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A MORTE DOS REIS / Conn Iggulden
A MORTE DOS REIS / Conn Iggulden

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O forte de Mitilene surgiu acima, na colina. PONTOS DE LUZ se moviam nas muralhas enquanto as sentinelas faziam a ronda no escuro. O portão de carvalho e ferro estava fechado, e a única estrada que levava até as encostas íngremes era muito bem guardada.

Gadítico tinha deixado apenas vinte de seus homens na galera. Assim que o resto da centúria desembarcou, ele ordenou que a ponte corvus fosse puxada e a Accipiter deslizou afastando-se da ilha escura, com os remos praticamente inaudíveis na água calma do mar.

A galera ficaria a salvo de um ataque enquanto eles estivessem longe. Com todas as luzes apagadas, era um ponto de escuridão que os navios inimigos deixariam de ver a não ser que viessem direto para o porto da pequena ilha.

Júlio estava com sua unidade, esperando ordens. Sério, controlava o entusiasmo por finalmente ver ação depois de seis meses de patrulha costeira. Mesmo com a vantagem da surpresa, o forte parecia sólido e perigoso, e ele sabia que a escalada das muralhas certamente seria sangrenta. Mais uma vez examinou o equipamento, testando cada degrau das escadas de mão que havia recebido, movendo-se entre os homens para se certificar de que tinham panos amarrados em volta das sandálias para não fazer barulho e facilitar a escalada. Não havia nada fora do lugar, mas seus homens se submeteram à verificação sem reclamações, como tinham feito duas vezes desde o desembarque.

 

 

 

 

Júlio sabia que eles não iriam desmoralizá-lo. Quatro eram soldados veteranos, inclusive Peritas, que tinha dez anos de experiência em galeras. Júlio o havia nomeado o segundo da unidade assim que percebeu que o sujeito era respeitado pela maior parte dos tripulantes. Anteriormente ele fora deixado sem promoção, mas Júlio viu a qualidade por trás do modo casual de usar o uniforme e do rosto espantosamente feio. Rapidamente Peritas se tornou um forte defensor do novo e jovem tesserário.

Os outros seis tinham sido apanhados em portos romanos pela Grécia, enquanto a Accipiter montava sua tripulação completa. Sem dúvida, alguns deles tinham histórias sombrias, mas as exigências de uma ficha limpa costumavam ser ignoradas para os soldados das galeras. Homens com dívidas e discordâncias com oficiais sabiam que sua última chance de ter um salário era no mar, mas Júlio não reclamava. Todos os seus dez homens tinham visto batalha, e ouvi-los contar suas histórias era como um resumo do progresso de Roma nos últimos vinte anos. Eles eram brutais e duros, e Júlio gostava do luxo de saber que não hesitariam nem recusariam serviços sujos, como, por exemplo, limpar o forte de Mitilene dos rebeldes numa noite de verão.

Gadítico caminhou pelas unidades, falando com cada oficial. Suetônio assentiu para o que lhe fora dito e fez uma saudação. Júlio olhou seu antigo vizinho, sentindo uma nova aversão mas incapaz de associá-la a alguma coisa específica no jovem oficial. Durante meses eles haviam trabalhado juntos com uma educação gélida que agora parecia impossível de ser quebrada. Suetônio ainda o via como o menino que ele e seus amigos tinham amarrado e espancado numa vida anterior. Não sabia nada de suas experiências desde então e limitara-se a um riso de desprezo quando Júlio contou aos homens como era entrar em Roma na frente de um triunfo com Mário. Os acontecimentos na capital eram apenas um rumor distante para os homens a bordo, e Júlio sentia que alguns dos amigos de Tônio não acreditavam nele. Era irritante, mas a primeira sugestão de tensão ou briga entre unidades significaria rebaixamento ao posto de soldado raso. Júlio mantivera silêncio, mesmo quando ouviu Suetônio contando a história de como tinha deixado o outro tesserário pendurado numa árvore depois de bater em sua cabeça algumas vezes. Seu tom de voz fizera com que o incidente parecesse apenas uma brincadeira entre garotos. Ele sentiu o olhar de Júlio no final e fingiu surpresa, piscando para o seu segundo enquanto voltavam ao serviço.

Enquanto Gadítico andava até a última unidade, Júlio pôde ver Suetônio rindo por trás do ombro. Manteve os olhos no centurião e fez uma saudação rígida, em posição de sentido. Gadítico assentiu para ele, devolvendo a saudação com um movimento rápido do braço direito.

- Se eles não souberem que estamos aqui, talvez possamos queimar aquele ninhozinho antes do amanhecer. Se foram avisados, vamos lutar a cada passo. Certifiquem-se de que as armaduras e espadas estejam abafadas. Não quero que elas dêem o alarme enquanto estamos nos flancos expostos da colina.

- Sim, senhor - respondeu Júlio rapidamente.

- Seus homens atacarão pelo lado sul. Lá a encosta é um pouco mais fácil. Leve as escadas rapidamente e coloque um homem na base de cada uma para segurá-las, de modo a não perderem tempo procurando um apoio firme para os pés. Estou mandando os homens de Suetônio para matar as sentinelas do portão. São quatro, de modo que a coisa pode ser barulhenta. Se ouvirem gritos antes de chegar perto da muralha, corram. Não devemos dar a eles tempo de se organizarem. Entendido? Bom. Alguma pergunta?

- Sabemos quantos homens há lá dentro, senhor? - perguntou Júlio. Gadítico pareceu surpreso.

- Vamos tomar essa fortaleza quer eles tenham cinqüenta ou quinhentos homens! Eles não pagam impostos há dois anos e o governador local foi assassinado. Acha que deveríamos esperar reforços?

Júlio ficou ruborizado de vergonha.

- Não, senhor.

Gadítico deu um risinho amargo.

- A marinha já está com muito pouca gente. Você vai se acostumar a nunca ter homens e navios suficientes se sobreviver a esta noite. Agora vá para a sua posição e se mantenha afastado da fortaleza, usando cobertura. Entendido?

- Sim, senhor.

Júlio fez outra saudação. Ser oficial, ainda que do nível mais baixo, era na melhor das hipóteses difícil. Esperava-se que ele conhecesse o serviço, como se a capacidade viesse junto com o cargo. Ele jamais atacara uma fortaleza antes, fosse de dia ou de noite, mas deveria tomar decisões instantâneas que poderiam significar a vida ou a morte para os seus homens. Virou-se para eles e sentiu um novo jorro de determinação. Não iria deixá-los em má situação.

- Vocês ouviram o centurião. Sigam em silêncio, romper fileiras. Vamos. Como se fossem um só, eles bateram o punho direito nos peitorais de couro, confirmando. Júlio se encolheu diante do pequeno ruído.

- E nada desse negócio de fazer barulho. Até estarmos dentro da fortaleza, nenhuma ordem minha precisa ser confirmada. Não quero vocês entoando "Sim, senhor", quando estão tentando se mover em silêncio, certo?

Um ou dois riram, mas a tensão era palpável enquanto seguiam lenta e cuidadosamente sob cobertura. Duas outras unidades se destacaram com eles, deixando Gadítico para comandar o ataque frontal assim que as sentinelas estivessem com a garganta cortada

Júlio agradeceu os treinamentos intermináveis ao ver o modo fácil com que os homens se separavam em pares, com quatro escadas compridas em cada unidade. Os soldados podiam subir correndo pelos degraus largos quase a toda velocidade, e levariam apenas segundos para chegar ao topo das muralhas negras e entrar no forte. Então a coisa ficaria feia. Sem saber quantos rebeldes os enfrentavam, os legionários tentariam matar o maior número possível nos primeiros instantes.

Sinalizou com a palma da mão para os homens se agacharem quando uma tocha de sentinela parou perto de onde estavam. Os sons seriam transportados com facilidade, apesar do canto rítmico dos grilos no capim. Depois de uma curta pausa, a luz da sentinela se moveu de novo e Júlio captou o olhar dos oficiais mais próximos, assentindo a cada um deles para começar o ataque.

Levantou-se, e seu coração bateu mais depressa. Seus homens se levantaram junto, um deles grunhindo ligeiramente com o peso da escada. Começaram a correr subindo a rocha irregular do lado sul. Apesar dos panos para abafar o som das sandálias e das armas, o barulho dos pés pareceu alto quando Júlio começou uma leve corrida junto aos homens. Peritas ia na frente, na ponta da primeira escada, mas a ordem mudava segundo a segundo enquanto eles subiam a superfície irregular, sem ter ao menos a luz da lua para ver o chão. Gadítico tinha escolhido bem a noite.

Cada uma das escadas foi passada depressa pelas mãos do homem da frente, que firmou a base perto da muralha para alcançar altura máxima. O primeiro homem segurou-a com firmeza enquanto o segundo subia rapidamente para a escuridão. Em apenas alguns segundos o primeiro grupo havia passado e o segundo estava pronto para ir, com a subida mais difícil, porque as escadas escorregavam e raspavam na pedra. Júlio segurou uma que estava se movendo e sustentou-a com os ombros até que o peso em cima tivesse sumido, apreciando a nítida realidade das alavancas no processo. Por toda a fileira, soldados desapareciam no forte, e o alarme ainda não fora dado.

Ajeitou a escada até que a ponta almofadada se prendeu em alguma coisa e segurou-a com força enquanto subia, tendo de ficar grudado por causa do ângulo agudo. Não parou no topo, para o caso de haver arqueiros mirando. Não havia tempo para avaliar a situação enquanto passava por cima e pulava na escuridão abaixo.

Bateu no chão e rolou, encontrando seus homens em volta, à espera. Diante deles havia um pequeno trecho de capim crescido sobre pedras antigas e compridas. Era um terreno de matança para arqueiros, e eles precisavam sair dali rapidamente. Júlio viu que as outras unidades não tinham parado, haviam atravessado até a muralha interna. Franziu a testa. Ela era tão alta quanto a primeira, a apenas seis metros de distância, mas desta vez as escadas estavam lá fora e eles estavam presos entre as muralhas, como os antigos projetistas haviam planejado. Xingou baixinho enquanto os homens olhavam para ele esperando uma decisão rápida.

Então um sino começou a tocar na fortaleza, os dobres pesados estrondeando no escuro.

- E agora, senhor? - perguntou Peritas, com a voz parecendo entediada.

Júlio respirou fundo, sentindo seus próprios nervos se acomodando ligeiramente.

- Estaremos mortos se ficarmos aqui, e eles vão começar a jogar tochas logo, iluminando-nos para os arqueiros. Você é o melhor em fazer amarras, Péri, então tire a armadura e veja se consegue subir com uma corda a muralha interna. As pedras são antigas, deve haver alguns pontos de apoio para você. - Em seguida se virou para os outros enquanto Peritas começava a desfazer os nós que prendiam a armadura. - Precisamos pegar aquela escada de volta. Se Péri cair, seremos alvos fáceis para os arqueiros. É um muro de quatro metros e meio, mas talvez possamos levantar os dois mais leves de vocês até o topo, de onde podem puxar a escada.

Júlio ignorou os sons crescentes de pânico e batalha dentro do forte. Pelo menos, os rebeldes estavam se concentrando no ataque de Gadítico, mas o tempo devia estar acabando para os soldados ao seu lado.

Os homens entenderam o plano rapidamente, e os três mais pesados cruzaram os braços uns com os outros e apoiaram as costas nas pedras escuras da muralha externa. Outros dois subiram sobre eles e se viraram com cuidado, para também se encostar na muralha atrás. Os três de baixo gru-nhiram quando o peso se apoiou em sua armadura. As placas de metal se cravavam nos ombros dos homens, mas sem elas havia boa chance de partir uma clavícula. Eles suportaram o desconforto em silêncio, mas Júlio viu que não agüentariam por muito tempo.

Virou-se para os últimos dois, que tinham tirado a armadura e se despiram até ficar apenas com a roupa de baixo, descalços. Ambos riram de empolgação quando Júlio sinalizou para subirem e começaram a escalar a torre de homens com a mesma velocidade e eficiência que empregavam ao trabalhar no cordame daAccipiter. Júlio desembainhou a espada enquanto os esperava, esforçando-se por enxergar na escuridão acima.

A seis metros de distância, na muralha interna, Peritas encostou o rosto na pedra fria e seca e começou uma oração curta e desesperada. Seus dedos tremeram ao se segurar num espaço minúsculo entre as pedras, e ele se esforçou por não fazer barulho enquanto subia, com os pés lutando para achar apoio. Sua respiração sibilava entre os dentes, tão alto que tinha certeza de que alguém viria investigar. Por um momento, lamentou ter trazido o pesado gládio além da corda enrolada no peito, mas não podia pensar em nada pior do que chegar ao topo sem uma arma. Mas cair de cabeça com grande estrondo era também uma perspectiva desagradável.

Acima dele podia ver uma escura borda de pedra debilmente delineada contra o brilho das tochas, enquanto o forte acordava para se defender dos cinqüenta liderados por Gadítico. Deu um silencioso riso de desprezo. Soldados profissionais já teriam mandado batedores ao redor do perímetro, para verificar se havia uma segunda força emboscada. Era bom se orgulhar do próprio trabalho, pensou.

Sua mão procurou às cegas acima, finalmente achando um bom ponto de apoio onde um canto havia se desmoronado com o passar dos séculos. Seus braços tremeram de exaustão até que finalmente colocou a palma de uma das mãos na pedra de cima e ficou pendurado um momento, tentando ouvir alguém que estivesse suficientemente perto para estripá-lo quando saltasse para dentro do forte.

Não havia nada, nem mesmo quando prendeu o fôlego para escutar. Assentiu consigo mesmo e trincou o maxilar como se pudesse morder o medo que sempre sentia nessas ocasiões, depois ergueu-se, passando as pernas por cima da muralha. Agachou-se rapidamente do outro lado, desembainhando o gládio centímetro a centímetro, para evitar qualquer som.

Estava num poço de sombras que o deixava invisível na borda de uma plataforma estreita com degraus que desciam até as outras construções dos dois lados. Os restos de uma refeição no chão mostraram que houvera uma sentinela no local, mas o sujeito obviamente fora repelir o ataque frontal em vez de ficar onde devia. Em sua cabeça, Peritas fez um som de desprezo diante da falta de disciplina.

Movendo-se lentamente, desenrolou a corda pesada do peito e dos ombros e amarrou uma das pontas num aro de ferro enferrujado preso na pedra. Deu um puxão, e sorriu, deixando o resto da corda precipitar-se no escuro.

