CAPÍTULO CATORZE
Victor
Niklas nunca soube quando ficar de boca fechada. Ele não tem disciplina, e por causa disso nossa Ordem sempre gostou mais de mim.
Estávamos juntos quando fomos recrutados, com 7 e 9 anos, mas também estavam conosco dois meninos da vizinhança que eram bons amigos nossos. Estávamos jogando bola no campinho atrás do pátio da escola, como fazíamos todo sábado à tarde, quando os homens chegaram. Niklas e eu não sabíamos que éramos irmãos, na época. Mas éramos grandes amigos. Inseparáveis como irmãos devem ser. Portanto, talvez, lá no fundo uma parte de nós já soubesse.
Apenas quatro anos mais tarde, depois que minha mãe foi morta em uma missão, descobrimos a verdade. A mãe de Niklas nos contou em segredo.
E foi mantido em segredo desde então.
— O que você fez, Victor? O que estava pensando? Onde é que você está com a cabeça?
Niklas aperta o volante até ficar com os nós dos dedos brancos. Ele se vira para me olhar a curtos intervalos, esperando que eu lhe dê uma resposta que não tenho.
Silenciosamente, engulo a dor que queima meu quadril.
Olho para Niklas.
— Você precisa dizer para Vonnegut que eles atiraram primeiro — digo, e vejo a relutância turvar suas feições na mesma hora. — Diga a ele que eu não tive escolha.
— Victor. — Ele balança a cabeça e depois bate no volante com a palma da mão. — O que aconteceu com você? — Ele cerra os dentes, contendo o tipo de coisas que gostaria de dizer, mas que sabe ser melhor engolir.
Ele bate no volante de novo.
— Sempre fiz tudo o que você pediu. Nenhuma vez me recusei. Raramente o questiono. Mas isso é porque confio em você, como devo confiar. — Ele inspira bruscamente e noto que seus olhos vagam até o espelho retrovisor. E então ele volta a me olhar. — Mas isso é diferente. Você está arriscando tudo: seu lugar na Ordem, seu relacionamento com Vonnegut, sua vida, minha vida. — Ele corta o ar entre nós com a mão. — Tudo por essa garota.
— Não estou fazendo nada disso.
— Então o que é? — retruca ele. — Se não foi por ela, foi por quê? Explique, Victor!
Ele muda de faixa na estrada para ultrapassar um carro lento.
— E por que você disse seu nome para ela? Você ficou instável. Eles eliminam os instáveis, Victor, você sabe disso.
Niklas se força a olhar de novo para a estrada, depois de pôr sal na própria ferida. A mãe dele era “instável”.
— Não vou deixar que nada aconteça com você por minha causa — digo. — Se você sente que deve dizer a verdade a Vonnegut, eu vou entender. Não vou julgar você por isso.
Ele balança a cabeça, desanimado.
— Não. Como sempre fiz, vou dizer a ele o que você precisa que eu diga.
Ele faz uma pausa e segura o volante com as duas mãos, passando uma palma nas costuras do couro, como que para evitar esmurrar outra coisa.
— Espero que um dia você me diga a verdade — acrescenta ele, sem olhar para mim. — Sobre o que está acontecendo com você. Sobre o que realmente aconteceu em Budapeste. E se aquilo tem algo a ver com o que você está fazendo agora.
— Não há nada para contar — digo.
— Porra! Eu não sou Vonnegut!
— Não, você é Niklas, a única pessoa no mundo em quem confio. — Eu aponto para a frente. — Deixe a gente ali. Vou precisar arranjar outro carro.
Apesar de não querer nada mais do que gritar comigo o dia todo até que eu lhe dê uma resposta satisfatória, Niklas desiste de vez do assunto. Disciplina. Algo que ele nunca vai ter.
Passamos pelo portão de uma concessionária de automóveis.
— Vá para a lateral — digo. — Espere por mim ali.
Sem fazer objeções, Niklas faz o que eu mando e estaciona na lateral do prédio, perto do veículo de outro cliente.
Antes de sair, olho uma vez para a garota, Sarai. Ela está imóvel e perdida. Seus olhos estão abertos, mas seja para o que for que ela esteja olhando, sei que não está realmente vendo. Quero que ela me olhe, só por um momento. Mas ela não olha e eu me afasto.
Sarai
Sinto que eu deveria estar como Cordelia, sentada ao meu lado, completamente acordada mas inconsciente disso. Sei que ela vai precisar de meses de terapia para superar o que enfrentou. Sei porque passei pela mesma coisa depois de ver minha mãe morrer.
O único aspecto no qual sou um pouco como a pobre Cordelia é que não consigo encontrar vontade para falar. Fico apenas sentada, deixando o tempo passar, sem tomar consciência dele, imune a seus esforços para me causar desconforto. Quinze minutos poderiam ser duas horas, e eu sinceramente não veria diferença.
Ao contrário de Cordelia, tenho consciência de tudo o que acontece a meu redor. Só não me importo.
Algum tempo depois, Victor sai do prédio e abre a porta da van pelo lado onde estou. Ele só me olha por um momento, como se esperasse alguma coisa; acho que espera que eu saia.
Olho para ele, deixando a cabeça cair para o lado no banco.
— Você não precisava tê-la deixado lá.
— Precisava, sim — diz ele, me dando a mão. — Ela vai ser encontrada logo, se é que já não foi. Você tem minha palavra.
Eu seguro a mão de Victor, mas olho para Cordelia antes de sair.
— E ela?
Victor olha para Niklas, no banco do motorista.
— Nada de paradas longas no caminho — instrui ele. — Encontre Guzmán no lugar que combinamos. O dinheiro pela filha dele. Informe-o do rumo dos acontecimentos e que não pudemos controlar a ausência de Javier, mas que o serviço vai ser feito.
— Como quiser, Victor — concorda Niklas secamente, suas palavras tingidas de amargura e decepção.
Victor me puxa pela mão e eu saio da van.
Quando vamos nos afastar, Niklas nos detém:
— Aonde vocês vão? — pergunta ele, com parte do corpo para fora da janela e o braço apoiado na porta.
— Por enquanto — diz Victor —, para Tucson. Espere meu contato quanto ao resto.
Niklas vai embora.
Enquanto Victor anda ao meu lado na direção de um carro cinza-escuro, novo e reluzente, fico para trás por um momento.
— Por que a gente está indo para Tucson?
Ele para imediatamente e se vira para me olhar.
— Vou levar você para casa.
CAPÍTULO QUINZE
Sarai
Quando vejo minha “casa” no horizonte, vários minutos depois, isso não me afeta do modo como sempre sonhei que afetaria. Nem levanto a cabeça do vidro do lado do passageiro para olhar enquanto passamos. Porque sei que não há nada ali para mim.
Em vez de admirar a cidade, olho o asfalto negro passando rapidamente enquanto rodamos sobre ele.
— Onde você mora? — pergunta Victor.
Finalmente ergo a cabeça e me viro para olhá-lo.
— Por que você está fazendo isso?
Victor suspira e volta a olhar para a estrada.
— Porque acho que você já viu o suficiente.
Ele para no estacionamento de uma loja de conveniência à beira da estrada. Está começando a escurecer.
— Precisa me dizer para onde devo levar você — diz ele, e eu detecto o traço mais tênue de desconforto em seu rosto. — Seu pai? — instiga ele, quando não respondo.
Distraidamente, balanço a cabeça.
— Meu pai pode ser qualquer um dos cem homens de Tucson. Eu nunca o conheci.
— Uma avó? Uma tia? Um primo distante? Aonde você quer ir?
Eu, bem literalmente, não tenho família. Como não conheço meu pai, não conheço ninguém da minha família pelo lado dele. Nunca tive irmão ou irmã; minha mãe fez laqueadura depois que nasci. Meus dois avós morreram quando eu era adolescente. Minha tia, Jill, mora em algum lugar da França porque tinha dinheiro para se mudar para lá e cortou relações com minha mãe quando eu tinha 13 anos. E, por consequência, cortou relações comigo, me acusando de ser igual a minha mãe, embora eu fosse tão diferente dela quanto a noite é do dia.
Sem querer dar a Victor qualquer motivo para crer que ele me deve mais alguma coisa, menciono a única pessoa que me vem à mente, para que ele possa me deixar lá e me entregar a qualquer espécie de vida que eu possa ter.
— A sra. Gregory — murmuro, perdida na lembrança da última vez que a vi. — Ela mora a uns dez minutos daqui.
Flagro os olhos de Victor fixos em mim do banco ao lado, e nossos olhares se cruzam por um momento. O que ele está esperando? Parece estar estudando meu rosto, mas não sei por quê.
Desvio o olhar e aponto na direção que ele deve seguir.
Victor começa a dirigir e vamos para o estacionamento de trailers onde eu morava.
Está exatamente do jeito que era quando eu parti, com brinquedos quebrados espalhados nos quintais, carros velhos caindo aos pedaços estacionados em vários lugares, grama crescendo ao redor dos pneus murchos. Aparelhos de ar-condicionado fazem um barulhão no ar do fim de tarde, e cães latem, presos a correntes curtas enroladas em árvores. Quando passamos pelo pequeno trailer azul no qual passei a maior parte da minha vida, mal olho para ele. Mas me pergunto, só por um momento, quem mora ali agora, e se já conseguiram se livrar das baratas que o infestavam incessantemente, coisa que minha mãe nunca conseguiu.
— Aqui — digo baixinho, apontando para o que espero ainda ser o trailer da sra. Gregory, dois depois daquele.
Mas, ao ver o Bronco vermelho-vivo estacionado na frente, começo a achar que não é mais. Depois de nove anos, eu não esperava que fosse.
Vou sair do carro, mas Victor me segura.
— Tome — diz ele, enfiando a mão no bolso interno do paletó.
Ele puxa um maço grosso de notas de 100 e me entrega. Corro os olhos dele para o dinheiro, hesitando apenas porque é muito inesperado.
— Sei que é dinheiro sujo — diz ele, aproximando mais o maço de mim —, mas quero que você aceite e faça o que precisar com ele.
Balanço a cabeça em agradecimento e pego o maço de notas.
— Obrigada.
Começo a ir embora, mas paro e digo:
— E Javier? Se está disposto a pagar tanto para me ver morta, ele vai mandar outra pessoa me procurar se você não me matar.
— Ele estará morto antes que isso aconteça.
— Você vai matá-lo? — pergunto, mas depois acrescento: — Isto é, não por minha causa, é claro, mas para aquele outro homem? — Quero que ele diga que é por minha causa, sim, mas sei que não é esse o motivo.
— Você vai viver em segurança, agora — diz ele simplesmente.
Ficamos um momento em silêncio e então saio do carro, fechando delicadamente a porta atrás de mim. E vejo Victor ir embora, as lanternas do carro sumindo nas sombras ao fim da rua. Então ele some. Desse jeito.
O que foi isso?
Duvido que um dia eu consiga entender os últimos nove anos da minha vida, e menos ainda os últimos dias. Parada ali, na entrada de um lugar familiar e ainda assim tão estranho para mim, percebo que não consigo me sentir eu mesma. Ao menos não a pessoa que eu era, ou a pessoa que eu deveria ser se essa oportunidade não tivesse sido tirada de mim por Javier. Pela minha mãe.
Levei uma vida de isolamento e escravidão, prisioneira de um traficante mexicano que, embora me tratasse com um tipo estranho de gentileza, me maltratava de outras formas. Passei a maior parte da minha juventude dormindo com um homem que eu não amava e com quem não queria dormir. E Javier é o único homem com quem já estive sexualmente. Vi estupros, sequestros e todas as formas possíveis de maus-tratos. E vi mortes. Muitas mortes. Minha única amiga morreu nos meus braços há apenas algumas horas. Vi a vida deixar seu corpo enquanto ela olhava para mim.
Depois de tudo isso, ao rever casualmente essas lembranças, como se estivesse olhando as cartas que tenho na mão em um jogo, nada está me afetando como deveria, como afetaria uma garota normal. E eu sei por quê. Apenas detesto admitir para mim mesma: com o passar dos anos, me acostumei com isso. Era assim que minha vida era. Minha mente se conformou e se adaptou da melhor maneira que podia.
Mas agora aqui estou, de volta à minha cidade, Tucson, livre para fazer o que quiser. Posso andar algumas quadras até a lojinha onde ia todo dia depois da aula e comprar um refrigerante e um pacote de Doritos. Se eu quiser, posso ir para minha antiga escola primária, no fim da rua, e brincar nos balanços, ou me deitar no gramado ao redor do prédio e olhar as estrelas até pegar no sono. Posso roubar aquela bicicleta no quintal do trailer número 12 e pedalar até a casa da minha velha amiga, a 30 quilômetros daqui. Mas o trailer atrás de mim no final do calçamento de concreto também serve. E está aqui perto. Estou levando mais tempo do que previa para ir até a porta e descobrir se a única pessoa conhecida que sei que pode me ajudar ainda mora ali.
Posso fazer o que eu quiser; no entanto, acho infinitamente difícil decidir por onde começar. Ou até mesmo se devo começar.
Acho que agora sei como é quando uma pessoa passou metade da vida na prisão e é solta no mundo de novo. Ela não sabe o que fazer consigo mesma, não sabe como voltar a se inserir na sociedade. Fica o tempo todo olhando por cima do ombro. Não consegue acordar mais tarde do que cinco da manhã, nem acreditar que pode escolher o que comer e quando comer. Violência, escuridão e confinamento fazem parte dela a tal ponto que metade do seu ser nunca aprende nenhuma outra forma de viver.
Não quero que seja assim. Mas no momento, parada aqui, olhando para a luz brilhante sobre a porta e deixando que forme manchas em meu campo de visão, sinto que é assim que vai ser para sempre, quer eu deseje isso ou não.
Uma sombra passa pela janela da frente.
Enfio o maço de notas no bolso de trás do meu short, puxo meu top por cima e respiro fundo.
Vou até os degraus de madeira e bato de leve na porta.
— Quem é? — pergunta uma voz masculina do outro lado.
Tenho certeza absoluta, agora, de que ela já foi embora há muito tempo deste lugar.
— É... Sarai. Eu morava lá no trailer 15.
A corrente da porta faz ruídos, e então a passagem se abre. Um homem baixinho e gorducho me espia.
— Em que posso ajudar?
Ele está sem camisa, e sua barriga redonda cobre o elástico da bermuda de ginástica que vai até o joelho. O cheiro de pipoca me alcança.
— A sra. Gregory ainda mora aqui? — Fico sem jeito de perguntar, porque já sei que ela não mora mais.
O homem balança a cabeça.
— Sinto muito, mas já moro aqui há dois anos — diz ele. — E nunca ouvi falar dessa sra. Gregory.
— Certo, obrigada.
Dou as costas para ele e desço os degraus.
— Você está bem? — pergunta o homem.
Eu o olho por um momento.
— Sim, ótima. Obrigada por perguntar.
Ele assente e fecha a porta enquanto vou embora; o som da corrente sendo encaixada no lugar é breve.
Meus pés descalços se movem sem dor pela estrada de areia e pedra do estacionamento de trailers. A iluminação pública de postes altos começa a diminuir e eu mergulho na escuridão quando chego ao fim da rua e saio do terreno. Um carro passa por mim e fico tensa instantaneamente, achando que pode ser Javier que veio me matar. Mas o veículo segue em frente e me deixa apenas com o coração descompassado e pensamentos paranoicos. Pelo menos sei que Izel está morta. Lembro seu último momento, deitada de barriga na areia com aquela arma na mão. Não tive um sobressalto nem me encolhi ao ver a bala de Victor atravessar seu crânio, nem quando o corpo dela desabou de cara no chão, como um bebê caindo no sono sobre o bolo de aniversário. Não, só senti a satisfação da vingança. Fiquei feliz por vê-la morrer. Porque ela merecia.
