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Series & Trilogias Literarias
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.
CONTINUA
18
LONDRES
O anúncio de que a Isherwood Fine Arts vendera Daniel no Covil do Leão, de Petrus Paulus Rubens, pela quantia de dez milhões de libras surgiu na primeira quarta-feira do novo ano. Na sexta-feira, o clamor fora abafado pelo rumor que dizia que Isherwood encontrara uma colaboradora.
Oliver Dimbleby, a nêmesis rechonchuda de Isherwood na King Street, foi o primeiro a tomar conhecimento da notícia, embora, mais tarde, até mesmo Dimbleby tivesse dificuldade em identificar a origem precisa do boato. Se bem se lembrava, a semente fora plantada por Penelope, a dona voluptuosa do pequeno bar em Jermyn Street onde Isherwood era visto com frequência a passar certas tardes indolentes. — É loura — comentara Penelope. — Loura natural, Oliver. Não é como as tuas meninas. E bonita. Uma americana com um toque de pronúncia inglesa. — Ao início, Penelope julgara que Isherwood estava mais uma vez a fazer figura de tolo com uma mulher mais nova, mas em breve se apercebeu de que testemunhava uma entrevista de emprego. — E não era um emprego qualquer, Oliver. Parecia alguma coisa em grande.
Dimbleby teria ignorado o caso se não lhe contassem de uma segunda ocorrência, desta vez através de Percy, um mexeriqueiro afamado que servia à mesa na sala de pequeno-almoço do Dorchester Hotel.
— Com certeza que não eram amantes — garantiu a Dimbleby com a segurança de um homem que sabia o que estava a dizer. — Só falavam de salários e de regalias. Houve muito regateio. Ela estava a fazer-se difícil. — Dimbleby passou dez libras a Percy e indagou se teria ouvido o nome da mulher. — Bancroft — respondeu Percy. — Sarah Bancroft. Ficou duas noites. A conta foi paga na totalidade pela Isherwood Fine Arts, Masons Yard, St. Jamess. Um terceiro avistamento, um jantar agradável no Mirabelle, confirmou a Dimbleby que algo se passava. Na noite seguinte cruzou-se com Jeremy Crabbe, diretor do Departamento de Pintores Renascentistas de Bonhams, no bar do restaurante Greenes. Crabbe bebia um uísque bem servido e recuperava ainda da jogada monumental de Isherwood.
— Eu tive aquele Rubens, Oliver, mas o Julian bateu-me. Agora está dez milhões mais rico e eu vou enfrentar o pelotão de fuzilamento pela alvorada. E vai expandir o negócio. Pelo que ouvi dizer, vai arranjar uma representante vistosa. Mas eu não disse nada, Oliver. Isso não passa de má língua. — Quando Dimbleby perguntou se a representante de Isherwood poderia, na verdade, ser uma americana chamada Sarah Bancroft, Crabbe ofereceu-lhe um sorriso matreiro. — Tudo é possível, meu querido. Lembra-te de que estamos a falar do Juicy Julian Isherwood.
Durante as quarenta e oito horas seguintes, Oliver Dimbleby dedicou o seu abundante tempo livre à investigação da proveniência de uma tal de Sarah Bancroft. Um companheiro de copos que ensinava em Courtauld descreveu-a como sendo "um meteoro". O mesmo companheiro soube através de um conhecido de Harvard que a dissertação de Sarah era leitura obrigatória para todos os que se interessassem a sério pelos expressionistas alemães. Dimbleby telefonou então a um velho compincha que limpava quadros na National Gallery of Art em Washington, e pediu-lhe que buscasse pistas no Phillips sobre a saída de Sarah. Fora uma questiúncula monetária, relatou o compincha. Dois dias mais tarde voltou a ligar a Dimbleby e disse que tivera qualquer coisa que ver com um caso amoroso no trabalho que correra mal. Uma terceira chamada trouxe como novidade que Sarah Bancroft separara-se amigavelmente do Phillips Colletion, e que o motivo da partida não passava do desejo de voos mais altos. No que dizia respeito à vida pessoal, o que significava o estado civil, era descrita como solteira e indisponível.
O que deixava apenas uma pergunta sem resposta: por que estaria Isherwood de repente à procura de uma colaboradora? Jeremy Crabbe ouvira dizer que ele estava doente. Roddy Hutchinson soubera que ele tinha um tumor na barriga do tamanho de um melão. Penelope, a garota do bar de Isherwood, descobrira que ele estava apaixonado por uma divorciada grega e que tencionava passar o resto da vida em fornicação idílica numa praia de Mikonos. Embora considerasse divertidos os boatos exuberantes, Dimbleby suspeitava que a verdade talvez fosse bastante mais prosaica. Julian estava a envelhecer. Julian estava cansado. Julian tinha acabado de dar um golpe de mestre. Por que não encontrar alguém para aliviar o fardo?
As suspeitas foram confirmadas três dias depois, quando um pequeno artigo surgiu no fundo da página dedicada às artes do Times, onde se anunciava que Sarah Bancroft, anteriormente conservadora do Phillips Colletion de Washington, iria juntar-se à Isherwood Fine Arts como diretora-adjunta. "Já ando nisto há quarenta anos", dissera Isherwood ao Times. "Precisava de alguém para me ajudar a suportar o fardo e os anjos enviaram-me a Sarah." Sarah chegou uma semana depois, na segunda-feira. Por coincidência, Oliver Dimbleby percorria Duke Street com seu bambolear no preciso momento em que ela entrou na passagem para Masons Yard, capa da Burberry e o cabelo louro puxado para trás, o que o fazia cair por entre os ombros como uma capa de cetim. Dimbleby não sabia de quem se tratava, mas, sendo ele como era, espiou através da passagem para apreciar a retaguarda. Para sua surpresa, Sarah ia para a galeria de Isherwood no canto oposto do pátio. Nesse primeiro dia tocou na campainha e foi obrigada a aguardar dois longos minutos até que Tanya, a secretária letárgica de Isherwood, abrisse a porta. Era praxe de Tanya com a garota nova, pensou Dimbleby. Imaginou que Tanya já não estaria lá na sexta-feira.
O impacto foi instantâneo. Sarah era um furacão. Sarah era uma lufada de ar fresco essencial. Sarah era tudo o que Isherwood não era: expedita, organizada, disciplinada e, é claro, muito americana. Começou a chegar todos os dias à galeria pelas oito da manhã. Isherwood, habituado a passear até o trabalho no horário italianizado das dez, foi obrigado a adaptar-se. Sarah organizou seus registros caóticos e decorou o enorme gabinete que partilhavam. Substituiu as letras em falta no intercomunicador e o carpete puído na escada. Deu início ao processo doloroso de liquidar o vasto estoque encalhado de Isherwood e começou uma negociação discreta para ocupação do espaço adjacente, no momento sede da sombria agência de viagens de Miss Archer.
— Ela é americana — comentou Dimbleby. — É expansionista por natureza. Vai conquistar o país e depois explica que foi para seu próprio bem.
Afinal, Tanya não sobreviveu até sexta-feira: foi vista deixando definitivamente a galeria no fim da tarde de quarta-feira. Foi Sarah quem tratou da saída, conseguindo uma tranquilidade rara na Isherwood Fine Arts. A indenização generosa
— Muito generosa, pelo que ouvi dizer — disse Dimbleby — permitiu umas férias longas e merecidas no Marrocos. Na segunda-feira seguinte, havia uma nova garota a serviço da Isherwood, uma italiana alta, pele cor de azeitona, cabelo escuro revolto e olhos de caramelo, chamada Elena Farnese. Uma sondagem espontânea de Roddy Hutchinson descobriu que, entre os homens de St. James, ela era considerada ainda mais bonita do que a encantadora Sarah. O nome "Isherwood Fine Arts" assumiu de repente um novo significado entre os locatários de Duke Street, e a galeria foi alvo de uma invasão de visitantes e observadores. Até mesmo Jeremy Crabbe, da Bonhams, começou a aparecer sem aviso, somente para apreciar a coleção de Isherwood.
Após ter dinamizado a galeria, Sarah começou a estabelecer contatos com os compatriotas. Marcou reuniões formais com as principais figuras de várias casas de leilões londrinas. Esteve em lautos almoços com colecionadores e tomou drinques tranquilos de fim de tarde com os respectivos conselheiros, consultores e variados acompanhantes. Visitou as galerias dos competidores de Isherwood para os cumprimentar. Passou uma ou duas vezes pelo bar no Greens e pagou uma rodada aos rapazes. Oliver Dimbleby conseguiu finalmente encontrar coragem e convidou-a para almoçar, mas Sarah, prudentemente, marcou um café. Na tarde seguinte tomaram um galão servido em copo de papel numa cadeia americana em Piccadilly. Oliver acariciou-lhe a mão e convidou-a para jantar. — Sinto muito, mas não aceito jantares — respondeu Sarah. Por que não? — interrogou-se Oliver de regresso no seu bambolear à galeria de King Street. Mas por que não?
Já há algum tempo que Uzi Navot andava de olho naquela casa. Sempre achou que era um porto de abrigo perfeito. O tipo de lugar que se arquiva para qualquer eventualidade.
Ficava em Surrey, apenas a quinze quilômetros da circular M25 — ou, como explicou a Gabriel, a uma hora da galeria de Isherwood em St. Jamess, de metropolitano e de carro. A casa era uma Tudor enorme, de fachadas altas e janelas minúsculas, a que se chegava através de uma longa estrada cercada por faias, e que era abrigada por um portão de ferro imponente. Tinha um celeiro em ruínas e um par de estufas decadentes. Havia um jardim negligenciado onde se meditar, quatro hetares privados onde lutar com os demônios interiores e um lago de viveiro, onde não se pescava havia quinze anos. Ao entregar as chaves a Navot, o agente imobiliário referira-se à propriedade como Winslow Haven. Para um agente de campo como Navot, era o Nirvana.
Dina, Rimona e Yaakov trabalhavam na biblioteca empoeirada. Lavon e Yossi montaram acampamento num salão repleto de cabeças empalhadas de animais. Gabriel improvisou um estúdio no primeiro andar, numa sala de estar luminosa em frente ao jardim. Como não podia aparecer no mundo da arte londrino, incumbiu os outros das compras necessárias. Suas missões eram operações especiais por mérito próprio. Dina e Yossi fizeram visitas separadas à L. Cornelissen Sons, em Russell Street, dividindo cuidadosamente a encomenda entre eles para que as jovens que trabalhavam lá não percebessem que forneciam material a um restaurador profissional. Yaakov dirigiu-se a uma loja de iluminação em Earls Court, onde comprou as lâmpadas de halogêneo de Gabriel, e depois seguiu até a oficina de um mestre carpinteiro em Camden Town, onde levantou um cavalete feito por encomenda. Eli Lavon tratou da moldura. Sendo um especialista recente em tudo o que dizia respeito a Al-Bakari, opôs-se à decisão de Gabriel de escolher o estilo italiano antigo.
— O gosto de Zizi vai para o francês — argumentou. — O italiano vai contra o sentido de estilo de Zizi. — Mas Gabriel sempre considerara que as molduras italianas, de gravação mais marcada, se adequavam na perfeição ao estilo de empastamento de Vincent, tendo sido uma moldura italiana que Lavon encomendou nas instalações encantadas da Arnold Wiggins Sons, em Bury Street.
Sarah visitava-os ao início de cada serão, sempre por um percurso diferente, e sempre com Lavon encarregue da contravigilância. A jovem aprendia rapidamente e, como Gabriel imaginara, era dotada de uma memória espantosa. Mesmo assim, teve o cuidado de não a assoberbar com uma avalancha de informações. Em geral, começavam às sete, interrompiam os trabalhos às nove para uma refeição em família na sala de jantar formal, após o que prosseguiam até quase à meia-noite. Nessa altura, era levada de volta ao apartamento em Chelsea por Yossi, que alugara uma casa no outro lado da rua.
Dedicaram uma semana a Zizi al-Bakari, antes de passarem aos colaboradores e aos restantes membros do séquito e do círculo íntimo. Foi prestada atenção especial a Wazir bin Talai, o chefe omnipresente da segurança da AAB. Bin Talai era, ele próprio, uma agência de espionagem, com uma rede de agentes de segurança no interior da AAB e uma série de informantes pagos espalhados pelo mundo, que lhe transmitiam relatórios sobre potenciais ameaças à propriedade da AAB ou ao próprio Zizi.
— Se Zizi gostar da mercadoria, é Bin Talai que trata de tudo — explicou Lavon. — Ninguém se aproxima do chefe sem antes receber a aprovação de Bin Talai. E se alguém pisa o risco, é Bin Talai quem trata do assunto. — A pesquisa de Yossi revelara nada mais, nada menos do que meia dúzia de antigos associados de Al-Bakari que tinham morrido em circunstâncias misteriosas, um fato que, a pedido de Gabriel, não foi revelado a Sarah.
Nos dias que se seguiram, a casa de segurança de Surrey foi visitada por uma série de indivíduos conhecidos no Escritório como "especialistas formados". A primeira foi uma mulher da Universidade Hebraica, que passou duas noites a ensinar a Sarah os hábitos sociais sauditas. Em seguida veio um psiquiatra, que gastou outras duas noites a transmitir-lhe formas de combater o medo e a ansiedade em missões secretas. Um especialista em comunicações forneceu-lhe conceitos sobre formas de escrita secretas. Um treinador de artes marciais ensinou-lhe os princípios básicos de combate corpo a corpo de estilo israelense. Gabriel escolheu Lavon, o maior vigilante de toda a história do Escritório, para lhe ministrar um curso intensivo sobre a arte da vigilância eletrônica e humana. — Vai entrar em terreno hostil — resumiu. — Tem de partir do princípio de que estarão atentos a tudo o que faz e a tudo o que diz. Se lembrar disso, vai tudo correr bem.
Gabriel limitou-se a assistir ao treino. Recebia-a sempre que ela chegava em casa no fim da tarde, jantava com a equipe, e despedia-se à meia-noite, quando Sarah voltava a Londres com Yossi. À medida que os dias foram passando, começaram a notar uma certa inquietação. Lavon, que trabalhara mais com ele do que os outros, diagnosticou o estado de espírito de Gabriel como impaciência.
— Ele quer ação — explicou —, mas sabe que ela não está pronta. — Começou a passar largos períodos em frente à tela, reparando meticulosamente os estragos infligidos a Marguerite. A intensidade do trabalho apenas servia para lhe aumentar o nervosismo. Lavon aconselhou-o a fazer pausas ocasionais, ao que Gabriel acedeu, com relutância. Encontrou um par de botins na arrecadação e partiu em marchas solitárias ao longo dos caminhos que cercavam a aldeia. Desencantou uma cana e um carreto num armário da adega e utilizou-os para pescar uma truta enorme do lago. No celeiro, oculto debaixo de um encerado, descobriu um antigo MG que parecia não ser conduzido há pelo menos vinte anos. Três dias mais tarde, os restantes elementos da equipe ouviram o som de estampidos vindos do celeiro, seguidos por uma explosão que ecoou pelo campo. Yaakov saiu a correr da casa, receando que Gabriel se tivesse mandado pelos ares. Em vez disso, encontrou-o de pé à frente do capo aberto do MG, coberto de óleo até os cotovelos e a ostentar o primeiro sorriso que lhe viam desde que tinham chegado a Surrey.
— Funciona — gritou, para se fazer ouvir acima do estrépito do motor. — O sacana ainda funciona.
Nessa noite, juntou-se pela primeira vez a uma sessão de treino de Sarah. Lavon e Yaakov não ficaram surpreendidos, pois o tópico em debate era Ahmed bin Shafiq, o homem que se transformara na obsessão pessoal de Gabriel. Escolheu Dina, com a sua voz agradável e o seu fardo de viuvez precoce, para apresentar o que sabiam.
Na primeira noite falou sobre o Grupo 205, a unidade secreta de Bin Shafiq dentro do GID, e mostrou a forma como a combinação entre a ideologia wahhabita e o dinheiro saudita tinha lançado o caos por todo o Oriente Médio e Sul da Ásia. Na segunda noite, relatou o percurso de Bin Shafiq, de servo leal do Estado saudita a estrategista da Irmandade de Alá. Descreveu então com pormenores a operação contra o Vaticano, embora se tivesse abstido de referir a presença de Gabriel na cena do crime. Gabriel entendia que essa informação era supérflua, mas queria que Sarah não tivesse dúvidas de que Bin Shafiq merecera o destino que o aguardava.
Na última noite, mostraram-lhe uma série de imagens geradas por computador da possível aparência de Bin Shafiq. Bin Shafiq de barba. Bin Shafiq calvo. Bin Shafiq com uma peruca grisalha. Com uma peruca escura. De cabelo encaracolado. Sem cabelo. Com as feições beduínas suavizadas por um cirurgião plástico. Mas Gabriel disse-lhe que a pista mais valiosa para a sua identificação seria o braço lesionado. A cicatriz no interior do antebraço que ele nunca mostraria. A mão ligeiramente mirrada que nunca ofereceria em cumprimento e que mantinha oculta de olhos infiéis.
— Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi — explicou Gabriel. — Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico. Pode surgir daqui a um mês. Pode aparecer daqui a um ano. Talvez nunca apareça. Mas se der a cara, pode ter certeza de que será educado e sofisticado, e vai parecer tudo, menos um terrorista profissional. Não procure um terrorista, nem alguém que aja como um terrorista.
Limite-se a procurar um homem. Recolheu as ilustrações.
— Queremos saber de toda a gente que entra e sai da esfera de Zizi. Queremos que registre tantos nomes quanto possível. Mas é este o homem que procuramos. — Gabriel colocou-lhe uma fotografia à frente.
É este o homem que queremos. — Outra fotografia. — Andamos atrás deste homem. — Outra. — É por causa dele que estamos aqui, e não em casa, com as nossas famílias e os nossos filhos. — Outra. — Foi por ele que lhe pedimos que abdicasse da sua vida e se juntasse a nós.
Outra. — Se o vir, diga-nos o nome que está a usar e a empresa em que trabalha. Se conseguir, saiba o país que consta no passaporte. Mais uma fotografia. — Mesmo que não tenha certeza de que é ele, não importa. Diga-nos. E se por acaso não for ele, não faz mal. Diga-nos. Não vai acontecer nada apenas com base na sua palavra. Ninguém vai sair prejudicado por sua causa, Sarah. É apenas a mensageira.
— E se eu lhe der um nome? — perguntou. — O que acontece? Gabriel olhou para o relógio.
— Acho que chegou a altura de a Sarah e eu termos uma conversa em particular.
Com a sua licença.
Levou-a para o estúdio no piso superior e acendeu as lâmpadas de halogéneo. Marguerite Gachet brilhava sedutoramente à luz branca intensa. Sarah acomodou-se numa cadeira antiga de verga. Gabriel colocou o visor de amplificação e preparou a paleta.
— Mais quanto tempo? — perguntou Sarah.