 

Júlio viu que uma das outras unidades estava grudada à muralha, imitando sua idéia de recuperar as escadas. Da próxima vez teriam uma corda amarrada ao degrau de cima, para jogar por cima da muralha, e o último a passar puxaria a escada. Mas era fácil ser inteligente em retrospecto. Gadítico deveria ter passado mais tempo estudando o projeto do forte, se bem que isso fosse bastante difícil, já que nada ficava acima da íngreme colina de Mitilene. Júlio descartou a dúvida como uma deslealdade, mas parte dele tinha consciência de que, se ele estivesse comandando o ataque, não teria mandado seus homens tomar a fortaleza antes de saber tudo sobre ela.

Os rostos dos três homens na parte de baixo da torre estavam molhados de suor e contorcidos de dor insuportável. Acima dava para ouvir sons raspados, e então a escada veio deslizando. Rapidamente Júlio encostou-a no muro e a torre se desmantelou, deixando os três homens de baixo ofegando de alívio e girando os ombros para prevenir contra a cãibra. Júlio foi até cada um deles, batendo nos braços em agradecimento e sussurrando qual seria o próximo passo. Juntos, foram até a muralha interna.

Uma voz audivelmente perto gritou na escuridão do interior do forte acima deles, e o coração de Júlio martelou com força. Não entendeu as palavras, mas o pânico era óbvio. A surpresa finalmente havia acabado, mas eles tinham a escada e, enquanto se encostava na muralha, ele viu que Peritas não tinha fracassado nem caído.

- Movam a escada para o lado e firmem-na. Três para subir a corda aqui. O resto comigo.

Correram até o novo ponto e subitamente o ar foi cortado por flechas assobiando, cravando-se nos corpos do grupo que trazia a outra escada. Gritos soaram enquanto os romanos eram derrubados. Júlio contou pelo menos cinco arqueiros acima, com o serviço tornado fácil à medida que tochas eram acesas e jogadas na área de matança. Ainda havia escuridão sob a muralha interna, e ele achou que os rebeldes achavam que estavam defendendo o primeiro ataque, sem saber que os romanos já estavam abaixo deles.

Júlio pisou na escada, segurando o gládio com força enquanto subia os degraus largos. Uma lembrança relampejou em sua mente: o motim que vitimara seu pai havia anos. Então era assim ser o primeiro a subir uma muralha! Empurrou os pensamentos para o lado enquanto chegava ao topo e rapidamente se agachava para não levar o golpe de um machado que queria decapitá-lo. Perdendo o equilíbrio, agarrou-se à muralha por um momento aterrorizante, e então se viu do lado de dentro.

Não havia tempo para avaliar a posição. Bloqueou outro golpe de machado e chutou com força quando o peso da arma fez o atacante girar. O machado se chocou contra a pedra e sua espada se cravou facilmente no peito ofegante do inimigo. Alguma coisa o acertou no elmo, soltando a guarda lateral. Sua visão ficou turva e a espada subiu automaticamente para bloquear. Sentiu sangue escorrer pelo pescoço e o peito até a barriga, mas ignorou-o. Outros de sua unidade chegaram à passarela estreita, com a armadura leve se amassando sob os golpes violentos. Júlio viu um gládio se enfiar num queixo, vindo por baixo, empalando um dos rebeldes.

Os homens que eles enfrentavam não usavam uniformes comuns. Alguns tinham armaduras antigas e espadas estranhas, ao passo que outros carregavam machadinhas ou lanças. Pareciam gregos e gritavam uns para os outros naquela língua líquida. A coisa estava confusa, e Júlio só pôde xingar quando um dos seus homens caiu soltando um grito, com o sangue espirrando escuro à luz das tochas. Passos ecoavam por toda a fortaleza. Parecia que havia um exército ali dentro, todos correndo para aquele ponto. Mais dois de seus homens chegaram ao topo da muralha e se lançaram na luta, empurrando o inimigo para trás.

Júlio enfiou o gládio na garganta de um homem com um golpe que Rênio havia ensinado há anos. Acertava com força e fúria, e seus oponentes balançavam e morriam. O que quer que fossem, os homens que eles enfrentavam tinham o domínio apenas pelo número. A habilidade e o treinamento dos romanos tornavam o núcleo de soldados em volta da escada quase impossível de ser rompido.

No entanto estavam se cansando. Júlio viu um dos seus homens gritar de frustração e medo quando sua espada se enganchou entre as placas de uma armadura ornamentada, provavelmente passada de geração a geração desde o tempo de Alexandre. O romano puxou-a violentamente, quase derrubando o rebelde com a armadura. Seu grito furioso mudou abruptamente para um berro, e Júlio pôde ver o rebelde enfiando uma adaga curta na virilha de seu homem, por baixo da armadura. Por fim o romano tombou, frouxo, deixando o gládio ainda preso.

- A mim! - gritou Júlio para os seus homens.

Juntos, eles poderiam abrir um caminho ao longo da passarela estreita e entrar mais profundamente no forte. Viu uma escada perto e sinalizou para eles. A espada era um peso bom, A armadura lhe dava um sentimento de invulnerabilidade e, com o sangue quente da ação correndo nas veias, ela parecia leve.

Um golpe súbito em sua cabeça arrancou o elmo danificado, e ele pôde sentir o ar frio da noite na pele suada. Era um prazer, e ele riu por um momento, enquanto avançava e golpeava o escudo de um homem, fazendo-o cair no caminho de seus companheiros.

- Accipiter! - gritou ele subitamente. Falcão. Serviria. Escutou vozes ecoarem e gritarem a palavra outra vez, abaixando-se sob uma espada curva que mais parecia um instrumento agrícola do que uma arma de guerra. Seu golpe em resposta abriu as coxas do oponente, fazendo com que ele caísse gemendo nas pedras.

Os outros legionários se juntaram a sua volta. Júlio viu que oito membros de sua unidade tinham subido a muralha e que outros seis haviam sobrevivido aos arqueiros. Estavam juntos, e os rebeldes começaram a ceder diante do ataque, enquanto os corpos se empilhavam ao redor.

- Soldados de Roma nós somos - grunhiu um deles. - Os melhores do mundo. Venham, não fiquem para trás.

Júlio riu para ele e acompanhou o grito do nome da galera quando começou a ressoar de novo. Esperava que Peritas os ouvisse. De algum modo, não duvidava de que o sacana feio tivesse sobrevivido.

Peritas achou uma capa pendurada num gancho e a usou para cobrir a túnica e a espada na mão. Sentia-se vulnerável sem a armadura, mas os homens que passavam fazendo barulho nem mesmo olhavam para ele. Ouvia os legionários rosnando e gritando desafios ali perto, e percebeu que estava na hora de se juntar à luta.

Pegou uma tocha num suporte de parede e se juntou à corrida do inimigo em direção ao entrechoque das espadas. Deuses, eles eram muitos! O interior do forte era um labirinto de paredes partidas e cômodos vazios, o tipo de lugar que demorava horas para ser limpo, cada passo aberto a emboscada e flechas. Virou uma esquina no escuro, ignorado e anônimo durante momentos preciosos. Movia-se rapidamente, tentando não perder o senso de direção nas curvas e esquinas, e então se viu na muralha norte, perto de um grupo de arqueiros que disparavam cuidadosamente, com expressões sérias e calmas. Presumivelmente o resto da força de Gadítico ainda estava lá fora, mas ele podia ouvir ordens romanas gritadas no pátio, perto do portão principal. Alguns tinham entrado, mas a batalha estava longe do fim.

Metade da cidade devia ter se entocado no forte, pensou irado enquanto se aproximava dos arqueiros. Um deles ergueu os olhos rapidamente diante de sua aproximação, mas apenas assentiu, disparando sem pressa contra a massa de homens abaixo.

Enquanto ele apontava, Peritas atacou, derrubando dois dos homens de cabeça nas pedras abaixo. Eles bateram no chão com estrondo, e os outros três arqueiros se viraram aterrorizados vendo-o jogar a capa longe e erguer o gládio curto.

- Boa noite, rapazes - disse Peritas, com a voz calma e animada. Um passo levou sua espada ao peito do mais próximo. Derrubou o corpo da muralha com uma joelhada e então uma flecha o acertou com ruído oco, atravessando direto o lado do tronco. Somente as penas se projetavam de sua barriga, e ele grunhiu enquanto as puxava com a mão esquerda, quase sem controle consciente. Com ar maligno, passou o gládio pela garganta do arqueiro mais próximo, que estava levantando sua única flecha.

O último, e mais distante dele, é que havia atirado a flecha. Febrilmente, o sujeito tentou encaixar outra no arco, mas o medo o deixou desajeitado e Peritas o alcançou, com a espada erguida para o golpe. O homem recuou em pânico e gritou enquanto caía da muralha. Peritas se abaixou lentamente apoiando-se num dos joelhos, com a respiração áspera e dolorosa. Não havia ninguém perto, e ele pousou a espada, levando a mão atrás do corpo para tentar quebrar a flecha. Não iria retirá-la completamente. Todos os soldados já tinham visto o jorro de sangue que poderia matar quem fizesse isso. A idéia de que ela pudesse se agarrar em alguma coisa a cada vez que ele se virasse fazia seus olhos lacrimejarem.

A flecha estava escorregadia, e ele só conseguiu curvar a haste, deixando escapar um gemido baixo de agonia. A lateral do seu tronco estava encharcada de sangue, e ele se sentiu tonto quando tentou ficar de pé. Grunhindo baixinho, empurrou a flecha por dentro da carne, de modo a não se projetar tanto do lado de trás.

- Tenho de achar os outros - murmurou, respirando fundo. Suas mãos tremiam com o início do choque, por isso agarrou o gládio com o máximo de força possível e enrolou o outro punho numa dobra da capa.

 

Gadítico deu um tapa com as costas da mão nos dentes de um homem, enquanto corria até ele, desferindo-lhe um curto golpe de espada nas costelas.

O forte estava cheio de rebeldes, mais do que a pequena ilha suportaria, disso ele tinha certeza. A rebelião devia ter atraído valentões do continente, mas agora era tarde demais para se preocupar. Lembrou-se da pergunta do jovem oficial sobre os números, e de como havia zombado dele. Talvez devesse ter providenciado reforços. O resultado da noite não estava fácil de prever.

Tinha começado bem, com as sentinelas dominadas rapidamente, quase no mesmo instante. Dez homens passaram usando escadas e abriram o portão antes que alguém lá dentro soubesse o que estava acontecendo. Então as construções escuras tinham vomitado soldados contra eles, vestindo as armaduras enquanto corriam. As passarelas e escadas estreitas tornavam o labirinto o sonho de um arqueiro, com apenas a pouca luz fazendo com que as baixas fossem com ferimentos leves, mas ele havia perdido um homem com uma flecha na boca, passando direto pelo crânio.

Podia ouvir seus homens ofegando encostados numa parede escura atrás. Algumas tochas tinham sido acesas, mas afora uma ou outra flecha disparada às cegas, por enquanto o inimigo tinha recuado para as construções laterais. Qualquer um que corresse pelo caminho entre elas seria despedaçado antes de dar alguns passos, mas, do mesmo modo, o inimigo não podia deixar os abrigos para enfrentar os legionários. Era uma calmaria temporária, e Gadítico estava satisfeito por ter a chance de recuperar o fôlego. Sentia falta da forma física das legiões de terra. Por mais exercícios que o combatente fizesse num navio, alguns minutos de luta e corrida o deixavam exausto. Ou talvez, no caso dele, fosse apenas a idade, reconheceu secamente.

- Eles entraram nas tocas - murmurou.

A partir de agora a coisa seria feia, matando de casa em casa, perdendo um dos seus para cada um ou dois do inimigo. Para eles, era fácil demais esperar atrás de uma porta ou janela e golpear a primeira coisa que passasse.

Gadítico estava se virando para o soldado atrás de si, para dar ordens, quando o sujeito baixou os olhos, com a boca aberta num horror. As pedras do chão estavam cobertas com um líquido brilhante que escorria rapidamente em meio ao grupo e se dividia entre as construções do forte. Não havia tempo de pensar num plano.

- Corram! - gritou Gadítico ao grupo. - Subam em lugares altos! Pelos deuses, corram!

Alguns dos homens mais jovens ficaram boquiabertos, sem entender, mas os experientes não queriam esperar para descobrir. Gadítico estava atrás, tentando não pensar nos arqueiros que esperavam exatamente esse momento. Ouviu o estalo e o chiado do fogo quando eles acenderam o líquido pegajoso e flechas zumbiram passando por ele, acertando um legionário na parte inferior das costas. O soldado cambaleou por um momento antes de desmoronar. Gadítico parou para ajudá-lo, mas quando virou a cabeça viu chamas correndo para eles. Passou a espada rapidamente pela garganta do soldado, sabendo que isso o livraria de morrer queimado. Podia sentir o calor nas costas, e o pânico o preencheu enquanto se levantava junto ao corpo. Suas sandálias estavam molhadas com aquela coisa, e ele sabia que o fogo não podia ser apagado. Correu às cegas atrás de seus homens.

A toda velocidade, o grupo de soldados virou uma esquina e partiu direto para três arqueiros agachados. Todos os três entraram em pânico e apenas um conseguiu disparar, lançando uma flecha acima da cabeça deles. Os arqueiros foram mortos e deixados para trás praticamente sem que a corrida diminuísse.

Sob lençóis de chamas, o forte ficou visível. Gadítico e os outros rugiram de raiva e alívio por estar vivos, e o som alimentou sua força e amedrontou os inimigos.

O caminho terminava num pátio, e dessa vez os arqueiros que esperavam atiraram bem, destruindo os quatro homens da frente e fazendo a segunda fila cair esparramada sobre os companheiros mortos. O pátio estava cheio dos rebeldes, e, com um grito de fúria para responder à ferocidade dos romanos, eles continuaram vindo, uivando.

Júlio se imobilizou ao ver as chamas explodirem ao longo de uma fileira de construções atarracadas à esquerda. A escuridão que os abrigava se transformou em ouro tremulante e sombras, e três homens numa reentrância ficaram subitamente visíveis alguns passos à frente. Foram mortos, e atrás deles se revelou uma porta aberta, levando às entranhas do forte. Foi uma decisão instantânea, e Júlio passou correndo por ela, enfiando a espada nas tripas de um homem que esperava lá dentro, antes que ele pudesse atacar. Seus seguidores não hesitaram. Sem conhecer o forte, podiam passar minutos infrutíferos procurando caminhos para chegar aos companheiros que estavam com Gadítico. O mais importante era continuar em movimento e matar qualquer um que encontrassem.

