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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MORTE DE SARAI / J. A. Redmerski
A MORTE DE SARAI / J. A. Redmerski

 

 

                                                                                                                                               

 

 

 

 

CAPÍTULO UM

Sarai

Em algum lugar do México

Já faz nove anos desde que vi um americano aqui pela última vez. Nove anos. Eu estava começando a achar que Javier havia matado todos.

— Quem é ele? — pergunta minha única amiga, Lydia, ficando mais à vista. — Como você sabe que ele é americano?

Levo o dedo indicador aos lábios e Lydia cochicha mais baixo, sabendo tão bem quanto eu que Javier — ou aquela irmã medonha dele — vai ouvir e nos punir por bisbilhotar. Sempre paranoicos. Sempre pensando o pior. Sempre tratando tudo com cautela e armas, e têm motivos para isso. Esse é o estilo de uma vida cheia de drogas, assassinato e escravidão.

Olho pela fresta da porta, observando o homem branco, alto e magro que parece ter nascido incapaz de sorrir.

— Sei lá — murmuro. — Só sei que ele é.

Lydia estreita os olhos como se isso pudesse ajudá-la a ouvir melhor. Sinto o calor de seu hálito aquecendo a pele do meu pescoço quando ela aperta o corpo no meu. Observamos o homem da penumbra do quartinho que dividimos desde que a trouxeram para cá, há um ano. Uma porta. Uma janela. Uma cama. Quatro paredes imundas e uma estante com uns poucos livros em inglês, que já reli mais vezes do que posso contar. Mas não estamos trancadas, nunca estivemos. Javier sabe que, se tentarmos escapar, não chegaremos longe. Nem sei em que parte do México estou. Mas sei que, seja onde for, não seria fácil, para uma garota como eu, voltar para os Estados Unidos sozinha. Assim que eu sair por aquela porta e seguir por aquela estrada escura e poeirenta, terei escolhido o suicídio como caminho.

 

 

 


 

 

 

O americano, que usa um sobretudo preto e comprido por cima de roupas pretas, está sentado na cadeira da sala de estar, com as costas eretas e o olhar experiente captando cada movimento no ambiente. Mas ninguém além de mim parece perceber isso. Algo me diz que, embora Lydia e eu estejamos completamente escondidas no nosso quarto, em um corredor escuro que mal nos permite enxergar a sala de estar, aquele homem sabe que estamos espiando. Ele sabe tudo o que está acontecendo ao redor: um dos homens de Javier de pé no umbral do corredor em frente, com a arma escondida e a postos. Os seis homens à espera do lado de fora. Os outros dois logo atrás dele, com rifles grudados às mãos. Esses dois não tiram os olhos das costas do americano, mas acho que ele, mesmo sem olhá-los, os vê melhor do que os homens o veem. E há também as presenças mais óbvias na sala: Javier, um perigoso chefão do tráfico mexicano, sentado bem em frente ao americano. Sorrindo, confiante e completamente sem medo. E a irmã de Javier, em seu vestido vulgar de sempre, tão curto que nem precisa se curvar para que todos na sala vejam que ela está sem calcinha. Ela quer o americano. Quer qualquer um de quem possa abusar sexualmente, mas esse homem... Há mais obsessão nos olhos dela quando o encara. E o americano também sabe disso.

— Eu só concordei em me encontrar com você — diz o americano, em espanhol fluente — porque me garantiram que você não me faria perder meu tempo. — Ele olha para a irmã de Javier rapidamente. Ela passa a língua pelos lábios. Ele não se altera. — Só faço negócios com você. Livre-se da piranha, ou não temos o que conversar. — Sua expressão imóvel nunca vacila.

A irmã de Javier, Izel, parece ter levado um tapa na cara. Ela abre a boca para falar, mas Javier a silencia apenas com o olhar e faz um movimento rápido de cabeça, exigindo que ela se retire. Ela obedece, mas, como de costume, não sem uma enxurrada de palavrões que a seguem porta afora.

Javier dá um sorrisinho para o americano e leva uma caneca de café aos lábios. Depois de tomar um gole, diz:

— Minha oferta é de 3 milhões, americano. — Ele descansa a caneca na mesa entre eles e se recosta displicentemente na cadeira, com as pernas cruzadas. — Pelo que sei, seu preço é de 2 milhões? — Javier empina o queixo, procurando no americano um sinal de reconhecimento por sua oferta generosa.

O americano não dá sinal nenhum.

— Ainda não sei como você consegue entender tão fácil o que eles dizem — murmura Lydia.

Quero pedir que ela fique em silêncio para ouvir tudo o que Javier e o americano dizem, mas não peço.

— Depois de anos vivendo no meio de gente que só fala espanhol, você aprende — digo, mas sem tirar os olhos deles. — Com o tempo, você também vai ficar fluente como eu.

Sinto o corpo de Lydia ficar tenso. Ela quer voltar para casa tanto quanto eu queria quando fui trazida para cá, com 14 anos. Mas ela sabe, tão bem quanto eu sabia, que talvez fique aqui para sempre, e o peso dessa realidade é o que acaba por fazê-la se calar de novo.

— O único motivo de um homem como você — começa o americano — oferecer mais do que o preço normal seria para garantir algum controle sobre mim. — Ele solta um pequeno suspiro aborrecido e se recosta na cadeira, tirando as mãos dos joelhos. — Ou isso, ou você está desesperado, o que me leva a crer que meu alvo, aquele que você quer que eu mate, me pagaria mais para matar você.

O sorriso confiante de Javier desaparece. Ele engole em seco e endireita as costas, pouco à vontade, mas tenta conservar um pouco de autoconfiança na situação. Até onde ele sabe, o americano pode estar aqui, agora, exatamente para fazer isso.

— Meus motivos não importam — diz Javier.

Ele toma mais um gole de café para disfarçar seu desconforto.

— Tem razão — responde o americano, muito calmamente. — Só o que importa aqui é você mandar Guillermo, lá atrás, baixar a arma que está apontando para mim, e, se ele não fizer isso em três segundos, vai morrer.

Javier e um dos homens em pé atrás do americano trocam olhares. Mas três segundos passam rápido demais, e eu ouço um tiro quase silencioso estalar, e um pop! quando um esguicho de sangue atinge o outro homem ao lado dele. “Guillermo” cai ao chão, morto. Ninguém, nem mesmo eu, entende como o americano deu aquele tiro. Ele sequer se mexeu. O homem ao lado do morto fica imóvel, seus olhos negros arregalados por baixo do cabelo preto e oleoso. Javier aperta os lábios e engole em seco de novo, tendo cada vez mais dificuldade para disfarçar seu desconforto a cada segundo inquietante que passa. Ele tem muitos homens contra o americano, mas é óbvio que não quer vê-lo morto. Não agora. Ele ergue a mão para mandar que os outros baixem as armas.

O americano tira a mão de dentro do sobretudo e apoia a arma na perna, para que todos vejam. Seu dedo continua no gatilho. Javier lança um olhar nervoso para a arma.

Lydia está afundando as unhas em minhas costelas. Cuidadosamente, eu afasto suas mãos e sinto seu corpo relaxar quando ela percebe o que está fazendo. Sua respiração é ofegante. Eu passo o braço por seu ombro e a puxo para meu peito. Ela não está acostumada a ver gente morrendo. Ainda não. Mas um dia vai se acostumar. Coloco a mão em sua cabeça e beijo seus cabelos para acalmá-la.

Javier acena com dois dedos.

— Limpe essa sujeira — diz para o outro homem atrás do americano. Ele parece mais do que satisfeito em obedecer, querendo evitar um fim como o do colega. Todos os olhares na sala estão no americano. Não que não estivessem antes, mas agora estão mais óbvios, muito mais atentos.

— Já provou o que queria — diz Javier.

— Eu não estava tentando provar nada — corrige o americano.

Javier faz um gesto com a cabeça, concordando.

— Três milhões de dólares americanos — diz Javier. — Aceita a oferta?

É óbvio que o americano fez mais do que obrigar Javier a baixar a bola. O traficante pode não estar correndo de medo nem se encolhendo em um canto, mas está claro que foi posto no seu lugar. E não é fácil fazer isso. Eu me preocupo com o que Javier possa fazer em retaliação, quando surgir uma oportunidade. Isso só me preocupa porque preciso desse americano para sair daqui.

— O que eles estão dizendo? — pergunta Lydia, frustrada por ainda estar longe de decifrar qualquer coisa que é falada neste lugar.

Não respondo, mas aperto seu ombro, para indicar que preciso que ela pare de falar.

— Três e meio é meu preço — diz o americano.

Javier fica surpreso, e acho que percebo suas narinas se alargando. Ele não está acostumado a ficar por baixo.

— Mas você disse...

— O preço aumentou — diz o americano, apoiando as costas na cadeira de novo e batendo de leve com o cabo da arma na calça preta. Ele não dá mais nenhuma explicação, nem precisa. Javier já parece aceitar.

Javier balança a cabeça.

— Sí. Sí. Três milhões e meio. Você pode fazer o serviço em uma semana?

O americano fica de pé, seu longo sobretudo preto deslizando pelo corpo. Ele é alto e intimida com seu cabelo castanho curto raspado na nuca e um pouco mais comprido e espetado em cima.

Eu afasto Lydia e fecho a porta com cuidado.

— O que você está fazendo? — pergunta ela enquanto corro para o velho gaveteiro onde estão todas as nossas roupas.

— A gente vai embora — digo, enfiando tudo o que posso em uma fronha. — Calce seus sapatos.

— Quê?

— Lydia, a gente não tem tempo para discutir. Calce os sapatos. A gente pode sair daqui com o americano.

Eu encho a fronha até a metade e vou ajudá-la, já que ela demora a entender exatamente o que está acontecendo. Então a puxo pelo braço e a faço se sentar na cama.

— Eu ajudo — digo, me ajoelhando na frente dela e começando a enfiar seus pés descalços nos sapatos.

Mas ela me faz parar.

— Não... Sarai, e-eu não posso ir.

Eu solto um longo suspiro. Não temos tempo para isso, mas preciso arranjar tempo para convencê-la de que precisa ir embora comigo. Eu a olho nos olhos.

— A gente vai ficar bem. A gente pode sair daqui. Lydia, ele é o primeiro americano que vejo em anos. É nossa única chance.

— Ele é um assassino.

— Você está cercada de assassinos. Agora venha!

— Não! Estou com medo!

Eu fico de pé bruscamente e cubro sua boca com a mão.

— Shhh! Lydia, por favor, me escute...

Ela cobre meus dedos com os seus e afasta minha mão de sua boca.

Lágrimas correm de seus olhos, e ela balança a cabeça rapidamente.

— Eu não vou. Vamos ser pegas e Javier vai bater na gente. Ou pior, Izel vai torturar e matar a gente. Vou ficar aqui.

Sei que não vou conseguir fazê-la mudar de ideia. Ela está com aquele olhar. Aquele que mostra que ela foi domada e que provavelmente continuará assim para sempre. Eu ponho as mãos em seus ombros e olho para ela.

— Entre debaixo das cobertas e finja que está dormindo — digo. — Fique assim até alguém vir aqui e achar você. Se descobrirem que você sabia que eu ia fugir e não contou para ninguém, vão matar você.

Lydia balança a cabeça com um movimento brusco e nervoso.

— Eu vou voltar para buscar você. — Eu a sacudo pelos ombros, esperando que acredite em mim. — Prometo. A primeira coisa que vou fazer quando passar a fronteira vai ser procurar a polícia.

— Mas como você vai me achar? — Lágrimas embargam sua voz.

— Não sei — admito. — Mas o americano vai saber. Ele vai me ajudar.

Não há esperança em seu olhar. Ela não acredita nem por um segundo que meu plano maluco vai funcionar. Eu provavelmente também não teria acreditado nove anos atrás, mas o desespero nos leva a fazer loucuras. O rosto de Lydia fica tenso e ela enxuga as lágrimas. É como se soubesse que esta é a última vez que vai me ver.

Beijo com força sua testa.

— Eu vou voltar para buscar você.

Ela balança a cabeça devagar e eu atravesso o quarto minúsculo com a fronha jogada por cima do ombro.

— Entre debaixo das cobertas — sussurro para ela ao abrir a janela.

Enquanto Lydia se esconde debaixo do cobertor, saio pela janela para o ar morno de outubro. Eu me agacho atrás da casa, contorno pela lateral e passo pelo buraco na cerca do lado sul da fortaleza. Javier tem capangas por toda parte, mas eu sempre os achei bem tapados e deficientes no quesito evitar-fugas-da-fortaleza, porque raramente alguém tenta fugir. Na maior parte do tempo, os vigias ficam em rodinhas, conversando, fumando e fazendo gestos obscenos para as outras garotas aprisionadas aqui. O que está na porta do arsenal é o mesmo que tentou me estuprar há seis semanas. Javier só não o matou porque eles são irmãos.

Mas, irmão ou não, agora ele é um homem castrado.

Ziguezagueando entre pequenas construções, eu me aproximo da floresta e paro nas sombras projetadas pela casa ali perto. Eu me endireito, apoio as costas na parede e dou a volta cuidadosamente até a frente, onde a cerca de arame farpado de 3,5 metros de altura começa, no portão principal. Forasteiros sempre precisam parar o carro do lado de fora e são acompanhados a pé para dentro da fortaleza.

Com o americano, não teriam permitido nada diferente. Tenho certeza disso. Espero estar certa.

Um grande feixe de luz do poste cobre o espaço a partir de onde estou até a área do portão, que é aonde preciso chegar. Há um vigia ali, mas é mais novo e acho que dou conta dele. Tive muito tempo para planejar tudo isso. Minha adolescência inteira. Roubei uma arma do quarto de Izel, ano passado, e a mantive escondida desde então sob uma tábua do assoalho no quarto onde durmo com Lydia. Assim que vi o americano entrar na casa, levantei a tábua, peguei a arma e a enfiei na parte de trás do short. Eu sabia que iria precisar dela hoje à noite.

Inspiro fundo e corro pelo espaço aberto iluminado, torcendo para que ninguém me veja. Corro a passos duros, rápidos, com a fronha batendo em minhas costas. Aperto tanto a arma que os ossos dos dedos doem. Consigo chegar à cerca e dou um suspiro de alívio quando encontro outra sombra para me esconder. Vultos se movem a distância, saindo da casa de onde acabo de vir. Sinto enjoo e poderia até vomitar se não soubesse que tenho coisas mais importantes para fazer, e rápido. Meu coração bate descontrolado. Avisto o vigia à minha frente, perto do portão, encostado a uma árvore. A brasa de um cigarro ilumina seu rosto acobreado e escurece quando ele afasta o filtro dos lábios. A silhueta de seu rifle dá a impressão de que sua arma está jogada por cima do ombro. Por sorte, não está em punho. Ando rapidamente ao longo da cerca, tentando ficar escondida na sombra das árvores do outro lado. Meus chinelos gastos se movem na areia macia sem fazer nenhum ruído. O vigia está tão perto que sinto o fedor de seu corpo e vejo o brilho oleoso de seu cabelo imundo.

Eu me esgueiro para mais perto, torcendo para que meu movimento não chame sua atenção. Estou bem atrás dele agora, quase me mijando de medo. Minhas pernas tremem e minha garganta se fechou a tal ponto que quase não consigo respirar. Com cuidado, e o mais silenciosamente possível, levanto a arma e bato com a coronha na cabeça dele com toda a força. Um whack! barulhento e um crunch! reviram meu estômago. Ele desaba, inconsciente, e o cigarro aceso cai na areia, perto de seus joelhos. Pego a arma dele, precisando praticamente arrancá-la de seu braço por causa do peso do corpo, e depois corro pelo portão entreaberto para fora da fortaleza.

Como eu esperava, só há um veículo estacionado: um carro esporte preto, provavelmente o objeto mais destoante nesta área em um raio de quilômetros. É um carro urbano e caro, com rodas reluzentes e personalidade.

Só falta um obstáculo. Mas, ao ver o carro, minha esperança de que o americano tenha deixado as portas destrancadas diminui. Certamente ele não faria isso em um lugar como este. Coloco a mão na maçaneta da porta traseira do lado do passageiro e prendo a respiração. A porta se abre. Não tenho tempo para ficar aliviada, pois ouço vozes vindo do portão e vejo de relance um vulto se aproximando. Eu rastejo para o assoalho do carro e bato a porta depressa, antes que as pessoas estejam perto o suficiente para ouvi-la se fechando.

Ai, não... a luz interna.

Cerro os dentes vendo a luz se apagando acima de mim, tão devagar que é uma tortura, até que finalmente ela some e me deixa na escuridão. Depois de enfiar a fronha debaixo do banco do motorista, tento esconder o rifle roubado atrás do banco, entre o assento e a porta. Isso me deixa tempo suficiente para deitar meu corpo pequeno, colando-o o máximo possível ao assoalho. Abraço meus joelhos, que estão apertados contra o peito, e curvo as costas, mantendo essa posição desconfortável.

As vozes desaparecem e só o que resta é o som de um par de pernas se aproximando do carro. O porta-malas se abre e segundos depois se fecha de novo.

Prendo a respiração quando a porta do motorista se abre e a luz interna se acende outra vez. O americano fecha a porta atrás de si e sinto o carro balançar quando ele se ajeita no banco do motorista. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Finalmente, a luz se apaga. Ouço a chave sendo enfiada na ignição e o motor ganhando vida.

Por que não estamos andando? Por que estamos parados aqui? Talvez ele esteja lendo algo.

E então ele diz em voz alta, em espanhol:

— Loção de manteiga de cacau. Hálito quente. Suor.

Meu cérebro leva um momento para registrar o significado de suas estranhas palavras e perceber que ele está falando comigo, na verdade.

Eu me levanto rápido de trás do banco e engatilho a arma, apertando o cano contra a nuca dele.

— Dirija — digo em inglês, as mãos tremendo, segurando a arma no lugar. Nunca matei ninguém e nem quero, mas não vou voltar para aquela fortaleza.

O americano levanta as mãos devagar. O brilho de seu grosso relógio de ouro me chama a atenção, mas não deixo que me distraia. Sem mais uma palavra, ele coloca uma das mãos no volante e a outra na marcha, pondo o carro em modo de partida.

— Você é americana — diz ele calmamente, mas detecto um traço ínfimo de interesse em sua voz.

— Sim, sou americana, agora dirija, por favor.

Ainda apontando a arma para sua cabeça, eu me sento no banco de trás e a afasto de seu alcance. Eu o pego me olhando pelo retrovisor, mas o interior do carro está muito escuro, apenas com luzes fracas no painel, então só consigo ver seus olhos por um breve momento quando eles passam por mim.

Finalmente, o carro começa a andar e ele põe as mãos no volante. Ele está calmo e cauteloso, mas tenho a sensação de que não está nem um pouco preocupado comigo ou com o que eu sou capaz de fazer. Isso me dá medo. Acho que eu preferiria que ele implorasse por sua vida, gaguejasse súplicas, prometesse o mundo. Mas ele parece tão perigoso e desinteressado quanto parecia dentro da casa, quando meteu uma bala na cabeça daquele capanga que chamou tão displicentemente de Guillermo.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Estamos andando há 28 minutos. Olho para o relógio do painel, os números azuis luminosos que já começam a queimar meu subconsciente. O americano não disse uma palavra. Nem umazinha. Sei que isso não tem nada a ver com medo. Sou eu que estou com a arma, mas sou a única de nós dois que está com medo. E não entendo por que ele não fala. Talvez, se ele apenas ligasse o rádio... alguma coisa... porque o silêncio está me matando. Estou tentando ficar de olho nele e ao mesmo tempo descobrir onde estamos. Mas até agora os únicos marcos que vi são árvores e uma ou outra casa de alvenaria ou um prédio em ruínas — tudo parece igual à fortaleza.

Com 32 minutos, percebo que em algum momento baixei a arma. Meu dedo ainda está no gatilho e estou pronta para usá-la, se precisar, mas fui idiota em pensar que poderia segurá-la apontada para ele por mais do que alguns minutos.

Não sei o que vou fazer quando me cansar. Por sorte, a adrenalina está me mantendo bem acordada, por enquanto.

