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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MORTE DE SARAI
A MORTE DE SARAI

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Victor

Quando Niklas e eu éramos apenas meninos, antes de sermos levados pela Ordem, ele era meu melhor amigo. Brigávamos muito, saíamos na mão, sempre competindo, e, embora nós dois muitas vezes saíssemos das brigas com o nariz sangrando, até um pulso quebrado uma vez, nada poderia fazer com que um se voltasse contra o outro. Saíamos do campo de batalha conversando sobre o que achávamos que nossas mães teriam preparado para o jantar quando voltássemos para casa. E acordávamos e íamos para a aula no dia seguinte com os mesmos olhos roxos.

O olho dele sempre ficava mais roxo, é claro, mas Niklas dizia o mesmo sobre o meu.

Depois que fomos levados pela Ordem, as coisas entre nós começaram a mudar. Vonnegut, embora raramente aparecesse pessoalmente — e isso não mudou até hoje —, dizia que eu parecia promissor. Mas não dizia nada sobre Niklas. E a primeira vez que vi o rosto de Niklas depois que Vonnegut me promoveu — mais jovem do que qualquer outro assassino que ele já promovera — para Agente Pleno, quando eu tinha apenas 17 anos, vi algo que me endureceu contra ele: um coração invejoso.

Eu soube, naquele momento, que um dia poderia ser obrigado a matá-lo.

Niklas é o único parente que me resta. E por mais que eu queira que não precisasse ser assim, que eu estivesse enganado a respeito dele e as coisas voltassem a ser como eram, sei que isso não é totalmente possível. A verdade é que estou de sobreaviso em relação a meu irmão desde o ano passado.

E a culpa disso é do nosso pai.

Acho que eu deveria ter dado ouvidos a ele...

Encontro Niklas na porta de casa. Ele entra, calmo e controlado como sempre é, exceto quando está furioso comigo por eu ter opinião própria e decidir fazer as coisas como acho que devem ser feitas.

Fecho a porta atrás dele.

— Este lugar é bem mais legal do que o último — diz ele, olhando para cima, para o teto escalonado, com as mãos às costas.

Eu me pego estudando discretamente seu semblante, procurando meus traços e os do meu pai. Temos os mesmos olhos, embora os dele sejam mais azuis do que os meus; os meus às vezes parecem mais verdes do que azuis. Seu rosto é mais redondo, o meu é mais magro. Mas acho que o que mais nos diferencia são os sotaques. Nosso pai e a mãe dele eram alemães. Eu nasci na França, filho de uma espiã francesa da Ordem. Meu pai se mudou conosco para a Alemanha quando eu tinha 2 anos e eu só conheci Niklas aos 6. Eu o ajudei a aprender inglês e francês, mas ele não tem o mesmo dom para línguas que eu, por isso nunca perdeu totalmente o sotaque. Mas, apesar das nossas diferenças, ainda vejo uma versão mais jovem de mim quando olho para ele. Especialmente agora, quando tento absorver o fato de que vou matá-lo. Não quero fazer isso. Quero desistir e esquecer o que aconteceu, mas não posso.

Ele sorri para mim.

Temos o mesmo sorriso também. Lembro que nosso pai dizia isso.

— Sim — digo, a respeito da casa —, achei que estava na hora de dormir em um lugar mais sofisticado. Eu esperava poder ficar aqui por um tempo.

— Isso mudou? — pergunta ele, curioso, tirando essa conclusão do meu tom de voz.

— Infelizmente.

Faço um gesto na direção da sala.

— Vamos sentar — digo, e ele me segue. — Temos muito o que conversar.

Ele se senta na poltrona perto da mesa lateral de mármore.

Eu fico de pé.

Sinto que ele está se perguntando por que não me sento também, mas a curiosidade desaparece de seus olhos e é substituída por atenção quando começo a falar:

— Niklas, ano passado, na minha missão em Budapeste, não fui totalmente sincero com você.

Niklas ri baixinho, ajeitando as costas na poltrona. Ele apoia o tornozelo esquerdo no joelho direito e cruza os dedos à sua frente, com os cotovelos nos braços da poltrona.

— Bem, não foi a primeira vez — diz ele, ainda sorrindo, como se esta fosse uma conversa casual entre dois irmãos. — Você nunca foi de contar seus segredos, nem para mim.

— Eu fui ver nosso pai — anuncio.

O sorriso desaparece de seu rosto. Ele vira um pouco o queixo, obviamente confuso com minha confissão.

— Ele mandou me chamar — acrescento.

— Para quê? Por que ele mandaria chamar você, Victor? Depois de tantos anos sem vê-lo nem uma vez, por que ele mandaria chamar você, e não eu?

Não respondo. Acho mais difícil dizer a verdade a ele do que imaginei que seria. Eu sempre soube que seria duro, mas não tanto.

— Victor? — Os olhos de Niklas estão cheios de preocupação e... dor.

Ele se levanta da poltrona.

— Diga de uma vez, irmão, por favor.

Engulo em seco e controlo a respiração.

— Niklas — continuo finalmente —, sua mãe foi eliminada pela Ordem porque foram encontradas provas de que ela estava vendendo informações. Isso você já sabe. — Ele assente. — Mas depois disso, por ela ser sua mãe, a Ordem não podia confiar em você. Até Vonnegut achava que você era instável, que um dia, cedo ou tarde, vingaria a morte de sua mãe e trairia a Ordem.

Ele continua ouvindo, seu rosto cada vez mais carregado de dor e negação. E me mata por dentro ver isso.

— Eu fui até Budapeste me encontrar com ele — digo, e não consigo mais olhar para meu irmão. — Ele falou com Vonnegut e os dois concordaram que você deveria ser eliminado, mesmo que só por precaução, para prevenir o inevitável. Eu fui incumbido de fazer isso.

A cabeça de Niklas vira bruscamente.

Eu o olho nos olhos.

— Vonnegut, é claro — continuo —, não sabia que somos irmãos, e, sendo eu o Número Um dele, pensou que eu podia fazer o serviço, porque somos bem próximos, você é meu contato. Papai quis que fosse eu a matar você porque achava que isso seria o mais honrado, que se era para alguém tirar sua vida, deveria ser eu, por sermos da mesma família, e que ninguém mais deveria ter esse privilégio.

Niklas mal consegue compreender. Mal consegue falar, mas, quando finalmente o faz, parte meu coração tanto quanto sua expressão continua partindo.

— Papai quis que você me matasse?

— Sim — digo gentilmente.

Ele começa a andar de um lado para outro e então põe as mãos na cabeça, passando-as pelo cabelo com força. Ele olha para mim com olhos cheios de lágrimas. Nunca vi meu irmão chorar. Nunca. Nem quando éramos crianças, ou quando a mãe dele foi morta.

Cerro os dentes, engolindo minhas próprias lágrimas. Aperto os dentes com tanta força que sinto a pressão no meu crânio. Mas mantenho a expressão calma, até onde consigo.

— E por que você não me matou? — dispara ele. — Por que ainda estou vivo? Diga, Victor. — A primeira de suas lágrimas escorre por um lado da face, e ele instintivamente a enxuga, furioso por ser traído por ela. — Você deveria ter me matado!

— Eu me recusei — digo. — Você foi o único serviço que não consegui fazer, Niklas. Então para papai, só restava uma opção: ele mesmo fazer.

O corpo de Niklas fica rígido, mais magoado por essa verdade do que pela que veio antes. Outra lágrima escapa de seu olho, mas desta vez ele não tem cabeça para pensar em enxugá-la.

— Eu o matei — digo finalmente. — Papai me disse que eu teria que fazer isso, porque seria a única forma de ele não concluir o trabalho. Por isso atirei nele ali mesmo.

Ele não consegue me olhar. Sinto o conflito dentro dele, sua mente e seu coração tentando decidir quais emoções sentir e quais rejeitar: a mágoa pelo que nosso pai fez, ou o amor por seu irmão, porque ambas são demais para sentir ao mesmo tempo.

Continuo:

— Sendo o Número Um de Vonnegut, eu o convenci a poupar sua vida e o fiz acreditar que nosso pai era desequilibrado, paranoico, e que por isso tinha precisado matá-lo. Disse a Vonnegut que você era confiável e que eu queria uma chance de provar isso a ele e ao resto da Ordem. Prometi assumir total responsabilidade por você...

— Total re... — Ele me fuzila com o olhar. — Total responsabilidade por mim? O que eu sou, uma criança, porra? Tudo o que fiz desde os 7 anos foi pela Ordem. De nós dois, sou eu que sempre faço o que mandam, que nunca questiono as ordens de Vonnegut, que nunca dei, nem a ele nem a ninguém, motivos para me questionar! — Ele cerra os punhos ao lado do corpo. — Eu me esforcei para ser como você, Victor, para ser respeitado e banhado com a mesma glória que Vonnegut derramou sobre você desde antes de ser promovido a Agente Pleno! Eu não fiz nada para justificar...

— Você mente para Vonnegut por mim há anos, Niklas. Quem garante que não se voltará contra mim no momento certo? Você fingiu ser o soldado confiável de Vonnegut, seu contato esperando ser promovido a Agente Pleno, e o tempo todo mentia para ele sempre que eu pedia.

— Então é isso?! — Ele aponta para cima e depois baixa a mão agressivamente. — Você estava me testando esse tempo todo?! Foi isso que você fez! Não foi?!

— Não — digo. — Jamais usaria você assim, Niklas. Matei nosso pai para salvar sua vida. Por que, então, arriscaria sua vida armando uma cilada para você?

Ele não tem resposta. Apenas me olha, confuso, magoado, furioso e sem saber o que fazer com tudo isso. Ele desaba de novo na poltrona, com as pernas abertas, o tronco inclinado para a frente, a testa apoiada na mão.

— Por que está me contando isso agora? — pergunta ele, voltando a me olhar. — O que o fez decidir que hoje seria o dia em que ia virar minha vida de cabeça para baixo? Você acordou hoje de manhã e pensou: “Hoje vou foder com a cabeça do meu irmão porque não tenho nada melhor para fazer”?

— Senti que devia isso a você — digo. — Você deveria saber a verdade antes de morrer.

Niklas parece levemente atordoado, tentando entender se me ouviu direito.

Ele tira a mão da testa e endireita as costas na poltrona.

— Como assim?

— Niklas — vou direto ao assunto —, sei que você contou para Javier Ruiz onde escondi a garota. Onde eu estava com a garota.

Seus olhos se franzem em confusão.

— Do que você está falando?

Dou alguns passos para a direita, com a mão nas costas, para parecer que só a apoiei ali. Minha arma está bem escondida na parte de trás da calça.

— Quando me ligou, quando eu estava voltando para Tucson, você disse que o horário do último paradeiro conhecido de Javier era 15h12. — Eu inclino a cabeça. — Por que levou sete horas para me dar essa informação?

Ele ainda não titubeou. Estou começando a achar sua capacidade de fingir melhor do que eu imaginava.

Ele pensa na pergunta por um momento.

— Liguei assim que fiquei sabendo. Victor, você sabe que nem sempre obtemos esse tipo de informação no momento em que acontece.

— Pode ser — digo. — Mas você e Samantha eram as únicas duas pessoas que sabiam onde eu estava e onde planejava deixar a garota.

Ele aponta para mim, sua expressão distorcida pela incredulidade.

— Mas você me disse que foi Samantha. Você disse que a garota contou que Samantha recebeu uma ligação...

— Menti.

Ele ainda não hesitou.

Será que está dizendo a verdade?

Aponto a arma para ele.

Niklas arregala os olhos e estende as mãos na minha direção.

— Victor, eu não traí você. Juro pela minha vida, não contei nada para ninguém!

Meu dedo encosta cuidadosamente no gatilho.

— Você é meu irmão! — grita ele. — Sempre fiz o que você pediu, guardei seus segredos, fiz o seu jogo com Vonnegut e com as ordens que ele lhe dava! Eu morreria antes de trair você!

Quando os olhos de Niklas param atrás de mim, sei que Sarai está ali.

— Falei para você não aparecer. — Mantenho os olhos em Niklas.

Ele corre os olhos entre mim e ela, sua expressão transparecendo o choque com a minha traição.

— Você disse que ela morreu.

— Menti sobre isso também.

Aperto o gatilho um pouco mais.

— Então quem está mentindo para quem? Quem está traindo quem?!

Seus olhos correm de um lado para outro.

— Victor! Não. Fui. Eu! — ruge ele. Está mais furioso do que apavorado, com o rosto distorcido pela mágoa e a incredulidade, as mãos apertadas em punhos ao lado do corpo. — Não vou implorar pela minha vida. Não vou, irmão. Se você tem que me matar, então me mate e acabe logo com isso, mas saiba que eu não traí você!

No último segundo, abaixo a arma e solto a respiração que prendi nos últimos minutos.

Então me sento na poltrona mais próxima e deixo o corpo relaxar.

O silêncio enche a sala. Nunca me senti tão confuso a respeito de alguma coisa.

— Acho que ele está falando a verdade — diz Sarai, baixinho, atrás de mim. Eu a sinto ali, de pé, com as mãos no encosto da minha poltrona. Por um momento, quase levanto a mão para tocá-las.

Finalmente, ergo os olhos para Niklas e digo para Sarai:

— Também acho.

— Como é que ela está viva? — pergunta Niklas, mais preocupado com ela do que com o fato de que decidi não atirar nele.

Ele parece olhar mais para ela, agora, do que para mim. Ainda não sei dizer que tipo de descontentamento ele está sentindo com isto, mas talvez, depois que o choque passar, eu consiga interpretar seu rosto com mais facilidade.

— Samantha também não contou a Javier onde estávamos — digo. — Só disse isso para você vir para cá, porque eu tinha certeza de que tinha sido você. Você era o único que restava.

— Samantha morreu tentando me proteger — diz Sarai.

Eu queria que ela parasse de falar e voltasse para o quarto.

— Javier a matou — acrescenta ela, com tristeza na voz.

— E Sarai matou Javier antes que eu chegasse — termino.

Niklas olha para nós dois por muito tempo, talvez ainda tentando encaixar todas as peças em sua cabeça, e provavelmente ainda magoado por eu tê-lo enganado para trazê-lo até aqui.

— Tudo bem — diz ele, cortando o ar à sua frente com a mão. — Não foi Samantha, mas também não fui eu.

Os dedos de Sarai se movem do encosto da cadeira e tocam a parte de trás dos meus ombros, provavelmente de forma involuntária, porque ela está nervosa. Por um momento me pego querendo que seus dedos fiquem ali, mas logo me levanto, antes que meu irmão tenha a impressão errada, se é que já não tem.

— Qual é o motivo de tudo isso? — pergunta Niklas. — Me diga, Victor, o que essa garota tem a ver com você? — Ele começa a andar de um lado para outro de novo, me olhando de vez em quando, com a mente em turbilhão. — Você foi para o México ouvir a oferta de Javier, para ver qual oferta valia mais o contrato, a dele ou a de Guzmán. E então, quando saiu de lá, achou uma clandestina no seu carro que claramente pertencia a Javier Ruiz...

— Eu não pertenço a ninguém — diz Sarai asperamente. — E meu nome não é garota, é Sarai.

Levanto a mão e ela para de falar, mas seu olhar duro fica mais sombrio, encarando Niklas. Ela cruza os braços.