Só queria ter sido eu a matá-la, pelo que fez com Lydia.
Passando ao lado de uma dúzia de caixas de correio, vejo a placa de “Pare” à frente, onde lembro que, se eu for para a esquerda, chegarei à escola primária. Decido nesse momento que é para lá que eu vou, pois não tenho outro lugar para ir. E depois de muitos longos minutos de caminhada, chego lá, feliz ao ver que nada no playground mudou, pelo menos. A mesma velha gangorra enferrujada de que me lembro fica perto do balanço, com um dos lados erguido no ar. Três brinquedos de mola, um golfinho, um leão e uma morsa estão perfilados dentro de um mar cercado de cascalho. Abro caminho pela grama seca e me sento no mesmo balanço que sempre procurava quando começava o recreio. E felizmente a sensação também é a mesma. O modo como seguro as correntes acima da cabeça, como o banco de plástico encaixa direitinho nas minhas coxas. Mas estou bem mais alta agora do que era então, por isso minhas pernas se dobram desajeitadamente embaixo de mim. Afundo os dedos dos pés nas pedras frias e vejo a luzinha branca de um avião cruzar o céu distante, sem fazer nenhum som.
E o único rosto que vejo em meus pensamentos é o de Victor. Ele me ajudou, afinal, mesmo depois que eu aceitei que jamais teria sua ajuda. Penso na conversa que ele teve com Niklas na van e isso, para mim, só levanta mais perguntas sobre Victor. Eu me pergunto por que ele atirou primeiro, por que simplesmente não seguiu o plano original de me entregar, me trocar por Lydia e, aparentemente, Cordelia, que eu nem fazia ideia de que estava incluída nisso. Talvez ele soubesse que Izel teria me matado de qualquer maneira e depois tentaria matar Victor e pegar Lydia e Cordelia de volta. É bem plausível que Javier tenha mandado Izel seguir o plano, fazer a troca e então, assim que tivesse oportunidade, começar a atirar em nós. Não sei; a coisa poderia ter acontecido de muitas maneiras. E Victor poderia ter vários motivos para fazer o que fez.
Só tenho certeza de que estou viva graças a Victor. Estou em casa, em Tucson, graças a Victor. Estou livre de uma vida que não escolhi graças a Victor.
Assassino de aluguel frio ou não, ele salvou minha vida.
Enfio a mão no bolso de trás e pego o dinheiro. Corro os dedos rapidamente pelas bordas, deixando as cédulas caírem velozmente uma sobre a outra, fazendo um leve vento em meu rosto. Deve ter no mínimo uns 5 mil dólares. Começo a contar as notas, mas paro depois de contar um quarto delas, me dando por satisfeita de que é muito dinheiro. O bastante para pagar um lugar para passar a noite, para poder tomar um banho e descansar. Resolvo fazer exatamente isso, aliviada por ter preparado uma primeira parte sólida de um plano muito longo. Mas então me dou conta de que não tenho nem carteira de habilitação. Não tenho absolutamente nenhuma identificação que prove que eu sou eu ou qualquer um. Seria muita sorte minha encontrar um hotel que me alugue um quarto sem pedir algum documento, por mais que eu tente suborná-los. E preciso gastar esse dinheiro com sabedoria, fazer o que puder para que dure. Porque é tudo que tenho.
No fundo, sei que poderia simplesmente procurar a polícia, contar minha história, e eles me ajudariam. Mas me sinto tão oprimida por coisas simples que poderiam ser resolvidas com algum trabalho, eu sei, que me sinto completamente derrotada por tudo.
Suspiro, infeliz, afundando a cabeça entre os ombros caídos, e aperto um pouco mais os dedos dos pés nas pedras, movendo-os em círculo.
E então, pela primeira vez no que parece uma eternidade, caio em um choro de autopiedade. Não de raiva, angústia ou frustração. Choro por mim mesma. Soluços sacodem meu corpo. Deixo o dinheiro cair no chão perto dos meus pés descalços, agarro as correntes do balanço e ponho tudo para fora.
Quando termino, minutos depois, levanto a cabeça e enxugo as lágrimas do rosto.
Um par de faróis surge na rua do outro lado do prédio da escola, e eu olho o carro até que ele para na rua a uns 15 metros de mim.
É Victor.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Sarai
Não me levanto de imediato. Apenas olho por sobre a grama para o carro, sabendo o que quero fazer mas tendo dificuldade para concluir se é o que devo fazer. Mas então, finalmente, fico de pé, cedendo ao desejo, recolho o dinheiro do chão e vou na direção do carro.
O vidro desce segundos antes que eu chegue.
— Quem era a sra. Gregory? — pergunta Victor, com as mãos apoiadas casualmente no volante.
Abro a porta e entro no carro; nenhum de nós dois precisa questionar ou explicar por que ele está aqui. Ambos já sabemos. Quase completamente.
Fecho a porta.
— Ela era mais mãe, para mim, do que minha mãe de verdade.
Uma brisa leve passa pela janela aberta e balança meu cabelo.
Victor fica em silêncio, me olhando, me deixando reviver aqueles momentos. Meus olhos estão fixos à frente, examinando a escuridão através do para-brisa imaculado.
— Eu passava a maior parte do tempo com ela — continuo, agora vendo apenas o rosto da sra. Gregory em minha mente. — Ela me convidava para jantar e a gente assistia a CSI juntas. Ela adorava fazer Chex Mix em casa. — Olho para o lado, rindo um pouco. — Era uma velha maldosa. Não comigo, é claro, mas falou um monte para minha mãe várias vezes. E uma vez, um dos namorados da minha mãe apareceu na casa dela me procurando... — Mais uma vez olho para o lado rapidamente e digo: — Era um dos babacas que achavam que, por estarem dormindo com minha mãe, podiam mandar em mim. Bom, ele bateu com força na porta da sra. Gregory, chamando meu nome. Foi tão engraçado! — Eu rio de novo, apoiando a cabeça no encosto. — Ela abriu a porta com uma espingarda na mão. Não estava carregada, mas nem precisava. Parecia que o cara tinha levado um chute no saco. Nunca mais foi lá me procurar.
Sinto o sorriso desaparecer dos meus lábios quando outras lembranças surgem.
— Ela ficou bem doente, uma vez — digo, com voz distante. — Precisava fazer uma cirurgia em uma artéria, sei lá, mas lembro que fiquei com muito medo de que ela morresse. Mas ela aguentou. — Minha cabeça cai para o lado, ainda apoiada no encosto, e eu olho bem nos olhos de Victor. — Mas vou me lembrar dela para sempre, principalmente porque ela me ensinou a tocar piano. Por cinco anos, desde que eu tinha 8, quando a gente se conheceu, até quando comecei a andar mais com minha melhor amiga, parecia que a sra. Gregory me ensinava quase todo dia. Eu ia para lá depois da aula, às vezes se esquecia de fazer o dever de casa, e tocava até meus dedos doerem. — Baixo os olhos para o painel, com remorso. — Queria nunca ter conhecido Bailey. Até hoje me sinto culpada por ter trocado a sra. Gregory pela minha amiga.
Não posso mais falar disso. Balanço a cabeça e respiro fundo, me erguendo do banco. E então estendo o dinheiro para ele, querendo que o pegue.
— Fique com ele — diz Victor, pondo o carro em modo de partida. — Você vai precisar.
Eu o deixo entre meu banco e o painel.
— Sabe, você está correndo o risco de virar um membro confiável da sociedade — brinco.
Vejo os olhos dele se moverem na minha direção sem que ele vire a cabeça.
— Talvez — diz ele, pegando a rodovia. — Mas quero que fique claro que, se isso for verdade, vou precisar amarrar você de novo. — Ele olha para mim, e, embora seus lábios não estejam sorrindo, vejo que seus olhos estão.
Eu me viro para a janela do meu lado porque, ao contrário de Victor, não tenho absolutamente nenhum controle sobre o sorriso em meu rosto, e não posso correr o risco de que ele o veja.
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Paramos em um hotel assim que saímos de Tucson, e, em vez de fugir, desta vez o ajudo a carregar as bagagens para nosso quarto, no terceiro andar. Nosso quarto. Duas palavras que, dias atrás, eu jamais teria imaginado usar tão casualmente. Perguntei se eu poderia ficar em um quarto separado, mas ele insistiu para que eu ficasse por perto enquanto estivesse com ele. Nem precisei perguntar por quê. Estando em fuga com alguém como ele, imagino que seja melhor assim, mas sinto que há algo mais nisso que ele não está me contando. Sou desviada desses pensamentos quando vejo o sangue na barra da camisa de Victor, quando ele a puxa de dentro da calça.
— Você está sangrando? — Vou até ele, tentando ver melhor aquele lado de seu corpo.
— Sim, mas vou ficar bem.
— Mas por que... você levou um tiro?
Ele abre todos os botões da camisa, expondo seus músculos peitorais e abdominais bem-definidos, mas eu só noto mais sangue.
Agora entendo por que ele estava com tanta pressa de chegar ao quarto e por que parecia estranhamente desconfortável desde antes de nos separarmos de Niklas e Cordelia.
— Vá até a recepção e peça um frasco de água oxigenada, gaze e álcool. Eles devem ter uma caixa de primeiros socorros.
Meus olhos correm dos dele para o sangue enquanto tento localizar o ferimento. Ele termina de tirar a camisa e a joga no chão.
Finalmente eu noto seu físico.
— Sarai?
Levanto a cabeça para olhá-lo.
— Está bem, eu já volto.
Saio apressada, não correndo, mas apertando o passo, para não atrair atenção demais. Meu Deus, me sinto uma fugitiva.
A atendente leva vários longos minutos para encontrar tudo o que pedi, depois de deixar a recepção e procurar na despensa. Porque ela só tinha um minúsculo kit de primeiros socorros com alguns curativos e pomada antibiótica perto de sua mesa.
— Desculpe, não achei água oxigenada, mas leve uma garrafa inteira de álcool. — A garota me entrega a garrafa e uma caixa fechada de gaze em rolo por cima do balcão. — O que aconteceu? Está tudo bem?
Agradeço e pego as coisas do balcão.
— Sim, está tudo bem. Meu, hã, namorado cortou a mão com o canivete. — Balanço a cabeça e reviro os olhos dramaticamente. — Ele estava tentando abrir uma daquelas embalagens de plástico à prova de seres humanos. Eu falei para ele descer e pedir uma tesoura, mas ele insistiu que “dava conta”. — Reviro os olhos de novo para melhorar um pouco o efeito.
A garota dá uma risadinha.
— Parece o meu namorado.
Rio com ela, agradeço de novo e volto para o elevador, com toda a pressa do mundo para me afastar.
Victor está com a calça abaixada de um lado do corpo quando volto. Ele está de pé diante do espelho, se torcendo desajeitadamente para ver o ferimento, que agora noto bem. Há um pequeno buraco na região mais carnuda, logo acima do osso da bacia. Não parece estar sangrando muito mais, embora sua camisa esteja bastante empapada, o que prova que já saiu mais sangue do que deveria.
Vou até lá e deixo as coisas no balcão da TV, na frente do espelho.
— A bala ainda está aí dentro? — pergunto, olhando o ferimento com mais atenção.
— Sim — diz ele, pegando o álcool —, mas não entrou muito.
Tirando a tampa, Victor derrama um pouco de álcool na ferida. Ele faz uma careta e fecha os olhos por um momento, até que o ardor passe.
— Deixou a bala aí esse tempo todo? — pergunto, sem conseguir pensar em um motivo aceitável para isso. — Por que não fez isso antes? Ou foi para um hospital?
Então me dou conta de que ele não cuidou do ferimento depois de me deixar, que esperou até...
— Victor? — chamo ao perceber.
Ele vai até sua bolsa, que está na mesa perto da janela, e enfia a mão dentro.
— Sim? — Ele mal me olha, mais ocupado com o canivete que acaba de pegar da bolsa.
No último segundo, decido não revelar minhas conclusões em voz alta. Porque provavelmente estou muito enganada e não quero parecer boba de acreditar em algo tão absurdo.
— Deixa pra lá — digo. — Precisa de ajuda?
Ele pondera a oferta.
— Não, eu consigo. Já fiz isso antes.
Talvez a mentira que contei para a recepcionista tenha um fundo de verdade, no fim das contas. Abro um sorrisinho ao pensar nisso e então atravesso o quarto até Victor, com o álcool e a gaze nas mãos.
— Você não está conseguindo nem ver a ferida direito — argumento. — Eu posso ajudar. Só me diga o que fazer. Não sou completamente inútil.
Mais uma vez, seu rosto parece levemente contemplativo, e então, para minha surpresa, ele tira a calça e fica quase nu na minha frente, usando apenas uma cueca boxer preta e justa que define cada curva e volume másculo de seu abdômen inferior até o alto das coxas. É natural que eu o admire um pouco, especialmente por ele estar tão em forma, mas não deixo que isso me distraia. Aquela bala merece toda a minha atenção, e trato de dá-la.
Ele esquenta a lâmina do canivete com um isqueiro, por algum tempo, e o estende para mim. Nunca fiz nada parecido com isso e fico um pouco horrorizada só de pensar, mas tento não deixar o medo transparecer em meu rosto. Seguro o canivete pelo cabo e espero que ele me instrua.
— Como eu falei, não entrou muito. É só puxá-la para fora com a ponta da lâmina.
Faço uma careta para a imagem que suas palavras criam em minha mente.
— Mas e se eu cortar você?
— Não vai ser pior do que o estrago que a bala já fez. Agora anda — diz ele, puxando o elástico da cueca mais para baixo até o osso do quadril para me dar melhor acesso.
Disfarçadamente, olho de relance a curva rígida do músculo de sua pélvis e depois começo a trabalhar.
Hesitando, aproximo o canivete de sua pele e olho para ele, torcendo para que mude de ideia e resolva fazer sozinho.
Porque realmente acho que não consigo.
— Anda — apressa ele. — Não vai doer mais do que já está doendo.
Eu me ajoelho para ficar com os olhos na altura do ferimento e sinto meu rosto em brasas quando noto o contorno de sua masculinidade através da cueca justa. Mas mesmo assim não deixo sua genética obviamente privilegiada me distrair da tarefa em questão.
Com cuidado, enfio a ponta da lâmina na ferida, meu rosto se contraindo e se retorcendo em uma careta horrível. Nervosa de início, demoro muito para enfiá-la mais, até que ele se cansa de esperar.
— É como puxar o curativo de um machucado, Sarai — diz ele, irritado. — Acabe com isso de uma vez. Quanto mais você demora, pior é.
Mordo o lábio inferior, aperto os dedos da outra mão na parte de trás de sua coxa rija para ter mais apoio na área e enfio o canivete mais fundo. Sinto seus músculos se contraindo sob minha mão, mas estou nervosa demais para olhar para cima e ver a dor que sei que está aparecendo em seu rosto.
— Por que você voltou para mim? — pergunto, em parte para não pensar no que estou fazendo, mas também por querer mesmo saber.
— Eu não fui embora — diz ele, e levanto a cabeça para olhá-lo nos olhos. Ele desvia o olhar e acrescenta: — Achei que você estava sendo seguida. Eu planejava ficar e esperar até que Javier ou quem ele tivesse enviado aparecesse onde você estava.
Surpresa com a confissão dele, tiro o canivete de dentro de sua carne e inclino mais a cabeça para encará-lo.
— Você estava me usando como isca?
Não sei se a dor que sinto de repente é porque ele pôs minha vida em risco para pegar Javier ou porque não se importa tanto com meu bem-estar quanto eu havia começado a pensar.