— Qual o seu nome? — pergunto para ele, na tentativa de quebrar seu silêncio.

Preciso fazer com que ele confie em mim e queira me ajudar.

— Meu nome é indiferente.

— Por quê?

Ele não responde.

Engulo um nó na garganta, mas outro se forma no lugar.

— Meu nome é Sarai.

Ainda nenhuma resposta.

É um pouco como uma tortura, o modo como ele me ignora. Começo a achar que é exatamente isso que ele está fazendo: me torturando com o silêncio.

— Preciso que você me ajude — digo. — Sou prisioneira de Javier desde os 14 anos.

— E você acha que vou ajudar porque também sou americano — diz ele, simplesmente.

Hesito antes de responder:

— E-eu... bem, por que você não me ajudaria?

— Não é minha função interferir.

— Então qual é a sua função? — pergunto, com um toque de revolta. — Matar pessoas a sangue-frio?

— Sim.

Um arrepio percorre minhas costas.

Sem saber o que dizer em resposta a algo assim, ou mesmo se devo responder, decido que é melhor mudar de assunto.

— Você pode só me deixar do outro lado da fronteira? — pergunto, ficando mais desesperada. — Eu... — Baixo o olhar, envergonhada. — Eu faço o que você quiser. Mas por favor, por favor, me ajude só a cruzar a fronteira.

Sinto as lágrimas tentando brotar dos meus olhos, mas não quero que ele me veja chorar. Não sei por que, mas não posso permitir isso. E sei que ele entende o que significa fazer o que ele quiser. Eu me odeio por oferecer meu corpo para ele, mas, como já falei sobre o desespero...

— Se você está se referindo à fronteira com os Estados Unidos — diz ele, e por alguma razão sua voz me surpreende —, então precisa saber que fica mais longe do que pretendo levar você no meu carro.

Desencosto do banco um pouquinho.

— B-bem, até onde vai me levar?

Eu vejo seus olhos escuros no retrovisor de novo. Eles encontram os meus, e isso também envia um calafrio pelas minhas costas.

Ele não responde.

— Por que você não quer me ajudar? — pergunto, finalmente aceitando o fato de que tudo o que eu disser será inútil. E como ele continua sem responder, digo com exasperação: — Então pare o carro e me deixe descer. Vou fazer o resto do caminho a pé.

Acho que os olhos dele sorriram um pouco para mim no espelho. Sim, tenho certeza de que foi isso que vi. Ele sabe tão bem quanto eu que é melhor ser arrastada de volta para a fortaleza do que sair do carro e ficar sozinha.

— Você vai precisar de mais do que as seis balas que tem nessa arma.

— Então me dê mais balas — digo, ficando com mais raiva. — E esta não é a única arma que eu tenho.

Isso parece ter despertado seu interesse, ainda que pouco.

— Eu peguei o rifle do vigia quando bati na cabeça dele e passei pela cerca.

Ele assente uma vez, tão sutilmente que, se eu tivesse piscado naquele momento, não teria visto.

— É um bom começo — diz ele, e então volta a olhar para a estrada de terra por um momento e vira à esquerda no final. — Mas o que vai fazer quando acabar a munição? Porque vai acabar.

Eu o odeio.

— Vou correr.

— E eles vão pegar você.

— E eu vou esfaqueá-los.

De repente, o americano sai devagar da estrada e para o carro.

Não, não, não! Não era para acontecer assim. Eu esperava que ele continuasse dirigindo, pensando que, se me deixasse aqui sozinha desse jeito, o que acontecesse comigo pesaria em sua consciência. Mas acho que ele nem tem consciência, na verdade. Seus olhos negros me fitam calmamente pelo retrovisor, sem um pingo de compaixão ou preocupação. Sinto vontade de dar um tiro na nuca dele, só por princípio. Ele apenas me encara com aquele olharzinho de o-que-você-está-esperando?, e eu não cedo. Olho com cautela para a porta, depois para ele, para minha arma e para ele de novo.

— Você pode me usar como moeda de troca — digo, porque é só o que me resta.

Suas sobrancelhas mal se mexem, mas já me basta ter chamado sua atenção.

— Sou a favorita de Javier — continuo. — Sou... diferente... das outras garotas.

— O que a faz pensar que preciso de uma moeda de troca? — pergunta ele.

— Bem, Javier pagou o total dos 3,5 milhões?

— Não é assim que funciona — diz ele.

— Não, mas eu sei como Javier funciona, e, se ele não pagou o total antes de você partir, não vai pagar nunca.

— Você vai descer?

Eu suspiro, olho pela janela de novo, levanto a arma outra vez e digo:

— Você vai me levar até a fronteira.

O americano passa a língua pelos lábios secos, e então o carro começa a se mover de novo. A esta altura, estou improvisando tudo. Todas as partes planejadas da minha fuga terminaram quando entrei no carro dele.

Quando o americano falou da fronteira dos Estados Unidos, me pareceu que estou mais perto das fronteiras de outros países do que da americana, e isso me apavora. Se eu estiver mais perto da Guatemala ou de Belize do que dos Estados Unidos, então duvido muito que vá sair disso viva. Eu olhei os mapas. Fiquei naquele quarto, muitas vezes, correndo a ponta do dedo pelas estradinhas entre Zamora e San Luis Potosí e entre Los Mochis e Ciudad Juárez. Mas sempre bloqueei por completo da minha mente a possibilidade de estar mais ao sul, porque nunca quis aceitar que poderia estar tão longe de casa.

Casa. Essa é, realmente, uma palavra muito artificial. Eu não tenho casa nos Estados Unidos. Acho que nunca tive. Mas mesmo assim, foi lá que nasci e fui criada, embora minha mãe pouco tenha feito para me criar, na verdade. Mas eu quero ir para casa porque vai ser sempre melhor do que o lugar em que estive nos últimos nove anos da minha vida.

Posiciono minhas costas coladas parte na porta e parte no banco, para olhar diretamente o americano. Ainda não sei por quanto tempo vou conseguir continuar com isso. E ele tem noção disso.

Talvez eu devesse simplesmente atirar nele e ficar com o carro. Por outro lado, pouco vai adiantar quando eu estiver dirigindo sem rumo neste país estrangeiro onde não vi nada além de violência, estupro, assassinato e tudo o mais que se possa imaginar. E Javier é um homem muito poderoso. Muito rico. A fortaleza é uma pocilga e engana. Ele poderia ser como os chefões do tráfico que eu via quando tinha o luxo da TV americana, aqueles com casas ricas e imaculadas, com piscinas e dez banheiros, mas pelo visto Javier prefere disfarçar. Não sei no que ele gasta sua fortuna, mas não é com imóveis.

Já faz mais de uma hora. Estou ficando cansada. Sinto o ardor no fundo dos meus olhos se espalhando pela borda das minhas pálpebras. Não sei quem penso que estou enganando. Vou ter que dormir em algum momento, e, assim que pegar no sono, vou acordar de volta na fortaleza, amarrada à cadeira do quarto de Javier, ou talvez nem acorde mais.

Preciso continuar falando para me ajudar a ficar acordada.

— Você não pode me dizer seu nome? — tento mais uma vez. — Olha, eu sei que não vou sair deste país viva. Nem do seu carro, aliás. Sei que minha tentativa de fuga foi desperdiçada assim que pus o pé para fora daquele portão. Então o mínimo que você pode fazer é falar comigo. Pense nisso como minha última refeição.

— Infelizmente, não sou muito bom como ombro amigo.

— Então você é bom em quê? — pergunto. — Além de matar gente, é claro.

Noto que sua mandíbula se move um pouco, mas ele não me olha pelo retrovisor há algum tempo.

— Dirigir — responde ele.

Bem, isso não está adiantando nada.

Eu quero chorar de frustração.

Mais quinze minutos de silêncio se passam e eu noto que os arredores começam a parecer familiares demais. Estamos andando em círculos desde que partimos. Por uma fração de segundo, penso em dizer algo a respeito, mas decido que talvez seja melhor não deixar que ele perceba que notei.

Ergo um pouco o corpo do banco, aponto a arma para ele e digo:

— Vire à esquerda aqui.

E faço isso por mais vinte minutos, obrigando-o a ir aonde eu mando, mesmo sem fazer ideia de aonde seja. E ele aceita esse jogo sem se estressar, sem me dar a mínima impressão de estar preocupado ou com medo por ter uma arma apontada para suas costas. Quanto mais continuamos com isso, mais eu começo a perceber que, embora eu esteja com a arma, ele tem toda a situação mais sob controle do que eu achei que tinha.

No que foi que eu me meti?

Outros longos minutos se passam e eu perco a noção do tempo. Estou muito cansada. Minhas pálpebras estão ficando mais pesadas. Eu desencosto a cabeça do banco e aperto o botão para baixar o vidro. O ar quente noturno invade o carro, jogando meu cabelo castanho no rosto. Faço força para arregalar os olhos e fico em uma posição mais desconfortável para me ajudar a me manter acordada, mas logo percebo que nada disso está funcionando.

O americano observa cada movimento pelo retrovisor. Eu o noto de vez em quando.

— Por que você é a favorita dele? — pergunta ele, e isso me atordoa.

Eu estava convencida de que ele estava esperando todo esse tempo para que eu pegasse no sono; se tivesse esperado mais alguns minutos, é provável que isso acontecesse. E agora ele está conversando comigo? Estou completamente confusa, mas vou aceitar.

— Não fui comprada — respondo.

Ele enfim me fez uma pergunta direta que poderia levar a uma conversa e talvez motivá-lo a me ajudar, mas ironicamente o assunto torna difícil tirar vantagem da oportunidade. É difícil falar disso, embora tenha partido de mim.

Espero por um longo momento antes de prosseguir:

— Fui trazida para cá há muito tempo... pela minha mãe. Javier viu algo em mim que não via nas outras garotas. Eu chamo de obsessão doentia, ele chama de amor.

— Entendo — diz ele, e, embora suas palavras sejam poucas, percebo que carregam mais peso do que parece.

— Sou de Tucson — digo. — Só quero voltar para lá. Eu pago. Se você não... me... quer... dou um jeito de pagar em dinheiro. Tenho palavra. Não ia tentar me esconder de você. Daria um jeito de pagar minha dívida.

— Se um chefão do tráfico acha que está apaixonado por você — diz ele, casualmente —, não é de mim que você precisa se esconder.

— Então você sabe que eu estou correndo muito perigo — respondo.

— Sei, mas mesmo assim, não é problema meu.

— Você é humano? — A cada vez que ele fala, eu o odeio mais. — Que espécie de homem não ia querer ajudar uma garota indefesa a escapar de uma vida de escravidão e violência, ainda mais depois que ela fugiu do cativeiro e está pedindo diretamente a ajuda dele?

Ele não responde. Por que isso não me surpreende?

Eu suspiro e me recosto no banco de novo. Meu dedo está com cãibra, de ficar tanto tempo encostado no metal do gatilho. Baixando mais a arma atrás do banco para que ele não veja, troco de mãos tempo suficiente para dobrar e esticar um pouco os dedos, depois forço cada um deles com o polegar para desentrevá-los. A gente não se dá conta do quanto uma arma é pesada até que precisa empunhá-la sem descanso por um bom tempo.

— Não estou mentindo para você — digo. — Sobre Javier e o seu dinheiro.

Flagro seus olhos me encarando pelo retrovisor de novo.

— Tive muito tempo para ver o modo como ele faz negócios — continuo, empunhando a arma na mão direita de novo, sob protestos dos meus dedos doloridos. — Ele prefere matar a pagar.

Seus olhos são azul-esverdeados. Posso vê-los mais claramente agora que estamos atravessando a iluminação pública de uma cidadezinha. E bota “inha” nisso, porque em menos de um minuto somos engolidos de novo pela escuridão da rodovia desolada, sem nada à vista além da paisagem desértica e estrelada.

E então eu simplesmente começo a falar; minha última tentativa desesperada de me manter acordada. Não me importa mais se ele vai fazer algum acréscimo ao meu monólogo; só preciso continuar consciente.

— Acho que se você tivesse uma filha ou uma irmã, ia se importar um pouco mais. Eu tinha uma vida antes de minha mãe me trazer para cá. Não era grande coisa, mas era uma vida mesmo assim. A gente morava em um trailer minúsculo, infestado de baratas e com paredes tão finas que era como dormir no chão no deserto, no inverno. Minha mãe era viciada em heroína. Crack. Metadona. Todo bagulho que você imaginar, ela adorava todos. Mas eu não. Eu queria terminar o ensino médio, arrumar uma bolsa em qualquer faculdade que me aceitasse e cuidar da minha vida. Mas aí fui trazida para cá e tudo isso mudou. Javier dormiu com a minha mãe por uns tempos, mas ele estava sempre de olho em mim...

Acho que cochilei por um segundo.

Abro os olhos de supetão e inspiro fundo, encostando a cabeça perto do vidro aberto, deixando o ar bater no rosto.

Quando dou por mim, sinto uma dor aguda na têmpora e tudo fica preto.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

O som de água pingando me acorda. Abro os olhos devagar, ofuscada pela luz que entra por alguma janela próxima. Consigo ver que estou em um quarto. Minha visão está embaçada e minha cabeça dói como se tivesse batido em uma parede de tijolos ontem à noite. O lado esquerdo do meu rosto está inchado.

Tento me levantar, mas algo está amarrado em meus pulsos e tornozelos. Quando meus olhos gradualmente ganham foco, vejo que estou deitada em uma cama, em um quarto sujo, com papel de parede bege e móveis empoeirados que não combinam. O aparelho de TV parece o da fortaleza: antigo e provavelmente só pega um canal, que tenho certeza de que é aquele que passa as novelas mexicanas dramáticas. Na minha linha de visão direta estão as grossas cortinas verdes na janela, e, encostada nelas, uma mesinha quadrada com uma só cadeira. Um sobretudo preto longo está pendurado nas costas da cadeira.

Percebendo o que deve ter acontecido e finalmente recuperando meus instintos, forço meu corpo a deitar de costas para ver o restante do quarto. Para que eu possa achar o americano que sei que me trouxe para cá, onde quer que ele esteja.

Ele me amarrou. Ah, não... ele me amarrou.

Quando eu o vejo sentado em uma cadeira do outro lado da cama, isso me sobressalta; solto um gritinho e caio da cama, com as mãos e pernas amarradas tão apertadas que não posso fazer nada para amortecer o impacto. Bato com força no chão, e a dor parte do meu quadril e atravessa minhas costas.

— Aii! — gemo alto. Logo estou tentando afrouxar o tecido que amarra meus pulsos, me retorcendo no chão.

O americano se aproxima de mim, como um fantasma saído do nada.

— Por que você me amarrou?

Estou tremendo muito, espero que ele não note. Não quero que saiba o quanto realmente estou com medo.

Ele se curva sobre mim, me pega do chão e me deita na cama de novo. Tento espernear e socá-lo até que me dou conta da idiotice que é isso, porque só o que vou conseguir é cair de novo no chão. Sem responder, ele volta para o outro lado, onde estava sentado, e enfia a mão em uma bacia de água no criado-mudo. Ele torce a água de um pano e o aproxima do meu rosto, mas eu tento me afastar dele. Isso não o perturba. Aliás, nada parece perturbá-lo. Sei que não vou a lugar nenhum no momento, por isso fico deitada ali bem quieta, olhando-o diretamente nos olhos, mesmo que ele não retribua meu olhar.

Quero que ele me veja, que veja a raiva em meu rosto, mas ele não se dá ao trabalho de olhar.

— Você me deu um soco? — Não consigo acreditar, mas, pensando bem, consigo.

— Sim. — Ele aperta o pano úmido no meu olho esquerdo e no osso da têmpora.

— Então você é um assassino e espanca mulheres.

Seus olhos escuros finalmente encontram os meus, e sua mão para, como se minha acusação não lhe tivesse caído bem.

Ele desvia o olhar e continua fazendo compressas em meu rosto.

— Eu não bato em mulher — diz ele —, a menos que ela tenha uma arma apontada para minha cabeça.

Eu não respondo a isso. Seu argumento é razoável, se é que pode ser chamado de argumento.

— Meu olho está roxo?

— Não — diz ele, afastando o pano úmido. — Não bati tão forte. Só está um pouco inchado.

Eu o olho como se ele fosse louco.

— Não? Mas me bateu forte o suficiente para me deixar desmaiada a noite toda?

Ele se levanta da cama, assomando sobre mim, e vai até seu casaco, pendurado nas costas da cadeira. Enfia a mão em um dos bolsos e pega um frasco de comprimidos.

— Você acordou logo depois — diz ele, abrindo a tampa do frasco. — Precisei dopar você.

Eu pisco, atordoada.

Ele põe um pequeno comprimido branco na palma da mão e o aproxima de mim. Eu ainda o estou olhando como se ele fosse louco, talvez até mais que isso.

— Você me dopou? O que é isso?

Quero dar uma bofetada nele. Se minhas mãos não estivessem amarradas, eu faria isso.

— Um comprimido para dormir — diz ele, encostando-o em meus lábios. — É inofensivo. Eu mesmo tomo. Você, por outro lado, só precisa de metade, agora já sei.

Cuspo o comprimido no lençol amarelado.

— Acho que já dormi o suficiente.

— Como quiser. — Ele coloca o frasco no bolso do casaco e se dirige para a porta.

— Aonde você vai?

Ele para perto da janela e fecha a cortina, mas fica ali perto, olhando por uma fresta do tecido grosso. Enquanto ele está de costas, tento silenciosamente livrar meus pulsos.

— A lugar nenhum, no momento — diz ele, e então se vira de novo, e eu paro de lutar com as amarras na hora, para que ele não perceba.

— Ok... bom, então o que a gente está fazendo aqui, e por que estou amarrada?

Ele me encara.

— Estamos esperando os homens que Javier mandou para pegarem você.

Acabo de engolir em seco. Lágrimas brotam instantaneamente nos cantos dos meus olhos. Eu começo a me debater, tentando com todas as forças livrar mãos e pernas, mas em vão. Ele me amarrou melhor do que amarravam os porcos na fortaleza.

— Por favor! Não pode deixar que eles me levem! Eu imploro...

— Isso não depende de mim — diz ele, voltando a olhar pela janela. — Por isso ofereci o comprimido. Achei que você ia preferir estar inconsciente quando eles chegassem.

Acho que vou vomitar. Meu coração está acelerado demais, minhas entranhas enrijecendo, e sinto que não consigo respirar. Eu forço meu corpo a ficar sentado, jogo as pernas para fora da cama e tento me levantar.

— Senta aí — diz ele, virando-se para me olhar de novo.

As lágrimas correm dos meus olhos e eu ergo as mãos amarradas para ele.

— Por favor... — Engasgo com as lágrimas, meu peito tremendo e se agitando com a respiração rápida e irregular. — Não me deixe voltar com eles!

— Eu vou perguntar mais uma vez — diz ele, virando-se completamente em minha direção. — Você quer estar acordada quando isso acontecer?

— Eu não quero que aconteça! — grito.

Levanto os braços e tento soltar o tecido das amarras dos pulsos com os dentes. O americano me ignora e se aproxima de uma espécie de maleta comprida, preta e fina que está no chão, encostada na parede oposta. Carregando-a pela alça, ele a põe na beira da cama perto de mim e abre os trincos para erguer a tampa, me impedindo de ver o que há dentro dela.

Um brilho forte de luz solar refletida bate na cortina, e o som de um carro freando lá fora embrulha ainda mais meu estômago. Eu fico imóvel na beirada da cama, com os dentes ainda cerrados no tecido, os olhos arregalados e cheios de medo. Olho da porta para o americano no fim da cama, parafusando uma coisa comprida de metal no cano de uma arma preta e reluzente. E então, em uma velocidade incrível, mas tão casual quanto um passeio matutino, ele fecha a maleta e a enfia debaixo da cama, escondendo-a.

Ele se aproxima de mim.

Tento chutá-lo de novo, mas meus tornozelos amarrados me impedem de fazer qualquer coisa além de quase cair da cama.

— Não! Me deixe em paz! Por favor, não faça isso!