Era a mesma questão que Shamron lhe colocara naquela tarde ventosa de Outubro, quando fora à Rua Narkiss retirar Gabriel do exílio. Um ano, era o que deveria ter dito a Shamron nesse dia. Se assim fosse, não estaria ali, numa casa de segurança em Surrey, prestes a enviar uma bela jovem americana para o coração da Jihad Limitada.
— Limpei a sujidade da superfície e alisei as rachas com uma espátula morna e úmida — explicou Gabriel. — Agora tenho de concluir os retoques de pintura e aplicar uma camada leve de verniz... apenas quanto baste para realçar o calor das cores originais de Vincent. — Não me referia ao quadro.
Gabriel levantou os olhos da paleta.
— Imagino que isso só dependa de você.
— Quando quiser, estou pronta.
— Não exatamente.
— O que acontece se ele não morder o isco? O que vai acontecer se ele não gostar do quadro... ou de mim?
— Um colecionador sincero e abastado como Zizi não vai ignorar um Van Gogh acabado de encontrar. Quanto a si, ele não vai ter grande voto na matéria. Vamos torná-la irresistível.
— Como?
— Há coisas que é melhor não saber.
— Como por exemplo o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq se o encontrar?
Gabriel juntou pigmento a um pouco de solvente e misturou-o com um pincel. — A Sarah já sabe o que vai acontecer a Ahmed bin Shafiq. Deixei-o bem claro em Washington, na noite em que nos conhecemos.
— Diga-me tudo — pediu. — Tenho de saber.
Gabriel baixou o visor e levou o pincel à tela. Quando voltou a falar, não se dirigiu a Sarah, mas a Marguerite.
— Vamos observá-lo. Vamos ouvi-lo, se pudermos. Vamos tirar-lhe fotografias e gravar-lhe a voz, e enviar tudo aos nossos especialistas, para que o analisem.
— E se os seus especialistas decidirem que é ele?
— Em data e local a determinar, abatemo-lo.
— Abatem-no?
— Assassinamo-lo. Matamo-lo. Liquidamo-lo. Escolha a palavra que julgue mais confortável, Sarah. Nunca encontrei nenhuma.
— Quantas vezes já fez isto?
Gabriel aproximou o rosto do quadro e murmurou: — Muitas vezes, Sarah.
— Quantas vezes já matou? Dez? Vinte? Resolveu o problema do terrorismo? Ou serviu apenas para tornar as coisas piores? Se encontrar Ahmed bin Shafiq e o matar, o que vai conseguir com isso? Será que vai acabar, ou surgirá outro no seu lugar?
— No fim outro assassino vai tomar o lugar dele. Entretanto, algumas vidas serão salvas. E haverá justiça.
— Será mesmo justiça? Será que é possível fazer-se justiça com uma pistola com silenciador, ou com um carro armadilhado?
Gabriel virou-se e ergueu o visor, os olhos verdes a cintilar com o brilho das lâmpadas.
— Está a gostar deste pequeno debate sobre a relevância moral do contraterrorismo? Sente-se melhor? Pode ter certeza de que Ahmed bin Shafiq não perde tempo com estas questões sobre moral. Garanto-lhe que se ele alguma vez conseguir deitar a mão a uma bomba nuclear, a única dúvida que terá vai ser se a deve usar contra Nova Iorque ou contra Tel Aviv.
— Será justiça, Gabriel? Ou apenas vingança?
Viu-se novamente com Shamron. Desta vez o cenário não era o apartamento de Gabriel na Rua Narkiss, mas uma tarde quente de Setembro de 1972 — o dia em que Shamron o procurou pela primeira vez. Gabriel fizera-lhe a mesma pergunta. — Ainda não é demasiado tarde, Sarah. Pode sair disto, se quiser. Encontramos outra pessoa para o seu lugar.
— Não há ninguém como eu. Além disso, não quero desistir.
— Nesse caso, o que quer? — Permissão para dormir à noite.
— Durma, Sarah. Durma muito bem.
— E o Gabriel?
— Tenho um quadro para acabar.
Virou-se e baixou novamente o visor. Sarah ainda não terminara.
— Foi verdade? — perguntou. — Tudo o que se escreveu nos jornais depois do atentado à Gare de Lyon?
— Grande parte.
— Matou os palestinos do Setembro Negro que levaram a cabo o massacre de Munique?
— Alguns.
— Sabendo o que sabe agora, voltaria a fazê-lo?
Hesitou por um momento. — Sim, Sarah, voltaria. E vou explicar por quê. Não teve a ver com vingança. O Setembro Negro era o grupo terrorista mais letal que o mundo já vira e tinha de ser eliminado.
— Mas veja o que lhe custou. Perdeu sua família.
— Todos os que entram nesta luta perdem alguma coisa. O seu país, por exemplo. Era inocente, um centro de liberdade e decência. Agora têm as mãos sujas de sangue e homens em prisões secretas. Não fazemos o que fazemos porque gostamos. Fazemos porque não temos escolha. Acha que eu tenho escolha? Acha que Dina Sharid tem escolha? Não temos. E você também não. — Olhou-a por um instante.
— A menos que queira que encontre alguém que vá no seu lugar.
— Não há ninguém como eu — repetiu Sarah. — Quando estarei pronta? Gabriel virou-se e levou o pincel ao quadro. Em breve, pensou. Mais um dia ou dois de retoques. Depois uma camada de verniz. Aí estaria pronta. Apenas restava o treino de campo de Sarah. Lavon e Uzi Navot colocaram-na à prova. Ao longo de três dias e três noites, levaram-na para as ruas de Londres e treinaram-na nos princípios básicos do ofício. Ensinaram-na a preparar um encontro clandestino e a determinar se um certo local estava comprometido. Ensinaram-na a detetar vigilância física e técnicas simples para a ludibriar.
Ensinaram-na a fazer uma entrega solitária e a transmitir material a um correio vivo. Ensinaram-na a ligar para os números de emergência do Escritório a partir de um telefone público normal e a utilizar o corpo para indicar se fora descoberta e precisava ser retirada. Mais tarde, Lavon iria descreve -la como a melhor agente de campo amadora que já treinara. Poderia ter completado o curso em dois dias, mas Gabriel, mais que não fosse para ficar descansado, insistiu no terceiro. Quando finalmente Lavon regressou a Surrey nessa tarde, encontrou Gabriel de pé junto ao lago, com uma cana de pesca na mão e os olhos fitos na superfície da água, como se esperasse que um peixe surgisse devido apenas à força de vontade.
— Ela está pronta — disse Lavon. — Agora a questão é, e tu?
— Gabriel recolheu lentamente a linha e seguiu Lavon até a casa.
Mais tarde nessa noite, as luzes apagaram-se na melancólica agência de viagens de Masons Yard. Miss Archer, com uma pilha de dossiês antigos nas mãos, fez uma pausa no vestíbulo e espreitou pela entrada de vidro cintilante da
Isherwood Fine Arts. Na recepção encontrava-se
Elena, a secretária italiana escandalosamente bonita de Mr. Isherwood. Elena desviou a atenção do computador e lançou a Miss Archer um beijo de despedida elaborado, ao que regressou ao trabalho.
Miss Archer esboçou um sorriso triste e dirigiu-se às escadas. Não tinha lágrimas nos olhos. Já chorara em privado, como fazia quase tudo o resto. Os passos também não eram hesitantes. Durante vinte e sete anos chegara à agência todas as manhãs cinco vezes por semana. Aos sábados também, caso houvesse algum assunto premente. Ansiava pela reforma, mesmo que esta tivesse surgido um pouco mais cedo do que o esperado. Talvez tirasse umas férias alargadas. Ou talvez comprasse um chalé no campo. Já andava de olho na casinha de Chilterns há muito tempo. Só tinha certeza de uma coisa: não tinha pena de sair dali. Masons Yard não voltaria a ser o mesmo, agora que ali estava Miss Bancroft. Não que Miss Archer tivesse alguma coisa pessoal contra os americanos. Apenas não tinha grande vontade de ser vizinha de um. Quando se aproximou do fundo da escada, ouviu-se um zumbido e as trancas automáticas da porta exterior abriram-se. Obrigada, Elena, pensou, ao sair para o ar fresco da noite. Não és capa de levantar o teu rabinho bonito para te despedires em termos, e agora só falta pores-me na rua. Sentiu-se tentada a violar o aviso eterno de Mr. Isherwood que indicava que se devia esperar que a porta se voltasse a fechar, mas, sempre profissional, ficou onde estava por mais dez segundos, até que o som abafado das trancas lhe serviu de sinal para se dirigir à passagem.
Não sabia que a sua partida estava sendo vigiada por uma equipe neviot de três homens, alojada numa van estacionada no lado oposto de Duke Street. A equipe permaneceu na van por mais uma hora, para garantir que ela não se esquecera de nada. Depois, pouco antes das oito, atravessaram a passagem e cruzaram lentamente os tijolos do pátio vetusto em direção à galeria. Para Julian Isherwood, que observava a chegada prudente a partir da janela do seu gabinete, pareciam coveiros a caminho de uma longa noite de trabalho.
19
LONDRES
A operação teve início na manhã seguinte, quando Julian Isherwood, negociante de arte de Londres de certa reputação, efetuou um telefonema discreto para a residência em Knightsbridge de Andrew Malone, conselheiro de arte exclusivo de Zizi al-Bakari. Foi atendido por uma mulher sonolenta que informou Isherwood de que Malone se encontrava no estrangeiro.
Anda a fugir à justiça? — perguntou, tentando aliviar uma situação constrangedora.
— Experimente para o celular — resmungou a mulher, antes de bater com o telefone.
Felizmente, Isherwood tinha o número. Marcou-o de imediato e, como lhe foi indicado, deixou uma mensagem breve. Boa parte do dia passou antes que Malone se desse ao trabalho de retribuir a chamada.
— Estou em Roma — informou, em voz baixa. — Uma coisa em grande. Muito grande. — Não me surpreende, Andrew. Só tratas de coisas em grande. Malone ignorou a tentativa de lisonja por parte de Isherwood.
— Receio não ter muito tempo — disse. — Em que posso ser útil, Julian?
— Acho que tenho uma coisa para você. Na verdade, uma coisa para seu cliente.
— Meu cliente não se interessa pelos pintores renascentistas.
— O que eu tenho para ele não é de um renascentista. É um impressionista. E não é um impressionista qualquer, se me faço entender. É especial, Andrew. É o tipo de coisa que apenas um punhado de colecionadores do mundo podem sequer sonhar em ter, e o teu patrão é um deles. Estou a oferecer-te uma antevisão, Andrew... uma antevisão exclusiva. Estás interessado, ou vou bater a outra porta?
— Conta-me mais coisas, Julian.
— Sinto muito, meu querido, mas não é o tipo de assunto que se discuta ao telefone. Que tal se almoçássemos amanhã? Pago eu.
— Amanhã vou a Tóquio. Há um colecionador que tem um Monet que o meu patrão quer.
— Então no dia seguinte?
— É o meu dia de recuperação. Marcamos para quinta-feira?
— Não vais arrepender-te, Andrew.
— São os arrependimentos que nos mantêm. Gao, Julian. Isherwood desligou o telefone e olhou para o homem louro de ombros largos sentado do outro lado da secretária.
— Muito bem — elogiou Uzi Navot. — Mas da próxima vez deixe que seja Zizi a pagar o almoço.
Para Gabriel, o fato de Andrew Malone estar em Roma não foi uma surpresa, pois há quase uma semana que estava a ser alvo de vigilância eletrônica e física. Fora à Cidade Eterna adquirir uma certa escultura de Degas que Zizi tinha debaixo de olho há algum tempo, mas partiu de mãos a abanar na segunda-feira à noite e dirigiu-se a Tóquio. O colecionador anônimo a quem Malone esperava aliviar de um Monet era o famoso industrial Morito Watanabe. Pela expressão derrotista no rosto de Malone quando saiu do apartamento de Watanabe, Gabriel concluiu que as negociações não tinham corrido bem. Nessa noite, Malone telefonou a Isherwood para lhe dizer que ia ficar mais um dia em Tóquio. — Receio ter de adiar o nosso pequeno encontro — lamentou-se.
— Pode ser para a semana que vem? — Gabriel, ansioso por prosseguir com a operação, disse a Isherwood que se mantivesse firme. O encontro foi adiado um dia, de quinta para sexta-feira, embora Isherwood tivesse concordado com um almoço tardio, para que Malone pudesse dormir algumas horas na sua cama. Malone permaneceu realmente mais um dia em Tóquio, mas a estação local não detectou mais contatos entre ele e Watanabe, ou qualquer agente do empresário. Regressou a Londres ao final da tarde de quinta-feira, parecendo, segundo Eli Lavon, um cadáver de fato de Savile Row. Às três e meia da tarde seguinte, o cadáver entrou no restaurante Greens em Duke Street e dirigiu-se à sossegada mesa de canto onde Isherwood já aguardava. Isherwood serviu-lhe um copo grande de Borgonha branco.
Muito bem, Julian — disparou Malone. — Vamos deixar de gracinha, está bem?
O que tem na manga? E quem pôs lá? À sua.
Noventa minutos mais tarde, Chiara esperava no alto da escada quando Isherwood, fortificado por duas garrafas de um excelente Borgonha branco às custas de Gabriel, subiu, periclitante, os degraus forrados com o carpete novo. Indicou-lhe a porta à esquerda, para as antigas instalações da Archer Travei, onde foi recebido por um dos vigilantes neviot de Gabriel. Despiu seu paletó, desabotoou a camisa, revelando o pequeno gravador digital que tinha preso ao peito por uma faixa elástica.
— Em geral não faço isso no primeiro encontro — gracejou. O agente neviot retirou o gravador e sorriu. — Como estava a lagosta?
— Um pouco dura, mas, tirando isso, muito boa.
— Saiu-se muito bem, Mr. Isherwood. Muito bem.
— Imagino que tenha sido o meu último negócio. Agora esperemos que não me arruíne.
A gravação poderia ter sido transmitida através de uma ligação segura, mas Gabriel, como Adrian Carter, ainda era antiquado em relação a algumas coisas, e insistiu que fosse descarregada para um disco e levada à mão para a casa de segurança de Surrey. Por esse motivo, já passava das oito e meia quando lá chegou. Introduziu o disco no computador na sala e pressionou o ícone Pay. Dina estava deitada no sofá. Yaakov encontrava-se sentado num cadeirão, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos nos joelhos, inclinado para a frente como se aguardasse notícias da frente de batalha. Era a noite em que Rimona estava de serviço na cozinha. Quando Andrew Malone começou a falar, gritou para Gabriel que aumentasse o volume para que também pudesse ouvir.
— Acha que sou tolo, Julian?
— É verdadeiro, Andrew. Vi com meus próprios olhos.
— Tem uma fotografia?
— Não fui autorizado a tirar.
— Quem é o dono?
— O dono prefere ficar anônimo.
— Sim, claro, mas quem é, Julian?
— Não posso divulgar o nome do dono. Ponto final. Parágrafo. Ela me nomeou seu representante e basta.
— Ela? Quer dizer que é uma mulher?
— O quadro está na mesma família há três gerações. Neste momento, está nas mãos de uma mulher.
— Que tipo de família, Julian? Dê uma pista.
— Uma família francesa, Andrew. E não digo mais nada.
— Receio que isso não baste, Julian. Tem que me dar mais alguma coisa a que me agarrar. Não posso chegar ao Zizi de mãos abanando. Ele fica irritado quando isso acontece. Se quer que o Zizi entre no jogo, tem de seguir as regras dele.
— Não vai me intimidar, Andrew. Fiz o favor de vir ver você. Muito sinceramente, estou pouco ligando para as regras de Zizi. Não preciso de Zizi para nada. Se vierem a saber que tenho um Van Gogh desconhecido, não há colecionador, nem museu do mundo que não venha bater na minha porta oferecendo dinheiro. Tente lembrar disso.
— Perdoe, Julian. A semana tem sido muito comprida. Vamos começar de novo, está bem?
— Sim, comecemos.
— Posso fazer umas perguntas inocentes?
— Depende da inocência.
— Vamos começar com uma fácil. Onde está o quadro neste momento? Na França ou na Inglaterra?
— Está aqui em Londres.
— Na sua galeria?
— Ainda não.
— De que tipo de quadro estamos falando? Paisagem? Natureza morta? Retrato?
— Retrato.
— Auto?
— Não.
— Homem ou mulher?
— Mulher.
— Pintor inicial ou tardio?
— Muito tardio.
— Saint-Rémy? Auvers?
— Do segundo, Andrew. Foi pintado durante nos últimos dias de vida em Auvers.
— Não encontrou um quadro perdido de Marguerite Gachet, certo, Julian?
— Talvez devêssemos dar uma olhada no menu.
— Que se dane o menu, Julian. Responda à pergunta: encontrou um quadro perdido de Marguerite?
— Já disse o que tinha a dizer em relação ao conteúdo, Andrew. E ponto final. Se quer saber o que é, tem que ver com seus olhos.
— Está me oferecendo a possibilidade de vê-lo?
— Estou oferecendo essa possibilidade a seu patrão, não a você.
— E mais fácil dizer do que fazer. Ser dono do mundo dá muito trabalho ao meu patrão.
— Estou pronto a oferecer a exclusividade a Zivi durante setenta e duas horas. Depois disso, vou pô-lo à disposição de outros colecionadores.
— Má ideia, Julian. O meu patrão não gosta de ultimatos.
— Não é um ultimato. São negócios. Ele entende.
— De quanto estamos falando?
— Oitenta e cinco milhões.
— Oitenta e cinco milhões? Então precisa mesmo de Zizi. O dinheiro não é muito nos tempos que correm, certo? Nem me lembro da última vez que alguém deu oitenta e cinco milhões por alguma coisa. Você lembra, Julian?
— O quadro vale cada cent.
— Se for o que diz, e se estiver em perfeitas condições, consigo os oitenta e cinco milhões em prazo muito curto. Sabe, meu patrão anda à procura de uma coisa vistosa assim há muito tempo. Mas já sabia disso, não é, Julian? Foi por isso que veio me ver primeiro. Sabia que podia fechar o negócio numa tarde. Sem leilões. Sem imprensa. Sem perguntas incômodas sobre sua francesinha que quer permanecer anônima. Sou sua galinha dos ovos de ouro e vai ter que dar algum milho à galinha.
— De que raio está falando, Andrew?
— Sabe muito bem.
— Acho que estou um pouco lento hoje. Importa-se de me explicar?
— Estou falando de dinheiro, Julian. Estou falando de uma fatia muito pequena de um bolo muito grande.
— Quer uma parte? Um pouco da ação, como diriam os americanos?
— Deixemos os americanos fora disto, está bem? Neste momento o meu patrão não morre de amores pelos americanos.
— Falamos de uma fatia de que tamanho, Andrew?