Depois da luz do incêndio havia uma escuridão amedrontadora dentro da fortaleza. Uma escada descia até uma fileira de cômodos vazios, e no fim havia outra escada, com uma única lâmpada a óleo na parede. Júlio pegou-a, xingando quando o líquido quente espirrou em sua pele. Seus homens vinham correndo atrás, e na base da escada ele se abaixou quando flechas acertaram pedras em volta e se despedaçaram, lançando fragmentos cortantes entre os homens.

No cômodo comprido e baixo em que tinham entrado havia três homens. Dois olharam aterrorizados para os soldados sujos, cobertos de sangue, e o terceiro estava amarrado num assento. Era um prisioneiro. Pelo manto, Júlio viu que era um romano. O rosto e o corpo estavam espancados e inchados, mas os olhos pareciam vivos com uma súbita esperança.

Júlio atravessou correndo o cômodo, desviando-se para evitar outra flecha atirada de qualquer jeito e com pressa. Quase com desprezo, chegou aos dois homens e cortou a garganta do arqueiro. O outro tentou acertá-lo com uma espada, mas o peitoral suportou o golpe com facilidade e seu corte para trás lançou o homem no chão.

Júlio encostou a ponta do gládio nas pedras e se apoiou nele, subitamente cansado. A respiração saía em grandes haustos, e ele notou como o lugar estava silencioso, como estavam abaixo do nível principal do forte.

- Muito bem - disse o homem no assento.

Júlio olhou para ele. De perto, viu que o sujeito fora brutalmente torturado. O rosto estava inchado e retorcido, os dedos tinham sido partidos, projetando-se em ângulos obscenos. Um tremor abalou o corpo do homem e Júlio imaginou que ele estivesse tentando não perder o pouco controle que lhe restava.

- Cortem as cordas - ordenou, e ajudou o prisioneiro a ficar de pé, notando como ele estava fraco. Uma das mãos do homem encostou no braço do assento e ele soltou um gemido de agonia, com os olhos se revirando na cabeça por um segundo, antes de se firmar com o apoio de Júlio.

- Quem é o senhor? - perguntou Júlio, imaginando o que fariam com o sujeito.

- Sou o governador Paulo. Você poderia dizer... que este é o meu forte. O homem fechou os olhos enquanto falava, dominado pela exaustão e pelo alívio. Júlio viu sua coragem e sentiu um toque de respeito.

- Ainda não é, senhor - respondeu Júlio. - Há muita luta lá em cima, e temos de voltar para ela. Sugiro que encontremos um lugar seguro para o senhor esperar, pois não parece capaz de se juntar a nós.

De fato, o homem estava exangue, com a pele frouxa e cinzenta. Tinha uns cinqüenta anos, com ombros pesados e barriga flácida. Podia já ter sido um guerreiro, pensou Júlio, mas o tempo e a vida fácil haviam retirado sua força, pelo menos a do corpo.

O governador ficou mais ereto, com óbvia força de vontade.

- Vou com vocês até onde puder. Minhas mãos estão esmagadas, por isso não posso lutar, mas pelo menos quero sair deste buraco fétido e pestilento.

Júlio assentiu rapidamente, sinalizando para dois homens,

- Segurem os braços dele, com cuidado, carreguem-no se for necessário. Precisamos voltar para ajudar Gadítico.

Com isso Júlio estava correndo escada acima, já com a mente na batalha.

- Venha, senhor, apóie-se no meu ombro - disse um dos soldados, sustentando o peso. O governador gritou quando suas mãos quebradas se moveram, depois trincou os dentes por causa da dor.

- Tirem-me daqui depressa - ordenou, peremptório. - Quem era o oficial que me libertou?

- César, senhor - respondeu o soldado enquanto começavam a lenta subida. No fim do primeiro lance de escada a dor havia forçado o governador à inconsciência, e eles puderam ir muito mais rápido.

 

Sila sorriu e tomou um demorado gole de uma taça de prata. Suas bochechas estavam vermelhas devido aos efeitos do vinho, e os olhos amedrontaram Cornélia quando ela se sentou no divã que ele tinha oferecido.

Seus homens a haviam trazido no calor da tarde, quando ela sentia mais dolorosamente o peso da gravidez. Cornélia tentou esconder o desconforto e o medo do Ditador de Roma, mas suas mãos tremiam ligeiramente na borda da taça de vinho branco fresco que ele havia oferecido. Ela tomou um pequeno gole para agradar-lhe, querendo apenas estar longe daquelas câmaras douradas e de volta à segurança de casa.

Os olhos dele observavam todos os seus movimentos, e ela não pôde sustentar o olhar enquanto o silêncio se esticava entre os dois.

- Está confortável? - perguntou ele, e havia um leve engrolado em sua voz que fez correr um arrepio de pânico através de Cornélia.

Fique calma, disse a si mesma. A criança vai sentir o seu medo. Pense em Júlio. Ele quereria que você fosse forte. Quando falou, sua voz saiu quase firme.

- Seus homens pensaram em tudo. Foram muito corteses comigo, mas não disseram por que o senhor desejava minha presença.

- Desejava? Que estranha escolha de palavra - respondeu ele em voz baixa. - A maioria dos homens jamais usaria essa palavra para uma mulher a... o quê... semanas de dar à luz.

Cornélia olhou-o, inexpressiva, e Sila esvaziou sua taça, estalando os lábios de prazer. Ele se levantou sem aviso, dando-lhe as costas enquanto enchia o copo com vinho de uma ânfora, deixando a tampa cair e rolar no chão de mármore, sem se importar.

Ela viu, como hipnotizada, o objeto fazer uma espiral e parar. Quando a tampa ficou imóvel, ele falou de novo, com a voz lânguida e íntima.

- Ouvi dizer que a mulher nunca é mais bela do que quando está grávida, mas isso nem sempre é verdade, não é?

Ele chegou mais perto, sinalizando com a taça enquanto falava, deixando algumas gotas pingar por sobre a borda.

- Eu... não sei, senhor, é...

- Ah, eu já vi muitas. Bezerras ruivas que bamboleiam e mugem, a pele manchada e suando. Mulheres comuns, de origem comum, ao passo que a verdadeira dama romana, bem...

Ele chegou ainda mais perto, e ela teve de se esforçar para não se afastar. Havia um brilho nos olhos do ditador, e subitamente ela pensou em gritar, mas quem viria? Quem ousaria vir?

- A dama romana é uma fruta madura, com a pele luzidia, o cabelo brilhante e lustroso.

A voz de Sila era um murmúrio rouco, e enquanto falava ele estendeu a mão e apertou o volume formado pela criança.

- Por favor - sussurrou ela, mas ele parecia não escutar. A mão passou por seu corpo, sentindo a pesada esfericidade.

- Ah, sim, você tem essa beleza, Cornélia.

- Por favor, estou cansada. Gostaria de ir para casa. Meu marido...

- Júlio? Um rapaz muito indisciplinado. Ele se recusou a abrir mão de você, sabia? Agora posso ver o motivo.

Os dedos dele subiram até os seios. Por mais inchados e doloridos que se encontrassem nesse estágio tardio, estavam presos apenas frouxamente na mamillare, e ela fechou os olhos num sofrimento desamparado ao sentir as mãos do homem passando sobre a carne. Lágrimas lhe vieram rapidamente aos olhos.

- Que peso delicioso - sussurrou ele, com a voz medonha de paixão. Sem aviso, curvou-se e apertou a boca sobre a dela, enfiando a língua gorda entre seus lábios. O gosto de vinho azedo fez com que ela engasgasse num reflexo, e ele se afastou, enxugando os lábios frouxos com as costas da mão.

- Por favor, não machuque o bebê - disse ela com a voz embargando. Lágrimas escorreram, e a visão delas pareceu enojar Sila. Sua boca se retorceu, irritada, e ele se virou para o outro lado.

- Vá para casa. Seu nariz está escorrendo e estragou o momento. Haverá outra ocasião.

Ele encheu outra vez a taça com o vinho da ânfora enquanto ela saía, os soluços quase fazendo-a engasgar e os olhos cegos de lágrimas brilhantes.

Júlio rugiu enquanto seus homens entravam correndo no pequeno pátio onde Gadítico lutava contra os últimos rebeldes. Enquanto seus legionários atacavam o flanco rebelde, houve pânico instantâneo no escuro, e os romanos se aproveitaram. Corpos caíam rapidamente, rasgados pelas espadas. Em segundos, havia menos de vinte diante dos legionários, e Gadítico gritou, com a voz parecendo um trovão de autoridade:

- Larguem as armas!

Houve um segundo de hesitação, depois um barulho alto quando as espadas e adagas caíram nas pedras do piso e finalmente o inimigo ficou imóvel, peitos ofegando, encharcados de suor, mas começando a ter aquele momento de incredulidade jubilosa que o homem sente ao perceber que sobreviveu quando outros caíram.

Os legionários rodearam-nos, com os rostos duros.

Gadítico esperou até que as espadas dos rebeldes fossem tomadas, enquanto eles permaneciam num grupo amontoado e carrancudo.

- Agora matem todos eles! - gritou, e os legionários se lançaram uma última vez. Houve gritos, mas tudo acabou rapidamente e o pequeno pátio ficou silencioso.

Júlio respirou profundamente, tentando limpar os pulmões dos cheiros de fumaça, sangue e entranhas abertas. Tossiu e cuspiu no chão de pedras, antes de limpar o gládio num corpo. A lâmina estava com mossas e arranhada, quase inútil. Demoraria horas para raspar os defeitos e seria melhor trocá-la discretamente por outra no depósito. Seu estômago se revirou ligeiramente e ele se concentrou ainda mais na lâmina e no trabalho a ser feito antes que pudessem voltar à Accipiter. Tinha visto corpos em altas pilhas antes, e foi essa lembrança da manhã depois da morte de seu pai que o fez subitamente acreditar que estava sentindo cheiro de carne queimada.

- Acho que são os últimos-disse Gadítico. Estava pálido de exaustão e se curvou, apoiando as mãos nos joelhos. - Vamos esperar o amanhecer antes de verificar todas as portas, para o caso de haver mais alguns escondidos na sombra. - Ele se empertigou, franzindo o rosto quando suas costas se esticaram e estalaram. - Seus homens demoraram a dar o apoio, César. Ficamos desamparados durante um tempo.

Júlio assentiu. Pensou em dizer o que tinha custado chegar ao centurião, mas ficou com a boca bem fechada. Suetônio riu para ele. Ele estava passando um pano num corte no rosto. Júlio desejou que os pontos doessem.

- Ele se atrasou para me resgatar, centurião - disse uma voz.

O governador tinha recuperado a consciência, com o peso apoiado nos ombros dos dois homens que o carregavam. Suas mãos estavam roxas e impossivelmente inchadas, nem pareciam mãos.

Gadítico percebeu o estilo da toga imunda do romano, dura de sangue e sujeira. Os olhos estavam cansados, mas a voz era bastante clara, apesar dos lábios partidos.

- Governador Paulo? - perguntou Gadítico. Ele fez uma saudação quando o governador assentiu. - Ouvimos dizer que o senhor estava morto.

- É... durante um tempo foi o que me pareceu.

A cabeça do governador se levantou e sua boca se retorceu num leve sorriso.

- Bem-vindos ao forte de Mitilene, senhores.

Clódia soluçou quando Tubruk a abraçou na cozinha vazia.

- Não sei o que fazer - falou com a voz abafada pela túnica do administrador. - Ele fica dando em cima dela, fica dando em cima dela durante toda a gravidez.

- Shhh... calma. - Tubruk deu-lhe um tapinha nas costas, tentando controlar o medo que saltara dentro dele ao ver o rosto de Clódia, empoeirado e manchado de lágrimas. Não conhecia bem a aia de Cornélia, mas o que tinha visto lhe dera a impressão de uma mulher sólida e sensata que não choraria por pouca coisa. - O que é, querida? Venha, sente-se e conte o que está acontecendo.

Ele manteve a voz o mais calma possível, mas foi uma luta. Deuses, será que o bebê estava morto? Deveria nascer a qualquer momento, e o parto era sempre uma coisa arriscada. Sentiu um frio tocá-lo. Dissera a Júlio que ficaria vigiando-os enquanto ele estivesse longe da cidade, mas tudo parecera correr bem. Nos últimos meses Cornélia parecia meio recolhida, mas muitas garotas sentiam medo do sofrimento do primeiro parto.

Clódia se permitiu ser guiada até um banco perto dos fogões. Sentou-se sem ver se o banco estava sujo de gordura ou fuligem, o que preocupou Tubruk ainda mais. Ele lhe serviu um copo de suco de maçã, e a aia engoliu, com os soluços diminuindo até virar apenas tremores.

- Conte o que está havendo - disse Tubruk. - Quase tudo pode ter solução, não importa o quanto pareça ruim.

Esperou com paciência que ela terminasse de beber e pegou gentilmente o copo de sua mão frouxa.

- É Sila - sussurrou Clódia. - Ele vive atormentando Cornélia. Ela não quer me contar os detalhes, mas ele manda seus homens levarem-na à presença dele a qualquer hora do dia ou da noite, mesmo estando grávida, e ela volta chorando.

Tubruk empalideceu de fúria.

- Ele a machucou? Machucou a criança? - insistiu, chegando mais perto.

Clódia se afastou de sua veemência, com a boca tremendo novamente com força.

- Ainda não, mas a cada vez fica pior. Ela disse que ele está sempre bêbado e que... coloca as mãos nela.

Tubruk fechou os olhos brevemente, sabendo que tinha de ficar calmo. O único sinal externo era um punho fechado, mas quando falou de novo seus olhos brilhavam perigosamente.

- O pai dela sabe?

Clódia segurou os braços dele num aperto súbito.

- Cina não deve saber! Isso iria deixá-lo arrasado. Ele não poderia encontrar Sila no Senado sem fazer acusações, e seria morto se dissesse alguma coisa em público. Ele não pode saber!

A voz ficou mais alta enquanto falava, e Tubruk deu um tapinha em sua mão, tranqüilizando-a.

- Ele não saberá por mim.