Com a mão livre, ele me agarra pelo cotovelo e me coloca com força de pé, com a arma na outra mão apontada para o chão, e então me leva desajeitadamente pelo quartinho até um banheiro minúsculo.

Alguém bate na porta, mas o americano não dá atenção. Ele me arrasta para o banheiro e praticamente me joga na banheira nojenta. Acho que minha cabeça vai bater na borda, mas ele me segura pelas amarras nos pulsos e termina de me baixar com segurança.

— Fique aí abaixada. Não levante a cabeça e não se mexa.

— Quê? — Eu pisco, confusa. Estou com tanto medo que sinto que vou perder o controle da bexiga a qualquer momento.

— Você entendeu? — pergunta ele, curvado acima de mim. A seriedade em seus olhos é palpável.

Eu hesito, porque não, não entendi, mas então faço que sim com a cabeça, em movimentos bruscos e rápidos.

Ele enfia a mão na parte de trás da calça e tira uma faca. Meus olhos ficam arregalados no momento em que a lâmina afiada se aproxima de mim. Quando penso que ele vai me esfaquear, mesmo não sabendo por que faria tudo isso só para me matar depois, ele solta as amarras dos meus tornozelos.

— Fique abaixada — exige ele uma última vez.

E assim, do nada, ele sai do banheiro e fecha a porta.

Paralisada pelo choque, levo um momento para pôr a cabeça no lugar. Olho para meus pés soltos e me pergunto por que ele fez isso. Por que manter minhas mãos amarradas, mas me permitir o uso das pernas de novo? Para que eu possa fugir? Não importa. Preciso soltar as mãos também. Mordo os nós apertados mais uma vez, forçando-os furiosamente, mas conseguindo apenas ficar frustrada. Mal levanto a cabeça da banheira para ver melhor o cômodo, procurando qualquer coisa que possa servir de faca ou tesoura. Nada. Só uma banheira vazia, do tipo de plástico industrial, com manchas de tinta, óleo e sujeira, e uma privada nojenta sem tampa.

A porta do quarto se abre e ouço vozes lá dentro.

— Onde ela está?

Ah, não... é a voz de Izel!

Meu coração acelera tanto que fico zonza quando o sangue me sobe rapidamente à cabeça. Eu mordo o tecido com ainda mais força, torcendo os nós que não se desfazem com os dentes até sentir dor.

— Javier quer saber por que você mesmo não foi levá-la — diz Izel em seu tom sedutor e sarcástico, sua marca registrada.

Há mais vozes masculinas falando em espanhol entre si enquanto Izel fala apenas com o americano. As vozes estão abafadas. Não consigo entender o que dizem.

— Sente-se — diz o americano, com calma.

— A gente não está aqui de visita — recusa Izel. — Me entregue Sarai, ou... — Posso imaginá-la andando até o americano como a cobra rastejante que ela é. — Ou a gente pode ficar um pouco a sós antes. Eu ia gostar.

Sua voz para de repente e seu tom sedutor desaparece em um instante.

— Tudo bem! Tudo bem! Seu puto do caralho. Prefere atirar em mim do que me comer?

— Sim, prefiro — responde o americano.

— Traga a garota para cá — exige Izel, com a voz carregada de desprezo.

— Sente-se primeiro — diz o americano.

De repente, ouço armas se engatilhando e instintivamente afundo o corpo na banheira o máximo que posso. Começo a entender por que ele me forçou a entrar aqui.

— Nós somos cinco e você é um só — diz Izel venenosamente.

Então um tiro ecoa e eu me enrijeço no plástico duro. Mais tiros. Balas salpicam as paredes; duas atravessam os tijolos e cruzam o banheiro onde estou encolhida. Ouço vidro se partindo e o que parecem corpos tropeçando para fora do quarto e se afastando. Mais tiros são disparados e Izel grita palavrões por cima do caos. As paredes tremem ao meu redor, derrubando grossas camadas de pó da lâmpada pendurada no teto manchado pela umidade. Ouço um crec alto, e depois o som da janela grande do quarto se partindo, como se alguém ou alguma coisa acabasse de ser jogada para fora.

Tudo fica em silêncio. Só o que ouço agora é meu coração batendo rápido, violentamente. Estou tão apavorada que não consigo nem mais chorar, e meu corpo parou de tremer. Estou paralisada pelo medo.

O cheiro pungente da fumaça das armas paira no ar.

O americano está morto? Só consigo pensar nisso. Talvez estejam todos mortos e eu consiga sair daqui viva.

Estou quase saindo da banheira, mas então ouço Izel.

— Vai se foder. Não vou contar nada!

Há um breve momento de silêncio, e então ouço o americano dizendo calmamente:

— Você já me contou quase tudo que preciso saber.

— Como assim?

— Se Javier me quisesse vivo para matar Guzmán, seus homens jamais teriam atirado em mim.

— Ele queria que você matasse Guzmán.

— Então seus homens são burros.

Izel não responde, mas posso imaginar a expressão dela: amarga e maléfica ao mesmo tempo.

Silenciosamente, saio da banheira, tomando cuidado para não fazer nenhum movimento abrupto, e estendo a mão até a maçaneta. A porta se abre assim que meus dedos a tocam, como se não estivesse bem fechada antes, embora eu soubesse que estava. Deve ter aberto quando alguém caiu nela durante a luta.

Abro só uma frestinha. O espelho acima da pia do outro lado da porta está visível. Agora só restam três cacos dele, quase caindo da parede.

Consigo ver as costas do americano na imagem refletida.

— Seguinte — diz ele. — Haverá um novo acordo, agora.

— Não é você quem dita as regras — diz Izel, cuspindo as palavras.

— Acho que sou — rebate ele. — Primeiro, você me diz quais eram os planos de Javier quando me levou para a fortaleza.

— Não vou dizer porra nenhuma!

Um tiro abafado faz um som rápido de ftup, e em seguida Izel grita de dor.

— Você atirou em mim, caralho!

O americano se move e sai do reflexo no espelho, permitindo que eu veja de relance Izel sentada na cadeira perto da parede. Seu rosto brilha de suor e o sangue escorre do ferimento a bala na coxa. Ela tenta estancar o fluxo com as mãos. Seu rosto bronzeado está contorcido de agonia e raiva. Ela cospe no chão, desafiadoramente.

— Só um ferimento superficial — diz o americano.

Encosto mais na porta. Vejo um par de mãos abertas perto dos pés de Izel: um dos homens que o americano acaba de matar. Engulo em seco e tento acalmar a respiração. A porta se move quando encosto o corpo nela, e inspiro rapidamente. Izel vira a cabeça para o lado e olha para o espelho. Ela sabe que estou escondida aqui. Tento me afastar da porta e voltar para a escuridão do banheiro, mas ela me vê. Um sorriso se espalha por seu rosto.

— Saia daí, Sarai — diz ela, com voz harmoniosa. — Javier está com saudade.

Eu não me mexo. Talvez, se eu ficar parada, ela pense que apenas se confundiu com um reflexo da luz.

Ela tira os olhos de mim, como se o americano tivesse feito alguma coisa para chamar sua atenção de novo.

— Javier quer Guzmán morto — diz Izel. — Ele não teria contratado você e deixado ir embora com todo aquele dinheiro se não quisesse. — Ela abre um sorriso desdenhoso, balança a cabeça para o americano e acrescenta: — Você é um idiota.

Ouço a cama ranger como se ele tivesse se sentado na ponta, de frente para Izel. Enquanto ela está distraída, me afasto da porta, mas de forma a ver melhor o quarto pelo espelho. Vejo outro corpo caído na parede oposta a Izel.

— E se eu matar Guzmán — diz o americano —, não terei problemas em receber a outra metade do dinheiro. — É uma afirmação, mas ao mesmo tempo uma pergunta.

Izel sorri.

— É claro que não. — Ela inclina a cabeça para o lado. — Ela já fisgou você.

Nenhuma resposta. Sei que Izel está falando de mim.

— A garota não foi comprada nem vendida, só para você saber — acrescenta ela.

— Eu não perguntei.

— Nem precisava.

Izel olha para o espelho de novo, sem mexer a cabeça.

— Vai dar uma de herói? — diz ela, com a voz carregada de sarcasmo.

— Longe disso — diz o americano. — Vou usá-la como moeda de troca.

Engulo em seco.

Devia ter ficado de boca fechada...

— Isso não vai pegar bem com Javier. Ela não fazia parte do trato. Se você ficar com a garota, Javier não vai gostar.

Uma mecha de cabelo preto cai em seu rosto. Ela estende a mão como se fosse ajeitar o cabelo, mas para no meio do movimento e abaixa o braço. A raiva ajuda a esconder um pouco o medo em sua expressão. Ela sabe que ele vai estourar seus miolos.

— A garota fica comigo até eu matar Guzmán, e então vamos fazer a troca: ela pelo resto do dinheiro.

— E se Javier estiver pouco se fodendo para ela?

— Se fosse assim, você não estaria aqui agora.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

Izel ergue o queixo em desafio, a pele em volta de seus olhos escuros pontilhada por pingos minúsculos de sangue.

— Você está cometendo um erro — diz ela, com voz derrotada. — Se o que quer é uma garota, Javier lhe dá uma. Mas não essa. Você só vai transformá-lo em um inimigo fazendo isso.

Conheço muito bem essa preocupação na voz dela. Quando Javier está descontente, tende a pôr a culpa em Izel. Se ela não voltar para a fortaleza comigo, ele vai moê-la de pancada. Por mais que eu a odeie por tudo o que fez comigo, às vezes não consigo deixar de sentir pena também.

— Sua oferta ofende minha inteligência — diz o americano. — É ela que eu quero porque é ela que ele mais valoriza. Se Javier não tem nenhuma má intenção, não precisa se preocupar com nada. — Izel olha de relance para a porta do banheiro enquanto ele fala. — Vou ficar com a garota até matar Guzmán. Javier me paga o resto do dinheiro. Eu devolvo a garota. Todos têm o que querem.

Quero sair correndo do banheiro e tentar chegar a um dos carros lá fora, mas sei que não vou conseguir. Estou com a palma das mãos suada e ardendo. Cortei a mão esquerda em algum lugar, em algum momento. Não lembro quando aconteceu.

Izel o xinga em espanhol, apoia as palmas das mãos no assento da cadeira e faz menção de se levantar.

O americano, muito casualmente, ergue a arma e ela fica imóvel, com raiva e resistência no rosto.

— Junte as mãos atrás da cadeira — diz o americano.

— Vai se foder.

Ftup! O corpo de Izel cai para o lado, quase derrubando a cadeira junto.

— Filho da puta! — grita ela, pondo a mão no novo ferimento a bala na outra coxa, igual ao primeiro.

O americano nem se mexe, sua expressão e postura sempre casuais e controladas.

— Junte as mãos atrás da cadeira — diz ele mais uma vez, exatamente com a mesma calma de antes.

Dessa vez Izel obedece. Relutante e desafiadora como sempre, mas obedece.

— Saia do banheiro — ouço o americano dizer.

Eu não quero sair. Encosto em silêncio na parede, pondo as mãos amarradas no peito, os dedos cruzados nervosamente. Fungo para engolir as lágrimas, o gosto salgado descendo até o fundo da minha garganta. O que devo fazer? Se eu ficar parada aqui assim, só vou prolongar o inevitável. Não há outra saída deste banheiro, a não ser por aquela porta.

Finalmente, eu faço o que ele manda.

Tentando abrir completamente a porta, preciso empurrá-la com força com o ombro por causa do corpo estendido no chão do outro lado. Tento não olhar quando passo por cima do braço esquerdo do homem, contorcido de forma estranha atrás dele, mas olhá-lo de relance já basta para revirar meu estômago. Especialmente quando vejo os olhos. São sempre os olhos, sem vida, vazios e baços, que me dão vontade de vomitar. Respiro fundo e salto por cima dele. Izel sorri para mim, menos afetada pelos dois ferimentos a bala do que imagino que qualquer outra pessoa ficaria. Sua respiração é ofegante, e ela se esforça para manter a compostura, querendo me provocar.

— Venha cá — diz o americano, e eu obedeço.

Ele tira a faca do bolso de novo e olha rapidamente para meus pulsos. Presumindo — e esperando — que seja isso que ele quer, estendo as mãos trêmulas para ele. Ele passa a lâmina por baixo do tecido e me solta.

— Você contou para ele que é uma puta? — pergunta Izel.

Engulo o que me resta de saliva na boca. Não sou uma puta, mas ela sempre conseguiu, de alguma forma, me envergonhar com suas acusações. Finjo prestar mais atenção nos meus pulsos, agora que não estão mais amarrados.

Izel se vira para o americano, as mãos ainda unidas às costas. Ela diz, com um sorriso desdenhoso:

— Se você está com pena dela, não sinta. Essa putinha é tratada melhor do que todo mundo, melhor até do que eu, que sou irmã dele. Javier pode tê-la sempre que quiser. E não precisa nem forçá-la.

Sinto meus dedos afundando nas palmas das minhas mãos, mas a vergonha mascara a raiva. O que ela disse é verdade só em parte, mas agora não é um bom momento para me defender. Nada que eu diga vai importar. Não para o americano, e certamente não para ela. Só me importa o que o americano pensa porque preciso que ele me ajude. Se ele achar que sou uma prostituta, com certeza ficará menos inclinado a ajudar, depois. Isso se eu conseguir convencê-lo a me ajudar, o que não é garantido.

Demonstrando absolutamente nenhum interesse pela tentativa óbvia de Izel de pôr em dúvida meu caráter, o americano aponta para sua mochila, na mesa perto da janela, e me diz:

— No zíper esquerdo, bolso interno, você vai achar uma corda.

Atravesso o quarto com cautela, o coração batendo forte contra as costelas enquanto caminho entre os dois, os pelos nos meus braços e na nuca de pé ao passar. Eu meio que esperava que Izel aproveitasse a oportunidade para me agarrar, mas fico aliviada quando ela não ousa se mexer. Passo por mais corpos e escombros espalhados pelo pequeno cômodo; desta vez estou com medo demais das duas pessoas ainda vivas no quarto para me dar ao luxo de notar os olhos mortos que me encaram do chão. Sinto o cheiro de sangue. Ao menos estou convencida de que esse fedor levemente metálico é de sangue. Há muito ao redor. A cortina da janela quebrada voa para dentro quando uma lufada de vento quente sopra. Eu enfio a mão na mochila preta do americano e remexo o conteúdo, procurando a corda. Estou nervosa demais para olhar dentro da mochila. Não há como saber o que ele carrega nessa coisa.

Com o rolo de corda na mão, me pergunto rapidamente por que ele não usou essa amarra mais resistente em mim, em vez das tiras de pano do lençol. Eu me viro e olho apenas para o americano, esperando o que ele vai me mandar fazer a seguir, tentando evitar ao máximo trocar olhares com Izel. Ela não precisa fazer muita coisa para me intimidar.

O americano acena na direção de Izel.

— Amarre as mãos dela na cadeira pelos pulsos — instrui ele.

Meu coração dá um salto. Ainda estou fazendo o melhor que posso para não olhá-la, mas minha tentativa vai por água abaixo com as palavras dele, olhar para ela é exatamente o que faço. Ela com certeza vai me agarrar se eu chegar muito perto.

O choque em meu olhar comunica ao americano tudo o que as palavras que não consigo pronunciar não dizem.

Ele aponta a arma em sua mão discretamente para Izel, com o pulso ainda apoiado na perna.

— Ela não vai encostar em você — diz ele, olhando apenas para mim. — Se ela piscar de um jeito que eu ache ameaçador, vou matá-la, e ela sabe disso.

Olhando de canto de olho, vejo as narinas de Izel se dilatando e sua boca se contorcendo de raiva.

O americano acena na direção dela de novo, indicando que devo começar.

Remexendo a corda entre os dedos, passo por cima dos cadáveres de novo e vou até Izel, achando impossível não olhar para ela à medida que me aproximo. Seu sorriso fica mais largo. Minhas mãos estão tremendo tão visivelmente que ela nota; vira os olhos castanhos para elas sem mover a cabeça.

— Você conseguiu mesmo, desta vez — provoca ela. — Como passou pela cerca? Lydia ajudou?

Estou quase atrás dela quando ela diz o nome de Lydia e fico imóvel na hora. Izel nota minha reação e entende exatamente o que significa: preocupação. E ela tira proveito disso.

Um sorriso ainda mais sádico curva os cantos de seus lábios.

— Ah, entendi — diz ela. — Então ela ajudou mesmo. — Ela estala a língua. — Infelizmente para a pobre Lydia, ela vai ser punida. Mas você já sabia disso, não sabia, Sarai?

— Lydia não teve nada a ver com isso! — grito em espanhol, como se ainda estivesse na fortaleza.

Sei que ela está tentando me abalar, mas também sei que o que ela disse, sobre Lydia ser castigada, é verdade, e já estou me arrependendo da minha reação. Porque era exatamente o que ela queria ver. A situação toda acaba de mudar da pior maneira possível. Não envolve mais só a mim. Eu deveria ter imaginado isso antes de sair por aquela janela. Javier e Izel sabiam o quanto Lydia e eu ficamos amigas no curto espaço de tempo desde que ela chegou.

Grande parte de mim quer desistir e voltar, mas agora, com o americano controlando a situação, isso não é mais possível.

— Pare de falar e amarre as mãos dela nas costas — ordena o americano, atrás de mim.

— Tudo bem. Vai fundo. Faça o que quiser com ela — digo para Izel, dando a volta na cadeira. — Eu fugi. Ela não. É triste, mas não posso fazer nada. Não vou voltar para aquele lugar, nem por ela. — Espero que ela acredite em mim, que não me importo com o que vai acontecer com Lydia; assim talvez não a usem contra mim.

— Mandei parar de falar.

A estranha frustração no tom de voz do americano, embora controlada, basta para que nós duas prestemos atenção nele. Izel e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Faço exatamente o que ele manda, temendo que ele também atire na minha perna, me agacho atrás de Izel e começo a amarrar seus pulsos. O americano a observa, aparentemente sem piscar, esperando que ela resista e lhe dê mais motivos para atirar. Amarro bem seus pulsos, com três voltas da corda semielástica, dando um nó a cada volta. Quando a corda belisca sua pele, Izel vira a cabeça para o lado, tentando me ver, os dentes rangendo de raiva.

— Cuidado aí — diz ela rispidamente, e seu longo cabelo negro cai em um lado de seu rosto. Dou o último nó mais apertado ainda, só porque posso. Se cara feia matasse, eu já teria morrido dez vezes.

— Agora afaste-se dela — ordena o americano.

Ele se levanta da cama e tira sua maleta alongada de debaixo dela.

Eu me afasto, e quando ele faz um aceno com a cabeça, continuo a seguir suas instruções e vou para perto dele. Ele pega meu pulso com uma das mãos, a maleta com a outra e me leva até a porta. Só me solta tempo suficiente para pegar sua mochila de cima da mesa e jogá-la no ombro.

Ele deixa seu longo casaco preto. Certamente o viu, mas tenho a sensação de que o está deixando pendurado nas costas da cadeira de propósito.

— Vou matar você se me deixar aqui assim — rosna Izel através dos dentes cerrados, mas sua ameaça está carregada de desespero. Ela começa a se contorcer na cadeira, tentando soltar as mãos. — Não me deixe assim! Como vou contar para Javier o que você quer, presa neste quarto?

A luz do sol enche o quarto quando o americano abre a porta com dois dedos da mão que está segurando a maleta.

— Você vai acabar se soltando — diz ele, passando pela porta comigo ao lado. — Informe Javier de que vou manter contato, e que não perca nem jogue fora o número de celular para o qual liguei da última vez.

Ele fecha a porta com os mesmos dois dedos. Ouço a voz raivosa de Izel gritando palavrões para nós lá de dentro enquanto vamos embora.

O americano me leva até a porta do lado do passageiro e a fecha depois que entro no carro. O porta-malas se abre e ele esconde a maleta e a mochila preta lá dentro.

Ouço quatro tiros abafados fora do carro quando ele fura dois pneus de cada uma das picapes estacionadas na frente.

Ele fecha a porta do motorista e olha para mim.

— Coloque o cinto de segurança — diz, desviando o olhar e virando a chave na ignição.