Victor suspira baixinho, embora ainda irritado, mas parece que mais pelo que eu disse do que pela demora para puxar a droga do curativo.
— Não — diz ele. — Logo depois que saí da estrada principal, vi outro carro passando. Um Cadillac novinho em folha. Preto, caro. Achei que não combinava com este bairro.
Eu me sinto boba antes mesmo que ele termine de explicar.
— Por isso dei meia-volta, parei na estrada e fiquei vigiando, só para ter certeza.
Eu me lembro do carro agora, o único que passou por mim, que me deixou imensamente nervosa.
Volto a trabalhar para encontrar a bala, tentando ao máximo ser cuidadosa.
— Desculpe — digo.
— Por quê?
Finalmente, vejo a bala no meio do sangue e a extraio com a ponta da lâmina.
— Por acusar você.
A bala cai no chão e uma golfada de sangue sai do ferimento.
— Pegue a gaze — diz ele calmamente, apontando para o rolo na mesa.
Faço o que ele manda enquanto ele derrama mais álcool no ferimento ensanguentado, cerrando os dentes ainda mais do que antes.
Pego a gaze da mesa e abro a embalagem, desenrolando o rolo todo, que mal é o suficiente para dar duas voltas na cintura dele, muito menos o número necessário para ajudar a estancar o sangue.
— Não precisa suturar ou alguma coisa assim? — pergunto.
— Não no momento — diz ele. — Não tenho nada para fazer a sutura. Você vai ter que encher de gaze.
— Mas isso não vai...
— Vai resolver — garante ele, indicando com a cabeça a gaze que estou segurando.
— Acho que Izel se vingou daqueles tiros que você deu nela — digo ao me ajoelhar de novo na altura do ferimento.
— Acho que sim — diz ele. — Use o dedo para enfiar a gaze. Pode apertar com força.
Sem nem pensar no sangue empapando minhas mãos, começo a preencher o buraco com a gaze até que não entra mais nada. Mas vejo agora que realmente não é muito fundo, uns 2 centímetros, no máximo, e parece mesmo pior do que é.
Depois de cortar a sobra da gaze, ele puxa a cueca para cima, logo abaixo da cintura.
— Vou tomar banho — diz ele, indo para o banheiro. — Não abra a porta para ninguém. E fique longe da janela. Obrigado pela ajuda.
— Claro. Às ordens — digo secamente.
Gostaria que ele fosse um pouco mais falante. Vou ter que dar um jeito nisso.
Ele entra no banheiro, e segundos depois ouço a água correndo.
Eu me jogo na cama e ligo a TV, procurando o noticiário local. Quando encontro, não consigo fazer nada além de olhar fixamente a mulher de cabelo preto diante do lugar onde “dez corpos foram encontrados mortos a tiros hoje de manhã”, e o resto do que ela diz desaparece no fundo da minha mente. Dói pensar em Lydia, na maneira horrível como ela morreu. Dói saber que não pude ajudá-la como prometi, e que seus avós logo vão saber de sua morte e ficar arrasados.
A única coisa boa que tiro da matéria é saber que o corpo de Lydia foi encontrado, que não foi abandonado ali para apodrecer e virar pó sem nunca ter sido identificado.
CAPÍTULO DEZESSETE
Victor
A garota está dormindo quando saio do chuveiro. Apago as luzes do quarto e verifico duas vezes se a porta está trancada antes de parar ao lado da cama dela. Ela está encolhida em posição fetal, com um travesseiro apertado contra o peito. Está imunda e precisando de um banho também, mas estava exausta por tudo o que aconteceu.
Observo o modo como seu cabelo longo e ruivo, embora desgrenhado, emoldura os contornos de seu rosto. Parece em paz deitada ali, inocente. Apesar da exaustão, depois de tudo o que passou, acho interessante que ainda consiga dormir.
Vou precisar arranjar logo umas roupas e sapatos novos para ela.
Com cuidado, cubro seu corpo com a colcha e a deixo em seu sono profundo, me sentando à mesa do outro lado do quarto.
Estou infringindo minhas próprias regras mantendo-a por perto assim. Eu sei que deveria tê-la deixado no estacionamento de trailers e esperado que Javier fosse buscá-la — pois certamente seria um dos primeiros lugares onde ele procuraria —, o que tornaria mais fácil eliminá-lo. Mas sinto que estou em dívida com ela, que devo mantê-la viva. Ao menos por enquanto. Ao menos até que Javier Ruiz esteja morto. Ela já viu demais, já sentiu demais. Demonstra todos os sinais de ter perdido a capacidade de reagir de forma adequada ao medo e ao perigo. Está insensível ao perigo, e isso por si só é uma sentença de morte.
Quando isso acabar, vou deixá-la por conta própria de novo. Talvez encontre seu caminho, embora as chances sejam ínfimas. Mas é um risco que preciso correr. Ela não pode ficar comigo muito mais tempo; a vida que eu levo só vai acabar por matá-la.
Faço contato com Niklas através de um link de vídeo ao vivo no meu iPad, usando apenas um dos fones de ouvido, para poder controlar o volume da minha voz ao falar com ele.
— Ela ainda está com você? — pergunta Niklas, incrédulo.
Eu não esperava nada menos, vindo dele.
— Vou me livrar dela depois de eliminar Javier Ruiz — digo. — Por enquanto, preciso dela por perto. Não vou conseguir procurar Javier se ele estiver em movimento, procurando por ela.
— Então vai usá-la como isca? — Ele parece mais disposto a aceitar essa possibilidade.
Olho de relance para Sarai para me certificar de que ela não está acordada.
— Sim — respondo, voltando a olhar para ele, mas sinto na hora que estou enganando meu irmão e, por sua vez, meu empregador.
Sou conhecido por assumir o controle das coisas e infringir o protocolo para ter sucesso em uma missão. Com o tempo, minhas decisões baseadas puramente em instintos passaram a ser aceitas e respeitadas por Vonnegut. Porque eu nunca me enganei. Mas infringir o protocolo enganando descaradamente a Ordem é um território novo para mim.
E ainda não entendo completamente por que estou fazendo isso.
— Ótimo — diz Niklas. — Vamos ao que interessa. O último paradeiro conhecido de Ruiz foi perto de Nogales. Ele teve problemas para cruzar a fronteira pelo Arizona, mas finalmente recebeu permissão quando seus agentes infiltrados na polícia de fronteira chegaram para liberá-lo. Acreditamos que ele esteja a caminho de Tucson, se é que já não chegou.
Logo depois, Niklas acrescenta:
— Qual é seu próximo passo? Vonnegut praticamente passou as rédeas desta missão para você. Só o que ele pede são relatórios. E como você pode entender, tenho certeza, ele acha que está demorando demais para terminar. Javier deveria ter sido eliminado ontem, e você já deveria estar em um avião a caminho de sua próxima missão, a esta altura.
— Sei disso — explico. — Mais 48 horas, no máximo, é só disso que preciso.
Niklas aceita, assentindo em resposta.
— Vou levar a garota comigo para Houston de manhã — continuo. — Informe o Abrigo Doze da minha chegada.
— Por que o Doze? — Niklas me olha desconfiado. — Você sempre prefere o Abrigo Nove. Doze não é o seu... tipo, digamos.
— Não estou indo lá para isso — respondo.
Ele acredita, mas sinto que não necessariamente concorda.
Algo está diferente em meu irmão, como meu contato e meu irmão, e pretendo descobrir o que é.
— Por que ir para Houston, afinal? — pergunta ele, parecendo totalmente irritado com minhas decisões. — Você podia esperar que ele fosse atrás de você e acabar com essa história. Por que, Victor, você está prolongando isso? — A raiva e a frustração aumentam em sua voz.
— Estou levando a garota para lá para mantê-la a salvo — digo, e há mais dúvida do que o suficiente em seu rosto para demonstrar que ele está louco da vida com meu raciocínio. Assim, para o bem de nosso relacionamento, eu acrescento: — Niklas, isto é só temporário, garanto. Você precisa confiar em mim.
— Muito bem — concorda Niklas, controlando sua desconfiança. — Vou avisar o Abrigo Doze da sua chegada. Ela estará à sua espera.
E então a conexão em vídeo se desfaz.
Passo o dedo por vários pontos da tela, entrando no sistema operacional do tablet. Digito uma longa série de comandos, apagando do aparelho qualquer evidência de mensagens e depois causando uma falha no sistema. Passo silenciosamente por Sarai e levo o iPad para o banheiro, apagando minhas impressões digitais de cada centímetro quadrado dele, usando o que restou do álcool de antes. Em seguida, mergulho o aparelho no reservatório da descarga.
Eu me deito na cama ao lado da janela, de costas, olhando para o teto escuro.
— Ele não gosta muito de mim, não é?
Fico silenciosamente espantado ao perceber que ela fingiu que estava dormindo sem que eu percebesse.
Ela estava fingindo? Ou estou ficando desconcentrado demais por causa dela?
— Não, não gosta — respondo, sem olhar para ela.
— Mas você gosta?
A pergunta me desarma.
Ela se levanta da cama e viro a cabeça para olhá-la se aproximar. Sem saber o que fazer, incapaz de interpretá-la porque estou confuso com suas ações, não falo nada. Ela se deita ao meu lado. Seus joelhos estão encolhidos e unidos, as mãos escondidas entre eles, e ela olha para mim.
— Você deveria voltar para sua cama — digo.
— Eu só quero dormir aqui. Não é o que você pensa. Só estou com medo.
— Você não tem medo de nada — digo, voltando a olhar para o teto.
— Engano seu — rebate ela. — Eu tenho medo de tudo. Do que o amanhã vai trazer e de não estar viva para ver. Tenho medo que Javier ou qualquer um entre por aquela porta e me mate enquanto durmo. Tenho medo de nunca levar uma vida normal. Nem sei mais como é ser normal.
— Há uma grande diferença entre medo e incerteza, Sarai. Você não tem medo de nada, mas está incerta sobre tudo.
— Como pode acreditar nisso? — Ela parece genuinamente confusa pela interpretação que faço.
Olho para ela e respondo:
— Porque você não procurou a polícia. Porque não fez nenhum esforço para entrar em contato com nenhum conhecido e teve dezenas de chances para isso. Porque você entrou de novo no carro. Comigo. Um assassino. Porque sabe que eu a mataria sem pensar duas vezes e não sentiria remorso, e mesmo assim está deitada ao meu lado. Aqui nesta cama. Sozinha e por vontade própria.
Estendo a mão, pego a arma do chão ao lado da cama e antes que ela perceba o que está acontecendo, o cano está pressionado sob seu queixo, forçando sua cabeça para trás. Pressiono meu corpo ao dela, nossos ombros se tocando, o peso da minha mão segurando a arma contra o peito dela. Meus olhos estudam os dela, a interrogação e a surpresa neles, ainda que tênue. Olho para sua boca, seus lábios macios e inocentes levemente apertados.
Eu me aproximo e sussurro no canto de sua boca:
— Porque você não está tremendo, Sarai. — E então, lentamente, afasto a arma, sem nunca desviar meu olhar do dela. — Não sou Javier — digo. — Você está enganada se acredita que pode me manipular como o manipulava.
Ela parece ofendida; embora isso seja quase imperceptível em seus olhos, eu vejo. É exatamente a reação que eu queria. De que eu precisava para saber que minha acusação é falsa.
Sem discutir, ela desvia o olhar e se vira para o outro lado. Não se levanta e não volta para sua cama.
E eu não a obrigo.
— Eu não estava com Javier porque queria — diz ela, de costas. — Não tenho nenhum motivo para manipular você.
Um minuto de silêncio se passa; somente pés se arrastando pelo corredor acarpetado lá fora o perturbam.
— Fico feliz por você ter voltado — diz ela, com ternura. — E, Victor... preciso lhe dizer, eu menti os últimos nove anos da minha vida. Tudo o que falei, fiz e expressei era mentira. Gosto de pensar que agora já domino essa arte. — Ela faz uma pausa, e eu não preciso me perguntar por muito tempo aonde ela quer chegar com isso. — Notei que toda vez que você fala com aquele homem, Niklas, sobre mim, está mentindo para ele. — Ela vira a cabeça para trás para me olhar. — Obrigada por me ajudar.
E então ela se vira de novo e não me diz mais nada pelo resto da noite.
Sarai
Pela manhã, acordo enrolada no lençol, no meio da cama de Victor.
Queria saber se ele dormiu aqui.
— Vamos — diz ele, de algum lugar atrás de mim. — Temos duas horas antes do horário do nosso voo, e você precisa de roupas novas.
Eu me viro e o vejo de pé no quarto, completamente vestido, em seu terno e sua camisa branca ensanguentada, esperando por mim.
Olho para a camisa enfiada na calça, vendo uma mancha de sangue.
— Não sou só eu que preciso de roupas novas.
Vou até ele e estendo a mão para levantar sua camisa, mas ele fecha um botão do paletó e esconde a evidente mancha vermelha no tecido branco.
— Como está se sentindo? — pergunto, só um pouco magoada por ele me ter negado a oportunidade de examinar seu ferimento.
— Ótimo.
— Mas você precisa pelo menos trocar aquela gaze.
— Eu sei — diz ele despreocupadamente. — Vou cuidar disso quando chegarmos a Houston.
Vamos até uma loja de departamentos próxima, onde ele estaciona e sai do carro. Fico sentada, supondo que ele não me obrigará a entrar descalça e do jeito que estou.
Antes que ele feche a porta, digo:
— Acho que preciso lhe dizer meu tamanho.
Ele fecha a porta sem me deixar terminar e dá a volta até meu lado, abrindo a porta e esperando por mim.
— Você veste 40 — diz ele, me surpreendendo. — Agora saia do carro. Não pode ficar aqui fora sozinha.
— Também não posso entrar lá. — Aponto para meus pés descalços, que agora estão com as solas pretas de andar sem sapatos desde ontem. — Eu estou descalça. Não atendem gente sem camisa e sem sapatos.
Parecendo aborrecido comigo, Victor me pega pela mão e me puxa para fora do carro.
Eu mal protesto.
Só ficamos na loja uns 15 minutos antes de voltarmos para fora, eu com uma calça de ginástica cinza, uma camiseta branca lisa e tênis de corrida. Ele também me deixa pegar uma embalagem de meias brancas soquete e meia dúzia de calcinhas brancas de algodão. O tempo todo eu tinha a sensação de estar esquecendo alguma coisa, mas foi só quando já estávamos de volta ao carro que lembrei: deveria ter comprado um sutiã. Tem tanto tempo que não tenho um que realmente esqueci que faz diferença.
Eu esperava chegar a um aeroporto normal e pegar um voo comercial, mas em vez disso vamos para um lugar em Green Valley e embarcamos em um jato particular. Percebo que isso faz sentido, já que naturalmente ele não passaria pela segurança de nenhum aeroporto com uma mala cheia de armas, uma bolsa com um monte de dinheiro e outra cheia até a boca de objetos suspeitos.
No avião minúsculo, Victor me presenteia com minha própria carteira de habilitação falsa; parece tão autêntica que facilmente passaria pelas que são expedidas pelo Departamento de Trânsito. Penso em onde ele conseguiu aquilo, mas não pergunto, concluindo que hoje mais cedo, antes de partirmos, ele deve ter descido até a recepção do hotel para pegar uma “encomenda”.
Hoje sou Izabel Seyfried, 20 anos, de San Antonio, Texas.
E a fotografia, nem sei ao certo como ele tirou, mas com certeza sou eu, e tão recente que estou vestindo o mesmo top imundo de quando fugi da fortaleza. O fundo original da foto foi removido e substituído pelo monótono fundo azul do Departamento de Trânsito, então também não faço nem ideia de onde eu estava quando ele tirou a foto. Não sei, mas tenho uma carteira de habilitação, e para mim isso basta.
