud — asseverou Gabriel. — Os fanáticos wahhabitas que fizeram um pacto de sangue, há duzentos anos, no planalto estéril do Najd. São eles seu verdadeiro inimigo, Adrian. Foram eles que criaram a Hidra.

— O príncipe sábio escolhe a data e o local da batalha, e não é hora de derrubar a Casa de Saud.

Gabriel mergulhou num silêncio taciturno. Carter olhava para o fornilho do cachimbo e fazia pequenos ajustes na disposição do tabaco, como um professor à espera da resposta de um aluno menos inteligente.

— Será preciso lembrar que atentaram contra Shamron?

Gabriel fulminou Carter com um olhar que lhe garantia que não se esquecera.

— Nesse caso, por que a hesitação? Depois do que Bin Shafiq fez ao velhote, pensei que estivesse de laço esticado para pegá-lo.

— Quero pegá-lo mais do que ninguém, Adrian, mas nunca estico o laço. É uma operação perigosa... perigosa demais até para você. Se alguma coisa der errado ou se formos apanhados, tudo acaba mal... para os três.

— Três?

— Eu, você e o presidente.

— Nesse caso, siga o décimo primeiro mandamento de Shamron, e não haverá problema. Você não será apanhado.

— Bin Shafiq é um fantasma. Nem sequer temos uma foto.

— Isso não é totalmente verdade. — Carter voltou a pegar o dossiê e retirou outra foto, que colocou em cima da mesa, para que Gabriel a visse. Mostrava um homem de olhos escuros, o rosto em parte oculto por um kaffijeh. — Este é Bin Shafiq, há quase vinte anos, no Afeganistão. Na épica era nosso amigo. Estávamos do mesmo lado. Nós fornecemos as armas. Bin Shafiq e os mestres de Riad forneciam o dinheiro.

— E a ideologia wahhabita que ajudou a dar origem aos talibãs — adiantou Gabriel.

— O inferno está cheio de boas intenções — lamentou-se. — Mas temos algo mais valioso do que uma foto com vinte anos. Temos a voz dele.

Carter pegou um pequeno controle remoto preto, apontou-o a um rádio Bose Wave e pressionou o Play. Momentos depois, dois homens começaram a falar em inglês: um de sotaque americano e o outro de pronúncia árabe.

— Imagino que o árabe seja Bin Shafiq. Carter anuiu.

— Quando foi gravado?

— Em 1988 — explicou Carter. — Numa casa de segurança em Peshawar.

— Quem é o americano? — perguntou Gabriel, embora já soubesse a resposta. Carter pressionou o botão Stop e olhou para o fogo.

— Sou eu — respondeu, com um tom distante. — O americano na casa de segurança da CIA em Peshawar era eu.

— Reconheceria Bin Shafiq se visse?

— Talvez, mas as nossas fontes dizem que fez várias operações plásticas antes de entrar em campo. Mas reconheceria a cicatriz no antebraço direito. Foi atingido por estilhaços durante uma viagem ao Afeganistão, em 1985. A cicatriz vai do pulso ao cotovelo. Não há cirurgião plástico que ajude naquilo.

— No lado de dentro ou de fora?

— De dentro. O ferimento afetou a mão dele. Submeteu-se a várias operações para tentar remediar a situação, mas nada deu certo. Normalmente a mantém no bolso. Não gosta de dar apertos de mão. Bin Shafiq é um beduíno orgulhoso. Não respeita as doenças.

— Imagino que suas fontes em Riad não nos consigam dizer em que zona do império de Zizi ele está escondido.

— Infelizmente, não. Mas sabemos que ele aí está. Se introduzires um agente na Casa de Zizi, talvez Bin Shafiq acabe por entrar pela porta das traseiras. — Introduzir um agente na casa de Zizi al-Bakari? E o que sugeres que façamos para o conseguir, Adrian? Zizi tem mais segurança do que a maior parte dos chefes de Estado.

— Nem me passaria pela cabeça interferir em questões operacionais — escusou-se Carter. — Mas garanto-te que estamos dispostos a ser pacientes e que tencionamos acompanhar a missão até o fim.

— A paciência e o acompanhamento não são exatamente virtudes americanas típicas. Vocês gostam de armar confusão e partir para o problema seguinte. Seguiu-se mais um silêncio longo, desta vez interrompido pelo bater do cachimbo de Carter na borda do cinzeiro. — O que queres, Gabriel?

— Garantias.

— No nosso ramo não há garantias, sabes disso.

— Quero tudo o que tiverem sobre Bin Shafiq e o Al-Bakari.

— Dentro dos limites do razoável — disse Carter. — Não te vou dar um monte de segredos obscuros sobre figuras importantes de Washington.

— Quero proteção — continuou Gabriel. — Quando isto acontecer, seremos os principais suspeitos. Somos sempre, mesmo quando não somos os responsáveis. Vamos precisar da sua ajuda para acalmar a tempestade.

— Apenas posso falar em nome do DO — lembrou Carter. E garanto-te que vamos estar do seu lado.

— Eliminamos Bin Shafiq onde e quando escolhermos, sem qualquer interferência de Langley.

— O presidente ficaria grato se pudessem evitar fazê-lo em território americano.

— No nosso ramo não há garantias, Adrian.

— Touché.

— Talvez custe a acreditar, mas não posso decidir sozinho. Tenho de falar com Amos e o primeiro-ministro.

— Amos e o primeiro-ministro farão o que lhes disser.

— Dentro do razoável.

— O que vai dizer?

— Que o presidente americano precisa de um favor — disse Gabriel. — E que pretendo ajudá-lo.

12

TEL MEGIDDO, ISRAEL

O primeiro-ministro autorizou a operação de Gabriel às duas e trinta da tarde seguinte. Gabriel dirigiu-se de imediato a Armagedon. Imaginou que fosse um bom local para começar.

O tempo parecia glorioso de uma forma perversa para tal ocasião: temperatura fresca, um céu de um azul pálido, uma brisa leve que lhe agitava as mangas da camisa, à medida que seguia a Estrada de Jafa. Ligou o rádio. A música lúgubre que enchera o éter nas horas que se tinham seguido ao atentado à vida de Shamron desaparecera. Um boletim noticioso surgiu de repente. O primeiro-ministro garantira fazer tudo ao seu alcance para localizar e punir os responsáveis pelo atentado contra Shamron. Não mencionou o fato de já saber quem era o responsável, nem que autorizara Gabriel a eliminá-lo.

Gabriel percorreu a Bab al-Wad em direção ao mar, ziguezagueando com impaciência por entre o tráfego mais lento, e depois acompanhou o sol que se punha para norte, ao longo da Planície Costeira. Perto de Hadera havia um alerta de segurança. Segundo o rádio, um alegado homem-bomba suicida conseguira atravessar o Muro de Separação perto de Tulkarm. Gabriel foi obrigado a aguardar na beira da estrada durante vinte minutos, antes de se encaminhar para o vale de Jezreel. A oito quilômetros de Afula, um outeiro redondo surgiu à esquerda. Em hebraico era conhecido por Tel Megiddo, ou Monte Megido. O resto do mundo o conhece como Armagedon, do Livro do Apocalipse, o palco do confronto final entre as forças do bem e do mal. A batalha ainda não começara e o estacionamento estava vazio, salvo por um trio de vans empoeiradas, sinal de que a equipe arqueológica ainda trabalhava.

Gabriel saiu do carro e subiu o caminho íngreme até o topo. O Tel Megiddo era alvo de escavações arqueológicas periódicas há mais de um século, e no alto do monte havia um labirinto de trincheiras compridas e estreitas. Tinham sido encontrados vestígios de mais de vinte cidades debaixo do solo do topo do Tel, incluindo uma que se acreditava ter sido construída pelo rei Salomão. Parou à beira de uma das trincheiras e espreitou para o fundo. Uma pequena figura de casaco de algodão creme estava de gatas, a revirar o solo com uma colher de pedreiro. Gabriel pensou na última vez que estivera acima de um homem num buraco de escavação e sentiu-se como se lhe tivessem deitado um cubo de gelo para as costas. O arqueólogo olhou para cima e fitou-o com um par de olhos castanhos inteligentes. Depois voltou a desviar a atenção para o seu trabalho.

— Tenho estado a tua espera — disse Eli Lavon. — Por que demorou tanto?

Gabriel sentou-se na terra à beira do buraco e observou Lavon a trabalhar. Conheciam-se desde a operação Setembro Negro. Eli Lavon fora um ayin, um batedor. A sua incumbência era seguir os terroristas e tomar conhecimento dos seus hábitos. Em muitos aspetos, essa missão fora ainda mais perigosa do que a de Gabriel, pois Lavon, por vezes, ficara exposto aos terroristas durante dias e semanas a fio, sem qualquer apoio. Após o desmantelamento da unidade, instalara-se em Viena e abrira um pequeno gabinete de investigação chamado Reivindicações e Inquéritos do Tempo da Guerra. Com um orçamento mínimo, conseguira localizar milhões de dólares em bens judeus pilhados e desempenhara um papel importante na obtenção de um acordo milionário com os bancos suíços. Agora, Lavon trabalhava na escavação em Meguido e dava aulas de arqueologia em tempo parcial, na Universidade Hebraica.

— O que tem aí, Eli?

— Um pedaço de cerâmica, creio. — Uma rajada de vento agitou-lhe o cabelo fino e desgrenhado e soprou-o para a testa. — E você?

— Um bilionário saudita que tenta destruir o mundo civilizado.

— Não já conseguiram? — Gabriel sorriu.

— Preciso de você, Eli. Sabe interpretar balancetes. Sabe seguir pista de dinheiro sem que ninguém note.

— Quem é o árabe?

— O presidente e CEO da Jihad Limitada.

— E esse presidente tem nome?

— Abdul Aziz al-Bakari.

— Zizi al-Bakari?

— Esse mesmo.

— Imagino que tenha algo que ver com Shamron.

— E com o Vaticano.

— Qual é a ligação de Zizi?

Gabriel contou.

— Acho que não preciso perguntar o que tenciona fazer com Bin Shafiq — disse Lavon. — O império de Zizi é enorme. Bin Shafiq pode estar trabalhando de qualquer ponto do mundo. Como vai encontrá-lo?

— Vamos introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi e esperar que Bin Shafiq apareça.

— Um agente no território de Zizi? — Lavon abanou a cabeça.

— Não se consegue.

— Consegue-se, sim.

— Como?

— Vou descobrir alguma coisa que Zizi queira — explicou Gabriel. — E depois vou dar a ele.

— Sou todo ouvidos.

Gabriel sentou-se na borda da trincheira de escavação, com as pernas dependuradas para o interior, e disse-lhe como tencionava penetrar na Jihad Limitada. Do fundo do buraco vinha o som do trabalho de Lavon — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— Quem é o agente? — perguntou a Gabriel, quando este terminou.

— Ainda não o tenho.

Lavon ficou em silêncio por um instante — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— O que queres de mim?

— Vira Zizi al-Bakari e a AAB Holdings de pernas para o ar. Quero que disseque cada empresa que ele controle. Perfis de todos os executivos de topo e dos membros da comitiva pessoal. Quero saber como cada pessoa chegou ao seu cargo e como nele tem permanecido. Quero saber mais sobre Zizi do que ele próprio.

— E o que acontece quando entrarmos em campo?

— Você também vai.

— Estou velho e cansado para coisas mais duras.

— É o maior artista de vigilância da história do Escritório, Eli. Não vou conseguir sem você.

Lavon endireitou-se e limpou as mãos na calça.

— Introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi al-Bakari? É louco. — Lançou uma colher de pedreiro a Gabriel. — Venha me ajudar. Estamos ficando sem luz.

Gabriel desceu ao buraco e ajoelhou-se ao lado do velho amigo. Juntos esgaravataram o solo antigo, até que a noite caiu sobre o vale como uma manta.

Quando chegaram ao Boulevard King Saul já passava das nove horas. Lavon saíra havia muito do Escritório, mas continuava a apresentar uma palestra ocasional na Academia e ainda tinha as credenciais para entrar no edifício sempre que quisesse. Gabriel acompanhou-o até a sala de arquivos da divisão de Pesquisa, ao que se dirigiu a um corredor sombrio dois níveis abaixo do solo. No final do corredor ficava a Sala 456C. Afixado à porta estava um letreiro de papel, onde se lia, na caligrafia hebraica de Gabriel: COMITÊ TEMPORÁRIO PARA O ESTUDO DAS AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Decidiu mantê-lo, por enquanto.

Abriu a fechadura com combinação, acendeu as luzes e entrou. A sala parecia congelada no tempo. Era conhecida por vários nomes: a Cápsula, a Choça, o Tanque. Yaakov, um durão de rosto marcado do Departamento de Assuntos Árabes de Shabak, batizara-a de Buraco do Inferno. Yossi, da Pesquisa, denominara-a a Aldeia dos Malditos, mas ele lera clássicos em Oxford e emprestava sempre ao seu trabalho um certo ar de erudição, mesmo quando os temas não o mereciam. Gabriel deteve-se junto à mesa assente em cavaletes que Dina e Rimona tinham partilhado. As constantes altercações territoriais quase tinham dado com ele em doido. A linha de separação que ele traçara no centro da mesa ainda lá estava, a par do aviso que Rimona escrevera do seu lado da fronteira: Atravessar por sua própria conta e risco. Rimona era capita da FDI e trabalhava para Ama, na espionagem militar. Era também sobrinha de Gilah Shamron. Acreditava em fronteiras defensáveis e respondera com incursões de retaliação sempre que Dina cruzara a linha. No lugar de Dina estava a pequena mensagem que ela lá deixara no último dia da operação: Que nunca mais tenhamos de aqui voltar. Que ingênua, pensou Gabriel. Ela devia saber melhor do que ninguém que provavelmente não seria assim.

Continuou a lenta digressão pela sala. Ao canto jazia a mesma pilha de equipamento informático ultrapassado que nunca ninguém se dera ao trabalho de remover. Antes de se transformar no quartel-general do Grupo Khaled, a Sala 456C não passara de uma lixeira onde se despejava mobília velha e aparelhos eletrônicos obsoletos, sendo muitas vezes utilizada pelos membros do turno da noite como local de aventuras românticas. O quadro de giz de Gabriel também ali continuava. Mal conseguia decifrar as últimas palavras que escrevera. Olhou para as paredes, cobertas de fotografias de jovens palestinos. Uma das imagens chamou-lhe a atenção, um rapaz de boina na cabeça e um kaffiyeh sobre os ombros, sentado ao colo de Yasir Arafat: Khaled al-Khalifa no funeral do pai, Sabri. Gabriel matara Sabri, e também matara Khaled.

Retirou as fotografias antigas das paredes e colocou duas novas no seu lugar. Uma delas mostrava um homem de kaffyeh, nas montanhas do Afeganistão. A outra exibia o mesmo homem, agora com um sobretudo de caxemira e chapéu, à frente da casa de um bilionário, em Paris. O Grupo Khaled era agora o Grupo Bin Shafiq.

Durante as primeiras quarenta e oito horas, Gabriel e Lavon trabalharam sozinhos. No terceiro dia chegou Yossi, um homem alto e calvo com o porte de um intelectual britânico. Rimona compareceu no quarto dia, bem como Yaakov, chegado do quartel-general de Shabak, com uma caixa cheia de material sobre os terroristas que tinham atacado o carro de Shamron. Dina foi a última a chegar. Pequena e morena, estivera na Rua Dizengoff de Tel Aviv, no dia 19 de Outubro de 1994, quando um homem-bomba suicida do Hamas transformara o ônibus número 5 num caixão para vinte e uma pessoas. A mãe e duas das suas irmãs encontravam-se entre essas vítimas. Dina ficara gravemente ferida e caminhava agora com um ligeiro coxear. Lidara com a dor tornando-se perita em terrorismo. Com efeito, Dina Sarid era capaz de recitar a data, o local e o número de vítimas de todos os atos terroristas alguma vez cometidos contra o Estado de Israel. Em tempos dissera a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles próprios. Gabriel acreditara.

Dividiram-se em duas áreas de especialidade. Ahmed bin Shafiq e a Irmandade de Alá tornaram-se propriedade de Dina, Yaakov e Rimona, enquanto Yossi se juntou à escavação de Lavon da AAB Holdings. Por enquanto, Gabriel trabalhava sozinho, pois assumira a tarefa nada invejável de tentar identificar todos os quadros alguma vez comprados ou vendidos por Zizi al-Bakari.

À medida que os dias iam passando, as paredes da Sala 456C refletiam a natureza única da operação. Numa das paredes começou a surgir o esboço sombrio de uma nova rede terrorista mortal, liderada por um homem que, em grande medida, não passava de um fantasma. Deram o seu melhor para recriar a longa viagem de Bin Shafiq através da corrente do extremismo islâmico. Ao que parecia, onde quer que tivesse havido problemas, lá estava Bin Shafiq, a distribuir dinheiro saudita do petróleo e propaganda wahhabita às mancheias: Afeganistão, Líbano, Egito, Argélia, Jordânia, Paquistão, Chechênia, Bósnia e, é claro, a Autoridade Palestina. Mas havia pistas de relevo, pois ao levar a cabo dois atentados importantes, Bin Shafiq e a Irmandade tinham deixado mais de uma dúzia de nomes que podiam ser investigados em busca de ligações e de associações. E havia também Ibrahim el-Banna, o imã egípcio mortal, e o professor Ali Massoudi, o angariador e caçador de talentos.

Na parede oposta surgiu outra rede: a AAB Holdings. Utilizando fontes públicas, e outras não tão visíveis, Lavon peneirou a custo as várias camadas do império financeiro de Zizi e reuniu as diversas peças como se fossem pedaços de um artefato antigo. No topo da estrutura encontrava-se a própria AAB. Abaixo desta estava uma rede complexa de empresas subsidiárias e de fachadas corporativas que permitiam que Zizi estendesse a sua influência a quase todos os cantos do globo, em condições de secretismo corporativo quase perfeito. Tendo quase todas as empresas registradas na Suíça e nas Ilhas Caimão, Lavon equiparou Zizi a um caça furtivo financeiro, capaz de levar a cabo ataques à sua vontade, ao mesmo tempo que evitava ser detetado pelos radares inimigos. Apesar da natureza obscura do império de Zizi, Lavon chegou à conclusão de que as contas não batiam certo.

— Zizi nunca poderia ter obtido lucros suficientes com os investimentos iniciais que justificassem as aquisições posteriores — explicou a Gabriel. — A AAB Holdings é uma fachada para a Casa de Saud. — Quanto a tentar descobrir Ahmed bin Shafiq algures no polvo financeiro de Zizi, Lavon comparou-o a tentar encontrar uma agulha no deserto da Arábia. — Não é impossível — disse —, mas provavelmente morremos de sede antes de conseguirmos.

Yossi dedicou-se ao pessoal de Zizi. Concentrou-se na relativamente pequena equipe que trabalhava no quartel-general de Genebra, a par de empresas detidas ou controladas pela AAB. A maior parte do seu tempo, no entanto, era empregue na grande comitiva pessoal de Zizi. Em breve as fotografias cobriam a parede do espaço de trabalho de Yossi, e contrastavam com as da rede de terror de Shafiq. Todos os dias chegavam imagens novas, à medida que Yossi acompanhava os movimentos frenéticos de Zizi por todo o globo. Zizi a chegar a uma reunião em Londres. Zizi em Stuttgart, durante um encontro com fabricantes de automóveis alemães. Zizi a desfrutar da vista para o mar Vermelho, a partir do seu novo hotel em Sharm el-Sheik. Zizi a conferenciar com o rei da Jordânia, sobre um possível negócio imobiliário. Zizi a inaugurar uma central de dessalinização no Yemen. Zizi a receber um prêmio humanitário de um grupo islâmico em Montreal, cuja página de Internet, frisou Yossi, continha um apelo direto à destruição do Estado de Israel.

Quanto ao canto da sala reservado a Gabriel, era um santuário, quando comparado com os reinos do terror e das finanças. A sua parede estava coberta não com os rostos de terroristas ou de executivos, mas com dezenas de fotografias de obras impressionistas francesas. Enquanto Lavon e Yossi passavam os dias a vasculhar monótonos balancetes e folhas impressas, Gabriel folheava catálogos antigos, monografias impressionistas e recortes de impressa que descreviam os feitos de Zizi na cena artística mundial. Ao fim do décimo dia, Gabriel decidira como iria introduzir um agente na Jihad Limitada. Dirigiu-se à coleção de fotografias de Yossi e fitou uma única imagem. Mostrava um inglês magro e grisalho, sentado ao lado de Zizi, seis meses antes, no leilão de Arte Moderna e Impressionista da Christies, em Nova Iorque. Gabriel retirou a fotografia e ergueu-a, para que os outros a vissem. — Este homem — disse. — Tem de desaparecer. — Depois ligou para Adrian Carter através de um número privado seguro de Langley e contou como planejava entrar na Casa de Zizi.

— Agora você só precisa de um quadro e de uma garota — concluiu Carter. — Encontre o quadro e eu consigo a garota.

Gabriel saiu um pouco mais cedo do que o habitual do Boulevard King Saul e dirigiu-se a Ein Kerem. A unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah continuava vigiada por vários guardas, mas Shamron estava sozinho quando Gabriel entrou no quarto.

— O filho pródigo decidiu me visitar — comentou, em tom amargo. — Ainda bem que somos um povo do deserto, caso contrário punham-me em cima de um bloco de gelo e me jogavam no mar.

Gabriel sentou-se ao lado da cama.

— Já vim pelo menos umas seis vezes.

— Quando?

— À noite, quando já está dormindo.

— Anda pairando sobre mim? Como Gilah e os médicos? Por que não vem durante o dia, como uma pessoa normal?

— Tenho estado ocupado.

— O primeiro-ministro não está ocupado para me visitar em horários decentes. — com o pescoço ferido imobilizado por um aparelho de plástico,

Shamron lançou um olhar rancoroso a Gabriel. — Ele contou-me que vai autorizar o Amos a encontrar alguém para as Operações Especiais, para que tu possas levar a cabo esse projeto ridículo para o Adrian Carter e para os americanos.

— Imagino que não o aprove.

— com veemência. — Shamron fechou os olhos durante longos instantes, o suficiente para Gabriel olhar nervosamente para os monitores ao lado da cama. — Azul e branco — acabou por dizer. — Fazemos as nossas coisas sozinhos. Não pedimos a ajuda de ninguém, nem ajudamos os outros com os seus problemas. E, acima de tudo, não nos oferecemos como paus-mandados do Adrian Carter. — Está nesta cama de hospital e não no Gabinete do primeiro-ministro. Isso faz com que Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq também sejam problemas meus. Além disso, o mundo mudou, Ari. Temos de trabalhar juntos, se queremos sobreviver. As regras antigas já não se aplicam.

Shamron ergueu a mão de veias salientes e apontou para o copo de plástico sobre a mesa-de-cabeceira. Gabriel levou-o aos lábios de Shamron, que bebeu a água por uma palhinha.

— Vai empreender essa missão a pedido de quem? — indagou Shamron. — Adrian Carter, ou de alguém mais acima? — Ao receber o silêncio de Gabriel, Shamron afastou, zangado, o copo de água. — Pretende me tratar como uma espécie de inválido? Ainda sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados a segurança e informações. Ainda sou... — A voz sumiu, com uma fadiga súbita.

— Ainda é o memuneh — concluiu Gabriel.

Em hebraico, memuneh significava o responsável. Durante muitos anos, esse título fora reservado a Shamron. — Não vai atrás de um garoto qualquer de Nablus, Gabriel.Seus alvos são Ahmed bin Shafiq e Zizi al-Bakari. Se alguma coisa sair mal, o mundo vai cair em cima, e de muito alto. E seu amigo Adrian Carter não estará lá para catar teus pedaços. Talvez fosse melhor falar comigo. Já fiz esse tipo de coisas uma ou duas vezes.

Gabriel espreitou para o corredor e pediu aos agentes de segurança ali destacados que garantissem que qualquer sistema de vigilância de Shamron fosse desligado. Voltou então a sentar-se na cadeira ao lado da cama e, com a boca perto do ouvido de Shamron, contou tudo. Pelo menos por um instante, o olhar de Shamron pareceu mais concentrado. Quando lhe apresentou a primeira questão, Gabriel quase foi capaz de imaginar o homem de ferro que lhe entrara na vida durante uma tarde de Setembro de 1972.

— Já se decidiu a usar uma mulher? Gabriel anuiu.

— Vai precisar de alguém cujos antecedentes aguentem o escrutínio dos seguranças de Zizi, pagos a peso de ouro. Não pode usar uma das nossas garotas, nem uma judia não israelense. Se Zizi desconfiar que está olhando para uma judia, vai afastar-se dela. Precisa de uma gentia.

— O que eu preciso — explicou Gabriel — é de uma garota americana.

— Onde vai consegui-la?

A palavra única com que Gabriel respondeu fez Shamron franzir o sobrolho. — Não gosto da ideia de sermos responsáveis por uma agente deles. E se alguma coisa der errado?

— O que poderia dar errado?

— Tudo — retorquiu Shamron. — Sabe disso melhor do que ninguém.

Shamron pareceu subitamente exausto. Gabriel baixou a luz do abajur da mesa-de-cabeceira.

— O que vai fazer? — interrogou Shamron. — Vais ler-me uma história?

— Vou fazer-lhe companhia até que adormeça.

— Gilah pode fazer isso. Vai para casa descansar. Bem vais precisar.

— Fico mais um pouco.

— Vai para casa — insistiu Shamron. — Tens uma pessoa a sua espera que está ansiosa para vê-lo.

Vinte minutos depois, quando Gabriel virou para a Rua Narkiss, viu luzes acesas no seu apartamento. Estacionou o Skoda à esquina e percorreu em silêncio o passeio escurecido até o prédio. Quando entrou no apartamento, o ar estava carregado com o aroma a baunilha. Chiara estava sentada de pernas cruzadas em cima da mesa de trabalho, banhada pela luz forte das lâmpadas de halogêneo. Observou Gabriel quando este entrou, desviando então mais uma vez o olhar para o que em tempos fora uma sala de estar meticulosamente decorada.

— Gostei do que fizeste com a casa, Gabriel. Por favor, diz-me que não te livraste da nossa cama também.

Gabriel abanou a cabeça e beijou-a.

— Quanto tempo vais ficar por cá? — perguntou Chiara.

— Tenho de partir amanhã de manhã.

— Para variar, o meu sentido de oportunidade foi perfeito. Quanto tempo vais estar ausente?

— Não te sei dizer.

— Podes levar-me contigo? Desta vez, não.

— Para onde vais?

Gabriel ergueu-a da mesa de trabalho e apagou as luzes.

13

LONDRES

— Preciso de um Van Gogh, Julian.

— Precisamos todos, meu querido.

Isherwood puxou a manga do casaco e olhou para o relógio. Eram dez da manhã. Em geral, por essa hora já se encontrava na galeria, e não a passear à beira do lago de St. Jamess Park. Fez uma breve pausa para observar uma flotilha de patos que cruzavam a água calma em direção à ilha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos ao parque, para ver se estavam a ser seguidos. Depois agarrou em Isherwood pelo cotovelo e puxou-o para a Horse Guards Road. Eram um par díspar, figuras de quadros diferentes. Gabriel trazia jeans escuros e sapatos de camurça que não emitiam qualquer ruído quando andava. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de couro, os ombros curvados para a frente e os olhos verdes saltavam, inquietos, por todo o parque. Quinze anos mais velho do que

Gabriel e vários centímetros mais alto, Isherwood vestia um fato completo cinzento com riscas brancas e um sobretudo de lã. Os caracóis grisalhos tombavam soltos sobre a gola do sobretudo e saltitavam a cada passo desajeitado. Julian Isherwood tinha algo de precário na sua atitude. Como sempre, Gabriel teve de resistir ao impulso de ajudá-lo a equilibrar-se. Conheciam-se há trinta anos. O apelido tipicamente inglês e a posição social britânica ocultavam o fato de não ser, pelo menos tecnicamente, inglês de todo. Sim, tinha nacionalidade e passaporte britânicos, mas era de ascendência alemã, fora educado na França e era judeu de religião. Apenas um punhado de amigos de confiança sabia que Isherwood chegara a Londres em 1942 na condição de criança refugiada, depois de ter sido levado através dos Pirenéus por um par de pastores bascos. Ou que o pai, o afamado negociante de arte parisiense Samuel Isakowitz, fora assassinado no campo da morte de Sobibor, juntamente com a mãe de Isherwood. Havia mais uma coisa que Isherwood ocultava dos competidores no mundo da arte londrino, bem como do resto do mundo. Segundo o léxico do Escritório, Julian Isherwood era um sayan, um ajudante judaico voluntário. Fora recrutado por Ari Shamron com um único objetivo: ajudar a construir e a manter o disfarce de um único agente muito especial.

— Como está o meu amigo Mario Delvecchio? — perguntou Isherwood. — Desapareceu sem deixar rasto — respondeu Gabriel. — Espero que a minha revelação não te tenha causado problemas.

— De todo.

— Não houve comentários nas ruas? Não fizeram perguntas embaraçosas nos leilões? Não tiveste visitas dos agentes do MI5?

— Estás a perguntar-me se as pessoas de Londres me veem como um espião israelense venenoso?

— É exatamente isso que estou a perguntar-te.

— Está tudo calmo nesta frente, mas também nunca tivemos uma relação muito visível, certo? É a tua maneira de ser. Não és visível com nada. És um dos dois ou três melhores restauradores de arte do mundo e ninguém sabe quem tu és. É uma pena.

Chegaram à esquina da Great George Street. Gabriel cortou à direita, para

Birdeage Walk.

Quem sabe acerca de nós em Londres, Julian? Quem sabe que mantinhas uma relação profissional com o Mario?

Isherwood olhou para as árvores que ladeavam o passeio.

— Muito pouca gente. Jeremy Crabbe, da Bonhams, é claro. Continua possesso por lhe teres roubado aquele Rubens. — Isherwood levou a mão comprida e ossuda ao ombro de Gabriel. — Tenho um comprador. Agora só preciso do quadro. — Apliquei-lhe o verniz ontem, antes de sair de Jerusalém — explicou Gabriel.

— Vou utilizar um dos nossos exportadores para o trazer o mais depressa possível. Deves recebê-lo no final da semana. Por sinal, deves-me cento e cinquenta mil libras. — O cheque já está no correio, meu querido.

— Quem mais? — perguntou Gabriel. — Quem mais sabe de nós? Isherwood assumiu uma expressão pensativa.

— O maldito Oliver Dimbleby — respondeu. — Lembras-te do Oliver? Apresentei-o no Greens, uma bela tarde em que nós estávamos a almoçar. Aquele negociante atarracado de King Street. Certa vez tentou comprar-me a galeria. Gabriel lembrava-se. Ainda tinha, algures, o espalhafatoso cartão de visita dourado que Oliver lhe impingira. Oliver mal olhara na sua direção. Era a sua maneira de ser.

— Ao longo dos anos fiz muitos favores ao Crabbe — notou Isherwood. — O tipo de favores dos quais não gostamos de falar, no nosso ramo. Quanto ao Oliver Dimbleby, ajudei-o a resolver uma grande trapalhada que ele fez com uma garota que trabalhava na galeria dele. Recebi a desgraçada. Dei-lhe trabalho. Ela trocou-me por outro negociante. É o que as minhas garotas fazem sempre. O que se passa comigo para afastar sempre as mulheres? Sou um alvo fácil, é o que é. As mulheres percebem isso. O teu bando também. O Herr Heller percebeu-o bem.

Herr Rudolf Heller, investidor de Zurique, era uma das identidades preferidas de Shamron. Fora nesse papel que recrutara Isherwood.

— Por sinal, como está ele?

— Enviou-te cumprimentos.

Gabriel baixou o olhar para a calçada úmida de Birdeage Walk. Do parque levantou-se um vento frio. Folhas mortas restolhavam no caminho dos dois homens.

— Preciso de um Van Gogh — repetiu Gabriel.

— Sim, eu ouvi da primeira vez. O problema é que eu não tenho um Van Gogh. Caso te tenhas esquecido, a Isherwood Fine Arts é especializada em pintores renascentistas.

Se queres impressionistas, tens de procurar noutro lado.

— Mas sabes onde posso encontrar um.

— A menos que o queiras roubar, neste momento não há nada no mercado... pelo menos que eu saiba.

— Mas isso não é verdade, certo, Julian? Tu sabes de um Van Gogh. Falaste-me sobre ele há séculos... uma história acerca de um O quadro desconhecido que o teu pai vira em Paris, entre as guerras. — Não foi só o meu pai — corrigiu Isherwood. — Também eu o vi. O Vincent pintou-o em Auvers, durante os últimos tempos de vida. Diz-se que pode ter sido a sua desgraça.

O problema o quadro não está à venda, e talvez nunca venha a estar. A família deixou-me bem claro que nunca se vai separar dele. E também fazem tenção de manter a sua existência em segredo.

— Conta-me outra vez essa história.

— Agora não posso, Gabriel. Tenho um compromisso na galeria às dez e meia. Cancela esse compromisso, Julian. Conta-me sobre o quadro.

Isherwood cruzou a ponte pedonal sobre o lago e dirigiu-se à galeria em St. Jamess. Gabriel enfiou as mãos um pouco mais fundo nos bolsos do blusão e seguiu-o.

— Alguma vez o limpaste? — perguntou Isherwood.

— Ao Vincent? Nunca.

— O que sabes sobre os seus últimos tempos de vida?

— O que toda a gente sabe, creio eu.

— Tretas, Gabriel. Não te faças de desentendido comigo. A tua cabeça é como um dicionário de arte.

— Foi no Verão de 1890, não foi?

Isherwood acenou a sua concordância professoral. — Continua, por favor. — Depois de o Vincent ter deixado o sanatório em Saint-Rémy, foi para Paris, ver o Theo e a Johanna. Visitou algumas galerias e exposições, e parou na loja de material artístico de Père Tanguy, para ver algumas telas que lá tinha guardadas. Três dias depois começou a ficar impaciente, por isso apanhou um trem para Auvers-sur-Oise, a cerca de trinta quilômetros de Paris. Pensou que Auvers seria ideal, um ambiente bucólico sossegado para o seu trabalho, mas próximo de Theo, a tábua de salvação financeira e emocional. Alugou um quarto por cima do Café Ravoux e entregou-se aos cuidados do Dr. Paul Gachet. Gabriel agarrou o braço de Isherwood e juntos aproveitaram uma brecha no trânsito e entraram na Marlborough Road. — Começou a pintar imediatamente. Tal como o espírito, o estilo estava mais calmo e discreto. A agitação e a violência que caraterizaram grande parte do seu trabalho em Saint-Rémy e em Aries desaparecera. Foi também extraordinariamente prolífico. Durante os dois meses que Vincent ficou em Auvers, produziu mais de oitenta quadros. Um quadro por dia. Às vezes dois.

Viraram para King Street. Gabriel parou de repente. Mais à frente, a bambolear-se pelo passeio na direção da entrada da casa de leilões Christies, estava Oliver

Dimbleby. Isherwood cortou de súbito para Bury Street e retomou a narrativa no ponto onde Gabriel parara.

— Quando o Vincent não estava à frente da tela, normalmente encontrava-se no quarto por cima do Café Ravoux, ou na casa de Gachet. Este era um viúvo com dois filhos, um rapaz de quinze anos e uma filha que fez vinte e um durante a estadia de Vincent em Auvers.

— Marguerite. Isherwood anuiu.

— Era uma jovem bonita, que se sentia bastante atraída pelo Vincent. Acedeu em posar para ele... infelizmente sem a autorização do pai. Pintou-a no jardim da casa da família, vestida com uma túnica branca.

— Marguerite Gachet no Jardim — disse Gabriel.

— E quando o pai descobriu, ficou furioso.

— Mas ela voltou a posar.

— Correto — asseverou Isherwood. — O segundo quadro é Marguerite Gachet ao Piano. Também surge em Vegetação com Duas Figuras, um trabalho profundamente simbólico que alguns historiadores de arte viram como uma profecia da morte do próprio Vincent. Mas acredito que sejam Vincent e Marguerite a percorrer o corredor da igreja... a premonição de casamento de Vincent.

— Mas houve um quarto quadro de Marguerite?

Marguerite Gachet ao Toucador — clarificou Isherwood. — É de longe o melhor de todos. Apenas meia dúzia de pessoas o viu, ou sequer sabe que ele existe. O Vincent pintou-o poucos dias antes de morrer. E depois a obra desapareceu.

Caminharam até Duke Street e depois entraram numa passagem estreita, que dava acesso a um pátio quadrangular de tijolo chamado Masons Yard. A galeria de Isherwood ocupava um velho armazém vitoriano num canto, entalada entre os escritórios de uma empresa de navegação grega de pouca importância e um pub cheio de bonitas empregadas de escritório que dirigiam scooters. Isherwood fez menção de cruzar o pátio para se dirigir à galeria, mas Gabriel agarrou-lhe na lapela e puxou-o na direção oposta. Enquanto atravessavam o perímetro pelo meio das sombras frias, Isherwood comentou a morte de Vincent.

— Na noite de 27 de julho, Vincent voltou ao Café Ravoux, visivelmente em sofrimento, e subiu a custo a escada até seu quarto. Madame Ravoux seguiu-o e descobriu que fora alvejado. Mandou chamar um médico. Este, é claro, era o próprio Gachet. Decidiu deixar a bala na barriga do Vincent e convocou Theo a Auvers. Quando Theo chegou, na manhã seguinte, encontrou Vincent sentado na cama, fumando cachimbo. Morreu no fim desse dia.

Chegaram a uma zona iluminada pelo sol. Isherwood protegeu os olhos com a mão comprida.

— Existem muitas perguntas sem resposta quanto ao suicídio de Vincent. Não é claro onde conseguiu a arma, nem o local exato onde se alvejou. Também existem questões sobre a motivação. Terá sido o suicídio o culminar de uma longa batalha contra a loucura? Teria ficado perturbado com uma carta que recebera de Theo, onde este sugeria que não ia poder continuar a sustentá-lo, juntamente com a sua própria mulher e filho? Será que o Vincent se matou como parte de um plano para fazer com que o seu trabalho se tornasse relevante e comercialmente viável? Nunca fiquei muito satisfeito com nenhuma destas teorias. Acredito que tenha que ver com Gachet. Mais concretamente, com a filha do Dr. Gachet.

Voltaram a mergulhar nas sombras do pátio. Isherwood baixou a mão.

— No dia antes de se ter alvejado, Vincent foi a casa de Gachet. Discutiram violentamente e Vincent ameaçou Gachet com uma arma. Qual o motivo da discussão? Mais tarde, Gachet disse que teve que ver com uma moldura, consegues imaginar? Acredito que tenha sido por causa de Marguerite. Julgo que possa ter tido que ver com o Marguerite Gachet ao Toucador. É um trabalho maravilhoso, um dos melhores retratos do Vincent. A pose e o cenário representam claramente uma noiva na noite de núpcias.

O significado não teria passado despercebido a um homem como Paul Gachet. Se viu o quadro, e não há razão para acreditar que não tivesse visto, terá ficado enraivecido. Talvez Gachet tenha dito a Vincent que o casamento com a filha estava fora de questão. Talvez tenha proibido o Vincent de voltar a pintá-la. Talvez o tenha proibido de voltar a vê-la. Apenas sabemos que Marguerite Gachet não esteve presente no funeral de Vincent, embora tenha sido vista no dia seguinte, lavada em lágrimas, a deixar girassóis na campa dele. Nunca se casou e viveu em Auvers quase como uma reclusa até que morreu, em 1949. Passaram a entrada da galeria de Isherwood e continuaram a andar.

— Depois da morte do Vincent, os quadros tornaram-se propriedade do Theo. Preparou o envio dos trabalhos que o Vincent produzira em Auvers e armazenou-os em Père Tanguy, em Paris. Claro que o Theo morreu pouco depois do Vincent, e os quadros passaram para Johanna. Nenhum outro familiar de Vincent quis algum dos seus trabalhos. O irmão de Johanna considerou-os inúteis e sugeriu que fossem queimados. — Isherwood parou. — Consegues imaginar? — Voltou a avançar com um passo largo. -Johanna catalogou o inventário e foi incansável a criar a reputação do Vincent. Deve-se a Johanna que Vincent van Gogh seja considerado um grande artista. Mas há uma omissão notória na lista de trabalhos conhecidos.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Precisamente — confirmou Isherwood. — Terá sido um acidente, ou foi intencional? Nunca saberemos, claro está, mas tenho uma teoria. Acredito que Johanna soubesse que o quadro pode ter contribuído para a morte de Vincent. Seja qual for o caso, foi vendido por tuta-e-meia, cerca de um ano após a morte de Vincent, e nunca mais foi visto. E é nesse ponto que o meu pai entra na história.

Terminaram a primeira volta ao pátio e começaram uma segunda. Isherwood reduziu o ritmo quando começou a falar sobre o pai.

— Sempre foi um berlinense de coração. Teria lá permanecido sempre. Claro que não foi possível. O meu pai viu a tempestade que se aproximava e não perdeu tempo a sair da cidade. No final de 1936 tínhamos deixado Berlim e mudado para Paris. — Olhou para Gabriel.

— É pena que o teu avô não tenha feito o mesmo. Era um grande pintor, o teu avô. Descendes de uma bela linhagem, meu rapaz.

Gabriel mudou rapidamente de assunto.

— A galeria do teu pai ficava na rue de Ia Boétie, não era?

— É claro — replicou Isherwood. — Nessa altura, a rue de la Boétie era o centro do mundo da arte. Paul Rosenberg tinha a sua galeria no número 21. O Picasso e a Olga viviam no outro lado do pátio, no número 23. Georges Wildenstein, Paul Guillaume, Josse Hessel, Étienne Bignou... estava lá ioda a gente. A Isakowitz Fine Arts ficava ao lado da galeria do Paul Rosenberg. Vivíamos num apartamento por cima das salas de exposição. Picasso era o meu "Tio Pablo". Costumava deixar-me vê-lo a pintar e a Olga dava-me chocolates até ficar maldisposto.

Isherwood permitiu-se esboçar um sorriso, que se desvaneceu rapidamente quando regressou à história do pai em Paris.

— Os alemães chegaram em Maio de 1940 e começaram a pilhar tudo. O meu pai alugou uma casa de campo em Bordeaux, no lado de Vichy da linha, e mudou para lá a maior parte de suas peças importantes. Seguimos pouco tempo depois. Os alemães entraram na zona não ocupada em 1942 e tiveram início as rusgas e as deportações. Ficamos encurralados. O meu pai pagou a dois pastores bascos para me levarem através das montanhas até Espanha. Entregou-me documentos, um inventário profissional e alguns diários. Foi a última vez que o vi. Ouviu-se uma buzina sonora em Duke Street e um esquadrão de pombos alçou voo no pátio envolto em sombras.

— Foram precisos anos até ler os diários. Num deles descobri uma entrada sobre um quadro que o meu vira certa noite em Paris, na casa de um homem chamado Isaac Weinberg.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Weinberg disse ao meu pai que tinha comprado o quadro a Johanna, pouco depois da morte do Vincent, e que o oferecera à esposa como prenda de aniversário. Ao que parece, Mrs. Weinberg era parecida com Marguerite. O meu pai perguntou ao Isaac se estaria disposto a vendê-lo, mas a resposta foi negativa. Pediu ao meu pai que não mencionasse o quadro a ninguém, e ele fez-lhe a vontade. O celular de Isherwood chilreou e ele ignorou-o.

— No início da década de setenta, pouco antes de nos conhecermos, estive em Paris, em negócios. Fiquei com algumas horas entre compromissos e decidi procurar Isaac Weinberg. Fui à morada de Marais que estava nos cadernos do meu pai, mas Weinberg já lá não se encontrava. Não tinha sobrevivido à guerra. Mas conheci o filho, Marc, e falei-lhe da entrada no diário do meu pai. De início negou a história, mas acabou por ceder e permitiu-me que visse o quadro, não sem primeiro fazer-me jurar segredo eterno. Estava no quarto da filha. Perguntei-lhe se estaria interessado em desfazer-se dele. Recusou a oferta, é claro.

— Tens certeza de que é do Vincent?

— Sem sombra de dúvida. — E nunca mais lá voltaste?

— Monsieur Weinberg deixou bem claro que a pintura nunca estaria à venda. Achei que não fazia sentido lá voltar. — Isherwood deteve-se e encarou Gabriel. — Muito bem, meu querido. Já te contei a história. Imagino que me queiras explicar o que se passa.

— Preciso desse Van Gogh, Julian.

— Para quê?

Gabriel agarrou na manga de Isherwood e levou-o até a porta da galeria. Ao lado da porta de vidro havia um painel com intercomunicador, com quatro botões e respetivas placas de identificação. Num deles lia-se ISHRR OO FINE AR S: só com MARCAÇÃO. Isherwood abriu a porta com uma chave e conduziu Gabriel por um lance de escadas coberto por carpete marrom puído. À esquerda ficava uma pequena agência de viagens melancólica. A dona, uma solteirona chamada Miss Archer, estava sentada à secretária, à frente de um cartaz com um casal de ar feliz a chapinhar na água azul. A porta de Isherwood ficava à direita. A secretária mais recente, uma criatura de ar apologético chamada Tanya, olhou-os furtivamente quando Isherwood e Gabriel entraram.

— Este é Mr. Klein — apresentou-o Isherwood. — Quer ver uma coisa lá em cima. Sem interrupções, por favor. Bonita menina, Tanya, minha querida. Entraram para um elevador do tamanho de uma cabine telefônica e subiram tão próximos um do outro que Gabriel pôde sentir o cheiro do clarete da noite anterior no hálito de Isherwood. Segundos depois, o elevador parou com um solavanco e a porta abriu-se com um gemido. A sala de exposições de Isherwood encontrava-se na obscuridade, iluminada apenas pelo sol da manhã filtrado pela claraboia. Isherwood acomodou-se no divã forrado a veludo no centro da sala, enquanto Gabriel iniciava uma pequena visita. Os quadros eram quase invisíveis nas sombras profundas, mas conhecia-os bem: uma Vênus de Luini, uma natividade de Ferino dei Vaga, um batismo de Cristo de Bordone, uma paisagem luminosa de Claude.

Isherwood abriu a boca para falar, mas Gabriel levou um dedo aos lábios e retirou do bolso o que parecia ser um vulgar celular Nokia. Era com efeito um Nokia, mas o aparelho continha várias caraterísticas adicionais que não estavam disponíveis para clientes normais, como por exemplo um sinalizador GPS e um instrumento capaz de detectar a presença de transmissores ocultos. Gabriel deu mais uma volta à sala, desta vez com os olhos na tela do telefone. Depois sentou-se ao lado de Isherwood e, em voz baixa, disse-lhe por que precisava do Van Gogh.

— Zizi al-Bakari? — perguntou Isherwood, incrédulo. — É um diabo de um terrorista? Tem certeza?

— Não é ele que coloca as bombas, Julian. Nem sequer fabrica as bombas. Mas financia as bombas e usa seu império empresarial para facilitar o movimento de homens e materiais pelo globo. Atualmente, é tão ruim quanto ser terrorista. Pior.

— Conheci-o há tempos, mas ele não se lembraria. Fui a uma festa na propriedade dele em Gloucestershire. Uma festa enorme. Um mar de gente. Zizi nunca esteve presente. Desceu no fim, como se fosse um Gatsby. Cercado por guarda-costas, mesmo dentro da casa dele. Um tipo estranho. Mas é um colecionador voraz, não é? Arte. Mulheres. Tudo o que o dinheiro possa comprar. É um rapace, pelo que ouvi dizer. Nunca fiz negócios com ele, claro está. Zizi não se sente inclinado para os Renascentistas. Prefere os Impressionistas e mais algumas coisas modernas. Os árabes são todos assim. Não gostam da imagética cristã da Renascença.

Gabriel sentou-se ao lado de Isherwood.

— Ele não tem um Van Gogh, Julian. De vez em quando dá a entender que anda à procura de um. E não de um Van Gogh qualquer. Deseja algo especial. — Pelo que ouvi dizer, é muito cuidadoso com o que compra. Gasta rios de dinheiro, mas fá-lo com prudência. Tem uma coleção digna de um museu, mas nunca me tinha apercebido de que lhe faltava um Van Gogh.

— O conselheiro de arte dele é um inglês chamado Andrew Malone. Conhece-o?

— Infelizmente, Andrew e eu nos conhecemo bem. Tem enfiado bem as mãos nos bolsos de Zizi. Passa férias no iate de Zizi. Segundo parece, é grande como um Titanic. Andrew é velhaco. E porco, também.

— Em que sentido?

— Recebe de dois lados, meu querido.

— Que quer dizer com isso, Julian?

— Andrew tem um acordo exclusivo com Zizi, o que significa que não deve receber dinheiro de outros negociantes ou colecionadores de arte. É assim que os tubarões como Zizi garantem que os conselhos que recebem não são maculados por conflitos de interesse.

— O que anda a tramar o Malone?

— Extorsão, duplas comissões, de tudo um pouco.

— Tens certeza?

— Absoluta, meu querido. Toda a gente sabe que para fazer negócio com Zizi é preciso pagar ao Andrew Malone.

De repente, Isherwood levantou-se do divã e percorreu a sala de exposições. — Então e qual é seu plano? Fazer Zizi do buraco dele com um Van Gogh? Aparecer com ele diante dos olhos dele e esperar que engula anzol, linha e boia? Mas do outro lado da linha vai estar alguma coisa, não é? Um dos seus agentes?

— Algo do gênero.

— E onde pensa fazer isso? Aqui, imagino?

Gabriel olhou para a sala com um ar de aprovação.

— Sim — respondeu. — Acho que serve perfeitamente.

— Já receava.

— Preciso de um negociante — explicou Gabriel. — Alguém bem conhecido no ramo. Alguém em que eu possa confiar.

— Trabalho com pintores renascentistas, não com impressionistas.

— Isso não interessa, com um negócio discreto como este.

Isherwood não argumentou. Sabia que Gabriel tinha razão.

— Já pensaste nas consequências para mói, se o teu esquema der resultado? vou ficar marcado. Desenrasco-me bem com fuinhas como o Oliver Dimbleby, mas o raios parta da Al-Qaeda é outra história.

— É óbvio que teremos de tomar medidas pós-operacionais para tua segurança. — Adoro os teus eufemismos, Gabriel. Sempre que a verdade é demasiado horrível, tu e Shamron recorrem a eufemismos. Vão pôr a minha cabeça a prêmio. Vou ter de acabar com o negócio e me esconder.

Gabriel pareceu insensível aos protestos de Isherwood.