O carro ganha vida enquanto afivelo rapidamente meu cinto de segurança.

— Você atira em mulher — digo baixinho.

Ele dá ré no pátio de terra diante do hotel de beira de estrada, que na verdade parece mais um barraco de cinco cômodos.

O americano pisa no freio e olha para mim de novo.

— Ferimentos superficiais — diz ele, engatando a primeira marcha. — Ela vai sobreviver. E aquilo nem é bem uma mulher. — Ele sai do estacionamento, o carro preto e brilhante deixando uma nuvem de poeira atrás de nós.

Ele está certo quanto a isso. Izel é uma mulher, mas não merece ser tratada como tal, e a culpa é dela mesma.

Enquanto corremos pela estrada poeirenta, nos afastando do hotel, o americano pega um pequeno celular preto de um compartimento do painel. Passando o dedo pela tela, ativa o viva-voz, e de repente a voz de Izel enche o carro. Fico confusa de início, mas logo entendo que, se eu estiver certa, havia mesmo um motivo para ele deixar seu casaco no quarto.

Ouço a voz de Izel saindo do pequeno alto-falante:

— Ele já foi embora! Levante e me desamarre! Anda!

Um barulho abafa sua voz, seguido de outros ruídos estranhos, impossíveis de identificar.

— Me solte dessas cordas!

Um dos homens sobreviveu?

Encaro o americano, e seus olhos continuam na estrada à frente, mas seus ouvidos estão bem abertos para as vozes vindo de sua mão. Ele sabia. Sabia o tempo todo que um dos homens deitados no chão estava se fingindo de morto. Estremeço ao pensar que passei por cima do corpo dele, ou ao lado, tão perto que ele poderia ter me agarrado pelo tornozelo e me derrubado.

Mais ruídos e estalos saem do viva-voz. Ouço Izel pedindo que o homem lhe dê um celular, e segundos depois ela está falando com Javier:

— Sí, Javier. Ele a levou. Matou os outros. Não.

Ela fica quieta quando Javier, sei disso sem precisar ouvi-lo, a ameaça do outro lado da linha.

— Sí — diz ela gravemente, como que se obrigando a concordar, embora isso exija todas as suas forças.

Então ouço o estrondo de um tiro e logo depois um thump!, e só posso presumir que ela matou o homem que a ajudou, provavelmente de raiva pelo que Javier disse.

Tudo fica em silêncio agora. Talvez Izel tenha saído do quarto. Vários segundos se passam e nada, só ouço a leve estática do próprio celular. O americano, embora não seja famoso pelas expressões faciais, parece decepcionado. Ele desliga o telefone, baixa o vidro do seu lado e o joga na estrada. Então dá meia-volta bruscamente e segue no sentido oposto.

— Pelo jeito você não ouviu o que queria — digo cautelosamente.

Ele tira a mão direita do volante e a apoia na perna.

— Não — responde.

— Você ainda duvida do que eu falei — digo.

Com a visão periférica, percebo que ele virou um pouco a cabeça para me olhar. Não me sinto à vontade o suficiente com ele para retribuir seu olhar quando ele me instiga a isso. Nunca vou me sentir.

Mas ele não responde.

Um minuto depois, digo:

— Não sou uma prostituta. Ela só estava tentando atingir você, caso sinta alguma pena de mim.

Talvez eu esteja insultando sua inteligência, como Izel fez em certo momento, mas é minha maneira de me defender da acusação dela. Quero que ele saiba. E não quero que pense isso de mim.

Continuo, finalmente olhando para ele, agora que se virou para a estrada de novo.

— Mas você nunca sentiu pena nenhuma de mim.

Mais uma vez, minha tentativa de puxar conversa com ele parece passar despercebida, e eu desisto e encosto a cabeça na janela do carro.

— Sei que você não é uma prostituta — diz ele.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Foram raras as ocasiões em que vi qualquer outra parte do México durante o dia, fora a fortaleza. Javier não gostava muito de turismo, nem mesmo de sair de carro nas manhãs de domingo. Passei boa parte da vida presa atrás daquelas cercas, e só saía quando Lydia e eu éramos realocadas com as outras garotas, antes que perigosos chefões do tráfico fossem visitar Javier. Era o modo de Javier de nos manter “a salvo” caso algum acordo desse errado. Mas sempre viajávamos à noite, por isso, apesar da situação em que me encontro agora, fico levemente admirada ao ver pela janela do carro a luminosa paisagem mexicana passando.

Estamos rodando há duas horas.

— Estou com fome — digo.

Alguns segundos de silêncio se passam antes que ele responda:

— Não tenho nada aqui no carro.

— Bom, a gente não pode parar em algum lugar?

— Não.

Se eu conseguisse ao menos fazê-lo parar de responder às minhas perguntas desse jeito, ficaria quase satisfeita.

— Se você tem medo de que eu tente fugir — digo, me virando de lado para vê-lo melhor —, vá a um drive-thru. Não como nada desde ontem de manhã. Por favor...

— Não tem nenhum drive-thru por aqui.

— E onde é aqui, afinal? — De repente, minha fome fica em segundo lugar. — Pelo menos me conte onde passei os últimos nove anos da minha vida.

Vi uma placa de trânsito há vários minutos, mas não reconheci o nome de qualquer coisa que tivesse visto nos mapas que olhei muitas e muitas vezes, a maioria de um livro escolar americano de 1997.

— Estamos agora 8 quilômetros ao sul de Nacozari de García.

Suspiro, frustrada comigo mesma por não fazer ideia de que lugar seja esse também.

— Você está a menos de duas horas da fronteira americana — diz ele, e isso me deixa atordoada.

Eu me viro completamente no banco, com as costas contra a porta do carro.

— Mas você disse que eu estava... você fez parecer que eu estava a dias da fronteira.

— Não. Eu só informei que a distância era maior do que eu pretendia percorrer com você como companhia.

Cruzo os braços furiosamente. Nem imagino de onde tiro coragem para ficar com raiva de alguém como ele e dar alguma indicação disso, ainda por cima. Lembrando rapidamente onde estou e com quem estou, assumo minha expressão tímida de novo.

— É para lá que você vai? — pergunto. — O homem que você deve matar para Javier está nos Estados Unidos?

— Sim.

Silêncio.

Eu caio no choro. As lágrimas vêm do nada, queimando meus olhos e nariz. Mas não estou chorando porque estou muito perto de casa, estou chorando porque a personalidade estranha e indiferente dele e suas respostas monossilábicas são o suficiente para que eu queira, figurativamente, me matar. Soluço na palma das mãos, pondo para fora meu medo e minha frustração com o americano, com tudo mais que trago em mim: o alívio por ter finalmente fugido, o medo de ser mandada de volta para lá, a preocupação pela surra que Izel vai dar em Lydia, o simples fato de eu estar em uma situação muito longe de ser fácil de resolver, meu estômago vazio, minha garganta seca, os dois dias sem banho, o fato de que posso morrer a qualquer momento. A única coisa boa que me ocorre é que ainda estou de fato viva e não tão longe de casa quanto pensava.

Sinto o carro virar à direita quando ele pega outra estrada.

Olho para ele, fungando para engolir o resto das lágrimas. Enxugo as bochechas com as mãos. Ele não diz nada, não tenta me consolar nem faz perguntas. Não parece se importar, e eu também não me importo muito com o fato. Não esperava mesmo isso dele.

Mais ou menos meia hora depois, paramos na frente de uma velha loja de conveniência à beira da estrada. Só há uma picape parada ali, um Ford branco com as portas enferrujadas.

— Se quiser comida — diz o americano, desligando o motor —, entre e coma.

Fico surpresa por termos parado, e para que eu possa comer. Ele vai até meu lado do carro e abre a porta, provavelmente para ficar junto de mim o tempo todo, e não por cavalheirismo. Fica de pé ali, esperando pacientemente que eu saia. Eu saio, por fim, depois de enfiar os pés descalços nos meus chinelos de dedo, que esperam no assoalho do carro.

O lugar não pode ser chamado de lanchonete de beira de estrada; acho que precisaria de algumas mesas a mais para isso, mas tem um lugar para sentar e comer, em um canto escuro perto da única porta. Peço um sanduíche: é de frango daqueles congelados, para esquentar no micro-ondas; o americano, nada além de café preto. Nós dois parecemos perdidos aqui. Ambos, é óbvio, sem nenhum gene hispânico, em um lugar que claramente não é uma cidade turística, ele usando uma calça social preta cara e sapatos pretos, que já devem ter sido lustrosos mas que agora estão cobertos por uma fina camada de poeira. Sei que devo estar cheirando muito mal. Nem lembro quando foi a última vez que usei desodorante.

Engulo metade do sanduíche e tomo quase toda a garrafa de água. Aprendi há muito tempo a jamais tomar água por aqui. A não ser que venha de uma garrafa lacrada, provavelmente me fará passar mal.

O americano toma seu café aos poucos, lendo algum tipo de jornal local. Se eu não soubesse a verdade, poderíamos quase passar por um casal atípico tomando café da manhã em qualquer cidadezinha americana. Atípico porque eu só tenho 23 anos, e o americano é mais velho do que eu. Trinta e tantos anos, talvez. Se eu não soubesse o que ele era e apenas o visse sentado aqui um dia, como ele está agora, com os pés no chão e os cotovelos em mangas de camisa social apoiados na mesa, eu o acharia atraente, para alguém mais velho. Ele é alinhado, embora tenha uma sombra de barba desenhada no rosto. Tem maçãs do rosto salientes e olhos verde-azulados penetrantes que parecem conter tudo sem revelar nada. E é bem alto, magro e assustador. Acho notável como ele me apavora mais do que Javier jamais apavorou, mesmo sem precisar dizer uma palavra. Ao mesmo tempo, sinto que estou melhor com o americano do que jamais estive com alguém como Javier.

Ao menos por enquanto. Isso vai mudar, tenho certeza, quando ele tentar me devolver para Javier.

Mas eu morro antes de permitir que isso aconteça.

— Você pretende me dizer seu nome? — pergunto.

Ele ergue os olhos do jornal sem mexer a cabeça.

Sinto imediatamente que ele não quer me contar e se envolver tanto com sua “refém”, mas por fim resolve me agradar:

— Victor.

Fico tão surpresa por ele ter me contado que levo um segundo para pensar no que dizer a seguir.

Tomo um gole d’água.

— De onde você é? — pergunto.

Vale a tentativa.

— Por que não termina de comer? — sugere ele, voltando a ler o jornal.

— Você sabe meu nome. Sabe de onde sou. Por que não me distrai um pouco, Victor? — Meu tom amargo de voz não foi acidental.

Imagino que, se ele fosse me matar, eu já estaria morta, então não tenho tanto medo dele quanto minha consciência diz que eu deveria ter.

Ele suspira, entediado, e balança um pouco a cabeça.

— Nasci em Boston — diz ele. — Tenho uma irmã. Um ano mais nova que eu. Minha mãe está em algum lugar de Budapeste. Meu pai está morto. Ele foi o primeiro que eu matei.

O pouquinho de bravura que eu havia reunido se esvai pelos poros na hora. Olho cuidadosamente para ambos os lados, procurando o homem atrás do balcão que nos vendeu a comida. Ele está do outro lado da loja, varrendo o chão, sem prestar um pingo de atenção em nós.

Olho de novo para... Victor, engolindo nervosamente o que me resta de saliva na boca.

— Você matou seu pai? — Tenho que acreditar que foi por algum motivo óbvio: o pai batia na mãe dele, alguma coisa desse tipo.

Ele assente.

— Por quê? Quantos anos você tinha?

— Acho que você já sabe o suficiente a meu respeito — diz ele, tomando um gole de café, segurando delicadamente o copinho branco de isopor com seus dedos longos e bem cuidados. — Você pediu para saber mais sobre mim e eu contei. Foi um favor. Não um convite para fazer mais perguntas.

Eu me pergunto por que ele me contou uma coisa dessas, para começar. Talvez só esteja tentando me dominar pelo medo, para que eu pare de falar de uma vez.

Eu me levanto da mesinha. Ele ergue os olhos do jornal de novo.

— Preciso usar o banheiro — informo.

Deixando o jornal na mesa ao lado do café, ele fica de pé para me acompanhar. Ele me segura delicadamente pelo pulso e eu encolho o braço, fazendo que não com a cabeça.

— Posso ir sozinha — insisto.

— Sim, mas eu vou com você.

Cruzo os braços e pisco, surpresa.

— Você não está falando sério. Não vou usar o banheiro com você ali.

— Então não vai usar.

Minha boca se abre e eu inspiro rápido. Meus olhos vão e vêm entre ele e a porta atrás, que espero que seja de um banheiro — não há nenhuma placa clara indicando nada. Percebo seu aborrecimento comigo transparecer um pouco em seu rosto; eu me sinto como se tivesse interrompido seu ritual noturno de tomar um copo de vinho ouvindo música clássica.

Não levo muito tempo para entender, na verdade.

— Duvido que vá ser como nos filmes — digo. — Eu fugindo pela janela depois que você toma a decisão infantil de me deixar usar o banheiro sozinha. — Tento não bancar a espertinha; só estou salientando o óbvio. Espero que ele entenda isso.

— É pegar ou largar — diz ele. — Se você não for agora, vai ter que segurar por um bom tempo.

Mordo a bochecha por dentro.

— Tudo bem — aceito, cedendo, e começo a andar à sua frente.

Ele me segue até o banheiro. Há apenas uma privada, que parece nunca ter sido lavada nas décadas desde que está ali. Quatro paredes sujas com tinta descascando e uma marca de queimado perto da janela minúscula, através da qual duvido que eu conseguiria me espremer se tivesse a chance de tentar. O cômodo é tão pequeno que, estendendo a mão, eu poderia tocar Victor, parado na porta de costas para mim, com as mãos unidas na frente do corpo. Fico apenas um pouco constrangida — infelizmente, fazer xixi diante de um maníaco também não é algo novo para mim —, abaixo o short e a calcinha e me sento. Quando termino, preciso esperar até parar de pingar. Papel higiênico é realmente um luxo que os americanos passaram a achar corriqueiro.

Enquanto me visto, noto de trás que os ombros de Victor ficam tensos. E então ouço vozes, como se alguém tivesse entrado na loja.

Victor enfia a mão na parte de trás da calça, por baixo da camisa, puxando uma arma, seu forte dedo indicador já no gatilho.

— O que foi? — pergunto, amedrontada; minhas mãos já estão tremendo.

Victor abre uma fresta da porta e olha para fora, pondo a mão livre para trás, como que me pedindo para ficar quieta.

Então ele se vira para mim rapidamente e sussurra:

— Fique aí.

E antes que eu possa questioná-lo ou protestar, desaparece porta afora, e mais uma vez estou escondida dentro de um banheiro. Só que este não tem uma banheira para ajudar a me proteger de balas perdidas, e eu não acho isso nada reconfortante.

Apesar do medo, não consigo deixar de tentar ver o que está acontecendo, por isso vou até a porta, abro uma fresta, como Victor fez, e encosto o corpo nela, espiando. Meu hálito quente e irregular preenche o pequeno espaço entre a porta e meu rosto. Mal consigo enxergar o balcão onde o dono da loja está encostado, com a vassoura ainda nas mãos envelhecidas e gorduchas. Mas não consigo ver o rosto dele. Nem Victor. Vários longos segundos cheios de ansiedade se passam, e ainda nenhum tiro. Interpreto isso como um bom sinal. Noto uma silhueta passando pela minha linha de visão, mas não é Victor. Então outro homem aparece.

Ouço vozes falando em espanhol, embora não sejam totalmente claras para mim aqui atrás da porta. Algo sobre uma peça de carro, e alguns segundos depois o dono da loja diz que tem a peça, mas que vai precisar pegar nos fundos. Ainda não vejo sinal de Victor. Será que ele me largou aqui? Pensar nisso, estranhamente, me deixa com mais medo ainda, e eu abro a porta só mais um pouco, tentando ver melhor. De início, meu pânico injustificado de ser deixada sozinha aqui me faz questionar minha sanidade, mas depois percebo mais uma vez que, apesar de Victor ser um assassino e de eu estar sendo usada como moeda de troca em um perigoso jogo de pague-ou-morra, ainda sou uma garota sozinha nas partes mais perigosas de um país que não é o meu.

Gostando ou não, Victor é minha única proteção até eu cruzar aquela fronteira, e vou ficar com ele o tempo que puder, apesar de precisar desesperadamente fugir dele também.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Finalmente, vejo de relance o rosto dos dois homens e fico aliviada ao perceber que eles não são nada familiares. Começo a acreditar que só estão de passagem. Estou me sentindo meio claustrofóbica, então assumo o risco de abrir a porta toda. Respiro fundo para me recompor, e saio do banheiro tão casualmente quanto qualquer cliente que acaba de voltar do toalete.

Victor está novamente sentado à mesa, lendo o jornal como antes, quando chego ao canto.

Ele me olha o bastante para que só eu note que não está contente.

— Você está pronto? — pergunto, em inglês. — Eu estou, com certeza. Aquele banheiro é nojento — acrescento, fingindo asco das instalações sanitárias, com o ar de uma garota americana arrogante.

Espero ser suficientemente convincente.

Victor fica de pé e pega minha mão desta vez, em vez do meu pulso, entrelaçando os dedos nos meus. O gesto, de início, me surpreende. Mas logo percebo que ele só está embarcando na farsa.

Os dois clientes e o dono da loja me encaram, e de certa forma sinto que minha imitação de turista está atraindo mais do que desviando a atenção. E talvez seja porque turistas nunca vêm para estas bandas.

Victor aperta minha mão em reprovação.

Segundos depois, em um movimento aparentemente rápido demais para que eu acompanhe, cada um dos clientes leva um único tiro na cabeça e cai morto diante de mim. Cambaleio para o peito de Victor, tapando os ouvidos em uma reação atrasada ao som abafado dos tiros. Victor solta minha mão e me segura pela cintura, me pegando com um braço, com a arma na outra mão.

Ouço uma porta bater na lateral da loja e levanto a cabeça, ainda colada a Victor, usando seu corpo como apoio, para ver o dono da loja, pela janela sem vidro, correndo sabe-se lá para onde. Victor me empurra para o lado e se afasta para apontar a arma através da janela. Um único tiro derruba o homem antes que ele saia do alcance, seu corpo desabando no chão e levantando poeira, que depois é levada pelo vento.

Abro caminho pela loja, passando por cima dos dois corpos, me reaproximando de Victor, com o coração batendo descompassadamente.

— Por que você fez isso?!

Ele segura meu pulso de novo e me arrasta com ele até os corpos. Tento me desvencilhar, mas ele é forte demais.

— Eles eram inofensivos — argumento, exasperada, sentindo as lágrimas ardendo no fundo da minha garganta de novo. — E o dono... o que... por que matá-lo?!

Paramos perto de um dos corpos e Victor solta meu pulso para se ajoelhar ao lado dele. Enfiando a mão no bolso de trás da calça jeans do morto, ele tira um maço de notas mexicanas. Depois de procurar em meio às notas e não achar nada importante, ele joga o dinheiro nas costas do morto e mexe em seus outros bolsos, encontrando uma arma escondida sob o cinto. Mas não há nada de extraordinário nisso. Ele faz o mesmo com o outro homem, ainda sem encontrar nada interessante além de um molho de chaves que ele decide guardar no bolso.

— O que está procurando?

— Você devia ter ficado no banheiro, como eu mandei.

Fico surpresa com seu tom de acusação; é bem atípico, para ele, demonstrar tanta emoção, mesmo não sendo muita.

— Não eram homens de Javier — protesto. — Morei lá tempo suficiente para me lembrar de cada um deles.

Victor fica de pé, parecendo ainda mais alto do que antes, mas sei que é só o medo que sinto dele que engana meus olhos.

— Você se lembra daqueles que viu — diz ele. — Mas é muito boba se acha que ele só tem aqueles homens.

Eu suspiro.

— Mas eles só estavam perguntando de peças de carro. Vai ver que o carro deles deu problema. Ouvi a conversa.