— O lugar aonde estamos indo — diz Victor — é seguro, mas a mulher que mora lá não pode saber seu nome verdadeiro. Ninguém pode saber, daqui por diante. Vou chamar você de Izabel e você precisa reagir a esse nome com a mesma naturalidade que reagiria ao seu.
— Tudo bem — concordo. — Quem é essa mulher?
— Ela é uma espécie de... associada. Mais como um contato, na verdade.
— Mas se ela é uma de vocês, por que vai mentir para ela? — pergunto, confusa.
Ele toma um gole d’água e deixa o copo na mesinha que sai da parede do avião, sob a janela de formato elíptico.
— É só uma precaução — diz ele, voltando a apoiar a cabeça no encosto. — Quando uma pessoa é procurada por muita gente rica, praticamente qualquer um pode ser influenciado.
Levanto as costas do assento.
— Espere aí, o que está dizendo? Você acha que todo mundo sabe que eu fugi de Javier?
— Não recebi nenhuma confirmação disso, mas é melhor estarmos preparados.
Como se eu já não estivesse tensa o suficiente...
CAPÍTULO DEZOITO
Sarai
Nosso voo pousa em Houston pouco depois do meio-dia e há um carro azul comum — parece o que minha mãe dirigia — nos esperando lá fora. Victor pega as três bolsas e as coloca no porta-malas. Concluo que a mulher que está dirigindo deve ser o contato. Mas ela parece tão comum quanto seu carro. Eu esperava mais sofisticação, como Victor, com seu terno preto e seus sapatos caros, mas na verdade ela se parece mais comigo.
— Não vejo você há anos — diz a mulher, depois que Victor se acomoda no banco da frente. Eu me sento atrás dele.
— É, faz um tempo, sim — responde Victor.
Quando a mulher sorri para ele, rugas profundas se formam em volta dos cantos de sua boca. Ela é loura, e sua idade aparece principalmente no cabelo, a julgar pela quantidade de fios grisalhos. E ela é bem mais velha que Victor, uns dez anos, no mínimo. Mas é muito bonita e asseada, e fico constrangida ao me comparar com ela, no meu atual estado.
Nós nos afastamos do edifício perto da pista de pouso particular e vamos para a rodovia.
— Eu me pergunto o que foi que lhe trouxe para minha vizinhança — acrescenta ela. Então se vira e me olha rapidamente. — E quem você trouxe junto? Que menina linda. Tenho a sensação de que ela não é...
— Não, não é — interrompe Victor.
Eu não sou o quê, exatamente?
Então ele começa a falar com ela em francês.
Espanhol, alemão, francês? Quantos idiomas esse cara fala?
Odeio não entender o que eles estão dizendo, mas sei que estão falando de mim. A mulher me olha pelo retrovisor algumas vezes, com um sorrisinho sagaz curvando os cantos dos lábios. Mas até em uma língua que não entendo, percebo que ele não está sendo completamente sincero com ela. Ou talvez não perceba. Talvez seja só porque sei, bem no fundo, que não tenho nada com que me preocupar com relação a Victor.
Esse fato me surpreende mais a cada dia.
— Prazer em conhecê-la, Izabel — diz ela.
Sorrio discretamente para ela, e decido que, como não faço ideia do que Victor acaba de lhe contar a meu respeito, é melhor não falar muito, para não entrar em contradição com ele.
Muitos minutos depois, paramos na entrada de uma casinha humilde situada perto de outras casas similares. Dois meninos passam voando de bicicleta quando saímos do carro. Do outro lado da rua, um homem está lavando seu carro. A mulher que nos acompanha levanta a mão e acena para ele, que acena de volta. É um bairro bem típico, como aqueles onde todos os meus amigos da escola moravam quando eu era mais nova, e que eram mais respeitados pelas garotas populares do que um estacionamento de trailers.
A mulher abre o porta-malas apertando um botão no interior do carro e eu vou para perto de Victor enquanto ele pega as malas. Mas não tenho a oportunidade de lhe perguntar discretamente o que ele falou, porque ela se junta a nós segundos depois.
— Vão ter que me desculpar pela bagunça — diz ela, mexendo nas chaves; está com uma bolsa pendurada no outro ombro. — Eu fiz faxina, mas se eu tivesse alguns dias a mais para me preparar, teria contratado um serviço profissional de limpeza. — Ela nos convida a segui-la com um gesto. — Podem entrar. Quanto mais tempo ficarmos aqui fora, mais minha pobre Pepper vai destruir as persianas.
Ouço o latido abafado de uma cachorrinha pelo vidro de uma janela lateral quando chegamos à porta sob o toldo que serve de garagem. As persianas se agitam por baixo da cortina. Há outro carro estacionado sob o toldo, mas é velho e parece que está parado ali há vários anos. Quando ela abre a porta, o cheiro de comida, comida deliciosa, instantaneamente faz meu estômago roncar e doer.
— O almoço está pronto — avisa a mulher, nos levando para a cozinha. Ela deixa a bolsa no balcão; sua barulhenta cadelinha da raça lulu-da-pomerânia já está nos rondando, decidindo que perna deve cheirar mais: a minha ou a de Victor. — Podem se sentar — diz ela, indicando a mesa da cozinha.
Sem que ela precise dizer duas vezes, eu me sento na cadeira mais próxima, onde um prato vazio me espera.
Victor se senta ao meu lado.
A mulher se aproxima saltitando, com uma vasilha de cerâmica repleta de purê de batata em uma das mãos e um prato cheio de frango frito na outra, colocando tudo diante de nós. Depois ela traz uma tigela pequena de milho e uma cesta com pãezinhos.
Desconfortável de me servir primeiro, espero para ver se Victor vai pegar alguma coisa antes.
— O que querem beber? — pergunta a mulher. — Tenho refrigerante, chá, leite e limonada.
— Água está ótimo — diz Victor, e então olha para mim, indicando casualmente a comida com a cabeça, me autorizando a começar a encher meu prato. — Da torneira — acrescenta ele no último instante.
Eu me sirvo do frango primeiro, pondo um pedaço no meu prato com o pegador.
— Também quero água — digo, olhando para ela enquanto coloco uma coxa de frango no prato. — Obrigada.
Ela sorri com ternura e dá a volta no balcão para ir até a geladeira e começar a preparar nossos copos, dando uma bronca na cadelinha, que sai marchando da cozinha e se afasta de nós.
Quando ela volta com os copos, Victor e eu já pusemos toda a comida que queremos nos pratos.
Ela deixa os copos na nossa frente.
Agradeço de novo e, já me sentindo mais à vontade para “começar primeiro”, pego a colher para comer, mas Victor me impede, pondo dois dedos no meu pulso e baixando minha mão de volta à mesa. Meu rosto fica vermelho e eu baixo o olhar, torcendo para que a mulher não ache que tenho os piores modos do mundo à mesa. Imagino que ela seja do tipo religioso, que precisamos dar as mãos ao redor da mesa constrangidamente enquanto ela fala com Jesus e lhe diz como estamos gratos por esta comida, pelos soldados, aquela coisa toda.
— Ah, Victor — diz ela em tom brincalhão —, você só pode estar brincando.
Ele não diz nada.
Olho para ele à minha direita, franzindo o cenho. Talvez seja ele que esteja querendo rezar.
Claro que não...
A mulher suspira e revira os olhos um pouco ao tirar o prato da minha frente.
Agora estou completamente confusa. Pouso as mãos no colo sob a mesa, porque não sei ao certo o que fazer com elas.
Eu me viro para Victor, momentaneamente perdida nas profundezas misteriosas dos olhos dele sob a luz brilhante da luminária acima do meio da mesa. Engulo em seco, nervosa, e volto à realidade quando ouço a voz da mulher de novo:
— Ele não confia em ninguém — me diz ela enquanto pega um pouco do purê do meu prato e enfia na boca. Ela aponta a colher para mim e continua, com a boca cheia: — Nunca confiou. Mas é de se esperar. — Ela engole. — E totalmente compreensível, considerando seu ramo de trabalho e tudo o mais.
Seus olhos vão para os de Victor, e de repente ela muda de assunto como se ele tivesse lhe lançado algum olhar secreto de aviso antes de eu me virar para olhá-lo também.
— De qualquer forma — continua ela, agora dando uma mordida no meu frango —, vocês dois podem ficar aqui pelo tempo que precisarem. O quarto de hóspedes fica no fim do corredor.
Ela come um pouco do meu milho e do meu pãozinho, tomando por fim um pouco de chá para a comida descer. Em seguida, me devolve o prato. Eu hesito em pegá-lo, passando os dedos na borda e me sentindo mal de comer alguma coisa onde ela acaba de enfiar sua colher duas vezes.
Victor empurra seu prato para ela, que faz o mesmo com a comida dele.
Fico preocupada com o fato de que, na casa de um de seus contatos, ele ache necessário que ela experimente a comida primeiro como prova de que não está envenenada. Por um momento penso na nossa água, mas entendo que deve ter sido por isso que ele pediu da torneira. Ele estava observando cada gesto que a mulher fazia o tempo todo enquanto eu estava metaforicamente babando pela minha primeira refeição caseira desde a época em que eu frequentava a casa da sra. Gregory.
Victor assente para mim, avisando que já posso comer. E não penso mais na troca de germes e mando tudo para dentro.
A mulher, cujo nome descubro que é “Samantha”, é quem mais fala pelos trinta minutos seguintes enquanto comemos. De vez em quando Victor faz um comentário aqui e ali, mas acho que a disposição dele para conversar com ela é até menor do que era comigo ou com Niklas. Mas ela não parece se importar. Aliás, aceita isso melhor do que eu aceitaria. Se os dois estivessem em um encontro agora, já estaria óbvio para todos no restaurante que ele não está nem um pouco a fim dela e que ela está completamente alheia a esse fato. Mas isto não é um encontro, e tenho a sensação de que sou a única presente alheia ao que está acontecendo.
Minha teoria é confirmada quando, depois do almoço, as coisas entre os dois começam a... mudar.
— Vocês vão dividir a cama? — pergunta ela da porta do quarto de hóspedes.
Só tem uma cama no quarto. É algo que estou me perguntando desde que cheguei.
— Se não — continua ela, olhando para Victor de um jeito que talvez não esperasse que eu notasse —, posso fazer a cama para um de vocês dois no sofá.
— Não vai ser necessário — responde Victor, e não sei por que, mas meu coração pula no peito. — Eu não vou dormir.
Então meu coração volta ao normal. Normal chato, sem palpitação.
Samantha parece contente.
E por algum motivo, instantaneamente sinto... ciúme.
Tento me familiarizar com essa emoção insensata e absurda que acaba de se infiltrar em minha cabeça e me obrigo a repeli-la. Começo a olhar objetos ao acaso no quarto: a colcha cor creme sem graça que cobre a cama de casal, o conjunto de cômoda e gaveteiro em paredes opostas, o grande baú de carvalho no pé da cama com um cavalo entalhado na lateral, a janela com cortinas brancas igualmente sem graça, onde um colar de contas de alguma espécie está pendurado em uma das pontas do trilho.
— Tudo bem, então — diz ela, parada na porta, com as mãos cruzadas diante de si. — Fiquem à vontade. E, Victor... — ela olha para um ponto abaixo de sua cintura — quando estiver pronto para suturar isso, sabe onde me encontrar.
— Irei em breve — diz Victor, e então ela sorri educadamente para nós dois e sai para o corredor, nos deixando a sós no quarto.
— Por que mesmo a gente está aqui?
Victor abre a maleta de armas na cama e tira duas pistolas pretas reluzentes. Ele enfia uma sob o colchão e deixa a outra em uma mesinha no canto do quarto. Então abre o armário, pegando um terno novo depois de afastar vários outros pendurados em cabides. Primeiro a calça, depois uma camisa de mangas compridas e, finalmente, um paletó combinando.
— Você vai ficar aqui — diz ele — até eu matar Javier. Esta noite vou voltar para Tucson, ou para onde quer que Javier tenha sido visto pela última vez, e então vou achá-lo e matá-lo.
— Mas por que Houston? — pergunto, me sentando na beirada da cama. — Não tinha um... “abrigo” no Arizona, em um lugar mais perto? Sabe, talvez você devesse ter me usado como isca, no fim das contas. Eu poderia ajudar. É provável que quem está me procurando vá primeiro onde eu morava, perto de pessoas que eu conhecia. — Faço uma pausa, pensando comigo mesma em como estou feliz que a sra. Gregory não more mais ali.
— Tem razão — diz ele. — E é por isso que provavelmente vou voltar direto para Tucson. Já vi onde você morava, e onde a mulher com a qual você passava a maior parte do tempo morava. Quando levei você lá, ontem à noite, você já me ajudou me mostrando exatamente onde Javier pode ser encontrado. Não há necessidade de arriscar mais sua vida ficando lá.
— Então você tinha outras intenções quando me levou para casa — digo, me sentindo muito pequena agora. — Você só queria ver o lugar.
Victor balança a cabeça e fecha a primeira gaveta da cômoda. Ele se vira para me olhar, e algo pouco familiar está evidente em seus olhos azul-esverdeados.
Um longo suspiro sai de suas narinas.
— Levei você para lá porque era o que você queria — diz ele, indo para a porta com todas as roupas cuidadosamente dobradas no braço.
— Mesmo sabendo que eles voltariam lá para me procurar?
Ele para na porta, de costas para mim, com os dedos na maçaneta, pronto para abri-la. Sua cabeça se levanta um pouco e seus ombros afundam.
Instantaneamente, sinto que o ofendi.
— Vou usar o chuveiro no quarto de Samantha — diz ele, e isso me incomoda. — É melhor você se lavar e vestir suas roupas novas.
E então ele sai, me deixando completamente sozinha ali.
CAPÍTULO DEZENOVE
Sarai
Em vez de tomar uma ducha, fico de molho em um banho de banheira quente e demorado. Meus músculos estão doendo horrores, e logo depois de entrar na água comecei a sentir os pequenos arranhões e cortes por todo o corpo, que não havia notado antes. Fico surpresa de ter escapado sem nenhum ferimento a bala.
Quando saio da banheira, me sinto mais limpa do que nunca, agora que tenho roupas novas para vestir e pude me depilar. Victor me disse, na loja de departamentos, que eu podia pegar o que quisesse e que o preço não importava, bastava que eu fosse rápida. Escolhi a roupa mais fora de moda e informal que encontrei. Porque não ligo para moda e, sinceramente, nem lembro quando foi a última vez que algo assim me importou.
Depois de me vestir, prendo o cabelo úmido em um rabo de cavalo e remexo nas coisas que estão na pia do banheiro. Desodorante, pasta e escova de dentes, vários potes de hidratante e outros cremes sortidos estão arrumadinhos na frente do espelho. Tudo é novo, e não há como saber há quanto tempo está ali, esperando que uma hóspede como eu aparecesse e usasse. E uso mesmo, começando pelo desodorante, um luxo que raramente existia na fortaleza. Javier, a maior parte do tempo, se empenhava para que eu tivesse artigos de primeira necessidade e coisas legais, mas deixava que Izel cuidasse das compras, e como ela me desprezava imensamente, fazia questão de se esforçar para comprar os produtos mais baratos e imprestáveis que encontrava. Quando o assunto era desodorante, o melhor que já recebi foi uma marca estranha de roll-on que deixava pontos vermelhos e inflamados nas minhas axilas.