— Imaginemos que sua comissão seja de dez por cento. Isso significa que ganha oito milhões e meio de dólares por uma tarde de trabalho. Estou pedindo dez por cento desses dez por cento. Na verdade, não peço, exijo. E vai pagar, pois é assim que se joga este jogo.
— Se a minha curta memória não falha, você é o consultor de arte exclusivo do Zizi. Ele paga um salário monstruoso. Praticamente vive às custas de Zizi. Passa a maior parte do tempo livre descontraindo nas propriedades dele. Ele permite para que seus conselhos não sejam maculados por outros negócios. Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Manda você para o deserto e deixa que os abutres limpem sua carcaça.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
— Está bem, Andrew. Terá seus dez por cento. Mas quero Zizi al-Bakari na minha galeria em todo o seu esplendor nas próximas setenta e duas horas, caso contrário, não há negócio.
Gabriel parou a gravação, retrocedeu-a e voltou a reproduzir a parte final.
Mas você joga dos dois lados, não é, Andrew? Há quanto tempo faz isso? Quanto já desviou? Quanto dinheiro de Zizi já meteu no bolso?
— Não é dinheiro do Zizi. O dinheiro é meu. E o que Zizi não sabe, não o prejudica.
— Exatamente, meu querido. É por isso que não vai dizer nada disso ao Zizi. Ofereço sete milhões e meio de dólares por um dia de trabalho. Não é mau, Julian. Aceita o negócio. Vamos enriquecer juntos, está bem?
Gabriel retirou o disco do computador.
— Mr. Malone tem sido muito maroto — comentou Yaakov.
— Tem — concordou Gabriel, mas já sabia há algum tempo.
— Não acha que deviam contar a Zizi? — perguntou. É o mais correto.
— É verdade — asseverou Gabriel, guardando o disco no bolso. — Alguém devia contar. Mas ainda não.
Foram as setenta e duas horas mais longas de suas vidas. Houve partidas falsas e promessas quebradas, encontros marcados e desmarcados numa única tarde. Malone agia como intimidador num momento e como suplicante no momento seguinte. — Zizi anda um pouco apertado — disse, ao fim do dia de sábado. — Zizi está a meio de um negócio importante. Vai estar hoje em Deli e em Singapura amanhã. Não consegue estar em Londres antes de meados da próxima semana. — Isherwood manteve-se firme. A exclusividade de Zizi terminava na segunda-feira às cinco horas da tarde, recordou. Depois disso, Zizi entraria em disputa com todos os restantes interessados.
Ao fim da tarde de domingo, Malone telefonou com a notícia de que Zizi dispensava o negócio. Gabriel não ficou preocupado, pois nessa mesma tarde a equipe neviot posicionada na Archer Travel avistara um árabe bem vestido na casa dos trinta a fazer uma óbvia incursão de reconhecimento em Masons Yard. Depois de ver as fotografias de vigilância, Lavon identificou-o como sendo Jafar Sharuki, antigo elemento da guarda nacional saudita que agia como segurança avançado de Zizi.
— Ele vem — garantiu Lavon. — Zizi gosta sempre de se fazer difícil. O telefonema por que todos esperavam deu-se precisamente às dez e vinte e dois da manhã seguinte. Era Andrew Malone e, mesmo que não o pudessem ver, sabiam que o cadáver era todo sorrisos. Zizi estava a caminho de Londres, disse.
Estaria na galeria de Isherwood às quatro e meia.
— Zizi tem algumas regras — avisou Malone, antes de desligar.
— Nada de álcool nem cigarro. E a ver se essas tuas duas garotas têm roupas decentes. Zizi aprecia mulheres bonitas, mas gosta de as ver com trajes modestos. Nosso Zizi é um homem religioso. Ofende-se com facilidade.
20
LONDRES
Marguerite Gachet foi a primeira a chegar. Veio nas traseiras de uma van discreta, conduzida por um bodel à Estação de Londres, tendo entrado na Isherwood Fine Arts pelo cais de entrada seguro. A entrega foi observada por dois homens da unidade de segurança de Wazir bin Talai, que estavam sentados a bordo de um carro estacionado em Duke Street, e por Jafar Sharuki, o guarda avançado, que depenicava um prato de peixe e batatas fritas no pub ao lado da galeria de Isherwood. A confirmação da transferência bem sucedida do quadro chegou à casa de segurança de Surrey às três e dezoito da tarde, através de um e-mail seguro da equipe neviot. Foi recebido por Dina, que o leu a Gabriel. Este andava às voltas no tapete puído da sala. Fez uma pausa breve e meneou a cabeça, como se escutasse música distante, ao que retomou a jornada inquieta. Sentia-se tão inseguro como um dramaturgo na noite de estreia. Criara os personagens, dera-lhes as falas e via-os agora no palco que elaborara. Conseguia visualizar Isherwood de fato às riscas e gravata vermelha da sorte, desesperado por uma bebida e a mordiscar a unha do indicador direito para aliviar a tensão. E Chiara sentada à nova e brilhante secretária de recepção, o cabelo apanhado atrás e as longas pernas cruzadas pelo tornozelo numa pose pudica. E Sarah, no fato Chanel preto que comprara na Harrods duas semanas antes, instalada serenamente no divã da sala de exposições do andar superior, com os olhos em Marguerite Gachet e os pensamentos no monstro que subiria pelo elevador dali a duas horas. Se pudesse rescrever o papel de alguém, 210 seria o de Sarah. Mas era demasiado tarde. O pano estava prestes a subir. E assim, tudo o que o dramaturgo podia fazer era percorrer a sala da casa de segurança e esperar por informações. Às três e quatro, o de Mr. Baker fazia-se à pista do Aeroporto de Heathrow, sendo Mr. Baker o nome de código de Zizi al-Bakari. Às três e trinta e dois soube-se que Mr. Baker e respetivo séquito tinham saído da alfândega VIP. Às três e quarenta e cinco entravam nas limusinas, e às três e cinquenta e dois os veículos foram vistos a tentar bater o recorde de velocidade na A4. Às quatro e nove, o conselheiro artístico de Mr. Baker, a quem tinham atribuído o nome de código Marlowe, telefonava a Isherwood da caravana, para lhe dizer que estavam alguns minutos atrasados. Tal não foi o caso, pois às quatro e vinte e sete, essa mesma comitiva foi vista a entrar em Duke Street, vinda de Piccadilly. Depois seguiu-se o primeiro percalço da tarde. Por sorte, foi da parte de Zizi e não do seu. Teve início quando a primeira limusina tentava atravessar a estreita passagem de Duke Street para Masons Yard. O motorista apercebeu-se rapidamente de que os carros eram demasiado largos para caberem na brecha. Sharuki, o guarda avançado, não tirara as medidas. A mensagem final que Gabriel recebeu da equipe neviot declarava que Mr. Baker, presidente e CEO da Jihad Ltda. estava a sair do carro e dirigia-se a pé para a galeria.
Mas Sarah não estava à espera na sala de exposições do piso superior. Naquele momento estava no andar de baixo, no gabinete que partilhava com Julian, a olhar para a cena um tanto ou quanto burlesca que se desenrolava na passagem. Foi o primeiro gesto de rebelião. Gabriel pretendera que ela esperasse no piso de cima, oculta até o último momento, para que pudesse ser exibida ao mesmo tempo que Marguerite. Acabaria por obedecer às suas ordens, mas só depois de ter visto Zizi com os seus próprios olhos. Analisara-lhe o rosto nos recortes de Yossi, e memorizara o som da sua voz nos vídeos. Mas recortes e vídeos não substituíam a realidade. Por isso ali estava, numa infração flagrante das ordens de Gabriel, a observar Zizi e respetivo séquito a atravessar a passagem para o pátio resguardado do sol.
Rafiq al-Kamal, chefe do destacamento de segurança pessoal de Zizi, vinha à frente. Era maior do que parecera nas fotografias, mas deslocava-se com a graciosidade de um homem com metade do seu tamanho. Não tinha sobretudo, pois essa peça de roupa teria interferido, caso houvesse a necessidade de sacar da arma. Eli Lavon dissera-lhe que também não tinha consciência. Deu uma vista de olhos rápida ao pátio, como um batedor à procura de sinais do inimigo, depois virou-se e, com um sinal antiquado da mão, disse aos restantes que avançassem.
Em seguida vieram duas jovens muito bonitas, de cabelo escuro e casacos compridos, com um ar enfastiado por terem de andar os cem passos entre os carros abandonados e a galeria. A que se encontrava à direita era Nadia al-Bakari, a filha mimada de Zizi. A da esquerda era Rahimah Hamza, filha de Daoud Hamza, o libanês de formação de Stanford que tinha a reputação de ser o verdadeiro gênio financeiro por detrás da AAB Holdings. O próprio Hamza seguia alguns passos atrás das garotas, com um celular encostado ao ouvido. Depois de Hamza vinha Herr Manfred Wehrli, o banqueiro suíço que tratava do dinheiro de Zizi. Ao seu lado estava uma criança sem dono aparente e, atrás dela, mais duas mulheres bonitas, uma loura e a outra de cabelo curto da cor do grés. Quando a criança disparou de súbito pelo pátio na direção errada, foi interceptada graças a um salto felino de Jean-Michel, o kickboxer francês que servia de treinador pessoal e guarda-costas auxiliar de Zizi. Abdul-Jalil e Abdul-Hakim, os advogados de formação americana, vinham a seguir. Yossi interrompera uma das reuniões para comentar com desprezo que Zizi escolhera advogados cujos nomes significavam Servo do Grandioso e Servo do Sábio. Atrás dos advogados vinha Mansur, chefe do departamento de viagens de Zizi, seguido por Hassan, chefe de comunicações, e por Andrew Malone, o em breve ex-consultor exclusivo de arte de Zizi. Por fim, ensanduichado entre Wazir bin Talai e Jafar Sharuki, vinha o próprio Zizi.
Sarah afastou-se da janela. Sob o olhar atento de Chiara, entrou no elevador minúsculo e pressionou o botão do andar superior. Momentos depois, chegava à sala de exposições. No centro da sala, em cima de um cavalete imponente e velado como uma muçulmana, estava o
Van Gogh. Lá de baixo, ouvia Rafiq, o guarda-costas, a subir pesadamente a escada.
Não pode vê-lo como um terrorista, avisara Gabriel. Não pode pensar se algum do seu dinheiro foi parar ao bolso de Marwan al-Shehhi, ou a qualquer outro dos terroristas que assassinaram o Ben. Tem de vê-lo como um homem muito rico e importante. Não o tente seduzir. Pense nisto como uma entrevista de emprego. Não vai para a cama com ele. Vai trabalhar para ele. E, faça o que fizer, não tente dar conselhos ao Zizi. Vai arruinar o negócio. Os dois.
Virou-se e observou a sua aparência no reflexo da porta do elevador. Estava ligeiramente desfocada, o que lhe pareceu adequado. Era ainda Sarah Bancroft, apenas uma versão diferente. Uma reformulação do mesmo quadro. Alisou a frente do fato Chanel — não para Zizi, pensou, mas para Gabriel — e, pela primeira vez, ouviu a voz do monstro vinda lá de baixo.
— Boa tarde, Mr. Isherwood — cumprimentou o presidente e CEO da Jihad Limitada. — Sou Abdul Aziz al-Bakari. O Andrew disse que tem um quadro para mim. Do primeiro elevador surgiram apenas seguranças. Rafiq entrou na sala e devorou-a sem pudor com os olhos, enquanto Sharuki espreitava para baixo do divã, em busca de armas ocultas e. Jean-Michel, o kickboxer, dava a volta à zona com movimentos como os de um bailarino mortífero. O elevador seguinte trouxe Malone e Isherwood, alegremente apertados entre Nadia e Rahimah. Zizi chegou no terceiro, apenas com o seu Bin Talai de confiança por companhia. O fato escuro feito à mão caía graciosamente no corpo obeso. Tinha a barba aparada com cuidado, como o cabelo grisalho que rareava. Os olhos eram vivos e ativos. Pousaram de imediato na única pessoa na sala cujo nome desconhecia. Não tente apresentar-se, Sarah. Não o olhe diretamente. Se houver algum gesto, deixe que seja Zizi a fazê-lo.
Sarah olhou para os sapatos. As portas do elevador voltaram a abrir-se, vomitando desta vez Abdul Abdul, Servos do Grandioso Sábio, e Herr Wehrli, o suíço do dinheiro. Sarah observou-os a entrar e depois lançou um olhar furtivo a Zizi, que continuava a fitá-la.
— Perdoe-me, Mr. Al-Bakari — disse Isherwood. — Hoje não sei onde foram parar as minhas maneiras. Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah.
Não tente apertar-lhe a mão. Se ele a oferecer, aceite-a brevemente e largue-a. Sarah permaneceu muito direita, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Zizi mirava-a de alto a baixo. Por fim, avançou e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la. — Sarah aceitou a mão e ouviu-se a dizer: — O prazer é meu, Mr. Al-Bakari. É uma honra conhecê-lo.
Zizi sorriu e segurou-lhe na mão um instante além do que seria confortável. Depois soltou-a repentinamente e dirigiu-se ao quadro. Sarah virou-se e desta vez foi-lhe apresentada uma panorâmica das costas dele, estreitas nos ombros e largas nas ancas.
— Gostaria de ver o quadro, por favor — anunciou, para ninguém em especial, mas Sarah já só ouvia a voz de Gabriel. Faça a apresentação de acordo com a vontade do Zizi, dissera. Se o forçar a aguentar uma história, só vai conseguir enfurecê-lo. Lembre-se, a estrela da tarde é Zizi, não Marguerite.
Sarah passou por ele, tendo o cuidado de não lhe tocar no ombro, depois ergueu as mãos e retirou lentamente a cobertura de baeta. Permaneceu em frente da tela mais um instante, a recolher o tecido e a tapar a vista de Zizi, antes de finalmente se desviar para o lado.
— Apresento-lhe Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh — disse formalmente. — Óleo sobre tela, é claro, pintado em Auvers, em julho de 1890.
Ouviu-se um arquejo coletivo vindo da comitiva de Zizi, seguido por um murmúrio entusiasmado. Apenas Zizi se manteve em silêncio. Os olhos escuros percorriam a superfície do quadro, a expressão inescrutável. Momentos depois, desviou o olhar da tela e fitou Isherwood.
— Onde o encontrou?
— Quem me dera poder ficar com o mérito, Mr. Al-Bakari, mas foi Sarah quem descobriu Marguerite.
A atenção de Zizi deslocou-se para Sarah.
— Mesmo? — perguntou, com admiração.
— Sim, Mr. Al-Bakari.
— Nesse caso, vou fazer a mesma pergunta que fiz a Mr. Isherwood. Onde o encontrou?
— Tal como Julian explicou a Mr. Malone, o dono prefere manter-se anônimo.
— Não pergunto a identidade do dono, Miss Bancroft. Gostaria apenas de saber como a descobriu.
Vai ter de dizer alguma coisa, Sarah. Ele tem esse direito. Mas faça-o com relutância e discrição. Um homem como o Zizi aprecia a discrição.
— Foi o resultado de vários anos de investigação de minha parte, Mr. Al-Bakari.
— Que interessante. Conte-me mais, Miss Bancroft, por favor.
— Receio não poder fazê-lo sem violar meu acordo com os donos, Mr. Al-Bakari.
— Dona — corrigiu-a Zizi. — Segundo o que me disse Andrew, o quadro pertence a uma mulher francesa.
— Sim, exatamente, mas receio não poder ser mais específica.
— Mas estou curioso quanto à forma como o encontrou. — Cruzou os braços à frente do peito. — Adoro uma boa história de detetive.
— Adoraria poder fazer sua vontade, Mr. Al-Bakari, mas receio que não me seja permitido. Apenas posso dizer que foram precisos dois anos de pesquisa em Paris e em Auvers para encontrar o quadro, e outro ano para convencer a dona a cedê-lo.
— Talvez um dia, quando passar tempo suficiente, se digne a partilhar um pouco mais dessa história fascinante.
— Talvez — replicou. — Quanto à autenticação, determinamos que não há dúvidas de que o trabalho pertence a Vincent e, é claro, estamos prontos a defender essa autenticação.
— Gostaria de examinar os relatórios dos seus peritos, Miss Bancroft, mas, muito sinceramente, não preciso de vê-los. Sabe, é-me perfeitamente óbvio que este quadro é uma pintura de Van Gogh. — Pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Venha cá — disse, com um tom paternal. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Sarah aproximou-se da tela. Zizi apontou para o canto superior direito.
— Vê aquela ligeira marca na superfície? Se não estou em erro, trata-se da impressão digital de Vincent. Sabe, o Vincent era muito prático na maneira como tratava os quadros. Quando acabou este, deve tê-lo agarrado pelo canto, para o levar através das ruas de Auvers até o quarto que tinha por cima do Café Ravoux. Havia sempre dezenas de quadros nesse quarto. Costumava encostá-los à parede, uns em cima dos outros. Trabalhava tão depressa que as pinturas anteriores nem tinham tempo de secar antes de lhes colocar outras em cima. Se olhar com cuidado para aqui, pode ver as marcas da tela na superfície da tinta.
A mão continuava sobre o ombro de Sarah.
— Impressionante, Mr. Al-Bakari. Mas não me surpreende. A sua reputação precede-o.
— Aprendi há muito tempo que um homem na minha posição não pode confiar nas garantias dos outros. Tem de estar sempre alerta contra esquemas e falsificações perfeitas. Acredito que ninguém me conseguiria impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. — Era preciso ser-se néscio para sequer tentar, Mr. Al-Bakari. Zizi olhou para Isherwood.
— Tem queda para encontrar trabalhos perdidos. Acho que no outro dia li qualquer coisa sobre um Rubens seu.
— É verdade.
— E agora um Van Gogh. — Zizi voltou a olhar para o quadro. — Andrew disse que tinham um preço em mente.
— Exatamente, Mr. Al-Bakari. Achamos que é bem razoável.
— Eu também. — Mirou Herr Wehrli, o banqueiro, por cima do ombro. — Acha que consegue encontrar oitenta e cinco milhões nas contas, Manfred?
— Creio que é possível, Zizi.
— Nesse caso, negócio fechado, Mr. Isherwood. — Olhou para Sarah e completou: — Eu a levo-a.
Às quatro e cinquenta e três, a equipe neviot informou Gabriel de que a ação se deslocara para o andar inferior e Isherwood discutia com Herr Wehrli e Abdul Abdul as questões relativas ao pagamento e à transferência de posse. A discussão demorou pouco mais de uma hora, e às seis e cinco chegou a informação de que Mr. Baker e respetivo séquito atravessavam o pátio, de regresso à caravana estacionada em Duke Street. Eli Lavon ficou encarregue da perseguição. Durante alguns minutos, o destino pareceu ser a mansão de Mayfair mas, às seis e quinze, tornou-se óbvio que Mr. Baker e comitiva se dirigiam a Heathrow e a paradas incertas. Gabriel ordenou a Lavon que interrompesse a perseguição. Não lhe interessava para onde ia Mr. Baker. Sabia que em breve se voltariam a encontrar.