— Você ouviu um código — me corrige ele. — Ele perguntou para o dono sobre uma peça que não é dessa picape. — Ele olha pela janela da loja, onde há outra picape estacionada. — Quando o dono da loja disse que tinha a peça, estava confirmando que você estava aqui.

Continuo a fingir, me sentindo boba, tentando me recuperar do meu momento de estupidez.

— Então por que eles não fizeram nada?

Ele balança a cabeça de leve.

— Estavam seguindo a gente — diz ele. — Ou iam tentar nos segurar aqui tempo suficiente para chamar mais homens. Agora venha. A gente precisa ir embora.

Quando não o sigo rápido o suficiente, ele pega minha mão e me leva para fora da loja, e vamos direto para a picape mais nova, que não é também nada além de uma lata-velha, mas mais nova do que o Ford enferrujado que devia pertencer ao dono.

Victor abre a porta do lado do passageiro.

— Entre — ordena ele.

Confusa, apenas olho para ele, mas, quando dou por mim, ele está me erguendo do chão e me obrigando a entrar na cabine. Não ouso resistir nem desperdiçar o pouco tempo que sei que nos resta; depois, espero enquanto ele pega as armas e malas de seu carro e deixa tudo entre nós, no assento. Ele bate a pesada porta depois de entrar pelo outro lado.

— O que a gente está fazendo, exatamente?

Victor encontra a chave certa para dar a partida na primeira tentativa, e a picape ganha vida, rugindo e cuspindo. Pega a alavanca próxima ao volante, engata a marcha e quase bate no toldo precário de madeira da frente da loja ao dar a volta e sair em alta velocidade.

— O carro chama muita atenção — diz ele. — Eu precisava ter me livrado dele antes, mas encontrar um carro que não quebre depois de 30 quilômetros por essas bandas é uma loteria.

— Eu me perguntei mesmo por que você usava um carro tão bacana por aqui — digo.

— Porque eu ainda não era um alvo.

— Mas agora você é, por minha causa.

Olho pelo retrovisor lateral, vendo a poeira rodopiando caoticamente no rastro da picape. Passamos rápido pela paisagem nua, a picape sacolejando sobre buracos até que chegamos a uma rodovia asfaltada.

— Victor? — digo, e ele olha para mim como se chamá-lo pelo nome tivesse tocado em algum nervo enigmático.

Decido não dizer o que pretendia, porque já disse antes e não fez diferença nenhuma.

Desvio o olhar e sinto que ele também não olha mais para mim.

— Deixa pra lá — digo.

Continue seguindo o novo plano, Sarai, digo a mim mesma, e me sinto ridícula ao temer por uma fração de segundo que ele também possa ouvir meus pensamentos.