— Não está ficando mais jovem, Julian. Está quase no fim da linha. Não tem filhos. Não tem herdeiros. Quem vai ficar com a galeria? Além disso, já parou para pensar na comissão que vai receber pela venda particular de um Van Gogh desconhecido? Se juntar a isso o que vai ganhar com uma liquidação total, parece que as coisas podiam ser piores, Julian.

— Estou imaginando uma casinha no Sul da França. Um nome novo. Uma equipe de agentes do Escritório a protegerem-me durante a minha velhice. — Não te esqueças de me reservar um quarto. Isherwood voltou a sentar-se.

— O teu plano tem uma falha grave, meu querido. Vai ser mais fácil apanhares esse teu terrorista do que conseguir o Van Gogh. Partindo do princípio de que ainda está nas mãos da família Weinberg, o que te leva a pensar que vão abdicar dele?

— Ninguém disse que tinham de abdicar dele.

Isherwood sorriu.

— Vou buscar o endereço.

14

MARAIS, PARIS

— Devia comer alguma coisa — disse Uzi Navot.

Gabriel abanou a cabeça. Almoçara no trem de Londres.

— Experimenta o borscht — insistiu Navot. — Não pode vir ao Jo Goldenberg sem comer borscht.

— Posso, sim — contrapôs Gabriel. — Comida roxa me deixa nervoso.

Navot chamou a atenção do empregado e pediu uma dose dupla de borscht e um copo de vinho tinto. Gabriel franziu o sobrolho e olhou pela janela. Uma chuva constante açoitava o pavimento da rue des Rosiers e quase que anoitecera. Pretendera encontrar-se com Navot noutro local que não no mais famoso restaurante do mais importante bairro judaico de Paris, mas Navot insistira no Jo Goldenberg, com base na sua crença de que o melhor lugar para esconder um pinheiro era numa floresta.

— Este sítio está a deixar-me nervoso — murmurou Gabriel. Vamos dar uma volta. — com este tempo? Nem penses. Além disso, ninguém te vai reconhecer nessa figura. Até eu mal reparei em ti quando entraste.

Gabriel olhou para o rosto fantasmagórico refletido no copo. Tinha um boné de bombazina, lentes de contato que lhe transformavam os olhos verdes em castanho e uma barbicha falsa que lhe acentuava as feições já por si estreitas. Viajara para Paris com um passaporte alemão com o nome Heinrich Kiever. Depois de chegar à Gare du Nord, passara duas horas a caminhar pelas margens do Sena, a confirmar que não estava a ser seguido. Na mochila tinha um exemplar usado de Voltaire que comprara numa bouquiniste no Quai Montebello.

Dirigiu a atenção para Navot. Era um homem entroncado, vários anos mais novo do que Gabriel, de cabelo louro curto e olhos azuis pálidos. Segundo o léxico do Escritório, era um katsa, um agente de campo infiltrado. Armado com toda uma série de línguas, um encanto velhaco e uma arrogância fatalista, penetrara em células terroristas palestinas e recrutara agentes em embaixadas árabes espalhadas pela Europa Ocidental. Tinha fontes em quase todos os serviços de espionagem e de segurança europeus e geria uma rede vasta de sayanim. Podia sempre contar com a melhor mesa da churrascaria do Ritz de Paris, pois o maître d’hôtel era um informante pago, como também o chefe das empregadas de limpeza. Vestia agora um casaco cinzento de tweed e uma camisola de gola alta preta, pois a sua identidade em Paris era a de Vincent Laffont, um escritor freelance de livros de viagens, de ascendência bretã, que passava a maior parte do tempo na estrada. Em Londres era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura empresa de software canadiana. Em Madrid era um alemão de recursos independentes que passava o tempo em cafés e em bares, e que viajava para aliviar o fardo de uma alma agitada e complexa.

Navot tirou da pasta um dossiê que colocou na mesa à frente de Gabriel.

— Aqui está a dona do teu Van Gogh — disse. — Dá uma olhada.

Gabriel levantou discretamente a capa. A fotografia mostrava uma atraente mulher de meia-idade com cabelo escuro ondulado, pele cor de azeitona e um longo nariz aquilino. Segurava um guarda-chuva aberto e descia um lance de degraus de pedra em Montmartre.

— Hannah Weinberg — informou Navot. — Quarenta e quatro anos, solteira, sem filhos. É um bom exemplo da atual demografia judaica. Filha única sem filhos. Pelo andar da carruagem, não vamos precisar de um Estado. — Navot baixou o olhar e revirou, taciturno, o prato de frango recheado com legumes. Tendia para períodos de desânimo, especialmente quando se tratava do futuro do povo judeu. — É dona de uma pequena boutique em Montmartre, na rue Lepic. Chama-se Boutique Lepic. Tirei a foto no início da tarde, quando estava a sair para almoçar. Ficamos com a impressão de que a boutique é mais um passatempo do que vocação. Dei uma vista de olhos às contas bancárias dela. O Marc Weinberg deixou à filha uma vida desafogada.

O empregado aproximou-se e colocou um prato de uma mistela roxa à frente de Gabriel, que o empurrou de imediato para o centro da mesa. Não suportava o cheiro do borscht. Navot deitou um naco de pão para dentro do caldo e mergulhou-o com a colher.

— O Weinberg era um homem interessante. Era um advogado importante, aqui em Paris. Era também um militante das recordações. Pressionou bastante o Governo para que assumisse o papel dos franceses no Holocausto. Como resultado, ganhou uma certa impopularidade em alguns círculos parisienses.

— E a filha? Qual é a cor dela?

— Euro-socialista moderada, mas na França isso não é crime. Também herdou alguma militância do pai. Está envolvida com um grupo que tenta combater o anti-semitismo. Já se encontrou com o presidente francês. Vê debaixo da fotografia.

Gabriel encontrou um recorte de uma revista francesa sobre a onda de anti-semitismo na França. A fotografia acompanhante mostrava manifestantes judaicos numa marcha sobre as pontes do Sena. À frente da coluna, com um cartaz que dizia ACABEM com o ÓDIO JÁ, seguia Hannah Weinberg.

— Alguma vez foi a Israel?

— Pelo menos quatro vezes. Shabak está a investigar para garantir que ela não esteve em Ramallah, a conspirar com os terroristas. Tenho certeza de que não vão encontrar nada. Ela é sincera, Gabriel. Uma dádiva dos deuses da inteligência.

— Preferências sexuais?

— Homens, segundo julgamos. Está envolvida com um funcionário público.

— Judeu?

— Graças a Deus.

— Esteve na casa dela?

— Entrei com a equipe neviot.

As equipes neviot eram especializadas na obtenção de informações de locais como apartamentos, escritórios e quartos de hotel. A unidade empregava alguns dos melhores arrombadores e ladrões do mundo. Mais à frente na operação, Gabriel tinha outros planos para eles isso é claro, desde que Hannah Weinberg aceitasse separar-se do seu Van Gogh.

— Viste o quadro? Navot anuiu.

— Está no quarto de quando era pequena.

— Qual era o aspeto dele?

— Queres a minha avaliação de um Van Gogh? — Navot encolheu os ombros maciços. — É um quadro bonito, de uma garota sentada a um toucador. Não tenho uma veia artística, como tu. Sou mais virado para frango estufado e uma boa história de amor no cinema. Não estás a comer a tua sopa. — Não gosto, Uzi. Eu disse-te que não gostava.

Navot pegou na colher de Gabriel e mexeu o creme picante, aclarando o tom da mistura roxa.

— Demos uma vista de olhos aos papéis dela — continuou Navot. — Revistamos os armários e as gavetas. Também deixamos umas coisas no telefone e no computador. Nestas situações, todo o cuidado é pouco. — A casa está vigiada?

Navot pareceu ficar magoado com a pergunta.

— E claro — respondeu.

— O que estão a usar como posto de escuta?

— Por enquanto, uma van. Se ela concordar em ajudar-nos, vamos precisar de algo mais permanente. Um dos rapazes da neviot já anda no bairro à procura de um apartamento adequado.

Navot afastou os restos do frango estufado e atacou o borscht de Gabriel. Apesar da sua sofisticação europeia, no fundo continuava a ser um camponês do shtetl. — Já sei no que isso vai dar — comentou, entre colheradas. — Vais à procura do mau da fira, e eu fico um ano inteiro a vigiar uma mulher. Mas sempre foi assim, não é? Ficas com a glória toda, enquanto a mão de obra de campo faz o trabalho sujo. Meu Deus, salvaste o papa. Como um simples morcomo eu pode competir com isso?

— Cala-te e come a sopa, Uzi.

Ser o favorito de Shamron tinha o seu preço. Gabriel estava habituado à inveja profissional dos colegas.

— Amanhã tenho de sair de Paris — disse Navot. — Vou estar fora apenas um dia.

— Aonde vai?

— Amos quer falar comigo. — Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Acho que tem a ver com o cargo das Operações Especiais. O cargo que tu recusaste. Fazia sentido, pensou Gabriel. Navot era um agente de campo extremamente capaz, que participara em várias operações de monta, incluindo algumas com Gabriel. — É isso que quer, Uzi? Um trabalho no Boulevard King Saul?

Navot encolheu os ombros.

— Já ando no campo há muito tempo. Bella quer se casar. É difícil ter uma vida pessoal estável quando se vive assim. Às vezes, quando acordo de manhã, não faço ideia de onde vou estar no fim do dia. Posso tomar o pequeno-almoço em Berlim, almoçar em Amsterdam e estar no Rei Saul à meia-noite, apresentando relatório ao diretor. — Navot ofereceu um sorriso cúmplice a Gabriel. — É isso que os americanos não entendem. Enfiam os agentes em caixinhas e depois os castigam quando pisam na risca. O Escritório não é assim. Nunca foi. É por isso que temos o melhor trabalho do mundo... e é por isso que os nossos serviços são muito melhores que os deles. Não saberiam o que fazer com um homem como você.

Navot perdera o interesse no borscht. Empurrou-o, para que parecesse que Gabriel o comera. Gabriel pegou no copo de vinho, mas depois reconsiderou. Doía-lhe a cabeça por causa da viagem de trem e do tempo chuvoso de Paris, e o vinho tinha um cheiro tão apelativo como diluente.

— Mas tem o seu preço nos casamentos e nas relações, não é, Gabriel? Quantos de nós são divorciados? Quantos de nós tiveram romances com garotas no campo? Pelo menos se trabalhar em Tel Aviv vou estar mais vezes em casa. Continua a ser preciso viajar muito, mas não tanto como agora. A Bella tem uma casa perto da praia, em Cesareia. Vai ser uma boa vida. — Voltou a encolher os ombros.

— Escutem só. Estou falando como se Amos tivesse me oferecido o cargo. Amos não me ofereceu nada. Até pode estar me chamando ao Boulevard King Saul para me despedir.

— Não seja ridículo. É o homem mais indicado para o cargo. Vai ser meu chefe, Uzi.

— Seu chefe? Por favor. Você não tem chefes, Gabriel. Só o velhote.

A expressão de Navot tornou-se subitamente grave. — Como está ele? Ouvi dizer que não está bem.

— Vai se recuperar — assegurou-lhe Gabriel.

Ficaram em silêncio quando o empregado se aproximou da mesa e levantou os pratos. Ao afastar-se, Gabriel devolveu o dossiê a Navot, que o voltou a guardar na pasta.

— Como vai agir com Hannah Weinberg?

— Vou pedir que ceda um quadro que vale oitenta milhões de dólares. Tenho que contar a verdade... ou pelo menos uma versão da verdade. E depois teremos de lidar com as consequências da segurança.

— E quanto à abordagem? Vai dançar um pouco, ou vai cair matando?

— Eu não danço, Uzi. Nunca tive tempo para dançar.

— Pelo menos não terá problema em convencê-la de quem é. Graças aos serviços de segurança franceses, todos em Paris conhecem seu nome e seu rosto. Quando pretende começar?

— Esta noite.

— Nesse caso, está com sorte.

Navot fitou a janela. Gabriel seguiu seu olhar e viu uma mulher de cabelo escuro descendo a rue des Rosiers, abrigada por um guarda-chuva. Levantou-se sem uma palavra e dirigiu-se à porta.

— Não se preocupe, Gabriel — resmungou Navot entre dentes. — Eu pago a conta.

No final da rua, ela virou à esquerda e desapareceu. Gabriel fez uma pausa à esquina e observou alguns ortodoxos de casaco negro a entrarem para uma sinagoga, para as orações da tarde. Depois olhou para a rue Pavée e viu a silhueta de Hannah Weinberg a entrar nas sombras. Parou à porta de um prédio de apartamentos e procurou a chave na mala. Gabriel cruzou o passeio e deteve-se a pouca distância dela, no momento em que a mulher esticava a mão para a fechadura.

— Mademoiselle Weinberg?

Virou-se e olhou-o calmamente na escuridão. Dos olhos emanava uma inteligência calma e sofisticada. Se ficou sobressaltada com a abordagem, não o mostrou.

— É Hannah Weinberg, não é?

— Em que posso ajudá-lo, Monsieur?

— Preciso da sua ajuda — disse Gabriel. — Pensei que talvez pudéssemos conversar em privado.

— Conhecemo-nos, Monsieur?

— Não — respondeu Gabriel.

— Nesse caso, como poderei ajudá-lo?

— Seria preferível discutirmos o assunto em particular, Mademoiselle.

— Não costumo ir a locais privados com desconhecidos, Monsieur. Agora, se me dá licença.

Virou-se e dirigiu outra vez a mão à fechadura.

— Tem que ver com o seu quadro, Mademoiselle Weinberg. Preciso falar com você sobre o seu Van Gogh.

Ela imobilizou-se e voltou a fitá-lo. O olhar continuava calmo.

— Lamento desapontá-lo, Monsieur, mas não tenho um Van Gogh. Se gostaria de ver algumas pinturas de Vincent, sugiro que visite o Musée d’Orsay.

Voltou a desviar o olhar.

— Marguerite Gachet ao Toucador — disse Gabriel calmamente. Foi adquirido pelo seu avô à viúva de Theo van Gogh, Johanna, e oferecido à sua avó como presente de aniversário. A sua avó tinha uma vaga semelhança com Mademoiselle Gachet.

Quando era pequena, o quadro estava no seu quarto. Devo continuar? A compostura dela desapareceu. Quando voltou a falar, após um momento de silêncio espantado, a voz denotava uma veemência inesperada.

— Como sabe do meu quadro?

— Não tenho liberdade para o revelar.

— É claro que não. — A frase foi proferida como um insulto.

— O meu pai sempre me avisou que, um dia, um negociante de arte francês ganancioso iria tentar retirar-me o quadro. Não está à venda e, se por acaso desaparecer, garanto que a Polícia vai receber a sua descrição.

— Não sou negociante de arte... e não sou francês

— Então quem é o senhor? — questionou. — E o que pretende do meu quadro?


15

MARAIS, PARIS

O patio encontrava-se vazio e escuro, iluminado apenas pelas luzes das janelas dos apartamentos mais acima. Cruzaram-no em silêncio e entraram no hall, onde um antiquado elevador de portas de grades os aguardava. Ela preferiu a escada amplas e guiou-o até o terceiro andar. No patamar viam-se duas portas imponentes de mogno. A porta à direita não tinha identificação. Hannah Weinberg abriu-a e entraram. Gabriel registrou o fato de ela ter digitado um código no teclado antes de acender as luzes. Não havia dúvida de que Hannah Weinberg era boa a guardar segredos. O apartamento era grande, com um hall de entrada formal e uma biblioteca adjacente à sala. Via-se mobília antiga coberta de brocado, cortinados grossos de veludo nas janelas, e um relógio de ouropel com as horas erradas tiquetaqueava calmamente no rebordo da lareira. O olhar profissional de Gabriel dirigiu-se de imediato aos seis quadros a óleo bastante decentes que estavam pendurados nas paredes. A decoração criava o ar de uma era passada. Gabriel não ficaria surpreendido se visse Paul Gachet a ler o jornal à luz do gás.

Hannah Weinberg tirou o casaco e desapareceu na cozinha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos à biblioteca. Volumes encadernados a couro enchiam estantes de madeira com portas de vidro. Havia mais pinturas na divisão, paisagens prosaicas, um homem a cavalo, a obrigatória batalha marítima, mas nada que sugerisse que a dona pudesse também deter um Van Gogh perdido.

Regressou à sala no momento em que Hannah Weinberg surgia da cozinha com uma garrafa de Sancerre e dois copos. Entregou-lhe a garrafa e um saca-rolhas e observou-lhe cuidadosamente as mãos enquanto puxava a rolha. Não era tão atraente como parecera na fotografia de Uzi Navot. Talvez se devesse à luz parisiense, ou talvez praticamente qualquer mulher parecesse atraente a descer um lance de escadas em Montmartre. A saia de lã pregueada e a camisola pesada ocultavam o que Gabriel imaginava ser uma figura roliça. As sobrancelhas eram muito largas e emprestavam-lhe um ar de profunda seriedade ao rosto. Sentada como estava naquele momento, cercada pelas peças datadas da sala, parecia ter muito mais de quarenta e quatro anos de idade.

— Surpreende-me vê-lo em Paris, Monsieur Allon. Da última vez que li o seu nome no jornal, ainda era procurado para ser interrogado pela Polícia francesa. — Receio que ainda seja o caso.

— Mesmo assim, veio à França... só para falar comigo? Deve ser muito importante.

— É verdade, Mademoiselle Weinberg.

Gabriel serviu dois copos de vinho, entregou-lhe um e ergueu o outro num brinde silencioso. Ela imitou-o, ao que levou o copo aos lábios.

— Tem noção do que aconteceu aqui em Marais depois do atentado? — Hannah Weinberg respondeu à sua própria questão. — As coisas ficaram muito tensas. Dizia-se que tinha sido levado a cabo por Israel. Todos acreditavam que era verdade e, infelizmente, o Governo francês demorou muito tempo a lidar com a situação, mesmo depois de saberem que era mentira. Os nossos filhos foram agredidos nas ruas. Atiraram pedras às janelas e às vitrines. Escreveram coisas terríveis nas paredes de Marais e de outros bairros judeus. Sofremos bastante devido ao que aconteceu naquela estação ferroviária. — Lançou-lhe um olhar perscrutador, como se tentasse avaliar se fora mesmo aquele homem que vira nos jornais e na televisão. — Mas também sofreu, não foi? É verdade que a sua mulher esteve envolvida?

O tom direto da pergunta surpreendeu Gabriel. O seu primeiro instinto foi mentir, ocultar, levar mais uma vez a conversa para outro terreno. Mas tratava-se de um recrutamento — e Shamron dizia sempre que um recrutamento perfeito é, em essência, uma sedução perfeita.

E quando se estava a seduzir, obrigou-se Gabriel a recordar-se, era preciso revelar algo pessoal.

— Raptaram a minha esposa para me atraírem para a Gare de Lyon explicou. — Pretendiam matar-nos a ambos, mas também queriam desacreditar Israel e tornar a vida insuportável para os judeus da França.

— E conseguiram... pelo menos durante algum tempo. Não me interprete mal, Monsieur Allon, a situação continua difícil para nós. Apenas não tão má como nos dias que se seguiram ao atentado. — Bebeu mais um pouco de vinho, depois cruzou as pernas e alisou as pregas da saia. — Isto pode soar tolo, quando pensamos para quem trabalha, mas como descobriu o meu Van Gogh? Gabriel ficou em silêncio por um instante e depois respondeu-lhe com sinceridade. A menção da visita de Isherwood àquele apartamento havia mais de trinta anos fez com que esboçasse um vago sorriso de recordação. — Acho que me lembro dele — disse. — Um homem alto, muito elegante, cheio de charme e de graciosidade, mas, ao mesmo tempo, um tanto ou quanto vulnerável.

— Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Tal como o senhor.

— Charme e graciosidade são qualidades que raramente me atribuem. — E vulnerabilidade? — Ofereceu-lhe mais um sorriso breve, que lhe aliviou a seriedade do rosto. — Todos nós somos vulneráveis até certo ponto, não é verdade? Até mesmo alguém como o senhor? Os terroristas descobriram o seu ponto fraco e exploraram-no. É o que fazem de melhor. Exploram a nossa decência.

O nosso respeito pela vida. Atacam o que nos é mais caro. Navot tinha razão, pensou Gabriel. Ela era uma dádiva dos deuses da inteligência. Pousou o copo sobre a mesa de centro. Os olhos de Hannah seguiram os movimentos.

— O que aconteceu a esse homem, Samuel Isakowitz? — perguntou Hannah. — Conseguiu se salvar?

Gabriel abanou a cabeça.

— Ele e a mulher foram capturados em Bordeaux, quando os alemães se deslocaram para o sul.

— Para onde foram enviados?

— Sobibor.

Sabia o que isso significava. Gabriel não precisava dizer mais nada.

— E seu avô? — perguntou ele.

Hannah olhou para o Sancerre por um momento, antes de responder.

— Jeudi Noir — disse. — Conhece o termo?

Gabriel aquiesceu com solenidade. Jeudi Noir. Quinta-Feira Negra. — Na manhã do dia 16 de Julho de 1942, quatro mil agentes da Polícia francesa invadiram Marais e outros bairros judeus de Paris, com ordens para deter vinte e sete mil judeus imigrantes da Alemanha, da Áustria, da Polônia, da União Soviética e da Checoslováquia. Meu pai e os meus avós estavam na lista. Sabe, os meus avós eram de Lublin, na Polónia. Os dois polícias que bateram à porta deste apartamento tiveram pena do meu pai e disseram-lhe que fugisse. Uma família católica que vivia no andar de baixo acolheu-o e aí ficou até a libertação. Os meus avós não tiveram a mesma sorte. Foram enviados para o campo de detenção de Drancy. Cinco dias depois, partiram num vagão selado para

Auschwitz. É claro que foi o seu fim.

— E o Van Gogh?

— Não houve tempo para tomar providências, e não havia ninguém em Paris em quem o meu avô pudesse confiar. Estávamos em guerra, sabe. As pessoas traíam-se por meias e por cigarros. Quando ouviu dizer que estavam a prender os judeus, retirou a pintura do esticador e escondeu-a por baixo de uma tábua do soalho da biblioteca. Depois da guerra passaram-se anos até que o meu pai conseguisse recuperar o apartamento. Uma família francesa tinha-se mudado para cá depois de os meus avós terem sido presos, e não estavam dispostos a abdicar de um bom apartamento na rue Pavée. Não se podia censurá-los.

— Em que ano o seu pai recuperou a posse da casa?

— Em 1952.

— Dez anos — disse Gabriel. — E o Van Gogh ainda lá estava?

— Tal como o meu avô o deixara, escondido debaixo do soalho da biblioteca.

— Espantoso.

— Sim — concordou. — O quadro está na família Weinberg há mais de um século, atravessou a guerra e o Holocausto. E agora está a pedir-me para abrir mão dele.

— Não quero que abra mão da pintura — asseverou Gabriel.

— Então de que se trata?

— Apenas preciso de... — Fez uma pausa, em busca da palavra correta. — Preciso alugá-lo.

— Alugar? Durante quanto tempo?

— Não lhe sei dizer. Talvez um mês. Talvez seis meses. Talvez um ano, ou mais. — com que objetivo?

Gabriel não estava preparado para responder. Pegou a rolha e usou a unha do polegar para arrancar uma lasca.

— Sabe quanto vale aquele quadro? — indagou Hannah. — Se está pedindo que o ceda, mesmo que por pouco tempo, creio que tenho o direito de saber o motivo.

— É verdade — concordou Gabriel —, mas também deve saber que se lhe contar a verdade sua vida nunca mais será a mesma.

Hannah serviu-se de mais vinho e segurou o copo de encontro ao corpo por um momento, sem o beber.

— Há dois anos, houve um ataque particularmente violento aqui em Marais. Um menino ortodoxo foi emboscado por um bando de norte-africanos, quando ia para casa. Pegaram-lhe fogo ao cabelo e gravaram-lhe uma suástica na testa. Ainda tem a cicatriz. Organizamos uma manifestação com o objetivo de pressionar o Governo francês a fazer alguma coisa quanto ao antissemitismo. Quando nos manifestávamos na place de la Republique, houve uma contramanifestação anti-israelense. Sabe o que eles nos gritavam?

— Morte aos judeus.

— E sabe o que disse o presidente francês?

— Não há antissemitismo na França.

— Desde esse dia, a minha vida nunca mais foi a mesma. Além disso, como já deve ter percebido, sei guardar um segredo. Diga-me para que quer o meu Van Gogh, Monsieur Allon. Talvez possamos chegar a um acordo.

A van de vigilância neviot estava estacionada junto ao Parc Royal. Uzi Navot bateu duas vezes com os nós dos dedos no vidro traseiro espelhado e a porta foi-lhe aberta de imediato. Um agente neviot estava sentado ao volante. O outro estava nas traseiras, curvado sobre uma consola eletrônica com um par de fones nos ouvidos. — O que há? — perguntou Navot.

— Gabriel já a conquistou — respondeu o neviot. — E agora vai cair matando.

Navot colocou os fones e ouviu Gabriel contar a Hannah Weinberg a forma como usaria o Van Gogh para localizar o homem mais perigoso do mundo. A chave estava guardada na gaveta de cima da secretária da biblioteca. Hannah utilizou-a para destrancar a porta ao fundo do corredor escuro. A divisão atrás da porta era um quarto de criança. O quarto de Hannah imobilizado no tempo, pensou Gabriel. Uma cama de dossel com pálio de renda. Prateleiras repletas de animais de pelúcia e brinquedos. Um poster de um ator americano charmoso. E, pendurado sobre uma cômoda provençal francesa, envolto nas sombras profundas, um quadro perdido de Vincent van Gogh.

Gabriel avançou lentamente e deteve-se à frente dele, a mão direita no queixo, a cabeça um pouco inclinada. Depois estendeu a mão e tocou de leve nas pinceladas sumptuosas. Eram de Vincent — Gabriel tinha certeza. Vincent em chamas. Vincent apaixonado. O restaurador avaliou calmamente o alvo. O quadro parecia nunca ter sido limpo. Estava coberto por uma leve camada de sujidade e apresentava três rachas horizontais — resultado, imaginou Gabriel, de ter sido enrolado com demasiada força por Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. — Imagino que devamos falar sobre o dinheiro — comentou Hannah. — Quanto pensa o Julian que vai render?

— À volta de oitenta milhões. Permiti que retirasse uma comissão de dez por cento, como compensação pelo papel na operação. O restante dinheiro será de imediato transferido para si.

— Setenta e dois milhões de dólares?

— Mais milhão, menos milhão, é claro. E quando a operação terminar?

— Recupero o quadro. — Como pretende fazê-lo?

— Deixe isso comigo, Mademoiselle Weinberg.

— E o que acontece aos setenta e dois milhões, quando me devolver o quadro? Mais milhão, menos milhão, é claro.

— Pode ficar com os juros acumulados. Para além disso, vou pagar-lhe uma taxa de aluguer. O que acha de cinco milhões de dólares?

Hannah sorriu.

— Parece-me bem, mas não pretendo ficar com o dinheiro para mim. Não quero o dinheiro deles.

— Nesse caso, o que tenciona fazer? Hannah explicou-lhe.

— Parece-me muito bem — replicou Gabriel. — Negócio fechado, Mademoiselle Weinberg?

— Sim — assentiu ela. — Negócio fechado.

Depois de sair do apartamento de Hannah Weinberg, Gabriel dirigiu-se a uma casa de segurança do Escritório, perto do Bois de Boulogne. Vigiaram-na durante três dias. Gabriel apenas a viu nas fotografias de vigilância e só ouviu a sua voz nas gravações. Todas as noites as escutava, em busca de sinais de traição, ou de indiscrição, mas apenas encontrou fidelidade. Na véspera do dia em que deveria entregar o quadro, ouviu-a a chorar baixinho e percebeu que se despedia de Marguerite.

Na manhã seguinte, Navot trouxe o quadro, enrolado numa manta velha que viera do apartamento de Hannah. Gabriel chegou a pensar em enviá-lo para Tel Aviv através de um correio, mas acabou por decidir ser ele próprio a levá-lo da França. Retirou-o da moldura e depois soltou a tela da armação. Quando a enrolou cuidadosamente, pensou em Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. Agora, em vez de escondida por baixo do soalho, estava oculta em segurança por baixo do forro falso da mala de Gabriel. Navot levou-a à Gare du Nord. Um agente da Estação de Londres estará à espera em Waterloo — disse Navot. — Ele o leva a Heathrow. El Al está à espera. Vão garantir que não tenha problema com a bagagem.

— Obrigado, Uzi. Não demora e vai deixar de me fazer preparativos para as viagens.

— Eu não teria assim tanta certeza.

— As coisas não correram bem com Amos?

— Ele é muito fechado.

— O que disse ele?

— Disse que precisava de uns dias para pensar.

— Não estava esperava que ele te oferecesse o cargo de mão beijada, certo?

— Nem sei o que esperava.

— Não se preocupe, Uzi. Vai ficar com o cargo.

Navot parou no acostamento, a um quarteirão da estação.

— Pode dar uma palavrinha por mim na King Saul, Gabriel? Amos gosta de você.

— O que leva você a dizer isso?

— É fácil de ver — explicou-lhe. — Todos gostam de você.

Gabriel saiu do carro, retirou a mala do banco traseiro e desapareceu no interior da estação. Navot esperou na beira até cinco minutos depois da hora da partida de Gabriel. Depois arrancou para o meio do trânsito e afastou-se.

Quando Gabriel chegou, o apartamento estava às escuras. Acendeu uma lâmpada e ficou aliviado ao ver o estúdio intato. Entrou no quarto e viu Chiara sentada na cama. Lavara o cabelo e o prendera com um elástico de veludo. Gabriel retirou-o e desabotoou sua camisola. Enquanto faziam amor, o quadro ficou a seu lado.

— Sabe — comentou Chiara —, a maior parte dos homens volta de Paris com um lenço Hermès e um perfume.

À meia-noite, o telefone tocou. Gabriel atendeu antes do segundo toque. — Estarei lá amanhã — disse, após um momento, e desligou.

— Quem era? — perguntou Chiara. — Adrian Carter.

— O que ele queria?

— Quer que vá imediatamente para Washington.

— O que há em Washington?

— Uma garota — explicou Gabriel. — Carter encontrou a garota.

16

MCLEAN, VIRGÍNIA

— Como foi o voo?

— Nunca mais acabava.

— São as correntes de jato do outono — explicou Carter, com um certo pedantismo. — Atrasa pelo menos duas horas os voos da Europa para a América.

— Israel não fica na Europa, Adrian. Israel fica no Oriente Médio.

— Sério?

— Pergunte a seu diretor de informações. Ele esclarece a confusão.

Carter lançou um olhar de desdém a Gabriel, ao que devolveu a atenção à estrada. Dirigiam-se a Washington no Volvo amolgado de Carter, através da Dulles Access Road. Carter vestia um casaco de bombazina com remendos nos cotovelos, o que reforçava a imagem acadêmica. Só lhe faltava o saco de lona para os livros e a caneca personalizada. Conduzia bem abaixo do limite de velocidade e olhava com frequência para o espelho retrovisor.

— Estamos a ser seguidos? — perguntou Gabriel.

— Polícia de trânsito — explicou Carter. — São fanáticos, nesta estrada. Algum problema com o controle do passaporte?

— Nenhum — respondeu Gabriel. — Por acaso, pareciam muito contentes por me verem.

Era algo que Gabriel nunca compreendera em relação à América

— a cordialidade dos agentes de fronteira. Sempre vira algo de reconfortante no mau humor enfadado dos israelenses que carimbavam passaportes no Aeroporto Ben-Gurion. Os funcionários aduaneiros americanos eram demasiado cordiais. Olhou pela janela. Tinham deixado a Dulles Access Road e seguiam agora por McLean. Apenas estivera uma vez na Virgínia, para uma visita breve a uma casa de segurança da CIA, nas profundezas da terra dos cavalos, perto de Middleburg. Considerou McLean o típico subúrbio americano, limpo e próspero, mas com uma certa falta de vida. Atravessaram o bairro comercial da baixa e depois entraram numa secção residencial com grandes casas que pareciam saídas de um panfleto imobiliário. Os empreendimentos tinham nomes como Merrywood e Colonial Estates. Um sinal rodoviário flutuou na sua direção: CENTRO DE INFORMAÇÃO GEORGE BUSH.

— Não vais levar-me à sede, certo?

— É claro que não — garantiu Carter. — Vamos para o Bairro.

Gabriel sabia que o Bairro era a forma como os habitantes de Washington se referiam à pequena aldeia no Potomac. Cruzaram um viaduto sobre a autoestrada e entraram numa zona de encostas e matas densas. Por entre as árvores, Gabriel avistou casas imponentes em frentes ao rio.

— Como se chama?

— Sarah Bancroft — respondeu Carter. — O pai era executivo da divisão internacional do Citibank. Cresceu quase sempre na Europa. Ao contrário da maioria dos americanos, sente-se confortável no estrangeiro. Fala algumas línguas estrangeiras. Sabe usar os talheres na altura correta.

— Estudos?

— Regressou à América para fazer o curso superior. Licenciou-se em História da Arte em Dartmouth, e depois estudou no Courtauld Institute of Art, em Londres. Imagino que conheças o Courtauld?

Gabriel anuiu. Era uma das mais prestigiadas escolas de arte do mundo. Nele tinham-se formado nomes como um certo negociante de arte de St. James chamado Julian Isherwood.

— Depois do Courtauld, fez um doutorado em Harvard prosseguiu Carter. — Agora é conservadora do Phillips Colletion, em Washington. É um pequeno museu, perto de...

— Eu conheço o Phillips Colletion, Adrian.

— Desculpe — lamentou-se Adrian, sinceramente. Um veado surgiu de entre as árvores e cruzou-se no caminho do carro. Adrian levantou o pé do acelerador e observou o animal a desaparecer em silêncio na mata escura.

— Como ficaram sabendo dela? — perguntou Gabriel, mas Carter não respondeu. Estava inclinado sobre o volante, a perscrutar as árvores ao longo da estrada, à procura demais veados.

— Quando aparece um — explicou —, normalmente há mais.

— Como os terroristas — comentou Gabriel. Repetiu a pergunta.

— Ela candidatou-se aos nossos serviços poucos meses depois do onze de Setembro — explicou Carter. — Tinha acabado o doutorado. Parecia interessante na ficha, por isso a chamamos e entregamos aos psiquiatras do RH. Interrogaram-na e não gostaram do que viram. Independente demais, foi o que disseram. Talvez até um pouco inteligente demais para seu próprio bem. Quando a recusamos, foi parar no Phillips. — Estás a oferecer-me uma das suas rejeitadas?

— Não é um termo que se aplique a Sarah Bancroft. — Carter retirou uma fotografia do bolso do casaco, que entregou a Gabriel. Sarah Bancroft era uma mulher extremamente bonita, de cabelo louro à altura dos ombros, maçãs do rosto largas e olhos grandes da cor de um céu límpido de Verão.

— Idade?

— Trinta e um.

— Por que não é casada?

Carter hesitou por um momento.

— Por que não é casada, Adrian?

— Teve um namorado em Harvard, um jovem advogado chamado Ben Callahan. As coisas acabaram mal.

— O que aconteceu com Ben?

— Pegou um avião para Los Angeles no Logan Airport na manhã do 11 de setembro de 2001.

Gabriel estendeu a fotografia a Carter.

— Zizi não vai contratar alguém que tenha sido afetado pelo Onze de Setembro. Trouxe-me aqui para nada, Adrian.

Carter manteve as mãos no volante.

— Ben Callahan era um namorado de escola, não era um marido. Além disso, Sarah nunca fala sobre ele com ninguém. Quase tivemos de arrancar essa informação. Ela receava que a morte do Ben a perseguisse para o resto da vida, que as pessoas a tratassem como se fosse uma viúva aos vinte e seis anos. Ela não fala no assunto. Esta semana demos por aí uma olhada. Ninguém sabe.

— Os cães de guarda de Zizi vão fazer mais do que dar uma vista de olhos, Adrian. E se lhes der o cheiro do onze de Setembro, ele vai fugir dela a sete pés. — Por falar em Zizi, a casa dele é já ali à frente.

Carter reduziu para fazer uma curva. Um enorme portão de segurança em ferro e tijolo surgiu-lhes à esquerda. Por detrás do portão, um extenso caminho de acesso alcatroado subia até uma imponente mansão em frente ao rio. Gabriel desviou o olhar quando passaram pela propriedade.

— Zizi nunca vai ficar a saber do Ben — garantiu Carter. — Estás disposto a apostar a vida da Sarah quanto a isso?

— Fala com ela, Gabriel. Dá-me a tua opinião. -Já sei qual é a minha opinião.

Ela é perfeita.

— Então qual é o problema?

— Se cometermos um erro que seja, Zizi vai dar cabo dela. É esse o problema, Adrian.

A rapidez com que chegaram ao centro de Washington surpreendeu Gabriel. Num momento estavam numa estrada rural de duas vias, no extremo do vale do Potomac, e no outro arrastavam-se pela Q Street, no meio da hora de ponta de Georgetown. Assumindo o papel de guia turístico, Carter disse as casas dos residentes mais conhecidos do bairro. Com a cabeça encostada ao vidro, Gabriel nem sequer era capaz de reunir energias para fingir estar interessado. Atravessaram uma ponte curta, guardada em cada extremidade por um par de enormes búfalos manchados, e entraram na zona diplomática da cidade. Logo a seguir à Massachusetts Avenue, Carter apontou para uma estrutura atorreada de tijolo, do lado esquerdo da rua.

— Aquele é o Phillips — disse Adrian, prestativo. Gabriel olhou para a direita e viu uma versão em bronze de Mohandas Gandhi a caminhar num parque triangular minúsculo. Porquê Gandhi? interrogou-se. O que teriam os ideais do Mahatma que ver com aquele centro de poder americano?

Carter percorreu mais um quarteirão e estacionou na zona diplomática reservada à frente de uma embaixada latino-americana de aspeto banal. Deixou o motor ligado e não deu indicação de pretender sair do carro.

— Esta zona da cidade chama-se Dupont Circle — explicou, ainda à laia de guia turístico. — É o que pretende ser a vanguarda de Washington.

Um agente da Divisão Uniformizada do Serviço Secreto bateu ao vidro de Carter e fez-lhe sinal para seguir viagem. Sempre a olhar em frente, Carter encostou a identificação ao vidro e o agente regressou ao carro patrulha. Momentos depois, algo no espelho retrovisor chamou a atenção de Carter.

— Aí vem ela — disse.

Gabriel olhou pela janela quando Sarah Bancroft passou por eles, vestindo um sobretudo comprido de cintura estreita. Tinha uma pasta de pele numa mão e um celular na outra. Gabriel ouviu-lhe a voz quando ela passou. Grave, sofisticada, um toque de pronúncia inglesa — remanescente, sem dúvida, do tempo passado em Courtauld, e de uma infância vivida em escolas internacionais no estrangeiro.

— O que acha? — perguntou Carter.

— Já te digo.

Chegou à esquina da Q Street com a 20th Street. Na esquina oposta ficava uma praça repleta de vendedores ambulantes e com um par de escadas rolantes que davam na estação de metrô de Dupont Circle. O semáforo de Sarah estava vermelho. Sem parar, desceu do passeio e começou a atravessar a estrada. Quando um taxista buzinou em protesto, ela lançou-lhe um olhar capaz de derreter gelo e prosseguiu com a conversa. Depois cruzou lentamente o passeio e entrou na escada rolante descendente. Com admiração, Gabriel observou-a a desaparecer de vista.

— Tem mais alguma como ela?

Carter tirou um celular do bolso e marcou um número.

— Vamos embora — disse. Momentos depois, uma grande Suburban preta contornou a esquina e estacionou ilegalmente na Q Street, em frente às escadas rolantes. Cinco minutos mais tarde, Gabriel voltou a vê-la, desta vez a surgir lentamente das profundezas da estação de metro. Já não estava a falar ao telefone, nem se encontrava sozinha. Era acompanhada por dois agentes de Carter, um homem e uma mulher, um em cada braço, para o caso de ela mudar repentinamente de ideias. A porta traseira da Suburban abriu-se e Sarah Bancroft desapareceu. Carter ligou o motor e regressou a Georgetown.

17

 

GEORGETOWN

A Suburban preta deteve-se quinze minutos mais tarde à porta de uma casa de estilo federal em N Street. Quando Sarah subiu os degraus curvos de tijolo, a porta abriu-se de repente e uma figura surgiu nas sombras do pórtico. Vestia calça caqui e jaqueta com remendos nos cotovelos. O olhar denotava um curioso distanciamento clínico que lembrou a Sarah o terapeuta que consultara após a morte de Ben.

— Chamo-me Carter — apresentou-se, como se disso se tivesse lembrado de súbito. Não disse se era o nome próprio ou o apelido, apenas que era verdadeiro. — Já não uso nomes esquisitos — explicou. — Agora pertenço à Sede.

Sorriu. Era um sorriso artificial, como o foi o breve aperto de mão. Convidou-a a entrar e, mais uma vez, conseguiu transmitir a ideia de uma inspiração súbita.

— E você é a Sarah — informou-a, enquanto a guiava pelo vasto salão central. — Sarah Bancroft, conservadora do conceituado Phillips Colletion. Sarah Bancroft, que num ato de coragem nos ofereceu os seus serviços depois do onze de Setembro, mas que foi recusada e a quem lhe disseram que não fazia falta.

Como vai o seu pai?

Sarah ficou surpreendida com a repentina mudança de assunto.

— Conhece o meu pai?

— Nunca nos encontramos. Trabalha para a Citicorp, não é?

— Sabe muito bem para quem ele trabalha. Por que me pergunta?

Por onde anda ele? Londres? Bruxelas? Hong Kong? Paris — respondeu. — É a última comissão. Vai reformar-se para o ano que vem.

— E depois volta para casa? Sarah abanou a cabeça.

— Vai ficar em Paris. Com a nova mulher. Os meus pais divorciaram-se há dois anos. Ele voltou a casar-se de imediato. Para ele, tempo é dinheiro.

— E a sua mãe? Onde está ela?

— Em Manhattan.

— Costuma ver o seu pai?

— Festas. Casamentos. O típico almoço constrangedor, sempre que ele vem à América. O divórcio dos meus pais foi mau. Todos tomaram partidos, incluindo os filhos. Por que está a fazer-me essas perguntas? O que pretende de...

— Acredita nisso? — atalhou Carter.

— Acredito no quê? — Em tomar partidos.

— Acho que depende das circunstâncias. Isto faz parte dos testes? Pensei que tivesse chumbado nos testes.

— E chumbou — garantiu Carter. — Redondamente. Entraram na sala. Estava mobilada com a elegância formal mas anônima normalmente reservada às suítes dos hotéis. Carter ajudou-a a despir o casaco e convidou-a a sentar-se.

— Nesse caso, por que voltei?

— Este é um mundo fluido, Sarah. As coisas mudam. Diga-me uma coisa, em que circunstâncias julga que é correto tomar partidos?

— Nunca pensei muito no assunto.

— Claro que pensou — contrapôs Carter e, pela segunda vez, Sarah viu o terapeuta, sentado no cadeirão de motivos florais, com a caneca de cerâmica equilibrada no joelho, levando-a a visitar locais onde ela preferia não entrar. — Vamos, Sarah — dizia Carter. — Dê-me um exemplo em que acredite que se deve tomar partidos.

— Acredito no bem e no mal — respondeu, erguendo um pouco o queixo. — O que talvez sirva para explicar o motivo por que chumbei nos testes. O seu mundo é em tons de cinzento. Em geral, vejo as coisas a preto e branco.

— Foi isso que o seu pai lhe disse? era Ben quem a acusava dessa falha.

— Qual o objetivo disto? — perguntou. — Por que estou aqui? Mas Carter continuava a analisar as implicações da última resposta.

— E quanto aos terroristas? — perguntou, e Sarah ficou mais uma vez com a impressão de que o homem acabara de pensar na questão. — É sobre isso que me questiono. Como eles se encaixam no mundo do bem e do mal da Sarah Bancroft? Serão maus, ou será que a sua causa é legítima? Seremos vítimas inocentes, ou será que fomos nós que provocamos esta calamidade? Devemos ficar sentados e aguentar, ou teremos o direito de lhes resistir com toda a nossa força e raiva?

— Sou conservadora-assistente do Phillips Colletion — disse-lhe.

— Quer mesmo que teça considerações sobre a moral do contraterrorismo?

— Nesse caso, vamos restringir a nossa questão. Sempre me pareceu útil fazê-lo. Vejamos como exemplo o homem que levou o avião do Ben contra o World Trade Center. — Carter fez uma pausa. — Recorde-me, Sarah, em que avião estava Ben?

— Sabe muito bem em que avião ele estava — retorquiu. — No Voo 175 da United.

— Que era pilotado por...

— Marwan al-Shehhi.

— Imaginemos por um momento que Marwan al-Shehhi conseguiu sobreviver. Eu sei que é uma loucura, Sarah, mas acompanhe meu raciocínio. Imagine que ele conseguiu voltar ao Afeganistão ou ao Paquistão ou a qualquer outro santuário terrorista. Imagine que sabíamos quem era. Deveríamos enviar o FBI com um mandado de captura, ou deveríamos tratar dele de modo mais eficaz? Homens de negro? Forças especiais? Um míssil Hellfire lançado de um drone?

— Creio que sabe o que faria.

— Imagine que desejo ouvi-lo de sua boca, antes de continuarmos.

— Os terroristas declararam guerra — acusou Sarah. — Atacaram nossas cidades, mataram os nossos cidadãos e tentaram prejudicar a estabilidade do nosso governo.

— Nesse caso, o que deveríamos fazer?

— Deviam ser enfrentados com dureza.

— E o que significa isso?

— Homens de negro. Forças especiais. Um míssil Hellfire lançado de um drone.

— E quanto ao homem que lhes dê dinheiro? Será igualmente culpado? E, se assim for, até que ponto?

— Talvez dependa de ele saber para que serve esse dinheiro.

— E se ele soubesse muito bem para que serve esse dinheiro?

— Nesse caso, é tão culpado como o homem que jogou o avião na torre.

— Estaria confortável, ou mesmo justificada, em agir contra tal indivíduo?

— Ofereci ajuda há cinco anos — acusou, com um tom de desprezo. — Disseram que não era adequada para este tipo de trabalho. E agora querem minha ajuda?

Carter não pareceu abalado com o protesto. Sarah sentiu uma empatia súbita pela mulher daquele homem.

— Ofereceu ajuda e nós a tratamos de uma forma miserável. Receio que sejamos muito bons nisso. Queria poder dizer o quanto estávamos errados. Talvez pudesse confortá-la com um pedido de desculpas falso. Mas sinceramente, Miss Bancroft, não há tempo. — A voz apresentava agora um tom que até então estava ausente. — Assim sendo, acho que preciso de uma resposta direta. Ainda quer ajudar? Quer combater os terroristas, ou prefere voltar a sua vida e esperar que não volte a acontecer?

— Combater? — indagou Sarah. — Certamente há pessoas mais indicadas para isso.

— Há muitas formas de combate, Sarah.

A jovem hesitou. Carter acentuou o silêncio repentino com uma observação prolongada das próprias mãos. Não era o tipo de homem que repetia perguntas. Nesse aspeto, era muito parecido com o pai dela.

— Sim — acabou por dizer. — Quero.

— E se para isso tivesse de trabalhar com uma agência de espionagem que não a CIA? — perguntou Carter, como se debatesse uma teoria abstrata. — Uma agência bastante próxima de nós na luta contra o terrorismo islâmico? — E qual seria essa agência?

Carter era bom a esquivar-se a perguntas e voltou a prová-lo.

— Gostaria que conhecesse uma pessoa. É um homem sério. Uma espécie de diamante em bruto. Vai colocar-lhe algumas questões. Na verdade, vai interrogá-la durante algumas horas. Por vezes talvez se torne um pouco pessoal. Se gostar do que vir, vai pedir-lhe que nos ajude num empreendimento muito importante. Não é isento de riscos, mas é essencial para a segurança dos Estados Unidos, e tem o nosso apoio incondicional. Se estiver interessada, permaneça onde está. Caso contrário, saia, e fingimos que entrou aqui por acaso.

Sarah nunca saberia ao certo a forma como Carter o chamara, ou de onde surgira. Era pequeno e magro, com cabelo muito curto e têmporas grisalhas. Tinha os olhos mais verdes que Sarah alguma vez vira. Tal como o de Carter, o aperto de mão foi breve, mas analisador, como o toque de um médico. Falava um inglês fluente, mas com uma pronúncia cerrada. Se tinha nome, não era relevante. Instalaram-se na mesa comprida da sala de jantar formal, Carter e o colaborador anônimo de um lado, e Sarah do outro, como se de um suspeito numa sala de interrogatório se tratasse. O colaborador detinha agora a posse do seu dossiê da CIA. Folheava lentamente as páginas, como se as visse pela primeira vez, o que ela duvidava fosse o caso. A primeira questão foi-lhe apresentada com um leve tom acusatório.

— A sua dissertação para o doutorado em Harvard teve como tema os expressionistas alemães.

Parecia um ponto estranho para começar. Sentiu-se tentada a perguntar qual o interesse no tema da dissertação, mas limitou-se a acenar com a cabeça e a responder:

— Sim, exatamente. Deparou-se com um homem chamado Viktor Frankel, durante a sua pesquisa?

— Era discípulo de Max Beckmann — disse Sarah. — Hoje em dia Frankel é pouco conhecido, mas na altura era considerado de extrema influência e era tido em muito boa consideração pelos contemporâneos. Em 1936, os nazistas consideraram seu trabalho degenerado e foi proibido de continuar a pintar. Infelizmente, decidiu permanecer na Alemanha. Quando resolveu partir, era demasiado tarde. Foi deportado para Auschwitz em 1942, juntamente com a esposa e com a filha adolescente, Irene. Apenas Irene sobreviveu. Foi para Israel depois da guerra e tornou-se uma das artistas mais influentes do país nas décadas de cinquenta e sessenta. Acho que morreu há alguns anos.

— Exatamente — asseverou o colaborador de Carter, os olhos ainda no dossiê de Sarah.

— Por que ficou interessado em Viktor Frankel?

— Porque era meu avô.

— É filho da Irene?

— Sim. Irene era minha mãe.

Sarah olhou para Carter, que fitava as próprias mãos.

— Acho que sei quem comanda este seu empreendimento. Voltou a dirigir a atenção para o homem de têmporas grisalhas e olhos verdes. — É israelense.

— Sou culpado desse crime. Continuamos, Sarah, ou prefere que eu saia?

Sarah hesitou por um instante, e depois anuiu.

— Posso ter um nome, ou são proibidos?