- Não tenho a quem recorrer, além de você, para me ajudar a protegê-la - disse Clódia com a voz entrecortada, os olhos implorando.

- Você agiu certo, querida. Ela está com um filho desta casa. Eu preciso saber de tudo que aconteceu, entende? Não deve haver qualquer erro. Percebe como isso é importante?

Ela assentiu, enxugando os olhos com força.

- Espero que sim - continuou ele. - Como Ditador de Roma, Sila é quase intocável segundo a lei. Ah, nós poderíamos levar o caso ao Senado, mas nenhum senador ousaria defender a causa. Significaria a morte para qualquer um que tentasse. Esta é a realidade da preciosa "lei igual" deles. E qual é o crime dele? Segundo a lei, nenhum, mas se ele a tocou e amedrontou os deuses exigem punição mesmo que o Senado não o faça.

Clódia assentiu de novo.

- Eu entendo...

- Você precisa entender - interrompeu ele incisivamente, com a voz dura e baixa -, porque significa que qualquer coisa que nós façamos estará fora da lei, e se for algum tipo de ataque contra o próprio corpo de Sila, fracassar significaria a morte de Cina, sua, minha, da mãe de Júlio, dos ser-viçais, escravos, de Cornélia e da criança, de todo mundo. Júlio seria encontrado, não importando onde se escondesse.

- Você vai matar Sila? - sussurrou Clódia, chegando mais perto.

- Se tudo for como você diz, certamente vou matá-lo - prometeu ele, e por um momento Clódia pôde ver o gladiador que ele já fora, amedrontador e sério.

- Bom, é o que ele merece. Cornélia poderá deixar para trás esses meses sombrios e ter a criança em paz. - Ela enxugou os olhos, e parte do sofrimento e da preocupação sumiu visivelmente.

- Ela sabe que você veio me procurar? - perguntou Tubruk em voz baixa.

Clódia balançou a cabeça.

- Bom. Não conte a ela o que eu disse. Ela está muito perto de dar à luz, para ter esse tipo de temor.

- E... depois?

Tubruk coçou o cabelo curto da nuca.

- Nunca. Deixe-a acreditar que foi um dos inimigos dele. Sila tem muitos. Guarde segredo, Clódia. Ele tem defensores que exigirão sangue anos depois, se a verdade surgir. Uma palavra errada que você diga a alguém, que depois conte a um amigo, e os guardas estarão no portão para levar Cornélia e a criança para serem torturadas antes da manhã seguinte.

- Não vou contar - sussurrou ela, sustentando o olhar dele por longos segundos. Finalmente desviou os olhos, e ele suspirou sentando-se no banco, ao seu lado.

- Agora comece do princípio e não deixe nada de fora. Garotas grávidas costumam imaginar coisas, e antes de eu arriscar tudo que amo preciso ter certeza.

Ficaram sentados e conversaram durante uma hora, em voz baixa. No fim, a mão que ela pôs no braço de Tubruk marcou o início de uma atração tímida, apesar da feiúra do assunto que discutiam.

 

- Eu tinha pretendido partir na próxima maré - dissera Gadítico azedamente. - E não participar de um desfile.

- Naquele momento você acreditava que eu era um cadáver - respondera o governador Paulo. - Fui espancado mas estou vivo, acho necessário demonstrar que o apoio de Roma está comigo. Isso vai desencorajar... outros atentados contra minha dignidade.

- Senhor, cada jovem guerreiro de toda a ilha deve ter se entocado naquele forte. E um bom número também veio do continente. Metade das famílias do povoado vai estar chorando a perda de um filho ou um pai. Mostramos muito bem o que significa desobedecer a Roma. Eles não vão se rebelar de novo.


- Acha que não? - respondera Paulo, dando um sorriso torto. - Como você os conhece mal! Eles lutam contra conquistadores desde quando Atenas era o centro do mundo. Agora Roma está aqui, e eles continuam lutando. Os que morreram deixaram filhos para pegar em armas assim que puderem. E uma província difícil.

A disciplina impedira Gadítico de continuar argumentando. Queria estar de volta à Accipiter, mas Paulo tinha insistido, até mesmo exigindo que quatro legionários ficassem permanentemente com ele, como guardas. Depois dessa ordem, Gadítico quase voltou ao navio, mas alguns dos homens mais velhos tinham se apresentado como voluntários, preferindo o serviço mais fácil à caça aos piratas.

- Não se esqueçam do que aconteceu com os últimos guardas dele - alertou Gadítico, mas era uma ameaça vazia, como eles bem sabiam depois da pira dos rebeldes ter levantado um jorro de fumaça preta a uma altura suficiente para ser vista a quilômetros de distância. O serviço iria levá-los com segurança até a aposentadoria.

Gadítico xingou baixinho. Ficaria com grande carência de homens bons durante o próximo ano. O velho que César tinha trazido a bordo acabou se mostrando bom com os ferimentos, de modo que alguns dos feridos poderiam ser salvos de uma licença prematura e da pobreza. Mas ele não era capaz de milagres, e alguns dos aleijados seriam deixados no próximo porto, para esperar um lento navio mercante que os levasse de volta a Roma. A centúria da galera tinha perdido um terço de seus homens em Mitilene. Teriam de ser dadas promoções, mas eles não podiam substituir vinte e sete mortos na luta, quatorze deles competentes hastati que tinham servido na Accipiter por mais de dez anos.

Gadítico suspirou. Homens bons perdidos para a fumaça por causa de alguns jovens cabeças-quentes que queriam estar à altura das histórias contadas pelos avós. Podia imaginar os discursos que eles tinham feito, enquanto a verdade era que Roma lhes havia trazido a civilização e um vislumbre do que os homens podiam alcançar. Eles lutavam apenas pelo direito de viver em cabanas de lama e coçar o traseiro, mas não sabiam disso. Gadítico não esperava que se sentissem gratos, mas exigia respeito, e a bagunça mal planejada no forte havia mostrado muito pouco disso. Oitenta e nove corpos de inimigos tinham sido queimados ao amanhecer. Os mortos romanos foram carregados de volta ao navio para um funeral no mar.

Foi com esses pensamentos irados que ele entrou marchando na cidade de Mitilene com sua melhor armadura, tendo atrás o resto de sua centúria depauperada brilhando. A chuva ameaçava sob a forma de nuvens escuras e pesadas, e o ar quente e sufocante combinava perfeitamente com seu humor.

Júlio marchava rigidamente, depois da surra que tinha levado na noite passada. Espantava-o perceber quantos cortes e arranhões pequenos tinha sofrido sem notar. Seu peito estava roxo em todo o lado esquerdo, e um calombo amarelo e brilhante se projetava de uma das costelas. Pediria a Caberá para dar uma olhada quando voltasse àAccipiter, mas não achava que estivesse quebrada.

Discordava de Gadítico quanto à necessidade da marcha. O centurião estava satisfeito em acabar com a rebelião e ir embora, deixando outro para cuidar da política, mas era importante lembrar à cidade que acima de tudo o governador não deveria ser tocado.

Olhou para Paulo, percebendo as mãos com grossas bandagens e o rosto ainda inchado. Júlio o admirou por se recusar a ser carregado numa liteira, decidido a se mostrar inabalável depois da tortura. Era justo que quisesse voltar à cidade na frente de um exército. Havia homens como ele em todas as terras romanas. Tinham pouco apoio do Senado e eram como pequenos reis que mesmo assim dependiam da boa vontade dos moradores locais para fazer com que as coisas acontecessem como queriam. Quando essa boa vontade falhava, Júlio sabia que mil coisinhas podiam tornar a vida muito difícil. Lenha ou comida não era entregue, a não ser na ponta dos gládios. Estradas eram danificadas e propriedades eram incendiadas. Os únicos motivos para usar os guardas eram as irritações constantes, como carrapichos grudados na pele.

Pelo que falava da vida, Paulo parecia gostar dos desafios. Júlio ficara surpreso ao ver que o principal sentimento do governador não era raiva pelo que sofrera, mas sim a tristeza porque pessoas em quem confiava tinham se voltado contra ele. Júlio imaginou se no futuro ele continuaria tão confiante.

Os legionários marcharam pela cidade, ignorando os olhares e o movimento súbito quando mães tiravam as crianças que estavam brincando no caminho. A maioria dos romanos sentia as dores da noite anterior e ficou satisfeita ao chegar à casa do governador, no centro. Eles formaram um quadrado na frente do prédio e Júlio viu um dos benefícios do cargo de Paulo na beleza das paredes brancas e dos lagos ornamentais. Era um pedaço de Roma transplantado para o campo na Grécia.

Paulo riu alto quando seus filhos vieram correndo recebê-lo. Abaixou-se sobre um dos joelhos, deixando que o abraçassem enquanto mantinha longe as mãos quebradas. Sua mulher também saiu, e Júlio pôde ver lágrimas nos olhos dela, mesmo estando na segunda fila. Homem de sorte.

- Tesserário César, adiante-se - ordenou Gadítico, espantando Júlio. Júlio moveu-se rapidamente e fez uma saudação. Gadítico o olhou de cima a baixo, com a expressão ilegível.

Paulo desapareceu em sua casa com a família, e todas as fileiras o esperaram pacientemente, felizes em estar parados ao sol da tarde sem ter o que fazer.

A mente de Júlio borbulhava, imaginando por que teria recebido a ordem de se destacar sozinho, e como Suetônio iria se sentir se fosse uma promoção. O governador não podia ordenar que Gadítico lhe desse um novo posto, mas a recomendação dele provavelmente não seria ignorada.

Finalmente Paulo voltou, com a mulher ao lado. Ele encheu os pulmões para falar aos homens, e sua voz soou calorosa e forte.

- Vocês me devolveram ao meu cargo e à minha família. Roma lhes agradece pelo serviço. O centurião Gadítico concordou com que façam uma refeição aqui. Meus serviçais estão preparando a melhor comida e bebida para todos.

Ele parou, e seu olhar pousou em Júlio.

- Ontem à noite eu testemunhei grande bravura, em particular da parte de um homem que arriscou a vida para salvar a minha. A ele eu dou a coroa de honra, para marcar sua coragem. Roma tem filhos corajosos, e hoje estou aqui de pé para provar isso.

Sua mulher se adiantou e levantou um aro de folhas verdes de carvalho. Júlio relaxou e, quando Gadítico assentiu, tirou o elmo para aceitá-la. Ficou ruborizado e subitamente os homens aplaudiram, ainda que ele não tivesse certeza se era pela homenagem a um dos seus ou pela comida que viria.

- Obrigado, eu... - gaguejou ele.

A mulher de Paulo pôs a mão sobre a dele, e Júlio pôde ver onde a pintura no rosto havia coberto escuros círculos de preocupação sob os olhos.

- Você o trouxe de volta para mim.

Gadítico gritou a ordem para tirar os elmos e seguir o governador até onde o pessoal dele estava servindo a refeição. Reteve Júlio um momento e, quando tudo ficou quieto, pediu para ver a coroa. Júlio entregou-a rapidamente, tentando não gritar com a empolgação que sentia.

Gadítico virou nas mãos o círculo de folhas escuras.

- Você merece? - perguntou em voz baixa.

Júlio hesitou. Sabia que tinha arriscado a vida e que sozinho derrubara dois homens no cômodo mais baixo da fortaleza, mas era um prêmio que ele não havia esperado.

- Não mais do que muitos homens, senhor - respondeu. Gadítico olhou-o atentamente, depois assentiu, satisfeito.

- É uma boa frase, mas eu diria que fiquei satisfeito quando o vi flanquear os desgraçados ontem à noite. - Ele riu diante da expressão de Júlio que mudava rapidamente, passando do deleite ao embaraço. - Vai usar embaixo do elmo ou empoleirada em cima?

Júlio ficou sem jeito.

- Eu... eu não pensei nisso. Acho que vou deixar no navio se houver ação.

- Tem certeza? Acho que os piratas vão fugir com medo de um homem com folhas na cabeça.

Júlio ficou ruborizado de novo, e Gadítico riu, dando-lhe um tapa no ombro.

- Só estou brincando com você, garoto. É uma homenagem rara. Terei de promovê-lo, claro. Não posso deixar um oficial de baixa patente com uma coroa de honra. Vou lhe dar uma vintena para comandar.

- Obrigado, senhor-respondeu Júlio, ficando ainda mais animado. Gadítico passou as folhas entre os dedos, pensativamente.

- Terá de usar isso na cidade em algum momento. Vão esperar que a use pelo menos uma vez.

- Por quê, senhor? Não conheço o ritual.

- Pelo menos é o que eu faria. As leis de Roma, garoto. Se aparecer num evento público com uma coroa de honra, todo mundo deve ficar de pé. Todo mundo, até os senadores.

O centurião riu sozinho.

- Que visão seria! Venha quando estiver acomodado. Vou me certificar de que guardem um pouco de vinho para você. Parece que está precisando de uma bebida.

 

À luz cinzenta do início da noite, Brutus desceu pela lateral do prédio, arrancando boa parte das rosas trepadeiras. Seu pé se prendeu num emaranhado de espinhos na parte de baixo e ele caiu chapado, com a espada deslizando barulhenta nas pedras. Encolhendo-se, livrou-se antes de ficar de pé. Dava para ouvir outro rugido de fúria em cima, enquanto o pai de Lívia se aproximava da janela e olhava furioso o intruso. Brutus olhou-o enquanto repuxava a bracae, soltando um gemido quando o pano fez cravar um espinho em sua coxa.

O pai de Lívia parecia um touro, carregava um machado pesado como se fosse uma machadinha e obviamente estava pensando se deveria acertar Brutus com um bom lançamento.

- Eu acho você, moleque! - gritou o homem para ele, praticamente espumando de fúria através da barba.

Brutus recuou para longe e tentou pegar o gládio caído sem tirar os olhos do grego de rosto vermelho. Puxou a bracae com uma das mãos e achou o cabo do gládio com a outra, desejando ter ficado de sandálias durante a embolação atlética com Lívia. Se o pai dela estava tentando proteger sua inocência, estava uns três anos atrasado, pensou Brutus. Pensou em compartilhar a informação com o outro, mas ela tinha sido justa com o jovem romano, ainda que realmente devesse ter verificado a casa antes de arrastá-lo para o quarto enquanto ele passava. Como ela estivera nua, tinha parecido educado da parte dele remover as sandálias antes de caírem na cama, ainda que essa cortesia tornasse um tanto problemática a fuga pela cidade sonolenta.