Vou esperar até passarmos a fronteira, e então farei o que for preciso para fugir dele, mesmo que isso signifique ter que matá-lo.

~~~

Duas horas depois, cruzamos a fronteira e entramos no Arizona sem nenhum problema com a guarda. Victor falou com um inspetor da patrulha da fronteira, que claramente viu que tínhamos uma maleta de aspecto suspeito e duas mochilas no meio do banco da frente. Eles trocaram palavras em espanhol, embora fossem poucas e não fizessem muito sentido para mim, o que me levou a crer que, assim como os homens da loja de conveniência, estivessem falando em código.

Nem a maleta nem as mochilas ou a picape foram revistadas. Não me importa saber por quê. Não faz diferença nenhuma para mim se Victor tem contatos de algum tipo com a patrulha de fronteira que lhe permitem passagem facilitada para dentro e para fora dos Estados Unidos. Isso ficou óbvio. Mas não me importa. Só o que me importa é meu próximo passo.

Preciso de todas as minhas forças para esconder meu alívio e ansiedade em saber que, depois de nove anos, finalmente estou em solo americano de novo. Quero abrir a porta da picape agora mesmo, a 80 quilômetros por hora na estrada, e pular, rolando toda ralada e ensanguentada pela paisagem desértica para a minha liberdade. Mas não posso. Preciso esperar um pouco mais, ao menos até pararmos em algum lugar onde eu tenha como me esconder. Uma cidade, talvez. Um postinho de gasolina solitário no meio do nada não serve. Se eu tivesse a sorte de conseguir fugir, só poderia ir para a planície nua, que se estende em todas as direções até onde a vista alcança.

Não quero acabar como o dono da loja, com a cara no chão e uma bala nas costas.

Finalmente, vejo um aglomerado de luzes e prédios no horizonte, minúsculos em comparação com a cordilheira de montanhas ao fundo. Logo paramos em um estacionamento atrás de um hotel de cinco andares em Douglas, Arizona.

Saio da picape e fecho a porta enquanto Victor pega suas malas do banco da frente. Corro os olhos pela área, procurando a melhor direção para onde fugir, que tenha lugares para me esconder quando ele vier atrás de mim, e vejo que a única alternativa é atravessar a rua, onde há mais prédios.

Olho disfarçadamente para Victor e uso o segundo que ele leva pegando as malas para correr para a rua. Driblo o tráfego leve e, evitando facilmente os carros, chego ao outro lado, passando a toda velocidade por um prédio pequeno com janelas em arco. Meus chinelos estalam sob meus pés enquanto corro. Quase tropeço quando meus pés pisam com força no concreto e a borracha gasta se dobra embaixo deles. Mas recupero o equilíbrio a tempo e aperto o passo, olhando para trás somente para ver se Victor está vindo atrás de mim. Eu o vejo correndo em meio a um pequeno grupo de pessoas, e minhas pernas aceleram ao máximo, tentando me levar para o mais longe possível dele. Já quase sem fôlego, forço meu corpo a seguir em frente, correndo ao lado de uma fila de carros estacionados e por trás de mais prédios. Vejo uma mulher com a bolsa no ombro andando na minha frente.

— Senhora! Me ajude, por favor!

Ela me olha enquanto me aproximo, seu cabelo louro caindo nos ombros.

— Por favor, a senhora precisa me ajudar! Chame a...

Victor aparece à minha direita, depois de ter dado a volta no prédio mais próximo, em vez de continuar diretamente atrás de mim. Ele continua perto do prédio, escondido. Só eu posso vê-lo. Percebo de relance a arma em sua mão, ao lado do corpo, encostada na perna.

— O que aconteceu? Você está bem? — pergunta a mulher, segurando com firmeza a bolsa debaixo do braço, provavelmente para evitar que eu a roube.

Meus olhos correm entre os dois, de lá para cá, e em certo momento a mulher vira a cabeça para a esquerda, tentando ver o que estou olhando, mas Victor continua escondido nas sombras.

Sei por que ele não está se mexendo. Sei por que a arma está na mão dele, e não escondida na parte de trás da calça. Se a mulher vai viver ou morrer, é uma escolha totalmente minha.

— Moça? — pergunta ela de novo, parecendo preocupada, mas desconfiada de mim ao mesmo tempo. — Devo chamar a polícia?

Tento recuperar o fôlego, com a mão no peito, mas percebo que não é mais a corrida que me deixa ofegante. Pensar em Victor atirando nesta mulher por minha causa...

Ela enfia a mão na bolsa e puxa um celular.

Victor ergue a arma apenas um pouco.

— Não! — grito, e a mulher fica imóvel, com o celular em sua mão cheia de anéis.

Eu gesticulo para ela, agitada.

— Desculpe, achei que a senhora fosse outra pessoa.

Ela não parece convencida. Estreita os olhos para mim.

Finjo uma risadinha.

— Sério, desculpe mesmo. Meus amigos e eu, a gente estava... deixa pra lá. Preciso ir.

Eu me viro e começo a correr um pouco na direção de onde vim, deixando-a parada ali, perplexa.

Minutos depois, estou parada ao lado da picape, de braços cruzados, esperando. Mais duas pessoas passam, uma delas até acena e sorri para mim, porém, mais uma vez, não posso pedir ajuda. Não quero correr o risco.

Victor se aproxima tão casualmente como se estivesse voltando de uma caminhada matinal. Ele abre a porta do lado do motorista de novo e pega as bolsas. De costas para ele, sinto seus olhos fixos em mim do outro lado da picape.

— Você é um canalha assassino — digo devagar, apertando meu braço nervosamente.

— Vamos entrar — diz ele, mas depois acrescenta, como se tivesse acabado de se lembrar: — E se você fugir de novo ou tentar qualquer coisa, garanto que vou mandar dizer que aquela sua amiga... Lydia, não é?... a ajudou mesmo a fugir.

A porta da picape se fecha com estrondo enquanto fico ali, paralisada.

Eu o sigo voluntariamente para dentro do hotel.

O saguão é um grande espaço decorado com claraboias e lindos quadros. Um vitral fosco se estende por muitos metros pelo mezanino no alto da escadaria de mármore. O enorme teto é sustentado por altas colunas também de mármore. Por dentro, este prédio parece não combinar com a cidadezinha poeirenta ao redor. Victor me leva escada acima, depois de fazer o check-in, e meu interesse pelo ambiente diminui com sua voz:

— Pode tomar banho se quiser.

Ele deixa uma bolsa no chão entre as camas, a outra na mesa perto da janela que dá para a cidade. A maleta lustrosa, que presumo que contenha as armas, ele deixa no pé da cama de casal mais próxima da porta.

Ele levanta ambos os braços e abre bem as cortinas da janela. Está escurecendo lá fora. Vejo o brilho fraco das poucas lâmpadas da iluminação pública.

— Victor — digo, mas ele me interrompe:

— Prefiro que não me chame pelo meu nome.

— Por que não? É o seu nome. Como é que vou chamar você? — Fico surpresa toda vez que o desafio, por pouco que seja. Porque, por dentro, estou completamente apavorada com o que ele pode fazer comigo.

— Não importa — diz ele, sentando-se à mesa e abrindo o zíper da bolsa. — Vá tomar banho.

— Olha — começo, dando a volta nas camas e me aproximando dele —, eu estou com medo. Você me mata de medo. Não vou fingir que não estou. Estou apavorada com o que está acontecendo comigo...

— Você tem uma maneira estranha de demonstrar isso — diz ele, não se dando ao trabalho de me olhar. Ele tira da bolsa algum aparelho digital, menor do que um laptop. — Eu diria que está anestesiada com o trauma, então a situação não afeta você como deveria.

Ele deixa o aparelho na mesa e a bolsa no chão, perto dos pés. Acho que o aparelho é um dos tais tablets.

Engulo em seco, erguendo o queixo.

— Talvez esteja. De certa forma. Mas o que isso tem a ver com chamar você pelo nome? — Ele tem razão em sua acusação, mas o que eu passei não é da conta dele. A menos que ele pretenda me ajudar, e já deixamos claro que isso é só um sonho meu. — E por que você se importa?

— Eu não disse que me importava.

— Então não se meta — digo rispidamente.

O simples fato de ele nem olhar para mim metade das vezes que fala comigo me dá raiva. E quanto mais ele faz isso, quanto mais age como se nem valesse a pena me olhar nos olhos, mais isso me enfurece. E quando eu fico com raiva, choro. Sempre fui assim, desde que me conheço por gente. E odeio isso. Nunca grito, xingo, quebro coisas ou bato em alguém. Eu choro. Toda maldita vez.

Quando as lágrimas começam a encher meus olhos, viro de costas para ele e marcho rapidamente para o banheiro. Mas paro e me viro para encará-lo mais uma vez, com as unhas cravadas nas palmas das mãos, ao lado do corpo.

— Vai pro inferno! — é tudo que consigo dizer, minha patética tentativa de explodir com palavras em vez de lágrimas.


CAPÍTULO SETE

Sarai

Parece que passou uma eternidade desde a última vez que tomei uma ducha quente assim. Eu tomava chuveiradas ocasionalmente na fortaleza — era a única que tinha esse luxo —, mas nunca assim. Lá era sempre com água morna, no máximo, mas nunca tão quente a ponto de arrancar minha pele. Eu nem abro a água fria, inicialmente, me dando ao luxo de curtir o calor, até que fica quente demais e sou obrigada a abrir. Quero ficar debaixo do chuveiro para sempre, sem pensar no que me espera do outro lado daquela porta, mas a realidade de tudo acaba ganhando, e é só nisso que penso. Eu me sento no chão do box e ergo os joelhos para o peito, abraçando-os fracamente e deixando a água correr pelo corpo.

Penso muito em Lydia, me perguntando se ela está bem ou se Izel bateu nela bem mais do que de costume, só por minha causa. Sei que sim. E, embora eu não pudesse ter feito nada para impedir, prometi algo a Lydia que pretendo totalmente cumprir. Não vou deixar que se repita para sempre.

Mas se eles descobrirem que ela sabia que eu ia fugir...

Depois do que parece uma hora, a água quente começa a esfriar e eu saio, enrolando o cabelo em uma toalha que encontro dobrada sobre o reservatório da descarga. Eu queria ter roupas limpas, uma calcinha pelo menos — deixei minha fronha de roupas no carro de Victor quando o abandonamos. Visto meu short de ginástica imundo sobre a calcinha e a camiseta azul sobre os seios nus. Javier me proibia de usar sutiã.

Quando saio do banheiro, Victor ainda está sentado no mesmo lugar de antes. Mas a maleta não está mais no pé da cama.

Quando me aproximo da cama onde estava a maleta e começo a me sentar, Victor levanta a cabeça e me olha nos olhos. Ele não diz uma palavra, mas sinto que algo nele está diferente. Por um momento fico desconcertada com sua expressão estranha, mas aquele seu olhar silencioso, que de certa forma duvido que ele saiba que consigo perceber, desperta completamente meu interesse. Parece quase... trágico.

— Fale da sua mãe — diz ele.

Victor vira a poltrona de frente para mim, me dando sua atenção total, apoiando os braços na lateral da poltrona, deixando os dedos casualmente para fora das extremidades. Ele arregaçou as mangas da camisa branca quase abaixo dos cotovelos.

Completamente surpresa com sua pergunta, eu apenas o encaro com um olhar vazio.

— Por quê? — pergunto apenas, sem saber o que ele pretende fazer com a informação.

Eu me sento no pé da cama, esfregando a toalha no cabelo com as duas mãos para enxugá-lo. Mas é tudo uma farsa; cada fibra da minha consciência está concentrada em Victor e em cada movimento seu.

Ele não explica. E, temendo que ele decida mudar de ideia e volte a se lixar para mim, pergunto, antes que seja tarde demais:

— O que quer saber?

Esfrego a última parte de cabelo com a toalha e a jogo no chão.

Ele vira a cabeça suavemente para o lado e cruza os dedos das mãos à sua frente, os cotovelos ainda apoiados nos braços da poltrona.

— Como ela conheceu Javier?

Penso nisso por um momento.

— Não sei — respondo. — Isto é, sei que teve a ver com drogas e sexo. Como todos os outros homens que ela levou para casa. Eu não conversava muito com minha mãe.

Ele inclina a cabeça para o outro lado, pensativo. O que está esperando? Eu o avalio por um momento, tentando fazer alguma ideia do que causou seu interesse pela minha mãe, e finalmente decido contar a ele tudo o que posso. Talvez porque há muito tempo precise que alguém me ouça. Lydia e as outras garotas estavam traumatizadas demais por seus sequestros e experiências na fortaleza para servirem de confidentes. E a vida delas era muito mais caótica do que a minha, muito mais... injusta. Eu jamais conseguiria falar com as outras garotas dos meus problemas insignificantes enquanto elas eram espancadas, estupradas e torturadas mental e emocionalmente.

Eu estava no paraíso, em comparação a elas.

Afasto esse pensamento e volto a olhar para Victor.

— A primeira vez que vi Javier, já sabia que ele era diferente dos outros homens que minha mãe levava para casa. Mais poderoso, de certa forma. Ele andava com um ar imponente. Destemido. Confiante. Os outros homens, e foram muitos, eram uns cafajestes. Nem conseguiam esperar sair da nossa sala de estar minúscula e de perto de mim para começarem a apalpar minha mãe. Eram nojentos, patéticos.

— E Javier não era? — pergunta ele.

Balanço a cabeça, olhando para a parede, agora.

— Era nojento pelo que era e pelo modo como usava minha mãe, sim, mas era profissional demais para ser patético.

— Profissional? — Ele me olha com uma leve curiosidade.

— Sim — confirmo, assentindo. — Como falei, ele era poderoso. Embora eu não soubesse disso na época, não soubesse o que ele era, sabia que era diferente. Parei de me preocupar com minha mãe e com as situações em que ela se metia quando eu tinha 12 anos. Já estava acostumada com tudo, àquela altura. Ela sempre conseguia voltar para casa. Apesar de chapada e às vezes espancada, nunca chamou a polícia, nem parecia ter medo de nada, então acho que comecei a acreditar na segurança dela tanto quanto ela acreditava. — Olho para a parede de novo, com as mãos pressionadas na beirada da cama, uma de cada lado, meu corpo afundando entre os ombros. — Mas, quando vi Javier, voltei a temer por ela. E a temer por mim.

Olho nos olhos de Victor.

— Assim que ele me viu, percebi que minha vida tinha acabado. Não sabia como nem por quê, naquele momento, mas percebi e pronto. O modo como ele me olhava. Eu sabia...

Meu olhar baixa para o chão acarpetado.

— Por que você está me perguntando essas coisas, afinal? — Eu me viro para ele de novo. — Por que tanto interesse, de repente?

Eu o vejo olhar para o tablet na mesa à sua frente. Também olho para o tablet por uma fração de segundo, imaginando todos os segredos que contém. Victor se levanta da mesa e meus olhos o seguem enquanto ele se aproxima de mim.

— Vire de costas — manda ele, de pé diante de mim.

Viro a cabeça o suficiente para ver seu rosto; ele está perto demais, invadindo meu espaço, e isso é assustador.

— Quê? — pergunto, confusa e com uma péssima sensação.

Ele se curva, enfia a mão na bolsa entre as camas e pega outra corda como a que usei para amarrar Izel à cadeira.

— Vire de costas — repete ele.

Balanço a cabeça freneticamente.

— Não — digo, e começo a recuar em cima da cama.

Ele me agarra pela cintura e me vira de barriga para baixo.

— Preciso dormir um pouco — diz ele, apertando o joelho, ainda que cuidadosamente, no meio das minhas costas. — Você vai ter que se conformar. Sinto muito.

— Não me amarre! Por favor! — Tento me desvencilhar, mas ele me segura por um pulso com a mão livre e o prende às minhas costas. Eu luto, esperneio e me agito, mas ele é forte demais, e eu pareço uma corça sob a pata de um leão. — Você sente muito?! Então não faça isso! Por favor, Victor!

Seu aperto ao redor dos meus pulsos, agora os dois amarrados às costas, fica mais violento, e não posso deixar de crer que isso tem tudo a ver com o fato de eu tê-lo chamado pelo nome, e não com minha relutância. Com um lado do rosto pressionado contra o colchão, sinto a corda se enrolando em meus pulsos, e então ele a amarra com vários nós firmes. Depois de se certificar de que não vou conseguir soltar as mãos, ele se levanta da cama e pega meus tornozelos. Eu encolho uma das pernas e consigo acertar um pontapé em cheio na barriga dele, mas isso não o abala. Ele apenas me olha, agarra minha perna no ar na segunda tentativa e amarra meus tornozelos com uma das mãos.

Lágrimas escorrem dos meus olhos. Mas eu paro de resistir.

Ele me vira cuidadosamente de lado, de frente para a parede, com as costas voltadas para a cama onde sei que ele vai dormir. A ideia dele atrás de mim desse jeito a noite toda, sem que eu possa vê-lo, me deixa uma pilha de nervos.

A lâmpada entre as camas se apaga, deixando o quarto imerso na penumbra. Ainda está cedo, o sol acaba de se pôr, mas estou tão exausta que parecem duas da manhã.

Choro baixinho no travesseiro por algum tempo. Pensando em minha mãe e em todas as coisas que Victor me obrigou a lembrar. E penso em Lydia e na sra. Gregory, que morava a dois trailers do nosso; as duas são tudo o que realmente tive de família na vida. E quando a posição desconfortável dos meus braços fica dolorosa demais, viro desajeitadamente o corpo para o outro lado. Olho através da escuridão e vejo Victor na outra cama, deitado de lado, de costas para mim. Ele ainda está vestido dos pés a cabeça. Noto que ao menos tirou os sapatos, mas seus pés estão vestidos em finas meias sociais pretas. Eu me pergunto se ele ainda está acordado.

— Victor?

— Durma — diz ele, sem mover um músculo.

— Quando você me levar de volta para Javier, vai me dar uma arma, pelo menos?

O silêncio preenche o espaço entre nós.

— Vai? — pergunto de novo, quebrando esse silêncio. — Isso vai me dar uma chance de lutar. Eu mesma vou matar Javier, ou vou morrer sabendo que tentei.

O ombro de Victor sobe e desce devagar, como se ele tivesse acabado de inspirar profundamente.

— Vou pensar. Agora durma.


CAPÍTULO OITO

Victor

Sou acordado às 3h42 da manhã, encarando o cano da minha 9mm.

— Qual é a senha? — exige a garota.

Ela mantém uma distância respeitável. Impressionante.

— A senha — repete ela em tom duro, apontando com a cabeça para a mesa onde está meu iPad.

Eu não me mexo. Ela pode ter coragem, mas está agitada mesmo assim, e seria muito azar se atirasse em mim por acidente.

— F maiúsculo, seis, oito, k minúsculo, três, zero, zero, cinco, l maiúsculo, p maiúsculo, w minúsculo, seis. — Eu poderia facilmente tomar a arma antes que ela atirasse, no ângulo em que ela está, mas não estou pronto para fazer isso. Ainda não.

Ela tenta lembrar cada caractere exatamente como eu disse. Sem que ela precise perguntar, repito a sequência, e até esse gesto parece deixá-la confusa.

Com cuidado, levanto as costas da cama e ela aperta mais a arma. Se por acaso puxasse o gatilho, só acertaria minha bochecha. A bala talvez atravessasse minha mandíbula. Eu ficaria desfigurado, mas sobreviveria.

— Você não vai querer ver o que tem aí — digo.

— Você admite, então — diz ela nervosamente. — Alguma coisa aconteceu. Você descobriu enquanto eu estava no chuveiro.

Estou de pé, agora. Ela ainda não atirou em mim. Não vai atirar, a menos que eu tente ir atrás dela. Mas não estou mais tão impressionado. No lugar dela, eu já teria metido uma bala no meu crânio.

Confirmo com a cabeça. Só estou um pouco surpreso por ela ter descoberto tudo isso. Eu não deveria ter perguntado sobre a mãe dela. Essa garota é esperta, ainda que compassiva e humana demais para sair viva disso sozinha.

Segurando a arma na mão direita e ainda de olho em mim, ela dá três passos e meio para trás e pega o iPad, correndo os olhos entre mim e ele, um segundo cada, o bastante para digitar a senha. Depois de um minuto inteiro de frustração, sem encontrar nada, a garota aponta a arma para o iPad e se afasta da mesa perto da parede.

— Ache você — ordena ela. — Seja o que for.

Suas mãos, ambas empunhando a arma agora, estão tremendo.

— Vou dizer pela última vez, você não vai querer ver.

— Me mostre!

Ela está chorando, agora. Lágrimas escorrem por seu rosto. Noto que seu lábio treme do lado direito. Ela deve estar sentindo náuseas, com os nervos em frangalhos. Olho para as cordas com as quais a amarrei, jogadas no chão. Não foram cortadas. Ela tem mãos pequenas, pulsos finos. É uma mestra da arte da fuga, para ter se libertado daqueles nós. Olho para o relógio entre as camas. Mas ela levou tempo demais para conseguir, pelo que vejo.

— Anda!

Seus olhos estão vermelhos e brilhando, úmidos.

Eu viro o iPad sobre a mesa na minha direção. Com um dedo, abro meu e-mail particular e a pasta onde arquivei a mensagem com anexo que recebi ontem à noite, do meu contato:

— O que foi que você fez? — perguntou Fleischer na noite anterior, na videochamada ao vivo. — A garota não fazia parte do acordo. — Seu sotaque alemão sempre transbordava muito em seu inglês.

— A filha de Guzmán estava lá — respondi. — Eu a vi na fortaleza, antes de entrar na casa. — Olhei uma vez para o banheiro, onde a garota ainda estava no chuveiro, depois de 15 minutos. — Javier Ruiz tem instalações impressionantes.

— Tem certeza de que viu a mesma garota?

Fiquei ofendido com a falta de confiança de Fleischer em mim, ao ver que depois de anos trabalhando juntos, sem nunca ter errado meus prognósticos, ele ainda duvidava das minhas opiniões.

— Era a mesma garota — confirmei, em tom neutro. — Peguei metade do dinheiro que Javier aceitou pagar e fui embora, como me mandaram.

— E como você acabou ficando com a outra garota?

— Ela fugiu da fortaleza e se escondeu no meu carro.

— E você não sabia que ela estava lá? — Ele parecia surpreso.

— Sim, sabia — confirmei.

— Então explique por que...

— Lembre-se, Fleischer, você não é meu empregador. Seria prudente não falar comigo como se fosse.

Fleischer engoliu seu orgulho e ergueu o queixo, para parecer mais confiante em seu momento de inferioridade.

— O que Javier ofereceu pelo assassinato de Guzmán?

— Nem uma fração do que Guzmán ofereceu para matar Javier e Izel, e pela volta de sua filha em segurança. — E acrescentei: — Eu poderia ter cumprido o contrato enquanto estava lá.

— Sim — disse Fleischer. — Mas isso não fazia parte do plano, assim como manter a fugitiva com você também não faz.

— A garota vai ser útil.

— Até agora, ela provou ser o contrário disso — disse Fleischer, recobrando a confiança que arranquei dele antes. — Tudo mudou. O plano. O contrato. Suas ordens.

— Quais são minhas novas ordens? — perguntei.

— Vonnegut não deu nenhuma nova ordem ainda — disse ele. — Está aguardando meu contato. Suas novas ordens vão depender da informação que eu receber de você agora.

Fleischer e eu nos entreolhamos nesse momento, ambos pensando a mesma coisa: você é meu irmão e eu não farei nada para trair você, independentemente da nossa profissão ou das ordens que um de nós receba um dia.

Ninguém além de nós dois sabe que temos o mesmo pai. Mas com o passar dos anos, desde que fomos recrutados pela Ordem quando éramos apenas meninos, fomos nos distanciando. Muitas vezes é fácil esquecer que temos o mesmo sangue, especialmente para Niklas Fleischer, que viveu à minha sombra na Ordem por tantos anos.

Eu apenas assenti, sabendo que Niklas relataria ao nosso empregador, Vonnegut, o que eu precisava que ele relatasse.

Para conservar o relacionamento com meu irmão, eu lhe ofereci informações que ele não me pediu:

— A garota vai ser útil, Niklas — repeti, chamando-o pelo primeiro nome em sinal de trégua. — Parece que ela significa mais para Javier do que ele quer que a gente saiba.

Niklas acenou com a cabeça em resposta, entendendo minha intenção.

— Você pretende trocar a garota pela filha de Guzmán — declarou ele.

— Se for preciso, sim — falei. — Informe a Vonnegut que tenho tudo sob controle, mas que aguardarei as ordens que ele quiser dar.

— Vou informar — concordou Niklas.

Apertei o play, então, para assistir ao vídeo que Javier mandou para Vonnegut, que Fleischer, como meu contato, recebeu a ordem de passar para mim.

É como pensei: Javier está com a amiga da garota, Lydia, em uma posição comprometedora. Ele quer que a garota veja isso, para que ela saiba que se não se entregar ou me convencer a levá-la de volta, Lydia vai morrer. Percebi, então, ao ver a cena no vídeo diante de mim, que esse chefão do tráfico mexicano era bem mais brutal do que a Ordem supunha.

Ouvi o chuveiro sendo fechado e passei o dedo pela tela para interromper o vídeo, desligando o iPad em seguida.

A garota vai ficar arrasada. Se descobrir isso, vai ficar instável.

Mas também posso usar isso a meu favor.

Com o vídeo gravado agora sendo exibido na tela, giro o iPad sobre a mesa na direção da garota. Ela o olha somente por segundos, com a arma tremendo na mão, e então volta a me olhar, com medo de que eu tente algo. Mas ao ver sua amiga, Lydia, ela dirige toda a atenção ao vídeo, baixando a guarda. Eu não tiro vantagem disso. Enfio as mãos nos bolsos da calça e fico ali, observando a garota arregalar os olhos ao ver o vídeo.

Javier anda ao redor de Lydia, que está amarrada a uma cadeira, com uma bandana vermelha enfiada na boca. Lágrimas e suor encharcam seu rosto. Seu olho esquerdo está inchado e ferido. Um fio de sangue sai de uma de suas narinas.

— Para você, Sarai — diz Javier para a câmera enquanto Izel fica perto de Lydia, com o cabelo dela preso em seu punho. — Quero você de volta aqui em 36 horas. — A garota cobre os lábios trêmulos com a mão livre; a arma não é apontada diretamente para mim há vários longos segundos. — Ou ela vai morrer, e vai ser culpa sua.

Izel ergue o braço e dá um soco no rosto já inchado e ferido de Lydia. O corpo de Lydia cai para trás e mais lágrimas saem de seus olhos. O sangue esguicha de seu lábio inferior.

A garota deixa a arma no chão e empurra o iPad, derrubando-o da mesa, e então desaba de joelhos no chão, soluçando com o rosto nas mãos.

Eu me sento no pé da cama, deixando a arma no chão e a garota sozinha em seu momento de desespero.


CAPÍTULO NOVE

Sarai

Não consigo enxergar direito. Através das lágrimas ardentes, da visão borrada, da raiva, do ódio e da mágoa que está pondo meu sistema nervoso em curto. Meu corpo, de alguma forma, conseguiu encontrar o chão. Estou deitada com o rosto no carpete.

Lydia não... qualquer um, menos ela. Ela é inocente e frágil. Não vai suportar. Não como eu...

Levo tempo demais para perceber que não sou mais eu que estou segurando a arma, que não estou mais no controle. Um momento de fraqueza, traumatizada pelo sofrimento da minha amiga, tirou esse privilégio de mim. E eu mereço. Mereço qualquer punição que o destino ache apropriado me infligir, porque eu fugi e Lydia não. Eu deveria ter usado o telefone que ficava a 1,5 metro de mim, no criado-mudo entre as camas, para chamar a polícia. Eu deveria tê-los chamado antes de acordá-lo, mas estava empenhada demais em saber que informações Victor possuía que eu não. Ainda esperava que ele me ajudasse, ao menos me dizendo a localização da fortaleza, para que eu tivesse algo para contar às autoridades.

Eu deveria ter atirado nele quando pude.

Com o canto do olho, vejo as meias sociais pretas de Victor imóveis no chão. Virando a cabeça para trás só um pouco, meus olhos correm da barra de sua calça até a cintura. Seus antebraços estão apoiados nas pernas, com as palmas das mãos segurando de leve os joelhos. Ele está sentado com as costas bem retas e o olhar fixo à frente.

Finalmente, sua cabeça se mexe quando ele se vira para me olhar.

— Eu sinto muito — diz ele, absolutamente sem emoção nas palavras, mas de alguma forma detecto um rastro ínfimo de sentimento escondido por trás de seus olhos.

— Você precisa me levar de volta — digo, ficando de pé. — Não pode deixar que ela morra. — Minha voz está tremendo.

Victor se senta à mesa de novo e começa a remexer em sua bolsa. Não me importa saber o que ele está fazendo, ou o que planeja fazer daqui em diante. Só consigo pensar em Lydia e no que vi naquele vídeo; aquela imagem vai ficar tatuada em minha mente para sempre. Parte de mim quer culpar Victor por tudo isto, simplesmente por ele ser o que é, quando poderia ter se tornado humano só o tempo suficiente para me ajudar a tirá-la dali. Mas volto a me culpar porque, na verdade, em nenhum momento pedi a Victor que me ajudasse a libertá-la. Ele se recusou a me ajudar, por isso eu sabia que ele não voltaria lá por ela.

É tudo culpa minha. Eu poderia ter feito as coisas de outra forma, planejado minha fuga de outra maneira. Poderia ter obrigado Lydia a sair por aquela janela comigo, naquela noite.

Parece que há muitas coisas que eu poderia e deveria ter feito. Nunca imaginei que eu seria a garota idiota do filme de terror que entra correndo na casa mal-assombrada ou tropeça nos próprios pés fugindo pela floresta às escuras. Acho que, no geral, todos achamos ridícula a idiotice dos outros, até que nós mesmos somos forçados a viver experiências traumáticas.

O sol do início da manhã começa lentamente a inundar o quarto. O único movimento que fiz a noite toda foi me virar para o outro lado no chão, para ficar de olho em Victor. Não tenho medo dele. Não mais. Mas não podia deixar de saber onde ele estava, mesmo assim.

Minhas costas doem e meu rosto está formigando com a marca do carpete puído impressa na minha pele.

Victor se senta na cadeira perto da mesa, agora calçado, como se estivesse esperando em silêncio que amanhecesse.

Levanto meu corpo dolorido do chão e fico de pé.

— Não me importa mais o que você vai fazer comigo — digo. — Mas por favor, me leve de volta para Javier. Não tenho muito tempo.

O rosto de Victor revela curiosidade.

— Você não vai voltar para a fortaleza.

Eu pisco, atordoada com suas palavras.

— Quê? Não... — Balanço a cabeça, protestando. — Não, você precisa me levar de volta! Você viu o vídeo! Eles vão matá-la!

Ele se levanta da cadeira, alisa as mangas de sua camisa social branca, agora bem enfiada dentro da calça e com os punhos abotoados em volta dos pulsos fortes.

— O plano mudou — diz ele com voz calma.

Praticamente me jogo em cima dele, parando a centímetros de seu corpo, de olhos arregalados, ferozes e incrédulos.

— Não, Victor! — Ele hesita. — Eu preciso voltar! Será que você não entende?! A gente... eu preciso ajudá-la! Eu quero que Izel morra! Quero que Javier morra pelo que fez!

— Ele vai morrer — diz Victor.

Ele se vira para o lado e fecha o zíper da bolsa.

Avanço os últimos centímetros do espaço entre nós e o empurro com as mãos.

— Eu vou voltar, com ou sem você! — Ele me pega pelos pulsos, segurando-os com firmeza. — Por favor... — O pedido sai com cada gota de desespero que há em mim.

Ele examina meu rosto, tão de perto que sinto o ar quente que sai de suas narinas.

— Apenas tenha paciência — diz ele, e eu me calo de surpresa.

Ele solta meus pulsos quando sente que começo a recuar e me afastar.

— Paciência? — Não acredito no que ele está me dizendo. — A gente não tem tempo para ter paciência! Como pode dizer isso?

Ele se curva, enfia as mãos sob o colchão perto da janela e o levanta de lado, revelando um espaço oco por baixo, rodeado pelo estrado de madeira que sustenta a cama. Ele pega as bolsas, escondendo-as lá dentro, e depois a maleta, devolvendo em seguida o colchão ao lugar.

— Estou esperando um contato — diz ele.

— Um contato de quem?

Ele suspira, aborrecido com as perguntas.

— De Javier.

— Por quê?

Eu não sei o que dizer, nem no que acreditar, só sei que minha mente está zonza com tudo o que está acontecendo e não consigo acompanhar.

Victor vai até a porta e se vira para me olhar.

— Venha — diz ele, fazendo um movimento com a cabeça para que eu o siga.

— O quê, você não vai amarrar minhas mãos, nem me arrastar para o corredor pelo pulso? E se eu fugir?

— Você não vai fugir.

— Você acha que não? — retruco.

Ele assente uma vez.

— Não, não vai, porque só eu sei como voltar para onde está Javier.

Eu fico parada ali.

Victor coloca a mão na maçaneta prateada e abre a porta.

— Você vem ou vai ficar aqui?

Olho para ele, sem expressão.

Talvez ele me ajude, no fim das contas. Talvez, depois de ver o que Izel e Javier estão fazendo com Lydia, Victor tenha lembrado como é sentir remorso, se é que um dia ele soube como é.

— Aonde a gente vai? — pergunto, sabendo que não é longe, se ele está deixando as malas.

— Tomar café da manhã.


CAPÍTULO DEZ

Victor

Mais de duas horas se passaram e não houve nenhum contato. Nada de Niklas nem de Vonnegut. Nada de Javier nem de Guzmán. A garota está muito agitada. Tomamos o café da manhã no hotel, mas ela mal comeu, só remexeu a omelete com o garfo. Pode ser por causa da preocupação com a amiga, mas acho bem-vinda sua repentina incapacidade de fazer perguntas sem parar e de tentar conversar comigo.

Eu me pergunto por que ela ainda não tentou entrar em contato com ninguém de sua família. Acho difícil acreditar que, apesar da grave situação da amiga, ela não se interesse em ligar para uma irmã, avó ou tia. Que não tenha usado a única oportunidade que teve, ontem à noite, enquanto eu dormia.

Isso me deixa duas teorias: ela se importa mais com a vida de sua amiga ou não tem nenhum parente. Talvez sejam as duas coisas. Estou quase certo de que é isso.

Sinto meu celular vibrando na perna e me levanto da mesa no saguão, puxando-o do bolso.

A garota instantaneamente presta atenção em mim.

O codinome do meu irmão aparece na tela.

— Quem é? — pergunta a garota, levantando-se comigo.

Passo o dedo na tela para atender, mas encosto o celular no peito. Mando a garota voltar a se sentar com um gesto.

— Quero que você fique aí. Vou sair para atender esta ligação. Confio que você estará aí quando eu voltar — digo. Sei que ela não vai a lugar nenhum.

Claramente, tudo o que ela quer é me seguir para fora e ouvir cada palavra que eu disser, mas respira fundo, cruza os braços e se senta de novo.

— Está bem. — Ela cerra os dentes por trás dos lábios levemente apertados.

Eu saio pela porta da frente e encosto o celular no ouvido.

— Vou pôr Javier nesta ligação — diz Niklas. — Está preparado?

— Sim — respondo, e espero enquanto Niklas faz a transferência.

A voz de Javier fervilha com uma raiva mal-controlada quando surge:

— Você vai morrer pelo que fez — diz ele em inglês. — Sarai devia ter sido trazida de volta para mim assim que você a encontrou!

— O que está feito, está feito — respondo. — Diga logo o motivo do seu contato.

Eu o ouço respirar fundo na teleconferência. Niklas escuta em silêncio.

Finalmente, Javier se controla.

— Ainda quero que você mate Guzmán pelo preço que combinamos, mas lhe dou mais 1 milhão de dólares americanos para matar Sarai.

Matá-la? Eu não esperava que esse contato com Javier me surpreendesse. Isso é realmente muito interessante.

— Por que você quer que ela morra? — pergunto.

— Isso não importa — diz ele. — Os motivos nunca importam nesse ramo. Você devia saber disso.

Eu sei, é a primeira vez que pergunto a um cliente por que ele quer ver um alvo morto.

— Tenho uma proposta melhor para você — anuncio. — Você traz a amiga da garota, Lydia, e a outra garota que está na fortaleza. Você vai receber uma foto imediatamente após esta ligação, aí em Green Valley, Arizona, em 24 horas. Eu troco esta garota por aquelas duas, depois mato Guzmán e lhe devolvo as garotas quando receber o resto do pagamento.

Não preciso ouvir nenhum comentário de Niklas para saber que ele discorda completamente disso, mas ele continua em silêncio.

— Você está falando da filha de Guzmán — indaga Javier, já sabendo a resposta. — Acertei?

— Sim — respondo. — Se já não ficou óbvio, Guzmán pagou para que eu a levasse de volta.

Javier ri.

— E eu achando esse tempo todo que ele queria me matar! — Ele se recupera de sua constatação bem-humorada. — Você é bom mesmo — diz ele. — Admito isso. Vai matar dois coelhos com uma só cajadada. Mostra a filha para o Guzmán, pega o pagamento para levá-la de volta, depois mata o desgraçado e recebe meu pagamento pela morte dele. — Ele ri de novo.

Permaneço calmo e frio.

— Estamos de acordo ou não?

— Então você abre mão da proposta para matar Sarai? — pergunta ele.

— No momento — começo —, ela é minha única moeda de troca. Depois que eu fizer o que você me pagou para fazer e levá-la de volta, você faz o que quiser com ela. Não é da minha conta.

Niklas encerra a chamada depois de chegarmos ao novo acordo. Ele me liga depois de ver que Javier também desligou.

— Victor, você não pode fazer isso — argumenta Niklas. — Está fazendo acordos sem...

— Quais as novas ordens de Vonnegut? — pergunto.

Olho pela janela e vejo a garota ainda sentada no saguão do hotel, ansiosa.

— Ele ainda não deu ordem nenhuma — diz Niklas. — Você não tem permissão para fechar acordos assim, só para cumpri-los.

— Então diga para Vonnegut que eu só estava tentando manter minha vantagem — explico. — Se Javier perceber que não tenho autoridade para oferecer e concordar com novas condições, vai achar que pode fazer mais exigências. Não quero ser desrespeitoso, mas Vonnegut precisa confiar em mim nisso. Ele sempre confiou nas minhas decisões. Não tem nenhum motivo para parar de confiar agora.

Niklas se mantém em silêncio. Acredito que ele se ressente desse fato, de que a Ordem confia em mim, mas nunca lhe deu o mesmo benefício.

— Muito bem — concorda Niklas. — Vou falar com Vonnegut. Mas, Victor, você está ficando fora de controle. — Ele faz uma pausa, como que para decidir se deve continuar ou não. — Desde a missão em Budapeste, ano passado. Notei a diferença em você. Acredito que a Ordem não tenha notado, mas é só uma questão de tempo.

— Niklas — digo cuidadosamente a ele, como meu irmão, e não meu contato —, agradeço sua discrição. Agora pode fazer algo por mim?

— Quando foi que eu recusei?