Niklas devolve o olhar dela, mas se dirige a mim quando diz:

— Já relatei para Vonnegut as mentiras que você me contou para me atrair aqui. — Ele volta a se sentar na poltrona. — Você sabe tão bem quanto eu que desmentir essa história vai levantar todo tipo de suspeita. Você não pode mantê-la escondida para sempre. Já poderia ter pedido formalmente um novo contato, porque eles vão me substituir simplesmente por causa da nossa “falha de comunicação”, se decidirmos que é isso que vamos dizer a ele. — Ele balança a cabeça para mim, com um leve sorriso incrédulo nos lábios. — Você fez tudo isso, mentiu para a Ordem, pôs toda a sua missão em risco, destruiu a missão, na verdade, só por causa dessa garota... — Ele sorri, sardônico. — O Abrigo Doze foi comprometido por causa dela.

Niklas olha nos olhos de Sarai, atrás de mim, e, sem que eu precise vê-la, posso sentir o ressentimento que ferve dentro dela.

— Tanta gente morreu por causa dela — diz Niklas. — Samantha. Aquela garota no Arizona. Dizem que ela só tinha 16 anos. Morta por causa de... Sarai. — Ele dá um sorrisinho.

Vejo o cabelo longo e avermelhado de Sarai voar quando ela passa por mim. Eu poderia estender o braço e segurá-la, mas Niklas merece qualquer revide que ela consiga dar antes que ele a derrube.


CAPÍTULO VINTE E CINCO

Sarai

Meu rosto arde com desprezo e lágrimas escorrem de meus olhos como um rio enquanto atravesso a pequena distância até Niklas.

Não me importa que ele pareça surpreso e ao mesmo tempo levemente divertido quando me jogo em cima dele, agitando os punhos caoticamente diante de seu rosto.

Em um instante estou deitada no chão, de costas, e Niklas está agachado sobre mim, com a mão em meu pescoço, impedindo que eu respire. Agarro seu pulso com as duas mãos e tento lhe dar pontapés, mas não há como eu me mexer. Ele me olha fixamente e sua mão vai do meu pescoço para minhas bochechas, segurando meu queixo com os dedos como se fossem alicates. Com a outra mão, segura meus pulsos, forçando-os contra meu peito. Ele vira meu queixo para um lado, depois para o outro, e eu sinto o gosto de sua loção pós-barba quando seu dedo indicador aperta o canto dos meus lábios.

— Saia de cima de mim! — rujo sob o peso de sua mão.

— Niklas — diz Victor calmamente, de trás. — Deixe-a em paz.

Os olhos azuis de Niklas perfuram os meus e ele me segura naquela posição por mais três segundos desesperadoramente longos antes de fazer o que Victor falou.

Tento recuperar o fôlego quando ele me solta, mas acho que prefiro prender a respiração mais um pouco, até que ele se afaste completamente.

Levanto as costas do chão, mas fico sentada ali. Estou muito magoada, muito ultrajada com as coisas que Niklas disse, mas meu orgulho é o que mais dói.

Porque eu sei que ele tem razão.

Olho para o chão em vez de olhar para os dois. Não quero que vejam a vergonha e o remorso em meu rosto, embora seja evidente para qualquer um como me sinto.

— Niklas — diz Victor, calmamente —, lamento ter envolvido você nisto.

Ergo os olhos na hora. Sinto uma mudança no clima da sala, e, embora não saiba ao certo qual é sua natureza, percebo, pela pausa na voz de Victor, que é algo que pode mudar sua vida.

— Poderíamos formar um plano — continua ele, com atenção total de Niklas. — Vamos deixar que Vonnegut acredite que Sarai está, de fato, morta...

— Ou poderíamos simplesmente matá-la, para que fosse verdade.

Eu me viro para olhar para Niklas, que devolve meu olhar com o mesmo ar superior.

Victor balança a cabeça, opondo-se à sua proposta mordaz, embora totalmente séria.

— Podemos formar um plano juntos — continua Victor, com o mesmo tom firme —, ou então eu faço isso sozinho, e você pode se afastar e não tomar parte.

Niklas arregala os olhos e seu corpo enrijece. Parece estar sem palavras. E eu também. Posso não entender como esse tipo de coisa funciona no ramo deles, mas não preciso realmente saber que o que Victor acaba de propor é algo muito perigoso. É suicídio.

Encontro forças para me levantar do chão.

— Você tem uma escolha — diz Victor. — Siga meu plano de dizer a Vonnegut que ela está morta ou diga a verdade, conte tudo o que aconteceu aqui, para assegurar seu lugar na Ordem. Não vou culpar você por isso. Vou levá-la embora comigo, deixá-la em algum lugar para que possa seguir com sua vida. E então seguirei com a minha. A escolha é sua, Niklas. Mas não vou matá-la, e se Vonnegut souber que ela está viva, ele vai, e com razão, questionar minha lealdade. E ninguém melhor do que você sabe o que acontece quando nossa lealdade é questionada.

— Eliminado como precaução — digo em voz alta, embora mais para mim mesma, lembrando o que Victor disse momentos antes sobre a ordem para matar Niklas.

Niklas está em choque. Balança a cabeça várias vezes, como se estivesse tentando tirar da mente as palavras perigosas de Victor.

— Logo você, de todos os agentes — consegue dizer Niklas — ...não entendo por que está fazendo isso, por que quer jogar tudo para o alto e viver escondido... — Ele balança a cabeça de novo, incapaz de concluir a frase.

— Não seria a primeira vez que arrisco minha posição e minha vida para seguir minha consciência em vez das minhas ordens.

Niklas respira fundo e desvia o olhar para o teto. Então olha para mim, e compartilhamos um momento suspenso nesta intrincada teia de mentiras, desprezo e ressentimento, um momento no qual, apesar de tudo, nos damos conta de que temos algo em comum: Victor salvou a nós dois, e nisso somos iguais.

Simultaneamente, olhamos para Victor.

Niklas por fim rompe o longo silêncio:

— Como sempre falei, irmão, eu jamais vou trair você.

Victor assente, e vejo o alívio escondido em seus olhos azul-esverdeados. Penso se ele teria matado Niklas ali mesmo, caso o irmão tivesse escolhido outro caminho.

— Eu estou com você — diz Niklas, e me lança um breve olhar. — No que você quiser fazer. Mas antes de fazer qualquer coisa, precisamos descobrir quem contou para Javier aonde você a levou.

Quando os olhos de Niklas pousam em mim novamente, ficam ali, e de repente sinto que ele está me culpando.

Franzo a testa. Cruzo os braços no peito.

— Bom, eu é que não contei, com certeza — disparo. — Não me olhe assim.

Victor fica entre nós e me pega pelo pulso, me levando para a poltrona mais próxima, onde me sento, obediente. Meu estômago está agitado de nervosismo. Olho para os dois, com as mãos segurando os braços da poltrona.

— Não fui eu!

— Eu sei que não foi você — diz Victor. — Mas preciso que você pense agora, Sarai. Em algum momento você falou com alguém, depois que saiu da fortaleza? Qualquer pessoa. Viu alguma coisa que não parecia certa, algo aparentemente insignificante?

Balanço a cabeça, traçando círculos nervosamente nos entalhes na madeira dos braços da poltrona.

— E-eu não sei — digo, sem fôlego, tentando desesperadamente me lembrar de alguma coisa, qualquer coisa que ele possa estar procurando.

Mas não consigo.

— Victor, e-eu acho que não.

Ele anda um pouco e olha para Niklas. Então, como se uma nova teoria lhe tivesse dado um tapa na cara, ele se vira de volta para mim.

— Tire a roupa — exige Victor.

Meu coração para de bater.

— Quê?

— Sarai, tire a roupa.

Ele me levanta da poltrona pela mão. Tento me desvencilhar, mas ele me segura mais forte.

— Eu não vou tirar a roupa coisa nenhuma! Por que você está me pedindo...? — Eu o esbofeteio com a outra mão, na face esquerda.

Ele me segura pelo pulso.

— Preciso que você confie em mim. Eu a trouxe até aqui, agora faça o que eu mandei e tire a porra da roupa.

O uso incomum do palavrão me choca o suficiente para me fazer obedecer. Meus olhos vêm e vão entre os dois de novo enquanto cerro os dentes; minha respiração sai curta e ofegante.

— Tudo bem — digo, puxando a mão. — Mas não na frente dele.

Victor me segura pelo pulso e me leva para longe de Niklas, para a porta de seu quarto.

— Você não tem nada que eu queira ver — ouço Niklas dizer antes que Victor feche a porta.

Eu já me sinto nua, parada no meio do quarto espaçoso com vista para o mar de Victor, e ainda nem tirei a roupa. Quero demorar o máximo possível, adiar isso para que talvez ele mude de ideia, ou ao menos me diga o que pretende, mas ele não perde mais tempo. E também não me deixa perder.

— Tire tudo. Agora.

Começo com a camiseta, tirando-a e expondo meus seios nus. Jogo a camiseta no chão, perto dos meus pés. Ele me observa, não com desejo, mas com determinação. Eu me curvo, tiro a calça e fico só de calcinha.

Ele se aproxima.

Eu hesito. A distância entre nós é de uns 50 centímetros, mas parece que são 5. Não quero tirar a calcinha, não porque tenha medo dele, mas porque... fico constrangida por ele me ver assim.

Quando ele se aproxima mais e não exige que eu tire a calcinha, suspiro silenciosamente, aliviada.

— Deite na cama — diz ele, e o suspiro de alívio é sugado de volta para meus pulmões antes que eu possa expeli-lo por completo.

Como não obedeço rápido o suficiente, ele fecha as mãos em meus antebraços e me empurra delicadamente para seu edredom caro.

Engulo um nó na garganta.

Quando começo a erguer os braços até os seios para cobri-los, sinto as mãos quentes de Victor em meu corpo. Fico imóvel, com os olhos arregalados, sem piscar. Ele levanta meus braços acima da cabeça e começa a apalpar cada centímetro da minha pele, apertando os dedos na parte interna dos meus braços, descendo depois para as costelas, antes de chegar aos seios.

Seu olhar cruza o meu rapidamente.

Talvez ele quisesse apaziguar meu medo com aquele olhar, mas o único efeito é me fazer querer que ele me toque mais.

A culpa por pensar assim me queima por dentro. Mas o toque de suas mãos em meus seios, apertando só uma pequena área por vez entre os dedos, faz algo totalmente diferente.

Imagino sua boca em meu mamilo...

Obrigo essa ideia ridícula a desaparecer e o observo, seus olhos concentrados, e suas mãos, muito habilidosas mas ao mesmo tempo brutas, se moverem por cada centímetro do meu corpo. Discretamente, inspiro o cheiro de sua pele, seu aroma natural, que por algum motivo me faz querer beijá-lo. Ele se afasta de mim, mas ainda não acabou. Vai para minhas coxas em seguida, começando pela esquerda e massageando a carne com os dedos, usando as duas mãos. E depois, a outra coxa.

Quando seus dedos tocam a pele sensível da parte interna das coxas, perto da calcinha, eu gemo.

Ele para. Olha para mim, por sobre meu corpo nu. Só posso imaginar o que ele está pensando, mas desta vez tenho a sensação de que seu olhar não é para apaziguar meu medo, mas para estudar minha reação ao toque de suas mãos bem próximo de minha região mais íntima. Eu me pergunto por que ele sequer olha para o meu rosto, por que não rejeita minha reação óbvia afastando as mãos, como esperei que fizesse. Em vez disso, ele deixa as mãos ali, e sinto a ponta de um de seus dedos alisando minha pele, na virilha, bem no limite da calcinha, em conflito quanto ao que fazer. Ao que ele talvez queira fazer.

Ele tira a mão e me vira abruptamente de barriga para baixo.

— O que você está fazendo, exatamente? — pergunto, me adaptando à mudança rápida de situação.

Ele puxa minha calcinha para baixo até o meio da bunda, passando as mãos aqui e ali do mesmo jeito, indo depois para minha cintura.

— Estou procurando uma coisa.

— O quê? — pergunto.

Então ele para de repente, fazendo um movimento circular com o polegar em um lugar pouco acima da minha nádega direita, na parte de trás do osso da bacia. Mais ou menos a mesma região de onde tirei a bala dele.

— Um rastreador — diz ele. — Você está com um.

Tento virar a cabeça para trás para vê-lo melhor, mas meu pescoço dói.

O brilho de uma lâmina prateada chama minha atenção. Entro em pânico quando vejo o canivete em sua mão, e começo a me contorcer desajeitadamente. Mas ele me segura, pondo o peso de sua mão no meu cóccix, segurando meu ombro esquerdo com a mão do canivete.

— O que você vai fazer? — grito.

— Preciso tirar isso.

— Victor, não!

Eu me agito com mais violência, tentando me virar de costas para me levantar. De repente ele está completamente deitado em mim, e sua proximidade, o calor de seu hálito na lateral do meu pescoço, me deixa sem fôlego. Meu corpo todo fica rígido debaixo dele e depois começa a relaxar, derretendo quando sua voz dança perto de minha orelha:

— Eu vou tomar cuidado — sussurra ele, e minha pele fica arrepiada da orelha até a base da coluna.

Ele aperta seu corpo no meu por trás, sua ereção óbvia sob o fino tecido de sua calça, que nos separa.

— Prometo — diz ele em meu ouvido. — Mas isso precisa sair. Entendeu? Confia em mim?

Ele aperta seu quadril contra o meu de novo, e sinto que eu me pressiono contra ele involuntariamente. Fecho os olhos quando a sensação de formigamento no meio das minhas pernas sobe pelas minhas costas e chega às pálpebras.

— Sim — murmuro. — Confio em você.

— Ótimo — diz ele, em tom suave, e sai lentamente de cima de mim.

Fico imóvel, pensando muito mais em Victor e no que ele acaba de fazer comigo do que na ameaça mais imediata. Parte de mim nem se importa com o que ele vai fazer, com o fato de que ele está prestes a me cortar com um canivete, que vai doer pra caramba; e que talvez seja só por isso que ele fez o que fez, sabendo, de alguma forma, que podia controlar meu humor, minhas emoções, me dando a esperança de que me tocaria mais do que já tocou. Eu me sinto um brinquedo, e Victor sabe cada botão em mim que precisa apertar, tocar, para que eu faça tudo o que ele quiser, sinta tudo o que ele quiser que eu sinta. E eu não me incomodo. Não sei como ele fez isso, mas não me incomoda nem um pouco.

— Morda o travesseiro se precisar — diz ele.

Pego o travesseiro mais próximo, esmagando-o contra o peito. Fecho os olhos com força.

A lâmina me penetra e eu urro de dor antes de enterrar o rosto no travesseiro, sentindo meu corpo todo endurecer como um bloco de concreto.

Em segundos o dispositivo sai, e Victor está no pé da cama, olhando para algo do tamanho de um grão de arroz em seus dedos ensanguentados.

Com a outra mão, ele pega a toalha que usou para se enxugar depois do banho, que estava no chão perto dali. Ele a entrega para mim.

— Faça pressão no corte para estancar o sangramento — diz ele, e sai do quarto para o banheiro.

Enquanto aperto a toalha no quadril, ouço a água correndo na pia, e depois o som de Victor remexendo em seu armário de remédios. Segurando a toalha no lugar com uma das mãos, me levanto da cama para procurar minha camiseta, soltando a toalha só o tempo suficiente para vesti-la.

Victor sai do banheiro com um frasco laranja de comprimidos na mão, passa por mim e vai até a porta.


CAPÍTULO VINTE E SEIS

Victor

— Niklas — digo, saindo do quarto —, isto lhe é familiar? — Vou até ele e mostro o frasco de comprimidos com o rastreador dentro.

Ele o pega.

Ouço passos suaves atrás de mim quando Sarai sai do meu quarto, mas mantenho a atenção em Niklas.

Ele olha o frasco pela lateral primeiro, mas depois abre a tampa e joga o dispositivo na palma da mão.

Ergue os olhos para mim.