O vídeo chegou às sete e quarenta e cinco. Fora recolhido pela câmera de vigilância instalada no canto extremo da sala de exposições, acima da paisagem de Claude. Enquanto a via, Gabriel sentia-se como se estivesse num camarote acima do palco.
— ...Esta é Sarah Bancroft, a nossa diretora-adjunta. A nossa presença nesta sala esta tarde deve-se à Sarah...
— ...Nesse caso, negado fechado, Mr. Isherwood. Eu a levo...
Gabriel parou a gravação e olhou para Dina.
— Vendeste-lhe uma garota — disse ela. — Agora só tens de lhe vender a outra. Gabriel abriu o arquivo áudio do encontro de Isherwood com Andrew Malone e clicou no Play.
— Não é dinheiro do Zisçi. O dinheiro é meu. E aquilo que o Zizi não sabe, não o prejudica.
— E se ele descobrir? Lança-te ao deserto e deixa que os abutres te limpem a carcaça.
21
LONDRES
A denúncia de Andrew Malone chegou à sede da AAB Holdings em Genebra às dez e vinte e dois da manhã de quinta-feira seguinte. Estava dirigida a "Mr. Abdul Aziz al-Bakari, Esq." e foi entregue em mãos por um mensageiro de motocicleta com uniforme de um serviço de mensagens de Genebra. O nome do remetente era uma tal de Miss Rebecca Goodheart, Earls Court, Londres, mas a investigação feita pela segurança da AAB determinou que Miss Goodheart era simplesmente pseudônimo de um delator anônimo. Não tendo encontrado vestígios de materiais radiológicos, biológicos ou explosivos, o subordinado encaminhou a carta à sala de Wazir bin Talai. Ali permaneceu até o fim da tarde de sexta-feira, quando Bin Talai voltou a Genebra após uma viagem de um dia a Riad.
Tinha assuntos mais urgentes a tratar, por isso pouco faltava para as oito quando abriu o envelope. Arrependeu-se de imediato pelo atraso, pois as alegações eram muito sérias. Segundo Miss Goodheart, em nove ocasiões Andrew Malone recebera verbas em dinheiro, o que constituía uma violação do contrato de serviços pessoais que assinara com Abdul Aziz al-Bakari. As alegações eram corroboradas por uma série de provas que incluíam recibos de depósitos bancários, faxes e e-mails pessoais retirados do computador pessoal de Malone. Bin Talai telefonou imediatamente para a mansão de Genebra do superior, e às nove horas da noite estava a colocar os documentos em cima da secretária de um Zizi al-Bakari irado.
Nessa mesma noite, às onze horas em Londres, Birj Talai telefonou para a residência de Malone em Knightsbridge e ordenou-lhe que fosse para Genebra no primeiro voo disponível. Quando Malone protestou que já tinha um compromisso — e ainda por cima era fim-de-semana — Bin Talai deixou bem claro que a convocatória tinha um caráter obrigatório, e a não comparência seria considerada uma ofensa grave. O telefonema foi gravado por uma equipe neviot e transmitido de imediato a Gabriel, na casa de segurança de Surrey, acompanhado pela chamada que um Malone nervoso efetuara dez minutos depois para a British Airways, reservando um lugar no voo para Genebra das oito e trinta da manhã.
Eli Lavon reservou um lugar no mesmo voo. Quando chegaram a Genebra, os dois homens foram recebidos por um par de carros díspares, Malone por um Mercedes Classe S preto, conduzido por um dos motoristas de Zizi, e Lavon por um Opel salpicado de lama, pilotado por um correio da Estação de Genebra. Lavon disse ao bodel que desse margem ao Mercedes. Por esse motivo, chegaram à mansão de Zizi alguns minutos depois de Malone. Avistaram um estacionamento discreto mais ao fundo da rua, mas não tiveram de esperar muito, pois vinte minutos mais tarde Malone saiu da casa, com um ar mais pálido do que o habitual. Regressou diretamente ao aeroporto e reservou um lugar no primeiro avião de volta a Londres, marcado para as cinco horas. Lavon fez o mesmo. Em Heathrow, os dois homens seguiram o seu caminho, Lavon para Surrey e Malone para Knightsbridge, onde informou a esposa de que, a menos que conseguisse desencantar quatro milhões de libras a curto prazo, Zizi al-Bakari ia atirá-lo pessoalmente de uma ponte muito alta.
Tudo isto teve lugar na noite de sábado. Na quarta-feira seguinte, tornou-se claro para Gabriel e para o resto da equipe que Zizi andava à procura de um novo consultor de arte exclusivo. Também se tornou óbvio que tinha alguém em particular debaixo de olho, pois Sarah Bancroft, diretora-adjunta da Isherwood Fine Arts, de Masons Yard, St. Jamess, estava a ser vigiada. Sarah começou a vê-los como amigos. Viajavam de metropolitano com ela. Passeavam em Masons Yard e preambulavam por Duke Street. Seguiam-na para almoçar e havia sempre um à espera no Greens todas as noites, quando passava pelo bar para tomar uma bebida rápida com Oliver e os rapazes. Foram com ela a um leilão na Sothebys e viram-na selecionar o conteúdo aborrecido de uma loja em Hull. Chegaram a efetuar uma longa viagem com ela até Devon, onde convenceu um aristocrata menor a ceder uma adorável Senhora com Menino veneziana, que Isherwood ambicionava havia anos.
— Zizi vem buscá-la — disse-lhe Gabriel num telefonema breve na segunda-feira à tarde. — É só uma questão de tempo. E não fique alarmada se as coisas parecerem fora do sítio quando voltar a casa. O Sharuki entrou no seu apartamento esta manhã e revistou-o.
No dia seguinte chegou o primeiro presente, um relógio de diamantes Harry Winston. Presa à caixa estava uma mensagem escrita à mão: Obrigado por ter encontrado Marguerite. Eternamente grato, Zizi. Os brincos Bulgari surgiram no dia seguinte. A fiada dupla de pérolas Mikimoto no outro dia. A pulseira de rede de ouro da Tiffany apareceu na quinta-feira ao fim da tarde, quando Sarah se preparava para sair do trabalho. Colocou-a no pulso direito e dirigiu-se ao Greens, onde Oliver a tentou abordar de modo um pouco desajeitado.
— Talvez numa outra vida — respondeu-lhe, com um beijo na face —, mas esta noite não. Sê um querido, Oliver, e leva-me ao metro.
As noites eram o mais difícil. As viagens à casa de segurança de Surrey tinham chegado ao fim. Para Sarah, a casa de Surrey não existia. Percebeu que tinha imensas saudades de todos eles. Eram uma família. Uma família barulhenta, desavinda, cacofônica e adorável — o tipo de família que Sarah nunca tivera. Tudo o que restava deles era o ocasional telefonema secreto de Gabriel e a luz no apartamento do outro lado da rua, a luz de Yossi. Mas em breve também este desapareceria. À noite, quando ficava sozinha e com medo, chegava a desejar ter-lhes dito que encontrassem outra pessoa. E às vezes pensava no pobre Julian e interrogava-se como seria capaz de aguentar-se sem ela.
O último envelope chegou às três da tarde do dia seguinte. Foi entregue em mão por um mensageiro de fato e gravata. Lá dentro estava uma mensagem escrita à mão e um único bilhete de avião. Sarah abriu o invólucro do bilhete e olhou para o destino. Dez segundos depois, o telefone tocou. — Isherwood Fine Arts. Fala a Sarah. — Boa tarde, Sarah.
Era Zizi.
— Olá, Mr. Al-Bakari. Como está o senhor?
— Digo-lhe não tarda nada. Recebeu o convite e o bilhete de avião?
— Recebi, sim. E os brincos. E o relógio. E as pérolas. E a pulseira.
— A pulseira é a minha preferida.
— A minha também, mas as prendas eram completamente desnecessárias. Tal como este convite. Receio que não possa aceitar.
— Insulta-me, Sarah.
— Não é, de todo, minha intenção. Por mais que gostasse de passar alguns dias ao sol, receio não poder sair daqui de um momento para o outro.
— Não é de um momento para o outro. Se olhar com atenção para o bilhete, verá que ainda faltam três dias para a partida.
— Também não posso ausentar-me daqui a três dias. Tenho assuntos a tratar na galeria.
— Imagino que o Julian a possa dispensar por alguns dias. Acabou de lhe conseguir muito dinheiro.
— Isso é verdade. — Então, Sarah? Vem?
— Receio que a resposta seja não.
— Tem de ficar a saber uma coisa sobre mim, Sarah, eu nunca aceito um não como resposta.
— Apenas creio que não seria próprio.
— Próprio? Acho que não entendeu os meus motivos.
— E quais são os seus motivos?
— Gostaria que viesse trabalhar comigo.
— Em que função?
— Nunca discuto esses assuntos ao telefone, Sarah. Vem? Sarah esperou dez segundos antes de lhe responder.
— Ótimo — replicou Zizi. — Um dos meus homens vai acompanhá-la. Irá buscá-la ao seu apartamento às oito da manhã de segunda-feira.
— Posso viajar sozinha, Mr. Al-Bakari.
— Eu sei que sim, mas será mais fácil se um dos meus seguranças estiver com você. Nos vemos na segunda-feira à noite.
E desligou. Quando Sarah pousou o fone, apercebeu-se de que ele não lhe pedira o endereço.
Gabriel estava a desmontar o estúdio na casa de segurança de Surrey quando Lavon subiu a escada à pressa, com uma impressão da mensagem que acabara de ser enviada pela equipe neviot em Masons Yard.
— Zizi fez a jogada dele — informou, entregando a folha a Gabriel. — Quer vê-la imediatamente.
Gabriel leu a mensagem e depois olhou para Lavon.
— Bolas — murmurou. — Vamos precisar de um barco.
Celebraram com um jantar acompanhado por champanhe. A mesa estava posta também para Sarah, o único membro da equipe que não se encontrava presente. Na manhã seguinte, Lavon conduziu Gabriel ao Aeroporto de Heathrow e às quatro e meia dessa tarde apreciava o pôr do Sol a partir de um apartamento de segurança da CIA, em Collins Avenue, em Miami Beach. Adrian Carter vestia jeans, camisa de algodão e mocassins. Ofereceu a Gabriel um copo de limonada e a fotografia de um barco enorme.
— Chama-se Sun Dancer — informou Carter. — É um iate de luxo de alto mar de vinte e dois metros. Imagino que tu e a tua equipe o considerem muito agradável. — Onde o conseguiste?
— Apreendemo-lo há uns anos a um traficante de droga panamense chamado Carlos Castillo. Mr. Castillo reside agora numa penitenciária federal no Oklahoma, e desde então temos vindo a usar o seu barco para fazer o trabalho do Senhor aqui no Caribe.
— Quantas vezes foi usado? — Cinco ou seis pelo DEA, e duas por nós.
Gabriel devolveu a foto a Carter. — Está sujo — comentou. — Nada com uma origem limpa?
— Já mudamos o nome e registro várias vezes. Zizi e os seguranças dele não têm maneira de o ligar a nós.
Gabriel suspirou.
— Onde está ele agora?
— Numa marina de Fisher Island — respondeu Carter, apontando para sul. — Está a ser equipado neste momento. Esta noite parte de Langley uma tripulação da CIA.
— Foi uma boa tentativa — contrapôs Gabriel —, mas vou usar a minha tripulação. — Vossa?
— Temos marinha, Adrian. E muito boa, por sinal. Tenho uma tripulação a postos em Haifa. E diz aos teus rapazes que retirem os dispositivos de escuta. Caso contrário nós próprios vamos tirá-los, e o Sun Dancer vai chegar-lhes às mãos em mau estado.
— Já está tratado — garantiu Carter. — Como estás a pensar trazer a tua equipe para cá?
— Esperava que um amigo do serviço secreto americanos me desse uma ajuda.
— Do que precisas?
— Autorização de transporte aéreo e de aterragem.
— De quanto tempo precisas para levar a tua tripulação de Haifa para Londres? — Partem logo pela manhã.
— Vou enviar um dos nossos aviões para Londres esta noite. Vai buscar a tua equipe e trazê-la para cá. Deixamo-la em Homestead e dispensamos os passaportes e a alfândega. Podes fazer-te ao mar no domingo à noite e encontrar-te com Zizi na segunda-feira à tarde.
— Parece-me que temos negócio fechado — disse Gabriel. Agora só precisamos do Ahmed bin Shafiq.
— Ele aparece — garantiu Carter. — A única questão é saber se a tua garota lá vai estar quando ele chegar.
— Ela é a nossa garota, Adrian. A Sarah pertence-nos a todos.
PARTE TRÊS
A Viagem Noturna
23
ILHA HARBOUR, BAHAMAS
— Lá está ele — bradou Wazir bin Talai sobre o rugido das hélices do Sikorsky. Apontou para o lado direito do aparelho. Alexandra, o enorme iate privado de Zizi cruzava as águas a ocidente da ilha. Não é lindo?
— É enorme — gritou Sarah em resposta.
— Oitenta metros — gabou-se Bin Talai, como se o tivesse construído ele próprio. Oitenta e cinco, pensou Sarah. Mas isso são pormenores. Yossi descrevera-o como sendo um emirado flutuante. Sarah permitiu que lhe invadissem o pensamento. O último contato fora na tarde de domingo. Comprava em Oxford Street as últimas coisas para a viagem quando Eli Lavon se cruzara com ela. Estaremos sempre contigo, dissera-lhe. Não nos procures. Não tentes entrar em contato conosco, a menos que seja uma calamidade. Nós iremos ter contigo. Tem uma boa viagem.
Recostou-se no assento. Usava o jeans e a blusa de lã que vestira de manhã. Apenas a dez horas de distância da umidade fria de Londres, o seu corpo não estava preparado para a investida do calor tropical. Sentia o jeans colado às pernas e a camisa parecia lixa no pescoço. Olhou para Bin Talai, que não aparentava qualquer dificuldade em adaptar-se à súbita mudança de clima. Tinha um rosto largo, olhos pequenos e barbicha. Vestido como estava, de fato cinzento e gravata, poderia ser confundido com um financeiro. As mãos, contudo, traíam a verdadeira natureza do seu trabalho. Pareciam marretas.
O troar da hélice tornava a conversa impossível, algo por que se sentia grata. A aversão que sentia por ele não tinha limites. Desde pouco depois da madrugada que se tornara uma presença constante a seu lado, ameaçadora na sua correção. No aeroporto insistira em acompanhá-la às lojas francas e interviera com um cartão de crédito da empresa quando ela comprara um frasco de loção de aloés. Durante o voo mostrara um interesse constante por todos os aspetos da vida dela. Por favor, Miss Sarah, fale-me da sua infância... Por favor, Miss Sarah, fale-me do seu interesse pela arte... Por favor, Miss Sarah, diga-me por que resolveu deixar Washington e vir para Londres... Fingira estar a dormir para fugir dele. Duas horas depois, quando simulou acordar, questionou-a ainda mais. Disse que o pai trabalha no Citicorp? Sabe, é bem possível que ele e Mr. Al-Bakari se tenham encontrado. Mr. Al-Bakari já tratou de muitos assuntos com a Citicorp... Depois desse comentário colocara os fones para ver um filme. Bin Talai escolhera o mesmo. Quando voltou a olhar pela janela, o Alexandra parecia encher o horizonte. Podia ver Nadia e Rahimah a apanhar os últimos raios de sol na coberta de proa, os cabelos negros a contorcerem-se com o vento. E Abdul Abdul com Herr Wehrli no convés de popa, a maquinarem a próxima conquista. E acima de todos eles, vestido de branco
Com o braço erguido em saudação, estava Zizi. Volte para trás, pensou. Deixe-me em terra firme. Fique aqui, Mr. Bin Taa. Eu volto a Londres sozinha, muito obrigada.
Mas sabia que não havia como voltar atrás. Gabriel dera-lhe essa última oportunidade em Surrey, e ela concordara em prosseguir com a missão. O Sikorsky pairou sobre a popa do Alexandra e baixou lentamente até a plataforma de aterragem. Sarah viu outra coisa: Zizi na sala de exposições da galeria de Julian, a avisá-la de que ninguém seria capaz de lhe conseguir impingir uma falsificação, quer fosse nos negócios, quer fosse no mundo da arte. Não sou uma falsificação, pensou quando desceu do helicóptero. Sou Sarah Bancroft. Antiga conservadora do Phillips Colletion de Washington. Agora trabalho para a Ishenvood Fine Arts de Londres. Já me esqueci de mais coisas sobre arte do que conseguiria saber. Não quero seu emprego, nem seu dinheiro. Na verdade, não quero nada com você.
Bin Talai levou-a aos seus aposentos. Eram maiores do que o apartamento de Chelsea: um quarto enorme, com área de estar independente, banheiro em mármore com uma jacuzzi rebaixada, uma vasta varanda particular, naquele momento iluminada pelo sol poente. O árabe pousou a mala na cama como se fosse um empregado de hotel e começou a abri-la.
Sarah tentou detê-lo.
— Isso não será necessário. Eu cuido da minha mala, obrigada.
— Receio que seja necessário, Miss Sarah.
Ergueu a parte de cima e começou a tirar seus pertences. — O que está fazendo?
— Temos regras, Miss Sarah. — A cortesia profunda desaparecera de sua voz. — É meu dever garantir que os convidados sigam essas regras. Nada de álcool, nada de fumo e nada de pornografia. — Ergueu uma revista americana de moda que ela comprara no aeroporto em Miami. — Receio que tenha de confiscar isto. Tem álcool?
Sarah abanou a cabeça. — Nem cigarro.
— Não fuma?
— Ocasionalmente, mas não é um vício.
— Preciso do seu celular até que deixe o Alexandra.
— Por quê?
— Porque não é permitido usar telefones celulares a bordo desta embarcação. Além disso, não funcionam por causa dos aparelhos eletrônicos do navio.
— Se não funciona, então para quê confiscá-lo?
— Imagino que o seu telefone possa tirar fotografias e gravar trechos de áudio e de vídeo.
— Foi o que o homenzinho da loja me disse, mas nunca usei essas potencialidades.
Bin Talai estendeu a mão enorme.
— O telefone, por favor. Garanto-lhe que será estimado.
— Tenho de trabalhar. Não posso ficar isolada do mundo. 228 Sinta-se à vontade para utilizar o sistema telefônico via satélite que temos a bordo.
E vocês estarão à escuta, não é?
Retirou o celular da bolsa, desligou-o e entregou-o.
— Agora a máquina fotográfica, por favor. Mr. Al-Bakari não gosta de máquinas fotográficas junto dele quando está a tentar descontrair-se. É contra as regras fotografá-lo, aos funcionários e aos convidados.
— Há mais convidados, além de mim?