~~~

Eu deixo Niklas, enfio o celular no bolso e volto para encontrar a garota.

Ela anda de um lado para outro, e quando me vê, para, descruza os braços e os abaixa, com um grande ponto de interrogação no rosto.

— Venha comigo — digo, segurando-a pelo cotovelo.

— Aonde a gente vai? — Ela anda ao meu lado sem questionar nem argumentar.

— Para Green Valley.

— Mas por quê, Victor? O que está acontecendo?

Eu a olho por um momento e puxo seu braço quando viramos no alto da escada.

— Eu vou contar logo — digo —, mas antes tem umas coisas que você precisa me contar.

Andamos pelo corredor e ficamos parados diante da porta do nosso quarto enquanto remexo meu bolso procurando a chave magnética.

A garota parece confusa.

— Precisa me contar por que Javier Ruiz quer que você morra.

O choque cobre sua expressão como um véu.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Victor vai rápido, mas casualmente, levantar o colchão e o estrado. Segurando-os com um braço, ele pega as bolsas, uma por uma, colocando-as ao lado.

— Não entendo — digo, cruzando os braços e esfregando-os com as mãos, para baixo e para cima, como se o ar estivesse gelado. — Ele disse que ia me matar?

Victor abre o zíper da bolsa na mesa e remexe o conteúdo.

— Não, ele me ofereceu 1 milhão para matar você para ele.

Eu pisco, atordoada, e fico parada ali, sem acreditar, com mais calafrios percorrendo todo o corpo.

Victor fica na minha frente e coloca as mãos nos meus ombros. Ele me empurra delicadamente para baixo na beirada da cama, onde me sento, obediente. Então se senta em uma das cadeiras ao redor da mesa, virando-a completamente para poder me encarar.

— Por que Javier iria querer sua morte a ponto de pagar tão alto assim?

Distraidamente, ergo os olhos para encará-lo, ainda um pouco perdida em pensamentos.

— E-eu não sei — gaguejo.

— Sabe, sim — insiste ele. — Talvez não diretamente, mas algo me diz que lá no fundo uma parte sua faz alguma ideia. Pense.

Desvio o olhar, tentando lembrar o tempo que passei na fortaleza, buscando o que poderia ser a resposta. Vários longos segundos se passam e não encontro nada. Victor se ergue da cadeira o bastante para arrastá-la para mais perto de mim. Isso volta a chamar minha atenção.

— Preciso que você me conte tudo — diz Victor, com uma veemência gentil. — Fale do seu relacionamento com Javier. Você disse que ele acha que está apaixonado por você.

Faço que sim com a cabeça, devagar e brevemente.

— Sim. Uma vez, ele me disse que estava apaixonado por mim, mas eu sei que não é verdade. Ele é louco. Possessivo. Mas ele me protegia das coisas que as outras garotas sofriam.

Não gosto de pensar nessas coisas, muito menos de falar abertamente delas. Fico envergonhada e me odeio pelo que elas tiveram que suportar.

— Ele protegia você? — pergunta Victor, precisando de mais informações.

— Sim. Eu era proibida para os homens de Javier. E Izel, bom, Javier quase a matou uma vez quando ela me deu um tapa na cara. Depois disso, ela não tinha permissão para me tocar. E eu tinha luxos que as outras garotas não tinham, também. Chuveiro quente, comida boa, e eu podia visitar lugares fora da fortaleza. Até voei em um avião pequeno com ele algumas vezes. Javier raramente me perdia de vista. Izel me detestava por isso, acusando Javier de “amolecer”, ficar de quatro por uma “garota americana idiota”.

Uma fagulha de curiosidade passa pelos traços de Victor.

— Para que tipo de lugares você era levada?

Dou de ombros e enfio as mãos entre as coxas, com os dedos curvados nervosamente uns sobre os outros.

— Às vezes — começo —, Javier me levava com ele para a casa de outros ricos, com piscinas azuis brilhantes em formato de ferradura e outras coisas estranhas. Javier dizia que era só para se enturmar, mas eu sabia que a gente estava lá para negociar drogas. E garotas. Às vezes a gente voltava com mais uma. Ele usava um terno bacana e sapatos pretos lustrosos, como os seus. — Olho rapidamente para os sapatos de Victor. — Ele não parecia o vagabundo que você viu aquele dia, vivendo em uma pocilga. Ele é rico, apesar do que você viu.

— Isso eu concluí.

— E, claro — continuo —, ele também me fazia usar vestidos chiques.

Baixo os olhos, envergonhada, sobretudo porque às vezes eu gostava de me vestir e de ser tratada como uma princesa. Era sempre assim que eu pensava naquilo: uma princesa, por mais perturbadoras que as circunstâncias fossem.

— Eu me sentia um troféu em exibição.

— Você era exatamente isso — diz ele, e eu o olho de novo, silenciosamente magoada por suas palavras. — Lembra alguma coisa dos homens que vocês visitavam?

— Sim — digo, assentindo. — Mas acho que eram casas de veraneio ou algo assim.

— Por quê?

— Porque eles falavam que só iam ficar no México algumas semanas, ou que iam voltar para a Califórnia, ou Nevada ou Flórida, lugares assim.

— Eles eram americanos?

— Alguns eram, tenho certeza — afirmo. — Não falavam com sotaque, ao menos não com sotaque estrangeiro. Definitivamente não eram mexicanos, isso eu garanto.

Podiam ser americanos, mas eu sabia que não me ajudariam como eu esperava que Victor ajudasse. Eram tão perversos quanto Javier. Dois deles até tentaram me comprar. Não, nenhum deles jamais me ajudaria a fugir, por isso considero Victor o primeiro americano que vi em nove anos. Aqueles homens perderam esse privilégio por associação.

— Lembra o nome de algum deles?

Agora Victor parece mais ansioso do que jamais o vi, mas mesmo assim ele consegue manter um semblante sem emoções, quase indefectível.

Penso um pouco, tentando lembrar, mas em vão.

— Não — respondo, frustrada comigo mesma —, agora não, mas eu ouvia os nomes deles, às vezes, quando um era apresentado ao outro. — Eu paro e digo com mais emoção: — Victor, o que foi?

Seus olhos azuis e perigosos estão cravados nos meus.

— Na fortaleza, ou em qualquer lugar onde Javier pudesse vigiar e controlar você, você não era uma ameaça para ele. Mas agora que você fugiu, é uma ameaça maior do que qualquer outra, porque sabe demais. É óbvio que Izel estava certa em considerá-lo tolo pelo que sentia por você; ele provavelmente nunca previu que você iria embora. Você estar viva e livre é uma ameaça a toda a operação dele, e a todos nela envolvidos.

Penso por um momento, deixando minha mente absorver a verdade óbvia das palavras de Victor. Posso não saber onde eu era mantida no México, e mesmo agora não seria capaz de dizer às autoridades americanas onde Lydia e as outras garotas estão presas, mas sei nomes; ainda escondidos no fundo da minha memória, porém sei. E lembro rostos e conversas que, embora casuais, continham muitos fragmentos de informação que, suponho, nas mãos das pessoas certas, poderiam incriminá-los como traficantes de drogas e de mulheres.

— Larsaw, ou talvez Larsen — digo de repente, quando o nome surge na ponta da minha língua. — Gerald Larsen. Lembro que ele foi o primeiro americano para quem fui “exibida” quando Javier me levou para a primeira casa. Ele tinha cabelo branco. Era gordinho. Mas eu nunca era diretamente apresentada a ninguém. Era proibida de falar. Descobri os nomes ouvindo as próprias conversas deles.

Victor parece profundamente absorto e balança a cabeça de repente.

— John Gerald Lansen é o presidente da Balfour Enterprises e fundador de uma ONG famosa que combate a violência contra a mulher nos Estados Unidos. — Ele me olha nos olhos. — As informações que você possui, por mais insignificantes que pareçam, podem derrubar muita gente importante. Imagino que, se a notícia de que você fugiu se espalhar e certo alguém, uma irmã vingativa, talvez — diz ele, referindo-se, eu sei, a Izel —, decidir contar para as pessoas certas, mais gente além de Guzmán pagará para matar Javier, e ele sabe disso.

Essa ideia me atinge como um choque elétrico; salto da cama e tento correr até a porta. Victor me pega no meio do movimento, me segurando pela cintura. Eu me viro de frente para ele e dou socos cegamente. Consigo atingi-lo, mas não sei onde, porque meus socos são desajeitados e tão caóticos que meus olhos não conseguem acompanhar o movimento.

Minhas costas batem no chão e eu olho para cima, com meu cabelo ruivo selvagemente espalhado pelo rosto, e vejo Victor me segurando, montado na minha cintura.

— Me solta! Me solta, merda! — Eu esperneio sob o peso dele, incapaz de mexer muito as pernas, as mãos presas ao chão acima da minha cabeça, contidas pelas dele. — Ele vai me matar! Alguém me ajude!

Ele consegue segurar meus dois pulsos com uma das mãos e aperta a outra na minha boca para abafar meus gritos. Lágrimas escorrem dos meus olhos. Eu imploro sem parar, com a voz quase completamente abafada pelo peso de sua mão.

— Eu não vou matar você — diz ele calmamente. — Se essa fosse minha intenção, você já estaria morta.

Ele espera que meu corpo tenso relaxe um pouco, e sinto sua mão afrouxar, mas quase imperceptivelmente.

— Vai ficar quieta?

Faço que sim com a cabeça, porque ainda não posso falar com a mão dele na minha boca.

Finalmente, depois de um longo momento, Victor afasta a mão devagar.

— Por que você não vai me matar? — pergunto, com a voz ainda trêmula e embargada pelas lágrimas. — Continua me usando como moeda de troca?

— De certa forma, sim — responde ele.

Quero gritar de novo enquanto posso, mas as palavras dele me detêm:

— E eu não mato inocentes.

O silêncio preenche o pequeno espaço entre nós.

— Ninguém é inocente — digo com rispidez, surpreendendo até a mim mesma. — Eu muito menos. Por anos deixei aquele assassino nojento me violar, e nunca disse não. Fiquei olhando em silêncio enquanto ele e seus homens e aquela vaca da irmã dele espancavam, estupravam e vendiam garotas que tinham virado minhas amigas. Eu não fiz nada. Nunca gritei, lutei ou protestei por nenhuma delas. Nenhuma. — Ouço minha voz aumentando com a raiva, mas não me importo. Cerro os punhos no peito, olhando nos olhos dele, ainda sentado em mim. — Eu fingia que nada me incomodava, que as mãos de Carmen sendo esmagadas a golpes de martelo não me abalaram! Nem pisquei quando Marisol foi forçada a fazer um aborto com um médico açougueiro que a deixou sangrar até a morte na mesa de operação! Não derramei uma só lágrima quando a garota ruiva e sardenta foi morta bem na minha frente porque o homem que veio comprá-la não gostou do que viu! — Ergo os punhos para socar as pernas dele de raiva, mas ele agarra meus pulsos e segura firme. — Eu não sou inocente! — rujo.

Sinto suas mãos esmagando meus pulsos, mas minha cabeça está atordoada demais pela emoção para dar importância.

As coisas que admiti me assombram há muito tempo. Estavam enterradas em minha alma, queimando meu âmago, me deixando frígida e me transformando em alguém completamente diferente de quem eu deveria ser.

Deixo a cabeça cair para o lado, sentindo a dor da derrota. Não consigo mais olhar para ele. Não por raiva, ódio ou vingança, mas por vergonha. Não consigo olhar um assassino nos olhos porque não só não sou melhor do que ele; é possível que eu seja pior.

— Você é muito forte — diz ele, saindo de cima de mim. — Tem um forte instinto de sobrevivência. É a única coisa que diferencia você daquelas outras garotas. Como elas, você também era mantida lá contra a vontade. Também era obrigada a fazer coisas contra a vontade. Você sofreu abusos físicos e emocionais. Não deveria se culpar pela fraqueza delas.

Ele vai até a mesa.

Eu me levanto do chão, cambaleante, e apenas olho para ele, tentando entender suas palavras. Ou talvez a culpa que alimentei durante tanto tempo não me deixe acreditar nelas.

Ele olha para mim.

— Você fez a coisa certa — acrescenta.

Balanço a cabeça.

— Não, não fiz. Eu deveria ter feito alguma coisa para ajudá-las.

Victor joga as bolsas no ombro e pega a maleta com a outra mão.

— Você fez — diz ele, de pé na minha frente, agora. — Você manteve a cabeça no lugar. Esperou sua oportunidade. Fingiu a ponto de ser aceita e ganhar a confiança deles. Está arriscando a vida, agora, para voltar e ajudar aquela garota.

Ele passa por mim e vai até a porta, virando-se para me olhar ao chegar.

— Você é inocente — diz ele. — E é por isso que ainda está viva.

Então ele abre a porta, e, hesitante, eu o sigo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

Chegamos a Green Valley quase três horas depois. Ambos ficamos em silêncio a maior parte da viagem. Eu tinha muito em que pensar, muitas questões não resolvidas para compreender, o que nem cheguei perto de fazer em tão pouco tempo. E vou demorar muito até parar de me sentir culpada, se é que um dia vou conseguir. Não importa que as coisas que Victor disse façam sentido; ainda me sinto a pessoa mais egoísta do mundo pelo que fiz. Provavelmente vou me sentir assim para sempre.

E perguntei a Victor por que estávamos indo para Green Valley. Ele já tinha dito que iria me contar o que estava acontecendo, mas na hora foi vago. Disse que precisava fazer uma troca perto de Green Valley, mas não quis entrar em detalhes. Acho que todo aquele falatório no hotel em Douglas estourou seu limite de palavras para conversa. Porque ele voltou rapidamente a ser como era, o assassino quieto, reservado e intimidador com o qual, por motivos que eu desconhecia, me sentia quase completamente segura.

Paramos em um estacionamento no fim de uma estrada ladeada por casas de veraneio. Já estive aqui antes, uma vez, com minha melhor amiga, quando a irmã mais velha dela foi nos pegar na escola no seu carro novo. Nós nos perdemos e ela deu meia-volta neste lugar. Isso foi semanas antes de minha mãe me obrigar a ir para o México com ela e Javier. Este lugar familiar me faz lembrar que estou muito perto de casa. Estou tão perto que poderia ir para lá a pé. Levaria várias horas, mas eu conseguiria.

Mas para onde eu iria?

Victor desliga o motor da picape. Eu olho pelo para-brisa e vejo uma faixa de árvores e mato separando o estacionamento da rodovia interestadual. Um carro chispa a cada poucos segundos. Mas o estacionamento está vazio, exceto por outro carro solitário a distância, estacionado ao lado de uma caçamba de lixo. Já do outro lado do estacionamento, depois de um muro baixo de concreto, há muitos carros estacionados em volta de um shopping center.

Eu me pergunto por que ele escolheu um lugar público, ainda que quieto e abandonado no momento, para fazer o que veio fazer aqui, seja lá o que for. Porque Javier não se importa com o público, nem com o risco de um espectador inocente ficar no meio do fogo cruzado.

— Fique na picape — manda Victor, antes de fechar a pesada porta de metal.

Ele dá a volta por trás enquanto uma reluzente van preta entra no estacionamento, vindo de trás das casas. Meu coração imediatamente começa a bater forte. Eu me encolho no banco, mas vou para o lado do motorista, para poder ver melhor pela janela. Quero ver, mas não quero ser vista.

Victor vai ao encontro da van, a uns 15 metros de onde estou, e o veículo para no meio da estrada. Vejo um homem. Parece um homem branco, o que me deixa confusa. Victor assente, e então vejo seus lábios se mexendo. Estico o braço e abro o vidro, girando a manivela antiquada. Ela emperra de início, mas depois uma fresta se abre e eu consigo baixar alguns centímetros. Mas eles estão longe demais para eu ouvir o que dizem.

Victor começa a voltar para a picape, e a van o segue. Engulo em seco e me vejo praticamente deitada no assoalho agora, com o alto da cabeça encostado no volante duro. A porta do lado do motorista se abre, me expondo em minha posição constrangedora. O outro homem está ao lado de Victor, os dois olhando para mim.

O desconhecido, que eu noto que se parece um pouco com Victor, alto, de cabelo castanho, olhos azuis e maçãs do rosto angulosas, me faz um aceno de cabeça, como se fosse seu jeito de cumprimentar. Inútil dizer que estou apavorada e insegura demais para retribuir a cortesia.

O homem, embora continue me olhando como se eu fosse algum espécime peculiar que merece ser estudado, diz algo para Victor em outra língua. Não é espanhol. Victor responde no mesmo idioma, que começo a achar que provavelmente é alemão. O homem finalmente olha para Victor.

— Este é Niklas — diz Victor. — Você vai no carro dele e vocês vão me seguir para outro lugar perto daqui.

Instantaneamente, sinto minha cabeça balançando em negativa.

Victor estende a mão para mim, mas eu a rejeito. Em vez disso, começo a me levantar do assoalho e ir para o outro lado da picape. Sinto a mão de Victor se fechando ao redor da minha coxa.

— Ele não vai machucar você — diz Victor. — Esta picape não é segura para você, caso Javier ou seus homens abram fogo contra nós.

Olho pelo vidro de trás para a van, presumindo que ela seja blindada. Não me dou ao trabalho de perguntar; simplesmente não quero ficar a sós com esse homem, em um veículo mais seguro ou não.

— Essa aí não coopera muito — diz o homem chamado Niklas, em inglês. Ele com certeza tem sotaque, diferente de Victor, que parece ter fluência em todos os idiomas que conhece.

— Sarai. — Victor diz meu nome e isso me imobiliza; ele nunca me chamou pelo nome antes. — Estou pedindo para você cooperar.

Eu encaro os olhos sérios de Victor e mantenho o olhar neles por um momento, deixando minha mente se desanuviar da reação inesperada que o fato de ele dizer meu nome provocou. Meu corpo relaxa, e então, logo depois, os dedos de Victor soltam minha coxa. Olho de um para outro devagar, ainda hesitante, mas agora mais disposta.

— Você vai me dizer o que vai acontecer? — pergunto, olhando para os dois, mas Victor sabe que a pergunta foi para ele.

Niklas mantém seus frios olhos azuis cravados em mim, mas aparentemente mais por ser de natureza observadora do que possessiva.

— Vamos nos encontrar com Javier perto daqui, em um lugar mais isolado. Lá, sua amiga vai ser entregue para nós.

Uma sensação sombria de incerteza surge de repente no fundo do meu estômago.