Escovo os dentes e até uso fio dental pela primeira vez em anos, e então me vejo na frente do espelho, com o olhar vazio. Eu não me vejo, na verdade, mas penso em Victor e no que ele estará fazendo no quarto de Samantha. Imagens explícitas de Victor comendo Samantha surgem em minha mente, e isso me perturba mais do que quero admitir.
Não posso me sentir realmente atraída por um homem como ele, posso? Um homem que matou sabe-se lá quanta gente. Não importa que eu me sinta a salvo com ele, ou que confie nele; a verdade é que ele é o que é, e eu seria idiota se achasse que ele não me mataria se considerasse isso de alguma forma necessário.
Mas eu me sinto atraída por ele. Tenho sentimentos estranhos e pouco familiares por ele.
E odeio isso!
Balanço a cabeça, com raiva de mim mesma, finalmente notando meu reflexo. A região em volta do meu olho direito está amarelada por um hematoma. Meus lábios estão ressecados e rachados. Há um pequeno corte em cima do osso da minha sobrancelha esquerda. Pareço cansada e... usada.
Somente o som de algo caindo no chão em outro quarto, no fim do corredor, me desperta do meu autodesprezo.
Primeiro abro uma fresta da porta do banheiro para espiar o corredor. Ouço a voz de Samantha, mas não consigo entender o que ela está dizendo. Finalmente, saio do banheiro, ando em silêncio pelo corredor até o quarto dela, na ponta dos pés sobre o carpete, o mais cuidadosamente possível. A porta está fechada, por isso encosto o ouvido na madeira e tento escutar, mas, assim que faço isso, a porta se abre um pouco, rangendo, e meu coração afunda até o estômago. Fecho os olhos com força e prendo a respiração até perceber que não fui flagrada.
Eu não deveria fazer isso, penso, mas não consigo evitar.
Olho dentro do cômodo pouco iluminado. Um aparelho de TV está ligado, mas está muito baixo ou sem som, seu brilho fornecendo a maior parte da iluminação do quarto. Vejo a camisa ensanguentada de Victor e o resto de seu terno jogados em um cesto de roupa suja encostado na parede, perto do banheiro. Aquela porta também está entreaberta.
Abrindo a porta do quarto um pouco mais, só o bastante para me espremer e passar, entro no quarto de Samantha. E cada passo que dou faz com que eu me sinta mais transgressora e mal-educada. Mas eu preciso saber. Porque a ideia de os dois juntos está me torturando. Talvez mais tarde eu tente entender o motivo. No momento, só quero saber.
Atravesso o quarto e vou até a porta do banheiro, onde espero do lado de fora, o coração pulando no peito, temendo ser flagrada bisbilhotando. Quando alguns segundos se passam e Samantha fala de novo, me sinto segura o suficiente para espiar e ver melhor, só torcendo para que a penumbra do quarto me ajude a não ser vista.
Victor
Estou de pé com as mãos apoiadas na pia, uma toalha enrolada na cintura, logo depois de tomar banho. Olho o espelho em cima da pia, virando o queixo para um lado e depois para o outro, me perguntando se deveria fazer a barba, mas decidindo não fazer. Samantha está sentada na tampa da privada, com agulha e linha cirúrgica em uma das mãos, pronta para me costurar.
— Você vai tirar essa toalha? — pergunta ela. — Não posso fazer isso com esse negócio por cima. E não tem nada aí que eu já não tenha visto.
Começo a tirar a toalha quando ela diz isso, mas então percebo um som, como de alguém inspirando rapidamente, tão fraco que fico surpreso por tê-lo ouvido. Olho pelo espelho para atrás de mim, para a porta, e não vejo nada, mas sei que Sarai está do outro lado.
— Victor? — apressa Samantha, irritando-se com minha reação demorada.
— Não — respondo finalmente, me virando para deixar o lado onde está o ferimento de frente para ela. Posiciono a toalha estrategicamente no meu quadril para que ela tenha acesso, prendendo-a com firmeza do outro lado para que fique no lugar.
— Já que insiste — diz Samantha, começando imediatamente a trabalhar.
Sinto a agulha entrar uma vez e cerro os dentes por um momento, até a dor diminuir.
— Você nunca me disse por que parou de vir para cá — diz Samantha.
— Foi melhor assim.
— Besteira. Foi alguma coisa que eu fiz, ou disse, ou talvez alguma coisa que não fiz. Eu só queria saber. Sem ressentimentos. Sem constrangimento. Só responda à pergunta que está me infernizando há dez anos. Eu mereço isso.
Depois da segunda passagem da agulha através da pele, não sinto mais dor.
— Eu a respeitava — explico. — Não achava certo continuar usando. você.
— Querido, você sabe que não era assim. — Ela olha para cima e sorri brevemente para mim. — Eu não me importava; caramba, eu gostava.
— Mas eu me importava.
Samantha enfia a agulha de novo, sempre com cuidado. Então balança a cabeça.
— Eu queria saber como você faz esse trabalho, com a consciência que tem. Acho que você é a única pessoa que tem uma consciência capaz de fazer isso.
— Bem, não foi nada que você tenha feito ou deixado de fazer — digo, evitando completamente responder ao comentário. — Portanto, espero ter respondido o suficiente para satisfazê-la.
— Para de ser tão técnico comigo, Victor. Você sabe que eu odeio isso.
Samantha se levanta da privada e pega o iodo, derramando um pouco em um pano. Ela pressiona o pano em volta e no ferimento suturado.
— Ouvi dizer que você começou a ficar no Abrigo Nove, em Dallas, quando vinha para estes lados — continua ela, e posso prever aonde quer chegar com o assunto. — É porque ela é mais nova do que eu? Quer dizer, entendo perfeitamente. Eu estou ficando mais velha, admito.
É exatamente o que previ que ela iria dizer.
Suspiro e me apoio na pia, cruzando os braços. Ela tira um pedaço grande de gaze de um pacote para prepará-lo.
Eu a encaro, esperando dizer o que quero sem colocá-la contra mim. Não vou deixar Sarai a sós com ela se ela acha que a troquei pelo Abrigo Nove por um motivo absurdo como sua idade. Samantha é uma assassina. E uma mulher que se sente rejeitada e que também é assassina é uma combinação fatal.
— Escolhi a Nove porque ela é uma piranha e se orgulha disso — digo, falando a verdade como precisa ser dita para que ela entenda. — Eu não conseguia usar você como ela me deixa usá-la. Porque você era, e ainda é, minha amiga. Espero que entenda.
Ela ri baixinho.
— Você não tem amigos, Victor.
Seu olhar passa por mim quando ela coloca a gaze no ferimento e aperta duas tiras de esparadrapo nas bordas. Então ela se levanta e me olha com pensativos olhos verdes. Sinto nos olhos dela a mesma coisa que sempre sentia quando vinha para cá, quando dormia com ela. Que ela podia se apaixonar por mim se eu deixasse chegar a esse ponto. Samantha começou a se envolver demais, e eu não podia deixar que isso acontecesse. Sempre foi boa comigo. Era diferente das outras, que eram mais parecidas comigo e só estavam interessadas em sexo. Porque qualquer coisa além disso não só é imprudente, perigosa e idiota, mas também completamente inaceitável.
— Quem acha que está enganando, Victor? — pergunta ela, com um sorriso brincalhão mas inofensivo.
Cubro completamente meu quadril com a toalha, prendendo-a na cintura.
— Como assim? — pergunto, olhando-a com curiosidade.
Samantha começa a recolher os retalhos de gaze do balcão, jogando água da pia para lavar o sangue e o iodo.
— Aquela garota no fim do corredor — diz ela. — Izabel. Claro que ambos sabemos que esse não é o verdadeiro nome dela, mas, de qualquer forma, que diabos você está fazendo com ela?
Ela joga um punhado de lenços de papel ensanguentados no cestinho de lixo ao lado da privada.
— Já falei — digo. — Só a estou usando até eliminar meu alvo. Depois disso, ela estará por conta própria.
Eu nunca conseguiria enganar Samantha completamente, mas o que me surpreende mais no momento é que ela parece saber o que está acontecendo comigo até melhor do que eu mesmo. E não gosto dessa ideia.
Olho para a porta do banheiro, a poucos metros, me perguntando se Sarai continua escondida ali, ouvindo tudo o que dizemos. Eu sei que ela está. Posso sentir. Mas Samantha precisa parar. Agora. Porque não posso permitir que ela encha a cabeça de Sarai com coisas que podem confundi-la. A garota já está confusa o suficiente.
— Preciso me vestir — digo, na esperança de evitar que ela prossiga com o assunto. Estendo a mão para pegar a cueca limpa pendurada ali perto, mas Samantha se coloca na minha frente.
Ela cruza os braços, e o sorriso que exibia antes foi substituído por determinação.
— Você não pode fazer isso. Sabe que não.
Passo o braço em volta dela e pego a cueca, deixando a toalha cair no chão e vestindo-a.
— Victor — insiste ela —, você não pode ser o herói. Nem para ela, nem para mais ninguém. Você sabe. O que está fazendo, o que está sentindo, só vai levar você à morte.
Tiro os polegares do elástico, deixando-o estalar na minha pele, e faço Samantha se calar com um olhar duro.
— Você está muito enganada, Sam — digo, os olhos fixos nela. — Você acha que sinto algo por ela porque estava acostumada a achar que eu sentia algo por você. — No mesmo instante, me arrependo do que disse.
Samantha me olha com frieza, afundando agressivamente os dedos nos próprios braços.
— O que você está dizendo? Isso é o que você pensa que eu... — Ela não consegue mais me olhar e desvia os olhos para o chuveiro. Porque ela sabe que tenho razão. Eu não deveria ter dito isso, mas ela não pode negar a verdade.
Finalmente, ela me olha de novo, com mágoa e confissão no rosto.
— Tem razão — diz ela. — Sempre pensei em você assim. Interpretei errado o que acontecia entre nós e enxerguei algo que não existia.
Fico em silêncio para que ela possa terminar, mas parece que ela já acabou.
— Lamento de verdade por tudo o que fiz a você — digo, com total sinceridade.
Ela balança a cabeça loura e grisalha.
— Não, Victor, você fez tudo certo. Viu que eu estava começando a ter sentimentos por você antes que eu mesma percebesse, e fez a coisa certa.
Seguro seus cotovelos e ela relaxa um pouco.
— Espero que...
Quando ela descruza os braços, minhas mãos caem.
— Victor — diz ela, erguendo as mãos entre nós —, por favor, não se desculpe por não sentir por mim a mesma coisa que eu sentia por você. Isso não é algo que se pode controlar, eu sei. E espero que acredite quando digo que você pode confiar em mim sempre. Você é a única pessoa da Ordem em quem confio e que posso realmente chamar de... meu amigo.
— Pensei que você tivesse dito que eu não tenho amigos. — Sorrio fracamente.
Relaxando um braço no peito, ela bate no meu ombro com o outro.
— Tudo bem, talvez você só tenha a mim — diz ela, também sorrindo. Mas então fica séria de novo. — E como sou sua única amiga, você precisa confiar em mim, me ouvir quando digo que o que está fazendo com essa garota vai acabar com você exilado, morto, ou as duas coisas.
Começo a abotoar a camisa.
Eu esperava que ela esquecesse por completo o assunto, especialmente para o caso de Sarai ainda estar escutando no quarto, embora eu tenha a estranha sensação de que ela não está mais, e isso me acalma um pouco.
— Não estou fazendo nada além de mantê-la a salvo até que tudo isto acabe — insisto. — Ela merece uma chance de ter uma vida normal, depois de tudo o que passou, e eu decidi, em algum momento, que tentaria dar isso a ela.
Visto minha calça preta, enfiando a camisa na cintura. Samantha tira minha gravata do cabideiro na parede e a passa por trás do meu pescoço.
Ela suspira.
— Está bem — diz, se rendendo —, mas me diga uma coisa, e seja sincero com você mesmo antes de responder... — Ela hesita, os dedos parados ao redor da gravata. Eu balanço a cabeça. — Desde que vocês estão juntos, você se convenceu de que ela vai ser diferente do que você se tornou anos depois de ter sido levado pela Ordem?
Sua pergunta me causa um espanto silencioso. Eu realmente não a esperava.
— Até eu percebo isso, Victor, e só passei uma tarde com ela, portanto sei que você também percebe.
Agora sei a que ela se refere, mas ainda estou chocado demais pela revelação para comentá-la. Samantha nota isso, minha necessidade de ouvir dos lábios de outra pessoa o que já sei ser verdade. Inconscientemente, preciso dessa confirmação.
— Eu sei que você não pode me dizer nada sobre de onde ela veio, de quem está fugindo ou quanto tempo ficou com as pessoas das quais está fugindo, mas, a julgar pelo que vejo nela agora, posso afirmar duas coisas. — Ela endireita minha gravata já amarrada e baixa uma das mãos enquanto me mostra dois dedos com a outra. — Primeira — começa ela, abaixando um dedo —, ela já está tão anestesiada para o que é normal que talvez nunca consiga levar uma vida normal. Ela sabia que eu estava provando a comida dela porque você queria ter certeza de que não estava envenenada, mas isso não a abalou. Ela se sentou à mesa conosco, devorando aquele almoço como se fôssemos uma simples família de três pessoas fazendo o lanche da tarde em um bairro residencial.
Ela recosta no balcão, cruzando os braços.
— E segunda — continua ela —, para ela ter ficado desse jeito, eu sei que deve ter sido uma prisioneira, escrava sexual ou sabe Deus o quê por vários anos, não menos do que cinco. E se ela é tão jovem, quantos anos tem, 23, 24? — Samantha gesticula um pouco com a mão à sua frente. — Significa que ela devia ser muito novinha quando foi capturada. Como você. E nós dois sabemos que quanto mais nova a pessoa, mais fácil é transformá-la no que alguém quiser que ela seja. Assim como você.
Cada palavra que Samantha diz é verdade, e eu sei disso. Sei disso melhor do que ninguém.
Visto o colete por cima da camisa e da gravata e fecho os quatro botões.
— Ela está no meio-termo — digo. — Pode ir para qualquer um dos lados, e as chances são iguais nos dois. E ela é bem forte. E inteligente. — Por fim, eu visto o paletó. — Só estou dando a ela sua primeira e única chance. A direção que vai seguir a partir daí é decisão dela. E eu não vou estar presente para ver. Ela estará sozinha.
Samantha inclina a cabeça. É provável que não acredite completamente em mim, mas seu estoque de avisos se esgotou, enfim.
Ela se aproxima com o mesmo sorriso doce e sedutor que sempre usava minutos antes que eu a possuísse, no passado. Para bem na minha frente e seus dedos deslizam pelo tecido do meu paletó. Apoia as mãos nos lados do meu pescoço, roçando de leve minha pele.
— Um último beijo — diz ela, me olhando nos olhos —, pelos velhos tempos. Só quero me sentir jovem de novo, como sempre me sentia quando você vinha me visitar.
Levanto as mãos e seguro seu rosto, beijando sua testa lentamente primeiro.
— Você ser mais velha do que eu nunca importou, Sam. Você continua tão sexy hoje, para mim, quanto era dez anos atrás. — E então encosto os lábios nos dela, passando a ponta da língua suavemente por seu lábio inferior e depois em sua boca.
CAPÍTULO VINTE
Sarai
Eles estão no banheiro há um tempão. Mas não é da minha conta o que fazem. Saí do quarto pouco antes que Samantha começasse a suturar Victor, determinada a ser mais sensata e esquecer o assunto. Sinto que deveria ter ficado pelo menos para saber sobre o que conversaram, já que tenho certeza de que em parte era sobre mim, e tenho o direito de saber, mas era intromissão demais. E admito que não queria vê-los juntos.