A questão foi ignorada.
— Trouxe algum BlackBerry, ou qualquer outro tipo de PDA?, Sarah mostrou-lhe e ele estendeu a mão.
— Se lerem os meus e-mails, juro que...
— Não desejamos ler o seu correio eletrônico. Por favor, Miss Sarah, quanto mais depressa acabarmos isto, mais depressa poderá acomodar-se e descansar.
Entregou-lhe o BlackBerry.
— Trouxe algum iPod, ou outro gênero de sistema de som pessoal?
— Deve estar a brincar.
— Mr. Al-Bakari acredita que os sistemas de som pessoais são indelicados. O seu quarto contém um sistema de entretenimento áudio e vídeo topo de gama.
Não vai precisar do seu. Entregou-lhe o iPod.
— E outros aparelhos eletrônicos?
— Um secador.
Bin Talai estendeu a mão.
— Não pode ficar com o secador de uma mulher.
— No banheiro vai encontrar um compatível com o sistema elétrico do navio. Entretanto, dê-me o seu, para que não haja confusões.
— Prometo que não o uso.
— O secador, Miss Sarah, por favor. Retirou o secador da mala e entregou-o. — Mr. Al-Bakari deixou-lhe um presente no armário. Imagino que ele se sinta lisonjeado se o usar ao jantar. Está marcado para as nove horas. Sugiro que tente dormir até lá. Teve um dia comprido... e ainda temos a diferença horária, é claro.
— É claro.
— Deseja ser acordada às oito horas?
— Eu acordo sozinha. Trouxe um despertador de viagem. Bin Talai esboçou um sorriso sem humor.
— Fico com ele, também.
Para sua grande surpresa, acabou por dormir. Não sonhou e acordou na escuridão, sem saber onde se encontrava. Então sentiu o peito acariciado por um sopro de vento marítimo quente, como o hálito de um amante, e recordou que estava a bordo do Alexandra e profundamente solitária. Quedou-se imóvel por um momento, interrogando-se se estariam a observá-la. Tens de partir do princípio de que vão observar-te cada movimento e escutar-te cada palavra, avisara-a Eli. Imaginou outra cena a desenrolar-se a bordo do navio. Wazir bin Talai a descarregar todas as mensagens do BlackBerry. Wazir bin Talai a confirmar todos os números marcados no seu celular. Wazir bin Talai a dissecar o secador, o iPod e o despertador de viagem, em busca de microfones e dispositivos de localização. Mas não iria encontrá-los.
Gabriel sabia que revistariam os pertences dela assim que entrasse no território deles. Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazer à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. Aproximou o relógio do rosto e viu que faltavam cinco minutos para as oito. Voltou a fechar os olhos e permitiu que a brisa lhe percorresse o corpo. Cinco minutos depois, o telefone ao lado da cama gemeu suavemente. Estendeu a mão no escuro e trouxe o fone ao ouvido. — Estou acordada. Mr. Bin Talai.
— Folgo em ouvi-lo.
A voz não era a de Bin Talai. Era a de Zizi.
— Peço desculpas, Mr. Al-Bakari. Pensei que fosse outra pessoa.
— É óbvio — replicou, com um tom agradável. — Conseguiu descansar um pouco?
— Creio que sim.
— E a viagem?
— Foi bem.
— Posso fazer um pedido?
— Depende do que vai pedir, Mr. Al-Bakari.
— Preferia que me tratasse por Zizi. É como meus amigos me chamam.
— Vou tentar. — E acrescentou, em tom de brincadeira: — Mr. Al-Bakari.
— Fico a sua espera para jantar, Sarah.
A linha ficou muda. Pousou o fone e dirigiu-se à coberta privada. Estava já muito escuro. Uma lua em forma de unha pairava acima do horizonte e o céu era um cobertor de estrelas cintilantes. Olhou na direção da popa e viu um par de luzes de navegação de um verde esmeralda que pairavam a vários quilômetros de distância. Havia mais luzes na direção da proa. Recordou o que Eli lhe explicara durante o treino nas ruas. Por vezes, é mais fácil seguir alguém quando vamos na frente. Imaginou que o mesmo se pudesse aplicar à vigilância marítima.
Voltou ao quarto, despiu-se e entrou na casa de banho. Desvia os olhos, Wair, pensou. Nada de pornografia. Tomou banho na jacuzzi hedonista de Zizi e ouviu Keith Jarrett no sistema de áudio top de linha de Zizi. Enrolou-se no roupão de veludo de Zizi e secou o cabelo com o secador de Zizi. Passou um pouco de maquilagem, apenas para apagar os efeitos da viagem transatlântica, e quando deixou o cabelo solto nos ombros, pensou brevemente em Gabriel.
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em prender o cabelo no alto de vez em quando. Como Marguerite.
Mas não naquela noite. Quando ficou satisfeita com a sua aparência, dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Em cima de uma das prateleiras estava uma caixa embrulhada. Retirou o papel e destapou-a. Lá dentro havia calça e camiseta de alças, ambos de seda marfim. Couberam perfeitamente, como todo o resto. Acrescentou ao conjunto o relógio Harry Winston, os brincos Bulgari, as pérolas Mikimoto e a pulseira Tiffany. Saiu do quarto quando faltavam cinco minutos para as nove e dirigiu-se à coberta da popa. Tente esquecer que existimos. Seja Sarah Bancroft e nada pode correr mal.
Zizi recebeu-a com entusiasmo.
— Sarah! Que maravilha vê-la novamente. Toda a gente, esta é a Sarah. Sarah, apresento-lhe toda a gente. São demasiados nomes para se recordar de todos, a menos que seja uma daquelas pessoas com uma memória excelente para nomes. Sugiro que o vamos fazendo com calma. Sente-se, por favor, Sarah. Teve um dia muito comprido. Deve estar esfomeada.
Instalou-a perto da extremidade da longa mesa e regressou ao seu lugar, no lado oposto. Sarah tinha ao lado direito um Abdul e à esquerda Herr Wehrli, o banqueiro. À sua frente estava Mansur, o chefe do departamento de viagens, e a esposa nervosa de Herr Wehrli, que parecia considerar a cena pavorosa. Ao lado de Frau Wehrli estava Jean-Michel, o treinador pessoal. O longo cabelo louro estava apanhado num rabo-de-cavalo e fitava Sarah com um interesse ousado, para grande consternação da esposa, Monique. Mais ao fundo da mesa sentavam-se Rahimah e o belo namorado, Hamid, uma artista qualquer do cinema egípcio. Nadia estava ao lado do pai, numa atitude de posse. Durante a longa refeição, Sarah olhou repetidas vezes na direção de Zizi, encontrando sempre Nadia a fitá-la. Imaginou que Nadia fosse representar um problema tão grave como Bin Talai.
Após ter confirmado que Sarah não falava árabe, Zizi declarou que as línguas oficiais da noite seriam o francês e o inglês. As conversas foram terrivelmente banais. Falaram de roupas e de filmes, de restaurantes que Zizi gostaria de adquirir e de um hotel em Nice que estava a pensar em comprar. A guerra, o terrorismo, a situação dos palestinos, o presidente americano, nada disso parecia existir. Na verdade, nada parecia existir para lá da amurada do
Alexandra, ou dos limites do império de Zizi. Sentindo que Sarah estava a ser mantida à margem, Zizi voltou a pedir-lhe que explicasse como descobrira o Van Gogh. Quando a jovem se recusou a morder o isco, ele exibiu um sorriso predatório e garantiu:
— Um dia ainda lhe vou sacar essa informação. — Sarah, pela primeira vez, sentiu uma onda de terror profundo.
Durante a sobremesa, Zizi levantou-se do seu lugar e puxou uma cadeira para o lado de Sarah. Vestia um fato de linho creme e as faces anafadas estavam vermelhas do sol.
— Espero que tenha gostado do jantar.
— Estava delicioso. Deve ter passado a tarde a cozinhar.
— Eu não — escusou-se, com modéstia. — Os meus chefes.
— Tem mais do que um?
— Por acaso são três. A tripulação e restante pessoal soma quarenta elementos. Trabalham exclusivamente para mim, quer o Alexandra esteja no mar, quer esteja à espera no porto. Vai conhecê-los durante a nossa viagem. Se precisar de alguma coisa, não hesite em pedir. Espero que os seus aposentos sejam satisfatórios. — Mais do que satisfatórios, Mr. Al-Bakari.
— Zizi — recordou-a. Dedilhava uma fiada de contas de oração de marfim. — Mr. Bin Talai contou-me que ficou incomodada com algumas das nossas regras e procedimentos de segurança.
— Talvez surpreendida seja uma descrição melhor. Preferia que me tivesse explicado antes. Teria viajado com menos bagagem.
— Por vezes, Mr. Bin Talai consegue ser fanático na sua dedicação à minha segurança.
Peço-lhe desculpa pelo seu comportamento. Posto isto, Sarah, quando alguém entra no mundo da AAB Holdings, tem de seguir algumas regras... para segurança de todos. — Enrolou as contas de oração à volta dos dois primeiros dedos da mão direita. — Teve oportunidade de pensar na minha proposta?
— Ainda não sei qual é.
— Mas está interessada. Caso contrário, não teria vindo.
— Digamos que me sinto intrigada, e estou disposta a falar mais um pouco sobre o assunto.
— É uma mulher de negócios astuta, Sarah. Admiro essa qualidade. Aproveite o sol e o mar. Voltaremos a falar daqui a alguns dias, quando se descontrair um pouco.
— Alguns dias? Tenho de voltar a Londres.
— O Julian Isherwood saiu-se bem sem a Sarah durante muitos anos. Algo me diz que ele vai sobreviver enquanto tirar umas férias merecidas na nossa companhia.
E com essas palavras voltou ao seu lado da mesa, sentando-se junto a Nadia. — Bem-vinda à família — disse-lhe Herr Wehrli. — Ele gosta muito de si. Quando negociar o salário, seja pouco razoável. Ele paga-lhe o que a Sarah quiser. O jantar a bordo do Sun Dancer foi bastante menos extravagante e as conversas muito mais animadas. Não evitaram tópicos como a guerra e o terrorismo. Na verdade, receberam-nos de braços abertos e discutiram-nos bem para lá da meia-noite. Ao fim do serão verificou-se nova discussão, desta vez sobre quem iria tratar da louça. Dina e Rimona clamaram a sua dispensa, argumentando que tinham executado essa mesma tarefa na última noite passada em Surrey. Gabriel, através de uma das poucas ordens desse dia, delegou o encargo nos homens novos: Oded e Mordecai, dois agentes de campo versáteis e experientes, e Mikhail, um pistoleiro emprestado ao Escritório pelo Sayeret Matkal. Era um judeu de ascendência russa, de pele alva e olhos da cor do gelo.
— Uma versão tua mais jovem — comparara Yaakov. — É bom com uma arma, mas não tem consciência. Praticamente derrubou sozinho a estrutura de comando do Hamas.
As instalações não tinham a grandiosidade do Alexandra, pelo que ninguém teve o privilégio de aposentos individuais. Gabriel e Lavon, veteranos de caças ao homem anteriores, partilharam o espaço na proa. Lavon estava habituado às noites operacionais erráticas de Gabriel e não ficou surpreendido quando acordou de madrugada e viu a cama dele vazia. Desceu da tarimba e subiu ao convés. Gabriel estava de pé na proa, de café na mão, os olhos fitos na mancha de luz indistinta no horizonte longínquo. Lavon regressou à cama e dormiu mais duas horas. Quando voltou à coberta, Gabriel estava na mesma posição, a fitar o mar aberto.
24
AO LARGO DAS BAHAMAS
Os dias tomaram forma rapidamente.
Acordava cedo todas as manhãs e preguiçava na cama enorme, a ouvir o Alexandra a despertar lentamente. Depois, regra geral por volta das sete e meia, telefonava ao camareiro e pedia-lhe o café da manhã e o brioche, que eram trazidos num tabuleiro, sempre acompanhados por uma flor fresca, cinco minutos depois. Se não estivesse a chover, tomava o pequeno-almoço na sombra da coberta privada virada para estibordo. O Alexandra seguia para sudeste, vogando sem pressas com um rumo desconhecido.
Normalmente, Sarah conseguia distinguir à distância as ilhas rasas do arquipélago das Bahamas. A suíte de Zizi ficava no nível acima do dela. Certas manhãs conseguia ouvi-lo ao telefone, a fechar os primeiros negócios do dia. Após o pequeno-almoço, Sarah fazia dois telefonemas para Londres, a partir do sistema de bordo. Primeiro ligava para o apartamento de Chelsea, onde encontrava sempre duas ou três mensagens de voz artificiais deixadas pelo Escritório. Depois telefonava para a galeria e falava com Chiara. O seu inglês suave de pronúncia italiana era como uma corda de salvação. Sarah perguntava sobre negócios pendentes e depois Chiara lia-lhe as mensagens telefônicas. Na conversa aparentemente benigna estava contida informação vital: Sarah dizendo a Chiara que estava bem e que não havia sinais de Ahmed bin Shafiq; Chiara garantindo a Sarah que Gabriel e os outros estavam por perto e que ela não estava sozinha. Desligar o telefone a Chiara era a parte mais difícil do dia de Sarah.
Mas por essa altura eram já dez horas, o que significava que Zizi e Jean-Michel tinham acabado o treino e o ginásio estava disponível para os restantes colaboradores e para os hóspedes. Os outros eram bastante sedentários. A única companhia de Sarah todas as manhãs era Herr Wehrli, que se atormentava na máquina elíptica durante alguns minutos, antes de se retirar para a sauna, onde procedia a uma boa transpiração suíça. Sarah corria trinta minutos na passadeira, após o que remava outros trinta. Pertencera à equipe de Dartmouth e, poucos dias depois, começou a ver a definição nos ombros e nas costas que estivera ausente desde a morte de Ben.
Depois do exercício, Sarah juntava-se às outras mulheres na coberta de proa, onde apanhava um pouco de sol antes do almoço. Nadia e Rahimah mantinham-se distantes, mas as esposas foram-se tornando mais amáveis, especialmente Frau Wehrli e Jihan, a jovem mulher loura de Hassan, o especialista em comunicações de Zizi. Monique, esposa de Jean-Michel, raramente falava com ela. Por duas vezes, Sarah espiou por cima do romance que estava lendo e viu Monique a fitá-la, como se tramasse empurrá-la pela borda quando ninguém estivesse olhando.
O almoço era sempre faustoso e demorado. A seguir, a tripulação do Alexandra parava o barco para o a que Zizi chamava corrida vespertina de jet-ski. Sarah passou os dois primeiros dias em segurança no convés, de onde observou Zizi e seus executivos cortando as ondas. No terceiro dia ele convenceu-a a participar e ensinou-a pessoalmente a pilotar. Sarah afastou-se da popa do Alexandra, e depois desligou o motor e fitou longamente a ínfima mancha branca no horizonte atrás deles. Deveria ter-se afastado demasiado, pois dali a alguns instantes Jean-Michel surgiu a seu lado, fazendo-lhe sinal para voltar ao navio. — O limite são cem metros — disse. — Regras de Zizi.
Este tinha o dia rigorosamente organizado. Um pequeno-almoço leve no quarto. Telefonemas. Exercícios com Jean-Michel, no ginásio. Uma reunião ao fim da manhã com os colaboradores. Almoço. A corrida de motos de água. Outra reunião com os colaboradores, que normalmente se arrastava até o jantar. Depois do jantar, telefonemas até altas horas da noite. No segundo dia, o helicóptero deixou o Alexandra às dez da manhã e regressou uma hora depois, com uma delegação de seis homens. Sarah observou-lhes os rostos à medida que entravam na sala de conferências de Zizi, e concluiu que nenhum deles era Ahmed bin Shafiq. Mais tarde, um dos Abdul mencionou três nomes, que Sarah armazenou na memória, para utilização futura. Nessa tarde, encontrou-se sozinha com Zizi num dos salões e perguntou-lhe se poderiam discutir a oferta de emprego.
— Qual é a pressa, Sarah? Descontraia-se. Divirta-se. Falaremos quando chegar a altura.
— Tenho de voltar a Londres, Zizi. — Para o Julian Isherwood? Como pode voltar depois de tudo isto? — Não posso ficar aqui para sempre.
— É claro que pode.
— Poderia, ao menos, revelar o nosso destino?
— É uma surpresa — disse. — Uma das nossas pequenas tradições. Enquanto capitão honorário, posso escolher o nosso destino. Mantenho-o em segredo dos outros. Amanhã estamos a pensar fazer uma visita a Grand Turk. Se quiser, pode ir a terra fazer algumas compras.
Nesse momento apareceu Hassan, que entregou um telefone a Zizi e lhe murmurou ao ouvido qualquer coisa em árabe que Sarah não percebeu.
— Dê-me licença, Sarah. Tenho de resolver este assunto. — E com estas palavras desapareceu na sala de conferências e fechou a porta.
Sarah acordou na manhã seguinte e sentiu o barco completamente imobilizado. Em vez de ficar na cama, levantou-se de imediato, saiu para a coberta e viu que tinham ancorado ao largo de Cockburn Town, a capital das Ilhas Turcas e Caíques. Tomou o pequeno-almoço no quarto, ligou a Chiara, em Londres, e depois combinou com a tripulação para a levarem à cidade. Às onze e meia dirigiu-se à popa e encontrou Jean-Michel à sua espera, vestido com um pulôver preto e calções brancos.
— Ofereci-me como voluntário para a acompanhar — explicou.
— Não preciso de companhia.
— Ninguém vai a terra sem segurança, especialmente as mulheres. Regras de Zizi.
— A sua esposa também vem?
— Infelizmente, a Monique está indisposta. Ao que parece, o jantar não lhe caiu bem.
Navegaram até o porto em silêncio. Jean-Michel atracou o barco com destreza e depois seguiu-a ao longo das lojas da marginal, enquanto Sarah ia fazendo as suas compras. Numa loja escolheu dois vestidos frescos e um biquíni novo. Numa outra comprou um par de sandálias, um saco de praia e óculos de sol para substituir os que perdera no dia anterior, durante a corrida de motos de água. Depois seguiu até a farmácia, onde comprou champô, loção corporal e uma esponja lufa para remover a pele levantada dos ombros queimados pelo sol. Jean-Michel insistiu em pagar tudo com um dos cartões de crédito de Zizi. De volta ao barco, Rimona passou por eles, oculta atrás de um par de óculos de sol enormes e de um chapéu de palha de abas largas. Sentado num bar minúsculo sobranceiro às docas, reparou num homem de aspecto familiar, de chapéu branco e óculos de sol, que espreitava com um ar lúgubre a bebida decorada com um pequeno guarda-sol festivo. Só depois de se encontrar novamente a bordo do Alexandra percebeu que se tratava de Gabriel.