Sem dúvida, Rênio ainda estava roncando no quarto pelo qual Brutus pagara. Depois de cinco dias dormindo ao ar livre, os dois ficaram bastante satisfeitos em interromper a jornada com a chance de um banho quente e água quente para fazer a barba, mas parecia que apenas Rênio desfrutaria desses confortos enquanto Brutus ia para as colinas.

Brutus mudou o apoio de um pé para o outro, desconfortavelmente, enquanto avaliava as opções. Xingou Rênio baixinho, em parte por dormir durante uma crise, mas principalmente por convencê-lo de que um cavalo comeria todas as suas economias quando tivessem chegado ao litoral e encontrado um transporte para Roma. Rênio tinha dito que um legionário podia marchar aquela distância sem problemas, mas até mesmo um pônei magro serviria para uma fuga rápida.

A barba furiosa desapareceu acima, e, enquanto Brutus hesitava, Lívia apareceu na janela, com a pele ainda vermelha das atividades dos dois. Era uma cor boa e saudável, notou Brutus preguiçosamente, apreciando o modo como ela apoiava os seios no peitoril.

- Vá embora! - gritou ela, fingindo um sussurro. - Ele está descendo atrás de você!

- Então jogue minhas sandálias. Não posso correr assim - sibilou ele de volta.

Depois de um instante os calçados vieram voando para ele, e Brutus os amarrou num frenesi, já ouvindo os passos pesados do pai da garota chegando à porta.

Brutus ouviu a exclamação satisfeita do homem ao achá-lo ainda no pátio. Sem olhar para trás, saiu correndo, escorregando quando as tachas de ferro das solas batiam nas pedras. Atrás, o pai de Lívia gritava, animando as pessoas da cidade a que o segurassem, o que pareceu causar uma agitação entre os moradores que cuidavam de seus afazeres. Brutus corria grunhindo. Já havia gritos de resposta e dava para escutar que vários outros tinham se juntado à perseguição.

Febrilmente, tentou se lembrar das ruas pelas quais tinha andado há apenas algumas horas, agradecido por encontrar qualquer lugar com quartos baratos e comida quente. O pai de Lívia tinha parecido bastante agradável, mas não estava carregando o machado quando mostrou seu quarto mais barato aos dois homens cansados.

Brutus trombou contra uma parede ao virar uma esquina a toda velocidade, desviando-se de uma carroça e empurrando para longe as mãos do dono que tentaram agarrá-lo. Por onde sair? A cidade parecia um labirinto. Pegou ruas à esquerda e à direita sem ousar olhar para trás, com a respiração raspando na garganta. Até agora Lívia tinha valido a encrenca, mas, se ele fosse morto, ela não era a mulher que Brutus escolheria como a última de sua vida. Esperava que o pai levasse a fúria para Rênio e desejasse sorte aos dois.

O beco por onde corria chegou a um ponto sem saída, depois de uma esquina. Um gato se afastou correndo dele quando Brutus parou perto do muro de pedras mais próximo e se preparou para arriscar uma olhada para trás. Não havia para onde correr, mas talvez ele os tivesse despistado por um momento. Forçou os ouvidos antes de se inclinar na direção da esquina, sem ouvir nada mais ameaçador do que as reclamações do gato desaparecendo à distância.

Espiou com um dos olhos para o outro lado da quina e recuou imediatamente. O beco parecia cheio de homens, todos vindo em sua direção. Brutus se agachou e arriscou uma segunda olhada para eles, esperando não ser visto tão abaixado.

Uma voz gritou, reconhecendo-o, e ele gemeu de novo, enquanto recuava. Tinha aprendido um pouco de grego na época em que estava na Punho de Bronze, mas não o suficiente para sair daquela situação.

Tomou a decisão e se levantou, apertando o punho da espada, a outra mão baixando até a bainha para poder tirá-la rapidamente. Era uma bela espada que ele ganhara num torneio da legião, e teria de mostrar àqueles camponeses que a merecera. Puxou sua bracae mais uma vez e respirou fundo antes de sair no beco para encará-los.

Eram cinco, os rostos cheios de entusiasmo de crianças enquanto vinham correndo. Brutus tirou a espada da bainha com um floreio, para o caso de eles terem alguma dúvida quanto às suas intenções. Com grande solenidade, baixou a ponta na direção dos homens e eles pararam como se fossem um só. O momento se estendeu, e Brutus pensava furiosamente. O pai de Lívia ainda não tinha aparecido, e poderia haver uma chance de se livrar dos homens mais jovens antes dele chegar para encorajá-los. Eles poderiam estar abertos à persuasão e até mesmo ao suborno.

O maior deles se adiantou, tendo o cuidado de permanecer fora do alcance da espada firme na mão de Brutus.

- Lívia é minha mulher - disse num latim claro. Brutus piscou para ele.

- Ela sabe disso?

O rosto do homem ficou vermelho de fúria e ele sacou uma adaga do cinto. Os outros seguiram seu exemplo, revelando porretes e lâminas que balançavam para Brutus enquanto o chamavam para perto.

Antes que pudessem atacá-lo ao mesmo tempo, Brutus falou rapidamente, tentando parecer calmo e inabalável com a ameaça.

- Eu poderia matar todos vocês, mas só quero ter permissão de ir em paz. Sou campeão de uma legião com esta bela espada, e nenhum de vocês vai sair vivo deste beco se tomarem a decisão errada.

Quatro deles ouviram com rostos inexpressivos, até que o marido de Lívia traduziu o discurso. Brutus aguardou pacientemente, esperando uma reação favorável. Em vez disso eles deram risinhos e começaram a chegar mais perto. Brutus deu um passo atrás.

- Lívia é uma garota saudável, com apetites normais - disse ele. - Ela me seduziu, e não o contrário. Não vale a pena matar por causa disso.

Esperou junto com os outros o início da tradução, mas o marido permaneceu quieto. Então disse alguma coisa em grego que Brutus praticamente não entendeu. Parte, sem dúvida, era certamente para tentar mantê-lo vivo, coisa que aprovava, mas a última parte o caracterizava como alguém "dado às mulheres", o que parecia nitidamente desagradável.

O marido de Lívia deu um riso de desprezo para Brutus.

- Para nós, pegar um criminoso significa um festival. Você será o meio... o coração dele.

Enquanto Brutus começava a pensar numa resposta, eles correram em sua direção com uma saraivada de golpes e, mesmo ele tendo cortado um com o gládio, um porrete veio assobiando por trás de seu ouvido e o deixou inconsciente.

 

Acordou ouvindo um estalo vagaroso e com uma sensação de tontura. Enquanto a consciência voltava, ele manteve os olhos fechados, tentando sentir onde se encontrava sem deixar que algum vigia soubesse que estava alerta. Havia uma brisa tocando uma boa parte de seu corpo, e ele teve a suspeita súbita de que suas roupas tinham sido retiradas. Não poderia haver explicação razoável para isso, e seus olhos se abriram rapidamente apesar das intenções.

Estava pendurado de cabeça para baixo, suspenso pelos pés num cadafalso de madeira no centro da cidade. Um olhar sub-reptício para cima confirmou o fato de que estava nu. Tudo doía, e uma lembrança de ter ficado pendurado numa árvore quando era menino voltou, fazendo-o estremecer.

Estava escuro, e em algum lugar ali perto dava para ouvir sons de festa. Engoliu dolorosamente em seco ao pensar que fazia parte de algum ritual pagão e tentou lutar contra as cordas que o prendiam. O sangue golpeou em sua cabeça devido ao esforço, mas os nós não cediam.

Seu movimento o fez girar num círculo lento, e ele pôde ver toda a praça, a intervalos. Cada casa estava iluminada numa demonstração de vida maior do que o lugarzinho monótono que ele havia imaginado ao chegar. Sem dúvida, todos estavam cozinhando cabeças de porco e soprando a poeira dos vinhos feitos em casa, pensou desanimado.

Por um momento desesperou. Sua armadura estava no quarto com Rênio e a espada havia desaparecido. Não tinha sandálias, e parecia claro que suas economias estavam financiando a própria comemoração que seria o seu fim. Mesmo que pudesse escapar, estava nu e sem nenhum dinheiro numa terra estranha. Xingou Rênio com algum entusiasmo.

- Depois de um sono revigorante, dei uma boa espreguiçada e olhei pela janela - disse Rênio perto do seu ouvido. Brutus teve de esperar até que girou para encará-lo.

O velho gladiador estava barbeado, limpo e claramente divertido.

- Sem dúvida, falei a mim mesmo, sem dúvida aquela figura pendurada pelos pés não pode ser o mesmo jovem soldado popular com quem eu vim, não é?

- Olha, tenho certeza de que você vai contar uma história muito divertida para os seus velhos companheiros, mas eu agradeceria se parasse de ensaiar e simplesmente cortasse esta corda antes que alguém impeça.

As cordas que estalavam levaram Brutus para o outro lado de novo. Sem uma palavra de aviso, Rênio cortou-as e deixou Brutus cair no chão. Gritos soaram em volta, e Brutus começou a se levantar, apoiando-se no cadafalso.

- Minhas pernas não suportam o meu peso! - falou, tentando esfregar uma de cada vez, com energia desesperada.

Rênio farejou, olhando em volta.

- É melhor que suportem. Só com um braço não posso carregar você e mantê-los longe ao mesmo tempo. Continue esfregando. Talvez a gente tenha de blefar.

- Se tivéssemos um cavalo, você poderia me amarrar à sela - retrucou Brutus, esfregando furiosamente.

Rênio deu de ombros.

- Não temos tempo para isso. Sua armadura está nesta sacola. Eles trouxeram suas coisas de volta à pensão e eu as peguei na saída. Tome sua espada e se encoste no cadafalso. Aí vêm eles.

Rênio entregou a espada e, apesar de todo o seu desamparo por causa da nudez, Brutus sentiu algum conforto segurando o punho familiar.

A multidão se reuniu rapidamente, com o pai de Lívia na frente, segurando o machado com as duas mãos. Ele retesou os ombros enormemente poderosos e sacudiu a lâmina na direção de Rênio.

- Você veio com aquele que atacou minha filha. Eu lhe dou uma chance de pegar suas coisas e ir embora. Ele fica.

Rênio ficou perigosamente imóvel, depois deu um passo firme para a frente, enfiando o gládio no peito do homem até a ponta se projetar das costas. Puxou de volta, e o outro caiu de cara nas pedras, com o machado fazendo barulho.

- Quem mais diz que ele fica? - perguntou Rênio, olhando a multidão em volta. Eles haviam se imobilizado diante da morte súbita, e não houve resposta. Rênio assentiu sério, falando devagar e claramente: - Ninguém foi atacado. Pelos barulhos que eu ouvi, a garota estava tão entusiasmada quanto meu amigo idiota.

Ele ignorou o som ofegante e rápido de Brutus às suas costas, mantendo o olhar varrendo a multidão. Eles mal o ouviam. O gladiador tinha matado sem mais preâmbulos, e isso mantinha as pessoas imóveis.

- Está preparado para ir? - murmurou Rênio.

Brutus testou as pernas cautelosamente, encolhendo-se diante do fogo da circulação que voltava. Começou a colocar as roupas o mais rapidamente que podia, com a armadura fazendo barulho enquanto ele revistava a sacola com uma das mãos.

- Assim que eu estiver vestido.

Ele sabia que aquele momento não iria durar, mas mesmo assim deu um pulo quando Lívia veio abrindo caminho pela multidão, com a voz aguda.

- O que vocês estão fazendo aí? - gritou ela para a multidão. - Olhem o meu pai! Quem vai matar os assassinos dele?

Atrás das costas dela, Brutus se levantou com a espada em riste. Os sorrisos doces dos quais se lembrava tinham se retorcido em ódio enquanto ela gritava ofensas contra o seu próprio povo. Nenhum deles a encarava, com o desejo de vingança esfriado pela figura esparramada aos seus pés.

Na borda da multidão o marido dela lhe deu as costas e se afastou para o escuro. Quando ela viu quem era, virou-se para Rênio, dando socos no rosto e no corpo dele. O braço único do velho segurava a espada, e, enquanto Brutus via os músculos se retesarem, estendeu a mão e a afastou.

- Vá para casa - falou rispidamente.

Em vez disso, as mãos dela foram na direção dos seus olhos, e Brutus a empurrou com força. Ela caiu no chão perto do corpo do pai e se agarrou a ele, chorando.

Rênio e Brutus olharam um para o outro e depois para a multidão que ia ficando rala.

- Deixe-a - disse Rênio.

Juntos, os dois atravessaram a praça e seguiram em silêncio pela cidade. Pareceram se passar horas antes de chegarem ao limite das casas e olhar para um vale que ia até um rio à distância.

- Devemos nos apressar. De manhã eles vão estar querendo sangue e virão atrás de nós - disse Rênio, finalmente guardando a espada na bainha.

- Você realmente a ouviu... - perguntou Brutus, desviando o olhar.

- Vocês me acordaram com os seus grunhidos, sim. Essa sua mania pode acabar com a gente, se eles mandarem rastreadores de verdade. Na casa do pai dela!

Brutus fez uma carranca para o companheiro.

- Você matou o homem, não esqueça - murmurou.

- E você ainda estaria lá se eu não tivesse feito isso. Agora marche. Precisamos cobrir a maior distância possível antes do amanhecer. E da próxima vez em que uma garota bonita olhar para você, comece a correr. Elas dão mais encrenca do que valem.

Discordando em silêncio, os dois começaram a descer o morro.

 

Não está usando sua Coroa? Ouvi dizer que dormiu com ela - zombou Suetônio quando Júlio chegou para o turno de vigia.

Júlio o ignorou, sabendo que uma resposta levaria a outra troca de palavras que traria os dois jovens oficiais para mais perto da hostilidade aberta. Por enquanto, pelo menos, Suetônio fingia cortesia quando os outros homens estavam suficientemente perto para escutar, mas quando estavam de vigia sozinhos, em madrugadas intercaladas, sua amargura vinha à superfície. No primeiro dia no mar depois de deixarem a ilha, um dos homens tinha amarrado um círculo de folhas na ponta do mastro da Accipiter, como se todo o navio tivesse merecido a honra. Um bom número dos legionários havia esperado para observar quando Júlio visse aquilo, e seu riso deliciado provocou uma comemoração da parte deles. Suetônio sorriu com os outros, mas a aversão em seus olhos tinha se aprofundado ainda mais a partir desse momento.