O colaborador deu-lhe um nome. Era vagamente familiar. E então lembrou-se de onde o vira. O agente israelense que esteve envolvido no atentado na Gare de Lyon, em Paris... — Foi o homem que...

— Sim — atalhou ele. — Fui eu.

Voltou a olhar para o dossiê e virou a página.

— Mas voltemos a você, está bem? Temos muito que fazer e estamos limitados de tempo.

Começou lentamente, um montanhista a abrir caminho nos contrafortes, a guardar as forças para os perigos invisíveis que o esperavam mais à frente. As questões eram breves, eficientes e apresentadas de forma metódica, como se as lesse de uma lista previamente elaborada, o que não era o caso. Dedicou a primeira hora à família. O pai, o importante executivo da Citicorp, que não dispusera de tempo para os filhos, mas encontrara muito para outras mulheres. A mãe, cuja vida se desmoronara após o divórcio e que vivia agora como uma eremita, no seu apartamento de Manhattan, na Quinta Avenida. A irmã mais velha, que Sarah descreveu como "aquela que ficou com a inteligência e com a beleza". O irmão mais novo, que abandonara a família cedo e que naquele momento, para desapontamento do pai, trabalhava por um ordenado mísero numa loja de aluguer de esquis, algures no Colorado.

Depois da família, a hora seguinte foi dedicada em exclusivo à dispendiosa educação na Europa. A jovem americana em St. Johns Wood, onde completara a escola primária.

A escola internacional de Paris, onde aprendera a falar francês e a meter-se em sarilhos. O internato feminino nos arredores de Genebra, onde fora encarcerada pelo pai, com o objetivo de "pôr a cabeça no lugar". Fora na Suíça, adiantou Sarah de moto próprio, que descobrira a paixão pela arte. Cada resposta era recebida pelo arranhar da caneta. Escrevia com tinta vermelha num bloco de folhas da cor dos girassóis. Ao início, Sarah julgou que ele escrevia em estenografia, ou com algum tipo de hieróglifos. Depois percebeu que tirava notas em hebraico. O fato de estar a escrever da direita para a esquerda, e de escrever com a mesma rapidez com ambas as mãos, apenas servia para aprofundar a sensação de que atravessara para o outro lado do espelho.

Por vezes, era como se ele dispusesse de todo o tempo do mundo. De outras vezes, lançava olhares ao relógio de pulso e franzia o sobrolho, como se calculasse até onde poderia avançar, antes de fazer alto para a noite. A espaços, utilizava outras línguas. O francês era muito bom. O italiano era impecável, embora dotado de um vago sotaque que traía o fato de não ser falante nativo. Quando se dirigiu a Sarah em alemão, verificou-se uma mudança. As costas endireitaram-se. As feições severas endureceram. Sarah respondeu-lhe na língua da questão, mesmo tendo as palavras sido registradas em hebraico no bloco amarelo. Em geral não a pôs em causa, embora quaisquer inconsistências, reais ou imaginadas, fossem avaliadas com um zelo inquisitorial.

— Esta paixão pela arte — referiu ele. — Como julga que começou? Porquê arte?

Por que não literatura, ou música? Por que não cinema, ou drama?

— Os quadros viraram refúgio. Um santuário.

— Do quê?

— Da vida real.

— Era uma menina rica das melhores escolas da Europa.

O que havia de mal com sua vida? — Mudou do inglês para o alemão no meio da frase.

— Fugia do quê?

— Está me julgando — respondeu Sarah, na mesma língua.

— É claro.

— Podemos falar em inglês?

— Se tiver de ser.

— Os quadros são outros mundos. Outras vidas. Um instante no tempo que existe na tela e em mais lado nenhum. — Gosta de habitar esses locais.

Foi uma observação e não uma pergunta. Sarah aquiesceu em resposta. — Gosta de viver outras vidas? Assumir outras personalidades? Gosta de passear através dos campos de trigo de Vincent, pelos jardins floridos de Monet?

— Até mesmo pelos pesadelos de Frankel.

A caneta foi colocada de lado pela primeira vez.

— Foi por isso que se candidatou à CIA? Porque queria ter outra vida? Porque queria transformar-se noutra pessoa?

— Não. Queria servir meu país.

Sarah recebeu um franzir de cenho reprovador, como se a resposta fosse ingênua. O colaborador olhou mais uma vez para o relógio. O tempo estava contra ele.

— Conheceu árabes enquanto crescia na Europa?

— Claro.

— Rapazes? Garotas?

— Ambos.

— Que tipo de árabe?

— Árabes com duas pernas. Árabes de países árabes.

— Você é mais inteligente do que isso.

— Libaneses. Palestinos. Jordanianos. Egípcios.

— E sauditas? Estudou com sauditas?

— Havia duas garotas sauditas na escola suíça.

— Eram ricas, essas garotas sauditas?

— Éramos todas ricas.

— Foi amiga delas?

— Era difícil conhecê-las. Afastavam-se muito. Eram reservadas.

— E os rapazes árabes?

— O quê?

— Foi amiga de algum?

— É possível.

— Chegou a namorar algum? Dormiu com algum?

— Não.

— Por que não?

— Acho que as minhas preferências não incluíam árabes.

— Teve namorados franceses?

— Alguns.

— Ingleses?

— Claro.

— Mas árabes não?

— Árabes não.

— Tem preconceito com árabes?

— Não seja ridículo.

— Nesse caso, é concebível que poderia ter namorado um árabe. Só por acaso não o fez.

— Espero que não peça para servir de isca com meu corpo, pois...

— Não seja ridícula.

— Então por que faz estas perguntas?

— Porque quero saber se estaria confortável num ambiente social e profissional com árabes.

— A resposta é sim.

— Não vê automaticamente um terrorista quando olha para um árabe?

— Não.

— Tem certeza. Sarah?

— Dependa do tipo de árabe em que se pensa.

Gabriel olhou para o relógio.

— Está ficando tarde — disse, para ninguém em especial. A pobre Sarah deve estar esfomeada. — Traçou uma linha vermelha grossa pela folha de hieróglifos. — Vamos encomendar comida, sim? Vai se sentir melhor depois de comer alguma coisa.

Encomendaram espetos de um restaurante no centro de Georgetown. A comida chegou vinte minutos depois, entregue pela mesma Suburban preta que trouxera Sarah três horas antes. Gabriel considerou a chegada como sinal para dar início à sessão da noite. Ao longo dos noventa minutos seguintes, concentrou-se na educação de Sarah e no seu conhecimento de história da arte. As perguntas sucediam-se tão rapidamente que ela mal teve tempo de comer. Quanto ao prato de Gabriel, permaneceu intato ao lado do bloco de notas amarelo. E um asceta, pensou Sarah. Não se deixa incomodar pelos alimentos. Vive num quarto vaio e subsiste com pão e algumas gotas de água por dia. Pouco depois da meia-noite, Gabriel levou o prato até a cozinha e deixou-o sobre a bancada. Quando regressou à sala de jantar, ficou alguns momentos de pé, atrás da cadeira, uma mão no queixo e a cabeça inclinada de leve. A luz do candelabro dera-lhe um tom esmeralda aos olhos, que a perscrutavam sem dó, como holofotes, já vê o cume, pensou Sarah. Está a preparar o assalto final.

— Pelo seu dossiê, vejo que é solteira.

— Exatamente.

— Está envolvida com alguém, neste momento?

— Não.

— Anda a dormir com alguém?

Sarah mirou Carter, que lhe respondeu com um olhar triste, como se dissesse, Eu avisei que as coisas podiam tornar-se pessoais.

— Não, não ando a dormir com ninguém.

— Por que não? — Já perdeu alguém que lhe fosse próximo?

A expressão sombria que lhe assomou o rosto, a par da mudança agitada de posição de Carter, alertou-a para o fato de estar a entrar em território proibido. — Sinto muito — desculpou-se. — Não queria...

— Imagino que seja por causa do Ben. O Ben é a razão para não estar envolvida com ninguém?

— Sim, é o Ben. É claro que é o Ben.

— Fale-me dele.

Sarah abanou a cabeça.

— Não — respondeu, em voz baixa. — Não vai saber sobre o Ben. Ele é meu. Ben não faz parte do acordo.

— Quanto tempo namoraram?

— Já lhe disse...

— Quanto tempo andou com ele, Sarah? É importante, ou não perguntaria.

— Uns nove meses.

— E depois terminou?

— Sim, terminou.

— Foi você que terminou a relação, não foi?

— Sim.

— Ben estava apaixonado por você. Ben queria se casar com você.

— Sim.

— Mas não sentia o mesmo. Não estava interessada em casamento. Talvez não estivesse interessada em Ben.

— Gostava muito dele...

— Mas?

— Mas não estava apaixonada.

— Fale-me sobre a morte dele.

— Não pode estar falando sério....

— Falo muito sério.

— Não falo sobre a morte dele. Nunca falo sobre a morte de Ben. Além disso, sabe muito bem como foi. Ben morreu às nove e três da manhã, hora do Leste, ao vivo, na televisão. O mundo inteiro viu Ben a morrer. Por acaso não viu?

— Alguns passageiros do Voo 175 conseguiram dar telefonemas.

— Verdade.

— O Ben foi um deles?

— Sim.

— Telefonou ao pai? — Não.

— Telefonou à mãe?

— Não.

— Ao irmão? À irmã?

— Não.

— Para quem ele telefonou, Sarah?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

— Telefonou para mim, seu filho da puta.

— O que disse ele?

— Disse que o avião tinha sido desviado. Disse que tinham matado os comissários. Disse que o avião fazia movimentos bruscos. Disse que me amava e que sentia muito. Estava prestes a morrer e pediu desculpas. E depois a ligação caiu.

— O que fez?

— Liguei a televisão e vi a fumaça saindo da Torre Norte do World Trade Center. Foi alguns minutos depois da colisão do Voo 11. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Telefonei para a FAA e contei sobre a ligação de Ben. Telefonei para o FBI. Telefonei para Polícia de Boston. Sentia-me tão impotente.

— E depois?

— Vi televisão. Esperei que o telefone voltasse a tocar. Não tocou. Às nove e três da manhã, hora de leste, o segundo avião colidiu com o World Trade Center. A Torre Sul estava em chamas. Ben estava queimando.

Uma lágrima única escorreu-lhe pela face. Sarah limpou-a e lançou um olhar furioso a Gabriel, — Está satisfeito?

Gabriel permaneceu em silêncio.

— Agora é a minha vez de fazer uma pergunta. Se não me responder com sinceridade, vou-me embora.

Pergunte-me o que quiser, Sarah. — O que pretende de mim?

— Queremos que se despeça do seu emprego no Phillips Colletion e que vá trabalhar para a Jihad Limitada. Continua interessada?

Ficou para Carter a tarefa de lhe apresentar o contrato. Carter, com a sua integridade puritana e o casaco de bombazina. Carter, com a sua atitude terapêutica e o inglês de pronúncia americana. Gabriel esgueirou-se como um gatuno na noite e atravessou a estrada até o Volvo amolgado de Carter. Sabia qual iria ser a resposta de Sarah. Já a tivera. A Torre Sul estava em chamas, dissera ela. O Ben estava a arder. E assim, Gabriel não ficou preocupado com a expressão de quem ia para a forca no rosto de Sarah quando, vinte minutos depois, saiu, estoica, da casa e desceu o lance de escadas até a van que a aguardava. Também não ficou incomodado com a visão de Carter, cinco minutos mais tarde, a atravessar lentamente a rua, como um cangalheiro a dirigir-se a um caixão. Sentou-se ao volante e ligou o motor.

— Há um avião em Andrews à espera para levá-lo de volta a Israel — disse. — Faremos uma parada no caminho. Há uma pessoa que quer dar uma palavrinha com você antes de partir.

Passava da meia-noite. A rua era dos caminhões de entregas noturnas e dos táxis. Carter seguia a uma velocidade acima do normal e olhava com frequência para o relógio.

— Ela não será barata, sabe. Vai ter um preço. Tem de ser realojada quando a operação terminar, e vai ser protegida por muito tempo.

— Mas vai tratar disso, não vai, Adrian? Você tem o dinheiro. O orçamento da espionagem americana é bem maior que o do nosso país inteiro.

— Esqueceu que esta operação não existe? Além disso, você vai ficar com muito dinheiro de Zizi.

— Certo — disse Gabriel. — Diga a Sarah Bancroft que ela vai passar os próximos dez anos num kibbutz na Galileia, escondida das forças da jihad global.

— Está bem, pagamos o realojamento.

Carter deu uma série de voltas. Por momentos, Gabriel perdeu a noção da rua em que se encontravam. Passaram pela fachada de um grande edifício neoclássico e depois entraram num acesso de aspeto oficial. À esquerda ficava uma guarita fortificada, com vidros à prova de bala. Carter baixou o vidro e entregou a identificação ao guarda.

— Estão a nossa espera.

O guarda consultou uma prancheta e depois devolveu a identificação de Carter. — Avancem e parem à frente da barricada à esquerda. Os cães vão dar a volta ao carro e depois podem entrar.

Carter aquiesceu e subiu o vidro. Gabriel perguntou:

— Onde estamos?

Carter contornou as barricadas e parou onde lhe tinha sido indicado.

— Na porta das traseiras da Casa Branca — explicou.

— com quem vamos falar? — indagou Gabriel, mas Carter trocava impressões com outro agente, que procurava controlar um grande pastor alemão que puxava a grossa coleira de couro. Gabriel, cujo pavor de cães era lendário no Escritório, permaneceu imóvel, enquanto o animal esquadrinhava cada centímetro do Volvo, em busca de explosivos ocultos. Momentos depois, atravessavam outro portão de segurança. Carter estacionou num lugar vago no Acesso Executivo Leste e desligou o motor.

— Só venho até aqui.

— com quem vou falar, Adrian?

— Entra por aquele portão e vai até a casa. Ele sai não tarda nada.

Os cães foram os primeiros a aparecer, dois terriers pretos que saíram disparados pela Entrada Diplomática como balas do cano de uma arma, e atacaram a calça de Gabriel. O presidente surgiu alguns segundos depois.

Avançou para Gabriel com a mão estendida, enquanto a outra gesticulava para que os terriers cessassem a investida. Os dois homens apertaram brevemente as mãos e depois começaram a percorrer o caminho que contornava o Gramado Sul. Os terriers lançaram mais um ataque aos tornozelos de Gabriel. Carter observou Gabriel a virar-se e a murmurar algumas palavras em hebraico que fizeram com que os cães procurassem o abrigo de um agente do Serviço Secreto.

A conversa durou apenas cinco minutos e pareceu a Carter que o presidente tomara conta das palavras. Moveram-se rapidamente, parando apenas uma vez para resolver o que parecera um pequeno desentendimento. Gabriel retirou as mãos dos bolsos e usou-as para ilustrar um argumento que tentava defender. De início, o presidente não pareceu convencido, mas depois aquiesceu e deu uma palmada forte nos ombros de Gabriel.

Completaram o circuito e separaram-se junto à Entrada Diplomática. Quando Gabriel começou a voltar ao estacionamento, os cães partiram atrás dele, mas rapidamente se viraram e correram para a Casa Branca, atrás do dono. Gabriel atravessou o portão aberto e entrou no carro.

— Como te pareceu ele? — perguntou Carter quando viraram para a 5th Street.

— Resoluto.

— Parece que chegaram a discutir.

— Diria que foi um desacordo político.

— Sobre o quê?

— Foi uma conversa privada, Adrian, e vai continuar assim.

— Bonito menino — disse Carter.

CONTINUA

11

LONDRES

— Como está o velhote? — perguntou Adrian Carter. Caminhavam lado a lado em Eaton Place, abrigados de um aguaceiro noturno debaixo do guarda-chuva de Carter. Tinham-se encontrado cinco minutos antes em Belgrave Square, como que por acaso. Carter envergava uma capa e segurava um exemplar do The Independent. Era ortodoxo, no que dizia respeito às regras do ofício. Segundo as piadas que corriam na sede em Langley, Adrian Carter deixava marcas de giz na cabeceira da cama sempre que queria fazer amor com a esposa.

— Continua inconsciente — respondeu Gabriel —, mas resistiu à noite e já não está perdendo sangue.

— Vai sobreviver?

— Ontem à noite, diria que não.

— E agora?

— Estou mais preocupado com as possíveis sequelas. Se ficar com lesões cerebrais, ou preso dentro de um corpo que não obedece... — A voz de Gabriel esmoreceu. — Para Shamron só há uma coisa na vida, o trabalho. Se não puder trabalhar, vai se sentir miserável... bem como todos os que o rodeiam.

— E as novidades? — Carter olhou discretamente para a porta da casa georgiana de número 24. — O apartamento fica ali. Vamos dar mais uma volta no quarteirão, sim? Gosto de seguir as regras.

— Não sabia, Adrian? A União Soviética acabou há anos. O KGB já desapareceu. Agora vocês e os russos são amigos.

— Cuidado nunca é demais, Gabriel.

— Seus rapazes da segurança não definiram um percurso para a identificação de vigilância?

— Não há rapazes, Gabriel.

— É uma casa de segurança da Agência?

— Não exatamente — observou Carter. — Pertence a um amigo.

— Um amigo da Agência?

— Na verdade, um amigo do presidente.

Carter puxou de leve a manga do blusão de Gabriel e conduziu-o pela rua escura. Percorreram lentamente Eaton Square, que estava em silêncio, exceto pelo murmúrio do trânsito noturno em Kings Road. Carter deslocava-se a um ritmo fastidioso, como um homem com um compromisso que preferia não ter de cumprir. Gabriel debatia-se com um único pensamento: por que razão o diretor delegado das operações da CIA desejava falar num local onde o seu próprio Governo não estivesse à escuta?

Regressaram a Eaton Place. Desta vez, Carter guiou Gabriel pelos degraus até a entrada na cave. Quando Carter introduziu a chave na fechadura, Gabriel levantou silenciosamente a tampa do balde do lixo e viu que este se encontrava vazio. Carter abriu a porta e entraram para o tipo de cozinha que os panfletos das agências imobiliárias descreviam como cozinha gourmet. As bancadas eram de granito e tinham uma iluminação agradável, fornecida por lâmpadas de halogêneo ocultas por baixo do armário feito sob medida. O chão era da pedra calcária de Jerusalém, tão apreciada pelos ingleses e americanos refinados que procuravam estabelecer uma ligação com as suas raízes mediterrânicas. Carter dirigiu-se à bancada de aço inoxidável e encheu a chaleira eléctrica com água. Não se deu ao trabalho de perguntar se Gabriel queria algo mais forte. Sabia que ele apenas bebia um copo de vinho ocasional e que nunca misturava o álcool com o trabalho, salvo por necessidade de disfarce.

— É um duplex — explicou Carter. — A sala fica lá em cima. Ponha-se à vontade. — Estás a dar-me autorização para dar uma olhada pela casa, Adrian? Carter abria e fechava as portas do armário com uma expressão perplexa no rosto. Gabriel foi até a despensa, encontrou uma caixa de chá Earl Grey e lançou-a a Carter antes de se dirigir ao andar de cima. A sala estava confortavelmente mobilada, mas denotava um ar de anonimato comum às segundas habitações. A Gabriel parecia que nunca ninguém ali amara, nem brigara. Pegou numa fotografia emoldurada que estava em cima de uma mesa de apoio e viu o que parecia ser o típico americano próspero,

Com três filhos bem alimentados e uma esposa com demasiadas cirurgias plásticas. Outras duas fotografias mostravam o americano numa posição rígida ao lado do presidente.

Ambas tinham dedicatórias assinadas: Para Bi, com gratidão.

Carter voltou momentos depois, com um tabuleiro de chá equilibrado nas mãos. Tinha cabelo encaracolado que rareava e o tipo de bigode largo em tempos favorecido pelos professores universitários americanos. O comportamento de Carter pouco tinha que sugerisse que era um dos membros mais poderosos da vasta rede de espionagem americana, ou que antes da sua ascensão à atmosfera rarefeita do sexto piso de Langley fora um dos mais conceituados agentes de campo. A tendência natural de Carter para escutar, em vez de falar, levava a maior parte das pessoas a concluir que se travava de uma espécie de terapeuta. Quando se pensava em Adrian Carter, imaginava-se um homem a suportar confissões de rumos de acontecimentos, ou de problemas, ou então uma figura de um romance de Dickens, curvado sobre livros grossos com longas palavras em latim. Normalmente, as pessoas subestimavam Carter. Era uma das suas armas mais poderosas.

— Quem está por trás disso, Adrian? — perguntou Gabriel.

— Diga você. — Carter pousou o tabuleiro sobre a mesa de centro e despiu a capa como se estivesse cansado de muito viajar. — Estamos no seu bairro.

— O bairro é nosso, mas algo me diz que o problema é seu. Caso contrário, não estaria em Londres — Gabriel deu uma olhada na sala —, numa casa de segurança emprestada, sem microfones nem apoio da estação local.

— Poucas são as coisas que te escapam, não é? Conte, Gabriel. Diga o nome dele.

— É um antigo agente saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq.

— Bravo, Gabriel. Muito bem. — Carter largou a capa nas costas de uma cadeira. — Muito bem mesmo.

Carter destapou o bule, sorveu o aroma e decidiu que precisava ficar em infusão mais um momento.

— Como souberam?

— Não soubemos — corrigiu Gabriel. — Foi um palpite, baseado em vestígios de prova.

— Por exemplo?

Gabriel contou a Carter tudo o que sabia. A operação falhada contra o professor Ali Massoudi. As fotografias de vigilância e a informação sobre a conta bancária suíça encontradas no computador de Massoudi. As ligações entre Ibrahim el-Banna e o agente saudita que se dava a conhecer como Khalil. Os relatórios sobre um saudita do mesmo nome que percorria os campos de refugiados do Sul do Líbano em busca de recrutas. Entretanto, Carter atarefava-se com o chá. Serviu a primeira xícara e entregou-a Gabriel. Seu chá exigia uma preparação mais elaborada: uma dose calculada de leite, depois o chá, por fim um torrão de açúcar. Os interrogadores referiam-se a esse óbvio ganhar tempo como atividade de deslocamento. Carter era fumador de cachimbo. Gabriel receava o seu aparecimento em breve. E vocês? — inquiriu Gabriel. — Quando souberam que se tratava de Bin Shafiq?

Carter pegou num segundo torrão com a tenaz e ponderou brevemente se deveria acrescentá-lo à xícara, após o que o devolveu sem cerimônias ao açucareiro. Provavelmente soube-o no dia em que pedimos a Sua Majestade que encerrasse o Grupo 205 — respondeu. — Ou talvez tenha sido no dia em que Bin Shafiq desapareceu da face da Terra. Sabes, Gabriel, uma das coisas que aprendi nesta profissão foi que para cada ação nossa, vai haver uma reação negativa. Afastamos o urso russo do Afeganistão e acabamos por criar uma hidra. Esmagamos o quartel-general da Al-Qaeda e agora as filiais estão a tratar dos seus próprios assuntos. Encerramos a loja de Bin Shafiq no GID e agora parece que ele começou a trabalhar por conta própria.

— Por quê?

— Pergunta o que o levou a atravessar a fronteira? — Carter encolheu os ombros e mexeu o chá com uma expressão lamentosa. — Não foi preciso muito. Ahmed bin Shafiq é um verdadeiro crente wahhabi.

— Neto de um guerreiro ikhwan — acrescentou Gabriel, o que lhe valeu um aceno de admiração por parte de Carter.

— Podemos perguntar por que os sauditas apoiam o terrorismo — disse Carter. — Podemos ter um debate interessante sobre se defendem na verdade os objetivos dos assassinos que armam e financiam, ou se estão numa política inteligente e cínica para controlar o ambiente em redor, garantindo assim sua sobrevivência. Tal debate não é possível sobre o homem que o GID escolheu para executar essa política. Ahmed bin Shafiq é um crente. Ahmed bin Shafiq odeia os Estados Unidos, o Ocidente e o Cristianismo, e ficaria muito feliz se o teu Estado deixasse de existir. Foi por esse motivo que insistimos com Sua Majestade para que encerrasse a sua lojinha dos horrores.

— E quando vocês forçaram o rei a encerrar o Grupo 205, Bin Shafiq perdeu a cabeça? Decidiu utilizar os contatos que foi estabelecendo ao longo dos anos e lançar a sua própria onda de terror? Com certeza que não pôde ter sido assim tão linear, Adrian.

— Receio que tenhamos dado um pequeno empurrão — admitiu Carter. — Invadimos o Iraque contra a vontade do Reino e da maior parte de seus habitantes. Capturamos membros da Al-Qaeda e os trancamos em prisões secretas, que é onde eles devem estar. Isto foi ruim para o mundo islâmico, e serviu para atiçar o fogo da jihad. Vocês também tiveram mão nisso. Para os árabes, seu Muro de Separação não passa de uma fronteira terminal unilateral, e não estão muito satisfeitos com ele.

— Não fique chocado, Adrian, mas não nos interessa o que os sauditas pensam do nosso muro. Se não tivessem injetado milhões nos cofres do Hamas e da Jihad Islâmica, não precisaríamos dele.

— O que nos leva à minha argumentação original — rematou Carter, fazendo uma pausa para beber um gole de chá. — O mundo islâmico ferve de raiva e Ahmed bin Shafiq, um verdadeiro crente wahhabi, tornou-se o porta-estandarte da jihad contra o infiel. Utilizou os contatos de seus dias no Grupo 205 para construir uma nova rede. Está fazendo o que Bin Laden já não consegue, que é planejar e executar atentados terroristas espetaculares, como o do Vaticano. Tem uma rede pequena, extremamente profissional e, como já provou, bem letal.

— E é financiada por dinheiro saudita.

— Sem dúvida — asseverou Carter.

— Aonde chegam as implicações, Adrian?

— Muito alto — respondeu Carter. — Quase ao topo.

— Onde é a base de operações deles? Quem financia? De onde vem o dinheiro?

— Da AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermediários — garantiu Carter. — Ahmed bin Shafiq é um dos melhores investimentos da AAB. Posso servir mais chá?

Seguiu-se outra pausa nos trabalhos, desta vez com Carter tentando adivinhar como acender a lareira a gás. Mirou, perplexo, a grelha por um instante e virou-se para Gabriel, lançando-lhe um apelo com o olhar. Gabriel encontrou a torneira de segurança, abriu o fluxo de gás e acendeu.

— Quantos anos você dá a eles, Gabriel? Quanto tempo até que a Casa de Saud seja derrubada e em seu lugar surja a República Islâmica da Arábia? Cinco anos? Dez? Ou talvez vinte? Nunca fomos muito bons nesse tipo de previsões. Pensamos que o império soviético fosse eterno.

— E nós pensamos que o Hamas nunca conseguiria vencer eleições.

Carter soltou uma risada melancólica.

— As nossas melhores mentes dão-lhes sete anos, no máximo. Sua Majestade está disposta a passar esses sete anos com as regras antigas: fornece-nos petróleo barato e uma suposta amizade, e ao mesmo tempo vai adulando e subornando as forças do Islão para não o atacarem. E, quando chegar a altura, vai fugir para os palácios que tem na

Riviera e passar o resto da vida com um luxo demasiado grotesco para se imaginar, de preferência com a cabeça ainda pegada ao corpo. Carter virou as palmas das mãos para o fogo.

— Não está quente — constatou.

— Os troncos são feitos de cerâmica. Dá-lhe um pouco para aquecer. Carter pareceu incrédulo. Gabriel acercou-se da janela e espreitou para a rua, onde um carro passou lentamente e desapareceu à esquina. Carter desistiu da lareira e regressou ao seu lugar.

— E depois temos os elementos da Família Real que estão dispostos a adoptar regras diferentes. A esses chamamos os Verdadeiros Crentes. Julgam que a única forma da Al-Saud sobreviver é através da renovação da aliança que estabeleceram há dois séculos com Muhammad Abdul Wahhab, no Njad. Mas esta nova aliança terá de contemplar novas realidades. O monstro que a Al-Saud criou há duzentos anos tem agora todas as cartas na mão, e os Verdadeiros Crentes estão preparados para dar ao monstro aquilo que ele quer. Sangue infiel. Jibadsem fim. Alguns desses Verdadeiros Crentes querem ir ainda mais longe. Desejam a expulsão de todos os infiéis da Península. Um embargo às vendas de petróleo à América e a todos os países que tenham negócios com vocês. Acreditam que o petróleo não deve ser visto simplesmente como um poço sem fim de dinheiro líquido que jorra dos terminais de Rãs Tanura para as contas bancárias suíças da Al-Saud. Querem usá-lo como arma... uma arma que possa ser empregue para danificar a economia americana e transformar os wahhabis em mestres do planeta, como Alá o desejou, quando criou o mar de petróleo debaixo das areias do Al-Hassa. E alguns desses Verdadeiros Crentes, como o presidente e CEO da AAB Holdings de Riad, Genebra e outros pontos intermédios, estão eles próprios dispostos a verter algum sangue infiel.

— Refere-se a Abdul Aziz al-Bakari?

— Exatamente — confirmou Carter. — Sabe alguma coisa sobre ele?

— Pelas últimas contas, era o décimo quinto homem mais rico do mundo, com fortuna pessoal na casa dos dez bilhões de dólares.

— Mais milhão, menos milhão.

— É presidente, diretor executivo e imperador da AAB Holdings... A de Abdul, A de Aziz e B de al-Bakari. A AAB é dona de bancos e de casas de investimento. A AAB tem empresas de navegação e metalúrgicas. A AAB está cortando as florestas da Amazônia e explorando minério nos Andes do Peru e da Bolívia. A AAB é dona de uma empresa química belga e de uma farmacêutica holandesa. A divisão de pesquisa e desenvolvimento da AAB é uma das maiores do mundo. Abdul Aziz al-Bakari é dono de mais hotéis do que qualquer outra pessoa.

Carter prosseguiu a enumeração de Gabriel.

— Tem um palácio em Riad que raramente visita e onde vivem duas antigas esposas que nunca vê. É dono de uma mansão na Île de la Cité, em Paris, de um solar principesco na Inglaterra, de uma casa em Mayfair, de villas à beira-mar em Saint-Tropez, Marbella e Maui, de chalés de esqui em Zermatt e Aspen, de um apartamento na Park Avenue que foi há pouco tempo avaliado em quarenta milhões de dólares, e de uma propriedade gigantesca, em frente ao Potomac, por onde passo todos os dias quando vou para o trabalho. Carter parecia considerar a mansão no Potomac, o mais grave de todos os pecados de Al-Bakari. O pai era sacerdote episcopal de New Hampshire e, por baixo do seu exterior plácido, batia um coração puritano.

— Al-Bakari viaja com o séquito por todo o mundo, a bordo de um 747 revestido a ouro — prosseguiu. — Duas vezes por ano, uma em fevereiro e outra em agosto, as operações AAB vão para o mar, quando Al-Bakari e a comitiva se instalam a bordo do Alexandra, o seu iate de noventa metros. Esqueci-me de alguma coisa? — Os amigos tratam-no por Zizi — replicou Gabriel. — Tem uma das maiores coleções mundiais de arte impressionista francesa, e há anos que os andamos a dizer que é um dos maiores financiadores do terrorismo, especialmente contra nós.

— Não tinha noção.

— Noção do quê?

— De que Zizi era um colecionador.

— E muito agressivo.

— Por acaso já esteve com ele?

— Receio que eu e Zizi estejamos em lados opostos do negócio.

— Gabriel franziu o sobrolho. — Qual é a ligação entre Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq?

Pensativo, Carter soprou o chá, sinal de que ainda não estava pronto para responder à questão de Gabriel.

— É um sujeito interessante, o Al-Bakari. Sabias que o pai foi o banqueiro pessoal de Ibn Saud? Tal como seria de esperar, o papai Al-Bakari saiu-se muito bem, o suficiente para dar dez milhões de dólares ao filho, para que este começasse a sua própria empresa. Mas isso não foi nada, quando comparado com o capital que recebeu da Al-Saud, quando o projeto se desenvolveu. A acreditar nos boatos, cem milhões de dólares. A AAB continua a ser o receptáculo preferido do dinheiro real saudita, o que é uma das razões para que Zizi esteja interessado em garantir a sobrevivência da Casa de Saud.

Gabriel sentiu um aperto no coração quando Carter pegou na bolsa do tabaco. — É um dos homens mais ricos do mundo — disse Carter —, e um dos mais caridosos. Erigiu mesquitas e centros islâmicos por toda a Europa. Financiou projetos de desenvolvimento no Delta do Nilo e para o combate à fome no Sudão. Doou milhões aos refugiados palestinos e outros milhões a projetos de urbanização na Cisjordânia e em Gaza.

— E mais de trinta milhões de dólares naquela angariação televisiva de fundos árabes para financiar homens-bomba suicidas — acrescentou Gabriel. — Zizi foi o maior doador individual. Agora, responde-me, Adrian.

— E qual era a pergunta?

— Qual a ligação entre Zizi e Bin Shafiq?

— É bem perspicaz, Gabriel. Diga você, qual a ligação.

— É óbvio que Zizi financia a rede de Bin Shafiq.

— É óbvio — asseverou Carter.

— Mas Bin Shafiq é saudita. Pode obter dinheiro em qualquer outro lugar. Zizi tem algo mais valioso que o dinheiro. Tem uma infraestrutura global, por onde Bin Shafiq pode movimentar homens e material. E Zizi tem o lugar ideal onde esconder um ideólogo como Bin Shafiq.

— A AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermediários.

O silêncio tombou entre eles como uma cortina, enquanto Carter enchia vagarosamente o cachimbo. Gabriel continuava de pé à janela, a olhar a rua. Sentia-se tentado a permanecer aí, pois o tabaco de Carter, quando aceso, cheirava a uma mistura de feno a arder e de cão molhado. Mas também sabia que a conversa chegara a um ponto em que não poderia ser continuada à frente de uma janela insegura. Com relutância, sentou-se na cadeira oposta a Carter e entreolharam-se em silêncio, Carter fumando com expressão meditativa e Gabriel afastando penosamente a fumaça dos olhos.

— Têm certeza?

— Absoluta.

— Como sabem?

— Fontes e método — respondeu Carter, por reflexo. — Fontes e método.

— Como sabem, Adrian?

— Ouvimos — explicou Carter. — A National Security Agency é uma coisa maravilhosa. Também dispomos de fontes no interior da ala moderada da Casa de Saud e do GID, que estão dispostas a contar certas coisas. Ahmed bin Shafiq reside grande parte do tempo no Ocidente, com uma identidade falsa. Está enterrado no império financeiro de Zizi, e os dois conferenciam com regularidade. Estamos certos desse fato.

Ao lado do tabuleiro de Carter, em cima da mesa de centro, estava um dossiê. Tinha no seu interior uma única fotografia, que Carter entregou a Gabriel. Mostrava um homem de sobretudo de lã e chapéu, em frente de um portão de ferro forjado. O rosto estava de perfil e as feições eram um pouco indistintas. Pelo aspeto da imagem, a fotografia fora tirada de alguma distância.

— É ele?

— Achamos que sim — respondeu Carter.

— Onde foi tirada?

— No exterior da casa de Zizi, na Île de la Cité, em Paris. O fotógrafo estava do outro lado do Sena, no Quai de l’Hôtel de Ville, o que explica uma certa falta de clareza da imagem. — Há quanto tempo?

— Seis meses.

Carter ergueu-se lentamente e deambulou até a lareira. Estava prestes a bater o cachimbo na grelha, quando Gabriel o recordou de que era falsa. Voltou a sentar-se e esvaziou o cachimbo para dentro de um grande cinzeiro de vidro lapidado.

— Quantos americanos morreram no Vaticano? — perguntou Gabriel.

— Vinte e oito, incluindo um bispo da Cúria.

— Quanto dinheiro Zizi al-Bakari deu a terroristas, ao longo dos anos?

— Centenas de milhões.

— Vão atrás dele — declarou Gabriel. — Levantem um processo e levem-no a tribunal.

— Contra Zizi al-Bakari?

— Secção 18 U.S.C. 2339B... Já ouviu falar nela, Adrian?

— Agora está me citando a lei americana?

— Dar dinheiro a grupos terroristas assumidos é uma violação da lei americana, quer esse dinheiro tenha, ou não, sido utilizado em atentados específicos. Talvez já pudessem ter processado dezenas de sauditas ricos por fornecerem apoio material aos inimigos, incluindo Zizi al-Bakari.

— Você me desaponta, Gabriel. Sempre te imaginei uma pessoa razoável... por vezes preocupado demais com questões de certo e errado, mas razoável. Não podemos ir atrás de Zizi al-Bakari.

— Por quê?

— Dinheiro — justificou-se Carter, ao que acrescentou: — E petróleo, é claro.

— É claro.

Carter brincou com o isqueiro.

— A Família Real Saudita tem muitos amigos em Washington. O tipo de amigos que só o dinheiro pode comprar. Zizi também tem amigos. Fundou cátedras acadêmicas e encheu-as de amigos e apoiantes. Garantiu a criação de departamentos de estudos árabes em meia dúzia de universidades americanas importantes. Financiou quase sozinho uma renovação profunda do Kennedy Center. Oferece dinheiro a projetos de caridade de senadores influentes e investe nos negócios de amigos e familiares desses senadores. É dono de boa parte de um dos bancos mais importantes e tem participações numa série de outras empresas americanas também importantes. Também serviu de intermediário em inúmeros negócios entre sauditas e americanos. O quadro está a ficar mais claro?

Estava, mas Gabriel queria ouvir mais.

— Se o bando de advogados de Washington de Zizi sequer desconfiasse que ele ia ser investigado criminalmente, Zizi falaria com Sua Majestade, Sua Majestade falaria com o embaixador Bashir, e o embaixador ia à Casa Branca ter uma conversinha com o presidente. Lembraria o presidente de que uma volta ou duas nas torneiras do petróleo significaria um aumento brutal no preço da gasolina. Talvez chegasse a frisar que um aumento dessa magnitude prejudicaria os habitantes do centro do país, que costumam fazer viagens longas, e que também costumam votar no partido do presidente.

— E assim, para Zizi o crime compensa... literalmente.

— Receio que sim.

— Não pergunte sobre o que, quando explicado, possa te trazer problemas.

— Conhece bem o Corão — disse Carter. — Outra razão para não agir contra Zizi, ou acusá-lo é o medo do que se pode encontrar: enredos com americanos importantes, negócios obscuros com elementos de Washington. Imagine a reação do povo americano se descobrisse que um bilionário saudita com ligações comerciais com figuras importantes de Washington financia as atividades inimigas. A relação mal conseguiu sobreviver ao primeiro Onze de Setembro. Duvido que sobrevivesse a um segundo. Não sobreviveria, pelo menos na forma atual. Já há um movimento no Capitólio para isolar a Arábia Saudita, devido ao apoio prestado ao extremismo islâmico global. Um escândalo que envolvesse Zizi al-Bakari apenas serviria para lançar achas para a fogueira. Várias figuras da política externa do Congresso estão a pensar numa legislação que pressione a Arábia Saudita. Podem dar-se a esse luxo. Se a economia americana for por água abaixo devido a uma subida dos preços do petróleo, não são eles que sofrem, mas sim o presidente.

— E o que quer de nós, Adrian? O que quer me dizer nesta sala, onde mais ninguém nos ouve?

— O presidente dos Estados Unidos quer pedir um favor — explicou Carter, enquanto fitava o fogo. — O tipo de favor em que por acaso você é muito bom. Ele gostaria que pusessem um agente na Casa de Zizi. Gostaria que descobrisse quem entra e quem sai. E se Ahmed bin Shafiq aparecer, ele gostaria que tentasse pegá-lo. A operação será sua, mas pode contar com todo o nosso apoio. Estaremos do outro lado do horizonte... longe o bastante para garantir uma negação plausível em Riad.

— Você me desaponta, Adrian. Sempre pensei que fosse uma pessoa razoável.

— O que eu fiz agora?

— Pensei que ia me pedir para matar Zizi al-Bakari e acabar de vez com o assunto.

— Matar Zizi? — Carter abanou a cabeça. — Zizi é intocável. Zizi é radioativo.

Gabriel regressou ao seu posto à janela e espiou a rua quando um casal de namorados correu pela calçada sob a chuva.

— Não somos assassinos profissionais — protestou. — Não podemos ser contratados para fazer os trabalhos sujos que vocês não podem fazer. Querem Bin Shafiq morto, mas não estão dispostos a correr riscos. Pretendem que sejamos nós a ficar com a culpa.

— Poderia lembrar alguns fatos importantes — adiantou Carter. — Poderia lembrar que este presidente ficou do seu lado enquanto o resto do mundo os tratou como se fossem judeus entre nações. Poderia lembrar que ele permitiu que construíssem o Muro de Separação, enquanto o resto do mundo os acusou de se comportar como os sul-africanos. Poderia lembrar que ele permitiu que trancassem Arafat na Mukata, enquanto o resto do mundo os acusou de agir como tropa de choque nazista. Poderia lembrar as inúmeras vezes em que este presidente tratou de sua roupa suja, mas não o farei, pois isso seria politicamente incorreto. Também poderia sugerir que com este pedido estaríamos numa espécie de saldar contas, o que não é, de todo, o caso.

— Então é o quê?

— Um reconhecimento — explicou Carter. — O reconhecimento de que nós, americanos, não temos estômago, nem coragem, para fazer as coisas que têm de ser feitas nesta luta. Já queimamos os dedos. Nossa imagem já foi debilitada. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vimos. Nossos políticos gostariam que pegássemos o primeiro avião para fora do Iraque, para que possam começar a gastar dinheiro no tipo de coisas que conquistam votos. O povo quer voltar à boa vida. As pessoas querem enterrar a cabeça na areia e fingir que não existe no mundo uma força organizada que procura destruí-las. Pagamos um preço terrível por entrar na sarjeta com os terroristas e combater no nível deles, mas acho que vocês sabiam que isso ia acontecer. Ninguém pagou um preço mais elevado do que vocês.

— E por isso querem que o façamos no seu lugar. Imagino que seja o a que chamam de terceirização. Mas que americano de sua parte, Adrian.

— Dadas as atuais circunstâncias, os Estados Unidos não podem tentar assassinar um antigo oficial da espionagem saudita, caso contrário a nossa relação com Riad ficaria comprometida. Também não podemos prender e acusar Zizi al-Bakari pelas razões que mencionei.

— Por isso querem que o problema desapareça?

— Exatamente.

— Que seja varrido para baixo do tapete? Que se adie o ajuste de contas para uma data mais conveniente?

— Não podia ser mais claro.

— Acha que essa é a melhor forma de derrotar a Hidra? Cortar uma cabeça e esperar que tudo corra bem? É preciso queimar as raízes, como fez Hércules. É preciso atacar o monstro com flechas embebidas em fel.

— Quer atacar a Casa de Saud?

— Não só a Casa de Saud — asseverou Gabriel. — Os fanáticos wahhabitas que fizeram um pacto de sangue, há duzentos anos, no planalto estéril do Najd. São eles seu verdadeiro inimigo, Adrian. Foram eles que criaram a Hidra.

— O príncipe sábio escolhe a data e o local da batalha, e não é hora de derrubar a Casa de Saud.

Gabriel mergulhou num silêncio taciturno. Carter olhava para o fornilho do cachimbo e fazia pequenos ajustes na disposição do tabaco, como um professor à espera da resposta de um aluno menos inteligente.

— Será preciso lembrar que atentaram contra Shamron?

Gabriel fulminou Carter com um olhar que lhe garantia que não se esquecera.

— Nesse caso, por que a hesitação? Depois do que Bin Shafiq fez ao velhote, pensei que estivesse de laço esticado para pegá-lo.

— Quero pegá-lo mais do que ninguém, Adrian, mas nunca estico o laço. É uma operação perigosa... perigosa demais até para você. Se alguma coisa der errado ou se formos apanhados, tudo acaba mal... para os três.

— Três?

— Eu, você e o presidente.

— Nesse caso, siga o décimo primeiro mandamento de Shamron, e não haverá problema. Você não será apanhado.

— Bin Shafiq é um fantasma. Nem sequer temos uma foto.

— Isso não é totalmente verdade. — Carter voltou a pegar o dossiê e retirou outra foto, que colocou em cima da mesa, para que Gabriel a visse. Mostrava um homem de olhos escuros, o rosto em parte oculto por um kaffijeh. — Este é Bin Shafiq, há quase vinte anos, no Afeganistão. Na épica era nosso amigo. Estávamos do mesmo lado. Nós fornecemos as armas. Bin Shafiq e os mestres de Riad forneciam o dinheiro.

— E a ideologia wahhabita que ajudou a dar origem aos talibãs — adiantou Gabriel.

— O inferno está cheio de boas intenções — lamentou-se. — Mas temos algo mais valioso do que uma foto com vinte anos. Temos a voz dele.

Carter pegou um pequeno controle remoto preto, apontou-o a um rádio Bose Wave e pressionou o Play. Momentos depois, dois homens começaram a falar em inglês: um de sotaque americano e o outro de pronúncia árabe.

— Imagino que o árabe seja Bin Shafiq. Carter anuiu.

— Quando foi gravado?

— Em 1988 — explicou Carter. — Numa casa de segurança em Peshawar.

— Quem é o americano? — perguntou Gabriel, embora já soubesse a resposta. Carter pressionou o botão Stop e olhou para o fogo.

— Sou eu — respondeu, com um tom distante. — O americano na casa de segurança da CIA em Peshawar era eu.

— Reconheceria Bin Shafiq se visse?

— Talvez, mas as nossas fontes dizem que fez várias operações plásticas antes de entrar em campo. Mas reconheceria a cicatriz no antebraço direito. Foi atingido por estilhaços durante uma viagem ao Afeganistão, em 1985. A cicatriz vai do pulso ao cotovelo. Não há cirurgião plástico que ajude naquilo.

— No lado de dentro ou de fora?

— De dentro. O ferimento afetou a mão dele. Submeteu-se a várias operações para tentar remediar a situação, mas nada deu certo. Normalmente a mantém no bolso. Não gosta de dar apertos de mão. Bin Shafiq é um beduíno orgulhoso. Não respeita as doenças.

— Imagino que suas fontes em Riad não nos consigam dizer em que zona do império de Zizi ele está escondido.

— Infelizmente, não. Mas sabemos que ele aí está. Se introduzires um agente na Casa de Zizi, talvez Bin Shafiq acabe por entrar pela porta das traseiras. — Introduzir um agente na casa de Zizi al-Bakari? E o que sugeres que façamos para o conseguir, Adrian? Zizi tem mais segurança do que a maior parte dos chefes de Estado.

— Nem me passaria pela cabeça interferir em questões operacionais — escusou-se Carter. — Mas garanto-te que estamos dispostos a ser pacientes e que tencionamos acompanhar a missão até o fim.

— A paciência e o acompanhamento não são exatamente virtudes americanas típicas. Vocês gostam de armar confusão e partir para o problema seguinte. Seguiu-se mais um silêncio longo, desta vez interrompido pelo bater do cachimbo de Carter na borda do cinzeiro. — O que queres, Gabriel?

— Garantias.

— No nosso ramo não há garantias, sabes disso.

— Quero tudo o que tiverem sobre Bin Shafiq e o Al-Bakari.

— Dentro dos limites do razoável — disse Carter. — Não te vou dar um monte de segredos obscuros sobre figuras importantes de Washington.

— Quero proteção — continuou Gabriel. — Quando isto acontecer, seremos os principais suspeitos. Somos sempre, mesmo quando não somos os responsáveis. Vamos precisar da sua ajuda para acalmar a tempestade.

— Apenas posso falar em nome do DO — lembrou Carter. E garanto-te que vamos estar do seu lado.

— Eliminamos Bin Shafiq onde e quando escolhermos, sem qualquer interferência de Langley.

— O presidente ficaria grato se pudessem evitar fazê-lo em território americano.

— No nosso ramo não há garantias, Adrian.

— Touché.

— Talvez custe a acreditar, mas não posso decidir sozinho. Tenho de falar com Amos e o primeiro-ministro.

— Amos e o primeiro-ministro farão o que lhes disser.

— Dentro do razoável.

— O que vai dizer?

— Que o presidente americano precisa de um favor — disse Gabriel. — E que pretendo ajudá-lo.

12

TEL MEGIDDO, ISRAEL

O primeiro-ministro autorizou a operação de Gabriel às duas e trinta da tarde seguinte. Gabriel dirigiu-se de imediato a Armagedon. Imaginou que fosse um bom local para começar.

O tempo parecia glorioso de uma forma perversa para tal ocasião: temperatura fresca, um céu de um azul pálido, uma brisa leve que lhe agitava as mangas da camisa, à medida que seguia a Estrada de Jafa. Ligou o rádio. A música lúgubre que enchera o éter nas horas que se tinham seguido ao atentado à vida de Shamron desaparecera. Um boletim noticioso surgiu de repente. O primeiro-ministro garantira fazer tudo ao seu alcance para localizar e punir os responsáveis pelo atentado contra Shamron. Não mencionou o fato de já saber quem era o responsável, nem que autorizara Gabriel a eliminá-lo.

Gabriel percorreu a Bab al-Wad em direção ao mar, ziguezagueando com impaciência por entre o tráfego mais lento, e depois acompanhou o sol que se punha para norte, ao longo da Planície Costeira. Perto de Hadera havia um alerta de segurança. Segundo o rádio, um alegado homem-bomba suicida conseguira atravessar o Muro de Separação perto de Tulkarm. Gabriel foi obrigado a aguardar na beira da estrada durante vinte minutos, antes de se encaminhar para o vale de Jezreel. A oito quilômetros de Afula, um outeiro redondo surgiu à esquerda. Em hebraico era conhecido por Tel Megiddo, ou Monte Megido. O resto do mundo o conhece como Armagedon, do Livro do Apocalipse, o palco do confronto final entre as forças do bem e do mal. A batalha ainda não começara e o estacionamento estava vazio, salvo por um trio de vans empoeiradas, sinal de que a equipe arqueológica ainda trabalhava.

Gabriel saiu do carro e subiu o caminho íngreme até o topo. O Tel Megiddo era alvo de escavações arqueológicas periódicas há mais de um século, e no alto do monte havia um labirinto de trincheiras compridas e estreitas. Tinham sido encontrados vestígios de mais de vinte cidades debaixo do solo do topo do Tel, incluindo uma que se acreditava ter sido construída pelo rei Salomão. Parou à beira de uma das trincheiras e espreitou para o fundo. Uma pequena figura de casaco de algodão creme estava de gatas, a revirar o solo com uma colher de pedreiro. Gabriel pensou na última vez que estivera acima de um homem num buraco de escavação e sentiu-se como se lhe tivessem deitado um cubo de gelo para as costas. O arqueólogo olhou para cima e fitou-o com um par de olhos castanhos inteligentes. Depois voltou a desviar a atenção para o seu trabalho.