— É o mesmo tipo de dispositivo que eles usam nas garotas em Dubai — diz. Ele olha para Sarai. — Você achou isto nela? — Então o guarda novamente no frasco e fecha a tampa. — Odeio perguntar onde.

Niklas limpa a mão no paletó.

— Se isso é deles — digo —, significa que Javier Ruiz tem uma operação muito maior do que qualquer um de nós sabia. Nunca vi um chefão do tráfico como Ruiz com acesso a esse tipo de tecnologia.

— Eles não ligam para tecnologia — diz Niklas. — Só mexem com drogas, armas e garotas.

— Tinha — corrige Sarai, e eu me viro para olhá-la. — Javier tinha uma operação muito maior. Ele está morto, lembra?

— Sim — digo —, mas isso não significa que sua operação também esteja. Significa que será transmitida a quem estava na linha de sucessão, seja quem for.

— E o que isso tem a ver com a gente? — pergunta Sarai.

Quero pedir para que ela vista uma calça para ficar na frente de Niklas, mas me controlo.

— Não existe “a gente” — diz Niklas.

Sarai o fuzila com o olhar e ajeita a toalha ensanguentada na cintura.

— Então o que tem a ver comigo? — dispara ela. — Ou com qualquer um de vocês?

— Não tem nada a ver com você — digo. — Não mais. Você era de Javier, e se ele a tivesse vendido ou prometido para outro comprador, você não teria ficado tanto tempo em posse dele. Javier não tinha nenhuma intenção de deixar mais alguém possuir você. Agora que ele está morto, você não tem mais o que temer. — Faço uma pausa. — Quanto ao que tem a ver com a gente... — Paro aí, sabendo muito bem que se eu contar mais do que ela já sabe, só vou colocá-la em maior perigo com a Ordem.

E, a julgar pela expressão de Niklas, já falei demais, na opinião dele.

Ele enfia o frasco de comprimidos no bolso do paletó.

— Vou me desfazer disso — diz ele; então, sem mexer a cabeça, eu o vejo olhar para Sarai por uma fração de segundo. Seu ódio por ela ferve por baixo da fachada calma e disciplinada que ele usa. — Então, qual é seu próximo passo? Vou acobertar você para Vonnegut ou vai virar um renegado?

Sei que resposta ele quer que eu dê, e, por enquanto, é o que decido dizer.

— Avise Vonnegut que estou pronto para minha próxima missão — digo, inventando os detalhes na hora. — E mande pôr esta casa à venda. Vamos partir amanhã de manhã.

Sarai olha para mim com uma expressão confusa. Niklas balança a cabeça e concorda, porque, ao contrário dela, sabe que esta casa foi comprometida pelo rastreador que está em seu bolso. Javier Ruiz pode estar morto, mas o dispositivo continua funcionando, e alguém está e esteve monitorando seu sinal desde que Sarai fugiu da fortaleza. Foi assim que Izel nos encontrou tão rápido naquele hotel no México. Quando entrei em contato com Javier e lhe dei minha localização para ir buscar a garota, Izel chegou meia hora antes do que deveria, considerando nossa distância da fortaleza. Na época, concluí que ela já estava na estrada com seus homens, procurando por nós, e de fato estava. Mas eu não sabia, até agora, que era porque ela já sabia onde estávamos.

Também foi por causa do dispositivo que os dois homens entraram naquela loja fingindo serem clientes e falaram com o proprietário em código. Como matei todos os homens que foram com Izel da primeira vez, presumo que Javier Ruiz quis se garantir, mandando apenas dois na segunda vez. Eles foram enviados apenas para coletar informações e nos seguir até que Javier bolasse um plano melhor.

Depois que cruzei a fronteira com Sarai, ficou mais difícil nos acompanhar. Imagino que ele tenha mandado mais homens nos seguir, possivelmente até preparar uma emboscada em algum momento, mas isso não aconteceu, e acredito que tenha sido porque já estávamos nos Estados Unidos. Para Javier, era difícil até passar pela guarda da fronteira, mesmo com a influência poderosa que tinha sobre alguns agentes americanos corruptos.

— Entrarei em contato assim que receber de Vonnegut suas novas ordens.

Niklas se aproxima de mim.

Ele abandona sua máscara de contato profissional e frio e parece mais o meu irmão, agora.

— Sinto muito pelo que nosso pai fez — digo a ele.

Niklas baixa os olhos por um momento.

— Faço qualquer coisa para proteger você, porque você é meu irmão — diz ele. — Como você fez por mim.

Temos um momento de entendimento silencioso, assentimos e nos separamos.

— Ele me odeia, como eu já disse — diz Sarai, atrás de mim. — Mas é leal a você.

Eu estava olhando pela grande janela do outro lado do cômodo, perdido em pensamentos, ouvindo as ondas baterem nas pedras.

— Sim — digo. — Ele é.

Ela se aproxima e põe a mão no meu pulso.

— Você não tinha como saber — diz ela. — Que não foi ele. Mas isso não importa agora. Acho que você desfez mais do que um mal-entendido com seu irmão.

— Talvez — digo, e me afasto. — Mas não posso me preocupar com isso agora. — Ela me segue de volta a meu quarto. — Precisamos falar de você.

Entro no banheiro e ela fica na porta, com a toalha ainda apertada na cintura.

— Venha cá — chamo.

Ela obedece sem questionar.

Ponho as mãos na cintura dela e a viro para o espelho. Instintivamente, ela apoia as mãos na borda da pia, deixando a toalha ensanguentada cair no chão. Passo os dedos pelo elástico de sua calcinha abaixo, deixando-a na metade de seu traseiro.

— Para onde você gostaria de ir? — pergunto, abrindo o armário à minha direita. — Deixo você instalada onde quiser, mas precisamos fazer isso logo. Espero receber minhas novas ordens amanhã, antes do fim do dia, e não me sobrará muito tempo, depois de levar você aonde quiser ir, até eu precisar partir.

Volto com meu kit médico e o deixo sobre a pia.

Sarai não responde de início, talvez decidindo o lugar, mas meu instinto me diz que não é bem isso.

Vejo seu reflexo no espelho, mas ela não levanta a cabeça para me olhar.

— Mas eu quero ficar com você — diz ela, com cautela. — Já falei para você, não tenho para onde ir, nenhuma identidade...

— E eu já disse a você — lembro — que tudo isso pode ser providenciado. Escolha o lugar e tomarei conta do resto. Por enquanto, você tem a carteira de habilitação que eu lhe dei.

Limpo o ferimento com água oxigenada e cubro a área ao redor com iodo. Ela mal faz careta com a dor aguda.

— Não preciso da sua ajuda para me arrumar uma vida que não quero mais — diz ela.

Enfio a agulha e começo a suturá-la. Nem mesmo essa dor, embora levemente óbvia em seu rosto, a impede de dizer o que quer dizer. Eu esperava que sim, mas sua determinação é inabalável no momento.

— Eu sonhava com isso — diz ela, com os olhos no espelho agora, mas tudo que ela vê é o sonho. — Mesmo mal me lembrando até de como o Arizona era, eu me imaginava morando naquele trailer horroroso com um namorado e vizinhos amigos. Um sonho muito inspirador, eu sei — zomba de si mesma. — Mas aquele lugar, depois de um tempo, era tudo que eu lembrava. Daria tudo para poder voltar lá e continuar a vida que foi tirada de mim. Mas por volta do terceiro ano com Javier, parei de sonhar com isso. Desisti de desejar encontrar um jeito de fugir. Pouco a pouco, com o tempo, aprendi a aceitar minha vida como era. Eu odiava tudo no início, é claro. Odiava Javier. Odiava que, mesmo sem ter me estuprado, pelo menos não do jeito que a maioria das pessoas imagina um estupro, ele sabia que no início eu não queria, que só cedi a ele porque estava com medo. E mesmo assim ele fazia sexo comigo, e digo que isso é estupro, sim. Mas eu o odiava, e odiava ter me entregado a um homem que eu não queria.

Vejo a garganta dela se movendo no espelho quando engole a lembrança dolorosa e faz uma pausa antes de continuar, tentando organizar as ideias.

— Em algum momento — continua ela —, até parei de odiá-lo. E-eu sei que parece loucura, e-e-e eu nunca o amei — gagueja ela, e sinto que há um conflito no que está dizendo. — Mas parei de odiar...

Ela me olha nos olhos pelo espelho.

— Isso quer dizer que sou doente? Quer dizer... — Ela passa a língua pelos lábios secos. Eu dou o último ponto e limpo a região novamente com álcool, desviando o olhar dela só o suficiente para me assegurar de que estou fazendo certo. — Quer dizer, porque eu parei de odiá-lo, isso quer dizer que tem alguma coisa errada comigo?

Ela quer desesperadamente que eu diga que não.

Ponho a calcinha dela no lugar sobre os pontos e vou lavar as mãos.

— Quer dizer que você é humana — respondo.

Tentando evitar seu desejo de ficar comigo, eu a deixo de pé no banheiro e não ofereço mais nenhuma opinião sobre o assunto.

Mas ela é incansável, e me segue para fora.

Continuo cuidando da minha vida, desejando algumas muito necessárias horas de sono. Tiro a camisa e a calça e apago a luz ao passar pelo interruptor, deixando o quarto mergulhado em uma penumbra azul.

— Victor — diz ela suavemente, de trás. — Por favor, me leve com você. Já falei, posso ajudar. Você pode me ensinar, me treinar para fazer qualquer coisa que você ache que eu faria bem.

— Você não quer mesmo isso, quer? — pergunto, conhecendo-a melhor do que ela conhece a si mesma. Afasto o edredom e os lençóis e deito na cama. — Você só quer que eu não a deixe. Sozinha no mundo. Livre para ser o que e quem você quiser, para tomar suas próprias decisões. Para fazer sexo com os homens que escolher. Para ter uma vida normal. Porque isso é estranho para você. — Faço uma pausa. — Se eu mandasse você matar alguém pelo bem de uma missão, você não conseguiria. Não consegue matar qualquer ser humano a sangue-frio, sem saber quais são seus crimes, seus parentes, ou mesmo por que ele está sendo morto. Você nunca chegaria a ser como eu. Treinamento nenhum faria de você uma assassina, Sarai. — Eu me deito completamente no travesseiro, puxando o lençol até a cintura. — Agora vá dormir. Vamos partir às seis da manhã, e espero que você já tenha decidido para onde quer ir, até lá.

Ela parece derrotada. Linda, suave e destruída de pé ali diante de mim, parcialmente vestida, à luz do luar que entra pela janela alta. Linda, mas derrotada. Seu olhar de alguma forma gruda em minha alma, e tudo o que quero é que ela se vire e vá embora. Porque sei que se ela não for, se me pressionar mais com esses lábios macios e esses olhos tristes e vulneráveis, vou sucumbir ao momento, e comê-la ou matá-la.

Ela se vira e vai até a porta.

Eu a detenho.

— Sarai — chamo, mas ela não se vira. — Você nunca aceitou sua vida com Javier, ou não estaria... aqui comigo agora. — Eu ia dizer: Ou não o teria matado, mas decidi que era melhor não.

Ela não responde nada e fecha a porta ao sair.

Fico deitado, olhando as nuvens espessas que cobrem o céu, e penso nas coisas que contei a ela, nas mentiras que contei a ela.

Ela conseguiria matar a sangue-frio. Todo o meu ser me diz que ela conseguiria e que faria. De certa forma, me dói acreditar nisso, saber que sua inocência foi roubada há tanto tempo, e que, embora ela ainda tenha chances razoáveis de levar uma vida normal, o fato de que escolheria viver a minha vida é difícil de engolir.

É difícil principalmente porque quase quero dar isso a ela.


CAPÍTULO VINTE E SETE

Sarai

Ouço os trovões e a chuva por uma hora, incapaz de pegar no sono. Apesar do tempo, esta casa é bastante silenciosa, bastante espaçosa e vazia. Vazia em quase todos os sentidos da palavra. Fico deitada nos lençóis limpos do quarto de hóspedes, olhando as nuvens escuras rolando no céu através daquela enorme janela. Ouço as ondas arrebentando lá embaixo e vejo o oceano sem fim em um clarão fantasmagórico quando um relâmpago corta o céu turbulento.

Vazia.

Esta casa. Minha alma. A alma de Victor. É a única palavra adequada para como me sinto, como acredito que Victor se sinta, embora ele mais ainda do que eu.

Como alguém pode passar pela vida tão clandestina e friamente, tão desconectado de qualquer um ou qualquer coisa? Quando olho em seus olhos, vejo algo ali, ainda que adormecido e completamente instintivo, mas sei que está ali. E é forte. Quero entender aquilo, senti-lo, saboreá-lo com os lábios.

Quando o trovão começa a se perder na distância, a chuva diminui para uma leve garoa. Não consigo mais ouvi-la, mas ainda a vejo escorrer pelo vidro em meandros poéticos. O frio do ar produz calafrios em minhas pernas nuas mesmo debaixo das cobertas, evocando visões de Victor deitado ao meu lado para ajudar a me esquentar.

Decido me levantar.

Eu me sinto boba e imprudente pelo que vou fazer, mas não me importo. Se ele vai se livrar de mim amanhã, que importa no que minha tentativa vai dar?

Meus pés descalços se movem silenciosamente pelo piso de madeira nobre e depois pelo meio da casa. Apoio dedos relutantes na maçaneta da porta do quarto de Victor e paro antes de empurrá-la com cuidado. A porta se abre com um estalo e eu entro. Eu o vejo do outro lado do cômodo espaçoso, deitado de costas, a cabeça virada para um lado, para mim. Seus olhos estão fechados, sua respiração, calma. O lençol cobre apenas seu tronco e suas coxas, deixando o resto de seu corpo nu exposto ao ar frio. Eu me lembro de mais cedo, quando ele estava em cima de mim, me pressionando por trás, e isso causa espasmos em minha barriga em meu quadril.

Eu me aproximo, tentando fazer o mínimo de barulho possível, mas ao mesmo tempo me perguntando para quê fazer silêncio, afinal. Ele vai acabar descobrindo que estou aqui, e, bem, a ideia é meio que essa mesmo.

Chego ao lado de sua cama e o olho por um momento, observando como seu peito musculoso sobe e desce com a respiração silenciosa. Como seus lábios estão fechados, suavemente apertados um contra o outro, o que significa que o que ele está sonhando, se é que está sonhando, é algo pacífico, intocado pela violência que encobre sua vida. Como no meu caso, os pesadelos de suas experiências há muito desapareceram, deixando apenas um senso mórbido de normalidade que os pesadelos não acham mais adequado visitar.

Tiro a camiseta e a jogo no chão.

Apoio as mãos e os joelhos na cama, engatinho nela e monto na cintura de Victor.

Em um segundo apenas, meu cabelo está enrolado em sua mão e sua arma está pressionada sob meu queixo, forçando meu pescoço tão para trás que temo quebrá-lo se me mexer.

Eu não digo uma palavra, mas não estou com medo. Não sei ao certo se ele me mataria ou não, mas não sinto medo dele, de uma forma ou de outra.

Ele afunda mais os dedos em meu couro cabeludo, e sinto o cano frio da arma descendo para o meio do meu pescoço. Mais do que isso, sinto seu membro ereto entre minhas pernas, e a presença da arma em qualquer lugar do meu corpo fica em segundo plano.

— Se você vai me abandonar — murmuro, sem conseguir ver seus olhos —, então me deixe ter esta última coisa de você.

Ele puxa minha cabeça ainda mais para trás. A arma está enfiada em minha barriga, agora.

— Nunca fiquei com um homem com quem eu quisesse ficar — digo. — Eu quero ficar com você. Só uma vez. Quero saber qual é a sensação de ser quem está no controle.