Júlio mantinha os olhos no mar e na distante costa da África, mudando o equilíbrio ligeiramente com os movimentos da Accipiter enquanto a galera balançava nas ondas. Apesar da observação zombeteira de Suetônio, ele não tinha usado a coroa desde que deixara a cidade de Mitilene, a não ser para experimentá-la uma ou duas vezes na privacidade do seu minúsculo catre sob o convés. Agora as folhas de carvalho tinham ficado quebradiças e escuras, mas isso não importava. Ele recebera o direito de usá-la e mandaria fazer uma nova quando visse Roma da próxima vez.

Era fácil ignorar Suetônio, com o devaneio de entrar no Circus Maximus num dia de corridas e ver milhares de romanos se levantarem, primeiro apenas ao vê-lo, depois em ondas se estendendo cada vez mais até que toda a multidão estivesse de pé. Deu um ligeiro sorriso consigo mesmo, e Suetônio fungou, irritado.

Mesmo no silêncio da madrugada os remos subiam e desciam ritmica-mente abaixo deles, enquanto a Accipiter se espojava nas ondas. Agora Júlio sabia que ela não era um barco rápido, tendo visto dois navios piratas desaparecerem no horizonte com aparente facilidade nos meses que se passaram desde Mitilene. O casco raso não cortava bem a água, e mesmo com os dois remos que serviam de leme a Accipiter demorava a mudar de direção. Sua única força era a súbita aceleração com o impulso dos remos, mas mesmo com duzentos escravos a melhor velocidade não era maior do que uma caminhada rápida em terra. Gadítico parecia imperturbável com a incapacidade de se aproximarem do inimigo. Bastava espantá-los das cidades litorâneas e das principais rotas de comércio, mas não era isso que Júlio tinha esperado ao entrar para o navio. Tivera visões de caçada rápida e implacável, e era irritante perceber que a habilidade romana em terra não se estendia aos mares.

Olhou por cima da amurada, para onde os remos duplos subiam e mergulhavam em sincronia, abrindo caminho nas águas calmas. Imaginou como podiam manejar as pás enormes com tanta firmeza por horas e horas sem se exaurir, mesmo com três escravos em cada remo. Ele havia descido ao porão dos remadores algumas vezes, no cumprimento de suas tarefas, mas o lugar era apinhado e imundo. O porão fedia a excrementos que eram lavados duas vezes por dia com baldes de água do mar, e o cheiro revirou seu estômago. Os escravos recebiam mais comida do que os legionários, dizia-se, mas ao olhar a subida e a descida dos remos na água ele podia ver por que isso era necessário.

No grande convés o calor sufocante do litoral africano era cortado por uma brisa constante enquanto a Accipiter lutava contra um vento de oeste. Pelo menos de onde estava, Júlio podia sentir que a Accipiter era um navio projetado para a batalha, se não para a velocidade. O convés aberto era livre de qualquer obstrução, um vasto espaço de madeira branqueada pelo sol durante décadas. Somente a extremidade traseira abrigava uma estrutura elevada, com cabines para Gadítico e Prax. O resto da centúria dormia em alojamentos apinhados embaixo, com o equipamento guardado na armaria, onde poderia ser apanhado rapidamente. Exercícios regulares faziam com que eles pudessem ir do sono à prontidão para a batalha em menos de uma virada da ampulheta. Era uma tripulação bem disciplinada, pensou Júlio. Se pudessem alcançar outro navio, seriam mortais.

- Oficial no convés! - gritou Suetônio de repente perto de seu ouvido, e Júlio ficou em posição de sentido com um susto.

Gadítico tinha escolhido um homem muito mais velho como seu optio, e Júlio achou que Prax não teria mais de um ou dois anos até se aposentar. Tinha o início de uma barriga mole que precisava ser apertada com o cinto todas as manhãs, mas era um oficial bastante decente e notara a tensão entre Suetônio e Júlio nas primeiras semanas a bordo. Foi Prax quem arranjara para que eles fizessem juntos a vigília da madrugada, por algum motivo que optou por não lhes contar.

Ele assentiu amigavelmente para os dois enquanto caminhava pelo convés longo, em sua inspeção matinal. Verificou cada corda que corria até a vela quadrada acima e se abaixou apoiado num dos joelhos para garantir que as catapultas do convés estivessem solidamente amarradas e imóveis. Somente depois de terminar a inspeção cuidadosa aproximou-se dos jovens oficiais, respondendo sem cerimônia à saudação deles. Examinou o horizonte e sorriu consigo mesmo, coçando satisfeito o queixo recém- barbeado.

- Quatro... não, cinco velas - disse cheio de animação. - O comércio das nações... Mas hoje não há muito vento para mover quem conta apenas com ele.

Com o passar dos meses Júlio tinha percebido que a aparência afável escondia uma mente que sabia de tudo o que acontecia na Accipiter, acima e abaixo do convés, e em geral seu conselho era valioso depois de o interlocutor esperar o início casual da conversa. Suetônio o achava um idiota, mas parecia estar ouvindo com interesse ávido, uma postura que adotava para com todos os oficiais superiores.

Prax continuou, assentindo consigo mesmo:

- Vamos precisar dos remos para chegar a Tapso, mas depois será uma subida fácil pelo litoral. Depois de deixar os baús do pagamento, devemos chegar à Sicília em algumas semanas, se não tivermos de expulsar os piratas de nossas águas enquanto isso. Um belo lugar, a Sicília.

Júlio assentiu, sentindo-se confortável com Prax de um modo que seria impossível com o capitão, apesar do momento de familiaridade depois de Mitilene. Prax não estivera presente na invasão da fortaleza, mas parecia não ter se incomodado. Júlio supunha que ele se sentisse feliz com o serviço leve na Accipiter enquanto esperava ser aposentado e deixado numa legião perto de Roma, para recolher seu belo pagamento. Esse era um dos benefícios de perseguir piratas com Gadítico. Os setenta e cinco denários que os legionários recebiam por mês iam se acumulando sem muita oportunidade de gastar. Mesmo depois das despesas com equipamentos, do dízimo para as viúvas e do fundo para enterros, haveria uma bela quantia para a maioria dos homens quando chegasse o tempo. Se não tivessem perdido tudo no jogo, claro.

- Senhor, por que usamos navios que não conseguem pegar o inimigo? Poderíamos limpar o Maré Internum em menos de um ano se os obrigássemos a chegar perto de nós.

Prax sorriu, aparentemente deliciado com a pergunta.

- Perto de nós? Ah, isso acontece, mas eles são melhores marinheiros, você sabe. Há toda a chance de nos abalroarem e nos afundarem antes que possamos abordá-los com nossos homens. Claro, se pudermos colocar os legionários no convés deles, a luta está vencida.

Ele soltou o ar lentamente com as bochechas estufadas, enquanto tentava explicar.

- Precisamos de mais do que navios mais leves e mais rápidos, se bem que Roma não vá mandar verbas para fazer quilhas para eles enquanto eu viver, e sim de uma tripulação profissional nos remos. Aquelas três fileiras verticais que eles usam com tanta precisão, você pode imaginar o que nossos escravos musculosos fariam com elas? Iriam se tornar uma confusão de lascas na primeira vez em que tentássemos chegar à velocidade máxima. Como estamos, não precisamos treinar especialistas, e segundo o ponto de vista do Senado nós não precisamos pagar salários para eles. Basta o dinheiro para comprar os escravos, e o navio praticamente se mantém sozinho depois disso. E nós afundamos alguns deles, se bem que sempre parece haver mais.

- É só que parece... frustrante às vezes.

Júlio queria dizer que era loucura a nação mais poderosa do mundo ser deixada para trás por metade dos navios dos oceanos, mas Prax mantinha uma reserva que impediu o comentário, apesar da amabilidade. Havia uma linha que não devia ser atravessada por um subalterno, ainda que fosse menos óbvia do que com alguns outros.

- Nós somos de terra, senhores, se bem que alguns, como eu, acabem amando o mar. O Senado vê nossos navios como transporte para levar os soldados à luta em outras terras, como fizemos em Mitilene. Talvez eles percebam que é igualmente importante dominar as águas, mas, como eu disse, não enquanto eu estiver vivo. Enquanto isso, aAccipiter é meio pesada e lenta, mas eu também, e ela tem o dobro da minha idade.

Suetônio riu obedientemente, fazendo Júlio se encolher, mas Prax pareceu não notar. Júlio sentiu um sopro de lembrança diante das palavras de Prax. Lembrou-se de que Tubruk tinha dito alguma coisa semelhante, fazendo-o segurar a terra preta da propriedade no campo e pensar nas gerações que a haviam alimentado com o sangue. Aquilo parecia estar a uma eternidade de distância, depois de tantas experiências. Seu pai estava vivo na época, e Mário ainda era um cônsul com um futuro luminoso. Imaginou se alguém estaria cuidando da sepultura deles. Por um momento, as negras correntes de preocupação que sempre se chocavam contra os seus pensamentos vieram à superfície. Ele se tranqüilizou, como sempre, pensando que Tubruk cuidaria de Cornélia e de sua mãe. Não tinha por nenhum outro a metade da confiança que sentia por aquele homem.

Prax se enrijeceu ligeiramente enquanto seu olhar varria a costa. A expressão amável desapareceu, substituída pela dureza.

- Desça e toque o alerta, Suetônio. Quero todos os homens no convés, prontos para a ação em cinco minutos.

Arregalado, Suetônio fez uma saudação rápida e foi até a escada íngreme, descendo com agilidade. Júlio olhou para onde Prax apontava e apertou os olhos. No litoral, um lençol de fumaça preta subia no ar da manhã, quase sem ser movimentado pelo vento.

- Piratas, senhor? - perguntou rapidamente, adivinhando a resposta. Prax assentiu.

- Parece que atacaram um povoado. Talvez a gente possa pegá-los quando saírem de terra. Você pode ter sua chance de ficar "perto" deles, César.

A Accipiter se despiu para a ação. Cada equipamento solto foi guardado em segurança, as catapultas foram baixadas e as pedras e o óleo foram deixados prontos para ser disparados. Os legionários se juntaram rapidamente e um grupo escolhido montou o corvus, martelando pontas de ferro entre as seções até que a grande rampa de abordagem estivesse pronta, de pé, erguendo-se acima do convés. Quando as cordas que a prendiam fossem liberadas, ela cairia para fora, sobre as tábuas de um navio inimigo, cravando sua ponta de modo a ser impossível retirar. Os melhores guerreiros da Accipiter passariam por ela, caindo sobre os piratas o mais rápido possível para abrir espaço onde o resto poderia entrar a bordo. Era um negócio perigoso, mas depois de cada ação o direito de ir primeiro era disputado calorosamente e mudava de mãos em jogos de apostas que cresciam nos meses monótonos.

Abaixo, o mestre dos escravos pediu tempo dobrado, e os remos se moveram num ritmo mais urgente. Com o vento vindo do litoral, a vela foi baixada e muito bem rizada. Espadas foram verificadas em busca de rachaduras e amassados. Armaduras foram muito bem amarradas e uma empolgação crescente podia ser sentida a bordo, controlada pela disciplina estabelecida há muito.

A aldeia incendiada ficava na borda de uma baía natural, e eles viram o navio pirata saindo dos promontórios rochosos e chegando ao mar aberto. Gadítico ordenou velocidade total de ataque para cortar ao máximo possível o espaço de manobra do inimigo. Apanhados como foram perto do litoral, havia pouco que o navio pirata poderia fazer para evitar a Accipiter avançando, e um grito subiu das gargantas dos romanos, com o tédio da lenta viagem de porto em porto desaparecendo à brisa revigorante.

Júlio observava atentamente o navio inimigo, pensando nas diferenças que Prax tinha explicado. Podia ver as colunas triplas de remos cortando o mar revolto num sincronismo perfeito, apesar dos tamanhos diferentes. A embarcação era mais alta e mais estreita do que a Accipiter e carregava uma comprida ponta de bronze se projetando da proa. Júlio sabia que ela podia atravessar até mesmo o pesado cedro dos navios romanos. Prax estava certo, o resultado nunca era garantido, mas desta vez não havia como escapar. Eles se aproximariam e baixariam o corvus solidamente, colocando os melhores lutadores do mundo no convés inimigo. Lamentou não ter conseguido garantir um lugar, mas todos tinham sido distribuídos antes do desembarque em Mitilene.

Perdido em pensamentos e ansiedade, a princípio não ouviu as mudanças súbitas nos gritos dos vigias. Quando ergueu os olhos, recuou um passo para longe da amurada sem sequer perceber. Havia outro navio saindo da baía enquanto eles passavam por ela, perseguindo o primeiro. Vinha direto para eles, e Júlio pôde ver o aríete emergir das ondas ao se chocar contra elas a toda velocidade, com a vela retesada se esforçando por ajudar os remadores. A ponta de bronze estava junto à linha d'água, e o convés estava cheio de homens armados, um número maior do que os rápidos navios piratas costumavam carregar. Ele viu num segundo que a fumaça tinha sido um engodo. Era uma armadilha, e eles tinham caído direitinho.

Gadítico não hesitou, percebendo a ameaça e dando ordens aos oficiais sem perder o ritmo.

- Aumentem a remada no terceiro toque! Eles vão passar direto por nós - gritou, e o homem do tambor, lá embaixo, bateu seu segundo ritmo mais rápido. A velocidade de abalroamento, acima dessa, só podia ser usada por pouco tempo, antes que os escravos começassem a desmoronar, mas mesmo o ritmo de ataque, ligeiramente menor, era um esforço brutal. Corações tinham se arrebentado antes, em batalhas, quando isso aconteceu. O cadáver podia atrapalhar os outros remadores e colocar todo um remo fora de seqüência.

O primeiro navio estava rapidamente se aproximando, e Júlio percebeu que eles tinham revertido os remos e estavam vindo para o ataque. Fora um ardil muito bem planejado para atrair o navio romano para perto da costa. Sem dúvida, os baús de prata no porão eram o prêmio, mas eles não seriam obtidos com facilidade.

- Disparar catapultas contra o primeiro navio quando eu ordenar... Agora! - gritou Gadítico, depois seguiu o caminho das pedras que voaram.