— Tenho estado a tua espera — disse Eli Lavon. — Por que demorou tanto?

Gabriel sentou-se na terra à beira do buraco e observou Lavon a trabalhar. Conheciam-se desde a operação Setembro Negro. Eli Lavon fora um ayin, um batedor. A sua incumbência era seguir os terroristas e tomar conhecimento dos seus hábitos. Em muitos aspetos, essa missão fora ainda mais perigosa do que a de Gabriel, pois Lavon, por vezes, ficara exposto aos terroristas durante dias e semanas a fio, sem qualquer apoio. Após o desmantelamento da unidade, instalara-se em Viena e abrira um pequeno gabinete de investigação chamado Reivindicações e Inquéritos do Tempo da Guerra. Com um orçamento mínimo, conseguira localizar milhões de dólares em bens judeus pilhados e desempenhara um papel importante na obtenção de um acordo milionário com os bancos suíços. Agora, Lavon trabalhava na escavação em Meguido e dava aulas de arqueologia em tempo parcial, na Universidade Hebraica.

— O que tem aí, Eli?

— Um pedaço de cerâmica, creio. — Uma rajada de vento agitou-lhe o cabelo fino e desgrenhado e soprou-o para a testa. — E você?

— Um bilionário saudita que tenta destruir o mundo civilizado.

— Não já conseguiram? — Gabriel sorriu.

— Preciso de você, Eli. Sabe interpretar balancetes. Sabe seguir pista de dinheiro sem que ninguém note.

— Quem é o árabe?

— O presidente e CEO da Jihad Limitada.

— E esse presidente tem nome?

— Abdul Aziz al-Bakari.

— Zizi al-Bakari?

— Esse mesmo.

— Imagino que tenha algo que ver com Shamron.

— E com o Vaticano.

— Qual é a ligação de Zizi?

Gabriel contou.

— Acho que não preciso perguntar o que tenciona fazer com Bin Shafiq — disse Lavon. — O império de Zizi é enorme. Bin Shafiq pode estar trabalhando de qualquer ponto do mundo. Como vai encontrá-lo?

— Vamos introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi e esperar que Bin Shafiq apareça.

— Um agente no território de Zizi? — Lavon abanou a cabeça.

— Não se consegue.

— Consegue-se, sim.

— Como?

— Vou descobrir alguma coisa que Zizi queira — explicou Gabriel. — E depois vou dar a ele.

— Sou todo ouvidos.

Gabriel sentou-se na borda da trincheira de escavação, com as pernas dependuradas para o interior, e disse-lhe como tencionava penetrar na Jihad Limitada. Do fundo do buraco vinha o som do trabalho de Lavon — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— Quem é o agente? — perguntou a Gabriel, quando este terminou.

— Ainda não o tenho.

Lavon ficou em silêncio por um instante — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— O que queres de mim?

— Vira Zizi al-Bakari e a AAB Holdings de pernas para o ar. Quero que disseque cada empresa que ele controle. Perfis de todos os executivos de topo e dos membros da comitiva pessoal. Quero saber como cada pessoa chegou ao seu cargo e como nele tem permanecido. Quero saber mais sobre Zizi do que ele próprio.

— E o que acontece quando entrarmos em campo?

— Você também vai.

— Estou velho e cansado para coisas mais duras.

— É o maior artista de vigilância da história do Escritório, Eli. Não vou conseguir sem você.

Lavon endireitou-se e limpou as mãos na calça.

— Introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi al-Bakari? É louco. — Lançou uma colher de pedreiro a Gabriel. — Venha me ajudar. Estamos ficando sem luz.

Gabriel desceu ao buraco e ajoelhou-se ao lado do velho amigo. Juntos esgaravataram o solo antigo, até que a noite caiu sobre o vale como uma manta.

Quando chegaram ao Boulevard King Saul já passava das nove horas. Lavon saíra havia muito do Escritório, mas continuava a apresentar uma palestra ocasional na Academia e ainda tinha as credenciais para entrar no edifício sempre que quisesse. Gabriel acompanhou-o até a sala de arquivos da divisão de Pesquisa, ao que se dirigiu a um corredor sombrio dois níveis abaixo do solo. No final do corredor ficava a Sala 456C. Afixado à porta estava um letreiro de papel, onde se lia, na caligrafia hebraica de Gabriel: COMITÊ TEMPORÁRIO PARA O ESTUDO DAS AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Decidiu mantê-lo, por enquanto.

Abriu a fechadura com combinação, acendeu as luzes e entrou. A sala parecia congelada no tempo. Era conhecida por vários nomes: a Cápsula, a Choça, o Tanque. Yaakov, um durão de rosto marcado do Departamento de Assuntos Árabes de Shabak, batizara-a de Buraco do Inferno. Yossi, da Pesquisa, denominara-a a Aldeia dos Malditos, mas ele lera clássicos em Oxford e emprestava sempre ao seu trabalho um certo ar de erudição, mesmo quando os temas não o mereciam. Gabriel deteve-se junto à mesa assente em cavaletes que Dina e Rimona tinham partilhado. As constantes altercações territoriais quase tinham dado com ele em doido. A linha de separação que ele traçara no centro da mesa ainda lá estava, a par do aviso que Rimona escrevera do seu lado da fronteira: Atravessar por sua própria conta e risco. Rimona era capita da FDI e trabalhava para Ama, na espionagem militar. Era também sobrinha de Gilah Shamron. Acreditava em fronteiras defensáveis e respondera com incursões de retaliação sempre que Dina cruzara a linha. No lugar de Dina estava a pequena mensagem que ela lá deixara no último dia da operação: Que nunca mais tenhamos de aqui voltar. Que ingênua, pensou Gabriel. Ela devia saber melhor do que ninguém que provavelmente não seria assim.

Continuou a lenta digressão pela sala. Ao canto jazia a mesma pilha de equipamento informático ultrapassado que nunca ninguém se dera ao trabalho de remover. Antes de se transformar no quartel-general do Grupo Khaled, a Sala 456C não passara de uma lixeira onde se despejava mobília velha e aparelhos eletrônicos obsoletos, sendo muitas vezes utilizada pelos membros do turno da noite como local de aventuras românticas. O quadro de giz de Gabriel também ali continuava. Mal conseguia decifrar as últimas palavras que escrevera. Olhou para as paredes, cobertas de fotografias de jovens palestinos. Uma das imagens chamou-lhe a atenção, um rapaz de boina na cabeça e um kaffiyeh sobre os ombros, sentado ao colo de Yasir Arafat: Khaled al-Khalifa no funeral do pai, Sabri. Gabriel matara Sabri, e também matara Khaled.

Retirou as fotografias antigas das paredes e colocou duas novas no seu lugar. Uma delas mostrava um homem de kaffyeh, nas montanhas do Afeganistão. A outra exibia o mesmo homem, agora com um sobretudo de caxemira e chapéu, à frente da casa de um bilionário, em Paris. O Grupo Khaled era agora o Grupo Bin Shafiq.

Durante as primeiras quarenta e oito horas, Gabriel e Lavon trabalharam sozinhos. No terceiro dia chegou Yossi, um homem alto e calvo com o porte de um intelectual britânico. Rimona compareceu no quarto dia, bem como Yaakov, chegado do quartel-general de Shabak, com uma caixa cheia de material sobre os terroristas que tinham atacado o carro de Shamron. Dina foi a última a chegar. Pequena e morena, estivera na Rua Dizengoff de Tel Aviv, no dia 19 de Outubro de 1994, quando um homem-bomba suicida do Hamas transformara o ônibus número 5 num caixão para vinte e uma pessoas. A mãe e duas das suas irmãs encontravam-se entre essas vítimas. Dina ficara gravemente ferida e caminhava agora com um ligeiro coxear. Lidara com a dor tornando-se perita em terrorismo. Com efeito, Dina Sarid era capaz de recitar a data, o local e o número de vítimas de todos os atos terroristas alguma vez cometidos contra o Estado de Israel. Em tempos dissera a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles próprios. Gabriel acreditara.

Dividiram-se em duas áreas de especialidade. Ahmed bin Shafiq e a Irmandade de Alá tornaram-se propriedade de Dina, Yaakov e Rimona, enquanto Yossi se juntou à escavação de Lavon da AAB Holdings. Por enquanto, Gabriel trabalhava sozinho, pois assumira a tarefa nada invejável de tentar identificar todos os quadros alguma vez comprados ou vendidos por Zizi al-Bakari.

À medida que os dias iam passando, as paredes da Sala 456C refletiam a natureza única da operação. Numa das paredes começou a surgir o esboço sombrio de uma nova rede terrorista mortal, liderada por um homem que, em grande medida, não passava de um fantasma. Deram o seu melhor para recriar a longa viagem de Bin Shafiq através da corrente do extremismo islâmico. Ao que parecia, onde quer que tivesse havido problemas, lá estava Bin Shafiq, a distribuir dinheiro saudita do petróleo e propaganda wahhabita às mancheias: Afeganistão, Líbano, Egito, Argélia, Jordânia, Paquistão, Chechênia, Bósnia e, é claro, a Autoridade Palestina. Mas havia pistas de relevo, pois ao levar a cabo dois atentados importantes, Bin Shafiq e a Irmandade tinham deixado mais de uma dúzia de nomes que podiam ser investigados em busca de ligações e de associações. E havia também Ibrahim el-Banna, o imã egípcio mortal, e o professor Ali Massoudi, o angariador e caçador de talentos.

Na parede oposta surgiu outra rede: a AAB Holdings. Utilizando fontes públicas, e outras não tão visíveis, Lavon peneirou a custo as várias camadas do império financeiro de Zizi e reuniu as diversas peças como se fossem pedaços de um artefato antigo. No topo da estrutura encontrava-se a própria AAB. Abaixo desta estava uma rede complexa de empresas subsidiárias e de fachadas corporativas que permitiam que Zizi estendesse a sua influência a quase todos os cantos do globo, em condições de secretismo corporativo quase perfeito. Tendo quase todas as empresas registradas na Suíça e nas Ilhas Caimão, Lavon equiparou Zizi a um caça furtivo financeiro, capaz de levar a cabo ataques à sua vontade, ao mesmo tempo que evitava ser detetado pelos radares inimigos. Apesar da natureza obscura do império de Zizi, Lavon chegou à conclusão de que as contas não batiam certo.

— Zizi nunca poderia ter obtido lucros suficientes com os investimentos iniciais que justificassem as aquisições posteriores — explicou a Gabriel. — A AAB Holdings é uma fachada para a Casa de Saud. — Quanto a tentar descobrir Ahmed bin Shafiq algures no polvo financeiro de Zizi, Lavon comparou-o a tentar encontrar uma agulha no deserto da Arábia. — Não é impossível — disse —, mas provavelmente morremos de sede antes de conseguirmos.

Yossi dedicou-se ao pessoal de Zizi. Concentrou-se na relativamente pequena equipe que trabalhava no quartel-general de Genebra, a par de empresas detidas ou controladas pela AAB. A maior parte do seu tempo, no entanto, era empregue na grande comitiva pessoal de Zizi. Em breve as fotografias cobriam a parede do espaço de trabalho de Yossi, e contrastavam com as da rede de terror de Shafiq. Todos os dias chegavam imagens novas, à medida que Yossi acompanhava os movimentos frenéticos de Zizi por todo o globo. Zizi a chegar a uma reunião em Londres. Zizi em Stuttgart, durante um encontro com fabricantes de automóveis alemães. Zizi a desfrutar da vista para o mar Vermelho, a partir do seu novo hotel em Sharm el-Sheik. Zizi a conferenciar com o rei da Jordânia, sobre um possível negócio imobiliário. Zizi a inaugurar uma central de dessalinização no Yemen. Zizi a receber um prêmio humanitário de um grupo islâmico em Montreal, cuja página de Internet, frisou Yossi, continha um apelo direto à destruição do Estado de Israel.

Quanto ao canto da sala reservado a Gabriel, era um santuário, quando comparado com os reinos do terror e das finanças. A sua parede estava coberta não com os rostos de terroristas ou de executivos, mas com dezenas de fotografias de obras impressionistas francesas. Enquanto Lavon e Yossi passavam os dias a vasculhar monótonos balancetes e folhas impressas, Gabriel folheava catálogos antigos, monografias impressionistas e recortes de impressa que descreviam os feitos de Zizi na cena artística mundial. Ao fim do décimo dia, Gabriel decidira como iria introduzir um agente na Jihad Limitada. Dirigiu-se à coleção de fotografias de Yossi e fitou uma única imagem. Mostrava um inglês magro e grisalho, sentado ao lado de Zizi, seis meses antes, no leilão de Arte Moderna e Impressionista da Christies, em Nova Iorque. Gabriel retirou a fotografia e ergueu-a, para que os outros a vissem. — Este homem — disse. — Tem de desaparecer. — Depois ligou para Adrian Carter através de um número privado seguro de Langley e contou como planejava entrar na Casa de Zizi.

— Agora você só precisa de um quadro e de uma garota — concluiu Carter. — Encontre o quadro e eu consigo a garota.

Gabriel saiu um pouco mais cedo do que o habitual do Boulevard King Saul e dirigiu-se a Ein Kerem. A unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah continuava vigiada por vários guardas, mas Shamron estava sozinho quando Gabriel entrou no quarto.

— O filho pródigo decidiu me visitar — comentou, em tom amargo. — Ainda bem que somos um povo do deserto, caso contrário punham-me em cima de um bloco de gelo e me jogavam no mar.

Gabriel sentou-se ao lado da cama.

— Já vim pelo menos umas seis vezes.

— Quando?

— À noite, quando já está dormindo.

— Anda pairando sobre mim? Como Gilah e os médicos? Por que não vem durante o dia, como uma pessoa normal?

— Tenho estado ocupado.

— O primeiro-ministro não está ocupado para me visitar em horários decentes. — com o pescoço ferido imobilizado por um aparelho de plástico,

Shamron lançou um olhar rancoroso a Gabriel. — Ele contou-me que vai autorizar o Amos a encontrar alguém para as Operações Especiais, para que tu possas levar a cabo esse projeto ridículo para o Adrian Carter e para os americanos.

— Imagino que não o aprove.

— com veemência. — Shamron fechou os olhos durante longos instantes, o suficiente para Gabriel olhar nervosamente para os monitores ao lado da cama. — Azul e branco — acabou por dizer. — Fazemos as nossas coisas sozinhos. Não pedimos a ajuda de ninguém, nem ajudamos os outros com os seus problemas. E, acima de tudo, não nos oferecemos como paus-mandados do Adrian Carter. — Está nesta cama de hospital e não no Gabinete do primeiro-ministro. Isso faz com que Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq também sejam problemas meus. Além disso, o mundo mudou, Ari. Temos de trabalhar juntos, se queremos sobreviver. As regras antigas já não se aplicam.

Shamron ergueu a mão de veias salientes e apontou para o copo de plástico sobre a mesa-de-cabeceira. Gabriel levou-o aos lábios de Shamron, que bebeu a água por uma palhinha.

— Vai empreender essa missão a pedido de quem? — indagou Shamron. — Adrian Carter, ou de alguém mais acima? — Ao receber o silêncio de Gabriel, Shamron afastou, zangado, o copo de água. — Pretende me tratar como uma espécie de inválido? Ainda sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados a segurança e informações. Ainda sou... — A voz sumiu, com uma fadiga súbita.

— Ainda é o memuneh — concluiu Gabriel.

Em hebraico, memuneh significava o responsável. Durante muitos anos, esse título fora reservado a Shamron. — Não vai atrás de um garoto qualquer de Nablus, Gabriel.Seus alvos são Ahmed bin Shafiq e Zizi al-Bakari. Se alguma coisa sair mal, o mundo vai cair em cima, e de muito alto. E seu amigo Adrian Carter não estará lá para catar teus pedaços. Talvez fosse melhor falar comigo. Já fiz esse tipo de coisas uma ou duas vezes.

Gabriel espreitou para o corredor e pediu aos agentes de segurança ali destacados que garantissem que qualquer sistema de vigilância de Shamron fosse desligado. Voltou então a sentar-se na cadeira ao lado da cama e, com a boca perto do ouvido de Shamron, contou tudo. Pelo menos por um instante, o olhar de Shamron pareceu mais concentrado. Quando lhe apresentou a primeira questão, Gabriel quase foi capaz de imaginar o homem de ferro que lhe entrara na vida durante uma tarde de Setembro de 1972.

— Já se decidiu a usar uma mulher? Gabriel anuiu.

— Vai precisar de alguém cujos antecedentes aguentem o escrutínio dos seguranças de Zizi, pagos a peso de ouro. Não pode usar uma das nossas garotas, nem uma judia não israelense. Se Zizi desconfiar que está olhando para uma judia, vai afastar-se dela. Precisa de uma gentia.

— O que eu preciso — explicou Gabriel — é de uma garota americana.

— Onde vai consegui-la?

A palavra única com que Gabriel respondeu fez Shamron franzir o sobrolho. — Não gosto da ideia de sermos responsáveis por uma agente deles. E se alguma coisa der errado?

— O que poderia dar errado?

— Tudo — retorquiu Shamron. — Sabe disso melhor do que ninguém.

Shamron pareceu subitamente exausto. Gabriel baixou a luz do abajur da mesa-de-cabeceira.

— O que vai fazer? — interrogou Shamron. — Vais ler-me uma história?

— Vou fazer-lhe companhia até que adormeça.

— Gilah pode fazer isso. Vai para casa descansar. Bem vais precisar.

— Fico mais um pouco.

— Vai para casa — insistiu Shamron. — Tens uma pessoa a sua espera que está ansiosa para vê-lo.

Vinte minutos depois, quando Gabriel virou para a Rua Narkiss, viu luzes acesas no seu apartamento. Estacionou o Skoda à esquina e percorreu em silêncio o passeio escurecido até o prédio. Quando entrou no apartamento, o ar estava carregado com o aroma a baunilha. Chiara estava sentada de pernas cruzadas em cima da mesa de trabalho, banhada pela luz forte das lâmpadas de halogêneo. Observou Gabriel quando este entrou, desviando então mais uma vez o olhar para o que em tempos fora uma sala de estar meticulosamente decorada.

— Gostei do que fizeste com a casa, Gabriel. Por favor, diz-me que não te livraste da nossa cama também.

Gabriel abanou a cabeça e beijou-a.

— Quanto tempo vais ficar por cá? — perguntou Chiara.

— Tenho de partir amanhã de manhã.

— Para variar, o meu sentido de oportunidade foi perfeito. Quanto tempo vais estar ausente?

— Não te sei dizer.

— Podes levar-me contigo? Desta vez, não.

— Para onde vais?

Gabriel ergueu-a da mesa de trabalho e apagou as luzes.

13

LONDRES

— Preciso de um Van Gogh, Julian.

— Precisamos todos, meu querido.

Isherwood puxou a manga do casaco e olhou para o relógio. Eram dez da manhã. Em geral, por essa hora já se encontrava na galeria, e não a passear à beira do lago de St. Jamess Park. Fez uma breve pausa para observar uma flotilha de patos que cruzavam a água calma em direção à ilha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos ao parque, para ver se estavam a ser seguidos. Depois agarrou em Isherwood pelo cotovelo e puxou-o para a Horse Guards Road. Eram um par díspar, figuras de quadros diferentes. Gabriel trazia jeans escuros e sapatos de camurça que não emitiam qualquer ruído quando andava. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de couro, os ombros curvados para a frente e os olhos verdes saltavam, inquietos, por todo o parque. Quinze anos mais velho do que

Gabriel e vários centímetros mais alto, Isherwood vestia um fato completo cinzento com riscas brancas e um sobretudo de lã. Os caracóis grisalhos tombavam soltos sobre a gola do sobretudo e saltitavam a cada passo desajeitado. Julian Isherwood tinha algo de precário na sua atitude. Como sempre, Gabriel teve de resistir ao impulso de ajudá-lo a equilibrar-se. Conheciam-se há trinta anos. O apelido tipicamente inglês e a posição social britânica ocultavam o fato de não ser, pelo menos tecnicamente, inglês de todo. Sim, tinha nacionalidade e passaporte britânicos, mas era de ascendência alemã, fora educado na França e era judeu de religião. Apenas um punhado de amigos de confiança sabia que Isherwood chegara a Londres em 1942 na condição de criança refugiada, depois de ter sido levado através dos Pirenéus por um par de pastores bascos. Ou que o pai, o afamado negociante de arte parisiense Samuel Isakowitz, fora assassinado no campo da morte de Sobibor, juntamente com a mãe de Isherwood. Havia mais uma coisa que Isherwood ocultava dos competidores no mundo da arte londrino, bem como do resto do mundo. Segundo o léxico do Escritório, Julian Isherwood era um sayan, um ajudante judaico voluntário. Fora recrutado por Ari Shamron com um único objetivo: ajudar a construir e a manter o disfarce de um único agente muito especial.

— Como está o meu amigo Mario Delvecchio? — perguntou Isherwood. — Desapareceu sem deixar rasto — respondeu Gabriel. — Espero que a minha revelação não te tenha causado problemas.

— De todo.

— Não houve comentários nas ruas? Não fizeram perguntas embaraçosas nos leilões? Não tiveste visitas dos agentes do MI5?

— Estás a perguntar-me se as pessoas de Londres me veem como um espião israelense venenoso?

— É exatamente isso que estou a perguntar-te.

— Está tudo calmo nesta frente, mas também nunca tivemos uma relação muito visível, certo? É a tua maneira de ser. Não és visível com nada. És um dos dois ou três melhores restauradores de arte do mundo e ninguém sabe quem tu és. É uma pena.

Chegaram à esquina da Great George Street. Gabriel cortou à direita, para

Birdeage Walk.

Quem sabe acerca de nós em Londres, Julian? Quem sabe que mantinhas uma relação profissional com o Mario?

Isherwood olhou para as árvores que ladeavam o passeio.

— Muito pouca gente. Jeremy Crabbe, da Bonhams, é claro. Continua possesso por lhe teres roubado aquele Rubens. — Isherwood levou a mão comprida e ossuda ao ombro de Gabriel. — Tenho um comprador. Agora só preciso do quadro. — Apliquei-lhe o verniz ontem, antes de sair de Jerusalém — explicou Gabriel.

— Vou utilizar um dos nossos exportadores para o trazer o mais depressa possível. Deves recebê-lo no final da semana. Por sinal, deves-me cento e cinquenta mil libras. — O cheque já está no correio, meu querido.

— Quem mais? — perguntou Gabriel. — Quem mais sabe de nós? Isherwood assumiu uma expressão pensativa.

— O maldito Oliver Dimbleby — respondeu. — Lembras-te do Oliver? Apresentei-o no Greens, uma bela tarde em que nós estávamos a almoçar. Aquele negociante atarracado de King Street. Certa vez tentou comprar-me a galeria. Gabriel lembrava-se. Ainda tinha, algures, o espalhafatoso cartão de visita dourado que Oliver lhe impingira. Oliver mal olhara na sua direção. Era a sua maneira de ser.

— Ao longo dos anos fiz muitos favores ao Crabbe — notou Isherwood. — O tipo de favores dos quais não gostamos de falar, no nosso ramo. Quanto ao Oliver Dimbleby, ajudei-o a resolver uma grande trapalhada que ele fez com uma garota que trabalhava na galeria dele. Recebi a desgraçada. Dei-lhe trabalho. Ela trocou-me por outro negociante. É o que as minhas garotas fazem sempre. O que se passa comigo para afastar sempre as mulheres? Sou um alvo fácil, é o que é. As mulheres percebem isso. O teu bando também. O Herr Heller percebeu-o bem.

Herr Rudolf Heller, investidor de Zurique, era uma das identidades preferidas de Shamron. Fora nesse papel que recrutara Isherwood.

— Por sinal, como está ele?

— Enviou-te cumprimentos.

Gabriel baixou o olhar para a calçada úmida de Birdeage Walk. Do parque levantou-se um vento frio. Folhas mortas restolhavam no caminho dos dois homens.

— Preciso de um Van Gogh — repetiu Gabriel.

— Sim, eu ouvi da primeira vez. O problema é que eu não tenho um Van Gogh. Caso te tenhas esquecido, a Isherwood Fine Arts é especializada em pintores renascentistas.

Se queres impressionistas, tens de procurar noutro lado.

— Mas sabes onde posso encontrar um.

— A menos que o queiras roubar, neste momento não há nada no mercado... pelo menos que eu saiba.

— Mas isso não é verdade, certo, Julian? Tu sabes de um Van Gogh. Falaste-me sobre ele há séculos... uma história acerca de um O quadro desconhecido que o teu pai vira em Paris, entre as guerras. — Não foi só o meu pai — corrigiu Isherwood. — Também eu o vi. O Vincent pintou-o em Auvers, durante os últimos tempos de vida. Diz-se que pode ter sido a sua desgraça.

O problema o quadro não está à venda, e talvez nunca venha a estar. A família deixou-me bem claro que nunca se vai separar dele. E também fazem tenção de manter a sua existência em segredo.

— Conta-me outra vez essa história.

— Agora não posso, Gabriel. Tenho um compromisso na galeria às dez e meia. Cancela esse compromisso, Julian. Conta-me sobre o quadro.

Isherwood cruzou a ponte pedonal sobre o lago e dirigiu-se à galeria em St. Jamess. Gabriel enfiou as mãos um pouco mais fundo nos bolsos do blusão e seguiu-o.

— Alguma vez o limpaste? — perguntou Isherwood.

— Ao Vincent? Nunca.

— O que sabes sobre os seus últimos tempos de vida?

— O que toda a gente sabe, creio eu.

— Tretas, Gabriel. Não te faças de desentendido comigo. A tua cabeça é como um dicionário de arte.

— Foi no Verão de 1890, não foi?

Isherwood acenou a sua concordância professoral. — Continua, por favor. — Depois de o Vincent ter deixado o sanatório em Saint-Rémy, foi para Paris, ver o Theo e a Johanna. Visitou algumas galerias e exposições, e parou na loja de material artístico de Père Tanguy, para ver algumas telas que lá tinha guardadas. Três dias depois começou a ficar impaciente, por isso apanhou um trem para Auvers-sur-Oise, a cerca de trinta quilômetros de Paris. Pensou que Auvers seria ideal, um ambiente bucólico sossegado para o seu trabalho, mas próximo de Theo, a tábua de salvação financeira e emocional. Alugou um quarto por cima do Café Ravoux e entregou-se aos cuidados do Dr. Paul Gachet. Gabriel agarrou o braço de Isherwood e juntos aproveitaram uma brecha no trânsito e entraram na Marlborough Road. — Começou a pintar imediatamente. Tal como o espírito, o estilo estava mais calmo e discreto. A agitação e a violência que caraterizaram grande parte do seu trabalho em Saint-Rémy e em Aries desaparecera. Foi também extraordinariamente prolífico. Durante os dois meses que Vincent ficou em Auvers, produziu mais de oitenta quadros. Um quadro por dia. Às vezes dois.

Viraram para King Street. Gabriel parou de repente. Mais à frente, a bambolear-se pelo passeio na direção da entrada da casa de leilões Christies, estava Oliver

Dimbleby. Isherwood cortou de súbito para Bury Street e retomou a narrativa no ponto onde Gabriel parara.

— Quando o Vincent não estava à frente da tela, normalmente encontrava-se no quarto por cima do Café Ravoux, ou na casa de Gachet. Este era um viúvo com dois filhos, um rapaz de quinze anos e uma filha que fez vinte e um durante a estadia de Vincent em Auvers.

— Marguerite. Isherwood anuiu.

— Era uma jovem bonita, que se sentia bastante atraída pelo Vincent. Acedeu em posar para ele... infelizmente sem a autorização do pai. Pintou-a no jardim da casa da família, vestida com uma túnica branca.

— Marguerite Gachet no Jardim — disse Gabriel.

— E quando o pai descobriu, ficou furioso.

— Mas ela voltou a posar.

— Correto — asseverou Isherwood. — O segundo quadro é Marguerite Gachet ao Piano. Também surge em Vegetação com Duas Figuras, um trabalho profundamente simbólico que alguns historiadores de arte viram como uma profecia da morte do próprio Vincent. Mas acredito que sejam Vincent e Marguerite a percorrer o corredor da igreja... a premonição de casamento de Vincent.

— Mas houve um quarto quadro de Marguerite?

Marguerite Gachet ao Toucador — clarificou Isherwood. — É de longe o melhor de todos. Apenas meia dúzia de pessoas o viu, ou sequer sabe que ele existe. O Vincent pintou-o poucos dias antes de morrer. E depois a obra desapareceu.

Caminharam até Duke Street e depois entraram numa passagem estreita, que dava acesso a um pátio quadrangular de tijolo chamado Masons Yard. A galeria de Isherwood ocupava um velho armazém vitoriano num canto, entalada entre os escritórios de uma empresa de navegação grega de pouca importância e um pub cheio de bonitas empregadas de escritório que dirigiam scooters. Isherwood fez menção de cruzar o pátio para se dirigir à galeria, mas Gabriel agarrou-lhe na lapela e puxou-o na direção oposta. Enquanto atravessavam o perímetro pelo meio das sombras frias, Isherwood comentou a morte de Vincent.

— Na noite de 27 de julho, Vincent voltou ao Café Ravoux, visivelmente em sofrimento, e subiu a custo a escada até seu quarto. Madame Ravoux seguiu-o e descobriu que fora alvejado. Mandou chamar um médico. Este, é claro, era o próprio Gachet. Decidiu deixar a bala na barriga do Vincent e convocou Theo a Auvers. Quando Theo chegou, na manhã seguinte, encontrou Vincent sentado na cama, fumando cachimbo. Morreu no fim desse dia.

Chegaram a uma zona iluminada pelo sol. Isherwood protegeu os olhos com a mão comprida.

— Existem muitas perguntas sem resposta quanto ao suicídio de Vincent. Não é claro onde conseguiu a arma, nem o local exato onde se alvejou. Também existem questões sobre a motivação. Terá sido o suicídio o culminar de uma longa batalha contra a loucura? Teria ficado perturbado com uma carta que recebera de Theo, onde este sugeria que não ia poder continuar a sustentá-lo, juntamente com a sua própria mulher e filho? Será que o Vincent se matou como parte de um plano para fazer com que o seu trabalho se tornasse relevante e comercialmente viável? Nunca fiquei muito satisfeito com nenhuma destas teorias. Acredito que tenha que ver com Gachet. Mais concretamente, com a filha do Dr. Gachet.

Voltaram a mergulhar nas sombras do pátio. Isherwood baixou a mão.

— No dia antes de se ter alvejado, Vincent foi a casa de Gachet. Discutiram violentamente e Vincent ameaçou Gachet com uma arma. Qual o motivo da discussão? Mais tarde, Gachet disse que teve que ver com uma moldura, consegues imaginar? Acredito que tenha sido por causa de Marguerite. Julgo que possa ter tido que ver com o Marguerite Gachet ao Toucador. É um trabalho maravilhoso, um dos melhores retratos do Vincent. A pose e o cenário representam claramente uma noiva na noite de núpcias.

O significado não teria passado despercebido a um homem como Paul Gachet. Se viu o quadro, e não há razão para acreditar que não tivesse visto, terá ficado enraivecido. Talvez Gachet tenha dito a Vincent que o casamento com a filha estava fora de questão. Talvez tenha proibido o Vincent de voltar a pintá-la. Talvez o tenha proibido de voltar a vê-la. Apenas sabemos que Marguerite Gachet não esteve presente no funeral de Vincent, embora tenha sido vista no dia seguinte, lavada em lágrimas, a deixar girassóis na campa dele. Nunca se casou e viveu em Auvers quase como uma reclusa até que morreu, em 1949. Passaram a entrada da galeria de Isherwood e continuaram a andar.

— Depois da morte do Vincent, os quadros tornaram-se propriedade do Theo. Preparou o envio dos trabalhos que o Vincent produzira em Auvers e armazenou-os em Père Tanguy, em Paris. Claro que o Theo morreu pouco depois do Vincent, e os quadros passaram para Johanna. Nenhum outro familiar de Vincent quis algum dos seus trabalhos. O irmão de Johanna considerou-os inúteis e sugeriu que fossem queimados. — Isherwood parou. — Consegues imaginar? — Voltou a avançar com um passo largo. -Johanna catalogou o inventário e foi incansável a criar a reputação do Vincent. Deve-se a Johanna que Vincent van Gogh seja considerado um grande artista. Mas há uma omissão notória na lista de trabalhos conhecidos.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Precisamente — confirmou Isherwood. — Terá sido um acidente, ou foi intencional? Nunca saberemos, claro está, mas tenho uma teoria. Acredito que Johanna soubesse que o quadro pode ter contribuído para a morte de Vincent. Seja qual for o caso, foi vendido por tuta-e-meia, cerca de um ano após a morte de Vincent, e nunca mais foi visto. E é nesse ponto que o meu pai entra na história.

Terminaram a primeira volta ao pátio e começaram uma segunda. Isherwood reduziu o ritmo quando começou a falar sobre o pai.

— Sempre foi um berlinense de coração. Teria lá permanecido sempre. Claro que não foi possível. O meu pai viu a tempestade que se aproximava e não perdeu tempo a sair da cidade. No final de 1936 tínhamos deixado Berlim e mudado para Paris. — Olhou para Gabriel.

— É pena que o teu avô não tenha feito o mesmo. Era um grande pintor, o teu avô. Descendes de uma bela linhagem, meu rapaz.

Gabriel mudou rapidamente de assunto.

— A galeria do teu pai ficava na rue de Ia Boétie, não era?

— É claro — replicou Isherwood. — Nessa altura, a rue de la Boétie era o centro do mundo da arte. Paul Rosenberg tinha a sua galeria no número 21. O Picasso e a Olga viviam no outro lado do pátio, no número 23. Georges Wildenstein, Paul Guillaume, Josse Hessel, Étienne Bignou... estava lá ioda a gente. A Isakowitz Fine Arts ficava ao lado da galeria do Paul Rosenberg. Vivíamos num apartamento por cima das salas de exposição. Picasso era o meu "Tio Pablo". Costumava deixar-me vê-lo a pintar e a Olga dava-me chocolates até ficar maldisposto.

Isherwood permitiu-se esboçar um sorriso, que se desvaneceu rapidamente quando regressou à história do pai em Paris.

— Os alemães chegaram em Maio de 1940 e começaram a pilhar tudo. O meu pai alugou uma casa de campo em Bordeaux, no lado de Vichy da linha, e mudou para lá a maior parte de suas peças importantes. Seguimos pouco tempo depois. Os alemães entraram na zona não ocupada em 1942 e tiveram início as rusgas e as deportações. Ficamos encurralados. O meu pai pagou a dois pastores bascos para me levarem através das montanhas até Espanha. Entregou-me documentos, um inventário profissional e alguns diários. Foi a última vez que o vi. Ouviu-se uma buzina sonora em Duke Street e um esquadrão de pombos alçou voo no pátio envolto em sombras.

— Foram precisos anos até ler os diários. Num deles descobri uma entrada sobre um quadro que o meu vira certa noite em Paris, na casa de um homem chamado Isaac Weinberg.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Weinberg disse ao meu pai que tinha comprado o quadro a Johanna, pouco depois da morte do Vincent, e que o oferecera à esposa como prenda de aniversário. Ao que parece, Mrs. Weinberg era parecida com Marguerite. O meu pai perguntou ao Isaac se estaria disposto a vendê-lo, mas a resposta foi negativa. Pediu ao meu pai que não mencionasse o quadro a ninguém, e ele fez-lhe a vontade. O celular de Isherwood chilreou e ele ignorou-o.

— No início da década de setenta, pouco antes de nos conhecermos, estive em Paris, em negócios. Fiquei com algumas horas entre compromissos e decidi procurar Isaac Weinberg. Fui à morada de Marais que estava nos cadernos do meu pai, mas Weinberg já lá não se encontrava. Não tinha sobrevivido à guerra. Mas conheci o filho, Marc, e falei-lhe da entrada no diário do meu pai. De início negou a história, mas acabou por ceder e permitiu-me que visse o quadro, não sem primeiro fazer-me jurar segredo eterno. Estava no quarto da filha. Perguntei-lhe se estaria interessado em desfazer-se dele. Recusou a oferta, é claro.

— Tens certeza de que é do Vincent?

— Sem sombra de dúvida. — E nunca mais lá voltaste?

— Monsieur Weinberg deixou bem claro que a pintura nunca estaria à venda. Achei que não fazia sentido lá voltar. — Isherwood deteve-se e encarou Gabriel. — Muito bem, meu querido. Já te contei a história. Imagino que me queiras explicar o que se passa.

— Preciso desse Van Gogh, Julian.

— Para quê?

Gabriel agarrou na manga de Isherwood e levou-o até a porta da galeria. Ao lado da porta de vidro havia um painel com intercomunicador, com quatro botões e respetivas placas de identificação. Num deles lia-se ISHRR OO FINE AR S: só com MARCAÇÃO. Isherwood abriu a porta com uma chave e conduziu Gabriel por um lance de escadas coberto por carpete marrom puído. À esquerda ficava uma pequena agência de viagens melancólica. A dona, uma solteirona chamada Miss Archer, estava sentada à secretária, à frente de um cartaz com um casal de ar feliz a chapinhar na água azul. A porta de Isherwood ficava à direita. A secretária mais recente, uma criatura de ar apologético chamada Tanya, olhou-os furtivamente quando Isherwood e Gabriel entraram.

— Este é Mr. Klein — apresentou-o Isherwood. — Quer ver uma coisa lá em cima. Sem interrupções, por favor. Bonita menina, Tanya, minha querida. Entraram para um elevador do tamanho de uma cabine telefônica e subiram tão próximos um do outro que Gabriel pôde sentir o cheiro do clarete da noite anterior no hálito de Isherwood. Segundos depois, o elevador parou com um solavanco e a porta abriu-se com um gemido. A sala de exposições de Isherwood encontrava-se na obscuridade, iluminada apenas pelo sol da manhã filtrado pela claraboia. Isherwood acomodou-se no divã forrado a veludo no centro da sala, enquanto Gabriel iniciava uma pequena visita. Os quadros eram quase invisíveis nas sombras profundas, mas conhecia-os bem: uma Vênus de Luini, uma natividade de Ferino dei Vaga, um batismo de Cristo de Bordone, uma paisagem luminosa de Claude.

Isherwood abriu a boca para falar, mas Gabriel levou um dedo aos lábios e retirou do bolso o que parecia ser um vulgar celular Nokia. Era com efeito um Nokia, mas o aparelho continha várias caraterísticas adicionais que não estavam disponíveis para clientes normais, como por exemplo um sinalizador GPS e um instrumento capaz de detectar a presença de transmissores ocultos. Gabriel deu mais uma volta à sala, desta vez com os olhos na tela do telefone. Depois sentou-se ao lado de Isherwood e, em voz baixa, disse-lhe por que precisava do Van Gogh.

— Zizi al-Bakari? — perguntou Isherwood, incrédulo. — É um diabo de um terrorista? Tem certeza?

— Não é ele que coloca as bombas, Julian. Nem sequer fabrica as bombas. Mas financia as bombas e usa seu império empresarial para facilitar o movimento de homens e materiais pelo globo. Atualmente, é tão ruim quanto ser terrorista. Pior.

— Conheci-o há tempos, mas ele não se lembraria. Fui a uma festa na propriedade dele em Gloucestershire. Uma festa enorme. Um mar de gente. Zizi nunca esteve presente. Desceu no fim, como se fosse um Gatsby. Cercado por guarda-costas, mesmo dentro da casa dele. Um tipo estranho. Mas é um colecionador voraz, não é? Arte. Mulheres. Tudo o que o dinheiro possa comprar. É um rapace, pelo que ouvi dizer. Nunca fiz negócios com ele, claro está. Zizi não se sente inclinado para os Renascentistas. Prefere os Impressionistas e mais algumas coisas modernas. Os árabes são todos assim. Não gostam da imagética cristã da Renascença.

Gabriel sentou-se ao lado de Isherwood.

— Ele não tem um Van Gogh, Julian. De vez em quando dá a entender que anda à procura de um. E não de um Van Gogh qualquer. Deseja algo especial. — Pelo que ouvi dizer, é muito cuidadoso com o que compra. Gasta rios de dinheiro, mas fá-lo com prudência. Tem uma coleção digna de um museu, mas nunca me tinha apercebido de que lhe faltava um Van Gogh.

— O conselheiro de arte dele é um inglês chamado Andrew Malone. Conhece-o?

— Infelizmente, Andrew e eu nos conhecemo bem. Tem enfiado bem as mãos nos bolsos de Zizi. Passa férias no iate de Zizi. Segundo parece, é grande como um Titanic. Andrew é velhaco. E porco, também.

— Em que sentido?

— Recebe de dois lados, meu querido.

— Que quer dizer com isso, Julian?

— Andrew tem um acordo exclusivo com Zizi, o que significa que não deve receber dinheiro de outros negociantes ou colecionadores de arte. É assim que os tubarões como Zizi garantem que os conselhos que recebem não são maculados por conflitos de interesse.

— O que anda a tramar o Malone?

— Extorsão, duplas comissões, de tudo um pouco.

— Tens certeza?

— Absoluta, meu querido. Toda a gente sabe que para fazer negócio com Zizi é preciso pagar ao Andrew Malone.

De repente, Isherwood levantou-se do divã e percorreu a sala de exposições. — Então e qual é seu plano? Fazer Zizi do buraco dele com um Van Gogh? Aparecer com ele diante dos olhos dele e esperar que engula anzol, linha e boia? Mas do outro lado da linha vai estar alguma coisa, não é? Um dos seus agentes?

— Algo do gênero.

— E onde pensa fazer isso? Aqui, imagino?

Gabriel olhou para a sala com um ar de aprovação.

— Sim — respondeu. — Acho que serve perfeitamente.

— Já receava.

— Preciso de um negociante — explicou Gabriel. — Alguém bem conhecido no ramo. Alguém em que eu possa confiar.

— Trabalho com pintores renascentistas, não com impressionistas.

— Isso não interessa, com um negócio discreto como este.

Isherwood não argumentou. Sabia que Gabriel tinha razão.

— Já pensaste nas consequências para mói, se o teu esquema der resultado? vou ficar marcado. Desenrasco-me bem com fuinhas como o Oliver Dimbleby, mas o raios parta da Al-Qaeda é outra história.

— É óbvio que teremos de tomar medidas pós-operacionais para tua segurança. — Adoro os teus eufemismos, Gabriel. Sempre que a verdade é demasiado horrível, tu e Shamron recorrem a eufemismos. Vão pôr a minha cabeça a prêmio. Vou ter de acabar com o negócio e me esconder.

Gabriel pareceu insensível aos protestos de Isherwood.

— Não está ficando mais jovem, Julian. Está quase no fim da linha. Não tem filhos. Não tem herdeiros. Quem vai ficar com a galeria? Além disso, já parou para pensar na comissão que vai receber pela venda particular de um Van Gogh desconhecido? Se juntar a isso o que vai ganhar com uma liquidação total, parece que as coisas podiam ser piores, Julian.

— Estou imaginando uma casinha no Sul da França. Um nome novo. Uma equipe de agentes do Escritório a protegerem-me durante a minha velhice. — Não te esqueças de me reservar um quarto. Isherwood voltou a sentar-se.

— O teu plano tem uma falha grave, meu querido. Vai ser mais fácil apanhares esse teu terrorista do que conseguir o Van Gogh. Partindo do princípio de que ainda está nas mãos da família Weinberg, o que te leva a pensar que vão abdicar dele?

— Ninguém disse que tinham de abdicar dele.

Isherwood sorriu.

— Vou buscar o endereço.

14

MARAIS, PARIS

— Devia comer alguma coisa — disse Uzi Navot.

Gabriel abanou a cabeça. Almoçara no trem de Londres.

— Experimenta o borscht — insistiu Navot. — Não pode vir ao Jo Goldenberg sem comer borscht.

— Posso, sim — contrapôs Gabriel. — Comida roxa me deixa nervoso.

Navot chamou a atenção do empregado e pediu uma dose dupla de borscht e um copo de vinho tinto. Gabriel franziu o sobrolho e olhou pela janela. Uma chuva constante açoitava o pavimento da rue des Rosiers e quase que anoitecera. Pretendera encontrar-se com Navot noutro local que não no mais famoso restaurante do mais importante bairro judaico de Paris, mas Navot insistira no Jo Goldenberg, com base na sua crença de que o melhor lugar para esconder um pinheiro era numa floresta.

— Este sítio está a deixar-me nervoso — murmurou Gabriel. Vamos dar uma volta. — com este tempo? Nem penses. Além disso, ninguém te vai reconhecer nessa figura. Até eu mal reparei em ti quando entraste.

Gabriel olhou para o rosto fantasmagórico refletido no copo. Tinha um boné de bombazina, lentes de contato que lhe transformavam os olhos verdes em castanho e uma barbicha falsa que lhe acentuava as feições já por si estreitas. Viajara para Paris com um passaporte alemão com o nome Heinrich Kiever. Depois de chegar à Gare du Nord, passara duas horas a caminhar pelas margens do Sena, a confirmar que não estava a ser seguido. Na mochila tinha um exemplar usado de Voltaire que comprara numa bouquiniste no Quai Montebello.

Dirigiu a atenção para Navot. Era um homem entroncado, vários anos mais novo do que Gabriel, de cabelo louro curto e olhos azuis pálidos. Segundo o léxico do Escritório, era um katsa, um agente de campo infiltrado. Armado com toda uma série de línguas, um encanto velhaco e uma arrogância fatalista, penetrara em células terroristas palestinas e recrutara agentes em embaixadas árabes espalhadas pela Europa Ocidental. Tinha fontes em quase todos os serviços de espionagem e de segurança europeus e geria uma rede vasta de sayanim. Podia sempre contar com a melhor mesa da churrascaria do Ritz de Paris, pois o maître d’hôtel era um informante pago, como também o chefe das empregadas de limpeza. Vestia agora um casaco cinzento de tweed e uma camisola de gola alta preta, pois a sua identidade em Paris era a de Vincent Laffont, um escritor freelance de livros de viagens, de ascendência bretã, que passava a maior parte do tempo na estrada. Em Londres era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura empresa de software canadiana. Em Madrid era um alemão de recursos independentes que passava o tempo em cafés e em bares, e que viajava para aliviar o fardo de uma alma agitada e complexa.

Navot tirou da pasta um dossiê que colocou na mesa à frente de Gabriel.

— Aqui está a dona do teu Van Gogh — disse. — Dá uma olhada.

Gabriel levantou discretamente a capa. A fotografia mostrava uma atraente mulher de meia-idade com cabelo escuro ondulado, pele cor de azeitona e um longo nariz aquilino. Segurava um guarda-chuva aberto e descia um lance de degraus de pedra em Montmartre.

— Hannah Weinberg — informou Navot. — Quarenta e quatro anos, solteira, sem filhos. É um bom exemplo da atual demografia judaica. Filha única sem filhos. Pelo andar da carruagem, não vamos precisar de um Estado. — Navot baixou o olhar e revirou, taciturno, o prato de frango recheado com legumes. Tendia para períodos de desânimo, especialmente quando se tratava do futuro do povo judeu. — É dona de uma pequena boutique em Montmartre, na rue Lepic. Chama-se Boutique Lepic. Tirei a foto no início da tarde, quando estava a sair para almoçar. Ficamos com a impressão de que a boutique é mais um passatempo do que vocação. Dei uma vista de olhos às contas bancárias dela. O Marc Weinberg deixou à filha uma vida desafogada.

O empregado aproximou-se e colocou um prato de uma mistela roxa à frente de Gabriel, que o empurrou de imediato para o centro da mesa. Não suportava o cheiro do borscht. Navot deitou um naco de pão para dentro do caldo e mergulhou-o com a colher.

— O Weinberg era um homem interessante. Era um advogado importante, aqui em Paris. Era também um militante das recordações. Pressionou bastante o Governo para que assumisse o papel dos franceses no Holocausto. Como resultado, ganhou uma certa impopularidade em alguns círculos parisienses.

— E a filha? Qual é a cor dela?

— Euro-socialista moderada, mas na França isso não é crime. Também herdou alguma militância do pai. Está envolvida com um grupo que tenta combater o anti-semitismo. Já se encontrou com o presidente francês. Vê debaixo da fotografia.

Gabriel encontrou um recorte de uma revista francesa sobre a onda de anti-semitismo na França. A fotografia acompanhante mostrava manifestantes judaicos numa marcha sobre as pontes do Sena. À frente da coluna, com um cartaz que dizia ACABEM com o ÓDIO JÁ, seguia Hannah Weinberg.

— Alguma vez foi a Israel?

— Pelo menos quatro vezes. Shabak está a investigar para garantir que ela não esteve em Ramallah, a conspirar com os terroristas. Tenho certeza de que não vão encontrar nada. Ela é sincera, Gabriel. Uma dádiva dos deuses da inteligência.

— Preferências sexuais?

— Homens, segundo julgamos. Está envolvida com um funcionário público.

— Judeu?

— Graças a Deus.

— Esteve na casa dela?

— Entrei com a equipe neviot.

As equipes neviot eram especializadas na obtenção de informações de locais como apartamentos, escritórios e quartos de hotel. A unidade empregava alguns dos melhores arrombadores e ladrões do mundo. Mais à frente na operação, Gabriel tinha outros planos para eles isso é claro, desde que Hannah Weinberg aceitasse separar-se do seu Van Gogh.

— Viste o quadro? Navot anuiu.

— Está no quarto de quando era pequena.

— Qual era o aspeto dele?

— Queres a minha avaliação de um Van Gogh? — Navot encolheu os ombros maciços. — É um quadro bonito, de uma garota sentada a um toucador. Não tenho uma veia artística, como tu. Sou mais virado para frango estufado e uma boa história de amor no cinema. Não estás a comer a tua sopa. — Não gosto, Uzi. Eu disse-te que não gostava.

Navot pegou na colher de Gabriel e mexeu o creme picante, aclarando o tom da mistura roxa.

— Demos uma vista de olhos aos papéis dela — continuou Navot. — Revistamos os armários e as gavetas. Também deixamos umas coisas no telefone e no computador. Nestas situações, todo o cuidado é pouco. — A casa está vigiada?

Navot pareceu ficar magoado com a pergunta.

— E claro — respondeu.

— O que estão a usar como posto de escuta?

— Por enquanto, uma van. Se ela concordar em ajudar-nos, vamos precisar de algo mais permanente. Um dos rapazes da neviot já anda no bairro à procura de um apartamento adequado.