Apesar de sentir algum ciúme de Victor, o que percebo que é natural, dada a situação extraordinária na qual fui jogada com ele, sei que ele jamais se interessaria por alguém como eu, nem por qualquer uma, na verdade.
Exceto Samantha e outras como ela, imagino.
Apesar da diferença de idade, sei que eles já tiveram um relacionamento íntimo. Eu a ouvi dizer isso pouco antes de sair do quarto e gosto de pensar que sou esperta o suficiente para deduzir o resto da situação sozinha, sabendo o pouco que sei. Qualquer que tenha sido o relacionamento dos dois no passado, sinto que, embora ela seja atraente e obviamente uma mulher boa e inteligente, provavelmente não eram essas qualidades que o traziam aqui. E também não era só o sexo. Era porque Samantha sabia desde o começo que nunca seria nada além de sexo.
Não sou especialista, mas é nisso que acredito, no fundo. Samantha é como ele, talvez não exatamente no papel que desempenha no mundo secreto de crime, perigo e morte dos dois, mas ela sabe que ele é disciplinado e frio demais para se envolver.
Victor, provavelmente, jamais poderia confiar em alguém “de fora”. E se eu me comparar com os dois, sou a personificação desse fora.
Olho para a janela com cortina no quarto de hóspedes onde Victor me deixou mais cedo. Está escuro como breu, embora ainda não sejam nem nove da noite. Eu me deito no meu lado da cama, com um braço dobrado debaixo do travesseiro. Meus pés estão gelados, mas não quero me levantar e abrir o pacote de meias que Victor comprou para mim, por isso junto os pés e os enfio debaixo do cobertor.
Victor entra no quarto. Ele deixa a porta aberta para que entre um pouco de luz do corredor, em vez de acionar o interruptor. Acho que pensou inicialmente que eu estava dormindo.
Está sofisticado dos pés à cabeça, mais do que jamais o vi, e não consigo deixar de admirar sua beleza perigosa do outro lado do quarto. Sua silhueta alta atravessa a faixa de luz da porta e mergulha na sombra quando se aproxima da cama onde estou deitada.
— Você está indo embora, não está?
— Sim — diz ele, se sentando ao meu lado, com as costas retas e as mãos apoiadas nas pernas.
— Você vai voltar?
Ele leva um momento para responder. Mantém os olhos na janela à sua frente.
— Acho que é melhor que eu não volte — diz ele.
Meu coração falha. Engulo em seco.
— Quando Javier estiver morto, Samantha vai levar você aonde precisar ir, ou então mando Niklas buscá-la.
O fundo da minha garganta está começando a arder, e o alto do meu nariz, bem no meio dos olhos, começa a pinicar.
Seguro as lágrimas.
Não quero que ele vá embora nem por um tempo, muito menos para nunca mais voltar. Quero ficar com ele, embora não saiba por quê.
— Mas e se outros ficarem sabendo? — lembro a ele, na esperança de fazê-lo mudar de ideia sem que ele descubra meus reais motivos. — E John Lansen? E todos os outros homens que vi? Victor, eles podem saber, e talvez Javier não seja o último a vir me procurar. — Na verdade, não me importa se eles vierem. Não é disso que tenho medo. Tenho medo de que Victor saia por aquela porta e eu nunca mais o veja.
Finalmente consigo me sentar, a raiva distorcendo meu semblante, de início, até que eu noto isso e abrando a expressão.
Cruzo as pernas em posição de ioga na cama e seguro o pulso dele, puxando a manga de seu paletó. Eu meio que esperava que ele me repelisse, mas não o faz. Põe a mão nos meus tornozelos cruzados, e esse simples toque, esse único gesto, faz minha garganta se fechar de emoção. Olho para a mão dele, meus dedos tremendo de nervosismo no punho de sua camisa.
Ele não tirou a mão..., penso.
Lágrimas enchem meus olhos, mas respiro fundo e logo me seguro.
— Eu sinto muito, Sarai — diz ele, me olhando nos olhos, os seus agitados por conflito e indecisão.
Tenho a sensação de que ele não quer me deixar aqui. Eu sinto isso... sei disso...
Devagar, ele se levanta da cama. Fico ali sentada, paralisada em um abismo de frustração, raiva e medo. Medo! Como ele pode me acusar de não ter medo de nada?! Quero gritar com ele, dizer o quanto está enganado enquanto joga as bolsas no ombro e pega a maleta de armas.
Em vez disso, porém, enxugo as poucas lágrimas que chegaram a cair dos meus olhos e digo baixinho para ele:
— Victor, você estava errado.
Ele vira a cabeça para me olhar.
— Você estava errado quando disse que não sinto medo de nada. Estava muito errado...
Ele mantém o olhar em mim só por um segundo e depois se vira e vai embora, fechando a porta e deixando a escuridão do quarto me engolir de novo.
~~~
Samantha me deixou sozinha durante a hora e meia seguinte. Acho que ela quis me dar um tempo, porque, quando finalmente entrou no quarto onde estou, minutos atrás, percebi que sentiu algo por mim, encolhida na cama, olhando para aquela janela. Isso me deixa curiosa sobre o que eles conversaram no banheiro dela mais cedo, me faz lamentar não ter ficado mais tempo para descobrir.
Eu a odiaria por saber mais do que eu, se ela fosse uma pessoa fácil de se odiar.
Mas percebo que gosto demais dela para isso.
— Sabe, Victor faz esse tipo de coisa o tempo todo, Izabel. — Ela me dá um tapinha no quadril com a palma da mão. Está sentada no mesmo lugar, perto de mim, onde Victor se sentou por último. — Ele vai ficar bem. — Ela sorri. — E tenho certeza de que sabe que você é grata pela ajuda.
— O que pode me contar sobre ele? — pergunto.
Ela inspira profundamente, séria, e suas sobrancelhas se erguem, com a expressão de quem ouviu uma pergunta difícil.
— Bem, imagino que você já saiba como ele ganha a vida, então provavelmente pode imaginar que jurei guardar segredo sobre certas coisas, e se eu quebrar esse juramento, posso ficar bem encrencada.
É verdade, mas ela está sorrindo e parece arder de vontade de falar comigo, apesar disso. Pode não ser muita coisa, no fim das contas, mas alguma coisa é melhor do que nada, acho. Eu me sento, coloco as pernas para fora da cama, como ela, e apoio as mãos no meio das pernas.
Samantha sorri para mim com um breve olhar e estende a mão.
— Vamos conversar enquanto tomamos um café.
Ela fica de pé e lhe dou a mão, aceitando a oferta.
— Juro que é totalmente livre de veneno — brinca ela enquanto a sigo para o corredor.
— Acredito em você.
Acredito sobretudo porque, se Victor confiou nela o suficiente para nos deixar a sós, isso me basta.
Eu me sento à mesa da cozinha enquanto ela prepara o café no balcão, onde o pote de pó fica ao lado de um antiquado micro-ondas gigante.
— Imagino que não haja problema em contar a você que ele foi desse jeito praticamente a vida toda. — Ela põe algumas colheres do pó no coador e fecha a tampa da cafeteira. — Mas na verdade eu só sei as coisas que ele me contou. Nada mais do que isso.
— Que tipo de coisas?
Ela põe água na parte de trás da cafeteira enquanto espera que as várias conversas que teve com Victor se materializem em sua mente.
— Bom, sei que ele adora café preto. — Ela sorri. — Adora comida tailandesa e não come atum nem por decreto. Prefere uma boa cerveja em vez de um bom vinho, mas só as melhores cervejas, de preferência alemãs. — Ela se senta à mesa comigo e apoia o rosto na mão, parecendo pensativa. — Na verdade, Victor seria capaz de ir até a Alemanha para não tomar a cerveja daqui. — Ela gesticula para mim, tirando a mão da bochecha. — Ele é um homem muito peculiar.
— Mas e a família dele? — pergunto. — Ele me contou que tinha uma irmã, que matou o pai, e alguma coisa sobre a mãe dele estar em... Budapeste, acho?
Samantha balança a cabeça, sorrindo e talvez até achando o que eu disse um pouco divertido. Mas não está zombando de mim.
— Não, docinho — diz ela. — Se foi isso que ele contou, deve ter sido só para fazer você parar de falar. — Bem, quanto a isso ela está certa, eu sei. — Ele jamais contaria nada pessoal demais sobre sua vida para ninguém, muito menos sobre sua família. Nem para mim. Eu nem sei se ele tem família.
Eu me mantenho o mais distante possível do assunto do relacionamento dos dois.
— Você precisa saber, Izabel — ela me olha intensamente, para que eu devolva o olhar —, que Victor está arriscando muito... não, ele está arriscando tudo ajudando você. E mesmo que ele tenha ido embora hoje e não pretenda voltar, o que ele já fez por você, embora eu não faça ideia do que possa ser, talvez tenha selado o destino dele.
Meu estômago se aperta e eu tenho uma sensação horrível na garganta.
Seu olhar muda suavemente e sinto que ela está lamentando por mim, ou por meus sentimentos, em seu íntimo.
Samantha apoia as costas na cadeira. O café borbulha e pinga na jarra atrás dela.
— Mas como você sabe que é isso que ele está fazendo? — pergunto. — Como sabe que ele está me ajudando e que não sou só uma parte da missão?
— Porque ele jamais teria trazido você aqui — diz ela, quase com compaixão. — E não teria me pedido para não contar a ninguém, nem ao nosso empregador, a ninguém, que fez isso.
Ergo os olhos da mesa para encará-la, surpresa pela informação que ela acaba de me dar.
Ela assente para mim, como que para confirmar o que estou pensando, embora eu não tenha falado em voz alta.
— Sim — diz ela. — Além de Niklas, sou a única pessoa em quem ele confia. Talvez não completamente, porque Victor é incapaz disso, mas ele confia em mim. Ele escondeu você aqui e me pediu que eu arrisque a vida mantendo você em segredo, é assim que eu sei.
Ela está dizendo a verdade. Não consigo não acreditar, por mais que eu tente. E eu tento. Acho que meu inconsciente está procurando algum motivo para não gostar ou desconfiar dela, por causa do ciúme que senti antes.
Mas não encontro nenhum.
E não posso deixar de me perguntar se ela se ressente de mim por isso, se há alguma amargura residual a meu respeito por Victor ter pedido que ela arriscasse a vida por mim. Mas sinto que não há. De certa forma, isso me deixa envergonhada.
Ela se levanta da mesa e volta para a cafeteira.
Mas então para no meio do caminho e fica imóvel na ponta do balcão, como se estivesse a centímetros de bater em uma parede de vidro. Sua mão direita encosta na borda do balcão, seus dedos se fechando em um punho quando ela vira a cabeça para mim. Seus olhos estão arregalados e alertas, e vê-la assim me mata de medo.
E então eu ouço alguma coisa também, e meu coração começa a bater com fúria dentro do peito, reverberando pelos ossos até meus ouvidos. Sombras cruzam a janela da cozinha; Samantha se agacha e se aproxima rapidamente de mim, me puxando da cadeira. Isso acontece tão rápido que não consigo me abaixar direito, como ela. Quase caio de bunda no chão, mas me apoio no pé direito e me viro, cambaleando, até recuperar o equilíbrio e segui-la pelo corredor.
— Quem é? — sussurro.
Ela segura o meu braço e me puxa à sua frente. A cadelinha, Pepper, corre para a porta dos fundos, latindo furiosamente.
— Fique abaixada e volte para o quarto! — diz ela entre dentes. — Depressa!
O mais perto do chão possível sem chegar a me sentar, sinto que estou andando como um caranguejo pelo carpete até a porta aberta do quarto. Logo que entro, Samantha me segue e, de joelhos, estende os braços e empurra com as mãos o grande baú de madeira no pé da cama. Enquanto ela o empurra, mais sombras passam pela janela e ouço vozes murmurando lá fora.
E estão falando espanhol.
Eu me viro para Samantha, tirando os olhos da janela bem a tempo de vê-la erguer uma portinha de metal no chão, que estava escondida pelo baú.
— Entre aqui! Depressa! Agora!
Naquele último segundo, que acho que na verdade nem poderia perder, enfio a mão sob o colchão e pego a arma que Victor deixou ali, guardando-a na parte de trás da minha calça. Samantha me apressa com um gesto, e quando estou perto o suficiente, agarra o meu braço e me ajuda, praticamente me jogando dentro do buraco no chão.
A porta de metal se fecha por cima de mim, extinguindo a única luz que eu tinha, que vinha do poste lá fora, através da janela. E então ouço o baú sendo arrastado de volta sobre a porta de metal, e meu coração afunda como uma pedra com a ideia de ficar presa ali embaixo, não importa o que haja lá fora.
Aí está mais uma coisa que me dá medo, Victor: ficar presa em um espaço pequeno.
Ouço os passos de Samantha no chão lá em cima, e então o som da porta do quarto se fechando quando ela sai.
Tudo está estranhamente silencioso: minha respiração pesada, o sangue latejando nos ouvidos; não consigo ouvir nenhuma dessas coisas, embora saiba que deveriam ecoar no espaço minúsculo onde estou escondida. Não consigo enxergar nada, por isso estendo as mãos diante de mim e começo a apalpar o que está em volta. Dolorosamente, descubro três paredes à esquerda, direita e à frente, mas fico aliviada ao perceber que atrás de mim não há uma quarta parede me confinando. É um corredor estreito.
Não tenho tempo de investigá-lo mais antes de ouvir o primeiro tiro, ainda que com silenciador, como os de Victor, mas sei que desta vez não é Victor.
Pepper não está mais latindo.
Ouço uma voz. Parece distante, mas ecoa de algum lugar acima de mim. É então que sinto um ventinho em minha testa e levanto a mão para apalpar o teto. Há uma abertura, embora pequena demais para que eu enfie a cabeça, muito menos o resto do corpo, mas é uma abertura, e agora sei que foi por isso que ouvi a voz.
Mais um tiro silencioso, e desta vez, quando ouço a voz que se segue, sei que pertence a Javier.
CAPÍTULO VINTE E UM
Sarai
— Eu tenho mais quatro balas nesta arma — diz Javier para Samantha em algum lugar da casa. — E vou meter uma em você a cada dois minutos que minha doce Sarai continuar escondida.
Minha mão se move involuntariamente na direção do coração.
— Victor está voltando — diz Samantha em uma voz fraca, aguda.
Fico apavorada só de pensar onde Javier já atirou nela.
— Você está mentindo, puta! Você fede a mentira. Agora me diga onde está Sarai. Porque eu sei que ela está aqui.
Como ele soube que eu estava aqui?
Então, em espanhol, Javier grita:
— Vasculhem a casa! Todos os quartos. Virem tudo de cabeça para baixo e achem a garota!
Dois segundos depois, o som de móveis sendo revirados, vidro se quebrando e pés marchando pelo chão ecoa pelas paredes.
— Ela não está aqui — diz Samantha, como se estivesse forçando as palavras entre os dentes. — Victor passou aqui mais cedo. Com uma garota. Uma garotinha de cabelo preto que ele chama de Izabel. Mas ele a levou embora quando partiu.
Thwap!
Mais um tiro se ouve e Samantha grita de dor, mas então seus gritos ficam abafados, e só posso imaginar que é pela mão de Javier. Ou talvez haja mais alguém no quarto. Lágrimas correm pelo meu rosto quente. O ar está frio, por estar tão perto do chão gelado lá fora, mas minha pressão arterial está tão alta pela tensão nervosa que sinto minha cabeça pegando fogo.
— Eu sei que ela está aqui — diz Javier friamente. — Sei que ela não saiu com ele, porque eu estava vigiando. Agora você tem mais seis minutos. A última bala eu vou meter na sua cabeça.