O vigia na proa gritou para as duas equipes:

- Dois pontos para baixo! - E as armas pesadas foram movidas rapidamente. Grampos fortes sob elas foram martelados através de buracos de encaixe e outros foram postos para sustentar o novo ângulo. Tudo isso ao mesmo tempo que os sarilhos eram enrolados para trás de novo, com legionários suando no esforço contra a tensão de uma corda de crina duas vezes mais grossa do que a coxa de um homem.

A embarcação pirata se aproximou enquanto as catapultas eram liberadas de novo. Desta vez as pedras porosas foram encharcadas em óleo e queimaram enquanto faziam uma curva na direção da trirreme inimiga, deixando trilhas de fumaça no ar. Acertaram o convés inimigo com estalos que puderam ser ouvidos na Accipiter, e os legionários que trabalhavam com as catapultas comemoraram enquanto as enrolavam de novo.

A segunda trirreme vinha rápido na direção deles, e Júlio tinha certeza de que o aríete se cravaria nos últimos metros da popa da Accipiter, deixando-os incapazes de se mover ou mesmo de contra-atacar abordando. Eles seriam apanhados por saraivadas de flechas, imóveis e desamparados. Quando esse pensamento o atacou, ele mandou seus homens levantar os escudos. Ao abordar, os escudos mais atrapalhavam do que ajudavam, mas, com a Accipiter apanhada entre dois navios que se moviam num espaço pequeno, eles seriam desesperadamente necessários.

O navio com o aríete, sozinho, ficaria para trás num mar livre, mas, obstruída na frente pela primeira trirreme, a Accipiter tinha de se desviar, com ordem para todos os remos de um dos lados atuarem em reverso. As remadas eram desajeitadas, mas isso era mais rápido do que simplesmente levantar os remos enquanto o outro lado fazia a Accipiter girar. Isso diminuiu a velocidade, mas Gadítico tinha visto a necessidade de pegar a linha externa, caso contrário seria apanhado entre os dois navios enquanto o segundo chegava ao lado.

A Accipiter passou quase raspando na proa da primeira trirreme, estremecendo enquanto a velocidade diminuía. Gadítico mandou o mestre dos escravos se preparar para o movimento, e lá embaixo os remos foram puxados para dentro rapidamente. Os profissionais da trirreme não foram suficientemente rápidos. Enquanto passava, a Accipiter partiu os remos em grupos de três, cada um esmagando um homem numa polpa sangrenta, no coração do barco inimigo.

Antes que o navio romano tivesse percorrido menos da metade do comprimento dos remos da trirreme, o aríete de bronze da segunda se chocou contra a Accipiter com um rugido de tábuas quebradas. Todo o navio gemeu com o impacto, como um animal vivo. Os escravos abaixo começaram a gritar num apavorado coro de terror. Todos estavam acorrentados aos seus bancos e, se a Accipiter afundasse, eles afundariam também.

Uma chuva de flechas caiu sobre o convés da Accipiter, mas nisso, pelo menos, havia a evidência da falta de disciplina militar. Júlio agradeceu a sorte de eles não terem o treinamento de disparar saraivadas, enquanto se abaixava sob uma flecha que passou assobiando sobre sua cabeça. Os escudos protegiam os homens da maioria dos tiros, e então o pesado corvus estava tombando para o lado, e foi como se parasse no ar por um momento quando as cordas foram cortadas, depois bateu no convés inimigo, com a ponta segurando-o com uma solidez igual à da vingança que viria.

Os primeiros legionários correram pela prancha, caindo sobre os que esperavam, gritando desafios contra eles. A vantagem usual dos números tinha se perdido contra qualquer um dos dois navios atacantes. Ambos pareciam cheios de guerreiros cujas armaduras e armas eram uma mistura de velho e novo, de todos os portos litorâneos.

Júlio encontrou Caberá ao seu lado, sem o sorriso usual. O velho tinha apanhado uma adaga e um escudo, mas além disso só usava seu manto de sempre, que Gadítico tinha permitido desde que fosse verificado uma vez por mês em busca de piolhos.

- Acho melhor ficar com vocês do que lá embaixo no escuro - murmurou Caberá enquanto percebia o caos que se desdobrava. Os dois se abaixaram de repente sob os rígidos escudos de madeira enquanto flechas passavam zumbindo. Uma flecha acertou perto da mão de Júlio, jogando-o para trás. Ele assobiou baixinho quando viu que a ponta farpada tinha atravessado a madeira.

Pesados ganchos de bronze bateram nas pranchas, trazendo cordas. Homens começaram a pular no convés da Accipiter, e o ruído da batalha estava a toda volta, espadas se chocando e gritos de triunfo e desespero.

Júlio viu Suetônio espalhar seus homens numa linha para enfrentar os atacantes. Rapidamente ordenou que sua vintena fosse ajudar, mas suspeitava de que eles correriam para lá mesmo sem ele, se tivesse sido lento. Não poderia haver rendição com a Accipiter presa, e cada homem sabia disso. Seus ataques foram ferozes, e os primeiros a passar pelo corvus limparam o convés adiante, ignorando ferimentos.

Caberá ficou com ele enquanto se adiantava para a luta, e Júlio sentiu conforto com sua presença, lembrando-se de outras batalhas a que tinham sobrevivido juntos. Talvez o velho curandeiro fosse um amuleto da sorte, pensou, e então estava diante do arco de lâminas inimigas e cortando-os sem pensar, o corpo reagindo nos ritmos que Rênio tinha ensinado em anos e anos de dureza.

Júlio se abaixou desviando-se de uma machadinha e empurrou o agressor quando este ficou desequilibrado, lançando-o esparramado aos pés de Peritas, que o pisou com força, sem pensar, na clássica reação do legionário no campo de batalha. Se ele estiver em pé, corte-o. Se estiver caído, pise.

O comvés estava apinhado de soldados empurrando-se para atravessar. Eram um alvo fácil para os arqueiros, e Júlio pôde ver um grupo destes encostado na amurada do outro lado da trirreme, atirando quando conseguiam ver através de seus colegas. Era um tiroteio devastador, de tão perto, e mais de uma dúzia de legionários caiu antes que os que estavam a bordo cortassem os arqueiros como se fossem hastes de trigo, num frenesi sangrento. Júlio assentiu com prazer. Sentia pelos arqueiros o mesmo ódio de todos os legionários que tinham conhecido o terror e a frustração diante dos ataques à distância.

A segunda trirreme tinha remado para trás e praticamente se livrado da Accipiter, depois de causar o dano. Gadítico olhou-a manobrar enquanto segurava unidades para repelir o ataque, quando viesse. A situação estava mudando rápido demais para poder ser prevista, mas ele sabia que os piratas não podiam esperar. A Accipiter podia estar prestes a ir para o fundo, mas isso demoraria minutos para começar, e os legionários ainda podiam abrir caminho para a outra trirreme, assumindo o comando. Não era impossível que pudessem conseguir algum tipo de vitória se tivessem uma hora e fossem deixados em paz, por isso ele sabia que haveria outro ataque assim que o segundo navio pudesse retirar o aríete e trazer seus guerreiros suficientemente perto para abordar. Xingou sozinho quando a última tábua estalou e a proa afiada se afastou da Accipiter, com as novas ordens para os remadores deles gritadas rapidamente no que parecia uma mistura de grego e latim precário.

Gadítico mandou sua reserva de soldados para o outro lado daAccipiter, achando que os inimigos iriam abordar do outro lado para dividir os defensores. Era uma ação sensata e servia ao seu propósito, ainda que, se a primeira trirreme pudesse ser tomada rapidamente, todos os seus homens poderiam ser trazidos para repelir o novo ataque e talvez nem tudo estivesse perdido. Gadítico apertou o punho do gládio com o que ele sabia que era uma indignação inútil. Será que deveria ter esperado que os piratas o recebessem honestamente e fossem despedaçados por seus legionários? Eles eram ladrões e mendigos, atrás da prata em seu porão, e era como se cães pequenos estivessem derrubando o lobo romano. Sua mão tremeu de emoção quando viu a fileira de remos ser puxada para dentro num dos lados e a segunda trirreme vir em direção ao seu amado navio. Ainda podia ouvir os gritos dos escravos embaixo, num constante coro de terror que lhe dava nos nervos.

Júlio levou um golpe na armadura e grunhiu enquanto revertia o movimento da espada através do rosto de um homem. Antes que pudesse assumir sua posição, um gigante barbudo veio para ele. Júlio sentiu um toque de medo ao ver a enorme altura e os ombros do guerreiro carregando uma pesada marreta de ferreiro manchada de vermelho, com sangue e cabelos. Os dentes do brutamontes estavam à mostra enquanto ele erguia a arma sobre o ombro num golpe de cima para baixo. Júlio recuou, levantando o braço para apará-lo, num reflexo. Sentiu os ossos do pulso estalarem com o impacto e gritou de dor.

Caberá entrou rapidamente entre eles e enfiou a adaga no pescoço do homem, mas o guerreiro apenas rugiu e girou a marreta para mandar para longe o frágil curandeiro. Júlio pegou sua adaga com a mão esquerda, tentando ignorar a agonia dos ossos que pareciam raspar uns contra os outros. Sentiu-se tonto e subitamente distanciado, mas o inimigo encrme ainda era perigoso, apesar de o sangue jorrar do ferimento na garganta.

A figura taurina cambaleou ereta e girou de novo numa dor cega. A marreta acertou solidamente a cabeça de Júlio com um estalo oco, e ele desmoronou. Sangue escorreu lentamente do seu nariz e dos ouvidos enquanto a luta continuava ao redor.

 

Brutus respirou fundo o ar da montanha enquanto olhava para os perseguidores que vinham atrás. Com a Grécia espalhada abaixo deles e as encostas cobertas por minúsculas flores roxas soltando um perfume intenso no vento, parecia errado estar lidando com morte e vingança. No entanto, como Rênio previra, o grupo de cavaleiros tinha pelo menos um bom rastreador, e nos últimos cinco dias eles tinham permanecido teimosamente na trilha dos dois, apesar das muitas tentativas de despistá-los.

Rênio sentou-se numa pedra coberta de musgo ali perto, com o cotoco de braço exposto, esfregando gordura na carne cicatrizada como fazia todas as manhãs. Brutus sentia culpa a cada vez que via aquilo, lembrando-se da luta no pátio da propriedade rural do pai de Júlio. Pensava ser capaz até mesmo de se lembrar do golpe que havia cortado os nervos do braço, mas depois de tanto tempo não havia como consertá-lo. Apesar de a carne ter formado uma almofada rosada de calo, surgiam trechos em carne viva que precisavam de ungüento. O único alívio verdadeiro acontecia quando Rênio era obrigado a tirar a cobertura de couro e deixar o ar tocando a pele. Mas ele odiava os olhares curiosos que isso atraía e enfiava a cobertura de volta sempre que podia.

- Eles estão chegando mais perto - disse Brutus. Não precisava explicar, já que os cinco homens que os seguiam estavam nos pensamentos dos dois desde que os viram pela primeira vez.

A beleza ensolarada das montanhas escondia um solo pobre que atraía poucos agricultores. Os únicos sinais de vida eram as pequenas figuras dos perseguidores subindo lentamente. Brutus sabia que os dois não poderiam ficar mais muito tempo adiante dos cavalos, e assim que chegassem às planícies abaixo os romanos seriam alcançados e mortos. Ambos estavam chegando próximo da exaustão, e o último pedaço de comida seca tinha acabado naquela manhã.

Brutus olhou a vegetação que se grudava à vida nas encostas ásperas, imaginando se alguma seria comestível. Tinha ouvido falar de soldados comendo os grilos que assombravam cada tufo de capim, mas não valia a pena pegar um de cada vez. Não poderiam passar outro dia sem comida, e seus odres estavam com menos da metade de água. Moedas de ouro ainda enchiam a bolsa de seu cinto, mas a cidade romana mais próxima estava a mais de cento e cinqüenta quilômetros de distância, do outro lado das planícies da Tessália, e eles nunca chegariam lá. O futuro parecia sombrio, a não ser que Rênio tivesse alguma idéia, mas o velho gladiador estava em silêncio, aparentemente contente em passar uma hora esfregando o cotoco. Enquanto Brutus olhava, Rênio pegou uma das flores escuras e espremeu o suco na almofada peluda que pendia de seu ombro. O velho gladiador vivia testando ervas em busca de algum efeito analgésico, mas, como sempre, fungou desapontado e deixou as pétalas amassadas caírem de sua mão boa.

De repente a expressão calma de Rênio enfureceu Brutus. Se eles tivessem cavalos, os perseguidores do povoado jamais teriam chegado tão perto. Não era da natureza de Rênio lamentar decisões passadas, mas a cada passo que os inimigos se aproximavam dos romanos com pés machucados, Brutus grunhia de irritação.

- Como consegue ficar aí sentado enquanto eles sobem para cá? O imortal Rênio, vencedor de centenas de combates mortais, cortado em pedaços por alguns gregos maltrapilhos numa colina.

Rênio olhou-o, imóvel, depois deu de ombros.

- A encosta vai diminuir a vantagem deles. Os cavalos não adiantam muito aqui em cima.

- Então vamos enfrentá-los? - perguntou Brutus, sentindo enorme alívio porque Rênio tinha algum tipo de plano.

- Eles ainda vão demorar horas para chegar aqui. Se eu fosse você, me sentaria à sombra e descansaria. Vai descobrir que afiar minha espada acalmará seus nervos.

Brutus fez uma carranca, mas mesmo assim pegou o gládio do velho e começou a passar uma pedra nos gumes, em movimentos longos.

- Eles são cinco, lembre-se - disse depois de um tempo.

Rênio o ignorou, prendendo o copo de couro sobre o cotoco, com um grunhido. Segurou uma ponta da tira de couro nos dentes e amarrou-a com a facilidade resultante da longa prática, enquanto Brutus olhava.

- Oitenta e nove - disse Rênio subitamente.

- O quê?

- Matei oitenta e nove homens em combates mortais em Roma. E não centenas.

Ele se levantou com facilidade, e não havia nada de um velho em seu movimento. Havia demorado muito para treinar de novo seu corpo a se equilibrar sem o peso do braço esquerdo, mas tinha derrotado essa perda como derrotara todas as outras coisas que haviam se erguido contra ele na vida. Brutus se lembrou do momento em que Caberá tinha apertado as mãos na carne cinza do peito de Rênio e visto a cor mudar enquanto o corpo se enrijecia num súbito jorro da vida retornando. Caberá tinha se sentado nos calcanhares num espanto silencioso, enquanto eles viam os cabelos do velho escurecerem, como se nem mesmo a morte pudesse agarrá-lo. Os deuses tinham salvado o velho gladiador. Quem sabe, por sua vez, ele poderia salvar outro jovem romano numa colina da Grécia. Brutus sentiu a confiança aumentar, esquecendo a fome e a exaustão que o assolavam.