Navot afastou os restos do frango estufado e atacou o borscht de Gabriel. Apesar da sua sofisticação europeia, no fundo continuava a ser um camponês do shtetl. — Já sei no que isso vai dar — comentou, entre colheradas. — Vais à procura do mau da fira, e eu fico um ano inteiro a vigiar uma mulher. Mas sempre foi assim, não é? Ficas com a glória toda, enquanto a mão de obra de campo faz o trabalho sujo. Meu Deus, salvaste o papa. Como um simples morcomo eu pode competir com isso?

— Cala-te e come a sopa, Uzi.

Ser o favorito de Shamron tinha o seu preço. Gabriel estava habituado à inveja profissional dos colegas.

— Amanhã tenho de sair de Paris — disse Navot. — Vou estar fora apenas um dia.

— Aonde vai?

— Amos quer falar comigo. — Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Acho que tem a ver com o cargo das Operações Especiais. O cargo que tu recusaste. Fazia sentido, pensou Gabriel. Navot era um agente de campo extremamente capaz, que participara em várias operações de monta, incluindo algumas com Gabriel. — É isso que quer, Uzi? Um trabalho no Boulevard King Saul?

Navot encolheu os ombros.

— Já ando no campo há muito tempo. Bella quer se casar. É difícil ter uma vida pessoal estável quando se vive assim. Às vezes, quando acordo de manhã, não faço ideia de onde vou estar no fim do dia. Posso tomar o pequeno-almoço em Berlim, almoçar em Amsterdam e estar no Rei Saul à meia-noite, apresentando relatório ao diretor. — Navot ofereceu um sorriso cúmplice a Gabriel. — É isso que os americanos não entendem. Enfiam os agentes em caixinhas e depois os castigam quando pisam na risca. O Escritório não é assim. Nunca foi. É por isso que temos o melhor trabalho do mundo... e é por isso que os nossos serviços são muito melhores que os deles. Não saberiam o que fazer com um homem como você.

Navot perdera o interesse no borscht. Empurrou-o, para que parecesse que Gabriel o comera. Gabriel pegou no copo de vinho, mas depois reconsiderou. Doía-lhe a cabeça por causa da viagem de trem e do tempo chuvoso de Paris, e o vinho tinha um cheiro tão apelativo como diluente.

— Mas tem o seu preço nos casamentos e nas relações, não é, Gabriel? Quantos de nós são divorciados? Quantos de nós tiveram romances com garotas no campo? Pelo menos se trabalhar em Tel Aviv vou estar mais vezes em casa. Continua a ser preciso viajar muito, mas não tanto como agora. A Bella tem uma casa perto da praia, em Cesareia. Vai ser uma boa vida. — Voltou a encolher os ombros.

— Escutem só. Estou falando como se Amos tivesse me oferecido o cargo. Amos não me ofereceu nada. Até pode estar me chamando ao Boulevard King Saul para me despedir.

— Não seja ridículo. É o homem mais indicado para o cargo. Vai ser meu chefe, Uzi.

— Seu chefe? Por favor. Você não tem chefes, Gabriel. Só o velhote.

A expressão de Navot tornou-se subitamente grave. — Como está ele? Ouvi dizer que não está bem.

— Vai se recuperar — assegurou-lhe Gabriel.

Ficaram em silêncio quando o empregado se aproximou da mesa e levantou os pratos. Ao afastar-se, Gabriel devolveu o dossiê a Navot, que o voltou a guardar na pasta.

— Como vai agir com Hannah Weinberg?

— Vou pedir que ceda um quadro que vale oitenta milhões de dólares. Tenho que contar a verdade... ou pelo menos uma versão da verdade. E depois teremos de lidar com as consequências da segurança.

— E quanto à abordagem? Vai dançar um pouco, ou vai cair matando?

— Eu não danço, Uzi. Nunca tive tempo para dançar.

— Pelo menos não terá problema em convencê-la de quem é. Graças aos serviços de segurança franceses, todos em Paris conhecem seu nome e seu rosto. Quando pretende começar?

— Esta noite.

— Nesse caso, está com sorte.

Navot fitou a janela. Gabriel seguiu seu olhar e viu uma mulher de cabelo escuro descendo a rue des Rosiers, abrigada por um guarda-chuva. Levantou-se sem uma palavra e dirigiu-se à porta.

— Não se preocupe, Gabriel — resmungou Navot entre dentes. — Eu pago a conta.

No final da rua, ela virou à esquerda e desapareceu. Gabriel fez uma pausa à esquina e observou alguns ortodoxos de casaco negro a entrarem para uma sinagoga, para as orações da tarde. Depois olhou para a rue Pavée e viu a silhueta de Hannah Weinberg a entrar nas sombras. Parou à porta de um prédio de apartamentos e procurou a chave na mala. Gabriel cruzou o passeio e deteve-se a pouca distância dela, no momento em que a mulher esticava a mão para a fechadura.

— Mademoiselle Weinberg?

Virou-se e olhou-o calmamente na escuridão. Dos olhos emanava uma inteligência calma e sofisticada. Se ficou sobressaltada com a abordagem, não o mostrou.

— É Hannah Weinberg, não é?

— Em que posso ajudá-lo, Monsieur?

— Preciso da sua ajuda — disse Gabriel. — Pensei que talvez pudéssemos conversar em privado.

— Conhecemo-nos, Monsieur?

— Não — respondeu Gabriel.

— Nesse caso, como poderei ajudá-lo?

— Seria preferível discutirmos o assunto em particular, Mademoiselle.

— Não costumo ir a locais privados com desconhecidos, Monsieur. Agora, se me dá licença.

Virou-se e dirigiu outra vez a mão à fechadura.

— Tem que ver com o seu quadro, Mademoiselle Weinberg. Preciso falar com você sobre o seu Van Gogh.

Ela imobilizou-se e voltou a fitá-lo. O olhar continuava calmo.

— Lamento desapontá-lo, Monsieur, mas não tenho um Van Gogh. Se gostaria de ver algumas pinturas de Vincent, sugiro que visite o Musée d’Orsay.

Voltou a desviar o olhar.

— Marguerite Gachet ao Toucador — disse Gabriel calmamente. Foi adquirido pelo seu avô à viúva de Theo van Gogh, Johanna, e oferecido à sua avó como presente de aniversário. A sua avó tinha uma vaga semelhança com Mademoiselle Gachet.

Quando era pequena, o quadro estava no seu quarto. Devo continuar? A compostura dela desapareceu. Quando voltou a falar, após um momento de silêncio espantado, a voz denotava uma veemência inesperada.

— Como sabe do meu quadro?

— Não tenho liberdade para o revelar.

— É claro que não. — A frase foi proferida como um insulto.

— O meu pai sempre me avisou que, um dia, um negociante de arte francês ganancioso iria tentar retirar-me o quadro. Não está à venda e, se por acaso desaparecer, garanto que a Polícia vai receber a sua descrição.

— Não sou negociante de arte... e não sou francês

— Então quem é o senhor? — questionou. — E o que pretende do meu quadro?


15

MARAIS, PARIS

O patio encontrava-se vazio e escuro, iluminado apenas pelas luzes das janelas dos apartamentos mais acima. Cruzaram-no em silêncio e entraram no hall, onde um antiquado elevador de portas de grades os aguardava. Ela preferiu a escada amplas e guiou-o até o terceiro andar. No patamar viam-se duas portas imponentes de mogno. A porta à direita não tinha identificação. Hannah Weinberg abriu-a e entraram. Gabriel registrou o fato de ela ter digitado um código no teclado antes de acender as luzes. Não havia dúvida de que Hannah Weinberg era boa a guardar segredos. O apartamento era grande, com um hall de entrada formal e uma biblioteca adjacente à sala. Via-se mobília antiga coberta de brocado, cortinados grossos de veludo nas janelas, e um relógio de ouropel com as horas erradas tiquetaqueava calmamente no rebordo da lareira. O olhar profissional de Gabriel dirigiu-se de imediato aos seis quadros a óleo bastante decentes que estavam pendurados nas paredes. A decoração criava o ar de uma era passada. Gabriel não ficaria surpreendido se visse Paul Gachet a ler o jornal à luz do gás.

Hannah Weinberg tirou o casaco e desapareceu na cozinha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos à biblioteca. Volumes encadernados a couro enchiam estantes de madeira com portas de vidro. Havia mais pinturas na divisão, paisagens prosaicas, um homem a cavalo, a obrigatória batalha marítima, mas nada que sugerisse que a dona pudesse também deter um Van Gogh perdido.

Regressou à sala no momento em que Hannah Weinberg surgia da cozinha com uma garrafa de Sancerre e dois copos. Entregou-lhe a garrafa e um saca-rolhas e observou-lhe cuidadosamente as mãos enquanto puxava a rolha. Não era tão atraente como parecera na fotografia de Uzi Navot. Talvez se devesse à luz parisiense, ou talvez praticamente qualquer mulher parecesse atraente a descer um lance de escadas em Montmartre. A saia de lã pregueada e a camisola pesada ocultavam o que Gabriel imaginava ser uma figura roliça. As sobrancelhas eram muito largas e emprestavam-lhe um ar de profunda seriedade ao rosto. Sentada como estava naquele momento, cercada pelas peças datadas da sala, parecia ter muito mais de quarenta e quatro anos de idade.

— Surpreende-me vê-lo em Paris, Monsieur Allon. Da última vez que li o seu nome no jornal, ainda era procurado para ser interrogado pela Polícia francesa. — Receio que ainda seja o caso.

— Mesmo assim, veio à França... só para falar comigo? Deve ser muito importante.

— É verdade, Mademoiselle Weinberg.

Gabriel serviu dois copos de vinho, entregou-lhe um e ergueu o outro num brinde silencioso. Ela imitou-o, ao que levou o copo aos lábios.

— Tem noção do que aconteceu aqui em Marais depois do atentado? — Hannah Weinberg respondeu à sua própria questão. — As coisas ficaram muito tensas. Dizia-se que tinha sido levado a cabo por Israel. Todos acreditavam que era verdade e, infelizmente, o Governo francês demorou muito tempo a lidar com a situação, mesmo depois de saberem que era mentira. Os nossos filhos foram agredidos nas ruas. Atiraram pedras às janelas e às vitrines. Escreveram coisas terríveis nas paredes de Marais e de outros bairros judeus. Sofremos bastante devido ao que aconteceu naquela estação ferroviária. — Lançou-lhe um olhar perscrutador, como se tentasse avaliar se fora mesmo aquele homem que vira nos jornais e na televisão. — Mas também sofreu, não foi? É verdade que a sua mulher esteve envolvida?

O tom direto da pergunta surpreendeu Gabriel. O seu primeiro instinto foi mentir, ocultar, levar mais uma vez a conversa para outro terreno. Mas tratava-se de um recrutamento — e Shamron dizia sempre que um recrutamento perfeito é, em essência, uma sedução perfeita.

E quando se estava a seduzir, obrigou-se Gabriel a recordar-se, era preciso revelar algo pessoal.

— Raptaram a minha esposa para me atraírem para a Gare de Lyon explicou. — Pretendiam matar-nos a ambos, mas também queriam desacreditar Israel e tornar a vida insuportável para os judeus da França.

— E conseguiram... pelo menos durante algum tempo. Não me interprete mal, Monsieur Allon, a situação continua difícil para nós. Apenas não tão má como nos dias que se seguiram ao atentado. — Bebeu mais um pouco de vinho, depois cruzou as pernas e alisou as pregas da saia. — Isto pode soar tolo, quando pensamos para quem trabalha, mas como descobriu o meu Van Gogh? Gabriel ficou em silêncio por um instante e depois respondeu-lhe com sinceridade. A menção da visita de Isherwood àquele apartamento havia mais de trinta anos fez com que esboçasse um vago sorriso de recordação. — Acho que me lembro dele — disse. — Um homem alto, muito elegante, cheio de charme e de graciosidade, mas, ao mesmo tempo, um tanto ou quanto vulnerável.

— Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Tal como o senhor.

— Charme e graciosidade são qualidades que raramente me atribuem. — E vulnerabilidade? — Ofereceu-lhe mais um sorriso breve, que lhe aliviou a seriedade do rosto. — Todos nós somos vulneráveis até certo ponto, não é verdade? Até mesmo alguém como o senhor? Os terroristas descobriram o seu ponto fraco e exploraram-no. É o que fazem de melhor. Exploram a nossa decência.

O nosso respeito pela vida. Atacam o que nos é mais caro. Navot tinha razão, pensou Gabriel. Ela era uma dádiva dos deuses da inteligência. Pousou o copo sobre a mesa de centro. Os olhos de Hannah seguiram os movimentos.

— O que aconteceu a esse homem, Samuel Isakowitz? — perguntou Hannah. — Conseguiu se salvar?

Gabriel abanou a cabeça.

— Ele e a mulher foram capturados em Bordeaux, quando os alemães se deslocaram para o sul.

— Para onde foram enviados?

— Sobibor.

Sabia o que isso significava. Gabriel não precisava dizer mais nada.

— E seu avô? — perguntou ele.

Hannah olhou para o Sancerre por um momento, antes de responder.

— Jeudi Noir — disse. — Conhece o termo?

Gabriel aquiesceu com solenidade. Jeudi Noir. Quinta-Feira Negra. — Na manhã do dia 16 de Julho de 1942, quatro mil agentes da Polícia francesa invadiram Marais e outros bairros judeus de Paris, com ordens para deter vinte e sete mil judeus imigrantes da Alemanha, da Áustria, da Polônia, da União Soviética e da Checoslováquia. Meu pai e os meus avós estavam na lista. Sabe, os meus avós eram de Lublin, na Polónia. Os dois polícias que bateram à porta deste apartamento tiveram pena do meu pai e disseram-lhe que fugisse. Uma família católica que vivia no andar de baixo acolheu-o e aí ficou até a libertação. Os meus avós não tiveram a mesma sorte. Foram enviados para o campo de detenção de Drancy. Cinco dias depois, partiram num vagão selado para

Auschwitz. É claro que foi o seu fim.

— E o Van Gogh?

— Não houve tempo para tomar providências, e não havia ninguém em Paris em quem o meu avô pudesse confiar. Estávamos em guerra, sabe. As pessoas traíam-se por meias e por cigarros. Quando ouviu dizer que estavam a prender os judeus, retirou a pintura do esticador e escondeu-a por baixo de uma tábua do soalho da biblioteca. Depois da guerra passaram-se anos até que o meu pai conseguisse recuperar o apartamento. Uma família francesa tinha-se mudado para cá depois de os meus avós terem sido presos, e não estavam dispostos a abdicar de um bom apartamento na rue Pavée. Não se podia censurá-los.

— Em que ano o seu pai recuperou a posse da casa?

— Em 1952.

— Dez anos — disse Gabriel. — E o Van Gogh ainda lá estava?

— Tal como o meu avô o deixara, escondido debaixo do soalho da biblioteca.

— Espantoso.

— Sim — concordou. — O quadro está na família Weinberg há mais de um século, atravessou a guerra e o Holocausto. E agora está a pedir-me para abrir mão dele.

— Não quero que abra mão da pintura — asseverou Gabriel.

— Então de que se trata?

— Apenas preciso de... — Fez uma pausa, em busca da palavra correta. — Preciso alugá-lo.

— Alugar? Durante quanto tempo?

— Não lhe sei dizer. Talvez um mês. Talvez seis meses. Talvez um ano, ou mais. — com que objetivo?

Gabriel não estava preparado para responder. Pegou a rolha e usou a unha do polegar para arrancar uma lasca.

— Sabe quanto vale aquele quadro? — indagou Hannah. — Se está pedindo que o ceda, mesmo que por pouco tempo, creio que tenho o direito de saber o motivo.

— É verdade — concordou Gabriel —, mas também deve saber que se lhe contar a verdade sua vida nunca mais será a mesma.

Hannah serviu-se de mais vinho e segurou o copo de encontro ao corpo por um momento, sem o beber.

— Há dois anos, houve um ataque particularmente violento aqui em Marais. Um menino ortodoxo foi emboscado por um bando de norte-africanos, quando ia para casa. Pegaram-lhe fogo ao cabelo e gravaram-lhe uma suástica na testa. Ainda tem a cicatriz. Organizamos uma manifestação com o objetivo de pressionar o Governo francês a fazer alguma coisa quanto ao antissemitismo. Quando nos manifestávamos na place de la Republique, houve uma contramanifestação anti-israelense. Sabe o que eles nos gritavam?

— Morte aos judeus.

— E sabe o que disse o presidente francês?

— Não há antissemitismo na França.

— Desde esse dia, a minha vida nunca mais foi a mesma. Além disso, como já deve ter percebido, sei guardar um segredo. Diga-me para que quer o meu Van Gogh, Monsieur Allon. Talvez possamos chegar a um acordo.

A van de vigilância neviot estava estacionada junto ao Parc Royal. Uzi Navot bateu duas vezes com os nós dos dedos no vidro traseiro espelhado e a porta foi-lhe aberta de imediato. Um agente neviot estava sentado ao volante. O outro estava nas traseiras, curvado sobre uma consola eletrônica com um par de fones nos ouvidos. — O que há? — perguntou Navot.

— Gabriel já a conquistou — respondeu o neviot. — E agora vai cair matando.

Navot colocou os fones e ouviu Gabriel contar a Hannah Weinberg a forma como usaria o Van Gogh para localizar o homem mais perigoso do mundo. A chave estava guardada na gaveta de cima da secretária da biblioteca. Hannah utilizou-a para destrancar a porta ao fundo do corredor escuro. A divisão atrás da porta era um quarto de criança. O quarto de Hannah imobilizado no tempo, pensou Gabriel. Uma cama de dossel com pálio de renda. Prateleiras repletas de animais de pelúcia e brinquedos. Um poster de um ator americano charmoso. E, pendurado sobre uma cômoda provençal francesa, envolto nas sombras profundas, um quadro perdido de Vincent van Gogh.

Gabriel avançou lentamente e deteve-se à frente dele, a mão direita no queixo, a cabeça um pouco inclinada. Depois estendeu a mão e tocou de leve nas pinceladas sumptuosas. Eram de Vincent — Gabriel tinha certeza. Vincent em chamas. Vincent apaixonado. O restaurador avaliou calmamente o alvo. O quadro parecia nunca ter sido limpo. Estava coberto por uma leve camada de sujidade e apresentava três rachas horizontais — resultado, imaginou Gabriel, de ter sido enrolado com demasiada força por Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. — Imagino que devamos falar sobre o dinheiro — comentou Hannah. — Quanto pensa o Julian que vai render?

— À volta de oitenta milhões. Permiti que retirasse uma comissão de dez por cento, como compensação pelo papel na operação. O restante dinheiro será de imediato transferido para si.

— Setenta e dois milhões de dólares?

— Mais milhão, menos milhão, é claro. E quando a operação terminar?

— Recupero o quadro. — Como pretende fazê-lo?

— Deixe isso comigo, Mademoiselle Weinberg.

— E o que acontece aos setenta e dois milhões, quando me devolver o quadro? Mais milhão, menos milhão, é claro.

— Pode ficar com os juros acumulados. Para além disso, vou pagar-lhe uma taxa de aluguer. O que acha de cinco milhões de dólares?

Hannah sorriu.

— Parece-me bem, mas não pretendo ficar com o dinheiro para mim. Não quero o dinheiro deles.

— Nesse caso, o que tenciona fazer? Hannah explicou-lhe.

— Parece-me muito bem — replicou Gabriel. — Negócio fechado, Mademoiselle Weinberg?

— Sim — assentiu ela. — Negócio fechado.

Depois de sair do apartamento de Hannah Weinberg, Gabriel dirigiu-se a uma casa de segurança do Escritório, perto do Bois de Boulogne. Vigiaram-na durante três dias. Gabriel apenas a viu nas fotografias de vigilância e só ouviu a sua voz nas gravações. Todas as noites as escutava, em busca de sinais de traição, ou de indiscrição, mas apenas encontrou fidelidade. Na véspera do dia em que deveria entregar o quadro, ouviu-a a chorar baixinho e percebeu que se despedia de Marguerite.

Na manhã seguinte, Navot trouxe o quadro, enrolado numa manta velha que viera do apartamento de Hannah. Gabriel chegou a pensar em enviá-lo para Tel Aviv através de um correio, mas acabou por decidir ser ele próprio a levá-lo da França. Retirou-o da moldura e depois soltou a tela da armação. Quando a enrolou cuidadosamente, pensou em Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. Agora, em vez de escondida por baixo do soalho, estava oculta em segurança por baixo do forro falso da mala de Gabriel. Navot levou-a à Gare du Nord. Um agente da Estação de Londres estará à espera em Waterloo — disse Navot. — Ele o leva a Heathrow. El Al está à espera. Vão garantir que não tenha problema com a bagagem.

— Obrigado, Uzi. Não demora e vai deixar de me fazer preparativos para as viagens.

— Eu não teria assim tanta certeza.

— As coisas não correram bem com Amos?

— Ele é muito fechado.

— O que disse ele?

— Disse que precisava de uns dias para pensar.

— Não estava esperava que ele te oferecesse o cargo de mão beijada, certo?

— Nem sei o que esperava.

— Não se preocupe, Uzi. Vai ficar com o cargo.

Navot parou no acostamento, a um quarteirão da estação.

— Pode dar uma palavrinha por mim na King Saul, Gabriel? Amos gosta de você.

— O que leva você a dizer isso?

— É fácil de ver — explicou-lhe. — Todos gostam de você.

Gabriel saiu do carro, retirou a mala do banco traseiro e desapareceu no interior da estação. Navot esperou na beira até cinco minutos depois da hora da partida de Gabriel. Depois arrancou para o meio do trânsito e afastou-se.

Quando Gabriel chegou, o apartamento estava às escuras. Acendeu uma lâmpada e ficou aliviado ao ver o estúdio intato. Entrou no quarto e viu Chiara sentada na cama. Lavara o cabelo e o prendera com um elástico de veludo. Gabriel retirou-o e desabotoou sua camisola. Enquanto faziam amor, o quadro ficou a seu lado.

— Sabe — comentou Chiara —, a maior parte dos homens volta de Paris com um lenço Hermès e um perfume.

À meia-noite, o telefone tocou. Gabriel atendeu antes do segundo toque. — Estarei lá amanhã — disse, após um momento, e desligou.

— Quem era? — perguntou Chiara. — Adrian Carter.

— O que ele queria?

— Quer que vá imediatamente para Washington.

— O que há em Washington?

— Uma garota — explicou Gabriel. — Carter encontrou a garota.

16

MCLEAN, VIRGÍNIA

— Como foi o voo?

— Nunca mais acabava.

— São as correntes de jato do outono — explicou Carter, com um certo pedantismo. — Atrasa pelo menos duas horas os voos da Europa para a América.

— Israel não fica na Europa, Adrian. Israel fica no Oriente Médio.

— Sério?

— Pergunte a seu diretor de informações. Ele esclarece a confusão.

Carter lançou um olhar de desdém a Gabriel, ao que devolveu a atenção à estrada. Dirigiam-se a Washington no Volvo amolgado de Carter, através da Dulles Access Road. Carter vestia um casaco de bombazina com remendos nos cotovelos, o que reforçava a imagem acadêmica. Só lhe faltava o saco de lona para os livros e a caneca personalizada. Conduzia bem abaixo do limite de velocidade e olhava com frequência para o espelho retrovisor.

— Estamos a ser seguidos? — perguntou Gabriel.

— Polícia de trânsito — explicou Carter. — São fanáticos, nesta estrada. Algum problema com o controle do passaporte?

— Nenhum — respondeu Gabriel. — Por acaso, pareciam muito contentes por me verem.

Era algo que Gabriel nunca compreendera em relação à América

— a cordialidade dos agentes de fronteira. Sempre vira algo de reconfortante no mau humor enfadado dos israelenses que carimbavam passaportes no Aeroporto Ben-Gurion. Os funcionários aduaneiros americanos eram demasiado cordiais. Olhou pela janela. Tinham deixado a Dulles Access Road e seguiam agora por McLean. Apenas estivera uma vez na Virgínia, para uma visita breve a uma casa de segurança da CIA, nas profundezas da terra dos cavalos, perto de Middleburg. Considerou McLean o típico subúrbio americano, limpo e próspero, mas com uma certa falta de vida. Atravessaram o bairro comercial da baixa e depois entraram numa secção residencial com grandes casas que pareciam saídas de um panfleto imobiliário. Os empreendimentos tinham nomes como Merrywood e Colonial Estates. Um sinal rodoviário flutuou na sua direção: CENTRO DE INFORMAÇÃO GEORGE BUSH.

— Não vais levar-me à sede, certo?

— É claro que não — garantiu Carter. — Vamos para o Bairro.

Gabriel sabia que o Bairro era a forma como os habitantes de Washington se referiam à pequena aldeia no Potomac. Cruzaram um viaduto sobre a autoestrada e entraram numa zona de encostas e matas densas. Por entre as árvores, Gabriel avistou casas imponentes em frentes ao rio.

— Como se chama?

— Sarah Bancroft — respondeu Carter. — O pai era executivo da divisão internacional do Citibank. Cresceu quase sempre na Europa. Ao contrário da maioria dos americanos, sente-se confortável no estrangeiro. Fala algumas línguas estrangeiras. Sabe usar os talheres na altura correta.

— Estudos?

— Regressou à América para fazer o curso superior. Licenciou-se em História da Arte em Dartmouth, e depois estudou no Courtauld Institute of Art, em Londres. Imagino que conheças o Courtauld?

Gabriel anuiu. Era uma das mais prestigiadas escolas de arte do mundo. Nele tinham-se formado nomes como um certo negociante de arte de St. James chamado Julian Isherwood.

— Depois do Courtauld, fez um doutorado em Harvard prosseguiu Carter. — Agora é conservadora do Phillips Colletion, em Washington. É um pequeno museu, perto de...

— Eu conheço o Phillips Colletion, Adrian.

— Desculpe — lamentou-se Adrian, sinceramente. Um veado surgiu de entre as árvores e cruzou-se no caminho do carro. Adrian levantou o pé do acelerador e observou o animal a desaparecer em silêncio na mata escura.

— Como ficaram sabendo dela? — perguntou Gabriel, mas Carter não respondeu. Estava inclinado sobre o volante, a perscrutar as árvores ao longo da estrada, à procura demais veados.

— Quando aparece um — explicou —, normalmente há mais.

— Como os terroristas — comentou Gabriel. Repetiu a pergunta.

— Ela candidatou-se aos nossos serviços poucos meses depois do onze de Setembro — explicou Carter. — Tinha acabado o doutorado. Parecia interessante na ficha, por isso a chamamos e entregamos aos psiquiatras do RH. Interrogaram-na e não gostaram do que viram. Independente demais, foi o que disseram. Talvez até um pouco inteligente demais para seu próprio bem. Quando a recusamos, foi parar no Phillips. — Estás a oferecer-me uma das suas rejeitadas?

— Não é um termo que se aplique a Sarah Bancroft. — Carter retirou uma fotografia do bolso do casaco, que entregou a Gabriel. Sarah Bancroft era uma mulher extremamente bonita, de cabelo louro à altura dos ombros, maçãs do rosto largas e olhos grandes da cor de um céu límpido de Verão.

— Idade?

— Trinta e um.

— Por que não é casada?

Carter hesitou por um momento.

— Por que não é casada, Adrian?

— Teve um namorado em Harvard, um jovem advogado chamado Ben Callahan. As coisas acabaram mal.

— O que aconteceu com Ben?

— Pegou um avião para Los Angeles no Logan Airport na manhã do 11 de setembro de 2001.

Gabriel estendeu a fotografia a Carter.

— Zizi não vai contratar alguém que tenha sido afetado pelo Onze de Setembro. Trouxe-me aqui para nada, Adrian.

Carter manteve as mãos no volante.

— Ben Callahan era um namorado de escola, não era um marido. Além disso, Sarah nunca fala sobre ele com ninguém. Quase tivemos de arrancar essa informação. Ela receava que a morte do Ben a perseguisse para o resto da vida, que as pessoas a tratassem como se fosse uma viúva aos vinte e seis anos. Ela não fala no assunto. Esta semana demos por aí uma olhada. Ninguém sabe.

— Os cães de guarda de Zizi vão fazer mais do que dar uma vista de olhos, Adrian. E se lhes der o cheiro do onze de Setembro, ele vai fugir dela a sete pés. — Por falar em Zizi, a casa dele é já ali à frente.

Carter reduziu para fazer uma curva. Um enorme portão de segurança em ferro e tijolo surgiu-lhes à esquerda. Por detrás do portão, um extenso caminho de acesso alcatroado subia até uma imponente mansão em frente ao rio. Gabriel desviou o olhar quando passaram pela propriedade.

— Zizi nunca vai ficar a saber do Ben — garantiu Carter. — Estás disposto a apostar a vida da Sarah quanto a isso?

— Fala com ela, Gabriel. Dá-me a tua opinião. -Já sei qual é a minha opinião.

Ela é perfeita.

— Então qual é o problema?

— Se cometermos um erro que seja, Zizi vai dar cabo dela. É esse o problema, Adrian.

A rapidez com que chegaram ao centro de Washington surpreendeu Gabriel. Num momento estavam numa estrada rural de duas vias, no extremo do vale do Potomac, e no outro arrastavam-se pela Q Street, no meio da hora de ponta de Georgetown. Assumindo o papel de guia turístico, Carter disse as casas dos residentes mais conhecidos do bairro. Com a cabeça encostada ao vidro, Gabriel nem sequer era capaz de reunir energias para fingir estar interessado. Atravessaram uma ponte curta, guardada em cada extremidade por um par de enormes búfalos manchados, e entraram na zona diplomática da cidade. Logo a seguir à Massachusetts Avenue, Carter apontou para uma estrutura atorreada de tijolo, do lado esquerdo da rua.

— Aquele é o Phillips — disse Adrian, prestativo. Gabriel olhou para a direita e viu uma versão em bronze de Mohandas Gandhi a caminhar num parque triangular minúsculo. Porquê Gandhi? interrogou-se. O que teriam os ideais do Mahatma que ver com aquele centro de poder americano?

Carter percorreu mais um quarteirão e estacionou na zona diplomática reservada à frente de uma embaixada latino-americana de aspeto banal. Deixou o motor ligado e não deu indicação de pretender sair do carro.

— Esta zona da cidade chama-se Dupont Circle — explicou, ainda à laia de guia turístico. — É o que pretende ser a vanguarda de Washington.

Um agente da Divisão Uniformizada do Serviço Secreto bateu ao vidro de Carter e fez-lhe sinal para seguir viagem. Sempre a olhar em frente, Carter encostou a identificação ao vidro e o agente regressou ao carro patrulha. Momentos depois, algo no espelho retrovisor chamou a atenção de Carter.

— Aí vem ela — disse.

Gabriel olhou pela janela quando Sarah Bancroft passou por eles, vestindo um sobretudo comprido de cintura estreita. Tinha uma pasta de pele numa mão e um celular na outra. Gabriel ouviu-lhe a voz quando ela passou. Grave, sofisticada, um toque de pronúncia inglesa — remanescente, sem dúvida, do tempo passado em Courtauld, e de uma infância vivida em escolas internacionais no estrangeiro.

— O que acha? — perguntou Carter.

— Já te digo.

Chegou à esquina da Q Street com a 20th Street. Na esquina oposta ficava uma praça repleta de vendedores ambulantes e com um par de escadas rolantes que davam na estação de metrô de Dupont Circle. O semáforo de Sarah estava vermelho. Sem parar, desceu do passeio e começou a atravessar a estrada. Quando um taxista buzinou em protesto, ela lançou-lhe um olhar capaz de derreter gelo e prosseguiu com a conversa. Depois cruzou lentamente o passeio e entrou na escada rolante descendente. Com admiração, Gabriel observou-a a desaparecer de vista.

— Tem mais alguma como ela?

Carter tirou um celular do bolso e marcou um número.

— Vamos embora — disse. Momentos depois, uma grande Suburban preta contornou a esquina e estacionou ilegalmente na Q Street, em frente às escadas rolantes. Cinco minutos mais tarde, Gabriel voltou a vê-la, desta vez a surgir lentamente das profundezas da estação de metro. Já não estava a falar ao telefone, nem se encontrava sozinha. Era acompanhada por dois agentes de Carter, um homem e uma mulher, um em cada braço, para o caso de ela mudar repentinamente de ideias. A porta traseira da Suburban abriu-se e Sarah Bancroft desapareceu. Carter ligou o motor e regressou a Georgetown.

17

 

GEORGETOWN

A Suburban preta deteve-se quinze minutos mais tarde à porta de uma casa de estilo federal em N Street. Quando Sarah subiu os degraus curvos de tijolo, a porta abriu-se de repente e uma figura surgiu nas sombras do pórtico. Vestia calça caqui e jaqueta com remendos nos cotovelos. O olhar denotava um curioso distanciamento clínico que lembrou a Sarah o terapeuta que consultara após a morte de Ben.

— Chamo-me Carter — apresentou-se, como se disso se tivesse lembrado de súbito. Não disse se era o nome próprio ou o apelido, apenas que era verdadeiro. — Já não uso nomes esquisitos — explicou. — Agora pertenço à Sede.

Sorriu. Era um sorriso artificial, como o foi o breve aperto de mão. Convidou-a a entrar e, mais uma vez, conseguiu transmitir a ideia de uma inspiração súbita.

— E você é a Sarah — informou-a, enquanto a guiava pelo vasto salão central. — Sarah Bancroft, conservadora do conceituado Phillips Colletion. Sarah Bancroft, que num ato de coragem nos ofereceu os seus serviços depois do onze de Setembro, mas que foi recusada e a quem lhe disseram que não fazia falta.

Como vai o seu pai?

Sarah ficou surpreendida com a repentina mudança de assunto.

— Conhece o meu pai?

— Nunca nos encontramos. Trabalha para a Citicorp, não é?

— Sabe muito bem para quem ele trabalha. Por que me pergunta?

Por onde anda ele? Londres? Bruxelas? Hong Kong? Paris — respondeu. — É a última comissão. Vai reformar-se para o ano que vem.

— E depois volta para casa? Sarah abanou a cabeça.

— Vai ficar em Paris. Com a nova mulher. Os meus pais divorciaram-se há dois anos. Ele voltou a casar-se de imediato. Para ele, tempo é dinheiro.

— E a sua mãe? Onde está ela?

— Em Manhattan.

— Costuma ver o seu pai?

— Festas. Casamentos. O típico almoço constrangedor, sempre que ele vem à América. O divórcio dos meus pais foi mau. Todos tomaram partidos, incluindo os filhos. Por que está a fazer-me essas perguntas? O que pretende de...

— Acredita nisso? — atalhou Carter.

— Acredito no quê? — Em tomar partidos.

— Acho que depende das circunstâncias. Isto faz parte dos testes? Pensei que tivesse chumbado nos testes.

— E chumbou — garantiu Carter. — Redondamente. Entraram na sala. Estava mobilada com a elegância formal mas anônima normalmente reservada às suítes dos hotéis. Carter ajudou-a a despir o casaco e convidou-a a sentar-se.

— Nesse caso, por que voltei?

— Este é um mundo fluido, Sarah. As coisas mudam. Diga-me uma coisa, em que circunstâncias julga que é correto tomar partidos?

— Nunca pensei muito no assunto.

— Claro que pensou — contrapôs Carter e, pela segunda vez, Sarah viu o terapeuta, sentado no cadeirão de motivos florais, com a caneca de cerâmica equilibrada no joelho, levando-a a visitar locais onde ela preferia não entrar. — Vamos, Sarah — dizia Carter. — Dê-me um exemplo em que acredite que se deve tomar partidos.

— Acredito no bem e no mal — respondeu, erguendo um pouco o queixo. — O que talvez sirva para explicar o motivo por que chumbei nos testes. O seu mundo é em tons de cinzento. Em geral, vejo as coisas a preto e branco.

— Foi isso que o seu pai lhe disse? era Ben quem a acusava dessa falha.

— Qual o objetivo disto? — perguntou. — Por que estou aqui? Mas Carter continuava a analisar as implicações da última resposta.

— E quanto aos terroristas? — perguntou, e Sarah ficou mais uma vez com a impressão de que o homem acabara de pensar na questão. — É sobre isso que me questiono. Como eles se encaixam no mundo do bem e do mal da Sarah Bancroft? Serão maus, ou será que a sua causa é legítima? Seremos vítimas inocentes, ou será que fomos nós que provocamos esta calamidade? Devemos ficar sentados e aguentar, ou teremos o direito de lhes resistir com toda a nossa força e raiva?

— Sou conservadora-assistente do Phillips Colletion — disse-lhe.

— Quer mesmo que teça considerações sobre a moral do contraterrorismo?

— Nesse caso, vamos restringir a nossa questão. Sempre me pareceu útil fazê-lo. Vejamos como exemplo o homem que levou o avião do Ben contra o World Trade Center. — Carter fez uma pausa. — Recorde-me, Sarah, em que avião estava Ben?

— Sabe muito bem em que avião ele estava — retorquiu. — No Voo 175 da United.

— Que era pilotado por...

— Marwan al-Shehhi.

— Imaginemos por um momento que Marwan al-Shehhi conseguiu sobreviver. Eu sei que é uma loucura, Sarah, mas acompanhe meu raciocínio. Imagine que ele conseguiu voltar ao Afeganistão ou ao Paquistão ou a qualquer outro santuário terrorista. Imagine que sabíamos quem era. Deveríamos enviar o FBI com um mandado de captura, ou deveríamos tratar dele de modo mais eficaz? Homens de negro? Forças especiais? Um míssil Hellfire lançado de um drone?

— Creio que sabe o que faria.

— Imagine que desejo ouvi-lo de sua boca, antes de continuarmos.

— Os terroristas declararam guerra — acusou Sarah. — Atacaram nossas cidades, mataram os nossos cidadãos e tentaram prejudicar a estabilidade do nosso governo.

— Nesse caso, o que deveríamos fazer?

— Deviam ser enfrentados com dureza.

— E o que significa isso?

— Homens de negro. Forças especiais. Um míssil Hellfire lançado de um drone.

— E quanto ao homem que lhes dê dinheiro? Será igualmente culpado? E, se assim for, até que ponto?

— Talvez dependa de ele saber para que serve esse dinheiro.

— E se ele soubesse muito bem para que serve esse dinheiro?

— Nesse caso, é tão culpado como o homem que jogou o avião na torre.

— Estaria confortável, ou mesmo justificada, em agir contra tal indivíduo?

— Ofereci ajuda há cinco anos — acusou, com um tom de desprezo. — Disseram que não era adequada para este tipo de trabalho. E agora querem minha ajuda?

Carter não pareceu abalado com o protesto. Sarah sentiu uma empatia súbita pela mulher daquele homem.

— Ofereceu ajuda e nós a tratamos de uma forma miserável. Receio que sejamos muito bons nisso. Queria poder dizer o quanto estávamos errados. Talvez pudesse confortá-la com um pedido de desculpas falso. Mas sinceramente, Miss Bancroft, não há tempo. — A voz apresentava agora um tom que até então estava ausente. — Assim sendo, acho que preciso de uma resposta direta. Ainda quer ajudar? Quer combater os terroristas, ou prefere voltar a sua vida e esperar que não volte a acontecer?

— Combater? — indagou Sarah. — Certamente há pessoas mais indicadas para isso.

— Há muitas formas de combate, Sarah.

A jovem hesitou. Carter acentuou o silêncio repentino com uma observação prolongada das próprias mãos. Não era o tipo de homem que repetia perguntas. Nesse aspeto, era muito parecido com o pai dela.

— Sim — acabou por dizer. — Quero.

— E se para isso tivesse de trabalhar com uma agência de espionagem que não a CIA? — perguntou Carter, como se debatesse uma teoria abstrata. — Uma agência bastante próxima de nós na luta contra o terrorismo islâmico? — E qual seria essa agência?

Carter era bom a esquivar-se a perguntas e voltou a prová-lo.

— Gostaria que conhecesse uma pessoa. É um homem sério. Uma espécie de diamante em bruto. Vai colocar-lhe algumas questões. Na verdade, vai interrogá-la durante algumas horas. Por vezes talvez se torne um pouco pessoal. Se gostar do que vir, vai pedir-lhe que nos ajude num empreendimento muito importante. Não é isento de riscos, mas é essencial para a segurança dos Estados Unidos, e tem o nosso apoio incondicional. Se estiver interessada, permaneça onde está. Caso contrário, saia, e fingimos que entrou aqui por acaso.

Sarah nunca saberia ao certo a forma como Carter o chamara, ou de onde surgira. Era pequeno e magro, com cabelo muito curto e têmporas grisalhas. Tinha os olhos mais verdes que Sarah alguma vez vira. Tal como o de Carter, o aperto de mão foi breve, mas analisador, como o toque de um médico. Falava um inglês fluente, mas com uma pronúncia cerrada. Se tinha nome, não era relevante. Instalaram-se na mesa comprida da sala de jantar formal, Carter e o colaborador anônimo de um lado, e Sarah do outro, como se de um suspeito numa sala de interrogatório se tratasse. O colaborador detinha agora a posse do seu dossiê da CIA. Folheava lentamente as páginas, como se as visse pela primeira vez, o que ela duvidava fosse o caso. A primeira questão foi-lhe apresentada com um leve tom acusatório.

— A sua dissertação para o doutorado em Harvard teve como tema os expressionistas alemães.

Parecia um ponto estranho para começar. Sentiu-se tentada a perguntar qual o interesse no tema da dissertação, mas limitou-se a acenar com a cabeça e a responder:

— Sim, exatamente. Deparou-se com um homem chamado Viktor Frankel, durante a sua pesquisa?

— Era discípulo de Max Beckmann — disse Sarah. — Hoje em dia Frankel é pouco conhecido, mas na altura era considerado de extrema influência e era tido em muito boa consideração pelos contemporâneos. Em 1936, os nazistas consideraram seu trabalho degenerado e foi proibido de continuar a pintar. Infelizmente, decidiu permanecer na Alemanha. Quando resolveu partir, era demasiado tarde. Foi deportado para Auschwitz em 1942, juntamente com a esposa e com a filha adolescente, Irene. Apenas Irene sobreviveu. Foi para Israel depois da guerra e tornou-se uma das artistas mais influentes do país nas décadas de cinquenta e sessenta. Acho que morreu há alguns anos.

— Exatamente — asseverou o colaborador de Carter, os olhos ainda no dossiê de Sarah.

— Por que ficou interessado em Viktor Frankel?

— Porque era meu avô.

— É filho da Irene?

— Sim. Irene era minha mãe.

Sarah olhou para Carter, que fitava as próprias mãos.

— Acho que sei quem comanda este seu empreendimento. Voltou a dirigir a atenção para o homem de têmporas grisalhas e olhos verdes. — É israelense.

— Sou culpado desse crime. Continuamos, Sarah, ou prefere que eu saia?

Sarah hesitou por um instante, e depois anuiu.

— Posso ter um nome, ou são proibidos?

O colaborador deu-lhe um nome. Era vagamente familiar. E então lembrou-se de onde o vira. O agente israelense que esteve envolvido no atentado na Gare de Lyon, em Paris... — Foi o homem que...

— Sim — atalhou ele. — Fui eu.

Voltou a olhar para o dossiê e virou a página.

— Mas voltemos a você, está bem? Temos muito que fazer e estamos limitados de tempo.

Começou lentamente, um montanhista a abrir caminho nos contrafortes, a guardar as forças para os perigos invisíveis que o esperavam mais à frente. As questões eram breves, eficientes e apresentadas de forma metódica, como se as lesse de uma lista previamente elaborada, o que não era o caso. Dedicou a primeira hora à família. O pai, o importante executivo da Citicorp, que não dispusera de tempo para os filhos, mas encontrara muito para outras mulheres. A mãe, cuja vida se desmoronara após o divórcio e que vivia agora como uma eremita, no seu apartamento de Manhattan, na Quinta Avenida. A irmã mais velha, que Sarah descreveu como "aquela que ficou com a inteligência e com a beleza". O irmão mais novo, que abandonara a família cedo e que naquele momento, para desapontamento do pai, trabalhava por um ordenado mísero numa loja de aluguer de esquis, algures no Colorado.

Depois da família, a hora seguinte foi dedicada em exclusivo à dispendiosa educação na Europa. A jovem americana em St. Johns Wood, onde completara a escola primária.

A escola internacional de Paris, onde aprendera a falar francês e a meter-se em sarilhos. O internato feminino nos arredores de Genebra, onde fora encarcerada pelo pai, com o objetivo de "pôr a cabeça no lugar". Fora na Suíça, adiantou Sarah de moto próprio, que descobrira a paixão pela arte. Cada resposta era recebida pelo arranhar da caneta. Escrevia com tinta vermelha num bloco de folhas da cor dos girassóis. Ao início, Sarah julgou que ele escrevia em estenografia, ou com algum tipo de hieróglifos. Depois percebeu que tirava notas em hebraico. O fato de estar a escrever da direita para a esquerda, e de escrever com a mesma rapidez com ambas as mãos, apenas servia para aprofundar a sensação de que atravessara para o outro lado do espelho.

Por vezes, era como se ele dispusesse de todo o tempo do mundo. De outras vezes, lançava olhares ao relógio de pulso e franzia o sobrolho, como se calculasse até onde poderia avançar, antes de fazer alto para a noite. A espaços, utilizava outras línguas. O francês era muito bom. O italiano era impecável, embora dotado de um vago sotaque que traía o fato de não ser falante nativo. Quando se dirigiu a Sarah em alemão, verificou-se uma mudança. As costas endireitaram-se. As feições severas endureceram. Sarah respondeu-lhe na língua da questão, mesmo tendo as palavras sido registradas em hebraico no bloco amarelo. Em geral não a pôs em causa, embora quaisquer inconsistências, reais ou imaginadas, fossem avaliadas com um zelo inquisitorial.

— Esta paixão pela arte — referiu ele. — Como julga que começou? Porquê arte?

Por que não literatura, ou música? Por que não cinema, ou drama?

— Os quadros viraram refúgio. Um santuário.

— Do quê?

— Da vida real.

— Era uma menina rica das melhores escolas da Europa.

O que havia de mal com sua vida? — Mudou do inglês para o alemão no meio da frase.

— Fugia do quê?

— Está me julgando — respondeu Sarah, na mesma língua.

— É claro.

— Podemos falar em inglês?

— Se tiver de ser.

— Os quadros são outros mundos. Outras vidas. Um instante no tempo que existe na tela e em mais lado nenhum. — Gosta de habitar esses locais.

Foi uma observação e não uma pergunta. Sarah aquiesceu em resposta. — Gosta de viver outras vidas? Assumir outras personalidades? Gosta de passear através dos campos de trigo de Vincent, pelos jardins floridos de Monet?

— Até mesmo pelos pesadelos de Frankel.

A caneta foi colocada de lado pela primeira vez.

— Foi por isso que se candidatou à CIA? Porque queria ter outra vida? Porque queria transformar-se noutra pessoa?

— Não. Queria servir meu país.

Sarah recebeu um franzir de cenho reprovador, como se a resposta fosse ingênua. O colaborador olhou mais uma vez para o relógio. O tempo estava contra ele.

— Conheceu árabes enquanto crescia na Europa?

— Claro.

— Rapazes? Garotas?

— Ambos.

— Que tipo de árabe?

— Árabes com duas pernas. Árabes de países árabes.

— Você é mais inteligente do que isso.

— Libaneses. Palestinos. Jordanianos. Egípcios.

— E sauditas? Estudou com sauditas?

— Havia duas garotas sauditas na escola suíça.

— Eram ricas, essas garotas sauditas?

— Éramos todas ricas.

— Foi amiga delas?

— Era difícil conhecê-las. Afastavam-se muito. Eram reservadas.

— E os rapazes árabes?

— O quê?

— Foi amiga de algum?

— É possível.

— Chegou a namorar algum? Dormiu com algum?

— Não.

— Por que não?

— Acho que as minhas preferências não incluíam árabes.

— Teve namorados franceses?

— Alguns.

— Ingleses?

— Claro.

— Mas árabes não?

— Árabes não.

— Tem preconceito com árabes?

— Não seja ridículo.

— Nesse caso, é concebível que poderia ter namorado um árabe. Só por acaso não o fez.

— Espero que não peça para servir de isca com meu corpo, pois...

— Não seja ridícula.

— Então por que faz estas perguntas?

— Porque quero saber se estaria confortável num ambiente social e profissional com árabes.

— A resposta é sim.

— Não vê automaticamente um terrorista quando olha para um árabe?

— Não.

— Tem certeza. Sarah?

— Dependa do tipo de árabe em que se pensa.

Gabriel olhou para o relógio.

— Está ficando tarde — disse, para ninguém em especial. A pobre Sarah deve estar esfomeada. — Traçou uma linha vermelha grossa pela folha de hieróglifos. — Vamos encomendar comida, sim? Vai se sentir melhor depois de comer alguma coisa.

Encomendaram espetos de um restaurante no centro de Georgetown. A comida chegou vinte minutos depois, entregue pela mesma Suburban preta que trouxera Sarah três horas antes. Gabriel considerou a chegada como sinal para dar início à sessão da noite. Ao longo dos noventa minutos seguintes, concentrou-se na educação de Sarah e no seu conhecimento de história da arte. As perguntas sucediam-se tão rapidamente que ela mal teve tempo de comer. Quanto ao prato de Gabriel, permaneceu intato ao lado do bloco de notas amarelo. E um asceta, pensou Sarah. Não se deixa incomodar pelos alimentos. Vive num quarto vaio e subsiste com pão e algumas gotas de água por dia. Pouco depois da meia-noite, Gabriel levou o prato até a cozinha e deixou-o sobre a bancada. Quando regressou à sala de jantar, ficou alguns momentos de pé, atrás da cadeira, uma mão no queixo e a cabeça inclinada de leve. A luz do candelabro dera-lhe um tom esmeralda aos olhos, que a perscrutavam sem dó, como holofotes, já vê o cume, pensou Sarah. Está a preparar o assalto final.

— Pelo seu dossiê, vejo que é solteira.

— Exatamente.

— Está envolvida com alguém, neste momento?

— Não.

— Anda a dormir com alguém?

Sarah mirou Carter, que lhe respondeu com um olhar triste, como se dissesse, Eu avisei que as coisas podiam tornar-se pessoais.

— Não, não ando a dormir com ninguém.

— Por que não? — Já perdeu alguém que lhe fosse próximo?

A expressão sombria que lhe assomou o rosto, a par da mudança agitada de posição de Carter, alertou-a para o fato de estar a entrar em território proibido. — Sinto muito — desculpou-se. — Não queria...

— Imagino que seja por causa do Ben. O Ben é a razão para não estar envolvida com ninguém?

— Sim, é o Ben. É claro que é o Ben.

— Fale-me dele.

Sarah abanou a cabeça.