Quando, no dia seguinte, telefonou para Londres, Julian falou brevemente e perguntou-lhe quando planeava voltar. Dois dias mais tarde, voltou a fazê-lo, mas dessa vez o seu tom continha uma certa nota de agitação. Durante a tarde, Zizi telefonou para o quarto de Sarah.
— Importa-se de vir ao meu gabinete? Acho que chegou a altura de falarmos. — Desligou sem esperar por uma resposta.
Sarah vestiu-se com tanto profissionalismo quanto possível: calça branca curta, blusa amarela cobrindo os braços e sandálias lisas. Pensou em aplicar alguma maquilagem, mas decidiu que não melhoraria o que uma semana de sol no Caribe já conseguira. Dez minutos depois de ter sido chamada, saiu dos aposentos e subiu até o gabinete de Zizi. Este estava sentado à mesa de conferências com Daoud Hamza, Abdul Abdul e Herr Wehrli. Quando Sarah entrou, os funcionários levantaram-se em uníssono, juntaram os papéis e saíram sem uma palavra. Zizi disse a Sarah que devia sentar-se. No extremo oposto da sala, a Al-Jazeera tremeluzia em silêncio num grande televisor de ecrã plano: tropas israelenses destruíam a casa de um homem-bomba suicida do Hamas, enquanto o pai e a mãe carpiam para as câmeras. O olhar de Zizi dirigiu-se à tela por um instante, antes de voltar a Sarah.
— Investi dezenas de milhões de dólares nos territórios palestinos, e ofereci-lhes doações através de obras de caridade no valor de outros tantos milhões. E agora os israelenses destroem tudo, enquanto o mundo fica vendo, sem fazer nada.
E quanto à condenação mundial pelo que aconteceu ontem, pensou Sarah, quando dois corpos ficaram espalhados por uma rua de Tel Aviv? Olhou para as mãos, para a pulseira de ouro de Zizi e para o relógio Harry Winston de Zizi, e não disse nada.
— Mas falemos de coisas mais agradáveis — sugeriu Zizi.
— Por favor. — Ergueu o olhar e sorriu. — Quer fazer uma oferta extravagante para trabalhar com você.
— Quero?
— Sim, quer.
Zizi devolveu-lhe o sorriso.
— Temos uma vaga no nosso departamento de arte. — O sorriso desvaneceu-se. — Uma vaga inesperada, mas não deixa de ser uma vaga. Gostaria que a preenchesse.
— O seu departamento de arte?
— Queira me perdoar — disse. — É como nos referimos às várias divisões da operação. Hassan tem o departamento de comunicações. Mansur, viagens. Herr Wehrli, o setor bancário. Mr. Bin Talai pertence à...
— Segurança.
— Exatamente — confirmou Zizi.
— Quem é o chefe do seu departamento de arte?
— No momento, sou eu. Mas gostaria que assumisse esse cargo.
— E Andrew Malone?
— Andrew Malone já não trabalha comigo. — Zizi revirou as contas de oração durante alguns momentos. Os olhos voltaram à tela da televisão e aí permaneceram enquanto falou. — O acordo que estabeleci com o Andrew implicava exclusividade. Pagava-lhe uma avença bastante generosa. Em troca, devia-me conselhos sem conflitos de interesse de sua parte. Afinal, o Andrew traiu-me repetidas vezes. Ao longo dos últimos anos, recebeu dinheiro de mim e dos indivíduos com quem fiz negócio, numa clara violação do nosso acordo. Entre os negociantes e colecionadores que fizeram pagamentos ao Andrew, encontra-se Julian Isherwood. — Fitou-a. — Teve conhecimento de algum pagamento em dinheiro que Julian Isherwood tenha feito a Andrew Malone?
— Não — respondeu Sarah. — Se isso aconteceu, sinto muito.
— Acredito em você — replicou Zizi. — Andrew terá obrigado Julian a guardar segredo. Ele tinha o cuidado de apagar as pistas das traições que me fazia. Infelizmente, não as conseguiu eliminar nas contas bancárias. Foi dessa forma que o descobrimos.
Voltou a olhar para o televisor e franziu o sobrolho.
— O cargo que lhe tenciono propor é bastante mais abrangente do que o do Andrew. Não só irá auxiliar-me na compra de trabalhos, como também será responsável pela conservação da coleção. Pretendo começar a emprestar algumas peças a museus europeus e americanos, como forma de melhorar as relações culturais entre o meu país e o Ocidente. Enquanto antiga conservadora, é mais do que qualificada para gerir essas transações. — Observou-a por um momento. — Estaria interessada no cargo?
— Sim, mas...
— ...mas teria de discutir o salário e as regalias antes de me dar uma resposta, algo que entendo perfeitamente. Se não se importa que lhe pergunte, quanto Julian paga a você neste momento?
— Na verdade eu me importo.
Zizi suspirou profundamente e deu uma volta nas contas.
— Pretende dificultar as negociações o mais que conseguir?
— Evito negociar contra mim mesma.
— Estou disposto a pagar-lhe um salário de quinhentos mil dólares por ano, mais alojamento, mais despesas de representação ilimitadas. O cargo exige muitas viagens... e, é claro, vai passar muito tempo comigo e com minha família. Foi por esse motivo que a convidei para este cruzeiro. Queria que nos ficasse a conhecer. Espero que se tenha divertido e apreciado nossa hospitalidade.
— Muito — garantiu Sarah.
Zizi ergueu as mãos.
— E então?
— Quero um contrato com garantia de três anos.
— Fechado.
— Quinhentos no primeiro ano, seiscentos no segundo e setecentos e cinquenta no terceiro.
— Fechado.
— E depois, temos ainda um bônus de assinatura.
— Diga a sua proposta.
— Duzentos e cinquenta mil.
— Estava disposto a dar quinhentos mil. Negócio fechado?
— Acho que sim. — O sorriso depressa se desvaneceu. — Não estou com muita vontade de contar a Julian.
— São apenas negócios, Sarah. Julian vai entender.
— Vai ficar muito magoado.
— Talvez seja mais fácil se eu falar com ele.
— Não — recusou-se Sarah, abanando a cabeça. — Eu falo. Devo-lhe isso. — É uma mulher íntegra. — Levantou-se de repente. — Vou instruir os advogados para que redijam o contrato. Herr Wehrli vai passar-lhe um cheque no valor do bónus de assinatura, e vai dar-lhe um cartão de crédito da AAB para as suas despesas. — Estendeu a mão. — Bem-vinda à família, Sarah.
A jovem apertou-a e depois encaminhou-se para a porta. — Sarah?
Ela virou-se.
— Por favor, não cometa o mesmo erro que o Andrew. Como pôde ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito zangado quando me traem.
Ao ter conhecimento das notícias, Julian Isherwood ficou arrasado, como seria de esperar. Invetivou Zizi, e depois Sarah.
— Nem precisas de vir à galeria buscar as tuas coisas! — bradou.
— Não és bem-vinda... nem tu, nem o teu maldito xeque árabe! — Depois de bater com o fone, foi para o Greens, onde encontrou
Oliver Dimbleby e Jeremy Crabbe, juntos como que em conspiração ao fundo do bar.
— Que cara é essa, Julian? — perguntou Dimbleby, com um pouco de satisfação a mais.
— Perdi-a.
— Quem?
— Sarah — explicou Isherwood. — Trocou-me por Zizi al-Bakari. — Não me diga que ela ficou com o trabalho de Andrew Malone. Isherwood anuiu com solenidade.
— Diz-lhe que não meta a mão no mealheiro de Zizi — disse Crabbe. — Caso contrário, ele corta-a. No país dele é legal, sabias?
— Como a conseguiu? — questionou Dimbleby.
— com dinheiro, é claro. É assim que eles conseguem tudo.
— Grande verdade — aquiesceu Dimbleby. — Pelo menos, ainda nos resta a bela Elena.
Ainda, pensou Isherwood. Mas, por quanto tempo?
A seis mil e quinhentos quilômetros de distância, a bordo do Sun Dancer, Gabriel partilhava o estado de espírito sombrio de Isherwood, embora por motivos bem diferentes. Quando recebeu a informação de que Sarah fora contratada, retirou-se para o seu posto na proa e recusou-se a aceitar os parabéns oferecidos pelo resto da equipe.
— Qual é o problema dele? — perguntou Yaakov a Lavon. — Ele conseguiu! Infiltrou uma agente na jihad Limitada!
— Sim — concordou Lavon. — E um dia vai ter de retirá-la.
25
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
O destino secreto de Zizi era a ilha francesa de Saint-Barthélemy. Chegaram na manhã seguinte e ancoraram ao largo de Gustavia, o porto pitoresco e a capital administrativa da ilha. Sarah terminava o exercício quando Nadia entrou no ginásio, vestindo um biquini branco que a favorecia e uma saída-de-praia transparente.
— Ainda não estás pronta? — questionou.
— Estás a falar de quê?
— Vou levar você à praia de Saline... a melhor praia do mundo. — Ao ver a hesitação de Sarah, Nadia tocou-a no braço de modo afetuoso.
— Olha, Sarah, sei que não tenho sido muito simpática desde que chegou. Mas como vamos passar muito tempo juntas, agora que trabalha para o meu pai, mais vale sermos amigas.
Sarah fingiu pensar. — Preciso de dez minutos.
— Cinco. — Nadia sorriu calorosamente. — O que esperava? Sou filha do meu pai.
Sarah foi para a sua cabine, tomou uma ducha rápida, pôs maiô e vestido leve. Colocou algumas coisas na bolsa de praia nova e foi para a popa. Nadia já estava a bordo da lancha, com Rafiq al-Kamal e Jafar Sharuki. Jean-Michel estava ao leme, verificando o painel de instrumentos.
— Somos só nós? — perguntou Sarah ao sentar-se ao lado de Nadia no compartimento frontal.
Rahimah talvez apareça mais tarde — respondeu Nadia. — Mas, para dizer a verdade, espero que não venha. Preciso de umas férias dela.
Jean-Michel afastou o barco da popa do Alexandra, e depois aumentou a potência e partiu. Vogaram ao longo do sul da ilha, pelos arredores de Gustavia e finalmente contornaram o Grande Pointe. Dois minutos mais tarde entraram numa pequena baía, guardada de ambos os lados por excrescências de pedra vulcânica de um tom cinzento acastanhado. Entre as rochas, e por baixo de um céu de um azul luminoso e intenso, ficava uma praia com a forma de um crescente.
— Bem-vinda a Saline — disse Nadia.
Jean-Michel guiou cuidadosamente o barco por entre os pequenos recifes e parou a escassos metros da costa. Rafiq e Sharuki saltaram para a água rasa e dirigiram-se à proa. Nadia levantou-se e desceu para os braços poderosos de Rafiq.
— É uma das grandes vantagens de se ter guarda-costas — comentou. — Não precisamos de nos molhar quando vamos para a praia.
Sarah instalou-se com relutância nos braços de Sharuki. Instantes depois, foi colocada com gentileza na areia dura à beira da água. Quando Jean-Michel deu a volta com a lancha e iniciou o regresso ao Alexandra, Nadia aproximou-se da linha de maré e procurou o lugar ideal para ficarem.
— Ali — disse, ao que deu o braço a Sarah e a levou para o extremo distante da praia, onde não se encontrava mais ninguém. Rafiq e Sharuki seguiram-nas com as cadeiras e os sacos. A cinquenta metros do banhista mais próximo, Nadia deteve-se e murmurou alguma coisa em árabe a Rafiq, cuja resposta foi estender um par de toalhas de praia e abrir as cadeiras.
Os dois guarda-costas montaram guarda a cerca de vinte metros de distância. Nadia despiu a saída-de-praia e sentou-se na toalha. O cabelo escuro e comprido estava penteado para trás e cintilava com gel. Tinha postos óculos de sol de lentes prateadas, através das quais se podia ver os olhos grandes e cristalinos. Lançou um olhar aos guarda-costas e tirou a parte de cima do biquini. Tinha seios grandes e de contornos muito bonitos. Após duas semanas ao sol, a pele estava profundamente bronzeada. Sarah acomodou-se numa das cadeiras e enterrou Os pés na areia. — Gostas de os ter? — perguntou Sarah.
— Os guarda-costas? — Nadia encolheu os ombros. — Quando se é filha de Zizi al-Bakari, tornam-se uma realidade. Sabes quanto valho para um raptor, ou para um terrorista?
— Biliões.
— Exatamente. — Levou a mão ao saco de praia e tirou um maço de Virginia Slims. Acendeu um e ofereceu outro a Sarah, que abanou a cabeça. — Não fumo a bordo do Alexandra por deferência para com os desejos do meu pai, mas quando não estou perto dele... — Sua voz fraquejou. — Não vai contar, certo?
— Juro. — Sarah inclinou a cabeça na direção dos guarda-costas.
— E eles?
— Não se atreveriam a contar ao meu pai.
Nadia voltou a guardar os cigarros no saco e exalou o fumo para o céu limpo.
Sarah fechou os olhos e virou a cabeça para o sol.
— Por acaso não tem aí uma garrafa de rosé gelado, tem?
— Quem me dera — confessou Nadia. — Jean-Michel sempre tem algum vinho no barco. Se pedir com jeitinho, imagino que ele consiga uma garrafa ou duas.
— Receio que Jean-Michel queira me dar mais alguma coisa, além do vinho.
— Sim, ele está muito atraído por você. — Nadia subiu os óculos de sol para a testa e fechou os olhos. — Há um restaurante do outro lado das dunas. Se quiser, mais tarde podemos tomar uma bebida no bar.
— Não tinha notado que você bebia.
— Não bebo muito, mas adoro um daiquiri de banana em dias como o de hoje.
— Pensei que sua religião proibisse.
Nadia acenou com a mão, num gesto que minimizava o assunto.
— Não é religiosa? — perguntou Sarah.
— Adoro minha fé, mas também sou uma mulher árabe moderna. Temos duas caras. Quando estamos em casa, somos obrigadas a ocultá-la atrás de um véu preto. Mas no Ocidente...
— Pode beber um daiquiri e fazer topless na praia.
— Exatamente.
— Seu pai sabe?
Nadia anuiu.
— Ele quer que eu seja uma verdadeira mulher ocidental, mas que permaneça fiel aos dogmas do islamismo. Disse que isso não era possível, pelo menos à risca, e ele respeita isso. Já não sou uma criança, Sarah. Tenho vinte e sete anos.
Deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão.
— E você, que idade tem?
— Trinta e um — respondeu Sarah.
— Já foi casada?
Sarah abanou a cabeça. Continuava voltada para o sol e sentiu a pele a queimar.
Nadia sabe, pensou. Todos eles sabem.
— É muito bonita — elogiou Nadia. — Por que não se casou ainda?
Por causa de um telefonema que recebi às oito e cinquenta e três da manhã do dia 11 de setembro de 2001...
— As desculpas habituais — replicou. — Primeiro o curso, depois o doutorado, por fim o trabalho. Acho que nunca tive tempo para amar.
— Não teve tempo para amar? Que triste.
— É uma doença americana.
Nadia baixou os óculos de sol e deitou-se.
— O sol está forte — avisou Sarah. — Devia se cobrir.
— Nunca me queimo. É uma das vantagens de ser árabe. — Estendeu a mão e enterrou a ponta do cigarro na areia. — Para você deve ser estranho.
— O quê?
— Uma garota tipicamente americana trabalhar para Zizi al-Bakari.
— Lamento desiludi-la, Nadia, mas não sou, de todo, uma garota americana normal. Passei a maior parte da infância na Europa. Quando voltei à América para fazer o curso, senti-me profundamente deslocada. Precisei de muito tempo para me enquadrar.
— Não se incomoda de trabalhar para um saudita?
— Deveria me incomodar?
— Muitos americanos nos culpam pelos atentados do Onze de Setembro.
— Por acaso não sou um deles — contrapôs Sarah, ao que recitou as palavras que Gabriel lhe transmitira em Surrey. — Osama escolheu sauditas para os atentados para erguer um muro entre nossos países. Declarou guerra à Casa de Saud, bem como à América. Somos aliados na guerra contra a Al-Qaeda, não somos adversários.
— O serviço secreto saudita avisou meu pai vezes sem conta de que poderia ser alvo dos terroristas, por sua ligação com a Família Real. Por isso temos uma segurança tão apertada. — Acenou na direção dos guarda-costas. — Por isso somos obrigadas a trazer gorilas para a praia, em vez de dois rapazes atraentes.
Virou-se de barriga para baixo, expondo as costas ao sol quente. Sarah fechou os olhos e mergulhou num sono repleto de sonhos. Acordou uma hora mais tarde, e reparou que o seu canto vazio da praia estava agora cheio de gente. Rafiq e Sharuki tinham-se sentado atrás delas. Nadia parecia dormir. — Sinto calor — murmurou aos guarda-costas. — Vou nadar.
Quando Rafiq fez menção de se levantar, Sarah disse que devia ficar. — Não há problema — garantiu.
Entrou lentamente na água, até que as ondas começaram a bater em sua cintura. Depois mergulhou e afastou-se da ondulação mais forte. Quando voltou à superfície, Yaakov flutuava a seu lado.
— Quanto tempo estão pensando em ficar em Saint Bart?
— Não sei. Nunca me dizem nada.
— Você está bem?
— Que eu saiba.
— Viu alguém que possa ser Bin Shafiq?
Sarah abanou a cabeça.
— Estamos com você, Sarah. Todos nós. Agora afaste-se e não olhe para trás. Se perguntarem quem eu era, diga que estava te paquerando.
Com estas palavras, mergulhou e desapareceu. Sarah voltou à praia e deitou-se na toalha ao lado de Nadia.
— Quem era aquele homem que falava com você? — perguntou.
Sarah sentiu o coração dar um salto, mas conseguiu responder calmamente.
— Não sei, mas estava flertando comigo na frente da namorada.
— O que se pode esperar? É um judeu.
— Como você sabe?
— Acredite, eu sei. Nunca fale com estranhos, Sarah. Especialmente judeus.
Sarah estava se vestindo para jantar quando ouviu o gemido do motor do Sikorsky. Apertou o colar de pérolas à volta do pescoço e correu para o convés de ré, onde encontrou Zizi sentado num divã, apreciando o ar fresco da noite, vestido com jeans desbotados e camiseta branca.
— Vamos jantar na ilha — disse. — Vou com Nadia no último helicóptero e Sarah vem conosco.
Subiram para o Sikorsky vinte minutos depois. Enquanto sobrevoavam o porto, as luzes de Gustavia recortavam-se na escuridão crescente. Passaram pelo maciço de colinas íngremes e fizeram-se à pista aérea, onde os outros aguardavam à volta de um trem de Toyotas Land Cruisers pretos e brilhantes. Com Zizi seguro no seu lugar, o trem dirigiu-se à saída do aeroporto. No lado oposto da estrada, no estacionamento do principal centro comercial da ilha, Sarah avistou Yossi e Rimona numa scooter. Inclinou-se para a frente e olhou na direção de Zizi, que estava sentado ao lado da filha. — Onde vamos?