Então a voz de Javier fica mais alta:
— Ouviu isso, Sarai? — grita ele para mim. — Daqui a seis minutos, você vai matar essa vaca. Do mesmo jeito que matou Lydia. Eu só quero levar você para casa. Nunca machucaria você, sabe disso.
Minhas pernas estão tremendo.
Depois que os barulhos de destruição finalmente cessam, passos de outros pés, dois pares, a julgar pelo ritmo, voltam para o quarto com Javier.
— Vocês dois, para fora — ordena Javier. — Procurem em todo lugar, busquem na vizinhança, mas sem chamar atenção. Andem!
Não posso deixar Samantha lá em cima com ele para morrer.
— Já falei que não tem ninguém aqui! — grita ela.
O barulho que ouço desta vez sei que é a mão de Javier batendo no rosto dela, e depois seu corpo caindo no chão. As vigas do assoalho tremem acima de mim com a força de sua queda.
Viro para trás e começo a andar pela passagem estreita sentindo o caminho com as mãos, esperando que me leve para fora dali. Porque eu não vou deixá-la assim. Javier pode me levar de volta. Pode me matar, se quiser, mas não vou me esconder aqui embaixo como uma covarde e deixar que ela morra por mim.
Thwap!
Eu perco o fôlego e meus ossos travam, mas continuo avançando até que chego ao final. Não há nada ali, nada além de mais paredes e a mesma passagem de onde vim. Apalpo o forro acima da minha cabeça, procurando outro alçapão de metal. E realmente há outro. E quando penso que não tenho como levantar aquela tampa o bastante para sair sem fazer barulho e chamar a atenção de Javier para onde estou, dou uma topada em uma escada móvel de quatro degraus encostada no canto.
Carrego a escada, em vez de arrastá-la pelo chão, para não fazer nenhum barulho desnecessário, e a coloco abaixo do alçapão. Subo até o terceiro degrau e preciso me curvar para não bater com a cabeça no teto. Levanto as mãos, encostando as palmas no alçapão e fechando os olhos para empurrar, esperando que ele não esteja bloqueado por nada, e que dê em algum lugar onde Javier não possa me ver.
O alçapão se abre, rangendo um pouco, o que me faz parar, horrorizada, segurando-o parcialmente aberto acima de mim. Empurro de novo, subo para o quarto degrau e minha cabeça emerge dentro de um closet. Vejo que um colchonete de espuma foi dobrado e colocado em cima da porta do alçapão para escondê-la, e que ela é revestida de um carpete igual ao do chão do closet; eu o sinto com a ponta dos dedos ao terminar de levantar a porta e apoiá-la na parede do fundo do closet.
Saio e abro caminho silenciosamente entre as roupas penduradas em uma barra.
Thwap!
— Mais dois minutos, Sarai! — ouço Javier avisar da sala.
Abro a porta do closet e ando mais rapidamente agora, através do quarto de Samantha, pelo corredor e até a sala, onde Javier está esperando por mim; cada osso e músculo do meu corpo está tremendo.
— Ah, aí está ela!
Javier ergue as mãos para o lado, segurando a arma na direita. Ele sorri e parece genuinamente empolgado em me ver. Ele é louco...
Suas mãos caem ao lado do corpo.
— Senti sua falta, Sarai. — Ele inclina a cabeça para um lado para parecer sincero. — Se você estava infeliz, por que não disse? Eu teria feito tudo o que você quisesse, você sabe.
Não me importa o que ele tem a dizer, só o que me importa é garantir que Samantha esteja bem. Tentando não deixar de vigiar Javier, meu olhar varre cuidadosamente a sala à minha frente, procurando por ela.
Finalmente, vejo seus pés descalços saindo de trás da espreguiçadeira do outro lado da sala, a pele suja de sangue.
— Samantha, você está bem?
Ela não responde, por isso sei que está gravemente ferida.
Eu me viro de novo para Javier, implorando com o olhar.
— Vamos embora. Por favor. Javier, por favor, não faça mais nada com ela.
Ele sorri para mim, parecendo pensativo mas divertido.
Está vestido de preto dos pés à cabeça: camisa preta de mangas compridas, cinto preto, calça preta, sapatos pretos. Coração preto. Ele levanta a arma para mim e manda que eu me aproxime com um gesto.
Ele me chama com o dedo.
— Me deixe ver você.
Eu me aproximo, meus pés descalços pisando nas revistas femininas espalhadas pelo chão. O tique-taque do alto relógio de pêndulo no canto, atrás de mim, é ameaçador.
— Javier, ela vai morrer se a gente não chamar uma ambulância — imploro ao me aproximar. — Vamos ligar para a emergência. Depois a gente pode ir.
Vejo os joelhos dela agora, mas é só o que consigo enxergar, pois o resto do corpo está escondido pela poltrona e pela escuridão.
Javier estende a mão.
— Ele comeu você? — pergunta ele, me puxando para mais perto pelos dedos. — Deixou aquele cara comer você, ou ainda é minha? — Ele se inclina para a frente e inala o meu cheiro enquanto brinca com uma mecha solta do meu rabo de cavalo.
— Não — digo, ofegante. — Eu vou ser sempre sua.
Ele está usando colônia, o mesmo tipo que sempre usava quando vinha me procurar à noite. E seu cabelo, um pouco comprido na frente, está limpo e penteado, como ele sempre usava quando me produzia e me levava com ele para as casas dos ricos.
— Não minta para mim — diz ele, baixinho, e sinto seu hálito no meu pescoço. — Você não sabe o que fez comigo. Não devia ter ido embora.
Levanto a mão esquerda e fecho os dedos suavemente em sua nuca. Eu me curvo para a frente, a lateral do meu rosto passando pelos botões abertos no alto de sua camisa, até sentir seu peito contra minha face.
— Eu sei, me desculpe. — Beijo de leve sua pele. — Estou muito arrependida de tê-lo deixado assim... — acrescento em espanhol.
Estremeço de prazer e nojo quando ele enfia a mão na minha calça e mete dois dedos em mim. Não importa se ele é louco ou um assassino que pode me matar a qualquer instante, o toque me deixa molhada mesmo assim. É meu corpo me traindo, a natureza humana me traindo, não minha mente nem meu coração. Eu me disciplinei há anos a reagir a ele dessa forma. Um perverso instinto de sobrevivência que não é ensinado nos cursos de defesa pessoal. Javier precisava acreditar que me deixava excitada, senão saberia que tudo em mim era mentira também, e, assim, meu corpo aprendeu a reagir de uma forma que sabia que me manteria viva.
Ele tira os dedos e os leva aos lábios, inalando profundamente, de olhos fechados, como que para degustar o cheiro. Então ele os enfia na boca.
Dou um passo para trás enquanto ele está distraído, para interpor o máximo possível de distância entre nós, ainda que pequena.
— Não sei se ainda quero você — diz ele.
Meu coração se endurece. Se ele não me quer, então sei que vai me matar, especialmente depois de tudo o que fiz, de todos os problemas que causei.
— Javier — digo, tentando disfarçar o nervosismo na voz —, vamos embora. Eu estou pronta para voltar.
Seu lábio superior se contrai e ele balança a cabeça.
— Izel está morta — diz ele, sondando, provavelmente se perguntando se fui eu que a matei. — Sei que você odiava Izel. Não a culpo. Mas ela era minha irmã.
Balanço a cabeça e começo a recuar um pouco mais.
— E-eu não matei Izel — digo. — Eu não sabia.
Javier ri.
Dou mais um passo para trás e dois para a direita, pisando em um pedaço pontudo de plástico de algum objeto, mas ele não fura a pele. Encosto as mãos na parede atrás de mim.
E então a vejo, Samantha, bem mais claramente deste ângulo. Abandono a necessidade desesperada de vigiar cada movimento de Javier enquanto ele se aproxima de mim lentamente, provocativamente, e só vejo Samantha. Ela não está se mexendo. Está sentada, inerte, com as costas na parede. Suas pernas ensanguentadas estão abertas no chão. Seus braços estão imóveis e flácidos dos lados do corpo, os dedos abertos.
Seus olhos. Estão abertos. E estão mortos.
A bile revira meu estômago, minhas mãos começam a endurecer, rijas como metal, nos meus quadris. Estou tremendo de raiva, ódio, culpa e, porra, medo.
— Você a matou — digo, com os lábios tremendo.
— Matei — admite Javier orgulhosamente. — Com o quinto tiro.
— Mas você disse... — Meus olhos vão e vêm entre ele e o corpo de Samantha. Meu coração parece que vai implodir. — Você disse que se eu não...
Javier levanta a arma para mim, e agora sei por que não usou a última bala nela.
Fico parada, com a mão ainda encostada na parede atrás de mim enquanto a outra, de alguma forma, chegou à barriga, como se pudesse impedir o vômito de sair. Tropeço em mais destroços e então apoio as costas na parede para não cair. Porque meu corpo ainda está me traindo, minhas pernas estão fracas e instáveis, ameaçando ceder a qualquer momento.
Olho através do pequeno espaço que me separa de Javier. Olho para seus olhos frios, escuros e sem fundo. Não para o cano de sua arma apontada diretamente para mim, mas para seus olhos. Ouço um clique, só um clique, e nós nos entreolhamos sem expressão, ambos confusos pelo que acaba de acontecer. Então se ouve um tiro, e minha cabeça bate na parede. Sinto meu corpo escorregando para baixo, até que estou sentada no chão, como Samantha. Inerte e apagada, como Samantha. O cômodo gira no meu campo de visão como uma espessa névoa cinza.
Fecho os olhos e deixo que a escuridão tome conta de mim.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Victor
Estou a 40 mil pés de altitude, acima da paisagem do Texas, quando recebo a ligação.
— Victor — diz Niklas ao telefone. — Javier não está em Tucson. Avisaram que ele usou um cartão de crédito conhecido, com um velho nome falso, perto de La Grange, no Texas.
Levanto as costas do assento, tenso.
— Isso fica a menos de duas horas de carro de Houston — comento, mais para mim mesmo. — A que horas ele passou o cartão?
— Às 3h12 da tarde de hoje.
Meu corpo fica rígido.
Desligo o celular e o esmago no punho enquanto vou para a cabine de comando.
— Dê meia-volta — ordeno.
Menos de uma hora depois, estou dirigindo loucamente em meio ao trânsito, sabendo que atraio atenção indesejada. Mas continuo em alta velocidade, ignorando sinais fechados, sem saber como consegui fazer o caminho todo de volta à casa de Samantha sem ter que despistar um ou dois carros de polícia.
Há um carro estacionado na rua entre a casa de Samantha e a vizinha. Não me lembro de tê-lo visto ao partir. Com a arma na mão, fico abaixado ao sair do carro e avançar pela garagem, usando o carro de Samantha como escudo, só por segurança. O silêncio é incomum. A cadelinha de Samantha normalmente estaria enfiada entre as persianas a esta altura, tentando olhar para fora, depois de ouvir um carro parando.
Ouço outro cachorro, maior, latindo no quintal do vizinho da casa em frente e fico agachado, avançando sob o toldo na direção do carro mais velho parado ali.
Uma figura surge da lateral da casa logo depois que cruzo silenciosamente o espaço e chego à parede de tijolos sob o toldo. Seguro o sujeito pela garganta, rápido demais para que ele reaja, e o jogo no chão. Sua arma bate no concreto, e no mesmo momento dou um tiro em sua têmpora, antes que ele tenha a chance de recuperá-la.
Outro homem chama um nome, procurando aquele que acabo de matar. Não espero que ele dê a volta na casa. Apareço bem na frente dele, levanto a arma até seu rosto e atiro antes que ele me veja por completo. Seu corpo desaba na grama.
Espero apenas alguns segundos, para o caso de haver mais, e depois corro para dentro da casa pela porta lateral sob o toldo.
A casa foi destruída; a cachorrinha de Samantha está morta a tiros no chão da cozinha. Sinto cheiro de pólvora, sangue, café recém-coado e uma colônia pouco familiar.
O primeiro corpo que vejo é o de Samantha; o segundo, de Javier.
— Sarai? — chamo, quando a vejo sentada contra a parede à esquerda, parcialmente escondida pela escuridão. Tiro minhas luvas pretas, guardo-as no bolso do paletó e vou até ela. — Sarai?
Ela não olha para mim, por isso me agacho à sua frente.
A arma que deixei debaixo do colchão está perto de seu pé. Eu a enfio na parte de trás da minha calça. Seus joelhos estão encolhidos contra o peito, suas mãos apoiadas no chão, palmas para cima.
— Ele está morto — diz ela, suas palavras distantes, como se ainda estivesse tentando absorver a realidade. Ela ergue os olhos para mim; vejo dor, confusão e desorientação neles. — Eu o matei, Victor.
Estendo os braços e a pego no colo.
— Vou tirar você daqui.
Segurando-a junto ao peito, eu a carrego através de morte e destruição para fora da casa. Ela não fala, mas se agarra a mim como se morresse de medo de que eu fosse derrubá-la. Ou, talvez, medo de que eu a solte intencionalmente.
Eu a coloco com cuidado no banco do passageiro.
Três carros da polícia passam rapidamente, indo para a casa de Samantha, a uma quadra de distância, quando saímos do local, respeitando o limite de velocidade desta vez.
Sarai está em silêncio e imóvel, sem emoção, durante todo o caminho até a pista particular onde o jatinho nos aguarda.
Só há um lugar para onde posso levá-la. Para casa. Para a minha casa, no litoral da Nova Inglaterra.
~~~
Meu motorista nos busca no aeroporto horas depois. Sarai ficou com a cabeça encostada na janela do banco de trás por todo o caminho até minha casa de praia, na encosta de um penhasco. Ela não se mexeu. É a primeira vez, desde que a encontrei no meu carro, no México, que eu gostaria de ouvir seus monólogos tagarelas e suas perguntas inconvenientes. Mas ela não diz nada. E me surpreendo desejando silenciosamente ouvi-la.
O primeiro assassinato é sempre o mais difícil, aquele que você nunca esquece. Mas o primeiro assassinato é também aquele que reduz pela metade as chances de se levar uma vida normal.
Sarai não está mais no meio-termo.
Eu não deveria tê-la deixado lá...
Carregando-a através do cascalho da entrada e para dentro da casa, eu a deito no sofá. Há um mês não entro ali, e a casa ainda cheira a limpeza, como no dia em que parti em uma missão para matar um homem em Columbia. É por causa de missões assim que posso me dar a esses luxos. Mas é uma pena que, por causa do que aconteceu com Sarai, logo tenha que sair daqui também. Achei que talvez pudesse ficar em um só lugar ao menos por um ano, desta vez, mas a vida que levo é assim, um caminho sombrio e isolado, preenchido apenas pela solidão da morte.
Sarai deita de lado, com a cabeça apoiada em uma almofada.
Tiro o paletó e o deixo nas costas da cadeira próxima, depois vou à cozinha pegar água para ela, mas sua voz me faz parar:
— A arma falhou.
De pé na entrada em arco da cozinha, eu me viro para olhá-la para além do chão de mármore e da mobília cara. Vou até ela de novo, lentamente, desabotoando um punho da camisa.
Espero pacientemente que ela prossiga. Ela continua sem me olhar; mantém os olhos fixos à frente, vendo apenas a cena, revivendo-a.
— Se não fosse por isso, eu estaria morta.
Chego mais perto, ainda mantendo distância, como se parte de mim não quisesse interromper seus pensamentos com minha presença. Desabotoo o punho esquerdo e arregaço as mangas.