— Não — respondeu, em voz baixa. — Não vai saber sobre o Ben. Ele é meu. Ben não faz parte do acordo.

— Quanto tempo namoraram?

— Já lhe disse...

— Quanto tempo andou com ele, Sarah? É importante, ou não perguntaria.

— Uns nove meses.

— E depois terminou?

— Sim, terminou.

— Foi você que terminou a relação, não foi?

— Sim.

— Ben estava apaixonado por você. Ben queria se casar com você.

— Sim.

— Mas não sentia o mesmo. Não estava interessada em casamento. Talvez não estivesse interessada em Ben.

— Gostava muito dele...

— Mas?

— Mas não estava apaixonada.

— Fale-me sobre a morte dele.

— Não pode estar falando sério....

— Falo muito sério.

— Não falo sobre a morte dele. Nunca falo sobre a morte de Ben. Além disso, sabe muito bem como foi. Ben morreu às nove e três da manhã, hora do Leste, ao vivo, na televisão. O mundo inteiro viu Ben a morrer. Por acaso não viu?

— Alguns passageiros do Voo 175 conseguiram dar telefonemas.

— Verdade.

— O Ben foi um deles?

— Sim.

— Telefonou ao pai? — Não.

— Telefonou à mãe?

— Não.

— Ao irmão? À irmã?

— Não.

— Para quem ele telefonou, Sarah?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

— Telefonou para mim, seu filho da puta.

— O que disse ele?

— Disse que o avião tinha sido desviado. Disse que tinham matado os comissários. Disse que o avião fazia movimentos bruscos. Disse que me amava e que sentia muito. Estava prestes a morrer e pediu desculpas. E depois a ligação caiu.

— O que fez?

— Liguei a televisão e vi a fumaça saindo da Torre Norte do World Trade Center. Foi alguns minutos depois da colisão do Voo 11. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Telefonei para a FAA e contei sobre a ligação de Ben. Telefonei para o FBI. Telefonei para Polícia de Boston. Sentia-me tão impotente.

— E depois?

— Vi televisão. Esperei que o telefone voltasse a tocar. Não tocou. Às nove e três da manhã, hora de leste, o segundo avião colidiu com o World Trade Center. A Torre Sul estava em chamas. Ben estava queimando.

Uma lágrima única escorreu-lhe pela face. Sarah limpou-a e lançou um olhar furioso a Gabriel, — Está satisfeito?

Gabriel permaneceu em silêncio.

— Agora é a minha vez de fazer uma pergunta. Se não me responder com sinceridade, vou-me embora.

Pergunte-me o que quiser, Sarah. — O que pretende de mim?

— Queremos que se despeça do seu emprego no Phillips Colletion e que vá trabalhar para a Jihad Limitada. Continua interessada?

Ficou para Carter a tarefa de lhe apresentar o contrato. Carter, com a sua integridade puritana e o casaco de bombazina. Carter, com a sua atitude terapêutica e o inglês de pronúncia americana. Gabriel esgueirou-se como um gatuno na noite e atravessou a estrada até o Volvo amolgado de Carter. Sabia qual iria ser a resposta de Sarah. Já a tivera. A Torre Sul estava em chamas, dissera ela. O Ben estava a arder. E assim, Gabriel não ficou preocupado com a expressão de quem ia para a forca no rosto de Sarah quando, vinte minutos depois, saiu, estoica, da casa e desceu o lance de escadas até a van que a aguardava. Também não ficou incomodado com a visão de Carter, cinco minutos mais tarde, a atravessar lentamente a rua, como um cangalheiro a dirigir-se a um caixão. Sentou-se ao volante e ligou o motor.

— Há um avião em Andrews à espera para levá-lo de volta a Israel — disse. — Faremos uma parada no caminho. Há uma pessoa que quer dar uma palavrinha com você antes de partir.

Passava da meia-noite. A rua era dos caminhões de entregas noturnas e dos táxis. Carter seguia a uma velocidade acima do normal e olhava com frequência para o relógio.

— Ela não será barata, sabe. Vai ter um preço. Tem de ser realojada quando a operação terminar, e vai ser protegida por muito tempo.

— Mas vai tratar disso, não vai, Adrian? Você tem o dinheiro. O orçamento da espionagem americana é bem maior que o do nosso país inteiro.

— Esqueceu que esta operação não existe? Além disso, você vai ficar com muito dinheiro de Zizi.

— Certo — disse Gabriel. — Diga a Sarah Bancroft que ela vai passar os próximos dez anos num kibbutz na Galileia, escondida das forças da jihad global.

— Está bem, pagamos o realojamento.

Carter deu uma série de voltas. Por momentos, Gabriel perdeu a noção da rua em que se encontravam. Passaram pela fachada de um grande edifício neoclássico e depois entraram num acesso de aspeto oficial. À esquerda ficava uma guarita fortificada, com vidros à prova de bala. Carter baixou o vidro e entregou a identificação ao guarda.

— Estão a nossa espera.

O guarda consultou uma prancheta e depois devolveu a identificação de Carter. — Avancem e parem à frente da barricada à esquerda. Os cães vão dar a volta ao carro e depois podem entrar.

Carter aquiesceu e subiu o vidro. Gabriel perguntou:

— Onde estamos?

Carter contornou as barricadas e parou onde lhe tinha sido indicado.

— Na porta das traseiras da Casa Branca — explicou.

— com quem vamos falar? — indagou Gabriel, mas Carter trocava impressões com outro agente, que procurava controlar um grande pastor alemão que puxava a grossa coleira de couro. Gabriel, cujo pavor de cães era lendário no Escritório, permaneceu imóvel, enquanto o animal esquadrinhava cada centímetro do Volvo, em busca de explosivos ocultos. Momentos depois, atravessavam outro portão de segurança. Carter estacionou num lugar vago no Acesso Executivo Leste e desligou o motor.

— Só venho até aqui.

— com quem vou falar, Adrian?

— Entra por aquele portão e vai até a casa. Ele sai não tarda nada.

Os cães foram os primeiros a aparecer, dois terriers pretos que saíram disparados pela Entrada Diplomática como balas do cano de uma arma, e atacaram a calça de Gabriel. O presidente surgiu alguns segundos depois.

Avançou para Gabriel com a mão estendida, enquanto a outra gesticulava para que os terriers cessassem a investida. Os dois homens apertaram brevemente as mãos e depois começaram a percorrer o caminho que contornava o Gramado Sul. Os terriers lançaram mais um ataque aos tornozelos de Gabriel. Carter observou Gabriel a virar-se e a murmurar algumas palavras em hebraico que fizeram com que os cães procurassem o abrigo de um agente do Serviço Secreto.

A conversa durou apenas cinco minutos e pareceu a Carter que o presidente tomara conta das palavras. Moveram-se rapidamente, parando apenas uma vez para resolver o que parecera um pequeno desentendimento. Gabriel retirou as mãos dos bolsos e usou-as para ilustrar um argumento que tentava defender. De início, o presidente não pareceu convencido, mas depois aquiesceu e deu uma palmada forte nos ombros de Gabriel.

Completaram o circuito e separaram-se junto à Entrada Diplomática. Quando Gabriel começou a voltar ao estacionamento, os cães partiram atrás dele, mas rapidamente se viraram e correram para a Casa Branca, atrás do dono. Gabriel atravessou o portão aberto e entrou no carro.

— Como te pareceu ele? — perguntou Carter quando viraram para a 5th Street.

— Resoluto.

— Parece que chegaram a discutir.

— Diria que foi um desacordo político.

— Sobre o quê?

— Foi uma conversa privada, Adrian, e vai continuar assim.

— Bonito menino — disse Carter.

CONTINUA

11

LONDRES

— Como está o velhote? — perguntou Adrian Carter. Caminhavam lado a lado em Eaton Place, abrigados de um aguaceiro noturno debaixo do guarda-chuva de Carter. Tinham-se encontrado cinco minutos antes em Belgrave Square, como que por acaso. Carter envergava uma capa e segurava um exemplar do The Independent. Era ortodoxo, no que dizia respeito às regras do ofício. Segundo as piadas que corriam na sede em Langley, Adrian Carter deixava marcas de giz na cabeceira da cama sempre que queria fazer amor com a esposa.

— Continua inconsciente — respondeu Gabriel —, mas resistiu à noite e já não está perdendo sangue.

— Vai sobreviver?

— Ontem à noite, diria que não.

— E agora?

— Estou mais preocupado com as possíveis sequelas. Se ficar com lesões cerebrais, ou preso dentro de um corpo que não obedece... — A voz de Gabriel esmoreceu. — Para Shamron só há uma coisa na vida, o trabalho. Se não puder trabalhar, vai se sentir miserável... bem como todos os que o rodeiam.

— E as novidades? — Carter olhou discretamente para a porta da casa georgiana de número 24. — O apartamento fica ali. Vamos dar mais uma volta no quarteirão, sim? Gosto de seguir as regras.

— Não sabia, Adrian? A União Soviética acabou há anos. O KGB já desapareceu. Agora vocês e os russos são amigos.

— Cuidado nunca é demais, Gabriel.

— Seus rapazes da segurança não definiram um percurso para a identificação de vigilância?

— Não há rapazes, Gabriel.

— É uma casa de segurança da Agência?

— Não exatamente — observou Carter. — Pertence a um amigo.

— Um amigo da Agência?

— Na verdade, um amigo do presidente.

Carter puxou de leve a manga do blusão de Gabriel e conduziu-o pela rua escura. Percorreram lentamente Eaton Square, que estava em silêncio, exceto pelo murmúrio do trânsito noturno em Kings Road. Carter deslocava-se a um ritmo fastidioso, como um homem com um compromisso que preferia não ter de cumprir. Gabriel debatia-se com um único pensamento: por que razão o diretor delegado das operações da CIA desejava falar num local onde o seu próprio Governo não estivesse à escuta?

Regressaram a Eaton Place. Desta vez, Carter guiou Gabriel pelos degraus até a entrada na cave. Quando Carter introduziu a chave na fechadura, Gabriel levantou silenciosamente a tampa do balde do lixo e viu que este se encontrava vazio. Carter abriu a porta e entraram para o tipo de cozinha que os panfletos das agências imobiliárias descreviam como cozinha gourmet. As bancadas eram de granito e tinham uma iluminação agradável, fornecida por lâmpadas de halogêneo ocultas por baixo do armário feito sob medida. O chão era da pedra calcária de Jerusalém, tão apreciada pelos ingleses e americanos refinados que procuravam estabelecer uma ligação com as suas raízes mediterrânicas. Carter dirigiu-se à bancada de aço inoxidável e encheu a chaleira eléctrica com água. Não se deu ao trabalho de perguntar se Gabriel queria algo mais forte. Sabia que ele apenas bebia um copo de vinho ocasional e que nunca misturava o álcool com o trabalho, salvo por necessidade de disfarce.

— É um duplex — explicou Carter. — A sala fica lá em cima. Ponha-se à vontade. — Estás a dar-me autorização para dar uma olhada pela casa, Adrian? Carter abria e fechava as portas do armário com uma expressão perplexa no rosto. Gabriel foi até a despensa, encontrou uma caixa de chá Earl Grey e lançou-a a Carter antes de se dirigir ao andar de cima. A sala estava confortavelmente mobilada, mas denotava um ar de anonimato comum às segundas habitações. A Gabriel parecia que nunca ninguém ali amara, nem brigara. Pegou numa fotografia emoldurada que estava em cima de uma mesa de apoio e viu o que parecia ser o típico americano próspero,

Com três filhos bem alimentados e uma esposa com demasiadas cirurgias plásticas. Outras duas fotografias mostravam o americano numa posição rígida ao lado do presidente.

Ambas tinham dedicatórias assinadas: Para Bi, com gratidão.

Carter voltou momentos depois, com um tabuleiro de chá equilibrado nas mãos. Tinha cabelo encaracolado que rareava e o tipo de bigode largo em tempos favorecido pelos professores universitários americanos. O comportamento de Carter pouco tinha que sugerisse que era um dos membros mais poderosos da vasta rede de espionagem americana, ou que antes da sua ascensão à atmosfera rarefeita do sexto piso de Langley fora um dos mais conceituados agentes de campo. A tendência natural de Carter para escutar, em vez de falar, levava a maior parte das pessoas a concluir que se travava de uma espécie de terapeuta. Quando se pensava em Adrian Carter, imaginava-se um homem a suportar confissões de rumos de acontecimentos, ou de problemas, ou então uma figura de um romance de Dickens, curvado sobre livros grossos com longas palavras em latim. Normalmente, as pessoas subestimavam Carter. Era uma das suas armas mais poderosas.

— Quem está por trás disso, Adrian? — perguntou Gabriel.

— Diga você. — Carter pousou o tabuleiro sobre a mesa de centro e despiu a capa como se estivesse cansado de muito viajar. — Estamos no seu bairro.

— O bairro é nosso, mas algo me diz que o problema é seu. Caso contrário, não estaria em Londres — Gabriel deu uma olhada na sala —, numa casa de segurança emprestada, sem microfones nem apoio da estação local.

— Poucas são as coisas que te escapam, não é? Conte, Gabriel. Diga o nome dele.

— É um antigo agente saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq.

— Bravo, Gabriel. Muito bem. — Carter largou a capa nas costas de uma cadeira. — Muito bem mesmo.

Carter destapou o bule, sorveu o aroma e decidiu que precisava ficar em infusão mais um momento.

— Como souberam?

— Não soubemos — corrigiu Gabriel. — Foi um palpite, baseado em vestígios de prova.

— Por exemplo?

Gabriel contou a Carter tudo o que sabia. A operação falhada contra o professor Ali Massoudi. As fotografias de vigilância e a informação sobre a conta bancária suíça encontradas no computador de Massoudi. As ligações entre Ibrahim el-Banna e o agente saudita que se dava a conhecer como Khalil. Os relatórios sobre um saudita do mesmo nome que percorria os campos de refugiados do Sul do Líbano em busca de recrutas. Entretanto, Carter atarefava-se com o chá. Serviu a primeira xícara e entregou-a Gabriel. Seu chá exigia uma preparação mais elaborada: uma dose calculada de leite, depois o chá, por fim um torrão de açúcar. Os interrogadores referiam-se a esse óbvio ganhar tempo como atividade de deslocamento. Carter era fumador de cachimbo. Gabriel receava o seu aparecimento em breve. E vocês? — inquiriu Gabriel. — Quando souberam que se tratava de Bin Shafiq?

Carter pegou num segundo torrão com a tenaz e ponderou brevemente se deveria acrescentá-lo à xícara, após o que o devolveu sem cerimônias ao açucareiro. Provavelmente soube-o no dia em que pedimos a Sua Majestade que encerrasse o Grupo 205 — respondeu. — Ou talvez tenha sido no dia em que Bin Shafiq desapareceu da face da Terra. Sabes, Gabriel, uma das coisas que aprendi nesta profissão foi que para cada ação nossa, vai haver uma reação negativa. Afastamos o urso russo do Afeganistão e acabamos por criar uma hidra. Esmagamos o quartel-general da Al-Qaeda e agora as filiais estão a tratar dos seus próprios assuntos. Encerramos a loja de Bin Shafiq no GID e agora parece que ele começou a trabalhar por conta própria.

— Por quê?

— Pergunta o que o levou a atravessar a fronteira? — Carter encolheu os ombros e mexeu o chá com uma expressão lamentosa. — Não foi preciso muito. Ahmed bin Shafiq é um verdadeiro crente wahhabi.

— Neto de um guerreiro ikhwan — acrescentou Gabriel, o que lhe valeu um aceno de admiração por parte de Carter.

— Podemos perguntar por que os sauditas apoiam o terrorismo — disse Carter. — Podemos ter um debate interessante sobre se defendem na verdade os objetivos dos assassinos que armam e financiam, ou se estão numa política inteligente e cínica para controlar o ambiente em redor, garantindo assim sua sobrevivência. Tal debate não é possível sobre o homem que o GID escolheu para executar essa política. Ahmed bin Shafiq é um crente. Ahmed bin Shafiq odeia os Estados Unidos, o Ocidente e o Cristianismo, e ficaria muito feliz se o teu Estado deixasse de existir. Foi por esse motivo que insistimos com Sua Majestade para que encerrasse a sua lojinha dos horrores.

— E quando vocês forçaram o rei a encerrar o Grupo 205, Bin Shafiq perdeu a cabeça? Decidiu utilizar os contatos que foi estabelecendo ao longo dos anos e lançar a sua própria onda de terror? Com certeza que não pôde ter sido assim tão linear, Adrian.

— Receio que tenhamos dado um pequeno empurrão — admitiu Carter. — Invadimos o Iraque contra a vontade do Reino e da maior parte de seus habitantes. Capturamos membros da Al-Qaeda e os trancamos em prisões secretas, que é onde eles devem estar. Isto foi ruim para o mundo islâmico, e serviu para atiçar o fogo da jihad. Vocês também tiveram mão nisso. Para os árabes, seu Muro de Separação não passa de uma fronteira terminal unilateral, e não estão muito satisfeitos com ele.

— Não fique chocado, Adrian, mas não nos interessa o que os sauditas pensam do nosso muro. Se não tivessem injetado milhões nos cofres do Hamas e da Jihad Islâmica, não precisaríamos dele.

— O que nos leva à minha argumentação original — rematou Carter, fazendo uma pausa para beber um gole de chá. — O mundo islâmico ferve de raiva e Ahmed bin Shafiq, um verdadeiro crente wahhabi, tornou-se o porta-estandarte da jihad contra o infiel. Utilizou os contatos de seus dias no Grupo 205 para construir uma nova rede. Está fazendo o que Bin Laden já não consegue, que é planejar e executar atentados terroristas espetaculares, como o do Vaticano. Tem uma rede pequena, extremamente profissional e, como já provou, bem letal.

— E é financiada por dinheiro saudita.

— Sem dúvida — asseverou Carter.

— Aonde chegam as implicações, Adrian?

— Muito alto — respondeu Carter. — Quase ao topo.

— Onde é a base de operações deles? Quem financia? De onde vem o dinheiro?

— Da AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermediários — garantiu Carter. — Ahmed bin Shafiq é um dos melhores investimentos da AAB. Posso servir mais chá?

Seguiu-se outra pausa nos trabalhos, desta vez com Carter tentando adivinhar como acender a lareira a gás. Mirou, perplexo, a grelha por um instante e virou-se para Gabriel, lançando-lhe um apelo com o olhar. Gabriel encontrou a torneira de segurança, abriu o fluxo de gás e acendeu.

— Quantos anos você dá a eles, Gabriel? Quanto tempo até que a Casa de Saud seja derrubada e em seu lugar surja a República Islâmica da Arábia? Cinco anos? Dez? Ou talvez vinte? Nunca fomos muito bons nesse tipo de previsões. Pensamos que o império soviético fosse eterno.

— E nós pensamos que o Hamas nunca conseguiria vencer eleições.

Carter soltou uma risada melancólica.

— As nossas melhores mentes dão-lhes sete anos, no máximo. Sua Majestade está disposta a passar esses sete anos com as regras antigas: fornece-nos petróleo barato e uma suposta amizade, e ao mesmo tempo vai adulando e subornando as forças do Islão para não o atacarem. E, quando chegar a altura, vai fugir para os palácios que tem na

Riviera e passar o resto da vida com um luxo demasiado grotesco para se imaginar, de preferência com a cabeça ainda pegada ao corpo. Carter virou as palmas das mãos para o fogo.

— Não está quente — constatou.

— Os troncos são feitos de cerâmica. Dá-lhe um pouco para aquecer. Carter pareceu incrédulo. Gabriel acercou-se da janela e espreitou para a rua, onde um carro passou lentamente e desapareceu à esquina. Carter desistiu da lareira e regressou ao seu lugar.

— E depois temos os elementos da Família Real que estão dispostos a adoptar regras diferentes. A esses chamamos os Verdadeiros Crentes. Julgam que a única forma da Al-Saud sobreviver é através da renovação da aliança que estabeleceram há dois séculos com Muhammad Abdul Wahhab, no Njad. Mas esta nova aliança terá de contemplar novas realidades. O monstro que a Al-Saud criou há duzentos anos tem agora todas as cartas na mão, e os Verdadeiros Crentes estão preparados para dar ao monstro aquilo que ele quer. Sangue infiel. Jibadsem fim. Alguns desses Verdadeiros Crentes querem ir ainda mais longe. Desejam a expulsão de todos os infiéis da Península. Um embargo às vendas de petróleo à América e a todos os países que tenham negócios com vocês. Acreditam que o petróleo não deve ser visto simplesmente como um poço sem fim de dinheiro líquido que jorra dos terminais de Rãs Tanura para as contas bancárias suíças da Al-Saud. Querem usá-lo como arma... uma arma que possa ser empregue para danificar a economia americana e transformar os wahhabis em mestres do planeta, como Alá o desejou, quando criou o mar de petróleo debaixo das areias do Al-Hassa. E alguns desses Verdadeiros Crentes, como o presidente e CEO da AAB Holdings de Riad, Genebra e outros pontos intermédios, estão eles próprios dispostos a verter algum sangue infiel.

— Refere-se a Abdul Aziz al-Bakari?

— Exatamente — confirmou Carter. — Sabe alguma coisa sobre ele?

— Pelas últimas contas, era o décimo quinto homem mais rico do mundo, com fortuna pessoal na casa dos dez bilhões de dólares.

— Mais milhão, menos milhão.

— É presidente, diretor executivo e imperador da AAB Holdings... A de Abdul, A de Aziz e B de al-Bakari. A AAB é dona de bancos e de casas de investimento. A AAB tem empresas de navegação e metalúrgicas. A AAB está cortando as florestas da Amazônia e explorando minério nos Andes do Peru e da Bolívia. A AAB é dona de uma empresa química belga e de uma farmacêutica holandesa. A divisão de pesquisa e desenvolvimento da AAB é uma das maiores do mundo. Abdul Aziz al-Bakari é dono de mais hotéis do que qualquer outra pessoa.

Carter prosseguiu a enumeração de Gabriel.

— Tem um palácio em Riad que raramente visita e onde vivem duas antigas esposas que nunca vê. É dono de uma mansão na Île de la Cité, em Paris, de um solar principesco na Inglaterra, de uma casa em Mayfair, de villas à beira-mar em Saint-Tropez, Marbella e Maui, de chalés de esqui em Zermatt e Aspen, de um apartamento na Park Avenue que foi há pouco tempo avaliado em quarenta milhões de dólares, e de uma propriedade gigantesca, em frente ao Potomac, por onde passo todos os dias quando vou para o trabalho. Carter parecia considerar a mansão no Potomac, o mais grave de todos os pecados de Al-Bakari. O pai era sacerdote episcopal de New Hampshire e, por baixo do seu exterior plácido, batia um coração puritano.

— Al-Bakari viaja com o séquito por todo o mundo, a bordo de um 747 revestido a ouro — prosseguiu. — Duas vezes por ano, uma em fevereiro e outra em agosto, as operações AAB vão para o mar, quando Al-Bakari e a comitiva se instalam a bordo do Alexandra, o seu iate de noventa metros. Esqueci-me de alguma coisa? — Os amigos tratam-no por Zizi — replicou Gabriel. — Tem uma das maiores coleções mundiais de arte impressionista francesa, e há anos que os andamos a dizer que é um dos maiores financiadores do terrorismo, especialmente contra nós.

— Não tinha noção.

— Noção do quê?

— De que Zizi era um colecionador.

— E muito agressivo.

— Por acaso já esteve com ele?

— Receio que eu e Zizi estejamos em lados opostos do negócio.

— Gabriel franziu o sobrolho. — Qual é a ligação entre Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq?

Pensativo, Carter soprou o chá, sinal de que ainda não estava pronto para responder à questão de Gabriel.

— É um sujeito interessante, o Al-Bakari. Sabias que o pai foi o banqueiro pessoal de Ibn Saud? Tal como seria de esperar, o papai Al-Bakari saiu-se muito bem, o suficiente para dar dez milhões de dólares ao filho, para que este começasse a sua própria empresa. Mas isso não foi nada, quando comparado com o capital que recebeu da Al-Saud, quando o projeto se desenvolveu. A acreditar nos boatos, cem milhões de dólares. A AAB continua a ser o receptáculo preferido do dinheiro real saudita, o que é uma das razões para que Zizi esteja interessado em garantir a sobrevivência da Casa de Saud.

Gabriel sentiu um aperto no coração quando Carter pegou na bolsa do tabaco. — É um dos homens mais ricos do mundo — disse Carter —, e um dos mais caridosos. Erigiu mesquitas e centros islâmicos por toda a Europa. Financiou projetos de desenvolvimento no Delta do Nilo e para o combate à fome no Sudão. Doou milhões aos refugiados palestinos e outros milhões a projetos de urbanização na Cisjordânia e em Gaza.

— E mais de trinta milhões de dólares naquela angariação televisiva de fundos árabes para financiar homens-bomba suicidas — acrescentou Gabriel. — Zizi foi o maior doador individual. Agora, responde-me, Adrian.

— E qual era a pergunta?

— Qual a ligação entre Zizi e Bin Shafiq?

— É bem perspicaz, Gabriel. Diga você, qual a ligação.

— É óbvio que Zizi financia a rede de Bin Shafiq.

— É óbvio — asseverou Carter.

— Mas Bin Shafiq é saudita. Pode obter dinheiro em qualquer outro lugar. Zizi tem algo mais valioso que o dinheiro. Tem uma infraestrutura global, por onde Bin Shafiq pode movimentar homens e material. E Zizi tem o lugar ideal onde esconder um ideólogo como Bin Shafiq.

— A AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermediários.

O silêncio tombou entre eles como uma cortina, enquanto Carter enchia vagarosamente o cachimbo. Gabriel continuava de pé à janela, a olhar a rua. Sentia-se tentado a permanecer aí, pois o tabaco de Carter, quando aceso, cheirava a uma mistura de feno a arder e de cão molhado. Mas também sabia que a conversa chegara a um ponto em que não poderia ser continuada à frente de uma janela insegura. Com relutância, sentou-se na cadeira oposta a Carter e entreolharam-se em silêncio, Carter fumando com expressão meditativa e Gabriel afastando penosamente a fumaça dos olhos.

— Têm certeza?

— Absoluta.

— Como sabem?

— Fontes e método — respondeu Carter, por reflexo. — Fontes e método.

— Como sabem, Adrian?

— Ouvimos — explicou Carter. — A National Security Agency é uma coisa maravilhosa. Também dispomos de fontes no interior da ala moderada da Casa de Saud e do GID, que estão dispostas a contar certas coisas. Ahmed bin Shafiq reside grande parte do tempo no Ocidente, com uma identidade falsa. Está enterrado no império financeiro de Zizi, e os dois conferenciam com regularidade. Estamos certos desse fato.

Ao lado do tabuleiro de Carter, em cima da mesa de centro, estava um dossiê. Tinha no seu interior uma única fotografia, que Carter entregou a Gabriel. Mostrava um homem de sobretudo de lã e chapéu, em frente de um portão de ferro forjado. O rosto estava de perfil e as feições eram um pouco indistintas. Pelo aspeto da imagem, a fotografia fora tirada de alguma distância.

— É ele?

— Achamos que sim — respondeu Carter.

— Onde foi tirada?

— No exterior da casa de Zizi, na Île de la Cité, em Paris. O fotógrafo estava do outro lado do Sena, no Quai de l’Hôtel de Ville, o que explica uma certa falta de clareza da imagem. — Há quanto tempo?

— Seis meses.

Carter ergueu-se lentamente e deambulou até a lareira. Estava prestes a bater o cachimbo na grelha, quando Gabriel o recordou de que era falsa. Voltou a sentar-se e esvaziou o cachimbo para dentro de um grande cinzeiro de vidro lapidado.

— Quantos americanos morreram no Vaticano? — perguntou Gabriel.

— Vinte e oito, incluindo um bispo da Cúria.

— Quanto dinheiro Zizi al-Bakari deu a terroristas, ao longo dos anos?

— Centenas de milhões.

— Vão atrás dele — declarou Gabriel. — Levantem um processo e levem-no a tribunal.

— Contra Zizi al-Bakari?

— Secção 18 U.S.C. 2339B... Já ouviu falar nela, Adrian?

— Agora está me citando a lei americana?

— Dar dinheiro a grupos terroristas assumidos é uma violação da lei americana, quer esse dinheiro tenha, ou não, sido utilizado em atentados específicos. Talvez já pudessem ter processado dezenas de sauditas ricos por fornecerem apoio material aos inimigos, incluindo Zizi al-Bakari.

— Você me desaponta, Gabriel. Sempre te imaginei uma pessoa razoável... por vezes preocupado demais com questões de certo e errado, mas razoável. Não podemos ir atrás de Zizi al-Bakari.

— Por quê?

— Dinheiro — justificou-se Carter, ao que acrescentou: — E petróleo, é claro.

— É claro.

Carter brincou com o isqueiro.

— A Família Real Saudita tem muitos amigos em Washington. O tipo de amigos que só o dinheiro pode comprar. Zizi também tem amigos. Fundou cátedras acadêmicas e encheu-as de amigos e apoiantes. Garantiu a criação de departamentos de estudos árabes em meia dúzia de universidades americanas importantes. Financiou quase sozinho uma renovação profunda do Kennedy Center. Oferece dinheiro a projetos de caridade de senadores influentes e investe nos negócios de amigos e familiares desses senadores. É dono de boa parte de um dos bancos mais importantes e tem participações numa série de outras empresas americanas também importantes. Também serviu de intermediário em inúmeros negócios entre sauditas e americanos. O quadro está a ficar mais claro?

Estava, mas Gabriel queria ouvir mais.

— Se o bando de advogados de Washington de Zizi sequer desconfiasse que ele ia ser investigado criminalmente, Zizi falaria com Sua Majestade, Sua Majestade falaria com o embaixador Bashir, e o embaixador ia à Casa Branca ter uma conversinha com o presidente. Lembraria o presidente de que uma volta ou duas nas torneiras do petróleo significaria um aumento brutal no preço da gasolina. Talvez chegasse a frisar que um aumento dessa magnitude prejudicaria os habitantes do centro do país, que costumam fazer viagens longas, e que também costumam votar no partido do presidente.

— E assim, para Zizi o crime compensa... literalmente.

— Receio que sim.

— Não pergunte sobre o que, quando explicado, possa te trazer problemas.

— Conhece bem o Corão — disse Carter. — Outra razão para não agir contra Zizi, ou acusá-lo é o medo do que se pode encontrar: enredos com americanos importantes, negócios obscuros com elementos de Washington. Imagine a reação do povo americano se descobrisse que um bilionário saudita com ligações comerciais com figuras importantes de Washington financia as atividades inimigas. A relação mal conseguiu sobreviver ao primeiro Onze de Setembro. Duvido que sobrevivesse a um segundo. Não sobreviveria, pelo menos na forma atual. Já há um movimento no Capitólio para isolar a Arábia Saudita, devido ao apoio prestado ao extremismo islâmico global. Um escândalo que envolvesse Zizi al-Bakari apenas serviria para lançar achas para a fogueira. Várias figuras da política externa do Congresso estão a pensar numa legislação que pressione a Arábia Saudita. Podem dar-se a esse luxo. Se a economia americana for por água abaixo devido a uma subida dos preços do petróleo, não são eles que sofrem, mas sim o presidente.

— E o que quer de nós, Adrian? O que quer me dizer nesta sala, onde mais ninguém nos ouve?

— O presidente dos Estados Unidos quer pedir um favor — explicou Carter, enquanto fitava o fogo. — O tipo de favor em que por acaso você é muito bom. Ele gostaria que pusessem um agente na Casa de Zizi. Gostaria que descobrisse quem entra e quem sai. E se Ahmed bin Shafiq aparecer, ele gostaria que tentasse pegá-lo. A operação será sua, mas pode contar com todo o nosso apoio. Estaremos do outro lado do horizonte... longe o bastante para garantir uma negação plausível em Riad.

— Você me desaponta, Adrian. Sempre pensei que fosse uma pessoa razoável.

— O que eu fiz agora?

— Pensei que ia me pedir para matar Zizi al-Bakari e acabar de vez com o assunto.

— Matar Zizi? — Carter abanou a cabeça. — Zizi é intocável. Zizi é radioativo.

Gabriel regressou ao seu posto à janela e espiou a rua quando um casal de namorados correu pela calçada sob a chuva.

— Não somos assassinos profissionais — protestou. — Não podemos ser contratados para fazer os trabalhos sujos que vocês não podem fazer. Querem Bin Shafiq morto, mas não estão dispostos a correr riscos. Pretendem que sejamos nós a ficar com a culpa.

— Poderia lembrar alguns fatos importantes — adiantou Carter. — Poderia lembrar que este presidente ficou do seu lado enquanto o resto do mundo os tratou como se fossem judeus entre nações. Poderia lembrar que ele permitiu que construíssem o Muro de Separação, enquanto o resto do mundo os acusou de se comportar como os sul-africanos. Poderia lembrar que ele permitiu que trancassem Arafat na Mukata, enquanto o resto do mundo os acusou de agir como tropa de choque nazista. Poderia lembrar as inúmeras vezes em que este presidente tratou de sua roupa suja, mas não o farei, pois isso seria politicamente incorreto. Também poderia sugerir que com este pedido estaríamos numa espécie de saldar contas, o que não é, de todo, o caso.

— Então é o quê?

— Um reconhecimento — explicou Carter. — O reconhecimento de que nós, americanos, não temos estômago, nem coragem, para fazer as coisas que têm de ser feitas nesta luta. Já queimamos os dedos. Nossa imagem já foi debilitada. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vimos. Nossos políticos gostariam que pegássemos o primeiro avião para fora do Iraque, para que possam começar a gastar dinheiro no tipo de coisas que conquistam votos. O povo quer voltar à boa vida. As pessoas querem enterrar a cabeça na areia e fingir que não existe no mundo uma força organizada que procura destruí-las. Pagamos um preço terrível por entrar na sarjeta com os terroristas e combater no nível deles, mas acho que vocês sabiam que isso ia acontecer. Ninguém pagou um preço mais elevado do que vocês.

— E por isso querem que o façamos no seu lugar. Imagino que seja o a que chamam de terceirização. Mas que americano de sua parte, Adrian.

— Dadas as atuais circunstâncias, os Estados Unidos não podem tentar assassinar um antigo oficial da espionagem saudita, caso contrário a nossa relação com Riad ficaria comprometida. Também não podemos prender e acusar Zizi al-Bakari pelas razões que mencionei.

— Por isso querem que o problema desapareça?

— Exatamente.

— Que seja varrido para baixo do tapete? Que se adie o ajuste de contas para uma data mais conveniente?

— Não podia ser mais claro.

— Acha que essa é a melhor forma de derrotar a Hidra? Cortar uma cabeça e esperar que tudo corra bem? É preciso queimar as raízes, como fez Hércules. É preciso atacar o monstro com flechas embebidas em fel.

— Quer atacar a Casa de Saud?

— Não só a Casa de Saud — asseverou Gabriel. — Os fanáticos wahhabitas que fizeram um pacto de sangue, há duzentos anos, no planalto estéril do Najd. São eles seu verdadeiro inimigo, Adrian. Foram eles que criaram a Hidra.

— O príncipe sábio escolhe a data e o local da batalha, e não é hora de derrubar a Casa de Saud.

Gabriel mergulhou num silêncio taciturno. Carter olhava para o fornilho do cachimbo e fazia pequenos ajustes na disposição do tabaco, como um professor à espera da resposta de um aluno menos inteligente.

— Será preciso lembrar que atentaram contra Shamron?

Gabriel fulminou Carter com um olhar que lhe garantia que não se esquecera.

— Nesse caso, por que a hesitação? Depois do que Bin Shafiq fez ao velhote, pensei que estivesse de laço esticado para pegá-lo.

— Quero pegá-lo mais do que ninguém, Adrian, mas nunca estico o laço. É uma operação perigosa... perigosa demais até para você. Se alguma coisa der errado ou se formos apanhados, tudo acaba mal... para os três.

— Três?

— Eu, você e o presidente.

— Nesse caso, siga o décimo primeiro mandamento de Shamron, e não haverá problema. Você não será apanhado.

— Bin Shafiq é um fantasma. Nem sequer temos uma foto.

— Isso não é totalmente verdade. — Carter voltou a pegar o dossiê e retirou outra foto, que colocou em cima da mesa, para que Gabriel a visse. Mostrava um homem de olhos escuros, o rosto em parte oculto por um kaffijeh. — Este é Bin Shafiq, há quase vinte anos, no Afeganistão. Na épica era nosso amigo. Estávamos do mesmo lado. Nós fornecemos as armas. Bin Shafiq e os mestres de Riad forneciam o dinheiro.

— E a ideologia wahhabita que ajudou a dar origem aos talibãs — adiantou Gabriel.

— O inferno está cheio de boas intenções — lamentou-se. — Mas temos algo mais valioso do que uma foto com vinte anos. Temos a voz dele.

Carter pegou um pequeno controle remoto preto, apontou-o a um rádio Bose Wave e pressionou o Play. Momentos depois, dois homens começaram a falar em inglês: um de sotaque americano e o outro de pronúncia árabe.

— Imagino que o árabe seja Bin Shafiq. Carter anuiu.

— Quando foi gravado?

— Em 1988 — explicou Carter. — Numa casa de segurança em Peshawar.

— Quem é o americano? — perguntou Gabriel, embora já soubesse a resposta. Carter pressionou o botão Stop e olhou para o fogo.

— Sou eu — respondeu, com um tom distante. — O americano na casa de segurança da CIA em Peshawar era eu.

— Reconheceria Bin Shafiq se visse?

— Talvez, mas as nossas fontes dizem que fez várias operações plásticas antes de entrar em campo. Mas reconheceria a cicatriz no antebraço direito. Foi atingido por estilhaços durante uma viagem ao Afeganistão, em 1985. A cicatriz vai do pulso ao cotovelo. Não há cirurgião plástico que ajude naquilo.

— No lado de dentro ou de fora?

— De dentro. O ferimento afetou a mão dele. Submeteu-se a várias operações para tentar remediar a situação, mas nada deu certo. Normalmente a mantém no bolso. Não gosta de dar apertos de mão. Bin Shafiq é um beduíno orgulhoso. Não respeita as doenças.

— Imagino que suas fontes em Riad não nos consigam dizer em que zona do império de Zizi ele está escondido.

— Infelizmente, não. Mas sabemos que ele aí está. Se introduzires um agente na Casa de Zizi, talvez Bin Shafiq acabe por entrar pela porta das traseiras. — Introduzir um agente na casa de Zizi al-Bakari? E o que sugeres que façamos para o conseguir, Adrian? Zizi tem mais segurança do que a maior parte dos chefes de Estado.

— Nem me passaria pela cabeça interferir em questões operacionais — escusou-se Carter. — Mas garanto-te que estamos dispostos a ser pacientes e que tencionamos acompanhar a missão até o fim.

— A paciência e o acompanhamento não são exatamente virtudes americanas típicas. Vocês gostam de armar confusão e partir para o problema seguinte. Seguiu-se mais um silêncio longo, desta vez interrompido pelo bater do cachimbo de Carter na borda do cinzeiro. — O que queres, Gabriel?

— Garantias.

— No nosso ramo não há garantias, sabes disso.

— Quero tudo o que tiverem sobre Bin Shafiq e o Al-Bakari.

— Dentro dos limites do razoável — disse Carter. — Não te vou dar um monte de segredos obscuros sobre figuras importantes de Washington.

— Quero proteção — continuou Gabriel. — Quando isto acontecer, seremos os principais suspeitos. Somos sempre, mesmo quando não somos os responsáveis. Vamos precisar da sua ajuda para acalmar a tempestade.

— Apenas posso falar em nome do DO — lembrou Carter. E garanto-te que vamos estar do seu lado.

— Eliminamos Bin Shafiq onde e quando escolhermos, sem qualquer interferência de Langley.

— O presidente ficaria grato se pudessem evitar fazê-lo em território americano.

— No nosso ramo não há garantias, Adrian.

— Touché.

— Talvez custe a acreditar, mas não posso decidir sozinho. Tenho de falar com Amos e o primeiro-ministro.

— Amos e o primeiro-ministro farão o que lhes disser.

— Dentro do razoável.

— O que vai dizer?

— Que o presidente americano precisa de um favor — disse Gabriel. — E que pretendo ajudá-lo.

12

TEL MEGIDDO, ISRAEL

O primeiro-ministro autorizou a operação de Gabriel às duas e trinta da tarde seguinte. Gabriel dirigiu-se de imediato a Armagedon. Imaginou que fosse um bom local para começar.

O tempo parecia glorioso de uma forma perversa para tal ocasião: temperatura fresca, um céu de um azul pálido, uma brisa leve que lhe agitava as mangas da camisa, à medida que seguia a Estrada de Jafa. Ligou o rádio. A música lúgubre que enchera o éter nas horas que se tinham seguido ao atentado à vida de Shamron desaparecera. Um boletim noticioso surgiu de repente. O primeiro-ministro garantira fazer tudo ao seu alcance para localizar e punir os responsáveis pelo atentado contra Shamron. Não mencionou o fato de já saber quem era o responsável, nem que autorizara Gabriel a eliminá-lo.

Gabriel percorreu a Bab al-Wad em direção ao mar, ziguezagueando com impaciência por entre o tráfego mais lento, e depois acompanhou o sol que se punha para norte, ao longo da Planície Costeira. Perto de Hadera havia um alerta de segurança. Segundo o rádio, um alegado homem-bomba suicida conseguira atravessar o Muro de Separação perto de Tulkarm. Gabriel foi obrigado a aguardar na beira da estrada durante vinte minutos, antes de se encaminhar para o vale de Jezreel. A oito quilômetros de Afula, um outeiro redondo surgiu à esquerda. Em hebraico era conhecido por Tel Megiddo, ou Monte Megido. O resto do mundo o conhece como Armagedon, do Livro do Apocalipse, o palco do confronto final entre as forças do bem e do mal. A batalha ainda não começara e o estacionamento estava vazio, salvo por um trio de vans empoeiradas, sinal de que a equipe arqueológica ainda trabalhava.

Gabriel saiu do carro e subiu o caminho íngreme até o topo. O Tel Megiddo era alvo de escavações arqueológicas periódicas há mais de um século, e no alto do monte havia um labirinto de trincheiras compridas e estreitas. Tinham sido encontrados vestígios de mais de vinte cidades debaixo do solo do topo do Tel, incluindo uma que se acreditava ter sido construída pelo rei Salomão. Parou à beira de uma das trincheiras e espreitou para o fundo. Uma pequena figura de casaco de algodão creme estava de gatas, a revirar o solo com uma colher de pedreiro. Gabriel pensou na última vez que estivera acima de um homem num buraco de escavação e sentiu-se como se lhe tivessem deitado um cubo de gelo para as costas. O arqueólogo olhou para cima e fitou-o com um par de olhos castanhos inteligentes. Depois voltou a desviar a atenção para o seu trabalho.

— Tenho estado a tua espera — disse Eli Lavon. — Por que demorou tanto?

Gabriel sentou-se na terra à beira do buraco e observou Lavon a trabalhar. Conheciam-se desde a operação Setembro Negro. Eli Lavon fora um ayin, um batedor. A sua incumbência era seguir os terroristas e tomar conhecimento dos seus hábitos. Em muitos aspetos, essa missão fora ainda mais perigosa do que a de Gabriel, pois Lavon, por vezes, ficara exposto aos terroristas durante dias e semanas a fio, sem qualquer apoio. Após o desmantelamento da unidade, instalara-se em Viena e abrira um pequeno gabinete de investigação chamado Reivindicações e Inquéritos do Tempo da Guerra. Com um orçamento mínimo, conseguira localizar milhões de dólares em bens judeus pilhados e desempenhara um papel importante na obtenção de um acordo milionário com os bancos suíços. Agora, Lavon trabalhava na escavação em Meguido e dava aulas de arqueologia em tempo parcial, na Universidade Hebraica.

— O que tem aí, Eli?

— Um pedaço de cerâmica, creio. — Uma rajada de vento agitou-lhe o cabelo fino e desgrenhado e soprou-o para a testa. — E você?

— Um bilionário saudita que tenta destruir o mundo civilizado.

— Não já conseguiram? — Gabriel sorriu.

— Preciso de você, Eli. Sabe interpretar balancetes. Sabe seguir pista de dinheiro sem que ninguém note.

— Quem é o árabe?

— O presidente e CEO da Jihad Limitada.

— E esse presidente tem nome?

— Abdul Aziz al-Bakari.

— Zizi al-Bakari?

— Esse mesmo.

— Imagino que tenha algo que ver com Shamron.

— E com o Vaticano.

— Qual é a ligação de Zizi?

Gabriel contou.

— Acho que não preciso perguntar o que tenciona fazer com Bin Shafiq — disse Lavon. — O império de Zizi é enorme. Bin Shafiq pode estar trabalhando de qualquer ponto do mundo. Como vai encontrá-lo?

— Vamos introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi e esperar que Bin Shafiq apareça.

— Um agente no território de Zizi? — Lavon abanou a cabeça.

— Não se consegue.

— Consegue-se, sim.

— Como?

— Vou descobrir alguma coisa que Zizi queira — explicou Gabriel. — E depois vou dar a ele.

— Sou todo ouvidos.

Gabriel sentou-se na borda da trincheira de escavação, com as pernas dependuradas para o interior, e disse-lhe como tencionava penetrar na Jihad Limitada. Do fundo do buraco vinha o som do trabalho de Lavon — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— Quem é o agente? — perguntou a Gabriel, quando este terminou.

— Ainda não o tenho.

Lavon ficou em silêncio por um instante — espeta, espeta, limpa, limpa, sopra...

— O que queres de mim?

— Vira Zizi al-Bakari e a AAB Holdings de pernas para o ar. Quero que disseque cada empresa que ele controle. Perfis de todos os executivos de topo e dos membros da comitiva pessoal. Quero saber como cada pessoa chegou ao seu cargo e como nele tem permanecido. Quero saber mais sobre Zizi do que ele próprio.

— E o que acontece quando entrarmos em campo?

— Você também vai.

— Estou velho e cansado para coisas mais duras.

— É o maior artista de vigilância da história do Escritório, Eli. Não vou conseguir sem você.

Lavon endireitou-se e limpou as mãos na calça.

— Introduzir um agente no círculo íntimo de Zizi al-Bakari? É louco. — Lançou uma colher de pedreiro a Gabriel. — Venha me ajudar. Estamos ficando sem luz.

Gabriel desceu ao buraco e ajoelhou-se ao lado do velho amigo. Juntos esgaravataram o solo antigo, até que a noite caiu sobre o vale como uma manta.

Quando chegaram ao Boulevard King Saul já passava das nove horas. Lavon saíra havia muito do Escritório, mas continuava a apresentar uma palestra ocasional na Academia e ainda tinha as credenciais para entrar no edifício sempre que quisesse. Gabriel acompanhou-o até a sala de arquivos da divisão de Pesquisa, ao que se dirigiu a um corredor sombrio dois níveis abaixo do solo. No final do corredor ficava a Sala 456C. Afixado à porta estava um letreiro de papel, onde se lia, na caligrafia hebraica de Gabriel: COMITÊ TEMPORÁRIO PARA O ESTUDO DAS AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Decidiu mantê-lo, por enquanto.

Abriu a fechadura com combinação, acendeu as luzes e entrou. A sala parecia congelada no tempo. Era conhecida por vários nomes: a Cápsula, a Choça, o Tanque. Yaakov, um durão de rosto marcado do Departamento de Assuntos Árabes de Shabak, batizara-a de Buraco do Inferno. Yossi, da Pesquisa, denominara-a a Aldeia dos Malditos, mas ele lera clássicos em Oxford e emprestava sempre ao seu trabalho um certo ar de erudição, mesmo quando os temas não o mereciam. Gabriel deteve-se junto à mesa assente em cavaletes que Dina e Rimona tinham partilhado. As constantes altercações territoriais quase tinham dado com ele em doido. A linha de separação que ele traçara no centro da mesa ainda lá estava, a par do aviso que Rimona escrevera do seu lado da fronteira: Atravessar por sua própria conta e risco. Rimona era capita da FDI e trabalhava para Ama, na espionagem militar. Era também sobrinha de Gilah Shamron. Acreditava em fronteiras defensáveis e respondera com incursões de retaliação sempre que Dina cruzara a linha. No lugar de Dina estava a pequena mensagem que ela lá deixara no último dia da operação: Que nunca mais tenhamos de aqui voltar. Que ingênua, pensou Gabriel. Ela devia saber melhor do que ninguém que provavelmente não seria assim.

Continuou a lenta digressão pela sala. Ao canto jazia a mesma pilha de equipamento informático ultrapassado que nunca ninguém se dera ao trabalho de remover. Antes de se transformar no quartel-general do Grupo Khaled, a Sala 456C não passara de uma lixeira onde se despejava mobília velha e aparelhos eletrônicos obsoletos, sendo muitas vezes utilizada pelos membros do turno da noite como local de aventuras românticas. O quadro de giz de Gabriel também ali continuava. Mal conseguia decifrar as últimas palavras que escrevera. Olhou para as paredes, cobertas de fotografias de jovens palestinos. Uma das imagens chamou-lhe a atenção, um rapaz de boina na cabeça e um kaffiyeh sobre os ombros, sentado ao colo de Yasir Arafat: Khaled al-Khalifa no funeral do pai, Sabri. Gabriel matara Sabri, e também matara Khaled.

Retirou as fotografias antigas das paredes e colocou duas novas no seu lugar. Uma delas mostrava um homem de kaffyeh, nas montanhas do Afeganistão. A outra exibia o mesmo homem, agora com um sobretudo de caxemira e chapéu, à frente da casa de um bilionário, em Paris. O Grupo Khaled era agora o Grupo Bin Shafiq.

Durante as primeiras quarenta e oito horas, Gabriel e Lavon trabalharam sozinhos. No terceiro dia chegou Yossi, um homem alto e calvo com o porte de um intelectual britânico. Rimona compareceu no quarto dia, bem como Yaakov, chegado do quartel-general de Shabak, com uma caixa cheia de material sobre os terroristas que tinham atacado o carro de Shamron. Dina foi a última a chegar. Pequena e morena, estivera na Rua Dizengoff de Tel Aviv, no dia 19 de Outubro de 1994, quando um homem-bomba suicida do Hamas transformara o ônibus número 5 num caixão para vinte e uma pessoas. A mãe e duas das suas irmãs encontravam-se entre essas vítimas. Dina ficara gravemente ferida e caminhava agora com um ligeiro coxear. Lidara com a dor tornando-se perita em terrorismo. Com efeito, Dina Sarid era capaz de recitar a data, o local e o número de vítimas de todos os atos terroristas alguma vez cometidos contra o Estado de Israel. Em tempos dissera a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles próprios. Gabriel acreditara.