— Requisitamos o restaurante de Gustavia onde vamos jantar. Mas primeiro vamos tomar uma bebida a uma quinta no outro lado da ilha.
— Também requisitaram a quinta? Zizi riu-se.
— Na verdade, foi alugada por um colaborador nosso.
Um celular começou a tocar. Foi atendido ao primeiro toque por Hassan, que o entregou a Zizi, após ter apurado de quem se tratava. Sarah olhou pela janela. Percorriam agora a Baie de Saint-Jean. Lançou uma olhadela para trás e viu os faróis do último Land Cruiser bem perto deles. Na sua mente formou-se uma imagem: Yossi ao volante da scooter, com Rimona agarrada à cintura. Lançou a cena para um triturador imaginário e fê-la desaparecer.
A caravana reduziu de repente quando entraram na pequena vila balnear de Saint-Jean. Havia lojas e restaurantes de ambos os lados da rua estreita e pedestres bronzeados ziguezagueavam por entre o tráfego preguiçoso. Jean-Michel praguejou em voz baixa quando um casal de motocicleta se espremeu por uma abertura estreita no engarrafamento.
Do outro lado da aldeia, o trânsito reduziu-se subitamente e a estrada acompanhou as falésias ao longo da baía. Contornaram uma curva apertada e, por um momento, o mar estendeu-se a seus pés, da cor do mercúrio à luz da Lua acabada de nascer. A vila seguinte foi Lorient, menos deslumbrante do que Saint-Jean e bastante menos cheia: um centro comercial ordenado, uma bomba de gasolina fechada, um salão de beleza que servia as mulheres locais, uma banca de hambúrgueres que servia rapazes em tronco nu que guiavam motocicletas. Sentado sozinho a uma mesa, vestido com calções de caqui e sandálias, estava Gabriel.
Zizi fechou o celular com um estalido sonoro e devolveu-o a Hassan por cima do ombro, sem olhar para ele. Nadia segurava uma madeixa do cabelo e analisava as pontas em busca de estragos.
— Há um clube noturno decente em Gustavia — comentou, distraidamente. — Talvez possamos ir dançar, depois de jantar. — Sarah não respondeu e voltou a olhar pelo vidro. Passaram por um cemitério e deram início à subida de uma colina íngreme. Jean-Michel engrenou uma mudança mais baixa e acelerou a fundo. A meio caminho da subida, a estrada guinava marcadamente para a esquerda. Quando o Land Cruiser mudou de direção, Sarah foi lançada contra o corpo de Nadia. A pele nua parecia-lhe febril, devido ao sol.
Momentos depois, encaminhavam-se por um promontório estreito e batido pelo vento. Perto da extremidade do promontório, a caravana reduziu de repente e atravessou um portão de segurança, entrando para a área de estacionamento de uma grande mansão branca, resplandecente de luz. Sarah olhou para trás quando o portão de ferro se começou a fechar automaticamente. Uma scooter, conduzida por um homem de calções de caqui e sandálias, passou à frente do portão e desapareceu. A porta do Land Cruiser abriu-se e Sarah desceu do carro.
Estava de pé à entrada, ao lado de uma mulher loura no início da meia-idade, e cumprimentou cada elemento do vasto séquito de Zizi à medida que foram subindo os degraus de laje. Era alto, com os ombros largos e as ancas estreitas de um nadador. O cabelo era escuro e de caracóis cerrados. Vestia camisa Lacoste azul clara e calça branca. As mangas da camisa iam até os pulsos e tinha a mão direita enfiada no bolso. Zizi pegou o braço de Sarah e apresentou-os.
— Esta é Sarah Bancroft. A nova chefe do meu departamento de arte. Sarah, apresento-lhe Alain al-Nasser. Alain gerencia nossa empresa de investimentos em Montreal.
— É um prazer conhecê-la, Sarah.
Inglês fluente, com um pouco de sotaque. A mão enfiada com firmeza no bolso.
Acenou com a cabeça na direção da mulher.
— Minha esposa, Sophie.
— Bonsoir, Sarah.
A mulher cumprimentou-a. Sarah apertou-lhe a mão e depois estendeu a sua a Alain al-Nasser, que desviou rapidamente o olhar e lançou os braços com espalhafato à volta de Wazir bin Talai. Sarah entrou na mansão. Era grande e arejada, com um dos lados aberto para um grande terraço exterior. Havia uma piscina turquesa e, mais além da piscina, apenas o mar escuro. Uma mesa fora posta com bebidas e aperitivos. Sarah procurou em vão uma garrafa de vinho e acabou por se contentar com suco de papaia.
Levou a bebida para o terraço e sentou-se. As lamparinas a gás agitavam-se com a brisa noturna. O mesmo acontecia com o cabelo de Sarah. Prendeu as madeixas rebeldes atrás das orelhas e olhou para a mansão. Alain al-Nasser deixara Sophie com Jean-Michel e confabulava agora com Zizi, Daoud Hamza e Bin Talai. Sarah bebeu um gole de sumo. A boca seca parecia uma lixa. O coração batia desenfreado em seu peito.
— Acha-o atraente?
Ergueu o olhar, sobressaltada, e viu Nadia crescendo acima dela.
— Quem?
— Alain.
— Do que está falando?
— Vi como olhava para ele, Sarah.
Pense em alguma coisa, disse a si mesma.
— Estava olhando para Jean-Michel.
— Não me diga que está realmente pensando nisso.
— Nunca é uma boa ideia misturar romance e trabalho.
— Mas é muito bonito.
— Muito — concordou Sarah. — Mas é encrenca.
— São todos assim.
— Conhece bem o Alain?
— Não muito — respondeu. — Trabalha para o meu pai há uns três anos.
— Imagino que não seja saudita.
— Não temos nomes como Alain. É libanês. Foi educado na França, creio.
— E agora mora em Montreal?
— Acho que sim. — A expressão de Nadia tornou-se sombria. — É melhor não fazer muitas perguntas sobre os negócios do meu pai... ou sobre as pessoas que trabalham para ele. Meu pai não gosta.
Nadia afastou-se e sentou-se ao lado de Rahimah. Sarah olhou para o mar, para as luzes de uma embarcação que passava ao largo.
Sabemos que está escondido, algures no seio do império de Zizi. Poderá surgir como banqueiro de investimentos, ou como gestor de uma carteira de ações. Talvez apareça como responsável imobiliário, ou como executivo farmacêutico...
Ou como capitalista de risco chamado Alain al-Nasser. Alain, que é libanês, mas que foi criado na França, creio. Alain, com uma cara redonda que não bate certo com o corpo, mas que faz lembrar um rosto que vira numa casa de campo de Surrey que não existe. Alain, que naquele momento era levado para uma sala das traseiras, onde teria uma reunião privada com o presidente e CEO da Jihad Limitada. Alain, que não apertara a mão de Sarah. Teria sido por recear ser contaminado 252 por uma mulher infiel? Ou por ter a mão ligeiramente definhada, em consequência de um ferimento causado por estilhaços no Afeganistão?
— Numa situação destas, Sarah, o mais simples é sempre melhor. Vamos fazê-lo à moda antiga. Códigos telefônicos. Sinais físicos de reconhecimento. — Sinais físicos de reconhecimento?
— Relógio no pulso esquerdo, relógio no direito. Colarinho levantado, colarinho para baixo. Mala à esquerda, mala à direita.
— jornal debaixo do braço?
— Nem imagina. Pessoalmente, sempre gostei do cabelo.
— O cabelo?
— Como gosta de usar o cabelo, Sarah?
— Em geral, solto.
— Tem maçãs do rosto muito bonitas. Um pescoço elegante. Devia pensar em apanhar o cabelo em cima, de vez em quando. Como a Marguerite.
— Muito antiquado.
— Há coisas que nunca saem de moda. Apanhe o cabelo.
Procurou na mala a mola que Chiara lhe dera no último dia na galeria e fez o que Gabriel lhe pedia.
— Fica muito bonita de cabelo apanhado. Este vai ser o nosso sinal, caso veja um homem que acredite ser Bin Shafiq.
— E o que acontece na altura?
— Deixe isso conosco, Sarah.
26
GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nessa noite, pela primeira vez desde que subira a bordo do Alexandra, Sarah não dormiu. Ficou deitada na grande cama, forçando-se a permanecer imóvel, para que Bin Talai, caso a observasse através de câmeras ocultas, não desconfiasse de um estado de espírito agitado. Pouco antes das seis da manhã, o céu começou a clarear e uma mancha vermelha surgiu no horizonte. Aguardou mais meia hora antes de pedir o pequeno-almoço. Quando chegou, a cabeça latejava.
Saiu para a coberta e chegou-se à amurada, o olhar fito na luz que ia surgindo no porto, os pensamentos em Alain al-Nasser de Montreal. Tinham permanecido na mansão pouco mais de uma hora, após o que se tinham dirigido a Gustavia para jantar. Zizi ocupara um restaurante chamado La Vela, no extremo do ancoradouro. Alain al-Nasser não fora com eles. Na verdade, o seu nome não fora mencionado durante o jantar, pelo menos que Sarah o tivesse ouvido. Um homem que poderia ter sido Eli Lavon passou pelo restaurante durante a sobremesa. Sarah desviara a atenção para limpar os lábios ao guardanapo e, quando voltara a olhar, o homem desaparecera.
Sentiu uma necessidade súbita de movimento físico e decidiu aproveitar o ginásio antes que fosse ocupado por Zizi. Vestiu calções elásticos, um top e as sapatilhas de corrida. Depois foi até o espelho da casa de banho e apanhou o cabelo no topo da cabeça. Quando chegou, o ginásio estava em silêncio. Julgara vir encontrá-lo vazio, mas, em vez disso, viu Jean-Michel debruçado por cima de um aparelho, a trabalhar os bíceps. Cumprimentou-o com frieza e dedicou-se à passadeira. 254 vou à ilha fazer uma corrida a sério. Quer acompanhar-me?
— Então e o treino de Zizi?
— Diz que as costas doem.
— Parece que não acredita nele.
— Sempre que quer um dia de folga, as costas doem. — Terminou a série de exercícios e limpou os braços reluzentes com uma toalha. — Vamos embora, antes que o trânsito fique muito intenso.
Entraram numa lancha e partiram na direção do porto interior. Ainda não havia vento e as águas permaneciam calmas. Jean-Michel atracou numa doca pública, perto de um café vazio que começava a servir pequenos-almoços. Fizeram o aquecimento no molhe e depois cruzaram as ruas calmas da vila antiga. Jean-Michel deslocava-se sem esforço ao lado dela. Quando deram início à ascensão sinuosa da colina atrás do porto, Sarah ficou alguns passos para trás. Foi ultrapassada por uma scooter, dirigida por uma jovem de capacete cujo jeans delineava as coxas bem torneadas. Esforçou-se mais um pouco e reduziu o espaço entre eles. No topo da colina, Sarah deteve-se para recuperar o fôlego, enquanto Jean-Michel mantinha o ritmo sem sair do lugar.
— O que há?
— Ganhei quase cinco quilos nesta viagem.
— Está perto do fim.
— Vamos ficar mais quanto tempo?
— Mais dois dias em Saint-Barts. — Curvou os lábios, numa expressão tipicamente galesa. — Talvez três. Zizi está ficando ansioso para partir. Sinto.
Nesse momento, o primeiro voo do dia deu rasante nos telhados e mergulhou no lado oposto da colina, em direção à pista lá embaixo. Sem aviso, Jean-Michel lançou na estrada atrás do aparelho. Passaram pelo aeroporto e pelo mais importante centro comercial da ilha, depois contornaram uma curva na estrada e começaram a descer para a aldeia de Saint-Jean. Surgiram os primeiros carros e por duas vezes foram obrigados a saltar para a beira arenosa da estrada, a fim de evitar caminhões que se aproximavam. Jean-Michel levou-a por uma abertura no muro de pedra que acompanhava a estrada e desceram um caminho cheio de areia até a praia.
— É melhor corrermos aqui — disse. — Vou fazer umas corridas rápidas. Acha que consegue afastar-se de problemas?
— Por que acha que não vou conseguir acompanhá-lo?
Jean-Michel aumentou o ritmo e Sarah debateu-se para o acompanhar.
— A corrida está prestes a começar — disse. — Está pronta?
— Pensei que isto fosse a corrida.
Jean-Michel afastou-se rapidamente. Sarah, exausta pela noite em claro, reduziu o passo até começar a andar, apreciando o fato de, pela primeira vez desde que entrara para o mundo de Zizi, estar sozinha. Não durou muito. Dois minutos depois, Jean-Michel voltava, acelerado, para perto de Sarah, os braços como êmbolos. Sarah virou-se e recomeçou a correr. Jean-Michel ultrapassou-a e reduziu o ritmo.
— Estou com fome — disse. — Que tal o desjejum?
— Primeiro acabamos a corrida. Podemos comer alguma coisa naquele café ao lado do barco.
Precisaram de vinte minutos para cobrir a distância de regresso ao porto. Quando chegaram, o café começava a encher-se, mas Jean-Michel encontrou uma mesa vazia à sombra e sentou-se. Sarah deu uma olhada no cardápio e dirigiu a atenção para a loja de roupas masculinas na frente do café. A vitrine estava repleta de dispendiosas camisas francesas de algodão. Sarah fechou o menu e olhou para Jean-Michel.
— Devia comprar um presente de agradecimento a Zizi.
— A última coisa de que Zizi precisa é de um presente. Ele é literalmente o homem que tem tudo.
— Devia dar alguma coisa. Foi tão generoso comigo.
— Acredito que tenha sido.
Tocou o braço de Jean-Michel e apontou para a loja.
— A última coisa de que Zizi precisa é de outra camisa — Comentou.
— Mas são muito bonitas.
Jean-Michel aquiesceu.
— São francesas — disse. — Ainda sabemos fazer coisas boas,
— Dê-me seu cartão de crédito.
— É um cartão da AAB.
— Eu o reembolso.
Retirou um cartão do bolso e entregou-o.
— Não se preocupe com isso — garantiu. — Acredite, Sarah, não vai ser a primeira pessoa a comprar um presente para Zizi com o dinheiro dele.
— Qual o tamanho dele?
— Colarinho quarenta e um, oitenta e dois de manga.
— Impressionante.
— Sou o personal trainer dele.
Disse a Jean-Michel o que deveria pedir para o café — tartin, ovos mexidos e café com leite — e foi à loja. Perdeu um momento olhando as camisas na vitrine e depois cruzou a entrada. Uma jovem loura e atraente cumprimentou-a em francês. Sarah escolheu duas camisas, uma azul-escuro e outra em amarelo-claro, e disse as medidas de Zizi. A mulher desapareceu numa sala dos fundos e regressou momentos depois com as camisas.
— Tem uma caixa de presente?
— É claro, Madame.
Retirou uma caixa de sob o balcão, embrulhou com cuidado as camisas em papel e colocou-as na caixa.
— Teria um cartão? — perguntou Sarah. — Qualquer coisa com envelope?
Mais uma vez, a mulher levou a mão à parte de baixo do balcão. Colocou o cartão à frente de Sarah e entregou-lhe uma caneta.
— Qual é a forma de pagamento, Madame?
Sarah apresentou o cartão de crédito. Enquanto a vendedora registrava a compra, Sarah inclinou-se sobre o cartão e escreveu: Alain al-Nasser, Montreal. Depois pôs o cartão no envelope, lambeu a faixa adesiva e fechou-o. A vendedora colocou o recibo do cartão de crédito à frente de Sarah. Assinou-o e devolveu a caneta à mulher, com o envelope selado.
— Não entendo, Madame.
— Um amigo meu vai passar por aqui mais tarde, para saber se me esqueci de alguma coisa — disse Sarah. — Por favor, entregue este envelope ao meu amigo. Se o fizer, será recompensada generosamente. A discrição é importante. Entende, Madame?
— É claro. — Ofereceu um sorriso malicioso a Sarah, e olhou para Jean-Michel sentado no café. — Seu segredo está em segurança comigo.
A mulher colocou a caixa das camisas dentro de um saco de papel, que entregou a Sarah. Esta piscou-lhe o olho, ao que saiu e regressou ao café. O pequeno-almoço esperava por ela quando se sentou.
— Algum problema? — perguntou Jean-Michel.
Sarah abanou a cabeça e devolveu-lhe o cartão de crédito.
— Não — garantiu. — Não houve problema nenhum.
Trinta minutos depois, Sarah e Jean-Michel voltaram à lancha e voltaram ao Alexandra. Gabriel esperou outros quinze minutos antes de entrar na loja de roupa.
Aceitou o cartão da vendedora e deu-lhe cem euros pelo trabalho. Dali a cinco minutos, estava sentado ao leme de um barco de borracha, saindo do porto interior em direção ao ancoradouro.
O Alexandra estava mesmo à sua frente, de longe a maior embarcação privada ali ancorada, perdendo em tamanho apenas para o paquete que chegara durante a noite. Gabriel virou alguns graus para bombordo e dirigiu-se ao Sun Dancer, fundeado a várias centenas de metros, perto das rochas gémeas que guardavam a entrada do porto. Prendeu
o barco à popa e entrou para o salão principal, que fora convertido em centro móvel de comando e de operações. Havia um telefone via satélite seguro e um computador ligado ao Boulevard King Saul. Duas dúzias de celulares e vários rádios de mão encontravam-se alinhados nos respetivos carregadores, e uma câmera de vídeo com uma teleobjetiva estava apontada ao Alexandra.
Gabriel parou em frente ao monitor e observou Sarah a sair para a coberta privada dos seus aposentos. Depois olhou para Yaakov, que estava ao telefone com Tel Aviv. Quando desligou, Gabriel mostrou-lhe o cartão. Alain al-Nasser — Montreal.
— Bonita menina — disse Yaakov. — Senta-te, Gabriel. O Boulevard King Saul teve uma manhã ocupada.
Gabriel serviu-se de café de um termo e sentou-se.
— Esta manhã a técnica acedeu ao sistema de reservas da imobiliária que gere a mansão — explicou Yaakov. — A mansão onde a Sarah esteve ontem à noite foi alugada por uma empresa chamada Meridian Construction of Montreal.
A Meridian Construction é totalmente controlada pela AAB Holdings — adiantou Lavon.
— A reserva dizia quem lá ia ficar? — perguntou Gabriel. Yaakov abanou a cabeça. — A reserva foi tratada por uma mulher chamada Katrine Devereaux, na sede da Meridian. Pagou tudo antecipadamente e disse à imobiliária que tivesse a casa aberta e pronta para a sua chegada.
— E quando foi isso?
— Segundo os registros, há três dias.
— Quanto mais tempo vai ficar?
— A reserva foi feita para mais quatro noites.
— E quanto ao carro?
— Há um Cabriolei estacionado na casa. O autocolante na traseira diz Island Rental Cars. Não há sistema informático de reserva. É tudo registrado em papel.