Ele está dividido, sinto isso no calor que emana de sua pele, em seus movimentos tensos e incertos. Em um momento, a arma afunda mais em meu ventre, e sinto que meu cabelo está para ser arrancado por sua mão. Mas então ele cede, afrouxando só um pouco, permitindo um pouco de alívio ao meu pescoço. Posso ver seus olhos agora, me fitando tão mortais quanto sedutores, mesmo sabendo que ele não está fazendo isso de propósito.

— Você não pode ficar aqui — diz ele, também em um murmúrio.

Sinto seus olhos em mim, percorrendo meu corpo, meus seios nus, até lá embaixo, onde minhas coxas nuas envolvem suavemente seu quadril.

— Não me importa, Victor.

Seu olhar volta para meu rosto, onde ele observa a curvatura dos meus lábios.

Então percebo mais alguma coisa lampejar em seus olhos, algo assustador, que nunca vi nele, e fico tensa em seus braços. Ele me observa em silêncio, como se eu fosse algo a ser devastado e depois finalmente... morto. Apesar do medo crescente, ainda quero estar exatamente onde estou, presa nos braços impiedosos de um assassino.

Sem me soltar, ele ergue as costas da cama, com o braço cuja mão está enrolada dolorosamente em meu cabelo, apertado contra meu ombro. Estou sentada em seu colo, minhas coxas nuas tocando seus quadris, que aquecem minha pele como imaginei. Posso sentir que ele está completamente nu por baixo do fino lençol que nos separa.

— Se quer me matar, então mate.

Seus lábios se aproximam dos meus.

— Mas, se vai fazer isso — digo, ofegante —, antes me deixe ficar com você, por favor...

Meus olhos se fecham por vontade própria. Eu espero pelo que for acontecer; morte ou sexo, ambos são bem-vindos, meu corpo rígido contra o dele, meu coração batendo tão forte que lateja em minha cabeça e na ponta dos dedos. Quando sinto seus lábios roçando os meus, eu derreto.

No entanto, quando sinto o metal frio em minha têmpora, meus olhos se abrem lentamente para olhar nos dele de novo.

— Isto não pode acontecer, Sarai — diz ele.

Aproximo meus lábios dos dele.

— Pode, sim — murmuro em sua boca, antes de cobri-la com a minha.

Minhas coxas se apertam ao redor de sua cintura e me sinto comprimindo sua ereção, tremores indo da minha pélvis até os joelhos. Levanto o corpo e puxo o lençol que está entre nós, me acomodando novamente em seu colo nu, instantaneamente sentindo a grande diferença que o lençol fazia. Eu me esfrego no pau dele, sentindo sua rigidez através do tecido da calcinha, o que me faz tremer.

Mas sinto que ele não quer isso. Ele não me repele, mas está em conflito.

— Por favor, me deixe fazer o que eu quiser com você — digo, olhando em seus olhos lindos.

Ele examina meu rosto, seus dedos tocam de leve minha face, com uma expressão de incerteza, como se esta nossa interação fosse algo completamente novo para ele. Percebo que provavelmente ele nunca esteve com uma mulher que ele não pudesse violar, ferir e dominar. E embora eu ache que também o prefira assim, neste exato momento quero ser eu a tomar todas as decisões.

Não sei ao certo por que quero isso, mas não importa.

Sinto seu corpo ceder ainda mais.

Coloco as mãos em seu peito duro como pedra e o empurro delicadamente sobre a cama, esperando que ele permita.

Ele permite. Ele se deita, deixando as mãos relaxarem em minhas coxas. Nós nos olhamos e nenhuma palavra é dita. Não é necessário. Passo o dedo pelo elástico da calcinha e tiro uma perna de cada vez, sem desviar os olhos dele.

Só senti-lo entre as pernas, pele contra pele, já é arrebatador. Eu me inclino para a frente, querendo-o todo, o calor de seu peito contra o meu, o ardor de seu hálito em meu pescoço. Tudo. Eu o beijo intensa e profundamente, sua língua encontrando a minha em uma dança de dominação, seus dedos apertando minha nuca até que ele passa a mão por todo o meu corpo, rumo ao meu quadril. Ele o aperta, pressionando seu quadril contra o meu. Ele quer tanto o controle, mas eu aviso que é meu, empurrando meu quadril contra ele e mantendo-o ali.

Quando ele me devolve o controle, beijo de leve seus lábios e os dois lados de seu maxilar.

Ele observa meu rosto, olhando rapidamente para meus lábios, querendo saboreá-los.

E então eu começo a chorar.

Sempre choro quando estou com raiva.

Estou me tornando outra pessoa, aquela garota perdida aos 14 anos, obrigada a levar uma vida de escravidão, dor e sonhos despedaçados. Imagens do rosto de Javier cruzam aleatoriamente minha cabeça. Sinto que estou em um carrossel e que está girando tão rápido que todos os rostos de Javier vêm e vão antes que eu consiga alcançá-los e pegar um. Não consigo pôr as mãos em apenas um, para poder espancá-lo até a morte. E apenas choro mais alto, gritando na noite, e antes que me dê conta do que estou fazendo, Victor se tornou o rosto de Javier que não consigo alcançar de outra forma. Lanço os punhos contra ele, esmurrando-o sem parar no peito e nos braços, e ele não me impede. Porque sei que só ele é capaz de entender por que preciso deste momento tão desesperadamente.

Grito para a noite, deixo tudo sair. Lágrimas chovem de meus olhos.

Eu desabo nele, e ele me envolve em seus braços. Não consigo respirar enquanto soluço em seu pescoço.


CAPÍTULO VINTE E OITO

Victor

Linda, mas derrotada e destruída. Destruída para o resto da vida, e nenhuma dose de mutilação emocional vai lhe devolver totalmente a inocência. A garota é uma bomba-relógio, um perigo para si mesma e muito possivelmente para os outros. Eu não tinha certeza antes, mas agora sei que ela é mais instável do que poderia imaginar. E, por ser tão habilidosa em esconder isso, não só de mim mas também de si mesma, é mais perigosa do que eu. Sou disciplina. Sarai é raiva. Tenho consciência de minhas escolhas em todos os momentos. As escolhas de Sarai têm mais consciência dela e ficam escondidas, esperando para decidir por ela, de acordo com a severidade de seu humor, sem nenhuma intenção de lhe deixar qualquer controle consciente sobre a escolha.

Eu sei o que preciso fazer.

Seguro sua nuca com uma das mãos, com a arma apoiada na cama, ao meu lado, na outra. Sinto suas lágrimas molhando meu ombro, seu corpo agitado por soluços que se fundem a meus músculos. E sua intimidade ainda aperta meu pau cada vez que seu corpo se contrai. Mas eu deixo, apesar da necessidade moral de me afastar.

— Sarai — murmuro perto de sua cabeça —, sinto muito.

Levanto a arma lentamente atrás dela.

Ela inclina a cabeça, encosta o rosto em meu peito e eu paro, esperando, embora não saiba o quê. Seus soluços começam a se acalmar, sua mão esquerda encolhida perto do queixo, onde as pontas de seus dedos pousam levemente na base do meu pescoço.

— Eu tenho uma tia na França — diz ela, baixinho, distante. — A irmã mais velha da minha mãe. Sei que a França é bem longe, mas você não precisa me levar lá, só me ajude a embarcar no avião.

Levanto a arma mais um pouco, apontando o cano para sua nuca, mas sem tocá-la. Não quero que ela sinta medo antes de morrer, e, embora eu saiba que ela não tem medo de nada, a morte é algo que todos tememos na hora final, mesmo que apenas uma pequena parte de nós tenha consciência disso. Não quero que ela tema a morte nem um pouco, e ela não vai temer se não souber que está acontecendo.

— Com que idade você se tornou o que é? — pergunta ela.

Pego desprevenido pela pergunta, e talvez mais ainda pela mudança de clima, eu hesito antes de responder:

— Com 9 anos.

Ela funga e enxuga os olhos com a mão mais próxima da bochecha.

— Você era muito novo — continua ela. — Acho que, de certa forma, assim como eu, você nunca teve chance de levar uma vida que escolhesse. Acho que talvez a gente não seja tão diferente, na verdade. — Ela faz uma pausa. — Embora talvez eu seja mais parecida com seu irmão do que gosto de admitir. Ele tem tanta raiva quanto eu.

Tiro o dedo do gatilho e lentamente, para que ela não perceba, afasto o cano de sua nuca.

— Deve ter sido difícil crescer com Niklas — diz ela.

Deixo a arma na cama ao meu lado e, antes de perceber o que estou fazendo, acaricio sua nuca de novo.

— Sim, foi — respondo. — Considerando as circunstâncias pouco convencionais.

— Em vez de quem é o melhor jogador de beisebol, era qual dos dois era o melhor assassino.

— Não — digo. — Niklas nunca tentou ser melhor do que eu, ele só queria ser igual. Nunca competimos um contra o outro, mas ele compete com todos que já se aproximaram de mim desde que se conhece por gente.

— Todos que se aproximaram de você? — pergunta ela.

Faço que sim com a cabeça e passo delicadamente os dedos por seu cabelo.

— Vonnegut, Samantha, minha mãe, nosso pai — digo, distante, enquanto relembro esses acontecimentos, olhando para o teto escalonado. — E agora, você.

Eu a ouço suspirar, mas ela não levanta a cabeça.

— Como vê, você tem algo que eu não tenho — diz ela cuidadosamente, embora eu tenha a impressão de que está falando mais consigo mesma. — Tem alguém que ama você, que é leal e que é capaz de matar por você. — Ela ergue o corpo de cima do meu e se levanta da cama. Então olha para baixo, para mim. — Você tem muita sorte de ter alguém como ele, Victor.

Ela pega a calcinha do pé da cama e a veste. Depois pega a camiseta do chão e a enfia por cima do cabelo longo e desgrenhado e dos seios.

— Eu sou grata — diz ela, olhando para trás — por tudo o que você fez por mim. Acho que no fim nada disso vai importar, na verdade, salvar ou não minha vida. Mas sempre vou ser grata a você.

Sarai deixa o quarto, mas de certa forma ela me leva junto.

Por algum tempo, não sei quanto, fico olhando para o teto, lembrando como ela estava antes de sair, como me usou para se vingar de Javier. Sei que ela não entrou no meu quarto para isso, a princípio. Ela queria estar comigo. Queria sentir algo que jamais sentiu, mas raiva e vingança não faziam parte de seu plano. Autodestruição não fazia parte de seu plano, e, apesar de usar esse momento para liberar uma parte do ódio dentro dela, sinto que só serviu para fazê-la perceber o quanto realmente está perturbada.

O som soturno e melodioso do piano se espalha suavemente pela casa, me tirando do meu transe. A sonata para três vezes e recomeça do início, como se ela estivesse tentando lembrar todas as notas. Na quarta tentativa, seus dedos se movem com mais confiança pelas teclas, fluentes, cuidadosos e perfeitos. E logo me vejo de pé ao lado da cama, vestindo a cueca. A sonata continua, tão elegante, linda e angustiante que me atrai para fora do quarto e não consigo resistir. Vou para o corredor a passos silenciosos, seguindo o som. A música fica mais alta, Sonata ao Luar na interpretação mais sofrida que já ouvi, preenchendo o enorme espaço vazio ao meu redor.

Fico em silêncio e imóvel na entrada em arco que dá para a sala do piano. E olho para ela como nunca olhei antes. Ela me possui, neste momento.

Fecho os olhos e deixo a música correr pelo meu corpo; calafrios se espalham pela pele como ondulações suaves na superfície da água.

Mas sou acordado desse encanto rápido demais.

A música para quando Sarai se atrapalha com as teclas. Embora decepcionado por ela ter parado tão abruptamente, fico onde estou, torcendo para que continue de onde parou e termine a sonata. Sua figura delicada parece vulnerável, frágil no luar fraco que a envolve vindo da janela, formando um halo ao redor de seu corpo, iluminando as pontas de seu cabelo.

Por favor, toque, Sarai. Não pense na música, apenas toque.

Ela recomeça de onde parou, mas depois de algumas notas, desiste. Frustrada consigo mesma, se curva para a frente, as mãos tocando de leve a testa.

Eu me sento ao lado dela na banqueta.

— Eu ensino — digo, pondo os dedos nas teclas. — Se é isso que você quer.

Ela vira a cabeça para me olhar, e, quando faz isso, sei que está se perguntando se só estou me referindo à música.

Ela assente devagar.

Começo do início e toco a sonata até o ponto em que ela parou. E então ela tenta de novo. E de novo, até que minha orientação a ajuda a retomar o controle das teclas, como quando me atraiu para esta sala. A música me assombra, cada segundo melancólico dela, tanto que meus olhos fechados se enchem de lágrimas, mas só meu coração consegue derramá-las.

A sonata segue até o final desta vez, e o silêncio preenche o espaço ao nosso redor.

— Não quero dormir sozinha — diz ela, baixinho.

E não a obrigo a isso. Sarai adormece aninhada a meu lado, em minha cama. Bem onde quero que ela fique.


CAPÍTULO VINTE E NOVE

Sarai

Quando acordo na manhã seguinte, o sol brilha através da enorme janela, mesmo com as cortinas fechadas. Estou sozinha na cama, mas sei que não estou sozinha na casa. Foram os passos de Victor no piso fora do quarto, com seus sapatos elegantes, que me acordaram. Meu coração está exausto, mas minha mente e meu corpo parecem renovados. Não consigo lembrar quando foi a última vez que dormi tão profundamente.

Acho que nunca.

Eu me levanto do colchão, me desvencilhando do lençol. Não consigo acreditar no que fiz ontem à noite, mas fiz e acabou, e posso encarar Victor e não sentir vergonha ou então posso me esconder dentro deste quarto pelo resto da vida.

Escolho a alternativa mais realista.

Quando saio do quarto, me pergunto por que não acordamos antes de amanhecer e partimos, como ele planejou.

Ele está sentado sozinho na sala de estar quando paro à porta, completamente vestido com seu melhor terno e as costumeiras bolsas no chão a seus pés, menos a que contém o dinheiro. Há um jornal em sua mão e uma caneca de café puro na mesa perto da poltrona.

— Por que a gente não saiu cedo? — pergunto, entrando na sala.

Ele baixa o jornal e então decide dobrá-lo e deixá-lo na mesa, perto do café.

— Achei que você precisava dormir.

Fico constrangida, fracassando em minha tentativa de não sentir vergonha de minha aventura sexual, mas na verdade duvido que sua resposta tenha qualquer coisa a ver com isso.

— Obrigada — digo.

Olho para ele de novo.

— Pelo jeito, você vai ter que me comprar mais um par de sapatos — comento, apertando os dedos dos pés nus contra o chão frio e duro, com as mãos atrás das costas.

Os sapatos que ele me comprou ficaram na casa de Samantha quando tivemos que sair de lá às pressas. Não tenho tido muita sorte com sapatos ultimamente.

— Isso já foi providenciado — diz ele, cruzando as pernas e alisando o colete.

Olho ao redor, procurando sacolas de lojas de departamentos ou talvez roupas femininas que tenham sido deixadas ali por qualquer motivo.

Uma mulher baixinha, de meia-idade, usando uniforme azul-marinho entra pela porta da frente, carregando uma bolsa espalhafatosa em um braço e várias sacolas gigantes no outro. Um molho de chaves tilinta em sua mão depois que ela fecha a porta com o quadril. Ela consegue jogar as chaves na bolsa, girando o pulso desajeitadamente para alcançá-la.

— Ah, você deve ser Izabel — diz a mulher, com os olhos brilhando. — Eu sou Ophelia. Prazer.