Dividiram-se em duas áreas de especialidade. Ahmed bin Shafiq e a Irmandade de Alá tornaram-se propriedade de Dina, Yaakov e Rimona, enquanto Yossi se juntou à escavação de Lavon da AAB Holdings. Por enquanto, Gabriel trabalhava sozinho, pois assumira a tarefa nada invejável de tentar identificar todos os quadros alguma vez comprados ou vendidos por Zizi al-Bakari.

À medida que os dias iam passando, as paredes da Sala 456C refletiam a natureza única da operação. Numa das paredes começou a surgir o esboço sombrio de uma nova rede terrorista mortal, liderada por um homem que, em grande medida, não passava de um fantasma. Deram o seu melhor para recriar a longa viagem de Bin Shafiq através da corrente do extremismo islâmico. Ao que parecia, onde quer que tivesse havido problemas, lá estava Bin Shafiq, a distribuir dinheiro saudita do petróleo e propaganda wahhabita às mancheias: Afeganistão, Líbano, Egito, Argélia, Jordânia, Paquistão, Chechênia, Bósnia e, é claro, a Autoridade Palestina. Mas havia pistas de relevo, pois ao levar a cabo dois atentados importantes, Bin Shafiq e a Irmandade tinham deixado mais de uma dúzia de nomes que podiam ser investigados em busca de ligações e de associações. E havia também Ibrahim el-Banna, o imã egípcio mortal, e o professor Ali Massoudi, o angariador e caçador de talentos.

Na parede oposta surgiu outra rede: a AAB Holdings. Utilizando fontes públicas, e outras não tão visíveis, Lavon peneirou a custo as várias camadas do império financeiro de Zizi e reuniu as diversas peças como se fossem pedaços de um artefato antigo. No topo da estrutura encontrava-se a própria AAB. Abaixo desta estava uma rede complexa de empresas subsidiárias e de fachadas corporativas que permitiam que Zizi estendesse a sua influência a quase todos os cantos do globo, em condições de secretismo corporativo quase perfeito. Tendo quase todas as empresas registradas na Suíça e nas Ilhas Caimão, Lavon equiparou Zizi a um caça furtivo financeiro, capaz de levar a cabo ataques à sua vontade, ao mesmo tempo que evitava ser detetado pelos radares inimigos. Apesar da natureza obscura do império de Zizi, Lavon chegou à conclusão de que as contas não batiam certo.

— Zizi nunca poderia ter obtido lucros suficientes com os investimentos iniciais que justificassem as aquisições posteriores — explicou a Gabriel. — A AAB Holdings é uma fachada para a Casa de Saud. — Quanto a tentar descobrir Ahmed bin Shafiq algures no polvo financeiro de Zizi, Lavon comparou-o a tentar encontrar uma agulha no deserto da Arábia. — Não é impossível — disse —, mas provavelmente morremos de sede antes de conseguirmos.

Yossi dedicou-se ao pessoal de Zizi. Concentrou-se na relativamente pequena equipe que trabalhava no quartel-general de Genebra, a par de empresas detidas ou controladas pela AAB. A maior parte do seu tempo, no entanto, era empregue na grande comitiva pessoal de Zizi. Em breve as fotografias cobriam a parede do espaço de trabalho de Yossi, e contrastavam com as da rede de terror de Shafiq. Todos os dias chegavam imagens novas, à medida que Yossi acompanhava os movimentos frenéticos de Zizi por todo o globo. Zizi a chegar a uma reunião em Londres. Zizi em Stuttgart, durante um encontro com fabricantes de automóveis alemães. Zizi a desfrutar da vista para o mar Vermelho, a partir do seu novo hotel em Sharm el-Sheik. Zizi a conferenciar com o rei da Jordânia, sobre um possível negócio imobiliário. Zizi a inaugurar uma central de dessalinização no Yemen. Zizi a receber um prêmio humanitário de um grupo islâmico em Montreal, cuja página de Internet, frisou Yossi, continha um apelo direto à destruição do Estado de Israel.

Quanto ao canto da sala reservado a Gabriel, era um santuário, quando comparado com os reinos do terror e das finanças. A sua parede estava coberta não com os rostos de terroristas ou de executivos, mas com dezenas de fotografias de obras impressionistas francesas. Enquanto Lavon e Yossi passavam os dias a vasculhar monótonos balancetes e folhas impressas, Gabriel folheava catálogos antigos, monografias impressionistas e recortes de impressa que descreviam os feitos de Zizi na cena artística mundial. Ao fim do décimo dia, Gabriel decidira como iria introduzir um agente na Jihad Limitada. Dirigiu-se à coleção de fotografias de Yossi e fitou uma única imagem. Mostrava um inglês magro e grisalho, sentado ao lado de Zizi, seis meses antes, no leilão de Arte Moderna e Impressionista da Christies, em Nova Iorque. Gabriel retirou a fotografia e ergueu-a, para que os outros a vissem. — Este homem — disse. — Tem de desaparecer. — Depois ligou para Adrian Carter através de um número privado seguro de Langley e contou como planejava entrar na Casa de Zizi.

— Agora você só precisa de um quadro e de uma garota — concluiu Carter. — Encontre o quadro e eu consigo a garota.

Gabriel saiu um pouco mais cedo do que o habitual do Boulevard King Saul e dirigiu-se a Ein Kerem. A unidade de cuidados intensivos do Centro Médico Hadassah continuava vigiada por vários guardas, mas Shamron estava sozinho quando Gabriel entrou no quarto.

— O filho pródigo decidiu me visitar — comentou, em tom amargo. — Ainda bem que somos um povo do deserto, caso contrário punham-me em cima de um bloco de gelo e me jogavam no mar.

Gabriel sentou-se ao lado da cama.

— Já vim pelo menos umas seis vezes.

— Quando?

— À noite, quando já está dormindo.

— Anda pairando sobre mim? Como Gilah e os médicos? Por que não vem durante o dia, como uma pessoa normal?

— Tenho estado ocupado.

— O primeiro-ministro não está ocupado para me visitar em horários decentes. — com o pescoço ferido imobilizado por um aparelho de plástico,

Shamron lançou um olhar rancoroso a Gabriel. — Ele contou-me que vai autorizar o Amos a encontrar alguém para as Operações Especiais, para que tu possas levar a cabo esse projeto ridículo para o Adrian Carter e para os americanos.

— Imagino que não o aprove.

— com veemência. — Shamron fechou os olhos durante longos instantes, o suficiente para Gabriel olhar nervosamente para os monitores ao lado da cama. — Azul e branco — acabou por dizer. — Fazemos as nossas coisas sozinhos. Não pedimos a ajuda de ninguém, nem ajudamos os outros com os seus problemas. E, acima de tudo, não nos oferecemos como paus-mandados do Adrian Carter. — Está nesta cama de hospital e não no Gabinete do primeiro-ministro. Isso faz com que Zizi al-Bakari e Ahmed bin Shafiq também sejam problemas meus. Além disso, o mundo mudou, Ari. Temos de trabalhar juntos, se queremos sobreviver. As regras antigas já não se aplicam.

Shamron ergueu a mão de veias salientes e apontou para o copo de plástico sobre a mesa-de-cabeceira. Gabriel levou-o aos lábios de Shamron, que bebeu a água por uma palhinha.

— Vai empreender essa missão a pedido de quem? — indagou Shamron. — Adrian Carter, ou de alguém mais acima? — Ao receber o silêncio de Gabriel, Shamron afastou, zangado, o copo de água. — Pretende me tratar como uma espécie de inválido? Ainda sou o conselheiro especial do primeiro-ministro para todos os assuntos relacionados a segurança e informações. Ainda sou... — A voz sumiu, com uma fadiga súbita.

— Ainda é o memuneh — concluiu Gabriel.

Em hebraico, memuneh significava o responsável. Durante muitos anos, esse título fora reservado a Shamron. — Não vai atrás de um garoto qualquer de Nablus, Gabriel.Seus alvos são Ahmed bin Shafiq e Zizi al-Bakari. Se alguma coisa sair mal, o mundo vai cair em cima, e de muito alto. E seu amigo Adrian Carter não estará lá para catar teus pedaços. Talvez fosse melhor falar comigo. Já fiz esse tipo de coisas uma ou duas vezes.

Gabriel espreitou para o corredor e pediu aos agentes de segurança ali destacados que garantissem que qualquer sistema de vigilância de Shamron fosse desligado. Voltou então a sentar-se na cadeira ao lado da cama e, com a boca perto do ouvido de Shamron, contou tudo. Pelo menos por um instante, o olhar de Shamron pareceu mais concentrado. Quando lhe apresentou a primeira questão, Gabriel quase foi capaz de imaginar o homem de ferro que lhe entrara na vida durante uma tarde de Setembro de 1972.

— Já se decidiu a usar uma mulher? Gabriel anuiu.

— Vai precisar de alguém cujos antecedentes aguentem o escrutínio dos seguranças de Zizi, pagos a peso de ouro. Não pode usar uma das nossas garotas, nem uma judia não israelense. Se Zizi desconfiar que está olhando para uma judia, vai afastar-se dela. Precisa de uma gentia.

— O que eu preciso — explicou Gabriel — é de uma garota americana.

— Onde vai consegui-la?

A palavra única com que Gabriel respondeu fez Shamron franzir o sobrolho. — Não gosto da ideia de sermos responsáveis por uma agente deles. E se alguma coisa der errado?

— O que poderia dar errado?

— Tudo — retorquiu Shamron. — Sabe disso melhor do que ninguém.

Shamron pareceu subitamente exausto. Gabriel baixou a luz do abajur da mesa-de-cabeceira.

— O que vai fazer? — interrogou Shamron. — Vais ler-me uma história?

— Vou fazer-lhe companhia até que adormeça.

— Gilah pode fazer isso. Vai para casa descansar. Bem vais precisar.

— Fico mais um pouco.

— Vai para casa — insistiu Shamron. — Tens uma pessoa a sua espera que está ansiosa para vê-lo.

Vinte minutos depois, quando Gabriel virou para a Rua Narkiss, viu luzes acesas no seu apartamento. Estacionou o Skoda à esquina e percorreu em silêncio o passeio escurecido até o prédio. Quando entrou no apartamento, o ar estava carregado com o aroma a baunilha. Chiara estava sentada de pernas cruzadas em cima da mesa de trabalho, banhada pela luz forte das lâmpadas de halogêneo. Observou Gabriel quando este entrou, desviando então mais uma vez o olhar para o que em tempos fora uma sala de estar meticulosamente decorada.

— Gostei do que fizeste com a casa, Gabriel. Por favor, diz-me que não te livraste da nossa cama também.

Gabriel abanou a cabeça e beijou-a.

— Quanto tempo vais ficar por cá? — perguntou Chiara.

— Tenho de partir amanhã de manhã.

— Para variar, o meu sentido de oportunidade foi perfeito. Quanto tempo vais estar ausente?

— Não te sei dizer.

— Podes levar-me contigo? Desta vez, não.

— Para onde vais?

Gabriel ergueu-a da mesa de trabalho e apagou as luzes.

13

LONDRES

— Preciso de um Van Gogh, Julian.

— Precisamos todos, meu querido.

Isherwood puxou a manga do casaco e olhou para o relógio. Eram dez da manhã. Em geral, por essa hora já se encontrava na galeria, e não a passear à beira do lago de St. Jamess Park. Fez uma breve pausa para observar uma flotilha de patos que cruzavam a água calma em direção à ilha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos ao parque, para ver se estavam a ser seguidos. Depois agarrou em Isherwood pelo cotovelo e puxou-o para a Horse Guards Road. Eram um par díspar, figuras de quadros diferentes. Gabriel trazia jeans escuros e sapatos de camurça que não emitiam qualquer ruído quando andava. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de couro, os ombros curvados para a frente e os olhos verdes saltavam, inquietos, por todo o parque. Quinze anos mais velho do que

Gabriel e vários centímetros mais alto, Isherwood vestia um fato completo cinzento com riscas brancas e um sobretudo de lã. Os caracóis grisalhos tombavam soltos sobre a gola do sobretudo e saltitavam a cada passo desajeitado. Julian Isherwood tinha algo de precário na sua atitude. Como sempre, Gabriel teve de resistir ao impulso de ajudá-lo a equilibrar-se. Conheciam-se há trinta anos. O apelido tipicamente inglês e a posição social britânica ocultavam o fato de não ser, pelo menos tecnicamente, inglês de todo. Sim, tinha nacionalidade e passaporte britânicos, mas era de ascendência alemã, fora educado na França e era judeu de religião. Apenas um punhado de amigos de confiança sabia que Isherwood chegara a Londres em 1942 na condição de criança refugiada, depois de ter sido levado através dos Pirenéus por um par de pastores bascos. Ou que o pai, o afamado negociante de arte parisiense Samuel Isakowitz, fora assassinado no campo da morte de Sobibor, juntamente com a mãe de Isherwood. Havia mais uma coisa que Isherwood ocultava dos competidores no mundo da arte londrino, bem como do resto do mundo. Segundo o léxico do Escritório, Julian Isherwood era um sayan, um ajudante judaico voluntário. Fora recrutado por Ari Shamron com um único objetivo: ajudar a construir e a manter o disfarce de um único agente muito especial.

— Como está o meu amigo Mario Delvecchio? — perguntou Isherwood. — Desapareceu sem deixar rasto — respondeu Gabriel. — Espero que a minha revelação não te tenha causado problemas.

— De todo.

— Não houve comentários nas ruas? Não fizeram perguntas embaraçosas nos leilões? Não tiveste visitas dos agentes do MI5?

— Estás a perguntar-me se as pessoas de Londres me veem como um espião israelense venenoso?

— É exatamente isso que estou a perguntar-te.

— Está tudo calmo nesta frente, mas também nunca tivemos uma relação muito visível, certo? É a tua maneira de ser. Não és visível com nada. És um dos dois ou três melhores restauradores de arte do mundo e ninguém sabe quem tu és. É uma pena.

Chegaram à esquina da Great George Street. Gabriel cortou à direita, para

Birdeage Walk.

Quem sabe acerca de nós em Londres, Julian? Quem sabe que mantinhas uma relação profissional com o Mario?

Isherwood olhou para as árvores que ladeavam o passeio.

— Muito pouca gente. Jeremy Crabbe, da Bonhams, é claro. Continua possesso por lhe teres roubado aquele Rubens. — Isherwood levou a mão comprida e ossuda ao ombro de Gabriel. — Tenho um comprador. Agora só preciso do quadro. — Apliquei-lhe o verniz ontem, antes de sair de Jerusalém — explicou Gabriel.

— Vou utilizar um dos nossos exportadores para o trazer o mais depressa possível. Deves recebê-lo no final da semana. Por sinal, deves-me cento e cinquenta mil libras. — O cheque já está no correio, meu querido.

— Quem mais? — perguntou Gabriel. — Quem mais sabe de nós? Isherwood assumiu uma expressão pensativa.

— O maldito Oliver Dimbleby — respondeu. — Lembras-te do Oliver? Apresentei-o no Greens, uma bela tarde em que nós estávamos a almoçar. Aquele negociante atarracado de King Street. Certa vez tentou comprar-me a galeria. Gabriel lembrava-se. Ainda tinha, algures, o espalhafatoso cartão de visita dourado que Oliver lhe impingira. Oliver mal olhara na sua direção. Era a sua maneira de ser.

— Ao longo dos anos fiz muitos favores ao Crabbe — notou Isherwood. — O tipo de favores dos quais não gostamos de falar, no nosso ramo. Quanto ao Oliver Dimbleby, ajudei-o a resolver uma grande trapalhada que ele fez com uma garota que trabalhava na galeria dele. Recebi a desgraçada. Dei-lhe trabalho. Ela trocou-me por outro negociante. É o que as minhas garotas fazem sempre. O que se passa comigo para afastar sempre as mulheres? Sou um alvo fácil, é o que é. As mulheres percebem isso. O teu bando também. O Herr Heller percebeu-o bem.

Herr Rudolf Heller, investidor de Zurique, era uma das identidades preferidas de Shamron. Fora nesse papel que recrutara Isherwood.

— Por sinal, como está ele?

— Enviou-te cumprimentos.

Gabriel baixou o olhar para a calçada úmida de Birdeage Walk. Do parque levantou-se um vento frio. Folhas mortas restolhavam no caminho dos dois homens.

— Preciso de um Van Gogh — repetiu Gabriel.

— Sim, eu ouvi da primeira vez. O problema é que eu não tenho um Van Gogh. Caso te tenhas esquecido, a Isherwood Fine Arts é especializada em pintores renascentistas.

Se queres impressionistas, tens de procurar noutro lado.

— Mas sabes onde posso encontrar um.

— A menos que o queiras roubar, neste momento não há nada no mercado... pelo menos que eu saiba.

— Mas isso não é verdade, certo, Julian? Tu sabes de um Van Gogh. Falaste-me sobre ele há séculos... uma história acerca de um O quadro desconhecido que o teu pai vira em Paris, entre as guerras. — Não foi só o meu pai — corrigiu Isherwood. — Também eu o vi. O Vincent pintou-o em Auvers, durante os últimos tempos de vida. Diz-se que pode ter sido a sua desgraça.

O problema o quadro não está à venda, e talvez nunca venha a estar. A família deixou-me bem claro que nunca se vai separar dele. E também fazem tenção de manter a sua existência em segredo.

— Conta-me outra vez essa história.

— Agora não posso, Gabriel. Tenho um compromisso na galeria às dez e meia. Cancela esse compromisso, Julian. Conta-me sobre o quadro.

Isherwood cruzou a ponte pedonal sobre o lago e dirigiu-se à galeria em St. Jamess. Gabriel enfiou as mãos um pouco mais fundo nos bolsos do blusão e seguiu-o.

— Alguma vez o limpaste? — perguntou Isherwood.

— Ao Vincent? Nunca.

— O que sabes sobre os seus últimos tempos de vida?

— O que toda a gente sabe, creio eu.

— Tretas, Gabriel. Não te faças de desentendido comigo. A tua cabeça é como um dicionário de arte.

— Foi no Verão de 1890, não foi?

Isherwood acenou a sua concordância professoral. — Continua, por favor. — Depois de o Vincent ter deixado o sanatório em Saint-Rémy, foi para Paris, ver o Theo e a Johanna. Visitou algumas galerias e exposições, e parou na loja de material artístico de Père Tanguy, para ver algumas telas que lá tinha guardadas. Três dias depois começou a ficar impaciente, por isso apanhou um trem para Auvers-sur-Oise, a cerca de trinta quilômetros de Paris. Pensou que Auvers seria ideal, um ambiente bucólico sossegado para o seu trabalho, mas próximo de Theo, a tábua de salvação financeira e emocional. Alugou um quarto por cima do Café Ravoux e entregou-se aos cuidados do Dr. Paul Gachet. Gabriel agarrou o braço de Isherwood e juntos aproveitaram uma brecha no trânsito e entraram na Marlborough Road. — Começou a pintar imediatamente. Tal como o espírito, o estilo estava mais calmo e discreto. A agitação e a violência que caraterizaram grande parte do seu trabalho em Saint-Rémy e em Aries desaparecera. Foi também extraordinariamente prolífico. Durante os dois meses que Vincent ficou em Auvers, produziu mais de oitenta quadros. Um quadro por dia. Às vezes dois.

Viraram para King Street. Gabriel parou de repente. Mais à frente, a bambolear-se pelo passeio na direção da entrada da casa de leilões Christies, estava Oliver

Dimbleby. Isherwood cortou de súbito para Bury Street e retomou a narrativa no ponto onde Gabriel parara.

— Quando o Vincent não estava à frente da tela, normalmente encontrava-se no quarto por cima do Café Ravoux, ou na casa de Gachet. Este era um viúvo com dois filhos, um rapaz de quinze anos e uma filha que fez vinte e um durante a estadia de Vincent em Auvers.

— Marguerite. Isherwood anuiu.

— Era uma jovem bonita, que se sentia bastante atraída pelo Vincent. Acedeu em posar para ele... infelizmente sem a autorização do pai. Pintou-a no jardim da casa da família, vestida com uma túnica branca.

— Marguerite Gachet no Jardim — disse Gabriel.

— E quando o pai descobriu, ficou furioso.

— Mas ela voltou a posar.

— Correto — asseverou Isherwood. — O segundo quadro é Marguerite Gachet ao Piano. Também surge em Vegetação com Duas Figuras, um trabalho profundamente simbólico que alguns historiadores de arte viram como uma profecia da morte do próprio Vincent. Mas acredito que sejam Vincent e Marguerite a percorrer o corredor da igreja... a premonição de casamento de Vincent.

— Mas houve um quarto quadro de Marguerite?

Marguerite Gachet ao Toucador — clarificou Isherwood. — É de longe o melhor de todos. Apenas meia dúzia de pessoas o viu, ou sequer sabe que ele existe. O Vincent pintou-o poucos dias antes de morrer. E depois a obra desapareceu.

Caminharam até Duke Street e depois entraram numa passagem estreita, que dava acesso a um pátio quadrangular de tijolo chamado Masons Yard. A galeria de Isherwood ocupava um velho armazém vitoriano num canto, entalada entre os escritórios de uma empresa de navegação grega de pouca importância e um pub cheio de bonitas empregadas de escritório que dirigiam scooters. Isherwood fez menção de cruzar o pátio para se dirigir à galeria, mas Gabriel agarrou-lhe na lapela e puxou-o na direção oposta. Enquanto atravessavam o perímetro pelo meio das sombras frias, Isherwood comentou a morte de Vincent.

— Na noite de 27 de julho, Vincent voltou ao Café Ravoux, visivelmente em sofrimento, e subiu a custo a escada até seu quarto. Madame Ravoux seguiu-o e descobriu que fora alvejado. Mandou chamar um médico. Este, é claro, era o próprio Gachet. Decidiu deixar a bala na barriga do Vincent e convocou Theo a Auvers. Quando Theo chegou, na manhã seguinte, encontrou Vincent sentado na cama, fumando cachimbo. Morreu no fim desse dia.

Chegaram a uma zona iluminada pelo sol. Isherwood protegeu os olhos com a mão comprida.

— Existem muitas perguntas sem resposta quanto ao suicídio de Vincent. Não é claro onde conseguiu a arma, nem o local exato onde se alvejou. Também existem questões sobre a motivação. Terá sido o suicídio o culminar de uma longa batalha contra a loucura? Teria ficado perturbado com uma carta que recebera de Theo, onde este sugeria que não ia poder continuar a sustentá-lo, juntamente com a sua própria mulher e filho? Será que o Vincent se matou como parte de um plano para fazer com que o seu trabalho se tornasse relevante e comercialmente viável? Nunca fiquei muito satisfeito com nenhuma destas teorias. Acredito que tenha que ver com Gachet. Mais concretamente, com a filha do Dr. Gachet.

Voltaram a mergulhar nas sombras do pátio. Isherwood baixou a mão.

— No dia antes de se ter alvejado, Vincent foi a casa de Gachet. Discutiram violentamente e Vincent ameaçou Gachet com uma arma. Qual o motivo da discussão? Mais tarde, Gachet disse que teve que ver com uma moldura, consegues imaginar? Acredito que tenha sido por causa de Marguerite. Julgo que possa ter tido que ver com o Marguerite Gachet ao Toucador. É um trabalho maravilhoso, um dos melhores retratos do Vincent. A pose e o cenário representam claramente uma noiva na noite de núpcias.

O significado não teria passado despercebido a um homem como Paul Gachet. Se viu o quadro, e não há razão para acreditar que não tivesse visto, terá ficado enraivecido. Talvez Gachet tenha dito a Vincent que o casamento com a filha estava fora de questão. Talvez tenha proibido o Vincent de voltar a pintá-la. Talvez o tenha proibido de voltar a vê-la. Apenas sabemos que Marguerite Gachet não esteve presente no funeral de Vincent, embora tenha sido vista no dia seguinte, lavada em lágrimas, a deixar girassóis na campa dele. Nunca se casou e viveu em Auvers quase como uma reclusa até que morreu, em 1949. Passaram a entrada da galeria de Isherwood e continuaram a andar.

— Depois da morte do Vincent, os quadros tornaram-se propriedade do Theo. Preparou o envio dos trabalhos que o Vincent produzira em Auvers e armazenou-os em Père Tanguy, em Paris. Claro que o Theo morreu pouco depois do Vincent, e os quadros passaram para Johanna. Nenhum outro familiar de Vincent quis algum dos seus trabalhos. O irmão de Johanna considerou-os inúteis e sugeriu que fossem queimados. — Isherwood parou. — Consegues imaginar? — Voltou a avançar com um passo largo. -Johanna catalogou o inventário e foi incansável a criar a reputação do Vincent. Deve-se a Johanna que Vincent van Gogh seja considerado um grande artista. Mas há uma omissão notória na lista de trabalhos conhecidos.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Precisamente — confirmou Isherwood. — Terá sido um acidente, ou foi intencional? Nunca saberemos, claro está, mas tenho uma teoria. Acredito que Johanna soubesse que o quadro pode ter contribuído para a morte de Vincent. Seja qual for o caso, foi vendido por tuta-e-meia, cerca de um ano após a morte de Vincent, e nunca mais foi visto. E é nesse ponto que o meu pai entra na história.

Terminaram a primeira volta ao pátio e começaram uma segunda. Isherwood reduziu o ritmo quando começou a falar sobre o pai.

— Sempre foi um berlinense de coração. Teria lá permanecido sempre. Claro que não foi possível. O meu pai viu a tempestade que se aproximava e não perdeu tempo a sair da cidade. No final de 1936 tínhamos deixado Berlim e mudado para Paris. — Olhou para Gabriel.

— É pena que o teu avô não tenha feito o mesmo. Era um grande pintor, o teu avô. Descendes de uma bela linhagem, meu rapaz.

Gabriel mudou rapidamente de assunto.

— A galeria do teu pai ficava na rue de Ia Boétie, não era?

— É claro — replicou Isherwood. — Nessa altura, a rue de la Boétie era o centro do mundo da arte. Paul Rosenberg tinha a sua galeria no número 21. O Picasso e a Olga viviam no outro lado do pátio, no número 23. Georges Wildenstein, Paul Guillaume, Josse Hessel, Étienne Bignou... estava lá ioda a gente. A Isakowitz Fine Arts ficava ao lado da galeria do Paul Rosenberg. Vivíamos num apartamento por cima das salas de exposição. Picasso era o meu "Tio Pablo". Costumava deixar-me vê-lo a pintar e a Olga dava-me chocolates até ficar maldisposto.

Isherwood permitiu-se esboçar um sorriso, que se desvaneceu rapidamente quando regressou à história do pai em Paris.

— Os alemães chegaram em Maio de 1940 e começaram a pilhar tudo. O meu pai alugou uma casa de campo em Bordeaux, no lado de Vichy da linha, e mudou para lá a maior parte de suas peças importantes. Seguimos pouco tempo depois. Os alemães entraram na zona não ocupada em 1942 e tiveram início as rusgas e as deportações. Ficamos encurralados. O meu pai pagou a dois pastores bascos para me levarem através das montanhas até Espanha. Entregou-me documentos, um inventário profissional e alguns diários. Foi a última vez que o vi. Ouviu-se uma buzina sonora em Duke Street e um esquadrão de pombos alçou voo no pátio envolto em sombras.

— Foram precisos anos até ler os diários. Num deles descobri uma entrada sobre um quadro que o meu vira certa noite em Paris, na casa de um homem chamado Isaac Weinberg.

— Marguerite Gachet ao Toucador.

— Weinberg disse ao meu pai que tinha comprado o quadro a Johanna, pouco depois da morte do Vincent, e que o oferecera à esposa como prenda de aniversário. Ao que parece, Mrs. Weinberg era parecida com Marguerite. O meu pai perguntou ao Isaac se estaria disposto a vendê-lo, mas a resposta foi negativa. Pediu ao meu pai que não mencionasse o quadro a ninguém, e ele fez-lhe a vontade. O celular de Isherwood chilreou e ele ignorou-o.

— No início da década de setenta, pouco antes de nos conhecermos, estive em Paris, em negócios. Fiquei com algumas horas entre compromissos e decidi procurar Isaac Weinberg. Fui à morada de Marais que estava nos cadernos do meu pai, mas Weinberg já lá não se encontrava. Não tinha sobrevivido à guerra. Mas conheci o filho, Marc, e falei-lhe da entrada no diário do meu pai. De início negou a história, mas acabou por ceder e permitiu-me que visse o quadro, não sem primeiro fazer-me jurar segredo eterno. Estava no quarto da filha. Perguntei-lhe se estaria interessado em desfazer-se dele. Recusou a oferta, é claro.

— Tens certeza de que é do Vincent?

— Sem sombra de dúvida. — E nunca mais lá voltaste?

— Monsieur Weinberg deixou bem claro que a pintura nunca estaria à venda. Achei que não fazia sentido lá voltar. — Isherwood deteve-se e encarou Gabriel. — Muito bem, meu querido. Já te contei a história. Imagino que me queiras explicar o que se passa.

— Preciso desse Van Gogh, Julian.

— Para quê?

Gabriel agarrou na manga de Isherwood e levou-o até a porta da galeria. Ao lado da porta de vidro havia um painel com intercomunicador, com quatro botões e respetivas placas de identificação. Num deles lia-se ISHRR OO FINE AR S: só com MARCAÇÃO. Isherwood abriu a porta com uma chave e conduziu Gabriel por um lance de escadas coberto por carpete marrom puído. À esquerda ficava uma pequena agência de viagens melancólica. A dona, uma solteirona chamada Miss Archer, estava sentada à secretária, à frente de um cartaz com um casal de ar feliz a chapinhar na água azul. A porta de Isherwood ficava à direita. A secretária mais recente, uma criatura de ar apologético chamada Tanya, olhou-os furtivamente quando Isherwood e Gabriel entraram.

— Este é Mr. Klein — apresentou-o Isherwood. — Quer ver uma coisa lá em cima. Sem interrupções, por favor. Bonita menina, Tanya, minha querida. Entraram para um elevador do tamanho de uma cabine telefônica e subiram tão próximos um do outro que Gabriel pôde sentir o cheiro do clarete da noite anterior no hálito de Isherwood. Segundos depois, o elevador parou com um solavanco e a porta abriu-se com um gemido. A sala de exposições de Isherwood encontrava-se na obscuridade, iluminada apenas pelo sol da manhã filtrado pela claraboia. Isherwood acomodou-se no divã forrado a veludo no centro da sala, enquanto Gabriel iniciava uma pequena visita. Os quadros eram quase invisíveis nas sombras profundas, mas conhecia-os bem: uma Vênus de Luini, uma natividade de Ferino dei Vaga, um batismo de Cristo de Bordone, uma paisagem luminosa de Claude.

Isherwood abriu a boca para falar, mas Gabriel levou um dedo aos lábios e retirou do bolso o que parecia ser um vulgar celular Nokia. Era com efeito um Nokia, mas o aparelho continha várias caraterísticas adicionais que não estavam disponíveis para clientes normais, como por exemplo um sinalizador GPS e um instrumento capaz de detectar a presença de transmissores ocultos. Gabriel deu mais uma volta à sala, desta vez com os olhos na tela do telefone. Depois sentou-se ao lado de Isherwood e, em voz baixa, disse-lhe por que precisava do Van Gogh.

— Zizi al-Bakari? — perguntou Isherwood, incrédulo. — É um diabo de um terrorista? Tem certeza?

— Não é ele que coloca as bombas, Julian. Nem sequer fabrica as bombas. Mas financia as bombas e usa seu império empresarial para facilitar o movimento de homens e materiais pelo globo. Atualmente, é tão ruim quanto ser terrorista. Pior.

— Conheci-o há tempos, mas ele não se lembraria. Fui a uma festa na propriedade dele em Gloucestershire. Uma festa enorme. Um mar de gente. Zizi nunca esteve presente. Desceu no fim, como se fosse um Gatsby. Cercado por guarda-costas, mesmo dentro da casa dele. Um tipo estranho. Mas é um colecionador voraz, não é? Arte. Mulheres. Tudo o que o dinheiro possa comprar. É um rapace, pelo que ouvi dizer. Nunca fiz negócios com ele, claro está. Zizi não se sente inclinado para os Renascentistas. Prefere os Impressionistas e mais algumas coisas modernas. Os árabes são todos assim. Não gostam da imagética cristã da Renascença.

Gabriel sentou-se ao lado de Isherwood.

— Ele não tem um Van Gogh, Julian. De vez em quando dá a entender que anda à procura de um. E não de um Van Gogh qualquer. Deseja algo especial. — Pelo que ouvi dizer, é muito cuidadoso com o que compra. Gasta rios de dinheiro, mas fá-lo com prudência. Tem uma coleção digna de um museu, mas nunca me tinha apercebido de que lhe faltava um Van Gogh.

— O conselheiro de arte dele é um inglês chamado Andrew Malone. Conhece-o?

— Infelizmente, Andrew e eu nos conhecemo bem. Tem enfiado bem as mãos nos bolsos de Zizi. Passa férias no iate de Zizi. Segundo parece, é grande como um Titanic. Andrew é velhaco. E porco, também.

— Em que sentido?

— Recebe de dois lados, meu querido.

— Que quer dizer com isso, Julian?

— Andrew tem um acordo exclusivo com Zizi, o que significa que não deve receber dinheiro de outros negociantes ou colecionadores de arte. É assim que os tubarões como Zizi garantem que os conselhos que recebem não são maculados por conflitos de interesse.

— O que anda a tramar o Malone?

— Extorsão, duplas comissões, de tudo um pouco.

— Tens certeza?

— Absoluta, meu querido. Toda a gente sabe que para fazer negócio com Zizi é preciso pagar ao Andrew Malone.

De repente, Isherwood levantou-se do divã e percorreu a sala de exposições. — Então e qual é seu plano? Fazer Zizi do buraco dele com um Van Gogh? Aparecer com ele diante dos olhos dele e esperar que engula anzol, linha e boia? Mas do outro lado da linha vai estar alguma coisa, não é? Um dos seus agentes?

— Algo do gênero.

— E onde pensa fazer isso? Aqui, imagino?

Gabriel olhou para a sala com um ar de aprovação.

— Sim — respondeu. — Acho que serve perfeitamente.

— Já receava.

— Preciso de um negociante — explicou Gabriel. — Alguém bem conhecido no ramo. Alguém em que eu possa confiar.

— Trabalho com pintores renascentistas, não com impressionistas.

— Isso não interessa, com um negócio discreto como este.

Isherwood não argumentou. Sabia que Gabriel tinha razão.

— Já pensaste nas consequências para mói, se o teu esquema der resultado? vou ficar marcado. Desenrasco-me bem com fuinhas como o Oliver Dimbleby, mas o raios parta da Al-Qaeda é outra história.

— É óbvio que teremos de tomar medidas pós-operacionais para tua segurança. — Adoro os teus eufemismos, Gabriel. Sempre que a verdade é demasiado horrível, tu e Shamron recorrem a eufemismos. Vão pôr a minha cabeça a prêmio. Vou ter de acabar com o negócio e me esconder.

Gabriel pareceu insensível aos protestos de Isherwood.

— Não está ficando mais jovem, Julian. Está quase no fim da linha. Não tem filhos. Não tem herdeiros. Quem vai ficar com a galeria? Além disso, já parou para pensar na comissão que vai receber pela venda particular de um Van Gogh desconhecido? Se juntar a isso o que vai ganhar com uma liquidação total, parece que as coisas podiam ser piores, Julian.

— Estou imaginando uma casinha no Sul da França. Um nome novo. Uma equipe de agentes do Escritório a protegerem-me durante a minha velhice. — Não te esqueças de me reservar um quarto. Isherwood voltou a sentar-se.

— O teu plano tem uma falha grave, meu querido. Vai ser mais fácil apanhares esse teu terrorista do que conseguir o Van Gogh. Partindo do princípio de que ainda está nas mãos da família Weinberg, o que te leva a pensar que vão abdicar dele?

— Ninguém disse que tinham de abdicar dele.

Isherwood sorriu.

— Vou buscar o endereço.

14

MARAIS, PARIS

— Devia comer alguma coisa — disse Uzi Navot.

Gabriel abanou a cabeça. Almoçara no trem de Londres.

— Experimenta o borscht — insistiu Navot. — Não pode vir ao Jo Goldenberg sem comer borscht.

— Posso, sim — contrapôs Gabriel. — Comida roxa me deixa nervoso.

Navot chamou a atenção do empregado e pediu uma dose dupla de borscht e um copo de vinho tinto. Gabriel franziu o sobrolho e olhou pela janela. Uma chuva constante açoitava o pavimento da rue des Rosiers e quase que anoitecera. Pretendera encontrar-se com Navot noutro local que não no mais famoso restaurante do mais importante bairro judaico de Paris, mas Navot insistira no Jo Goldenberg, com base na sua crença de que o melhor lugar para esconder um pinheiro era numa floresta.

— Este sítio está a deixar-me nervoso — murmurou Gabriel. Vamos dar uma volta. — com este tempo? Nem penses. Além disso, ninguém te vai reconhecer nessa figura. Até eu mal reparei em ti quando entraste.

Gabriel olhou para o rosto fantasmagórico refletido no copo. Tinha um boné de bombazina, lentes de contato que lhe transformavam os olhos verdes em castanho e uma barbicha falsa que lhe acentuava as feições já por si estreitas. Viajara para Paris com um passaporte alemão com o nome Heinrich Kiever. Depois de chegar à Gare du Nord, passara duas horas a caminhar pelas margens do Sena, a confirmar que não estava a ser seguido. Na mochila tinha um exemplar usado de Voltaire que comprara numa bouquiniste no Quai Montebello.

Dirigiu a atenção para Navot. Era um homem entroncado, vários anos mais novo do que Gabriel, de cabelo louro curto e olhos azuis pálidos. Segundo o léxico do Escritório, era um katsa, um agente de campo infiltrado. Armado com toda uma série de línguas, um encanto velhaco e uma arrogância fatalista, penetrara em células terroristas palestinas e recrutara agentes em embaixadas árabes espalhadas pela Europa Ocidental. Tinha fontes em quase todos os serviços de espionagem e de segurança europeus e geria uma rede vasta de sayanim. Podia sempre contar com a melhor mesa da churrascaria do Ritz de Paris, pois o maître d’hôtel era um informante pago, como também o chefe das empregadas de limpeza. Vestia agora um casaco cinzento de tweed e uma camisola de gola alta preta, pois a sua identidade em Paris era a de Vincent Laffont, um escritor freelance de livros de viagens, de ascendência bretã, que passava a maior parte do tempo na estrada. Em Londres era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura empresa de software canadiana. Em Madrid era um alemão de recursos independentes que passava o tempo em cafés e em bares, e que viajava para aliviar o fardo de uma alma agitada e complexa.

Navot tirou da pasta um dossiê que colocou na mesa à frente de Gabriel.

— Aqui está a dona do teu Van Gogh — disse. — Dá uma olhada.

Gabriel levantou discretamente a capa. A fotografia mostrava uma atraente mulher de meia-idade com cabelo escuro ondulado, pele cor de azeitona e um longo nariz aquilino. Segurava um guarda-chuva aberto e descia um lance de degraus de pedra em Montmartre.

— Hannah Weinberg — informou Navot. — Quarenta e quatro anos, solteira, sem filhos. É um bom exemplo da atual demografia judaica. Filha única sem filhos. Pelo andar da carruagem, não vamos precisar de um Estado. — Navot baixou o olhar e revirou, taciturno, o prato de frango recheado com legumes. Tendia para períodos de desânimo, especialmente quando se tratava do futuro do povo judeu. — É dona de uma pequena boutique em Montmartre, na rue Lepic. Chama-se Boutique Lepic. Tirei a foto no início da tarde, quando estava a sair para almoçar. Ficamos com a impressão de que a boutique é mais um passatempo do que vocação. Dei uma vista de olhos às contas bancárias dela. O Marc Weinberg deixou à filha uma vida desafogada.

O empregado aproximou-se e colocou um prato de uma mistela roxa à frente de Gabriel, que o empurrou de imediato para o centro da mesa. Não suportava o cheiro do borscht. Navot deitou um naco de pão para dentro do caldo e mergulhou-o com a colher.

— O Weinberg era um homem interessante. Era um advogado importante, aqui em Paris. Era também um militante das recordações. Pressionou bastante o Governo para que assumisse o papel dos franceses no Holocausto. Como resultado, ganhou uma certa impopularidade em alguns círculos parisienses.

— E a filha? Qual é a cor dela?

— Euro-socialista moderada, mas na França isso não é crime. Também herdou alguma militância do pai. Está envolvida com um grupo que tenta combater o anti-semitismo. Já se encontrou com o presidente francês. Vê debaixo da fotografia.

Gabriel encontrou um recorte de uma revista francesa sobre a onda de anti-semitismo na França. A fotografia acompanhante mostrava manifestantes judaicos numa marcha sobre as pontes do Sena. À frente da coluna, com um cartaz que dizia ACABEM com o ÓDIO JÁ, seguia Hannah Weinberg.

— Alguma vez foi a Israel?

— Pelo menos quatro vezes. Shabak está a investigar para garantir que ela não esteve em Ramallah, a conspirar com os terroristas. Tenho certeza de que não vão encontrar nada. Ela é sincera, Gabriel. Uma dádiva dos deuses da inteligência.

— Preferências sexuais?

— Homens, segundo julgamos. Está envolvida com um funcionário público.

— Judeu?

— Graças a Deus.

— Esteve na casa dela?

— Entrei com a equipe neviot.

As equipes neviot eram especializadas na obtenção de informações de locais como apartamentos, escritórios e quartos de hotel. A unidade empregava alguns dos melhores arrombadores e ladrões do mundo. Mais à frente na operação, Gabriel tinha outros planos para eles isso é claro, desde que Hannah Weinberg aceitasse separar-se do seu Van Gogh.

— Viste o quadro? Navot anuiu.

— Está no quarto de quando era pequena.

— Qual era o aspeto dele?

— Queres a minha avaliação de um Van Gogh? — Navot encolheu os ombros maciços. — É um quadro bonito, de uma garota sentada a um toucador. Não tenho uma veia artística, como tu. Sou mais virado para frango estufado e uma boa história de amor no cinema. Não estás a comer a tua sopa. — Não gosto, Uzi. Eu disse-te que não gostava.

Navot pegou na colher de Gabriel e mexeu o creme picante, aclarando o tom da mistura roxa.

— Demos uma vista de olhos aos papéis dela — continuou Navot. — Revistamos os armários e as gavetas. Também deixamos umas coisas no telefone e no computador. Nestas situações, todo o cuidado é pouco. — A casa está vigiada?

Navot pareceu ficar magoado com a pergunta.

— E claro — respondeu.

— O que estão a usar como posto de escuta?

— Por enquanto, uma van. Se ela concordar em ajudar-nos, vamos precisar de algo mais permanente. Um dos rapazes da neviot já anda no bairro à procura de um apartamento adequado.

Navot afastou os restos do frango estufado e atacou o borscht de Gabriel. Apesar da sua sofisticação europeia, no fundo continuava a ser um camponês do shtetl. — Já sei no que isso vai dar — comentou, entre colheradas. — Vais à procura do mau da fira, e eu fico um ano inteiro a vigiar uma mulher. Mas sempre foi assim, não é? Ficas com a glória toda, enquanto a mão de obra de campo faz o trabalho sujo. Meu Deus, salvaste o papa. Como um simples morcomo eu pode competir com isso?

— Cala-te e come a sopa, Uzi.

Ser o favorito de Shamron tinha o seu preço. Gabriel estava habituado à inveja profissional dos colegas.

— Amanhã tenho de sair de Paris — disse Navot. — Vou estar fora apenas um dia.

— Aonde vai?

— Amos quer falar comigo. — Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Acho que tem a ver com o cargo das Operações Especiais. O cargo que tu recusaste. Fazia sentido, pensou Gabriel. Navot era um agente de campo extremamente capaz, que participara em várias operações de monta, incluindo algumas com Gabriel. — É isso que quer, Uzi? Um trabalho no Boulevard King Saul?

Navot encolheu os ombros.

— Já ando no campo há muito tempo. Bella quer se casar. É difícil ter uma vida pessoal estável quando se vive assim. Às vezes, quando acordo de manhã, não faço ideia de onde vou estar no fim do dia. Posso tomar o pequeno-almoço em Berlim, almoçar em Amsterdam e estar no Rei Saul à meia-noite, apresentando relatório ao diretor. — Navot ofereceu um sorriso cúmplice a Gabriel. — É isso que os americanos não entendem. Enfiam os agentes em caixinhas e depois os castigam quando pisam na risca. O Escritório não é assim. Nunca foi. É por isso que temos o melhor trabalho do mundo... e é por isso que os nossos serviços são muito melhores que os deles. Não saberiam o que fazer com um homem como você.

Navot perdera o interesse no borscht. Empurrou-o, para que parecesse que Gabriel o comera. Gabriel pegou no copo de vinho, mas depois reconsiderou. Doía-lhe a cabeça por causa da viagem de trem e do tempo chuvoso de Paris, e o vinho tinha um cheiro tão apelativo como diluente.

— Mas tem o seu preço nos casamentos e nas relações, não é, Gabriel? Quantos de nós são divorciados? Quantos de nós tiveram romances com garotas no campo? Pelo menos se trabalhar em Tel Aviv vou estar mais vezes em casa. Continua a ser preciso viajar muito, mas não tanto como agora. A Bella tem uma casa perto da praia, em Cesareia. Vai ser uma boa vida. — Voltou a encolher os ombros.

— Escutem só. Estou falando como se Amos tivesse me oferecido o cargo. Amos não me ofereceu nada. Até pode estar me chamando ao Boulevard King Saul para me despedir.

— Não seja ridículo. É o homem mais indicado para o cargo. Vai ser meu chefe, Uzi.

— Seu chefe? Por favor. Você não tem chefes, Gabriel. Só o velhote.

A expressão de Navot tornou-se subitamente grave. — Como está ele? Ouvi dizer que não está bem.

— Vai se recuperar — assegurou-lhe Gabriel.

Ficaram em silêncio quando o empregado se aproximou da mesa e levantou os pratos. Ao afastar-se, Gabriel devolveu o dossiê a Navot, que o voltou a guardar na pasta.

— Como vai agir com Hannah Weinberg?

— Vou pedir que ceda um quadro que vale oitenta milhões de dólares. Tenho que contar a verdade... ou pelo menos uma versão da verdade. E depois teremos de lidar com as consequências da segurança.

— E quanto à abordagem? Vai dançar um pouco, ou vai cair matando?

— Eu não danço, Uzi. Nunca tive tempo para dançar.

— Pelo menos não terá problema em convencê-la de quem é. Graças aos serviços de segurança franceses, todos em Paris conhecem seu nome e seu rosto. Quando pretende começar?

— Esta noite.

— Nesse caso, está com sorte.

Navot fitou a janela. Gabriel seguiu seu olhar e viu uma mulher de cabelo escuro descendo a rue des Rosiers, abrigada por um guarda-chuva. Levantou-se sem uma palavra e dirigiu-se à porta.

— Não se preocupe, Gabriel — resmungou Navot entre dentes. — Eu pago a conta.

No final da rua, ela virou à esquerda e desapareceu. Gabriel fez uma pausa à esquina e observou alguns ortodoxos de casaco negro a entrarem para uma sinagoga, para as orações da tarde. Depois olhou para a rue Pavée e viu a silhueta de Hannah Weinberg a entrar nas sombras. Parou à porta de um prédio de apartamentos e procurou a chave na mala. Gabriel cruzou o passeio e deteve-se a pouca distância dela, no momento em que a mulher esticava a mão para a fechadura.

— Mademoiselle Weinberg?

Virou-se e olhou-o calmamente na escuridão. Dos olhos emanava uma inteligência calma e sofisticada. Se ficou sobressaltada com a abordagem, não o mostrou.

— É Hannah Weinberg, não é?

— Em que posso ajudá-lo, Monsieur?

— Preciso da sua ajuda — disse Gabriel. — Pensei que talvez pudéssemos conversar em privado.

— Conhecemo-nos, Monsieur?

— Não — respondeu Gabriel.

— Nesse caso, como poderei ajudá-lo?

— Seria preferível discutirmos o assunto em particular, Mademoiselle.

— Não costumo ir a locais privados com desconhecidos, Monsieur. Agora, se me dá licença.

Virou-se e dirigiu outra vez a mão à fechadura.

— Tem que ver com o seu quadro, Mademoiselle Weinberg. Preciso falar com você sobre o seu Van Gogh.

Ela imobilizou-se e voltou a fitá-lo. O olhar continuava calmo.

— Lamento desapontá-lo, Monsieur, mas não tenho um Van Gogh. Se gostaria de ver algumas pinturas de Vincent, sugiro que visite o Musée d’Orsay.

Voltou a desviar o olhar.

— Marguerite Gachet ao Toucador — disse Gabriel calmamente. Foi adquirido pelo seu avô à viúva de Theo van Gogh, Johanna, e oferecido à sua avó como presente de aniversário. A sua avó tinha uma vaga semelhança com Mademoiselle Gachet.

Quando era pequena, o quadro estava no seu quarto. Devo continuar? A compostura dela desapareceu. Quando voltou a falar, após um momento de silêncio espantado, a voz denotava uma veemência inesperada.

— Como sabe do meu quadro?

— Não tenho liberdade para o revelar.

— É claro que não. — A frase foi proferida como um insulto.

— O meu pai sempre me avisou que, um dia, um negociante de arte francês ganancioso iria tentar retirar-me o quadro. Não está à venda e, se por acaso desaparecer, garanto que a Polícia vai receber a sua descrição.

— Não sou negociante de arte... e não sou francês

— Então quem é o senhor? — questionou. — E o que pretende do meu quadro?


15

MARAIS, PARIS

O patio encontrava-se vazio e escuro, iluminado apenas pelas luzes das janelas dos apartamentos mais acima. Cruzaram-no em silêncio e entraram no hall, onde um antiquado elevador de portas de grades os aguardava. Ela preferiu a escada amplas e guiou-o até o terceiro andar. No patamar viam-se duas portas imponentes de mogno. A porta à direita não tinha identificação. Hannah Weinberg abriu-a e entraram. Gabriel registrou o fato de ela ter digitado um código no teclado antes de acender as luzes. Não havia dúvida de que Hannah Weinberg era boa a guardar segredos. O apartamento era grande, com um hall de entrada formal e uma biblioteca adjacente à sala. Via-se mobília antiga coberta de brocado, cortinados grossos de veludo nas janelas, e um relógio de ouropel com as horas erradas tiquetaqueava calmamente no rebordo da lareira. O olhar profissional de Gabriel dirigiu-se de imediato aos seis quadros a óleo bastante decentes que estavam pendurados nas paredes. A decoração criava o ar de uma era passada. Gabriel não ficaria surpreendido se visse Paul Gachet a ler o jornal à luz do gás.