Se quisermos os pormenores, temos de lá entrar à maneira antiga.
Gabriel olhou para Mordecai, um homem de formação neviot.
— O gabinete fica no aeroporto — disse Mordecai. — Não passa de uma cabine com uma grade de alumínio por cima da vitrine e uma porta para acesso dos funcionários. Podíamos entrar numa questão de segundos. O problema o aeroporto é vigiado à noite. Poderíamos deitar a operação a perder só para descobrirmos o nome e o número do cartão de crédito que utilizou para alugar o carro.
— Muito arriscado — asseverou Gabriel. — Alguma atividade com o telefone? Durante a noite, Mordecai instalara um transmissor na caixa de junção. — Um telefonema esta manhã — disse. — Uma mulher. Telefonou para um salão de cabeleireira em Saint-Jean e marcou hora para esta tarde.
— Como disse que se chamava?
— Madame Al-Nasser — referiu Mordecai. — Há um pequeno problema com a escuta. Neste momento, estamos fora do raio de ação. O sinal é fraco e cheio de interferências. Se Bin Shafiq pegasse o telefone, talvez não conseguíssemos identificar a voz dele, devido à estática na linha. Precisamos de um posto de escuta.
Gabriel olhou para Yaakov. — E se aproximarmos o barco?
— As águas ao largo desse ponto são agitadas demais para ancoradouro. Se fundeássemos ali para vigiar a mansão, íamos dar na vista. Melhor ir direto bater na porta do Al-Nasser e nos apresentar.
— Até que não é má ideia — adiantou Mikhail, quando entrou no salão. — Ofereço-me como voluntário.
— Precisamos de um posto estático — insistiu Yaakov.
— Vamos tratar disso. — Gabriel voltou a apresentar o cartão. E quanto a este nome? Reconhece-lo?
— Não é uma identidade alternativa que nos seja conhecida — admitiu Yaakov. — Vou pedir ao Boulevard King Saul que o introduza nos computadores para vermos o que surge.
— E agora? — perguntou Mikhail.
— Vamos passar o dia vigiando — explicou Gabriel. — Vamos tentar tirar uma foto e gravar a voz dele. Se pudermos, enviamo-los para a Rei Saul, para serem analisados.
— É uma ilha pequena — disse Lavon, com um tom cauteloso. E estamos limitados a nível de pessoal.
— Isso até pode jogar a nosso favor. Num lugar como este, não é raro vermos as mesmas pessoas todos os dias.
— É verdade — admitiu Lavon —, mas se os capangas de Bin Talai começarem a ver demasiados rostos familiares, vão ficar nervosos.
— E se King Saul nos disser que Alain al-Nasser, de Montreal, é na verdade um oficial saudita do GID chamado Ahmed bin Shafiq? —questionou Mikhail. — O que fazemos nesse caso?
Gabriel olhou para o monitor e viu Sarah.
— Vou voltar a Gustavia — disse, sem tirar os olhos da tela. — Precisamos de um posto de escuta.
A inglesa educada que o recebeu quinze minutos mais tarde na agência imobiliária Sibarth tinha cabelo castanho aclarado pelo sol e olhos azuis. Gabriel desempenhou o papel de Heinrich Kiever, um alemão de posses que encontrara o paraíso e que desejava ficar mais algum tempo. A inglesa sorriu, pois já se deparara com muitos casos do gênero, e imprimiu uma lista de propriedades disponíveis. Gabriel deu-lhe uma vista de olhos e franziu o sobrolho.
— Esperava conseguir alguma coisa por aqui — disse, apontando para o mapa aberto em cima da secretária. — Neste ponto, a norte da ilha.
— Pointe Milou? Sim, é lindo, mas infelizmente de momento não temos nada disponível nessa zona. Mas temos qualquer coisa aqui. Bateu no mapa. — No promontório seguinte. Pointe Mangin.
— Consegue-se ver Pointe Milou da casa?
— Sim, muito bem. Quer ver algumas fotografias?
— Agradeço.
A mulher apresentou uma brochura e abriu-a na página respetiva. -Tem quatro quartos, Herr Kiever. Precisa de algo assim tão grande?
— Por acaso somos capazes de ter visitas.
— Então imagino que sirva na perfeição. É um pouco cara, doze mil por semana, e receio que haja um mínimo de duas semanas.
Gabriel encolheu os ombros, como que a dizer que o dinheiro não era problema.
— Não são autorizadas crianças, e nada de animais. Não tem cão, certo?
— Oh, nem pensar.
— Também há uma caução de dois mil dólares, o que perfaz o total de vinte e seis mil, pago adiantado, é claro.
— Quando estará pronta?
A inglesa olhou para o relógio.
— São dez e quinze. Se apressarmos as coisas, poderá instalar-se com a sua esposa o mais tardar às onze e meia.
Gabriel sorriu e entregou-lhe um cartão de crédito.
Embora a inglesa não o soubesse, os primeiros hóspedes chegaram à mansão quinze minutos depois de Gabriel e Dina se terem instalado. Os seus haveres eram bastante diferentes dos dos veraneantes habituais da ilha. Mordecai trouxe um receptor ativado por voz e uma máquina fotográfica Nikon com uma teleobjetiva, e Mikhail chegou com uma mochila de nylon com celulares, rádios e quatro pistolas. Uma hora depois avistaram o seu alvo pela primeira vez, quando este saiu para o terraço, vestido com calções brancos e camisa branca de manga comprida. Mordecai tirou-lhe várias fotografias. Cinco minutos depois, quando Al-Nasser saiu de tronco nu da piscina, onde dera algumas braçadas vigorosas, Mordecai tirou mais algumas. Gabriel examinou as imagens no computador, mas considerou-as impróprias para serem enviadas para a Rei Saul, para análise.
À uma da tarde, a luz do gravador ativado por voz passou de vermelho a verde. Ouviu-se o sinal de chamada, seguido do som de alguém na casa a marcar um número local. A chamada foi atendida após dois toques por uma mulher do restaurante La Gloriette. Gabriel fechou os olhos, desapontado, quando a voz que ouviu a seguir foi a de Madame Al-Nasser, a fazer reservas para um almoço às duas horas. Chegou a considerar a hipótese de enviar uma equipe para o restaurante, mas descartou-a quando obteve a descrição da sala de jantar atulhada. Mordecai, contudo, tirou mais duas fotografias a Al-Nasser, uma quando saía do carro no estacionamento e uma segunda ao beber um aperitivo já à mesa.
Em ambas as ocasiões envergava óculos de sol desportivos escuros e uma camisa de manga comprida. Gabriel enviou-as para O Boulevard King Saul, para que fossem analisadas. Uma hora mais tarde, quando Al-Nasser e a esposa saíam do restaurante, a Rei Saul respondeu através da ligação segura, dizendo que os resultados eram inconclusivos.
Às três e meia, deixaram La Gloriette e dirigiram-se à aldeia de Saint-Jean, onde Al-Nasser deixou a mulher no salão de cabeleireira. Daí foi para Gustavia, onde, às três e cinquenta, entrou a bordo de uma lancha e se dirigiu ao
Alexandra. Yossi gravou a chegada a partir da ponte do Sun Dancer, bem como o abraço caloroso que recebeu de Zizi al-Bakari quando entraram para o gabinete luxuoso do convés superior, onde se reuniram em privado. Sarah não se encontrava a bordo para testemunhar a chegada de AI-Nasser, pois naquele momento fazia mergulho com grande parte do séquito de Zizi em lie Fourche, uma pequena ilha deserta a cerca de um quilômetro e meio a nordeste de Saint-Barts.
A reunião durou pouco mais de uma hora. Yossi registrou a saída de Al-Nasser do gabinete de Zizi, e a expressão determinada que trazia no rosto quando entrou na lancha e regressou a Gustavia. Mikhail seguiu-o até a aldeia de Saint-Jean, onde foi buscar a esposa acabada de pentear, pouco antes das seis. Às seis e meia, Al-Nasser voltara a fazer piscinas e Mikhail estava sentado com um ar soturno ao lado de Gabriel, na mansão do outro lado da enseada.
— Passamos o dia inteiro atrás dele — queixou-se Mikhail — e o que ganhamos com isso? Algumas fotografias inúteis. É óbvio que o Alain al-Nasser é Bin Shafiq. Vamos tratar-lhe da saúde e pronto.
Gabriel lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Um dia, quando fores mais velho e mais sábio, conto-te uma história sobre uma equipe de intervenção do Escritório que pensou que tinha o alvo à frente e matou um garçom inocente.
— Conheço a história, Gabriel. Aconteceu em Lillehammer. No Escritório, ainda se referem ao caso como o Leyl-ha-Mar. a Noite da Amargura. Mas já foi há muito tempo.
— Continua a ser o maior fracasso operacional da história do Escritório. Mataram o homem e foram apanhados. Quebraram todas as regras. Agiram precipitadamente e deixaram-se controlar pelas emoções. Não podemos dar ao luxo de ter outro Leyl-ha-Mar. Primeiro, encontramos provas inabaláveis de que Alain al-Nasser é Ahmed bin Shafiq. Só então começamos a pensar em matá-lo. E só apertamos o gatilho se conseguirmos tirar Sarah e toda a equipe da ilha sem sermos apanhados.
— Como vamos obter provas?
— As fotos não bastam — declarou Gabriel. — Precisamos da voz dele.
— Ele não fala.
— Toda a gente fala. Só temos de estar à escuta quando ele falar.
— E como vamos conseguir isso?
Nesse momento, a luz verde brilhou no gravador e o sinal de marcação fez-se ouvir nos altifalantes. O telefonema de Madame Al-Nasser jurou menos de trinta segundos. Quando terminou, Gabriel voltou a ouvi-la, para garantir que apanhara os pormenores.
— Le Poivre.
— Gostaríamos de uma mesa para as nove horas.
— Estamos cheios a essa hora, Madame. Posso fazer uma reserva para as oito, ou para as nove e meia.
— As oito é muito cedo. Pode reservar para as nove e meia, por favor.
— O seu nome?
— Al-Nasser.
Gabriel pressionou o botão de Stop e olhou para Mikhail — Paciência, meu caro. A paciência é uma grande virtude.
O restaurante conhecido como Le Poivre é uma das joias desconhecidas da ilha.
Encontra-se no extremo de um pequeno centro comercial muito agradável de Saint-Jean, no cruzamento entre a estrada marginal e um caminho estreito que se dirige às escarpas em frentes à praia. A única vista que tem é do trânsito e do estacionamento, e o ambiente praticamente não existe. A sala de jantar é do tamanho de um vulgar pátio suburbano. O serviço por vezes deixa um pouco a desejar, mas a comida, quando chega, é da melhor da ilha. Mesmo assim, devido à sua localização discreta, os que vão a Saint-Barts para serem vistos raramente passam pelo Le Poivre, e nunca lá acontece nada de especial. É por esse motivo que, até hoje, ainda se fala sobre o incidente lá ocorrido, que envolveu Monsieur e Madame Al-Nasser.
Os garçons conhecem bem a história, como os habitantes locais que costumam tomar uma bebida no bar minúsculo. À tarde, durante o período morto entre o almoço e a agitação da noite, costumam narrá-la à frente de um copo de rose, ou de um café e um cigarro. A reserva estava marcada para as nove e meia, mas eles tinham chegado cedo. Odette, a empregada de serviço às reservas nessa noite, lembra-se de serem nove e quinze, mas Étienne, o bar tender dirá com certeza que eram nove e vinte. Ainda não havia mesas disponíveis, por isso tiveram de aguardar no bar. Foi Étienne quem tratou das bebidas, é claro. Um copo de champanhe para Madame Al-Nasser. Um suco de ananás para o cavalheiro.
— Mais nada? — perguntara Étienne, mas o cavalheiro sorrira sem qualquer encanto e replicara, com um tom de voz que mal passava de um murmúrio: — Apenas o sumo, por favor.
Pouco depois das nove e trinta, uma mesa ficou vaga. Mais uma vez há um certo debate quanto à hora. Denise, a empregada de mesa, lembra-se de que eram nove e quarenta, mas Odette, guardiã da folha de reservas e observadora do relógio, garante que não eram mais de nove e trinta e cinco. Independentemente da hora, Monsieur e Madame
Al-Nasser não ficaram satisfeitos com a mesa. A Madame queixou-se de que ficava demasiado próxima da entrada da casa de banho, mas ficou a impressão de que Monsieur Al-Nasser não gostara da mesa por uma razão diferente, embora nunca tenha chegado a emitir uma opinião.
Eram quase dez horas quando a mesa seguinte vagou. Esta ficava junto do anteparo que dava para a rua. Monsieur Al-Nasser ocupou a cadeira virada para o bar, mas Étienne lembra-se de que o olhar se manteve fito no trânsito que fluía ao longo da marginal. Denise deu-lhes a conhecer o menu e aceitou os pedidos de bebidas. A Madame pediu uma garrafa de vinho. Cotes du Rhône, garante Denise. Bordeaux, segundo Étienne. Quanto à cor do vinho, não há dúvida. Era tinto e grande parte dele em breve estaria a ensopar o fato branco da Madame. O responsável pelo incidente chegou ao Le Poivre às dez e quinze. Era uma figura de estatura pequena e constituição franzina. Étienne dava-lhe um metro e setenta, setenta e cinco quilos, no máximo. Trazia um par de calções largos de caqui que não eram lavados há algum tempo, uma t-shirt demasiado grande com um rasgão na manga esquerda, um par de sandálias com faixas de velcro, e um boné de golfe que já vira melhores dias. Por estranho que pareça, ninguém consegue recordar uma imagem completa do rosto. Étienne lembra-se de um par de óculos fora de moda. Odette recorda um bigode por aparar que não lhe ficava bem. Denise apenas tem presente o andar. As pernas faziam uma certa curvatura para fora, pelo menos é isso que ela nos vai dizer. Como um homem capaz de correr muito depressa, ou bom a jogar futebol.
Nessa noite não tinha nome, mas mais tarde viria a ser conhecido simplesmente como "Claude". Fora até Saint-Jean de motocicleta, vindo da direção de Gustavia, e passara boa parte do serão a beber Heineken, num bar algumas portas mais abaixo. Quando chegou, às dez e quinze, à procura de uma mesa, o seu hálito tresandava a cigarros e a lúpulo, e o corpo não cheirava muito melhor. Quando Odette lhe explicou que não havia mesas — E que não o sentava, mesmo que houvesse ele resmungou qualquer coisa ininteligível e pediu a chave da casa de banho. A isso, Odette replicou que os lavabos se destinavam apenas aos clientes. Olhou então para Étienne e disse:
— Heineken. — Étienne colocou uma garrafa em cima do balcão, encolheu os ombros a Odette, e entregou-lhe a chave.
Quanto tempo ficou lá dentro também é motivo de disputa. As estimativas variam entre dois a cinco minutos e teceram-se as mais alucinadas teorias sobre o que poderia lá estar a fazer. O pobre casal sentado à mesa rejeitada por Monsieur e Madame Al-Nasser descreveriam, mais tarde, que vertera águas durante uma eternidade, tendo o ato sido seguido por descargas de autoclismo e muita água no lavatório. Quando por fim voltou a sair, puxava o fecho dos calções de caqui e sorria como um homem aliviado de um fardo imenso. Começou a dirigir-se ao bar, com os olhos fitos na Heineken que o aguardava. E foi então que os problemas tiveram início.
Denise acabara de servir mais um copo de vinho a Madame Al-Nasser. A Madame erguera-o para o beber, mas voltara a baixá-lo com repulsa quando Claude saiu da casa de banho a coçar a virilha. Infelizmente, ela pousara o copo na mesa e soltara-o para se inclinar para a frente e contar a Monsieur Al-Nasser sobre o espetáculo lastimável. Quando Claude passou pela mesa a cambalear, a mão derrubou o copo, espalhando o conteúdo no regaço de Madame Al-Nasser. Os relatos sobre o que aconteceu a seguir variam de acordo com quem está a contar a história. Todos concordam que Claude procedeu à tentativa de boa fé de se desculpar, e é de opinião geral que foi Monsieur Al-Nasser quem escolheu o caminho da altercação. Trocaram-se palavras duras, bem como ameaças de violência. O incidente poder-se-ia ter resolvido pacificamente, caso Claude não se tivesse oferecido para pagar a limpeza a seco. Quando a oferta foi recusada com veemência, levou a mão aos calções imundos e atirou algumas notas de euro amarrotadas à cara de Monsieur Al-Nasser. Denise conseguiu sair do caminho no momento em que Monsieur Al-Nasser agarrou em Claude pelo pescoço e o empurrou na direção da saída. Manteve-o ali por alguns momentos, bradando mais insultos, depois o empurrou degraus abaixo para a rua.
Houve uma salva de palmas dos outros clientes e muita preocupação com o estado lastimável da roupa de Madame Al-Nasser. Apenas Étienne se deu ao trabalho de se dirigir à figura espraiada no passeio. Ajudou o homem a levantar-se e, com muitas reservas, observou-o a subir para a motocicleta e a afastar-se aos ziguezagues pela marginal. Até hoje, Étienne duvida da autenticidade dos acontecimentos daquele serão. Sendo cinturão negro de karatê, viu algo na pose do bêbado que lhe dizia tratar-se de um aluno das artes. Se o homenzinho de óculos e chapéu de golfe tivesse decidido rebater, Étienne garante, com a convicção dos entendidos, que teria arrancado o braço de Monsieur Al-Nasser, servindo-o ao jantar com seu Bordeaux.
— Não era Bordeaux — diria Denise. — Era Côtes du Rhône.
— Côtes du Rhône, Bordeaux... não interessa. E digo mais. Quando o sacana se afastou, tinha um sorriso de orelha a orelha. Como se tivesse acertado na lotaria.
Eli Lavon assistira ao desempenho de Gabriel no estacionamento. Assim sendo, foi ele quem, nessa noite, o descreveu ao resto da equipe. Gabriel percorria lentamente o piso ladrilhado, com uma garrafa de água com gás para a ressaca e um saco de gelo no cotovelo esquerdo inchado. A sua mente encontrava-se na cena que se desenrolava a meio mundo de distância, em Tel Aviv, onde uma equipe de especialistas da ciência de identificação por voz decidia se o homem conhecido por Alain al-Nasser viveria ou morreria. Gabriel sabia a resposta. Soube no preciso instante em que o adversário se levantara da mesa numa fúria assassina. E viu a prova segundos mais tarde, quando levantou a manga direita da camisa e avistou a feia cicatriz no antebraço. Às onze e meia as luzes se acenderam na mansão do outro lado da enseada. Gabriel saiu para o terraço e, do lado oposto, Ahmed bin Shafiq fez o mesmo. Para Mikhail, parecia que os dois homens se fitavam na escuridão. Às onze e trinta e cinco, o telefone via satélite gemeu baixinho. Yaakov atendeu, escutou um momento em silêncio, depois desligou e chamou Gabriel para dentro.