Faço um cumprimento de cabeça e me apresento, embora ela aparentemente já saiba meu nome; bem, o nome que Victor me deu, pelo menos.

Ela deixa a bolsa cair no chão e anda pelo espaço amplo da sala de estar, na minha direção, com as sacolas ainda penduradas no braço, parecendo cortar sua circulação.

— Você acertou o tamanho — diz ela, olhando para Victor, e ela deixa as sacolas no sofá impecavelmente limpo. — E eu tenho uma filha do seu tamanho — diz ela, olhando para mim, agora —, então espero ter escolhido bem. Meleena deu trabalho quando era mais nova, pode ter certeza. — Ela gesticula dramaticamente com as mãos. Seus dedos são cheios de anéis. — Claro que foi culpa minha, por criá-la usando Versace e Valentino, mas ela é a garota mais invejada quando entra em qualquer ambiente, então acho que o sofrimento que ela causou em mim e na minha conta bancária valeram a pena. Venha, me deixe ver você. — Tento disfarçar a expressão constrangida que sei que está no meu rosto enquanto ela puxa um lindo vestidinho floral de uma sacola e o encosta em mim.

Decido olhar para Victor em vez disso, esperando que ele me diga exatamente quem é a mulher e o que ela está fazendo ali.

Seus olhos sorriem para mim.

Não consigo acreditar. Ele sorriu para mim?

— Serve perfeitamente — diz Ophelia.

Mas então ela deixa o vestido de lado e começa a tirar outras peças de roupa da mesma sacola. A seguinte está cheia de caixas de presentes, e ela abre cada uma e desembrulha um vestido enrolado em papel de seda extravagante e tule, que provavelmente custou mais do que vale. Enquanto segue tagarelando sobre sua filha mimada porém “merecedora”, ela inspeciona cada um dos vestidos, encostando-os em mim como que para imaginar como vou ficar neles. Ou talvez imaginando como “Meleena” ficaria neles.

Essa mulher é bem esquisita.

— Claro que, depois que o pai dela foi embora, precisei arrumar um emprego. — Ophelia balança a cabeça e me olha como se o fato de ela ter um emprego fosse a coisa mais lamentável que já aconteceu. — Então, para sustentar Meleena e seu gosto tão caro, entrei para o ramo. Olhe, experimente este. Hoje o dia está bonito, então você deve usar alguma coisa combinando.

— Que ramo, exatamente? — pergunto.

Eu me viro de costas para eles e tiro a camiseta. Mal olho para o vestido que Ophelia me passa, mais curiosa a respeito dela, na verdade.

Victor bebe seu café e finge ler o jornal. Ou talvez não esteja fingindo. Metade do tempo eu não tenho certeza, com ele.

— Da faxina — responde ela.

Fico um pouco confusa, e ela percebe, tenho certeza.

— Você consegue... comprar Versace e Valentino com salário de faxineira? — pergunto, incrédula. — Sem querer ofender.

— Não ofendeu — diz ela, enfiando o vestido pela minha cabeça. — Mas consigo, sim. Só trabalho para quem pode me pagar. Celebridades, músicos; sabe, gente que tem tanto dinheiro que não sabe o que fazer com ele. Gente rica contrata alguém para fazer as coisas mais sem importância, só porque pode. Eu lucro com a tolice deles. — Ela olha para Victor. — Sem querer ofender.

— Não ofendeu — diz ele, tomando mais um gole de café.

— Ah, entendi — digo enquanto o tecido fresco e fino desliza pela minha pele.

Eu me viro depois de me vestir.

— Sim, acho que este ficou perfeito — diz ela, pondo as mãos na cintura e me olhando de alto a baixo. — Mas você deveria usar um sutiã sem alças, pelo menos.

Ophelia mexe em outra sacola enquanto lança um olhar para Victor.

— Pelo jeito, você acertou o número do sutiã dela também — diz ela, e sinto meu rosto corando de novo.

Acho que ele deve ter uma boa ideia do tamanho, considerando tudo.

— As roupas de baixo foram as únicas que eu tive que parar e comprar enquanto vinha para cá. O resto, roubei do quarto da minha filha. Tem uma bolsa e mais algumas coisas básicas aí também. — Ela põe o sutiã na minha mão. — Aposto que com as roupas que ela tem naquele quarto e nunca usou já dá para comprar um Bentley.

Visto o sutiã sem alça que Ophelia me deu, depois de arrancar a etiqueta, e ela me ajuda a fechá-lo nas costas, já que tenho dificuldade para fazer isso sozinha. Depois ela fecha o zíper atrás do vestido rendado floral rosa-claro e eu tento me ver nele. É bem curtinho, alguns centímetros acima dos joelhos. E pinica na gola, que é alta. Não estou acostumada a usar coisas assim, ao menos não em todo lugar, exceto por algumas horas em alguma festa, onde eu só precisava ficar quietinha e bonita. Com Victor, pareço passar mais tempo fugindo para salvar minha vida do que ficando quietinha.

A seguir vêm os sapatos.

— E-eu acho que qualquer coisa de salto não é boa ideia — protesto delicadamente quando ela abre a primeira caixa.

De jeito nenhum vou usar esses. São lindos, sim, mas nem morta.

Ophelia olha para Victor de novo. Ele assente para ela, como se dissesse que está tudo bem.

Ela fecha a caixa, decepcionada, e abre outra.

— Não é o que eu escolheria para usar especificamente com esse vestido — diz ela —, mas pelo menos combina.

Ela deixa as sandálias de tiras cor creme no chão, diante de mim, e eu as calço. O sutiã é desconfortável — acho que qualquer sutiã incomodaria, depois de tanto tempo sem usar —, me apertando debaixo dos braços. Tento resistir ao impulso de ajeitá-lo, mas perco a batalha depois de seis segundos. Sei que não devo parecer muito uma dama no momento, puxando o elástico apertado com os braços para cima e fazendo caretas de desconforto. Quando acho que consegui ajeitá-lo, relaxo os braços novamente e fico parada ali, constrangida.

— Você está bonita — diz Victor da poltrona, com o jornal apoiado nas pernas.

Você também...

— Obrigada — digo, e desvio o olhar.

Nunca senti tanto medo de olhar nos olhos dele. A humilhação é mais forte do que eu pensava. Quanto mais ele me olha, mais paranoica fico sobre o que está passando pela sua cabeça agora. Não sei o que deu em mim ontem à noite. Entrei no quarto dele com paixão e desejo nos olhos, mas em algum momento, que acho impossível determinar, me transformei em uma masoquista psicótica.

Mas ele deixou. E não sei ao certo o que pensar disso. Sei que ele não sentiu nenhum prazer com isso, nem eu esperaria que sentisse, mas, de nós dois, só eu pareço estar constrangida com o fato.

Victor se levanta da poltrona e deixa o jornal na mesa. Ele enfia a mão no bolso direito e tira um rolo de notas.

— Pelas roupas da sua filha — diz ele, pondo o dinheiro na mão de Ophelia. — E aí tem o suficiente para pagar pelo seu tempo também.

Ela enfia o rolo no bolso.

— Então acho que é isso — diz Ophelia. — Se decidir se mudar de novo para estes lados, sabe como me encontrar. Meu preço vai continuar o mesmo para você.

Victor assente.

— Pode deixar — diz.

Ophelia se vira para mim com um grande sorriso nos lábios fechados.

— Mantenha esse cara na linha — diz ela. — E experimente usar salto. Você vai ficar sensacional.

Retribuo o sorriso.

— Vou pensar.

Ela me dá um tapinha no braço ao passar, pegando sua bolsa do chão a caminho da porta.

Muito tempo depois que Ophelia vai embora, continuo olhando para a porta. Não estou pensando nela, mas não tenho coragem de olhar para Victor.

Ele anda até parar na minha frente e segura meus cotovelos. Meus braços estão levemente cruzados na barriga.

— Sarai — diz ele.

Ergo os olhos para encará-lo, e antes que ele possa dizer o que planeja, desato a falar, baixinho:

— Olhe, desculpe por... Victor, eu não estou maluca, nem... bom, me desculpe mesmo.

— Não precisa se desculpar — diz ele.

Eu apenas olho para ele.

— Você toca maravilhosamente bem — continua ele. — Já pensou em tocar como profissional?

Muitos longos segundos se passam antes que eu consiga responder.

— Já considerei subir em um palco em algum lugar — digo, e ele solta meus cotovelos. — Mas não tenho mais nenhum interesse por esse tipo de coisa. Só quero tocar para mim mesma.

Para evitar encontrar o olhar dele de novo, vou até o sofá e começo a organizar as roupas em uma pilha caprichada sobre a almofada.

De costas para ele, continuo:

— Nem imagino o que vou fazer quando chegar à casa da minha tia, mas vou pensar. Vou estudar alguma coisa, e depois, talvez eu comece a... — Não consigo terminar porque não sei o que dizer. Fujo do assunto, mexendo ansiosamente no tecido em minhas mãos: — Pelo menos vou estar bonita quando encontrar com ela. Talvez ela me aceite, agora que estou usando roupas que não vieram da liquidação de alguma loja barata.

— Pode me prometer uma coisa? — pergunta Victor.

Eu me viro para olhá-lo.

— Acho que lhe devo essa — digo. — O quê?

— Que vai tocar para mim de vez em quando, só isso.

— Como assim?

Ele se curva sobre uma estante e pega outra maleta. Então se aproxima de mim e a deixa no sofá, abrindo os dois fechos laterais.

Quando ele a abre, está vazia. Ele aponta rapidamente para minha pilha de roupas.

— Nosso avião parte daqui a uma hora — diz ele. — Daqui em diante, a menos que eu dê ordens contrárias, você é Izabel Seyfried e é muito segura de si. É voluntariosa, tem língua afiada, mas deixa sempre que só eu fale, a não ser quando sente a necessidade de dar sua opinião, seja qual for o assunto, mesmo quando ninguém pedir. Você não tem medo de nada, mas emana um ar de vulnerabilidade que você secretamente sabe, é claro, que motivaria um homem poderoso a querer descobrir como seria domá-la. Você é rica, embora ninguém precise saber de onde vem o seu dinheiro, apenas que tem o suficiente para limpar o rabo com notas de 100 toda vez que caga. E o único homem em qualquer ambiente que pode amansar você sou eu, e é quase certo que precisaremos demonstrar isto ao menos uma vez durante esta missão. Portanto, mantenha isto em mente: seja o que for que eu fizer com você, entre no jogo. E seja o que for que eu mandar você fazer, faça sem questionar, pois pode significar a diferença entre a vida e a morte. Entendeu?

Olho para ele sem expressão.

— Você vai me levar com você? — Há umas cinquenta perguntas rodopiando em minha cabeça, mas essa é a única que consigo pinçar do turbilhão.

Ele se aproxima de mim.

— Sim — responde ele. — Vou levar você comigo em uma missão porque quero que você veja como é. Precisa entender que a vida que levo não é para você. — Ele pega minhas mãos e se senta comigo no sofá, empurrando a maleta para o lado. — Espero que isso a ajude a aceitar melhor uma vida normal; com uma faculdade, um emprego, amigos e namorados.

Ele aperta minhas mãos mais firmemente e eu começo a olhar para além dele, pensando no que ele disse, em seus motivos para fazer isso. Por um momento me pergunto quem, de nós dois, ele está tentando convencer.

— Sarai, escute com atenção — diz ele. — Se escolher ir comigo, saiba que pode morrer. Vou fazer todo o possível para manter você a salvo, mas isso não é uma garantia. Por mais que você confie em mim, nunca, sob qualquer circunstância, deve confiar totalmente em alguém. No final, você só pode confiar em si mesma. Eu não sou seu herói. Não sou sua alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim lhe aconteça. Sempre confie em seus instintos primeiro e em mim, se decidir confiar, por último.

Faço que sim, apreensiva.

— Então, o que vai ser? — pergunta ele. — França ou Los Angeles?

Não preciso pensar a respeito, na verdade, porque sei o que quero, mas finjo pensar, para parecer menos irracional.

— Los Angeles — digo, soltando o ar dos pulmões.

Victor me olha nos olhos por um momento. Há um ar de contemplação e até um pouco de hesitação em seu semblante.

Ele se levanta e alisa o terno.

— Então faça suas malas — diz ele ao se afastar. — Vamos partir em dez minutos.


CAPÍTULO TRINTA

Victor

Torci para que ela escolhesse a França, mas sabia que escolheria ir comigo. Mesmo assim, eu poderia muito bem levá-la para a França e deixá-la com tudo de que ela precisa, e minha consciência ficaria tranquila. Mas já deixei de pensar racionalmente há muito tempo quando o assunto é Sarai. Ela pode muito bem morrer em Los Angeles, mas eu lhe dei uma escolha. Praticamente soletrei as potenciais consequências de sua decisão. Não lhe contei tudo, não exatamente, mas há um método em minha loucura. Não posso lhe dar tempo para pensar em suas alternativas, porque neste ramo às vezes uma decisão de vida ou morte tem que ser tomada quando você menos espera. E esse é o tipo de situação que ela precisa experimentar.

Talvez parte de mim torça para que ela não sobreviva à missão, porque então ficarei livre das minhas... limitações com relação a ela. Mas outra parte, a parte com a qual ainda estou lutando, que a trouxe comigo até tão longe...

Essa é outra história.

Se ela sobreviver, vou precisar encarar isso.

Se ela morrer... se ela morrer, vou voltar à minha vida normal e nunca mais me verei em uma situação como esta.

— O nome dele é Arthur Hamburg — digo, deixando um envelope de papel pardo no colo de Sarai, sentada ao meu lado no jato particular. — Ele é dono da Hamburg & Sthilz, a corretora de imóveis mais bem-sucedida da Costa Oeste. Mas seu negócio mais lucrativo é mais escuso.

Atraída pelo meu silêncio, ela ergue os olhos da foto que tirou do envelope.

— Qual é o outro negócio dele? — pergunta ela, como eu sabia que faria.

— Não importa — digo. — A informação que eu decido dar é tudo de que você precisa.

Ela inclina a cabeça.

— Mas você sabe mais — acusa.

— Sim, sei — admito. — Mas, como sou seu empregador, você nunca me faz perguntas de natureza pessoal sobre nenhum alvo, a menos que não tenha certeza de como vai eliminá-lo. Como ele ganha a vida, quem é a esposa, os filhos, caso ele tenha, seus crimes, se cometeu algum, nada disso importa. Quanto menos você souber sobre a vida pessoal dele, menor o risco de se envolver emocionalmente. Eu lhe dou uma foto, descrevo seus itinerários e hábitos, indico a maneira que prefiro que o assassinato seja feito: espalhafatoso e em público para dar um recado ou discreto e acidental para evitar uma investigação, e você cuida do resto.

Ela pensa a respeito um momento, com a foto de Arthur Hamburg entre os dedos.

— Espere — diz ela —, então você está dizendo que não mata só gente má. Você também mata gente inocente?

Um sorrisinho que, admito, não condiz comigo ergue os cantos da minha boca.

— Ninguém é inocente, Sarai — repito o que ela me disse uma vez. — As crianças, sim, mas todo o resto é tão inocente quanto você ou eu. Pense da seguinte maneira, se vai fazer você se sentir melhor: para que alguém o tenha mandado matar, você deve ter feito algo ou ter se envolvido em algo ilegal ou “mau”, como você diz.

— Pensei que você tivesse dito que eu era inocente — ela me lembra. — E que por isso não me matou.