Eu estreito os olhos para Victor.

— Fácil assim? — pergunto, cética. — Não, Javier não vai entregá-la e pronto. Ele vai... — Volto a recuar para a porta do lado do passageiro, minha mão já na maçaneta, para o caso de eu precisar fugir. — ... De jeito nenhum ele vai fazer isso. Você vai trocá-la por mim, não vai? — Eu levanto a voz. — Não vai?!

— Sim — diz Victor.

Niklas continua quieto, calmo e sempre muito observador. Está começando a me dar nos nervos.

Mas então eu me controlo e desvio o olhar dos dois. Olho através do para-brisa para a paisagem e os carros do outro lado da mureta de concreto, mas não vejo realmente nada daquilo. Tudo o que vejo em minha mente é o rosto de Lydia, como a vi pela última vez naquele vídeo: machucada, ensanguentada, debulhada em lágrimas e apavorada. Sei que é isso que precisa ser feito. Uma troca: eu por Lydia. Isso é algo que eu sei que Javier aceitaria, agora mais do que nunca.

Mas ele quer que eu morra...

Minhas mãos agarram o couro rasgado do assento debaixo de mim, afundando os dedos no enchimento exposto. Meu corpo todo treme de pavor. Mas então eu empurro resolutamente esse medo para o fundo da minha mente. Talvez ele não me mate quando me tiver de volta. Posso continuar a fingir que quero estar com ele. Posso até fingir que Victor me raptou. Eu sei que consigo enrolar Javier. Sei que consigo! Fiz isso por anos! Fiz com que ele confiasse em mim, a ponto de achar que me amava. Posso fazer isso de novo.

O bastante para ter minha primeira oportunidade de matá-lo.

Sim, é exatamente o que vou fazer. Porque a esta altura, só duas coisas me importam: proteger Lydia e matar Javier. Sei que quando fizer isso vou assinar minha própria sentença de morte. Izel ou um dos homens de Javier vão me alcançar antes que eu me afaste um quilômetro da fortaleza e vão me abater a tiros, como Victor fez com aquele dono de loja no México.

Mas pelo menos Javier estará morto.

E eu não tenho medo da morte.

Abro a porta da picape e encontro Niklas ao lado, esperando por mim. Eu estava tão perdida em pensamentos que nem vi quando ele deu a volta no veículo.

Fecho a porta e olho por cima do capô para Victor, que está do outro lado. Nunca consegui ler de verdade seu rosto, porque suas emoções, se é que ele tem alguma, parecem impenetráveis, mas agora detecto o traço mais tênue de algo incomum em seus olhos. Poderia ser remorso? Não, talvez seja indecisão ou... Não, não pode ser isso.

— Eu topo — anuncio, sem desviar os olhos de Victor. — Se você puder levar Lydia embora em segurança, eu topo.

Victor assente. Depois vai até a porta aberta da picape, e eu o seguro.

— Mas, Victor, por favor, leve Lydia para casa. Eu imploro. Leve-a para casa. Ela mora em El Paso, Texas. Com os avós. Por favor.

Victor não assente nem dá uma resposta verbal dessa vez, mas eu sei, só por seu olhar, que ele fará isso. Não sei ao certo por que acredito nisso, mas acredito.

Depois de passar suas bolsas para a van, ele entra na picape, e o rugido da partida do motor ecoa segundos depois.

— Venha — diz Niklas, me levando pelo braço, seus dedos me apertando com um pouco mais de força do que Victor jamais usou.

Ele me leva para o banco de trás, abrindo a porta e ficando bem atrás de mim, como se estivesse vigiando para que eu entrasse e não tentasse fugir. Quando entro, o cheiro de couro novo e de purificador de ar preenche meus sentidos. Barras de metal separam o banco de trás do da frente, como a que os policiais têm em viaturas. Eu já me sinto presa. Ouço um estalo quando Niklas trava todas as portas depois de entrar. Olho para a esquerda e a direita e verifico que as portas de trás não têm pinos para destravar. Estou realmente presa ali dentro.

Pegamos a Interstate 19, seguindo de perto Victor na velha picape surrada.

— Você virou uma tremenda pedra no sapato — diz Niklas do banco do motorista.

Eu o olho nos olhos pelo retrovisor.

Não gosto muito dele. Não que eu devesse gostar, considerando a situação, mas pelo menos com Victor, apesar de ele ser um assassino, eu tinha uma sensação de segurança. Até na fortaleza, quando eu e Lydia o vimos pela fresta da porta, senti que podia confiar nele, que ele me ajudaria. Meu instinto estava completamente errado, admito, mas ele nunca me machucou. Independentemente do que ele é ou do que já fez e das complicações que lhe causei, nunca me maltratou.

Niklas, por outro lado, sinto que é um pouco mais intolerante.

Tento manter os olhos na estrada à frente, mas é difícil não cruzar olhares com ele pelo espelho de vez em quando. Porque ele está sempre olhando.

Engulo em seco e digo:

— Eu não queria causar problemas para você e para Victor. — Seus olhos se estreitam de repente no espelho, e eu noto imediatamente. — Mas não entendo por que é tão absurdamente inconveniente me ajudar, para vocês. — Tento disfarçar a amargura do comentário, mas não consigo fazer isso muito bem.

— Victor — diz Niklas com gelo na voz, o que me impressiona da pior maneira —, visto que vocês já se chamam pelo nome, deveria ter arrastado você de volta para Javier Ruiz assim que a encontrou.

Eu odeio esse cara.

Cerro os dentes e respiro fundo.

— Mas ele não fez isso — digo rispidamente. — E isso mostra que ele é mais humano do que você parece ser.

Minhas palavras ácidas não o abalam como eu esperava. Em vez disso, ele faz a coisa que eu menos esperava: sorri.

— Ah, já entendi o que você acha que está acontecendo — diz ele, com aquele sotaque alemão evidente. — Você acha que de alguma forma o enfeitiçou com seus inocentes encantos femininos. Só para você saber, não é nada disso. Victor, tudo o que ele faz, faz pelo bem da nossa Ordem. Se ele acha melhor não libertar nem entregar você, isso não tem nada a ver com seu bem-estar.

Não quero acreditar nele, embora uma pequena parte de mim acredite, mas me recuso a dar a Niklas a satisfação de saber que conseguiu me perturbar.

Ergo o queixo e desvio o olhar, focando-o na picape que Victor está guiando à nossa frente. Logo viramos à direita e pegamos uma estrada de terra poeirenta que começa na Interstate. A estrada serpenteia entre várias áreas de arbustos baixos e árvores jovens, mas na maior parte do trajeto não há nada senão poeira e um solo estéril sem fim por toda a volta. Há algumas casas encarapitadas ao longe, no alto de colinas nuas, mas tenho a sensação de que ninguém viaja por aquelas terras há muito tempo, nem seus proprietários nem pessoa alguma, na verdade.

A frente da van se ergue acima da terra quando começamos a subir uma colina. Quando o chão volta a ficar plano no topo e a poeira começa a baixar, vejo quatro picapes velhas, bem parecidas com a que Victor está guiando, estacionadas no meio do nada, à nossa espera.


CAPÍTULO TREZE

Sarai

Oito homens estão fora das picapes, com rifles no ombro, todos homens de Javier. Eu me agarro ao couro do banco debaixo de mim, achando-o mais duro de penetrar com os dedos do que o banco esfarrapado da velha picape. Paramos a uns 30 metros deles.

Mas não vejo Javier. Nem Izel.

Começo a entrar em pânico quando de início também não vejo Lydia, mas então a avisto dentro do Ford cor creme. Pelo menos tenho certeza de que é Lydia. Pressiono o rosto nas barras de metal o mais que posso, tentando ver melhor, mas isso não ajuda muito.

Niklas vira a cabeça para me olhar.

— Sente direito e fique escondida — exige ele.

Faço o que ele diz, não porque ele mandou, mas porque deve ser melhor mesmo.

A porta da picape se fecha com estrondo. Victor vai para a frente dela, na direção dos homens. Olho todos eles um por um, me perguntando qual foi enviado para falar por Javier, já que ele não está aqui, mas então vejo o cabelo preto de Izel passando pela janela da picape verde quando ela sai.

— Já é a segunda vez que Javier é covarde demais para vir pessoalmente — digo em voz alta, não necessariamente para Niklas.

— Ele sabe, a esta altura, que Victor pode matá-lo sem muito esforço — diz Niklas, olhando pela janela. — Eu diria que isso é esperteza da parte dele.

Izel tenta se aproximar de Victor com seu costumeiro andar sensual, mas está claramente sentindo dor nas feridas que ele fez em suas pernas e tropeça ao passar pelo capô enferrujado. Um dos homens se aproxima rapidamente para ajudá-la, mas ela lhe dá um tapão no rosto e grita xingamentos, mandando-o se afastar. Ela odeia piedade. Acho que ela odeia tudo, inclusive a si mesma.

Palavras são trocadas entre Izel e Victor. Não consigo ouvir o que estão dizendo, mas, pela linguagem corporal, sei que é o de sempre: Izel tentando assustá-lo com ameaças sobre Javier e sobre como ele fez um inimigo muito perigoso — a mesma conversa inicial que eles tiveram no hotel naquele dia. E, como antes, Victor não se abala, o que só inflama mais a expressão dela.

Tento ouvir o que estão dizendo mesmo sabendo que não vou conseguir, mas tento sobretudo ver Lydia.

Contrariando a exigência de Niklas, eu me aproximo das barras de novo, tentando vê-la de relance pela janela. Tenho certeza de que é ela sentada do lado do passageiro. Mas acho que tem alguém sentado ao seu lado.

Izel levanta a mão para os homens da picape atrás dela, e um deles dá a volta para abrir a porta. Ele agarra aquela que eu acho que é Lydia e a arrasta para fora.

— É ela! — digo, empolgada, aliviada.

Niklas se vira bruscamente para trás.

— Sente aí, eu falei — grunhe ele, com os dentes à mostra. — Não estrague tudo mais do que você já estragou.

Fico imóvel ao ouvir isso e volto para o banco de novo, mas só até ele se dar por satisfeito e se virar para a frente.

Lydia parece péssima, mas pelo menos está em condições de andar. Pelo menos está viva. Está usando as mesmas roupas sujas que usava quando a vi naquele vídeo. As manchas de sangue em sua boca e seu nariz são evidentes na frente da sua camiseta fina, mesmo a essa distância. Suas mãos estão amarradas pelos pulsos à sua frente. Seu cabelo ruivo claro está desgrenhado, imundo e empapado. Ela está chorando, olhando desesperadamente para nós na van, e só posso imaginar que esteja se perguntando se estou ou não aqui. Quero correr até ela, para que saiba que estou bem e que ela finalmente irá para casa, mas desejar isso, eu sei, é tudo o que posso fazer.

O homem que a puxou para fora da picape sacode seu braço, empurrando-a rudemente para o lado, abrindo caminho.

Victor diz algo a Izel, que sorri com malícia. Então olha por cima do ombro nu e balança dois dedos, mandando o homem que acabou de estapear fazer alguma coisa. Ele reage rapidamente, dando a volta até a porta aberta da picape de onde tiraram Lydia, trazendo a outra silhueta que vi que estava sentada ao lado dela.

— Meu Deus — digo, mais para mim mesma. — Aquela é Cordelia. Por que trouxeram essa garota?

Olho para Niklas procurando uma resposta, mas ele não oferece nenhuma.

Cordelia e Lydia estão de pé lado a lado agora, ambas trêmulas e com os rostos manchados por lágrimas, ambas incapazes de parar de olhar para a van.

Victor acena com dois dedos para nós.

Niklas se vira.

— Você está pronta?

Engulo em seco.

— Sim.

Niklas abre a porta do seu lado, e, quando ele sai, as travas ocultas da van estalam de novo. Ele abre a porta de trás e estende a mão para mim. Com relutância, eu a aceito.

— Sarai! — Ouço a voz de Lydia no ar ao sair da van.

Levanto a cabeça ao contornar a porta aberta e vejo o homem que a segura pelo cotovelo empurrá-la para o chão poeirento, de joelhos. O outro homem faz o mesmo com Cordelia, só porque pode.

Começo a percorrer devagar a curta distância até Victor, minhas pernas tremendo mais a cada passo. Sinto os olhos de Izel em mim, frios e predadores, mas não a olho. Eu me recuso a lhe dar essa satisfação. Em vez disso, olho apenas para Victor, e, embora ele esteja me olhando nos olhos, sei que nem um pingo de sua atenção vigilante foi desviado daqueles que estão ao seu redor.

Então ele desvia o olhar, levantando a mão para mim, e instintivamente eu paro.

— Mande um dos seus homens trazer as garotas — instrui Victor para Izel.

Ela abre um sorriso sarcástico, as narinas dilatadas, o que a faz parecer ainda mais detestável. Então, com um movimento de cabeça, ela ordena que o homem ao lado de Lydia faça exatamente isso. Ele empurra para as costas o rifle pendurado no ombro e estende as mãos, segurando Lydia e Cordelia em cada uma, erguendo-as de pé.

Victor olha para mim de novo. Ele estende a mão, e, enquanto me aproximo, sinto seu olhar aparentemente sem emoções penetrar o meu. Há algo em seus olhos, algo discreto e misterioso, e sinto que ele está tentando falar comigo pelo olhar. Eu coloco a mão na dele e seus dedos se fecham ao redor dela, de início suavemente.

Algo não parece certo, assim como a expressão furtiva que vi nos olhos dele há alguns segundos.

Quando o homem se aproxima, a mão de Victor aperta a minha. Vejo apenas os olhos de Lydia agora, cheios de medo, esperança e alívio ao se aproximar. E quando eles estão ao alcance de Victor, em um movimento rápido, imperceptível, sou empurrada para o chão e vejo Victor se mover muito velozmente, segurando a cabeça do homem e quebrando seu pescoço. Lydia e Cordelia caem de joelhos, e quando dou por mim, Victor está com o rifle semiautomático do homem, despejando uma saraivada de balas contra Izel e os outros.

Lydia e Cordelia tentam se agarrar a mim enquanto o som dos tiros ecoa com estrondo em todas as direções, mas eu empurro as duas para baixo e aperto seus rostos no chão com as mãos.

— Fiquem deitadas! — grito, a poeira entrando na boca. — Atrás de mim! Venham! — Rastejo o mais rápido que posso pelo chão na direção da van, como um soldado avançando em meio ao fogo inimigo.

Mais tiros são disparados, dois ou três atingem a areia perto de nós, um deles ricocheteando na porta aberta da van. E, embora a van esteja a menos de 5 metros, sinto que está longe demais e que não vamos conseguir chegar lá. Uma bala bate no chão meio metro à frente do meu rosto, me fazendo parar e ficar imóvel. Já perdi Victor de vista, mas vejo Niklas saindo da van com uma arma em cada mão, disparando muitos tiros, um após o outro.

— Depressa! — grito por cima do caos, virando a cabeça para ver se Lydia e Cordelia continuam me seguindo, colando o corpo ainda mais no chão.

Lydia grita, e vejo de relance sangue na areia perto do pé dela. Cordelia, apavorada, passa rapidamente por mim, forçando o corpo a avançar na areia, mesmo com os pulsos atados. Mas Lydia está imóvel e eu me viro para ajudá-la. Se eu tiver que arrastá-la pelo chão sozinha no meio de uma chuva de balas, é o que vou fazer.

— Meu pé! — grita Lydia para mim.

— Não pare, Lydia! Força! Você precisa se mexer!

Finalmente a alcanço e cubro a cabeça dela com os dois braços quando outra bala passa zunindo, quase nos acertando. Ela afunda o rosto no meu braço. Soluços agitam seu corpo.

Os tiros param, mas o estranho silêncio é quase tão apavorante quanto o barulho. Pelo que parece uma eternidade, tenho medo de erguer a cabeça, e quando a poeira começa a baixar, só vejo dois corpos de pé entre os mortos.

Victor e Niklas.

Soluços de alívio total sacodem meu corpo, fazendo meu peito se apertar várias vezes, até que sinto vontade de vomitar. Nem percebo que consegui me sentar, com os calcanhares descalços afundados na areia. Em algum momento, perdi meus chinelos. Lydia se joga em mim e eu a abraço tão forte que sinto meus dedos marcando suas costas. Ela faria o mesmo se não estivesse de mãos atadas.

— Sarai! Sarai! — grita Lydia, com a boca no meu ombro. Ela só consegue dizer meu nome.

— Eu sei, Lydia! Desculpe ter ido embora sem você. Estou tão arrependida! — Meu nariz arde de tanto chorar.

Lydia se afasta e me olha, balançando a cabeça.

— Não, não, você tentou — diz ela enquanto mexo furiosamente nos nós da corda, até enfim soltar seus pulsos. — Ficar foi decisão minha. Mas olhe, olhe, Sarai, você cumpriu sua promessa. Prometeu voltar para me buscar.

Eu a abraço de novo e ficamos ali sentadas assim, no chão, sem dar a mínima para os mortos que jazem perto. Só nos separamos quando vejo Niklas se aproximar.

Olho rapidamente para trás, para a van, e fico aliviada ao ver que Cordelia também escapou a salvo. Ela está encolhida no banco de trás, com as pernas contra o peito, se balançando, em estado de choque.

Eu me viro para Lydia, seguro seu rosto machucado e sujo, afastando seu cabelo longo e ruivo da boca e das bochechas com o polegar. Aperto os lábios contra sua testa.

— A gente vai levar você para casa — digo, e um sorriso terno e trêmulo desponta em meu rosto.

Ela sorri de volta para mim.

Um único tiro ecoa, rasgando o espaço aberto. O sorriso de Lydia desaparece enquanto olho nos olhos dela.

Aquele silêncio estranho e ameaçador está de volta, nos imergindo em sua infinita crueldade. Sinto que o tempo passa mais devagar, que de alguma forma o mundo ao meu redor seguiu em frente e me deixou ali para sofrer esse momento. Somos só eu e Lydia, nos olhando nos olhos. Os meus, sem querer acreditar. Os dela, perdendo o brilho de uma forma que faz calafrios percorrerem meu corpo.

São sempre os olhos...

Encaro aqueles olhos sem fundo, até que sua vida se esvai completamente e a cabeça dela cai para trás, como uma mola quebrada.

Mais um tiro ecoa. Embora eu veja a bala atravessando o crânio de Izel, e Victor baixando lentamente a arma, sinto que na verdade nunca tirei os olhos de Lydia, cujo corpo pende precariamente das minhas mãos.

E então, em um redemoinho de cor, movimento e som, o mundo me alcança de novo e eu grito para qualquer parte dele que esteja ouvindo, puxando o corpo sem vida de Lydia para meu peito, me balançando para a frente e para trás com ela nos braços. Os dela, flácidos, oscilam. Sinto seu sangue quente e espesso empapar o tecido da camiseta e escorrer pelas minhas mãos em suas costas.

Choro com o rosto afundado no cabelo dela, até que sinto seu corpo ser arrancado de mim.

— Não! — grito para quem quer que seja. — Saia de perto de mim! Deixe a gente em paz! — Minha voz falha e treme sob o peso de uma emoção que eu nunca soube que possuía.

— Precisamos ir embora — diz a voz de Victor de algum lugar acima de mim. — Não podemos mais ficar aqui.

— Não! — protesto, levantando a mão e tentando empurrá-lo.

— Agora, Victor — diz Niklas de trás. — Não temos tempo para isso.

Victor me pega pela cintura, me levanta com facilidade e me joga, de barriga para baixo, sobre o ombro. Eu esperneio, grito e esmurro suas costas enquanto ele me carrega para a van e para longe do corpo de Lydia.

— A gente não pode deixá-la aqui!

— É preciso.

Ele me coloca no banco de trás com Cordelia.

— Victor! Você não pode fazer isso! Por favor, não deixe Lydia aqui assim!

Há remorso em seu olhar. Eu o vejo; embora esteja escondido por trás do mistério sempre presente em seu rosto, vejo-o tão claramente quanto qualquer coisa.

Ele fecha a porta e as travas estalam de novo. Eu fico em silêncio absoluto no caminho para seja lá aonde eles estiverem nos levando.

 


CONTINUA