Hannah Weinberg tirou o casaco e desapareceu na cozinha. Gabriel aproveitou a oportunidade para dar uma vista de olhos à biblioteca. Volumes encadernados a couro enchiam estantes de madeira com portas de vidro. Havia mais pinturas na divisão, paisagens prosaicas, um homem a cavalo, a obrigatória batalha marítima, mas nada que sugerisse que a dona pudesse também deter um Van Gogh perdido.

Regressou à sala no momento em que Hannah Weinberg surgia da cozinha com uma garrafa de Sancerre e dois copos. Entregou-lhe a garrafa e um saca-rolhas e observou-lhe cuidadosamente as mãos enquanto puxava a rolha. Não era tão atraente como parecera na fotografia de Uzi Navot. Talvez se devesse à luz parisiense, ou talvez praticamente qualquer mulher parecesse atraente a descer um lance de escadas em Montmartre. A saia de lã pregueada e a camisola pesada ocultavam o que Gabriel imaginava ser uma figura roliça. As sobrancelhas eram muito largas e emprestavam-lhe um ar de profunda seriedade ao rosto. Sentada como estava naquele momento, cercada pelas peças datadas da sala, parecia ter muito mais de quarenta e quatro anos de idade.

— Surpreende-me vê-lo em Paris, Monsieur Allon. Da última vez que li o seu nome no jornal, ainda era procurado para ser interrogado pela Polícia francesa. — Receio que ainda seja o caso.

— Mesmo assim, veio à França... só para falar comigo? Deve ser muito importante.

— É verdade, Mademoiselle Weinberg.

Gabriel serviu dois copos de vinho, entregou-lhe um e ergueu o outro num brinde silencioso. Ela imitou-o, ao que levou o copo aos lábios.

— Tem noção do que aconteceu aqui em Marais depois do atentado? — Hannah Weinberg respondeu à sua própria questão. — As coisas ficaram muito tensas. Dizia-se que tinha sido levado a cabo por Israel. Todos acreditavam que era verdade e, infelizmente, o Governo francês demorou muito tempo a lidar com a situação, mesmo depois de saberem que era mentira. Os nossos filhos foram agredidos nas ruas. Atiraram pedras às janelas e às vitrines. Escreveram coisas terríveis nas paredes de Marais e de outros bairros judeus. Sofremos bastante devido ao que aconteceu naquela estação ferroviária. — Lançou-lhe um olhar perscrutador, como se tentasse avaliar se fora mesmo aquele homem que vira nos jornais e na televisão. — Mas também sofreu, não foi? É verdade que a sua mulher esteve envolvida?

O tom direto da pergunta surpreendeu Gabriel. O seu primeiro instinto foi mentir, ocultar, levar mais uma vez a conversa para outro terreno. Mas tratava-se de um recrutamento — e Shamron dizia sempre que um recrutamento perfeito é, em essência, uma sedução perfeita.

E quando se estava a seduzir, obrigou-se Gabriel a recordar-se, era preciso revelar algo pessoal.

— Raptaram a minha esposa para me atraírem para a Gare de Lyon explicou. — Pretendiam matar-nos a ambos, mas também queriam desacreditar Israel e tornar a vida insuportável para os judeus da França.

— E conseguiram... pelo menos durante algum tempo. Não me interprete mal, Monsieur Allon, a situação continua difícil para nós. Apenas não tão má como nos dias que se seguiram ao atentado. — Bebeu mais um pouco de vinho, depois cruzou as pernas e alisou as pregas da saia. — Isto pode soar tolo, quando pensamos para quem trabalha, mas como descobriu o meu Van Gogh? Gabriel ficou em silêncio por um instante e depois respondeu-lhe com sinceridade. A menção da visita de Isherwood àquele apartamento havia mais de trinta anos fez com que esboçasse um vago sorriso de recordação. — Acho que me lembro dele — disse. — Um homem alto, muito elegante, cheio de charme e de graciosidade, mas, ao mesmo tempo, um tanto ou quanto vulnerável.

— Fez uma pausa, ao que acrescentou: — Tal como o senhor.

— Charme e graciosidade são qualidades que raramente me atribuem. — E vulnerabilidade? — Ofereceu-lhe mais um sorriso breve, que lhe aliviou a seriedade do rosto. — Todos nós somos vulneráveis até certo ponto, não é verdade? Até mesmo alguém como o senhor? Os terroristas descobriram o seu ponto fraco e exploraram-no. É o que fazem de melhor. Exploram a nossa decência.

O nosso respeito pela vida. Atacam o que nos é mais caro. Navot tinha razão, pensou Gabriel. Ela era uma dádiva dos deuses da inteligência. Pousou o copo sobre a mesa de centro. Os olhos de Hannah seguiram os movimentos.

— O que aconteceu a esse homem, Samuel Isakowitz? — perguntou Hannah. — Conseguiu se salvar?

Gabriel abanou a cabeça.

— Ele e a mulher foram capturados em Bordeaux, quando os alemães se deslocaram para o sul.

— Para onde foram enviados?

— Sobibor.

Sabia o que isso significava. Gabriel não precisava dizer mais nada.

— E seu avô? — perguntou ele.

Hannah olhou para o Sancerre por um momento, antes de responder.

— Jeudi Noir — disse. — Conhece o termo?

Gabriel aquiesceu com solenidade. Jeudi Noir. Quinta-Feira Negra. — Na manhã do dia 16 de Julho de 1942, quatro mil agentes da Polícia francesa invadiram Marais e outros bairros judeus de Paris, com ordens para deter vinte e sete mil judeus imigrantes da Alemanha, da Áustria, da Polônia, da União Soviética e da Checoslováquia. Meu pai e os meus avós estavam na lista. Sabe, os meus avós eram de Lublin, na Polónia. Os dois polícias que bateram à porta deste apartamento tiveram pena do meu pai e disseram-lhe que fugisse. Uma família católica que vivia no andar de baixo acolheu-o e aí ficou até a libertação. Os meus avós não tiveram a mesma sorte. Foram enviados para o campo de detenção de Drancy. Cinco dias depois, partiram num vagão selado para

Auschwitz. É claro que foi o seu fim.

— E o Van Gogh?

— Não houve tempo para tomar providências, e não havia ninguém em Paris em quem o meu avô pudesse confiar. Estávamos em guerra, sabe. As pessoas traíam-se por meias e por cigarros. Quando ouviu dizer que estavam a prender os judeus, retirou a pintura do esticador e escondeu-a por baixo de uma tábua do soalho da biblioteca. Depois da guerra passaram-se anos até que o meu pai conseguisse recuperar o apartamento. Uma família francesa tinha-se mudado para cá depois de os meus avós terem sido presos, e não estavam dispostos a abdicar de um bom apartamento na rue Pavée. Não se podia censurá-los.

— Em que ano o seu pai recuperou a posse da casa?

— Em 1952.

— Dez anos — disse Gabriel. — E o Van Gogh ainda lá estava?

— Tal como o meu avô o deixara, escondido debaixo do soalho da biblioteca.

— Espantoso.

— Sim — concordou. — O quadro está na família Weinberg há mais de um século, atravessou a guerra e o Holocausto. E agora está a pedir-me para abrir mão dele.

— Não quero que abra mão da pintura — asseverou Gabriel.

— Então de que se trata?

— Apenas preciso de... — Fez uma pausa, em busca da palavra correta. — Preciso alugá-lo.

— Alugar? Durante quanto tempo?

— Não lhe sei dizer. Talvez um mês. Talvez seis meses. Talvez um ano, ou mais. — com que objetivo?

Gabriel não estava preparado para responder. Pegou a rolha e usou a unha do polegar para arrancar uma lasca.

— Sabe quanto vale aquele quadro? — indagou Hannah. — Se está pedindo que o ceda, mesmo que por pouco tempo, creio que tenho o direito de saber o motivo.

— É verdade — concordou Gabriel —, mas também deve saber que se lhe contar a verdade sua vida nunca mais será a mesma.

Hannah serviu-se de mais vinho e segurou o copo de encontro ao corpo por um momento, sem o beber.

— Há dois anos, houve um ataque particularmente violento aqui em Marais. Um menino ortodoxo foi emboscado por um bando de norte-africanos, quando ia para casa. Pegaram-lhe fogo ao cabelo e gravaram-lhe uma suástica na testa. Ainda tem a cicatriz. Organizamos uma manifestação com o objetivo de pressionar o Governo francês a fazer alguma coisa quanto ao antissemitismo. Quando nos manifestávamos na place de la Republique, houve uma contramanifestação anti-israelense. Sabe o que eles nos gritavam?

— Morte aos judeus.

— E sabe o que disse o presidente francês?

— Não há antissemitismo na França.

— Desde esse dia, a minha vida nunca mais foi a mesma. Além disso, como já deve ter percebido, sei guardar um segredo. Diga-me para que quer o meu Van Gogh, Monsieur Allon. Talvez possamos chegar a um acordo.

A van de vigilância neviot estava estacionada junto ao Parc Royal. Uzi Navot bateu duas vezes com os nós dos dedos no vidro traseiro espelhado e a porta foi-lhe aberta de imediato. Um agente neviot estava sentado ao volante. O outro estava nas traseiras, curvado sobre uma consola eletrônica com um par de fones nos ouvidos. — O que há? — perguntou Navot.

— Gabriel já a conquistou — respondeu o neviot. — E agora vai cair matando.

Navot colocou os fones e ouviu Gabriel contar a Hannah Weinberg a forma como usaria o Van Gogh para localizar o homem mais perigoso do mundo. A chave estava guardada na gaveta de cima da secretária da biblioteca. Hannah utilizou-a para destrancar a porta ao fundo do corredor escuro. A divisão atrás da porta era um quarto de criança. O quarto de Hannah imobilizado no tempo, pensou Gabriel. Uma cama de dossel com pálio de renda. Prateleiras repletas de animais de pelúcia e brinquedos. Um poster de um ator americano charmoso. E, pendurado sobre uma cômoda provençal francesa, envolto nas sombras profundas, um quadro perdido de Vincent van Gogh.

Gabriel avançou lentamente e deteve-se à frente dele, a mão direita no queixo, a cabeça um pouco inclinada. Depois estendeu a mão e tocou de leve nas pinceladas sumptuosas. Eram de Vincent — Gabriel tinha certeza. Vincent em chamas. Vincent apaixonado. O restaurador avaliou calmamente o alvo. O quadro parecia nunca ter sido limpo. Estava coberto por uma leve camada de sujidade e apresentava três rachas horizontais — resultado, imaginou Gabriel, de ter sido enrolado com demasiada força por Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. — Imagino que devamos falar sobre o dinheiro — comentou Hannah. — Quanto pensa o Julian que vai render?

— À volta de oitenta milhões. Permiti que retirasse uma comissão de dez por cento, como compensação pelo papel na operação. O restante dinheiro será de imediato transferido para si.

— Setenta e dois milhões de dólares?

— Mais milhão, menos milhão, é claro. E quando a operação terminar?

— Recupero o quadro. — Como pretende fazê-lo?

— Deixe isso comigo, Mademoiselle Weinberg.

— E o que acontece aos setenta e dois milhões, quando me devolver o quadro? Mais milhão, menos milhão, é claro.

— Pode ficar com os juros acumulados. Para além disso, vou pagar-lhe uma taxa de aluguer. O que acha de cinco milhões de dólares?

Hannah sorriu.

— Parece-me bem, mas não pretendo ficar com o dinheiro para mim. Não quero o dinheiro deles.

— Nesse caso, o que tenciona fazer? Hannah explicou-lhe.

— Parece-me muito bem — replicou Gabriel. — Negócio fechado, Mademoiselle Weinberg?

— Sim — assentiu ela. — Negócio fechado.

Depois de sair do apartamento de Hannah Weinberg, Gabriel dirigiu-se a uma casa de segurança do Escritório, perto do Bois de Boulogne. Vigiaram-na durante três dias. Gabriel apenas a viu nas fotografias de vigilância e só ouviu a sua voz nas gravações. Todas as noites as escutava, em busca de sinais de traição, ou de indiscrição, mas apenas encontrou fidelidade. Na véspera do dia em que deveria entregar o quadro, ouviu-a a chorar baixinho e percebeu que se despedia de Marguerite.

Na manhã seguinte, Navot trouxe o quadro, enrolado numa manta velha que viera do apartamento de Hannah. Gabriel chegou a pensar em enviá-lo para Tel Aviv através de um correio, mas acabou por decidir ser ele próprio a levá-lo da França. Retirou-o da moldura e depois soltou a tela da armação. Quando a enrolou cuidadosamente, pensou em Isaac Weinberg, na véspera da Jeudi Noir. Agora, em vez de escondida por baixo do soalho, estava oculta em segurança por baixo do forro falso da mala de Gabriel. Navot levou-a à Gare du Nord. Um agente da Estação de Londres estará à espera em Waterloo — disse Navot. — Ele o leva a Heathrow. El Al está à espera. Vão garantir que não tenha problema com a bagagem.

— Obrigado, Uzi. Não demora e vai deixar de me fazer preparativos para as viagens.

— Eu não teria assim tanta certeza.

— As coisas não correram bem com Amos?

— Ele é muito fechado.

— O que disse ele?

— Disse que precisava de uns dias para pensar.

— Não estava esperava que ele te oferecesse o cargo de mão beijada, certo?

— Nem sei o que esperava.

— Não se preocupe, Uzi. Vai ficar com o cargo.

Navot parou no acostamento, a um quarteirão da estação.

— Pode dar uma palavrinha por mim na King Saul, Gabriel? Amos gosta de você.

— O que leva você a dizer isso?

— É fácil de ver — explicou-lhe. — Todos gostam de você.

Gabriel saiu do carro, retirou a mala do banco traseiro e desapareceu no interior da estação. Navot esperou na beira até cinco minutos depois da hora da partida de Gabriel. Depois arrancou para o meio do trânsito e afastou-se.

Quando Gabriel chegou, o apartamento estava às escuras. Acendeu uma lâmpada e ficou aliviado ao ver o estúdio intato. Entrou no quarto e viu Chiara sentada na cama. Lavara o cabelo e o prendera com um elástico de veludo. Gabriel retirou-o e desabotoou sua camisola. Enquanto faziam amor, o quadro ficou a seu lado.

— Sabe — comentou Chiara —, a maior parte dos homens volta de Paris com um lenço Hermès e um perfume.

À meia-noite, o telefone tocou. Gabriel atendeu antes do segundo toque. — Estarei lá amanhã — disse, após um momento, e desligou.

— Quem era? — perguntou Chiara. — Adrian Carter.

— O que ele queria?

— Quer que vá imediatamente para Washington.

— O que há em Washington?

— Uma garota — explicou Gabriel. — Carter encontrou a garota.

16

MCLEAN, VIRGÍNIA

— Como foi o voo?

— Nunca mais acabava.

— São as correntes de jato do outono — explicou Carter, com um certo pedantismo. — Atrasa pelo menos duas horas os voos da Europa para a América.

— Israel não fica na Europa, Adrian. Israel fica no Oriente Médio.

— Sério?

— Pergunte a seu diretor de informações. Ele esclarece a confusão.

Carter lançou um olhar de desdém a Gabriel, ao que devolveu a atenção à estrada. Dirigiam-se a Washington no Volvo amolgado de Carter, através da Dulles Access Road. Carter vestia um casaco de bombazina com remendos nos cotovelos, o que reforçava a imagem acadêmica. Só lhe faltava o saco de lona para os livros e a caneca personalizada. Conduzia bem abaixo do limite de velocidade e olhava com frequência para o espelho retrovisor.

— Estamos a ser seguidos? — perguntou Gabriel.

— Polícia de trânsito — explicou Carter. — São fanáticos, nesta estrada. Algum problema com o controle do passaporte?

— Nenhum — respondeu Gabriel. — Por acaso, pareciam muito contentes por me verem.

Era algo que Gabriel nunca compreendera em relação à América

— a cordialidade dos agentes de fronteira. Sempre vira algo de reconfortante no mau humor enfadado dos israelenses que carimbavam passaportes no Aeroporto Ben-Gurion. Os funcionários aduaneiros americanos eram demasiado cordiais. Olhou pela janela. Tinham deixado a Dulles Access Road e seguiam agora por McLean. Apenas estivera uma vez na Virgínia, para uma visita breve a uma casa de segurança da CIA, nas profundezas da terra dos cavalos, perto de Middleburg. Considerou McLean o típico subúrbio americano, limpo e próspero, mas com uma certa falta de vida. Atravessaram o bairro comercial da baixa e depois entraram numa secção residencial com grandes casas que pareciam saídas de um panfleto imobiliário. Os empreendimentos tinham nomes como Merrywood e Colonial Estates. Um sinal rodoviário flutuou na sua direção: CENTRO DE INFORMAÇÃO GEORGE BUSH.

— Não vais levar-me à sede, certo?

— É claro que não — garantiu Carter. — Vamos para o Bairro.

Gabriel sabia que o Bairro era a forma como os habitantes de Washington se referiam à pequena aldeia no Potomac. Cruzaram um viaduto sobre a autoestrada e entraram numa zona de encostas e matas densas. Por entre as árvores, Gabriel avistou casas imponentes em frentes ao rio.

— Como se chama?

— Sarah Bancroft — respondeu Carter. — O pai era executivo da divisão internacional do Citibank. Cresceu quase sempre na Europa. Ao contrário da maioria dos americanos, sente-se confortável no estrangeiro. Fala algumas línguas estrangeiras. Sabe usar os talheres na altura correta.

— Estudos?

— Regressou à América para fazer o curso superior. Licenciou-se em História da Arte em Dartmouth, e depois estudou no Courtauld Institute of Art, em Londres. Imagino que conheças o Courtauld?

Gabriel anuiu. Era uma das mais prestigiadas escolas de arte do mundo. Nele tinham-se formado nomes como um certo negociante de arte de St. James chamado Julian Isherwood.

— Depois do Courtauld, fez um doutorado em Harvard prosseguiu Carter. — Agora é conservadora do Phillips Colletion, em Washington. É um pequeno museu, perto de...

— Eu conheço o Phillips Colletion, Adrian.

— Desculpe — lamentou-se Adrian, sinceramente. Um veado surgiu de entre as árvores e cruzou-se no caminho do carro. Adrian levantou o pé do acelerador e observou o animal a desaparecer em silêncio na mata escura.

— Como ficaram sabendo dela? — perguntou Gabriel, mas Carter não respondeu. Estava inclinado sobre o volante, a perscrutar as árvores ao longo da estrada, à procura demais veados.

— Quando aparece um — explicou —, normalmente há mais.

— Como os terroristas — comentou Gabriel. Repetiu a pergunta.

— Ela candidatou-se aos nossos serviços poucos meses depois do onze de Setembro — explicou Carter. — Tinha acabado o doutorado. Parecia interessante na ficha, por isso a chamamos e entregamos aos psiquiatras do RH. Interrogaram-na e não gostaram do que viram. Independente demais, foi o que disseram. Talvez até um pouco inteligente demais para seu próprio bem. Quando a recusamos, foi parar no Phillips. — Estás a oferecer-me uma das suas rejeitadas?

— Não é um termo que se aplique a Sarah Bancroft. — Carter retirou uma fotografia do bolso do casaco, que entregou a Gabriel. Sarah Bancroft era uma mulher extremamente bonita, de cabelo louro à altura dos ombros, maçãs do rosto largas e olhos grandes da cor de um céu límpido de Verão.

— Idade?

— Trinta e um.

— Por que não é casada?

Carter hesitou por um momento.

— Por que não é casada, Adrian?

— Teve um namorado em Harvard, um jovem advogado chamado Ben Callahan. As coisas acabaram mal.

— O que aconteceu com Ben?

— Pegou um avião para Los Angeles no Logan Airport na manhã do 11 de setembro de 2001.

Gabriel estendeu a fotografia a Carter.

— Zizi não vai contratar alguém que tenha sido afetado pelo Onze de Setembro. Trouxe-me aqui para nada, Adrian.

Carter manteve as mãos no volante.

— Ben Callahan era um namorado de escola, não era um marido. Além disso, Sarah nunca fala sobre ele com ninguém. Quase tivemos de arrancar essa informação. Ela receava que a morte do Ben a perseguisse para o resto da vida, que as pessoas a tratassem como se fosse uma viúva aos vinte e seis anos. Ela não fala no assunto. Esta semana demos por aí uma olhada. Ninguém sabe.

— Os cães de guarda de Zizi vão fazer mais do que dar uma vista de olhos, Adrian. E se lhes der o cheiro do onze de Setembro, ele vai fugir dela a sete pés. — Por falar em Zizi, a casa dele é já ali à frente.

Carter reduziu para fazer uma curva. Um enorme portão de segurança em ferro e tijolo surgiu-lhes à esquerda. Por detrás do portão, um extenso caminho de acesso alcatroado subia até uma imponente mansão em frente ao rio. Gabriel desviou o olhar quando passaram pela propriedade.

— Zizi nunca vai ficar a saber do Ben — garantiu Carter. — Estás disposto a apostar a vida da Sarah quanto a isso?

— Fala com ela, Gabriel. Dá-me a tua opinião. -Já sei qual é a minha opinião.

Ela é perfeita.

— Então qual é o problema?

— Se cometermos um erro que seja, Zizi vai dar cabo dela. É esse o problema, Adrian.

A rapidez com que chegaram ao centro de Washington surpreendeu Gabriel. Num momento estavam numa estrada rural de duas vias, no extremo do vale do Potomac, e no outro arrastavam-se pela Q Street, no meio da hora de ponta de Georgetown. Assumindo o papel de guia turístico, Carter disse as casas dos residentes mais conhecidos do bairro. Com a cabeça encostada ao vidro, Gabriel nem sequer era capaz de reunir energias para fingir estar interessado. Atravessaram uma ponte curta, guardada em cada extremidade por um par de enormes búfalos manchados, e entraram na zona diplomática da cidade. Logo a seguir à Massachusetts Avenue, Carter apontou para uma estrutura atorreada de tijolo, do lado esquerdo da rua.

— Aquele é o Phillips — disse Adrian, prestativo. Gabriel olhou para a direita e viu uma versão em bronze de Mohandas Gandhi a caminhar num parque triangular minúsculo. Porquê Gandhi? interrogou-se. O que teriam os ideais do Mahatma que ver com aquele centro de poder americano?

Carter percorreu mais um quarteirão e estacionou na zona diplomática reservada à frente de uma embaixada latino-americana de aspeto banal. Deixou o motor ligado e não deu indicação de pretender sair do carro.

— Esta zona da cidade chama-se Dupont Circle — explicou, ainda à laia de guia turístico. — É o que pretende ser a vanguarda de Washington.

Um agente da Divisão Uniformizada do Serviço Secreto bateu ao vidro de Carter e fez-lhe sinal para seguir viagem. Sempre a olhar em frente, Carter encostou a identificação ao vidro e o agente regressou ao carro patrulha. Momentos depois, algo no espelho retrovisor chamou a atenção de Carter.

— Aí vem ela — disse.

Gabriel olhou pela janela quando Sarah Bancroft passou por eles, vestindo um sobretudo comprido de cintura estreita. Tinha uma pasta de pele numa mão e um celular na outra. Gabriel ouviu-lhe a voz quando ela passou. Grave, sofisticada, um toque de pronúncia inglesa — remanescente, sem dúvida, do tempo passado em Courtauld, e de uma infância vivida em escolas internacionais no estrangeiro.

— O que acha? — perguntou Carter.

— Já te digo.

Chegou à esquina da Q Street com a 20th Street. Na esquina oposta ficava uma praça repleta de vendedores ambulantes e com um par de escadas rolantes que davam na estação de metrô de Dupont Circle. O semáforo de Sarah estava vermelho. Sem parar, desceu do passeio e começou a atravessar a estrada. Quando um taxista buzinou em protesto, ela lançou-lhe um olhar capaz de derreter gelo e prosseguiu com a conversa. Depois cruzou lentamente o passeio e entrou na escada rolante descendente. Com admiração, Gabriel observou-a a desaparecer de vista.

— Tem mais alguma como ela?

Carter tirou um celular do bolso e marcou um número.

— Vamos embora — disse. Momentos depois, uma grande Suburban preta contornou a esquina e estacionou ilegalmente na Q Street, em frente às escadas rolantes. Cinco minutos mais tarde, Gabriel voltou a vê-la, desta vez a surgir lentamente das profundezas da estação de metro. Já não estava a falar ao telefone, nem se encontrava sozinha. Era acompanhada por dois agentes de Carter, um homem e uma mulher, um em cada braço, para o caso de ela mudar repentinamente de ideias. A porta traseira da Suburban abriu-se e Sarah Bancroft desapareceu. Carter ligou o motor e regressou a Georgetown.

17

 

GEORGETOWN

A Suburban preta deteve-se quinze minutos mais tarde à porta de uma casa de estilo federal em N Street. Quando Sarah subiu os degraus curvos de tijolo, a porta abriu-se de repente e uma figura surgiu nas sombras do pórtico. Vestia calça caqui e jaqueta com remendos nos cotovelos. O olhar denotava um curioso distanciamento clínico que lembrou a Sarah o terapeuta que consultara após a morte de Ben.

— Chamo-me Carter — apresentou-se, como se disso se tivesse lembrado de súbito. Não disse se era o nome próprio ou o apelido, apenas que era verdadeiro. — Já não uso nomes esquisitos — explicou. — Agora pertenço à Sede.

Sorriu. Era um sorriso artificial, como o foi o breve aperto de mão. Convidou-a a entrar e, mais uma vez, conseguiu transmitir a ideia de uma inspiração súbita.

— E você é a Sarah — informou-a, enquanto a guiava pelo vasto salão central. — Sarah Bancroft, conservadora do conceituado Phillips Colletion. Sarah Bancroft, que num ato de coragem nos ofereceu os seus serviços depois do onze de Setembro, mas que foi recusada e a quem lhe disseram que não fazia falta.

Como vai o seu pai?

Sarah ficou surpreendida com a repentina mudança de assunto.

— Conhece o meu pai?

— Nunca nos encontramos. Trabalha para a Citicorp, não é?

— Sabe muito bem para quem ele trabalha. Por que me pergunta?

Por onde anda ele? Londres? Bruxelas? Hong Kong? Paris — respondeu. — É a última comissão. Vai reformar-se para o ano que vem.

— E depois volta para casa? Sarah abanou a cabeça.

— Vai ficar em Paris. Com a nova mulher. Os meus pais divorciaram-se há dois anos. Ele voltou a casar-se de imediato. Para ele, tempo é dinheiro.

— E a sua mãe? Onde está ela?

— Em Manhattan.

— Costuma ver o seu pai?

— Festas. Casamentos. O típico almoço constrangedor, sempre que ele vem à América. O divórcio dos meus pais foi mau. Todos tomaram partidos, incluindo os filhos. Por que está a fazer-me essas perguntas? O que pretende de...

— Acredita nisso? — atalhou Carter.

— Acredito no quê? — Em tomar partidos.

— Acho que depende das circunstâncias. Isto faz parte dos testes? Pensei que tivesse chumbado nos testes.

— E chumbou — garantiu Carter. — Redondamente. Entraram na sala. Estava mobilada com a elegância formal mas anônima normalmente reservada às suítes dos hotéis. Carter ajudou-a a despir o casaco e convidou-a a sentar-se.

— Nesse caso, por que voltei?

— Este é um mundo fluido, Sarah. As coisas mudam. Diga-me uma coisa, em que circunstâncias julga que é correto tomar partidos?

— Nunca pensei muito no assunto.

— Claro que pensou — contrapôs Carter e, pela segunda vez, Sarah viu o terapeuta, sentado no cadeirão de motivos florais, com a caneca de cerâmica equilibrada no joelho, levando-a a visitar locais onde ela preferia não entrar. — Vamos, Sarah — dizia Carter. — Dê-me um exemplo em que acredite que se deve tomar partidos.

— Acredito no bem e no mal — respondeu, erguendo um pouco o queixo. — O que talvez sirva para explicar o motivo por que chumbei nos testes. O seu mundo é em tons de cinzento. Em geral, vejo as coisas a preto e branco.

— Foi isso que o seu pai lhe disse? era Ben quem a acusava dessa falha.

— Qual o objetivo disto? — perguntou. — Por que estou aqui? Mas Carter continuava a analisar as implicações da última resposta.

— E quanto aos terroristas? — perguntou, e Sarah ficou mais uma vez com a impressão de que o homem acabara de pensar na questão. — É sobre isso que me questiono. Como eles se encaixam no mundo do bem e do mal da Sarah Bancroft? Serão maus, ou será que a sua causa é legítima? Seremos vítimas inocentes, ou será que fomos nós que provocamos esta calamidade? Devemos ficar sentados e aguentar, ou teremos o direito de lhes resistir com toda a nossa força e raiva?

— Sou conservadora-assistente do Phillips Colletion — disse-lhe.

— Quer mesmo que teça considerações sobre a moral do contraterrorismo?

— Nesse caso, vamos restringir a nossa questão. Sempre me pareceu útil fazê-lo. Vejamos como exemplo o homem que levou o avião do Ben contra o World Trade Center. — Carter fez uma pausa. — Recorde-me, Sarah, em que avião estava Ben?

— Sabe muito bem em que avião ele estava — retorquiu. — No Voo 175 da United.

— Que era pilotado por...

— Marwan al-Shehhi.

— Imaginemos por um momento que Marwan al-Shehhi conseguiu sobreviver. Eu sei que é uma loucura, Sarah, mas acompanhe meu raciocínio. Imagine que ele conseguiu voltar ao Afeganistão ou ao Paquistão ou a qualquer outro santuário terrorista. Imagine que sabíamos quem era. Deveríamos enviar o FBI com um mandado de captura, ou deveríamos tratar dele de modo mais eficaz? Homens de negro? Forças especiais? Um míssil Hellfire lançado de um drone?

— Creio que sabe o que faria.

— Imagine que desejo ouvi-lo de sua boca, antes de continuarmos.

— Os terroristas declararam guerra — acusou Sarah. — Atacaram nossas cidades, mataram os nossos cidadãos e tentaram prejudicar a estabilidade do nosso governo.

— Nesse caso, o que deveríamos fazer?

— Deviam ser enfrentados com dureza.

— E o que significa isso?

— Homens de negro. Forças especiais. Um míssil Hellfire lançado de um drone.

— E quanto ao homem que lhes dê dinheiro? Será igualmente culpado? E, se assim for, até que ponto?

— Talvez dependa de ele saber para que serve esse dinheiro.

— E se ele soubesse muito bem para que serve esse dinheiro?

— Nesse caso, é tão culpado como o homem que jogou o avião na torre.

— Estaria confortável, ou mesmo justificada, em agir contra tal indivíduo?

— Ofereci ajuda há cinco anos — acusou, com um tom de desprezo. — Disseram que não era adequada para este tipo de trabalho. E agora querem minha ajuda?

Carter não pareceu abalado com o protesto. Sarah sentiu uma empatia súbita pela mulher daquele homem.

— Ofereceu ajuda e nós a tratamos de uma forma miserável. Receio que sejamos muito bons nisso. Queria poder dizer o quanto estávamos errados. Talvez pudesse confortá-la com um pedido de desculpas falso. Mas sinceramente, Miss Bancroft, não há tempo. — A voz apresentava agora um tom que até então estava ausente. — Assim sendo, acho que preciso de uma resposta direta. Ainda quer ajudar? Quer combater os terroristas, ou prefere voltar a sua vida e esperar que não volte a acontecer?

— Combater? — indagou Sarah. — Certamente há pessoas mais indicadas para isso.

— Há muitas formas de combate, Sarah.

A jovem hesitou. Carter acentuou o silêncio repentino com uma observação prolongada das próprias mãos. Não era o tipo de homem que repetia perguntas. Nesse aspeto, era muito parecido com o pai dela.

— Sim — acabou por dizer. — Quero.

— E se para isso tivesse de trabalhar com uma agência de espionagem que não a CIA? — perguntou Carter, como se debatesse uma teoria abstrata. — Uma agência bastante próxima de nós na luta contra o terrorismo islâmico? — E qual seria essa agência?

Carter era bom a esquivar-se a perguntas e voltou a prová-lo.

— Gostaria que conhecesse uma pessoa. É um homem sério. Uma espécie de diamante em bruto. Vai colocar-lhe algumas questões. Na verdade, vai interrogá-la durante algumas horas. Por vezes talvez se torne um pouco pessoal. Se gostar do que vir, vai pedir-lhe que nos ajude num empreendimento muito importante. Não é isento de riscos, mas é essencial para a segurança dos Estados Unidos, e tem o nosso apoio incondicional. Se estiver interessada, permaneça onde está. Caso contrário, saia, e fingimos que entrou aqui por acaso.

Sarah nunca saberia ao certo a forma como Carter o chamara, ou de onde surgira. Era pequeno e magro, com cabelo muito curto e têmporas grisalhas. Tinha os olhos mais verdes que Sarah alguma vez vira. Tal como o de Carter, o aperto de mão foi breve, mas analisador, como o toque de um médico. Falava um inglês fluente, mas com uma pronúncia cerrada. Se tinha nome, não era relevante. Instalaram-se na mesa comprida da sala de jantar formal, Carter e o colaborador anônimo de um lado, e Sarah do outro, como se de um suspeito numa sala de interrogatório se tratasse. O colaborador detinha agora a posse do seu dossiê da CIA. Folheava lentamente as páginas, como se as visse pela primeira vez, o que ela duvidava fosse o caso. A primeira questão foi-lhe apresentada com um leve tom acusatório.

— A sua dissertação para o doutorado em Harvard teve como tema os expressionistas alemães.

Parecia um ponto estranho para começar. Sentiu-se tentada a perguntar qual o interesse no tema da dissertação, mas limitou-se a acenar com a cabeça e a responder:

— Sim, exatamente. Deparou-se com um homem chamado Viktor Frankel, durante a sua pesquisa?

— Era discípulo de Max Beckmann — disse Sarah. — Hoje em dia Frankel é pouco conhecido, mas na altura era considerado de extrema influência e era tido em muito boa consideração pelos contemporâneos. Em 1936, os nazistas consideraram seu trabalho degenerado e foi proibido de continuar a pintar. Infelizmente, decidiu permanecer na Alemanha. Quando resolveu partir, era demasiado tarde. Foi deportado para Auschwitz em 1942, juntamente com a esposa e com a filha adolescente, Irene. Apenas Irene sobreviveu. Foi para Israel depois da guerra e tornou-se uma das artistas mais influentes do país nas décadas de cinquenta e sessenta. Acho que morreu há alguns anos.

— Exatamente — asseverou o colaborador de Carter, os olhos ainda no dossiê de Sarah.

— Por que ficou interessado em Viktor Frankel?

— Porque era meu avô.

— É filho da Irene?

— Sim. Irene era minha mãe.

Sarah olhou para Carter, que fitava as próprias mãos.

— Acho que sei quem comanda este seu empreendimento. Voltou a dirigir a atenção para o homem de têmporas grisalhas e olhos verdes. — É israelense.

— Sou culpado desse crime. Continuamos, Sarah, ou prefere que eu saia?

Sarah hesitou por um instante, e depois anuiu.

— Posso ter um nome, ou são proibidos?

O colaborador deu-lhe um nome. Era vagamente familiar. E então lembrou-se de onde o vira. O agente israelense que esteve envolvido no atentado na Gare de Lyon, em Paris... — Foi o homem que...

— Sim — atalhou ele. — Fui eu.

Voltou a olhar para o dossiê e virou a página.

— Mas voltemos a você, está bem? Temos muito que fazer e estamos limitados de tempo.

Começou lentamente, um montanhista a abrir caminho nos contrafortes, a guardar as forças para os perigos invisíveis que o esperavam mais à frente. As questões eram breves, eficientes e apresentadas de forma metódica, como se as lesse de uma lista previamente elaborada, o que não era o caso. Dedicou a primeira hora à família. O pai, o importante executivo da Citicorp, que não dispusera de tempo para os filhos, mas encontrara muito para outras mulheres. A mãe, cuja vida se desmoronara após o divórcio e que vivia agora como uma eremita, no seu apartamento de Manhattan, na Quinta Avenida. A irmã mais velha, que Sarah descreveu como "aquela que ficou com a inteligência e com a beleza". O irmão mais novo, que abandonara a família cedo e que naquele momento, para desapontamento do pai, trabalhava por um ordenado mísero numa loja de aluguer de esquis, algures no Colorado.

Depois da família, a hora seguinte foi dedicada em exclusivo à dispendiosa educação na Europa. A jovem americana em St. Johns Wood, onde completara a escola primária.

A escola internacional de Paris, onde aprendera a falar francês e a meter-se em sarilhos. O internato feminino nos arredores de Genebra, onde fora encarcerada pelo pai, com o objetivo de "pôr a cabeça no lugar". Fora na Suíça, adiantou Sarah de moto próprio, que descobrira a paixão pela arte. Cada resposta era recebida pelo arranhar da caneta. Escrevia com tinta vermelha num bloco de folhas da cor dos girassóis. Ao início, Sarah julgou que ele escrevia em estenografia, ou com algum tipo de hieróglifos. Depois percebeu que tirava notas em hebraico. O fato de estar a escrever da direita para a esquerda, e de escrever com a mesma rapidez com ambas as mãos, apenas servia para aprofundar a sensação de que atravessara para o outro lado do espelho.

Por vezes, era como se ele dispusesse de todo o tempo do mundo. De outras vezes, lançava olhares ao relógio de pulso e franzia o sobrolho, como se calculasse até onde poderia avançar, antes de fazer alto para a noite. A espaços, utilizava outras línguas. O francês era muito bom. O italiano era impecável, embora dotado de um vago sotaque que traía o fato de não ser falante nativo. Quando se dirigiu a Sarah em alemão, verificou-se uma mudança. As costas endireitaram-se. As feições severas endureceram. Sarah respondeu-lhe na língua da questão, mesmo tendo as palavras sido registradas em hebraico no bloco amarelo. Em geral não a pôs em causa, embora quaisquer inconsistências, reais ou imaginadas, fossem avaliadas com um zelo inquisitorial.

— Esta paixão pela arte — referiu ele. — Como julga que começou? Porquê arte?

Por que não literatura, ou música? Por que não cinema, ou drama?

— Os quadros viraram refúgio. Um santuário.

— Do quê?

— Da vida real.

— Era uma menina rica das melhores escolas da Europa.

O que havia de mal com sua vida? — Mudou do inglês para o alemão no meio da frase.

— Fugia do quê?

— Está me julgando — respondeu Sarah, na mesma língua.

— É claro.

— Podemos falar em inglês?

— Se tiver de ser.

— Os quadros são outros mundos. Outras vidas. Um instante no tempo que existe na tela e em mais lado nenhum. — Gosta de habitar esses locais.

Foi uma observação e não uma pergunta. Sarah aquiesceu em resposta. — Gosta de viver outras vidas? Assumir outras personalidades? Gosta de passear através dos campos de trigo de Vincent, pelos jardins floridos de Monet?

— Até mesmo pelos pesadelos de Frankel.

A caneta foi colocada de lado pela primeira vez.

— Foi por isso que se candidatou à CIA? Porque queria ter outra vida? Porque queria transformar-se noutra pessoa?

— Não. Queria servir meu país.

Sarah recebeu um franzir de cenho reprovador, como se a resposta fosse ingênua. O colaborador olhou mais uma vez para o relógio. O tempo estava contra ele.

— Conheceu árabes enquanto crescia na Europa?

— Claro.

— Rapazes? Garotas?

— Ambos.

— Que tipo de árabe?

— Árabes com duas pernas. Árabes de países árabes.

— Você é mais inteligente do que isso.

— Libaneses. Palestinos. Jordanianos. Egípcios.

— E sauditas? Estudou com sauditas?

— Havia duas garotas sauditas na escola suíça.

— Eram ricas, essas garotas sauditas?

— Éramos todas ricas.

— Foi amiga delas?

— Era difícil conhecê-las. Afastavam-se muito. Eram reservadas.

— E os rapazes árabes?

— O quê?

— Foi amiga de algum?

— É possível.

— Chegou a namorar algum? Dormiu com algum?

— Não.

— Por que não?

— Acho que as minhas preferências não incluíam árabes.

— Teve namorados franceses?

— Alguns.

— Ingleses?

— Claro.

— Mas árabes não?

— Árabes não.

— Tem preconceito com árabes?

— Não seja ridículo.

— Nesse caso, é concebível que poderia ter namorado um árabe. Só por acaso não o fez.

— Espero que não peça para servir de isca com meu corpo, pois...

— Não seja ridícula.

— Então por que faz estas perguntas?

— Porque quero saber se estaria confortável num ambiente social e profissional com árabes.

— A resposta é sim.

— Não vê automaticamente um terrorista quando olha para um árabe?

— Não.

— Tem certeza. Sarah?

— Dependa do tipo de árabe em que se pensa.

Gabriel olhou para o relógio.

— Está ficando tarde — disse, para ninguém em especial. A pobre Sarah deve estar esfomeada. — Traçou uma linha vermelha grossa pela folha de hieróglifos. — Vamos encomendar comida, sim? Vai se sentir melhor depois de comer alguma coisa.

Encomendaram espetos de um restaurante no centro de Georgetown. A comida chegou vinte minutos depois, entregue pela mesma Suburban preta que trouxera Sarah três horas antes. Gabriel considerou a chegada como sinal para dar início à sessão da noite. Ao longo dos noventa minutos seguintes, concentrou-se na educação de Sarah e no seu conhecimento de história da arte. As perguntas sucediam-se tão rapidamente que ela mal teve tempo de comer. Quanto ao prato de Gabriel, permaneceu intato ao lado do bloco de notas amarelo. E um asceta, pensou Sarah. Não se deixa incomodar pelos alimentos. Vive num quarto vaio e subsiste com pão e algumas gotas de água por dia. Pouco depois da meia-noite, Gabriel levou o prato até a cozinha e deixou-o sobre a bancada. Quando regressou à sala de jantar, ficou alguns momentos de pé, atrás da cadeira, uma mão no queixo e a cabeça inclinada de leve. A luz do candelabro dera-lhe um tom esmeralda aos olhos, que a perscrutavam sem dó, como holofotes, já vê o cume, pensou Sarah. Está a preparar o assalto final.

— Pelo seu dossiê, vejo que é solteira.

— Exatamente.

— Está envolvida com alguém, neste momento?

— Não.

— Anda a dormir com alguém?

Sarah mirou Carter, que lhe respondeu com um olhar triste, como se dissesse, Eu avisei que as coisas podiam tornar-se pessoais.

— Não, não ando a dormir com ninguém.

— Por que não? — Já perdeu alguém que lhe fosse próximo?

A expressão sombria que lhe assomou o rosto, a par da mudança agitada de posição de Carter, alertou-a para o fato de estar a entrar em território proibido. — Sinto muito — desculpou-se. — Não queria...

— Imagino que seja por causa do Ben. O Ben é a razão para não estar envolvida com ninguém?

— Sim, é o Ben. É claro que é o Ben.

— Fale-me dele.

Sarah abanou a cabeça.

— Não — respondeu, em voz baixa. — Não vai saber sobre o Ben. Ele é meu. Ben não faz parte do acordo.

— Quanto tempo namoraram?

— Já lhe disse...

— Quanto tempo andou com ele, Sarah? É importante, ou não perguntaria.

— Uns nove meses.

— E depois terminou?

— Sim, terminou.

— Foi você que terminou a relação, não foi?

— Sim.

— Ben estava apaixonado por você. Ben queria se casar com você.

— Sim.

— Mas não sentia o mesmo. Não estava interessada em casamento. Talvez não estivesse interessada em Ben.

— Gostava muito dele...

— Mas?

— Mas não estava apaixonada.

— Fale-me sobre a morte dele.

— Não pode estar falando sério....

— Falo muito sério.

— Não falo sobre a morte dele. Nunca falo sobre a morte de Ben. Além disso, sabe muito bem como foi. Ben morreu às nove e três da manhã, hora do Leste, ao vivo, na televisão. O mundo inteiro viu Ben a morrer. Por acaso não viu?

— Alguns passageiros do Voo 175 conseguiram dar telefonemas.

— Verdade.

— O Ben foi um deles?

— Sim.

— Telefonou ao pai? — Não.

— Telefonou à mãe?

— Não.

— Ao irmão? À irmã?

— Não.

— Para quem ele telefonou, Sarah?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

— Telefonou para mim, seu filho da puta.

— O que disse ele?

— Disse que o avião tinha sido desviado. Disse que tinham matado os comissários. Disse que o avião fazia movimentos bruscos. Disse que me amava e que sentia muito. Estava prestes a morrer e pediu desculpas. E depois a ligação caiu.

— O que fez?

— Liguei a televisão e vi a fumaça saindo da Torre Norte do World Trade Center. Foi alguns minutos depois da colisão do Voo 11. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. Telefonei para a FAA e contei sobre a ligação de Ben. Telefonei para o FBI. Telefonei para Polícia de Boston. Sentia-me tão impotente.

— E depois?

— Vi televisão. Esperei que o telefone voltasse a tocar. Não tocou. Às nove e três da manhã, hora de leste, o segundo avião colidiu com o World Trade Center. A Torre Sul estava em chamas. Ben estava queimando.

Uma lágrima única escorreu-lhe pela face. Sarah limpou-a e lançou um olhar furioso a Gabriel, — Está satisfeito?

Gabriel permaneceu em silêncio.

— Agora é a minha vez de fazer uma pergunta. Se não me responder com sinceridade, vou-me embora.

Pergunte-me o que quiser, Sarah. — O que pretende de mim?

— Queremos que se despeça do seu emprego no Phillips Colletion e que vá trabalhar para a Jihad Limitada. Continua interessada?

Ficou para Carter a tarefa de lhe apresentar o contrato. Carter, com a sua integridade puritana e o casaco de bombazina. Carter, com a sua atitude terapêutica e o inglês de pronúncia americana. Gabriel esgueirou-se como um gatuno na noite e atravessou a estrada até o Volvo amolgado de Carter. Sabia qual iria ser a resposta de Sarah. Já a tivera. A Torre Sul estava em chamas, dissera ela. O Ben estava a arder. E assim, Gabriel não ficou preocupado com a expressão de quem ia para a forca no rosto de Sarah quando, vinte minutos depois, saiu, estoica, da casa e desceu o lance de escadas até a van que a aguardava. Também não ficou incomodado com a visão de Carter, cinco minutos mais tarde, a atravessar lentamente a rua, como um cangalheiro a dirigir-se a um caixão. Sentou-se ao volante e ligou o motor.

— Há um avião em Andrews à espera para levá-lo de volta a Israel — disse. — Faremos uma parada no caminho. Há uma pessoa que quer dar uma palavrinha com você antes de partir.

Passava da meia-noite. A rua era dos caminhões de entregas noturnas e dos táxis. Carter seguia a uma velocidade acima do normal e olhava com frequência para o relógio.

— Ela não será barata, sabe. Vai ter um preço. Tem de ser realojada quando a operação terminar, e vai ser protegida por muito tempo.

— Mas vai tratar disso, não vai, Adrian? Você tem o dinheiro. O orçamento da espionagem americana é bem maior que o do nosso país inteiro.

— Esqueceu que esta operação não existe? Além disso, você vai ficar com muito dinheiro de Zizi.

— Certo — disse Gabriel. — Diga a Sarah Bancroft que ela vai passar os próximos dez anos num kibbutz na Galileia, escondida das forças da jihad global.

— Está bem, pagamos o realojamento.

Carter deu uma série de voltas. Por momentos, Gabriel perdeu a noção da rua em que se encontravam. Passaram pela fachada de um grande edifício neoclássico e depois entraram num acesso de aspeto oficial. À esquerda ficava uma guarita fortificada, com vidros à prova de bala. Carter baixou o vidro e entregou a identificação ao guarda.

— Estão a nossa espera.

O guarda consultou uma prancheta e depois devolveu a identificação de Carter. — Avancem e parem à frente da barricada à esquerda. Os cães vão dar a volta ao carro e depois podem entrar.

Carter aquiesceu e subiu o vidro. Gabriel perguntou:

— Onde estamos?

Carter contornou as barricadas e parou onde lhe tinha sido indicado.

— Na porta das traseiras da Casa Branca — explicou.

— com quem vamos falar? — indagou Gabriel, mas Carter trocava impressões com outro agente, que procurava controlar um grande pastor alemão que puxava a grossa coleira de couro. Gabriel, cujo pavor de cães era lendário no Escritório, permaneceu imóvel, enquanto o animal esquadrinhava cada centímetro do Volvo, em busca de explosivos ocultos. Momentos depois, atravessavam outro portão de segurança. Carter estacionou num lugar vago no Acesso Executivo Leste e desligou o motor.

— Só venho até aqui.

— com quem vou falar, Adrian?

— Entra por aquele portão e vai até a casa. Ele sai não tarda nada.

Os cães foram os primeiros a aparecer, dois terriers pretos que saíram disparados pela Entrada Diplomática como balas do cano de uma arma, e atacaram a calça de Gabriel. O presidente surgiu alguns segundos depois.

Avançou para Gabriel com a mão estendida, enquanto a outra gesticulava para que os terriers cessassem a investida. Os dois homens apertaram brevemente as mãos e depois começaram a percorrer o caminho que contornava o Gramado Sul. Os terriers lançaram mais um ataque aos tornozelos de Gabriel. Carter observou Gabriel a virar-se e a murmurar algumas palavras em hebraico que fizeram com que os cães procurassem o abrigo de um agente do Serviço Secreto.

A conversa durou apenas cinco minutos e pareceu a Carter que o presidente tomara conta das palavras. Moveram-se rapidamente, parando apenas uma vez para resolver o que parecera um pequeno desentendimento. Gabriel retirou as mãos dos bolsos e usou-as para ilustrar um argumento que tentava defender. De início, o presidente não pareceu convencido, mas depois aquiesceu e deu uma palmada forte nos ombros de Gabriel.

Completaram o circuito e separaram-se junto à Entrada Diplomática. Quando Gabriel começou a voltar ao estacionamento, os cães partiram atrás dele, mas rapidamente se viraram e correram para a Casa Branca, atrás do dono. Gabriel atravessou o portão aberto e entrou no carro.

— Como te pareceu ele? — perguntou Carter quando viraram para a 5th Street.

— Resoluto.

— Parece que chegaram a discutir.

— Diria que foi um desacordo político.

— Sobre o quê?

— Foi uma conversa privada, Adrian, e vai continuar assim.

— Bonito menino — disse Carter.

 

 

 

CONTINUA