— Você era — respondo. — E eu não tinha ordens do meu empregador para matar você. A oferta de Javier foi considerada um serviço particular, não passou antes pelo meu empregador. São os serviços particulares que levam a matar gente inocente. Esposas querendo que a morte do marido pareça acidental para receberem uma herança. Amantes desprezados pagam agentes particulares para matar a namorada por ciúme ou vingança. Eu não aceito serviços assim, e meu empregador nunca me passou nenhum. Minha Ordem lida só com crime, corrupção do governo e várias outras coisas que fazem com que as pessoas más sejam más. E às vezes eliminamos pessoas que podem ser consideradas inocentes, mas que são uma ameaça para um grande número de pessoas inocentes ou para uma ideia.

Suas sobrancelhas se franzem um pouco enquanto ela espera que eu continue a explicação.

— Você teria matado Robert Oppenheimer se soubesse que ele iria encabeçar a invenção da bomba atômica? Ou eliminaria uma cientista antes que ela completasse o trabalho de uma vida inteira para criar um vírus mortal em laboratório, projetado apenas para ser usado contra um país inimigo em uma guerra?

— Sim, acho que sim — diz ela. — Mas uma coisa assim é como brincar de Deus com a vida das pessoas. Você está condenando alguém por um crime antes que ele seja cometido.

Eu não respondo, porque é exatamente isso.

— Então, se todos merecem morrer — continua ela —, que importa o que sei sobre a vida particular deles? Que importa o que sei sobre este Arthur Hamburg? — Ela olha para a foto.

— Porque para alguns, os meios não justificam o fim.

— Quer dizer que eu poderia me sentir culpada por alguém que não cometeu um crime passível de sentença de morte?

— Exatamente — digo. — E não é você quem deve decidir isso.

— E o que o faz pensar que eu seria tão mole assim? — pergunta ela, com o olhar cheio de determinação e curiosidade.

— Eu não penso — respondo. — Não sei ao certo. Mas para alguém que não foi criado assim, que não está matando gente desde os 13 anos, seria muito difícil se acostumar com isso.

Sarai olha para a foto mais uma vez, depois de novo para mim.

— Você faz isso há tanto tempo assim? — pergunta ela, com compaixão. — Não consigo imaginar...

— Suportei vários anos de treinamento quando garoto, antes de ser enviado em uma missão com meu mentor. Naquela idade, é fácil ser moldado de qualquer jeito que eles queiram. Meu primeiro assassinato foi limpo. E eu dormi bem naquela noite.

Ela desvia o olhar, fitando o nada, perdida em pensamentos.

Quando penso que vai começar a questionar toda a missão, ela me surpreende:

— Tudo bem, e o que é que eu tenho que fazer?

Tiro a fotografia das mãos dela.

— Encomendaram um serviço limpo — começo. — Mas Arthur Hamburg raramente fica sozinho em casa. Ele dá festas extravagantes três ou quatro noites por semana, só para as pessoas mais ricas, e sempre apenas para convidados. A segurança de sua propriedade é de primeira. Hamburg escolheu a dedo cada um dos homens. Não são guardas inexperientes, contratados levianamente. Não vai ser como nos filmes, chegar à propriedade sem ser visto e derrubar todos os homens antes que eles deem um só tiro. Nesse caso não funciona assim.

Seu rosto ficou alerta e ansioso nos últimos segundos.

— Então como você vai entrar?

— Vamos entrar como convidados — respondo. — Hamburg tem uma fraqueza, como todos os homens, e você e eu vamos usá-la em nosso favor.

Agora ela parece um pouco nervosa.

— Qual é a fraqueza dele?

— Sexo, é claro — digo, como se ela já devesse saber a resposta. E eu sabia que ela sabia.

Ela se encolhe um pouco sob aquela pele macia.

— Você está querendo chegar com isso aonde eu imagino?

— Provavelmente não — digo —, mas vai ser desagradável mesmo assim.


Sarai

Meu estômago dá um nó. Victor guarda a foto do velho dentro do envelope. E não consigo tirar da cabeça imagens nojentas dele deitado nu em cima de mim, as dobras e camadas de seu óbvio problema de excesso de peso me sufocando como geleia demais em um sanduíche. Estremeço. Certamente Victor não espera que eu durma com esse cara, nem pelo bem de uma missão. Não sou uma prostituta, de jeito nenhum, e não vou virar uma. Nem por isso. Posso ter dormido com Javier toda noite durante anos, mesmo sem querer, mas era diferente. Aquele era meu jeito de sobreviver. E Javier, se é que posso dizer isso, era atraente, apesar de seus defeitos imperdoáveis.

Isto com certeza é diferente...

Não consigo olhar para Victor agora, não por estar brava com ele, embora devesse estar, mas porque... porra, ainda quero a missão. Deve haver algo mais, algo que diferencia o que as putas fazem do que ele espera que eu faça.

Ele não vai permitir que chegue a esse ponto. É no que resolvo acreditar. Sim, é isso. Tem que ser.

Um pouco de turbulência agita o avião e me tira de meus pensamentos. Estou agarrando os braços do assento quando me viro para olhar Victor de novo.

— Qual é o plano, então? É óbvio que você me trouxe porque, por ser uma garota, me encaixo perfeitamente nele.

Ele assente.

— Sim, ser mulher tem suas vantagens em casos como este. Mas lembre-se das coisas que já falei: você é submissa a mim, mas de vez em quando sua língua lhe causa problemas. Você é uma dondoquinha rica e metida a besta, e, acima de tudo, não tem medo de nada.

Rio sarcasticamente.

— Bem, de acordo com você, essa parte do medo eu já domino.

— Sim — diz ele, mantendo sua expressão séria —, mas talvez mude de ideia quando estiver lá, cercada de ameaças. Você precisa ter certeza de que nada vai perturbar o controle que tem sobre seu medo. Hamburg vai se desinteressar de você assim que perceber isso. Medo, para ele, é fraqueza, e ele gosta de jovens fortes e destemidas. E de homens mais fortes ainda.

Sinto meu rosto fazer uma careta de nojo e leve choque, mas não pergunto o óbvio. Tento apenas absorver tudo aquilo, o que vamos fazer exatamente e como vamos fazer. Porque todas as minhas teorias anteriores acabam de voar pela janela.

Victor disse que o que eu imaginava provavelmente não vai acontecer, mas só estou um pouquinho aliviada pela verdade disso. E vai continuar sendo só um pouquinho, porque ele também disse que vai ser desagradável mesmo assim.


CAPÍTULO TRINTA E UM

Sarai

Chegamos a Los Angeles pouco depois das seis da tarde. Ficamos no hotel mais extravagante que a cidade tem para oferecer e Victor encarna seu personagem antes mesmo de chegarmos a nosso quarto, no último andar, com vista para toda a cidade. Ele exige, com o queixo erguido e uma expressão dominadora, que fiquemos na melhor suíte, nada menos. E a recepcionista, encantada com os olhos brilhantes dele, cancela a reserva que um hóspede fez para esta noite e dá a Victor as chaves da suíte. Ele é tão bom em fingir ser outra pessoa que quase me faz acreditar que é um canalha ricaço que não dá a mínima para quem está abaixo dele, ou seja, todos. No entanto, faz isso com tamanha graça e compostura que sua atitude de rico arrogante não induz ninguém a detestá-lo, mas a respeitá-lo instantaneamente.

Estou começando a duvidar mesmo da minha capacidade de interpretar, comparada à dele. Fiz isso por nove anos com Javier. Minha vida toda era um teatro, e gosto de pensar que tenho experiência suficiente, mas Victor me intimida.

Endireito as costas e ando ao lado dele em meu Valentino e minhas sandálias rasteirinhas com a cabeça erguida. Eu sou forte, rica, poderosa e ninguém pode me atingir.

Ao menos espero que seja isso que eu esteja transmitindo.

— Começa hoje — avisa Victor, deixando as malas no pé da cama e pendurando uma capa de terno preta com zíper em um gancho na parede. — Se tudo correr conforme o planejado, amanhã à noite acaba. Você vai precisar usar maquiagem e prender o cabelo. Precisa ter a aparência da sua personagem, além de interpretá-la. Ah, e use salto alto. — Abrindo os fechos de sua maleta de armas, ele pega uma e começa a rosquear um silenciador no cano.

— Qual é o plano, então? — pergunto, ignorando a necessidade de reclamar dos sapatos que ele quer que eu use, com os quais nem sei se consigo andar.

— Mais tarde vamos ao restaurante dele — começa Victor, ainda examinando a arma. — Antes que possamos entrar na mansão, vamos precisar de um convite, e é no restaurante que vamos conseguir. Vou fazer meu papel e você vai contracenar comigo como Izabel, não como Sarai. Lembre-se disso sempre que estiver em público, mesmo quando achar que ninguém está olhando. — Ele olha para mim e volta a inspecionar a arma. — Hamburg fica no restaurante toda sexta, infalivelmente. Mas não vamos vê-lo. Ele fica escondido em uma sala particular com outros dois homens: seu assistente e o gerente do restaurante. Mas Hamburg está sempre observando o que acontece no local. E está sempre avaliando os clientes. Podemos não vê-lo, mas é certo que ele nos verá.

— Avaliando?

Victor deixa a arma na cama e fecha a maleta.

— Sim. Estará procurando um casal. Precisamos impressioná-lo.

Isso está me deixando cada vez mais preocupada.

— Bem, com certeza vai ter muitos casais em um restaurante em Los Angeles. — Eu quis soar sarcástica, mas ele não se abala.

— Claro que sim — diz ele. — Mas, ao contrário de todos no restaurante, sei exatamente o que ele está procurando.

Ele aponta para minha mala.

— Agora se arrume. Vamos sair em meia hora.

Pego o kit de maquiagem que Ophelia me deu junto com todas as roupas e o levo para o banheiro. Estou um tanto empolgada por usá-lo. Nunca tive um luxo desses enquanto vivia com Javier, a não ser quando ele me levava para as festas e coisas assim. E eu sempre demorava para me maquiar, porque queria que ficasse perfeito. Queria saborear meu único momento sozinha, quando me sentia uma adolescente normal, de pé diante do espelho, me arrumando antes de mais um dia de aula. Eu sempre fingia que estava me arrumando para isso, e fiquei boa em acreditar. Isso até Izel invadir o quarto sem ser convidada e me arrastar pelo braço porque eu estava demorando demais.

Mas desta vez não finjo que vou a algum lugar aonde preferiria ir. Estou concentrada, determinada e, naturalmente, nervosa. Passo a maquiagem em tempo recorde e escovo o cabelo até que ele pareça uma seda lisa e macia caindo pelas minhas costas, depois passo mais tempo do que gostaria tentando prendê-lo. Depois de 15 minutos de esforço, finalmente consigo aquele ar de “perua rica”, prendendo-o na nuca com lindas presilhas prateadas.

Victor está usando o de sempre quando saio do banheiro, mas de alguma forma conseguiu ficar mais sexy ainda. Fico boquiaberta quando o vejo parado ali com o terno Armani, os sapatos pretos de verniz e sua estatura. Olho para meu vestido, e, mesmo devendo ter custado alguns milhares de dólares, sinto que ainda não me deixa à altura de Victor.

Talvez sejam as sandálias, talvez quando calçar o salto alto eu me sinta mais no nível dele.

— Falta confiança — diz ele, e ergo os olhos. — Você está fedendo a insegurança agora. Precisa mudar isso antes de sairmos deste quarto. — Ele se aproxima de mim. Cheira vagamente a colônia, e inalo profundamente seu perfume. — Você sabe que é a garota mais linda e mais importante do lugar — diz ele, e por um momento me perco nessas palavras, sem querer aceitá-las apenas como instruções. — Você está sempre competindo com outras mulheres, provando a todos ao redor que nenhuma se compara, e se alguma apenas tentar, você vai dispensá-la com um aceno. Você sempre abre um sorrisão ou ri debochadamente, nunca sorri normalmente como as outras pessoas. Você não agradece, mas considera que devem lhe agradecer pela oportunidade de lhe servir. E nunca levanta a voz, porque não precisa disso para apresentar seu argumento. E lembre-se, você sempre cede a mim. Haja o que houver.

Eu o olho com expressão neutra.

— Então eu sou insuportável — digo. — Já estou com vontade de dar um soco em mim mesma.

Victor abre um sorrisinho, o que faz um calafrio percorrer minhas costas.

Ele levanta um dedo.

— Mais uma coisa — diz, enfiando a mão na bolsa.

Ele tira uma pequena caixa de joias de marfim e a entrega a mim. Abro o fecho e olho dentro dela. Há vários anéis impressionantes, encaixados em dobras de veludo de um lado, dois colares, um de ouro e outro de prata, com pingentes de brilhante e pulseiras e brincos combinando.

— Onde conseguiu tudo isso?

Ele esconde a arma dentro da camisa, abrindo os três primeiros botões para revelar uma tira preta em um lado do peito, que, presumo, está presa a algum tipo de suporte para carregar armas.

— É melhor você não saber.

Deixo por isso mesmo e pego quatro anéis, dois para cada mão, e um jogo de pulseira, colar e brincos. Depois pego minha bolsinha branca e Victor me dá o braço antes de sairmos do quarto.

Los Angeles é igualzinha ao que aparece nos filmes: uma enorme infraestrutura explodindo com luzes, prédios altos, carros caros, estradas brancas com palmeiras e mansões multimilionárias. Vamos para o restaurante em um Mercedes Roadster preto conversível, mas com a capota no lugar, pela cidade espraiada. Estava estacionado na frente do hotel, esperando por nós, quando saímos. Pelo jeito, fazer o que Victor faz tem suas vantagens. Não é só matar gente por dinheiro, mas também ter tudo de que ele precisa à disposição para garantir que possa executar cada missão que recebe.

Chegamos ao restaurante no bairro mais nobre da cidade, sem dúvida, bem depois de escurecer. Um manobrista abre a porta para mim. Faço menção de sorrir e agradecer ao sair, mas me contenho rapidamente e engulo meu erro antes que alguém perceba. Em vez disso, levanto o queixo e não ofereço ao sujeito nem um olhar, muito menos um sorriso ou agradecimento.

Victor dá a volta até meu lado do carro; passo o braço pelo dele de novo e entramos juntos.

O restaurante tem dois andares e um balcão no de cima que tem vista para o piso inferior. O burburinho ao meu redor parece um zumbido constante, mas não está tão cheio a ponto de todas as mesas estarem ocupadas. À parte o vozerio, o lugar é silencioso, com lustres baixos e paredes na penumbra para criar uma atmosfera tranquila. Victor me puxa delicadamente enquanto seguimos o garçom até um nicho circular com assentos de couro preto lustroso nas paredes. Eu me sento primeiro, e depois Victor desliza para meu lado.

O garçom traz dois cardápios encapados em couro, mas, antes que possa colocar o meu diante de mim, estendo a mão, recusando-o com um gesto e uma expressão entediada.

— Não vou comer — digo, como se a comida pudesse de alguma forma arruinar minha jornada espiritual. — Mas vou tomar vinho.

O garçom olha para o cardápio em sua mão e depois para mim, rapidamente, parecendo confuso.

Victor me olha de uma maneira que não consigo interpretar, mas sei que não é boa. Ele abre o cardápio e, depois de estudá-lo por um momento, devolve-o ao garçom e diz:

— La Serena Brunello di Montalcino.

O garçom assente e pega o cardápio, que pelo jeito era, na verdade, a carta de vinhos; quase morro de vergonha, e ele se afasta.

— Desculpe — sussurro.

Os olhos de Victor encontram os meus como um aviso. Demoro um segundo, mas entendo o que estou fazendo errado e rapidamente apago o ar constrangido de meu rosto, endireitando as costas e cruzando as pernas debaixo da mesa. Deixo minha bolsa na mesa, à minha direita.