— Eu travei — diz ela, lembrando. — Pensei que estivesse morta. Fiquei parada ali, esperando a morte. — Ela move a cabeça para trás só o bastante para finalmente me olhar. — Não sei como reagi tão rápido, mas quando a arma dele falhou... aquela expressão no rosto dele... quando dei por mim, a arma que eu tinha enfiado na cintura estava na minha mão e Javier estava no chão. Não hesitei. Foi como se outra pessoa estivesse dentro da minha cabeça, naquele momento. Foi ela que puxou a arma. Foi ela que puxou o gatilho. Porque só percebi o que aconteceu depois que acabou. — Ela desvia o olhar de novo. — Eu o matei — acrescenta, distante.
— Ele merecia — digo calmamente.
A cabeça dela faz um movimento rápido para me encarar de novo, me fazendo pensar que, quando ela me olhou agora há pouco, não estava me vendo de verdade. É como se minha voz a acordasse.
Ela se levanta do sofá.
Eu a observo com curiosidade, com um olhar de relance. Vejo suas mãos tremendo, como os cantos da boca. Ela fecha os dedos nas palmas das mãos até ficar com os dois punhos cerrados. E então me ataca.
— Você foi embora! Desgraçado! Você foi embora! — grita ela, esmurrando meu peito o mais forte que pode.
Eu deixo. Fico imóvel e deixo que ela continue até não poder mais e seu corpo começar a cair, exausto, a meus pés. Mas eu a seguro antes que ela chegue ao chão, abraçando seu corpo pequeno. Ela soluça no meu peito, engasgando com as lágrimas, agarrando as costuras do meu colete com os dedos trêmulos.
— Você foi embora... — repete ela sem parar, até que as palavras somem em um murmúrio em seus lábios. — Você foi embora...
Eu a abraço forte. Constrangido. Porque nunca fiz isso antes. Nunca vi esse tipo de sofrimento e dor estando no papel de quem deve ajudar a remediá-lo. Minha mãe foi a única pessoa que já me abraçou assim, quando eu era menino, e não consigo lembrar qual era a sensação.
Quero beijar o cabelo dela. Mas não faço isso. Quero apertá-la um pouco mais e absorvê-la por completo. Mas não posso. Não tenho coragem.
— Sarai — digo, afastando-a delicadamente para poder olhá-la nos olhos —, preciso que você me conte o que aconteceu. Conte tudo. Samantha ligou para alguém? Ela disse se recebeu alguma ligação estranha?
A expressão de Sarai se distorce, ofendida.
— Você acha que ela teve alguma coisa a ver com isso? — Ela me empurra e se afasta. — Ela morreu me protegendo! Como pode achar que ela teve alguma coisa a ver com isso?!
Suspiro profundamente.
— Não, não consigo achar que teve. Samantha era de confiança. Mas ela e Niklas são as únicas duas pessoas, além de nós, que sabiam onde você estava. — Dou um passo à frente e coloco as mãos em seus antebraços, em uma tentativa de fazê-la entender, e quando ela não me repele, fico aliviado. — Só pode ter sido um dos dois, e eu só estou tentando descobrir os fatos.
— Então foi Niklas — diz ela com desprezo, furiosa ao pensar nele. Seus olhos estão agitados e semicerrados. — Ele me odeia, Victor. Odeia saber que você está me ajudando. Praticamente falou isso quando eu estava na van com ele. Eu sei que foi ele!
Eu me afasto dela, deixando meus braços soltarem-na, e cruzo um braço na barriga, apoiando o outro no primeiro. Esfrego minha barba recente e examino a situação. Sarai está certa. Niklas é a resposta óbvia, e, embora muitas vezes a resposta óbvia não seja a correta, desta vez deve ser. Porque é a única que faz sentido.
Meu irmão me traiu.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Sarai
— O que você vai fazer? — pergunto quando Victor pega o paletó da cadeira.
Ele enfia a mão no bolso, pega um celular que nunca o vi usar e digita um número.
— Vou trazer Niklas aqui.
Atordoada, de início só olho para ele. Mas depois começo a entrar em pânico.
Corro até ele, segurando-o pelo cotovelo.
— Não, você não pode deixar que ele saiba onde você está — digo, ofegante. — Por que trazê-lo para cá? O que você vai fazer?
Minha mente desfia possibilidades freneticamente, nenhuma das quais imagino que vá ter um final feliz.
Fico calada quando ele me manda ficar em silêncio com um gesto enquanto Niklas atende do outro lado.
— Javier Ruiz foi eliminado — diz Victor, tão calma e profissionalmente quanto qualquer outra vez em que o vi conversando com Niklas. — Sim — responde ele a uma pergunta que não consigo ouvir, mas tolamente estico um pouco o pescoço, como se isso fosse aumentar o volume de alguma maneira. — A polícia chegou ao local antes que eu saísse do bairro. Não foi um serviço limpo. — Ele ouve Niklas por um momento e continua: — Acho que Samantha os levou para lá. A garota estava viva quando cheguei, pouco antes de eu matar Javier. Ele tinha atirado nela, mas ela conseguiu me contar que ouviu Samantha ao telefone, falando com alguém logo depois que parti para Tucson. Sim. Não, Samantha está morta. Informe Vonnegut que o Abrigo Doze foi comprometido. Um Limpador precisa ser mandado para lá imediatamente para confiscar os arquivos dela. Sim. Sim. — Ele olha para mim. — Isso não vai ser necessário. A garota morreu com os ferimentos. Eu a deixei lá.
Meu estômago se retorce em nós. Cruzo os braços na barriga.
— Niklas — diz ele, diminuindo um pouco o profissionalismo em sua voz. — Venha para o meu endereço na Nova Inglaterra assim que possível. Vamos acertar o pagamento, e depois... quero lhe contar o que aconteceu em Budapeste.
Inclino a cabeça um pouco para o lado ao ouvir essas últimas palavras. Tudo mais que Victor contou a Niklas, entendo o que foi: uma mentira, uma trama para trazê-lo até aqui. Mas a última parte parecia real, pessoal. O fato de ele ter dito isso na minha frente me parece peculiar. Sei que não tem nada a ver comigo, então por que ele o incluiria logo nessa conversa? É nesse momento que começo a entender que Niklas é algo mais para Victor do que seu contato, mais do que alguém com quem ele trabalha, e que o que aconteceu em Budapeste precisa ser dito porque ele precisa aliviar sua consciência.
É isso que as pessoas fazem quando dizem adeus.
Não sei por que, mas, apesar de Niklas ter tentado me matar, sinto uma dor e uma tristeza por dentro. Porque sei o que Victor vai fazer. Sei que vai matá-lo. No entanto, parece que é a última coisa que ele quer fazer...
Ele deixa o celular na mesa de vidro perto da cadeira e abre os botões do colete.
— Não tenho nenhum outro lugar para ir — digo a ele de novo do sofá. — Sei que fui um fardo e lamento por isso. Samantha me contou que você está arriscando tudo, até a vida, para me ajudar, e não tenho nada para lhe dar em troca. Além da minha gratidão, e sei que isso não é muito. — Suspiro e acrescento: — E eu sinto muito por Samantha.
Ele joga o colete e depois a gravata nas costas da cadeira, com o paletó.
— Ajudar você foi decisão minha — diz ele, puxando a camisa para fora da calça. — E Samantha era uma boa mulher.
— Ela amava você?
Entrelaço as mãos no colo.
— Não — diz ele, sem olhar para mim. — Queria me amar, mas era incapaz disso.
Franzo o cenho, confusa.
— Incapaz de amar? — pergunto. — Ninguém é incapaz de amar.
— Você não pode se apaixonar por alguém que não está presente — diz ele, com convicção. — Eu parti antes que ela tivesse chance disso.
— Você a amava? — Eu prendo a respiração mentalmente.
— Não, não amava. O amor é um empecilho neste ramo. Só leva à morte.
Embora sua resposta deixe um gosto amargo em minha boca, não posso negar que talvez ele esteja certo; embora eu pense em como Victor, ou qualquer um, aliás, pode passar pela vida sem amar alguém. Mas então me dou conta de que eu também jamais amei alguém.
— E eu sei que você não tem para onde ir — acrescenta ele —, mas quando isto acabar e eu souber que você está segura, você precisará ficar por conta própria. Vou ajudar você a se ajustar, a começar bem sua vida. — Ele para e me olha intensamente, procurando meu olhar para ter minha atenção total. — Mas isto vai acabar logo. Você já ficou comigo tempo demais.
Parece que de repente ele está com raiva de mim, ou ao menos com raiva de si mesmo por me ajudar. Talvez tenha a ver com o que está acontecendo entre ele e Niklas; não tenho como saber, mas desde o telefonema com Niklas, Victor está diferente.
E isso me enche de pavor.
Ele se vira e atravessa um arco de mármore que dá para outra parte de sua mansão. De certa forma, o local lembra os lugares aonde Javier costumava me levar, toda produzida e de braços dados com ele, mas esta casa, embora enorme, pelo que vi, é menor do que as outras. E mais sombria, com pisos escuros de cerejeira, tão reluzentes que consigo me ver refletida neles, e cobertos com tapetes caros, em ricos tons de vermelho, marrom e cinza. Longas cortinas marrons cobrem as imensas janelas que formam toda uma parede, de alto a baixo, e dão para o oceano agitado lá embaixo. Até lá fora, a praia não é um paraíso luminoso à beira-mar com areia branca e céu azul. Aqui ela é cinza, sombria, e as ondas batem com fúria contra as pedras, muitos metros abaixo, apesar de o tempo nem estar ruim.
Durante as horas seguintes, Victor não aparece. Não acho que esteja intencionalmente me ignorando, mas sei que quer ficar sozinho.
Penso muito em Samantha. E Lydia. E Izel. E Javier. Já vi tantas mortes... Matei um homem hoje e, no entanto, a única coisa que me incomoda de verdade é o fato de que já superei. Isto é, quase completamente; ainda não consigo tirar isso da cabeça. Ainda vejo os olhos escuros, quase pretos, de Javier me encarando, com aquela arma emperrada na mão. Ainda tremo — estou tremendo agora — quando penso no momento em que puxei o gatilho, quando seus olhos ficaram nos meus até seu corpo desabar. E nunca vou esquecer o que ele me disse antes de morrer:
— Eu sabia que você era capaz, Sarai.
E me odeio por isso, mas... bem, sinto uma tristeza despropositada por causa de Javier. Um vazio. A parte de mim que acabou por aceitá-lo como a única vida que eu tinha, querendo eu ou não que ele fosse essa vida, sente saudades. Acho que é porque me acostumei com ele, depois de tanto tempo.
— Sarai? — A voz de Victor me arranca de minhas lembranças.
Olho para ele, de pé ao meu lado. Não o ouvi se aproximar, nem notei sua silhueta alta perto do sofá, de tão absorta que estava.
— Niklas vai chegar em vinte minutos — diz ele. — Você vai ter que ficar escondida. Vá para o meu quarto e mantenha a porta fechada. Entendeu?
— Sim.
Odeio perceber essa frieza nele de novo, como quando o conheci. Qualquer sinal de afinidade e abertura que senti crescer em Victor durante o tempo que passamos juntos desapareceu.
— O que você vai fazer?
— O que for preciso.
Ele passa por mim usando uma camiseta preta de mangas compridas e calça preta. É surpreendente vê-lo usando algo tão informal, depois de só vê-lo de terno. Ele fica atraente vestindo qualquer coisa, admito para mim mesma.
Eu o sigo para a parte da casa aonde ele está indo.
— Victor? — chamo de trás, mas ele continua andando. — E-eu podia ajudá-lo. — Não acredito que estou dizendo isso. — Você já... treinou alguém? Sabe, para ser como você?
Victor para no meio do caminho, na entrada de uma sala espaçosa com chão de mármore.
Vejo os ombros dele subindo e caindo. Então ele se vira.
— Não — diz ele —, e nunca vou treinar.
Ele deixa o assunto por isso mesmo e entra na sala, comigo ainda atrás, e assim que entro a beleza do ambiente me deixa sem fôlego. Há quatro estátuas gregas de mulheres em tamanho natural usando túnicas no perímetro da sala redonda, com o teto em redoma. À direita, outra janela panorâmica dá para o oceano agitado, e, diante dela, orgulhosamente à mostra, está o piano mais lindo que já vi.
Tento tirar os olhos do instrumento.
— Mas por que não? — pergunto, me aproximando de Victor por trás. — O que mais eu vou fazer da minha vida? Não posso voltar para o mundo. Não tenho estudo, nem me formei. Não tenho amigos, nem família, nem experiência profissional. Victor, eu não tenho nem uma carteira de habilitação de verdade, nem certidão de nascimento, nem cartão do Seguro social. Não tenho nenhuma identidade, não legalmente, pelo menos.
Ele sai da sala do piano, passando por uma porta do outro lado, e continuo a segui-lo de perto.
Agora estamos em uma saleta lateral menor, com uma estante que vai até o teto na parede dos fundos, repleta de livros — a maioria com capas de couro —, e uma escrivaninha de laca preta de aspecto antigo encostada a uma parede. Uma espreguiçadeira de couro ocupa o meio da sala, com uma mesinha e um abajur ao lado.
— Você pode recuperar tudo isso — diz ele, indo até a mesa ao lado da espreguiçadeira. — Vai levar algum tempo, mas você consegue. Quanto aos estudos, pode fazer supletivo e ir para alguma faculdade. — Ele me olha de relance e acrescenta: — Vai ser difícil, mas é sua única opção.
Ele pega uma espécie de caderno da mesa e começa a folhear as páginas de bordas irregulares.
— Mas não é isso que eu quero — digo. — Eu quero... fazer o que você faz. Sei que parece ridículo, mas...
— É ridículo — diz ele, fechando o livro em sua mão. — A resposta é não. Vai ser sempre não, por isso não perca seu tempo ou o meu insistindo nisso.
Ele passa por mim de novo.
E o sigo para fora mais uma vez, cruzando a sala do piano e voltando à sala de estar.
Ele faz menção de me deixar sozinha ali novamente, mas eu o seguro.
— Quero ficar com você.
De costas para mim, ele fica parado, quieto e imóvel, como se minha confissão tivesse lhe roubado os movimentos e a voz. Eu não queria dizer isso em voz alta, mas parecia a única coisa que me restava tentar.
Por um longo momento, penso que ele vai responder, mesmo que apenas para me dizer não mais uma vez e me passar um sermão sobre como não sei do que estou falando ou o que estou pedindo. Mas ele não diz nada. E então, finalmente, ele pega o corredor que leva para seu quarto.
Derrotada, eu me sento em uma banqueta na cozinha e fico olhando o monitor do circuito interno de TV preso à parede à minha esquerda; uma tela dividida em quatro para mostrar quatro áreas da propriedade ao mesmo tempo. E cada um dos quadrados muda de câmera a cada poucos segundos, para mostrar mais áreas ainda.
Minutos depois, um carro preto reluzente, muito parecido com aquele no qual me escondi quando Victor saiu da fortaleza, se aproxima do portão.
Victor, provavelmente olhando para a mesma câmera em outro quarto, entra na cozinha.
— Ele chegou — anuncia, e faz um gesto para mim. — Lembre-se do que eu falei: fique quieta e não saia do meu quarto até eu mandar.
Faço que sim com a cabeça, nervosa.
Meu estômago está revirado de novo, meu coração já batendo duas vezes mais forte do que há poucos segundos.
Desço da banqueta e ando rapidamente até o quarto impecável de Victor, onde não me surpreende em nada ver mais uma janela panorâmica. Uma cama king-size descomunal está encostada em outra parede, com lençóis pretos e uma colcha cinza bem arrumada, sem nenhuma prega ou imperfeição. Parece que é assim em todos os ambientes que vi até agora: nenhuma imperfeição, nem sinal da menor desordem.
Victor fecha a porta atrás de mim, e tento me preparar mentalmente para o que está por vir.