Isso de se manter na personagem é mais difícil do que eu pensava, mas agora que já fiz duas merdas em poucos minutos, estou mais determinada do que nunca a acertar.

Em segundos, me torno completamente Izabel Seyfried.

Pego minha bolsa, tiro dela um espelhinho e um batom cor-de-rosa e começo a passá-lo à mesa. Faço questão de me olhar bastante, virando um pouco a cabeça em vários ângulos e fazendo biquinho.

— Guarde esse batom — diz Victor, como o babaca rico, e não o homem que conheço.

Eu o fuzilo levemente com os olhos e obedeço, mas sem pressa nenhuma.

O garçom volta para nossa mesa com uma garrafa de vinho e, segurando-a com as duas mãos, mostra-a para Victor. Ele a inspeciona e assente para o garçom, que tira a rolha e a deixa na mesa diante de Victor. Ele também a inspeciona, e, embora eu me pergunte silenciosamente por que os dois estão tendo essa trabalheira toda, não digo nada e finjo não me importar. O garçom serve um pouquinho de vinho na taça de Victor primeiro e dá um passo para trás. Ele gira o vinho no copo por um momento, depois o aproxima do nariz e cheira antes de tomar um gole. Depois que Victor aprova a bebida, o garçom enche meu copo primeiro, depois o de Victor.

Eu não olho o garçom nos olhos, porque, assim como o manobrista, ele não é digno da minha preciosa atenção.

Victor recusa comida para nós dois e o garçom se afasta.

— Nunca gosto desta cidade quando venho aqui — diz ele, tomando um gole de vinho.

Ajusto os dedos delicadamente no bojo da minha taça e faço o mesmo, pousando-a suavemente na mesa depois.

— Bom, pessoalmente, eu prefiro Nova York, ou a França — comento, sem ter a mínima ideia do que estou dizendo.

— Não perguntei o que você prefere. — Ele não olha para mim.

Victor deixa a taça na mesa.

— Por que me traz com você, então? — pergunto, inclinando a cabeça. — Eu só estava tentando começar uma conversa. — Desvio o olhar, cruzando os braços.

Victor me olha diretamente.

— Izabel, não fique aí sentada de braços cruzados. Parece uma criança teimosa.

Devagar, meus braços caem e deixo as mãos no colo, endireitando as costas.

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Eu sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

Nesse momento, outro casal se aproxima da mesa, uma loura alta com pernas de 1 quilômetro à mostra e um homem ainda mais alto segurando-a pela cintura.

Victor se levanta para cumprimentá-los. Eu fico onde estou, ainda na personagem, mas ao mesmo tempo não precisando fingir muito estar decepcionada com a presença deles, porque estava gostando daquele momento com Victor antes de sermos interrompidos; por alguns minutos, esqueci por que estamos aqui.

— Aria — apresenta-se a mulher.

— Prazer — digo, com descontentamento óbvio.

Ela se senta do outro lado da mesa redonda. O homem se senta na ponta do assento, depois dela, como Victor.

— Já faz algum tempo, Victor — diz o homem, com um sotaque que não consigo identificar.

Como é que eles se conhecem?

— Faz, sim, meu amigo — diz Victor enquanto acena para o garçom.

O garçom se aproxima na hora e anota o pedido de vinho do homem.

— Izabel — diz Victor —, este é meu velho amigo Fredrik, da Suécia. Ele vai administrar meus escritórios em Estocolmo quando a expansão for concluída, mês que vem.

— Ah, sei — digo, tomando mais um gole de vinho, medindo “Aria” com o olhar por cima da borda da taça.

Os seios dela estão praticamente transbordando do alto do vestido, e eu me sinto deslocada, de repente. Mas não demonstro. Lembro que sou a garota mais linda e mais importante do local. Não faz nenhuma diferença seu busto tamanho GG humilhar o meu, tamanho M, nem o fato de ela ser linda de morrer e ter os olhos azuis mais magnéticos que já vi em uma mulher.

Ergo o queixo orgulhosamente e desvio o olhar.

— Qual é meu presente, Victor?

Os lábios de Victor se estendem discretamente e ele deixa o copo na mesa.

— Fredrik e Aria, claro — diz ele. — Você se comportou muito bem ultimamente e a negligenciei tanto enquanto estava na Suécia que quero celebrar você esta noite.

Fredrik sorri para mim do outro lado da mesa, sedutor, com os lábios encostados na borda da taça. Ele é lindo, tem cabelo escuro e ondulado e maçãs do rosto fortes.

— Não podemos comemorar a sós? — pergunto, não dando mais atenção a Fredrik. — Não entendo aonde você quer chegar. Certamente não quer que eu trepe com eles.

O sorriso de Victor é maroto, mas secretamente orgulhoso de quão rápido entendi o plano.

Só espero que ele não vá além desta mesa...

Ele apoia os dois braços na mesa, com os cotovelos dobrados.

— Não, claro que não — diz ele, e isso me surpreende. — Eu jamais a dividiria com alguém, você sabe disso.

Aria sorri para mim, tentando me olhar nos olhos, o que me faz querer olhar menos para ela. A mão esquerda de Fredrik desaparece sob a mesa, e provavelmente está entre as coxas dela, como a de Victor estava entre as minhas segundos atrás.

— Victor nos contou — diz Fredrik, se inclinando um pouco para a frente e baixando a voz — que você gosta de uma plateia. Aria e eu gostaríamos muito de assistir. Se você estiver disposta a permitir.

Não sei ao certo quando o teatro acabou para mim, mas no momento estou lutando para emergir de um oceano de sensações de luxúria e prazer e voltar à realidade. Por alguns longos segundos, não digo absolutamente nada. Só consigo pensar em Victor fazendo o que quer comigo e Fredrik e Aria assistindo a tudo. De repente sinto um formigamento entre as pernas. Mas fico com vergonha de meus pensamentos e tento expulsá-los da minha mente.

— Izabel? — ouço Victor dizer.

Volto para o presente, sem ter mais certeza absoluta de como devo reagir. Talvez Victor devesse ter me preparado melhor, explicando especificamente detalhes importantes como este. Eu me atrapalho com meus pensamentos, usando minha taça como distração, tocando a haste com a mão direita, o tempo todo tentando emanar a personalidade controlada de Izabel Seyfried, que não estou exatamente sentindo mais.

— Eu gostaria disso — digo. Mas então olho friamente para Aria e acrescento: — Mas ela não. Só Fredrik.

O rosto de Aria murcha e depois se transforma em uma careta amargurada.

A expressão de Victor continua neutra e eu interpreto isso como um sinal secreto de sua aprovação para minha decisão de excluí-la.

Antes que eu perca minha autoconfiança, mantenho o diálogo fluindo:

— Você deveria saber que não era para convidá-la, Victor.

Ele toca meu pulso sobre a mesa.

— Muito bem — diz ele, e depois olha para Fredrik. — Encontre-nos no meu hotel daqui a duas horas. Sozinho.

Aria faz menção de se levantar e, com um gesto furioso, pede que Fredrik saia do caminho para que possa deixar nossa mesa. Ele fica de pé e dá um passo para o lado, mas, quando estende a mão para ajudá-la, ela a repele e diz, ríspida:

— Saia de perto de mim, porra. — E sai marchando com seu salto 15 para longe.

É estranho como realmente me sinto culpada por “magoá-la”, apesar da natureza da situação.

Fredrik volta a se sentar e o clima à mesa muda quando ele e Victor começam a conversar sobre essa expansão da empresa na Suécia, que não faço nem ideia do que seja. O que me deixa ainda mais confusa é como a conversa fictícia sobre essa coisa fictícia flui entre os dois. Parece que eles discutiram toda a situação detalhadamente e até tiveram tempo de ensaiar antes de vir para cá. Mas eu estive com Victor o tempo todo, e ele não teve oportunidade de falar muito sobre esse assunto com ninguém além de mim. Fredrik parece saber mais sobre o que está acontecendo do que eu.

E, para ser bem sincera, isso me deixa um pouco irritada.

— Estou pronta para ir embora — digo com voz gélida, como Izabel e também como Sarai.

— Iremos embora quando eu estiver pronto — diz Victor.

— Mas eu quero ir agora — retruco. — Não gosto deste restaurante. É escuro pra caralho. Me sinto em um calabouço. — Pego minha bolsa da mesa e começo a me levantar.

Victor segura meu braço e me puxa de volta.

— Eu disse que iremos embora quando eu estiver pronto. E pare de falar, ou pode ficar de joelhos debaixo da mesa, no meio das minhas pernas.

Engulo em seco, com um ar chocado no rosto. Olho para Fredrik com a visão periférica e recupero a compostura na hora.

Largo de novo a bolsa na mesa e cedo completamente a Victor.

E mais uma vez estou tentando emergir do oceano de minha mente suja.


CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Sarai

O garçom volta à nossa mesa para oferecer mais vinho e ver se está tudo bem. Victor indica com um movimento da cabeça que ele encha nossas taças. Enquanto o garçom põe mais vinho na minha, noto a mão de Victor se movendo pela borda da mesa em minha direção, e assim que o garçom afasta a garrafa, minha taça cai, derramando vinho em meu vestido. Aconteceu tão rápido que, se eu não estivesse olhando para Victor, nunca saberia que foi ele que fez aquilo, e não o garçom.

Solto uma exclamação e fico boquiaberta. E enquanto entro totalmente no modo Izabel, o garçom se apressa em enxugar o vinho da mesa enquanto repete pedidos de desculpas.

— Inacreditável — digo, me levantando da mesa com as mãos para cima e a boca aberta, meus olhos cheios de ira. — Seu idiota, olhe o que você fez com meu vestido.

— E-eu lamento muito — diz o garçom.

— Quero falar com o proprietário — exige Victor, agora de pé ao lado da mesa também.

Conseguimos causar uma cena, pelo menos.

— Sim, senhor — diz o garçom. — Vou chamar o gerente agora mesmo.

Ele começa a se afastar a passos rápidos, mas Victor diz:

— Não, eu disse o proprietário. Não me faça perder tempo com mais ninguém.

Um tanto apavorado, o garçom se curva e sai apressado pelo restaurante.

Fico na personagem, ignoro a necessidade de perguntar o que está acontecendo. Fredrik ainda está sentado conosco, afinal, e até onde sei... Quem estou tentando enganar? Não sei de nada, na verdade.

— Olhe meu vestido, Victor!

Victor pega o guardanapo de pano diante dele na mesa e começa a enxugar meu vestido.

— Está arruinado — digo entre dentes.

— Eu compro um novo — diz ele. — Melhor dizendo, o dono deste restaurante vai lhe comprar um novo.

Fredrik fica sentado em silêncio, tomando seu vinho.

Em menos de dois minutos o garçom se aproxima de novo, atrás de um homem alto e de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no queixo. O homem anda de cabeça erguida e com as mãos unidas à sua frente.

— Peço desculpas pelo acidente com o garçom — diz ele. — Seu vinho e o jantar, se ainda quiserem comer, serão por conta da casa.

— Ah, mas isso não basta — diz Victor, ficando na frente do homem. — E me ofende o senhor não se oferecer para pagar o vestido, além do jantar. Que espécie de restaurante é este? Com certeza nunca mais voltarei aqui. O senhor é o dono deste... estabelecimento?

O homem estende a mão para apertar a de Victor, mas ele a recusa.

— Sou Willem Stephens — diz ele, retirando a mão. — Eu administro o restaurante.

— Então você é só o gerente? — acusa Victor.

O garçom olha para o chão para evitar o olhar furioso de Victor.

— Eu pedi o proprietário — acrescenta Victor.

Willem Stephens assente.

— Sim, Marcus me informou seu pedido, mas infelizmente isso não será possível hoje. O sr. Hamburg não está aqui.

Fredrik se levanta da mesa e todos os olhares se dirigem para ele. Ele toma um último gole do vinho.

— Perdão — diz Fredrik para Victor —, mas preciso ir. — Então ele me olha rapidamente. — Encontro vocês no hotel em duas horas.

Não lhe dirijo nenhum olhar ou sorriso furtivo, apenas faço que sim e volto para Victor e o assunto do vestido.

Fredrik e Victor se despedem rapidamente, e então Fredrik nos deixa com o gerente.

— Em nome do sr. Hamburg — diz Willem Stephens —, o vestido será totalmente pago, e o senhor é nosso convidado para jantar.

A mão de Victor bate no tampo da mesa, e de repente um segurança de terno está ao lado de Willem Stephens, surgido do nada. O garçom magrinho aproveita a oportunidade para recuar vários passos e se distanciar de nós.

— Por favor, senhor — diz Willem Stephens, fazendo um gesto para Victor e tentando atenuar a situação. — Não é preciso fazer uma cena. Prefere conversar em um lugar mais reservado?

Victor se aproxima mais dele, emanando autoconfiança e intolerância por todos os poros. Da mesma forma, o segurança se aproxima de Victor. Dois segundos de tensão silenciosa se passam entre eles, mas ninguém se mexe. Sei que Victor poderia facilmente derrubá-lo e que tudo isso faz parte do plano.

— Quero que o vestido seja pago hoje — exige Victor. — Três mil e quinhentos dólares. Em dinheiro. E vou pensar sobre não processar você ou o sr. Hamburg pelo vestido e pelo desgaste emocional da minha namorada.

Acho isso ridículo, mas, por outro lado, já ouvi falar de gente processando por coisas mais idiotas e ganhando.

Willem Stephens assente.

— Muito bem — diz ele. — Vou pegar a quantia. Com licença.

Victor assente seriamente, e então Willem Stephens se afasta, com o garçom e o segurança seguindo-o de perto. Assim que eles passam pelas mesas que assistem a tudo em silêncio, Victor se vira para mim e me manda sentar com ele com um gesto.

— Eu adorava este vestido — digo, com dentes cerrados.

Com o mesmo guardanapo de antes, Victor finge enxugar delicadamente o tecido no meu peito.

— Vai ficar tudo bem assim que sairmos daqui — diz ele. Então me beija na testa. — Acho que você vai gostar de Fredrik. Ele tem autocontrole. — Ele me beija de novo um pouco mais abaixo, entre os olhos. — Vai esperar nós terminarmos antes de se masturbar.

— Como sabe disso?

— Porque o conheço há muito tempo — diz ele.

Nem acredito que estou tendo esta conversa. Ou que tudo nela é teatro. Não entendo nem por que estamos fazendo este teatro, sem ninguém ali para assistir. Mas o que me deixa ainda mais confusa é quão facilmente esqueci que tudo aquilo era mentira. Ou estou me divertindo demais jogando este jogo perigoso com Victor, ou tem alguma coisa muito errada comigo.

Victor passa o polegar por minha sobrancelha e eu me perco completamente em seus olhos.

— O que você vai fazer comigo? — pergunto timidamente. — Você disse que eu me comportei.

Ele beija de leve a sobrancelha que acabou de tocar.

— Tudo o que eu quiser fazer com você — diz ele, com tom calmo e controlador.

Ele passa o dedo na outra sobrancelha e continua pelo meu maxilar.

Fecho os olhos suavemente e inspiro seu perfume, saboreando sua proximidade e tentando me obrigar a não acreditar na verdade, que nada do que ele está me dizendo é real.

Seus lábios roçam os meus.

— Isso é um problema para você, Izabel?

— Não. — Eu estremeço ao dizer a palavra, de olhos ainda fechados.

Mas eles se abrem quando Willem Stephens volta para nossa mesa.

— Pelo inconveniente — diz ele, estendendo um envelope para Victor. — Tem 4 mil dólares aqui.

Victor pega o envelope e o enfia no bolso interno do paletó.

Em seguida, Willem Stephens tira outro envelope mais quadrado do bolso e o oferece a Victor.

— O sr. Hamburg gostaria de oferecer suas desculpas convidando o senhor para sua mansão amanhã à noite — diz ele.

Victor pega o envelope, hesitante, olhando-o ceticamente e sem interesse, de início.

— É uma recepção particular — continua Willem Stephens. — Posso garantir que, se decidir comparecer, o sr. Hamburg fará com que valha a pena financeiramente.

— Eu pareço precisar de qualquer tipo de auxílio financeiro? — pergunta Victor, fingindo se ofender com a ideia.

Willem Stephens balança a cabeça freneticamente.

— De modo algum, senhor — diz ele. — Mas dinheiro nunca é demais. Não concorda?

Victor pensa por um momento e então me estende a mão. Eu a aceito, e nos levantamos da mesa.

— Vou pensar — diz Victor, e saímos do restaurante.

~~~

— Como você sabia que ia funcionar? — pergunto, empolgada, assim que entramos no Roadster e fechamos as portas. Não consigo mais me segurar. Só espero que não tenha problema sair da personagem agora.

— Eu não sabia — diz ele.

— Mas como...

Ele olha para mim, com uma das mãos apoiada distraidamente no alto do volante.

— Todas as mesas do restaurante são grampeadas — diz ele, olhando novamente para a estrada. — Hamburg fica sentado naquela sala particular, vendo os clientes indo e vindo, escolhendo casais na multidão baseando-se primeiro na aparência. Quando ele vê um casal que lhe interessa, a fase seguinte é escutar a conversa.

Agora estou entendendo tudo.

— Mas por que você não me contou isso antes de a gente ir? Acho que eu teria interpretado melhor se soubesse que o cara estava ouvindo.

— Bem, tecnicamente, eu não sabia se ele estava ouvindo. E não lhe contei certas coisas porque queria ver como você se sairia improvisando sob pressão e com informações limitadas sobre o que estava acontecendo.

— Isso explica a sua conversa com Fredrik — digo, e seu nome na minha língua, como Sarai, começa um assunto totalmente novo. — Se esse for mesmo o nome dele. — Faço uma pausa e digo, com o rosto em brasa: — Ele não vai estar mesmo no nosso hotel, vai?

O olhar lento de Victor é cheio de diversão.

— Não, Sarai, ele não vai estar no hotel esperando por nós.

Bom, que alívio. Mas a ideia de Victor...

— E quem era ele, então? Obviamente, ele sabia mais sobre o que estava acontecendo do que eu.

Viramos para outra rua iluminada e passamos por um sinal de trânsito amarelo pouco antes de mudar para vermelho.

— Sim, o nome dele é Fredrik, e sim, ele é sueco mesmo. Trabalha para a minha Ordem, mas não faz o que eu faço. Ele apenas nos ajuda em horas como estas.

— E a mulher, Aria?

— Com certeza é uma desconhecida que Fredrik pegou em algum lugar. — Ele abre um sorriso. — Ele é bom nesse tipo de coisa.

Fico vermelha e desvio o olhar.

— Você está decepcionada? — pergunta Victor.

Volto a olhar para ele, constrangida pela pergunta. E aquele sorrisinho tênue ainda está por trás de seus olhos.

— Hã, não — respondo. — Por que pergunta isso?

Victor volta a olhar para a estrada.

— Por que, você não achou Fredrik atraente?

Acho que ele está brincando comigo.

— Bom, sim, eu estaria mentindo se dissesse que não o achei atraente, mas não me sinto atraída por ele, se é o que está pensando.

Eu me sinto atraída por você, Victor, só por você...

Ele sorri e não diz mais nada a respeito.

Meu rosto fica cada vez mais quente, e toda vez que o vejo sorrir, por ser tão incomum, fico mais vermelha e sinto mil borboletas bêbadas fazendo uma orgia em minha barriga.

— Então, qual é nosso próximo passo? — pergunto.

— Aproveitar a folga até amanhã à noite — diz ele.

E é exatamente o que fazemos.

Victor me leva para comprar um novo vestido com os 4 mil dólares que extorquiu do gerente. Voltamos para o hotel para trocar de roupa. Eu arregalo os olhos quando o vejo vestido. Ele usa um cardigã cinza justo com gola em V sobre uma camisa social branca, bem casual, para fora da calça de jeans escuro. Um par de sapatos pretos com cadarço adorna seus pés. Eu só o vi usar ternos caros e sapatos formais, por isso é um pouco chocante vê-lo usar outro tipo de roupa. Embora ele ainda consiga atingir a sofisticação e a riqueza sem falha.

Eu uso um vestido curto de seda e outro par de sandálias rasteirinhas caras, feliz por tirar aqueles saltos dolorosos.

Acabamos nos encontrando com Fredrik, no fim das contas, embora seja um encontro completamente inocente. Nós três vamos a um coquetel na cobertura de outro hotel de luxo, e, embora eu precise interpretar Izabel Seyfried o tempo todo, tenho a sensação de que Fredrik sabe que na verdade não sou a perua que estou fingindo ser. Eu o acho interessante, e quanto mais Victor e eu passamos tempo com ele, mais aprecio sua companhia.

Parece quase... normal, como se eu tivesse encontrado uma forma simples de aproveitar as coisas ao meu redor, como todo mundo, e me inserir na sociedade. No fundo, sei que isso não vai durar, mas pelo menos estou experimentando, sem ter que ficar o tempo todo olhando para trás, com medo.

Nós nos separamos de Fredrik pouco depois da meia-noite, quando Victor acha melhor voltarmos para o hotel para descansar. Amanhã, a noite será bem diferente desta, e isso deveria me deixar preocupada. Mas já estou jogando o jogo. Entrei demais nele, me envolvi demais com meu alter ego, que se divertiu em uma noite mais do que Sarai em toda a vida. Estou ansiosa e empolgada para que amanhã chegue, sem o medo ou as dúvidas que acho que Victor, secretamente, gostaria que eu sentisse.

Não, esse mundo sombrio que ele está abrindo para mim aos poucos não está tendo o efeito que ele planejava.

Só me faz desejá-lo cada vez mais.


CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Victor

— Fredrik me disse que você estava com uma garota — diz Niklas pelo telefone. — Izabel, certo?

— Sim — respondo. — Obviamente era necessário.

Ele sabe. Eu nunca estive tão dividido. Niklas ou Sarai? Preciso muito ser seletivo com tudo o que vou contar a ele daqui por diante. Mas não posso mentir sobre Izabel e Sarai serem a mesma pessoa, porque há maneiras demais de Niklas descobrir a verdade. Talvez ele já tenha a prova de que precisa. Se eu mentir, vai saber que não confio nele a respeito dela, e isso poderia pôr Sarai em mais perigo ainda.

— Deixei Sarai escolher onde morar, e ela escolheu a Califórnia. Esse é o único motivo pelo qual eu a trouxe.

Ouço Niklas inspirar, concentrado.

— Mas por que a trouxe para uma missão? Por quê?

— Porque por enquanto ela é conveniente — respondo. — Considerando o prazo curto que me foi dado para fazer este serviço, não havia tempo para preparar mais ninguém.

Sei que essa não é a melhor explicação do mundo. Existem várias mulheres em Los Angeles que trabalham para a Ordem, como Fredrik, e uma delas poderia facilmente ter feito o papel de Sarai, interpretando-o tão infalivelmente quanto Fredrik interpretou o dele. Mas espero que Niklas aceite minha palavra. Ele não faz trabalho de campo, como eu. Não tem tanta intimidade com o processo de execução de um serviço quanto eu. Já matou pessoas, como eu, mas não no mesmo nível, e não tem minha experiência.

— Ela só vai arrumar um jeito de morrer — diz Niklas.

— Sim, você tem razão. — Eu paro, penso no que vou dizer e então opto por uma abordagem diferente: — Foi por isso que eu a trouxe, se quer saber a verdade.

Percebo imediatamente que suas preocupações mudaram, que finalmente lhe ofereci uma explicação que ele fica feliz em aceitar.

— Não tenho coragem de matá-la — continuo, como se estivesse finalmente admitindo isso para ele. — Farei isso, se for preciso, mas você estava certo, Niklas, em acreditar que fui afetado por ela de alguma maneira. Só que você notou antes de mim, ou melhor, notou antes que eu me permitisse acreditar nisso. A garota precisa sair de cena completamente.

— Posso matá-la para você — diz Niklas com sinceridade, e não por despeito ou ódio, para variar. Ele está sentindo empatia por mim, e meu plano está funcionando. — Apesar da sua natureza, Victor, você é humano. Eu entendo. Posso ajudá-lo. Deixe que eu mato a garota.

Suspiro de leve ao telefone.

— Não. Ela é problema meu, e eu vou resolver. Ela quer ser o que nós somos. — Niklas solta um murmúrio sarcástico ao ouvir isso. — Não há melhor maneira de ela entender que isso é completamente impossível do que lhe dar o que ela quer, jogando-a de cabeça em uma missão. Vou deixar que a missão a mate.

— E se não matar?

— Aí eu mato — digo. — Não importa o que aconteça, Sarai vai morrer na Califórnia amanhã à noite.

— Sinto muito, irmão — diz ele, com genuína compaixão. — Ter outras relações com mulheres além do sexo nunca dá certo, você sabe. Evitamos isso por um motivo, e essa situação na qual você se meteu só serve para provar que esse motivo é válido.

— Tenho consciência disso, Niklas — concordo, e mudo de assunto rapidamente: — Me dê os detalhes da mansão.

Depois de uma breve pausa, na qual sinto sua aceitação das minhas mentiras, Niklas começa:

— Tem dez dormitórios e uma suíte principal, que é o quarto de Arthur Hamburg, localizado no quarto andar. Seis banheiros. Uma sala de hidromassagem no térreo, na ala leste. Um salão de jogos com cinco mesas de sinuca. Uma sala de cinema fica na extremidade norte da mansão. Há uma saída escondida atrás da tela de projeção que leva para o subsolo da casa e dá acesso ao portão dos fundos. Há outra porta escondida no terceiro andar, no lado sul, perto do corredor com o assoalho de mármore preto. Essa não sabemos aonde vai dar, mas a empregada disse que, assim como o cômodo secreto na suíte de Hamburg, tem fechadura eletrônica com combinação. Ela não sabe a combinação. Você não vai ter tempo nem oportunidade de descobrir a combinação dessas portas, então vai ter que fazer à moda antiga.

— E as câmeras de segurança? — pergunto.

— Tem uma em cada cômodo, menos na suíte de Hamburg.

— Achei que não teria — digo. — Não consigo imaginar alguém como ele fazendo a idiotice de gravar as provas necessárias para ser condenado à prisão perpétua. Esse é um ponto a meu favor.

— Sim — concorda Niklas. — Tudo o que você fizer naquele quarto, só quem estiver lá dentro vai saber.

— E a empregada?

Anoto mentalmente todas as informações que ele está me dando.

— A que você procura se chama Manuela. Ela usa crachá, como todos os empregados. Encontre-a perto da sala de hidromassagem exatamente às oito horas. Mas não fale com ela. Ela vai estar trabalhando perto da estante de toalhas onde o envelope foi escondido. Quando você fizer contato visual com ela, apenas faça um aceno com a cabeça como sinal, e ela vai pôr três toalhas sobre aquelas onde o envelope está. Mas isso não pode ser feito antes das oito, portanto, se Hamburg convidar vocês dois para o quarto dele antes disso, você vai ter que ganhar tempo.

— E nada do que discutimos ontem à noite mudou? — pergunto.

— Não. Tudo deve seguir conforme o planejado. A arma de Hamburg fica no criado-mudo ao lado da cama, mais próximo da janela. Há outra arma em uma maleta destrancada no chão do closet.

Deixo a cena se desenrolar em minha mente por um momento.

— Isso é novo para mim — digo. — E eu pensei que já tivesse visto de tudo.

— Concordo — diz Niklas. — Mas é o que é, e não é diferente de qualquer outro serviço, pela nossa perspectiva.

Ele tem razão quanto a isso. Apesar das circunstâncias peculiares, não tenho problema nenhum em fazer este trabalho. Sarai, por outro lado, eu duvido que terá estômago.

— Faça contato comigo assim que terminar o serviço — diz Niklas. — Eu gostaria de passar as informações para Vonnegut o quanto antes. Espero que isso compense os atrasos e problemas que você encontrou e criou durante a missão com Javier e Guzmán. — Sinto a tênue acusação em suas palavras, mas era de se esperar, e deixo por isso mesmo.

— Farei isso — respondo.

Antes de encerrar a chamada, Niklas diz:

— Victor, você sabe que isso precisa ser feito. Pelo seu bem e até pelo dela.

Eu não vou matar Sarai e farei tudo o que puder para evitar que qualquer um na mansão o faça, mas bem no fundo sei que o que meu irmão disse é verdade. Eu deveria matá-la, pelo meu bem e pelo dela. Mas não consigo. E não vou.


Sarai

É a noite da missão, e já estou tão cheia de adrenalina que não consigo ficar quieta. Tomo um banho e me visto, depois que Victor escolhe meu vestido, e mais uma vez estou sem sutiã.

— Eu me sinto nua — digo, olhando para o vestido de seda fina, praticamente transparente.

Instintivamente, tento puxar a barra do vestido para cobrir mais pele, decepcionada quando esse esforço não faz o tecido aumentar em um passe de mágica. Se eu me abaixar só um pouco, qualquer um que estiver atrás de mim vai ver tudo. Ainda bem que pelo menos estou usando calcinha.

Victor me olha, aparentemente perdido em pensamentos. Ele parece meio preocupado, triste até.

— Eu não vou desistir — digo a ele, sentindo que é isso que está por trás de sua expressão. — Quero fazer isso. Aconteça o que acontecer comigo, não vai ser culpa sua.

Talvez seja um pouco pretensioso achar que ele se importa e insinuar isso em voz alta, mas realmente acho que sim, ainda que só um pouco, à sua maneira. E não me incomoda mais tanto assim que ele saiba como me sinto. A respeito de tudo o que aconteceu entre nós. Dos meus sentimentos, embora eu mesma ainda não tenha certeza de quais sejam. Dos sentimentos dele, embora os dele sempre tenham sido mais reservados do que os meus.

Vou até ele e seguro as lapelas de seu paletó. Então fico na ponta dos pés e lhe dou um beijinho na boca.

— Eu consigo fazer isso — digo. — Talvez esteja sendo imprudente e nem saiba no que estou me metendo. Não, retiro o que eu disse. Eu estou sendo imprudente e sei exatamente no que estou me metendo. Sou louca de topar isso, de querer participar disso. Mas você sabe tão bem quanto eu que não sou como todo mundo. E mesmo que eu tivesse essa chance, mesmo que pudesse desistir agora e tentar ser como todo mundo, não quero isso. Eu tenho medo de morrer. Não posso dizer que não tenho. E não quero morrer, mas estou preparada para isso.

Por um momento, parece que Victor vai me dizer alguma coisa, talvez para tentar mais uma vez me fazer mudar de ideia, mas em vez disso se afasta e pega as chaves do carro de cima do criado-mudo.

— Precisamos ir — diz ele, e vai até a porta do nosso quarto de hotel.

Estou decepcionada, até um pouco magoada. Queria que ele me dissesse alguma coisa, qualquer coisa que confirmasse, em minha mente e em meu coração, que ele não quer mesmo que eu faça isso. Talvez no fundo eu saiba que vou morrer, e essa última e desesperada parte de mim queira saber, antes, que alguém se importa. Que Victor se importa. Porque, na verdade, ele é a única pessoa no mundo que eu tenho.

 


CONTINUA