- Hoje são apenas cinco - disse Brutus. - E eu sou o melhor da minha geração, você sabe. Não existe um homem vivo que possa me vencer com uma espada.

Rênio grunhiu diante disso.

- Eu era o melhor da minha geração, garoto, e, pelo que posso ver, o padrão andou caindo desde aquela época. Mesmo assim, talvez a gente possa surpreendê-los.

Cornélia gemeu de dor enquanto a parteira esfregava o dourado óleo de oliva em suas coxas, ajudando a diminuir a cãibra dos músculos. Clódia lhe entregou uma bebida quente feita de leite, vinho e mel, e ela esvaziou a taça quase sem sentir o gosto, estendendo-a para pedir mais, enquanto a próxima contração ia chegando. Estremeceu e gritou.

A parteira continuou a passar óleo em movimentos longos e lentos, segurando um tecido da lã mais fina, que mergulhava numa tigela com o líquido.

- Agora não falta muito - disse ela. - Você está se saindo muito bem. O mel e o vinho devem ajudar com a dor, mas logo será hora de levá-la ao assento de parto. Clódia, traga mais panos e a esponja, para o caso de haver sangramento. Não deve haver muito. Você é muito forte e seus quadris são de bom tamanho para esse trabalho.

Cornélia só pôde gemer em resposta, respirando em haustos curtos enquanto a contração vinha com força total. Trincou os dentes e agarrou as laterais da cama dura, fazendo força para baixo com os quadris. A parteira balançou a cabeça ligeiramente.

- Não comece a empurrar ainda, querida. O neném ainda está somente pensando em sair. Ele entrou na posição e precisa descansar. Eu lhe digo quando começar a empurrá-la para fora.

- Empurrá-la? - perguntou Cornélia boquiaberta, entre as respirações entrecortadas.

A parteira assentiu.

- Os meninos sempre nascem mais facilmente. São as meninas que demoram tanto assim. - Ela agradeceu a Clódia enquanto a esponja e os panos eram postos perto do assento de parto, pronto para os últimos estágios.

Clódia segurou a mão de Cornélia, acariciando-a com ternura. Uma porta do cômodo se abriu em silêncio e Aurélia entrou, indo rapidamente até a cama e apertando a outra mão. Clódia observou-a disfarçadamente. Tubruk tinha lhe contado tudo sobre os problemas da mulher, de modo que ela pudesse enfrentar qualquer dificuldade, mas o parto de Cornélia pareceu concentrar a atenção da mãe de Júlio, e era certo que ela estivesse presente no nascimento de seu neto. Com Tubruk fora de casa para completar o negócio que tinham discutido, Clódia soube que estaria por sua conta retirar Aurélia se ela tivesse um ataque da doença antes do fim do parto. Nenhuma das serviçais dela ousaria fazer isso, mas não era uma tarefa que Clódia estivesse ansiosa por realizar e fez uma oração rápida aos deuses domésticos para que isso não fosse necessário.

- Nós achamos que será uma filha - disse Clódia quando a mãe de Júlio assumiu seu lugar do outro lado.

Aurélia não respondeu. Clódia imaginou se sua rigidez se devia ao fato de ser a dona da casa e Clódia apenas uma escrava, mas descartou a idéia. As regras eram relaxadas durante os partos, e Tubruk dissera que ela tinha problemas com as coisas pequenas que as pessoas consideravam comuns.

Cornélia gritou e a parteira assentiu rapidamente.

- Está na hora - falou, virando-se para Aurélia. - Pode nos ajudar, querida?

Quando não houve resposta, a parteira perguntou de novo, bem mais alto. Aurélia pareceu despertar, atordoada.

- Eu gostaria de ajudar - falou em voz baixa, e a parteira fez uma pausa, avaliando-a. Depois deu de ombros.

- Certo, mas isso pode demorar horas. Se não estiver em condições, mande uma garota forte para ficar no seu lugar. Entendeu?

Aurélia assentiu, de novo com a atenção em Cornélia enquanto assumia a posição para ajudar a levá-la até o assento.

Enquanto também começava a levantá-la, Clódia ficou maravilhada com a confiança mostrada pela parteira. Claro, ela era uma mulher libertada, os dias de escravidão tinham ficado para trás há muito, mas não havia um grama de deferência em seus modos. Clódia gostou dela e resolveu ser igualmente forte quando fosse necessário.

O assento era sólido e tinha chegado numa carroça com a parteira havia alguns dias. Juntas, as mulheres levaram Cornélia até lá, deixando seu peso cair na curva estreita do assento. A parteira se ajoelhou na frente de Cornélia, separando gentilmente suas pernas sobre o crescente profundo cortado na madeira antiga.

- Aperte-se contra o encosto - aconselhou ela, depois se virou para Clódia. - Não deixe que ela se incline para trás. Terei outro serviço para você quando a cabeça do bebê estiver aparecendo, mas por enquanto esta é a sua tarefa, entendido?

Clódia assumiu a posição com o peso do quadril apoiando o encosto do assento.

- Aurélia? Quero que empurre o abdômen para baixo quando eu disser, não antes. Está claro?

Aurélia pôs as mãos na barriga inchada e esperou com paciência e os olhos límpidos.

- Está começando de novo - disse Cornélia, encolhendo-se.

- É como deve ser, minha menina. O bebê quer sair. Deixe isso crescer, e eu lhe digo quando empurrar. - Suas mãos esfregaram mais óleo em Cornélia, e a parteira sorriu. - Agora não deve demorar muito. Pronta? Agora, menina, empurre! Aurélia, aperte para baixo, suavemente.

Juntas, elas apertaram, e Cornélia uivou de dor. De novo e de novo re-tesaram e soltaram até que a contração passou e Cornélia estava encharcada de suor, com o cabelo molhado e escuro.

- O pior é passar a cabeça - disse a parteira. - Está se saindo bem, querida. Muitas mulheres gritam o tempo todo. Clódia, quero que aperte um pedaço de pano no traseiro dela durante os espasmos. Ela não vai nos agradecer se depois houver uvas penduradas ali.

Clódia fez o que foi mandado, enfiando a mão entre o encosto do assento e as costas de Cornélia, e segurando o pano com firmeza.

- Agora não vai demorar, Cornélia - disse ela, em tom reconfortante.

Cornélia conseguiu dar um sorriso débil. Então as contrações cresceram de novo, uma tensão em cada músculo, de uma força apavorante. Ela nunca vira alguma coisa assim, e quase se sentia como espectadora em seu próprio corpo que se mexia em ritmos próprios, com uma força que ela não sabia possuir. Sentiu a pressão crescer e crescer, e subitamente desaparecer, deixando-a exausta.

- Chega - sussurrou ela.

- Estou com a cabeça, querida. O resto é mais fácil - respondeu a parteira com a voz calma e animada. Aurélia esfregou as mãos sobre a barriga, inclinando-se por cima do assento para ver entre as pernas trêmulas de Cornélia.

A parteira segurou a cabeça do bebê com as mãos enroladas num tecido áspero para não deixar que escorregasse. Os olhos estavam fechados e a cabeça parecia torta, distendida, mas a parteira parecia não se preocupar, e insistiu em que elas ajudassem enquanto a próxima contração chegava e o resto do bebê deslizava para suas mãos. Cornélia se deixou afrouxar no assento, com as pernas parecendo água. A respiração vinha em haustos ásperos, e ela só pôde assentir agradecendo enquanto Aurélia enxugava sua testa com um pano frio.

- É uma menina! - disse a parteira enquanto pegava uma faca pequena e afiada para cortar o cordão. - Muito bem, senhoras. Clódia, me passe um carvão quente para fazer um lacre.

- Não vai amarrar? - perguntou Clódia enquanto se levantava.

A parteira sacudiu a cabeça, usando as mãos para limpar o sangue e as membranas da pele do bebê.

- Queimar é mais limpo. Depressa, meus joelhos estão doendo. Outra contração forte trouxe um pedaço de carne escura e coleante para fora de Cornélia, com um grito final de exaustão. A parteira sinalizou para Aurélia tirar aquilo do caminho. A mãe de Júlio cuidou da placenta sem pensar duas vezes, agora acostumada à autoridade da mulher. Sentia um brilho de felicidade desacostumada enquanto a nova realidade se estabelecia. Aurélia tinha uma neta. Olhou para as próprias mãos disfarçadamente, aliviada ao ver que os tremores estavam ausentes.

Um grito cortou o ar e de repente as mulheres estavam sorrindo. A parteira verificou os membros, com movimentos rápidos e treinados.

- Ela vai ficar bem. Está um pouquinho azul, mas já está ficando rosada. Vai ter cabelo claro como a mãe, a não ser que escureça. Uma criança linda. Onde estão os cueiros?

Aurélia entregou-os enquanto Clódia voltava, segurando um minúsculo carvão incandescente numa pinça de ferro. A parteira apertou-o contra o minúsculo cotoco de cordão com um chiado, e o bebê gritou com mais vigor enquanto ela começava a enrolá-lo apertado, deixando apenas a cabeça livre.

- Já pensou num nome para ela? - perguntou a Cornélia.

- Se fosse menino eu ia dar o nome do pai, Júlio. Sempre achei que... seria um menino.

A parteira ficou de pé com o bebê no colo, observando a pele pálida e exausta de Cornélia.

- Você tem muito tempo para pensar em nomes. Ajudem Cornélia a ir para a cama, senhoras, enquanto eu junto minhas coisas.

O som de um punho batendo no portão da propriedade pôde ser ouvido como um estrondo grave no quarto onde fora feito o parto. Aurélia levantou a cabeça e ficou de pé.

- Geralmente Tubruk abre o portão para os visitantes - disse ela -, mas ele nos abandonou.

- Só por algumas semanas, senhora - respondeu Clódia rapidamente, sentindo-se culpada. - Ele disse que o negócio que tinha a fazer na cidade não demoraria mais do que isso.

Aurélia pareceu não ouvir a resposta enquanto saía do quarto.

A mãe de Júlio caminhou lenta e cuidadosamente até o pátio da frente, encolhendo-se à luz forte do sol depois de estar tanto tempo dentro de casa. Dois de seus serviçais esperavam pacientemente junto ao portão, mas sabiam que não deveriam abri-lo sem a concordância dela, não importando quem estivesse ali. Era uma regra que Tubruk havia estabelecido desde os tumultos de dois anos antes. Ele parecia se importar com a segurança da casa, mas a deixara sozinha depois de haver prometido nunca fazer isso. Aurélia compôs a expressão do rosto, notando uma pequena gota de sangue na manga. Sua mão direita tremia ligeiramente, e ela segurou-a com a outra, tentando dissipar o tremor.

- Abram o portão! - disse uma voz de homem do outro lado, com o punho batendo na madeira outra vez.

Aurélia sinalizou aos serviçais e eles retiraram a trave, abrindo o portão para o visitante. Ela viu que os dois estavam armados, outra regra de Tubruk.

Três soldados montados entraram, resplandecentes com armaduras brilhantes e elmos com plumas. Estavam vestidos como para um desfile, e a visão deles fez Aurélia se arrepiar.

Por que Tubruk não estava aqui? Ele conseguiria lidar com isso muito melhor do que ela.

Um dos homens desceu do cavalo, com os movimentos fáceis e tranqüilos. Segurando as rédeas numa das mãos, entregou a Aurélia um rolo de pergaminho lacrado com cera grossa. Ela o pegou e esperou, observando o homem. O soldado raspou os pés no chão ao perceber que Aurélia não iria falar.

- Ordens, senhora. De nosso senhor, o Ditador de Roma.

Mesmo assim Aurélia ficou em silêncio, agarrando com a outra mão a que segurava o pergaminho, os nós dos dedos ficando brancos.

- Sua filha por casamento está aqui, e Sila ordena a presença dela diante dele na cidade imediatamente - continuou o homem, percebendo que, a não ser que ele falasse, talvez ela jamais abrisse o pergaminho que confirmava as ordens com o selo pessoal de Sila.

Aurélia recuperou a voz enquanto o tremor parava por um momento.

- Ela acaba de dar à luz. Não pode ser transportada. Voltem em três dias, e a deixarei pronta para viajar.

O rosto do soldado endureceu ligeiramente, com a paciência se dissipando. Quem essa mulher achava que era?

- Senhora, ela deverá estar pronta agora. Sila ordenou que ela estivesse na cidade e ela vai para a estrada imediatamente, querendo ou não. Vou esperar aqui, mas quero vê-la no máximo dentro de alguns minutos. Não faça com que entremos para pegá-la.

- E... e a criança?

O soldado piscou. Não havia criança mencionada em suas ordens, mas as carreiras não eram feitas desapontando-se o Ditador de Roma.

- A criança também. Faça com que as duas estejam prontas. - Sua expressão se suavizou um pouco. Não faria mal ser gentil, e de repente aquela mulher parecia muito frágil. - Se a senhora tiver uma carroça com cavalos que possam ser atrelados rapidamente, elas podem viajar assim.

Aurélia se virou sem dizer outra palavra e desapareceu na casa. O soldado ergueu os olhos para os dois companheiros, com as pálpebras erguidas.

- Eu disse que isso seria fácil. Imagino o que ele quer com essa mulher.

- Depende de quem é o pai, eu acho - respondeu um deles, dando uma piscadela marota.

Tubruk sentou-se rigidamente, assentindo enquanto tomava o vinho que lhe fora oferecido. O homem que ele encarava tinha a sua idade, e eles haviam sido amigos durante quase trinta anos.

- Ainda tenho dificuldade para reconhecer que não sou mais o jovem que fui - disse Ferco dando um sorriso pesaroso. - Eu tinha espelhos por toda a casa, mas a cada vez que passava por um ficava surpreso com o velho que me espiava. Mesmo assim, o corpo falha mas a mente permanece relativamente afiada.

- Espero que sim, você não está velho demais - respondeu Tubruk, tentando relaxar e desfrutar da companhia do amigo, como fizera tantas vezes no correr dos anos.

- Acha que não? Muitos dos que conhecemos já foram fazer maldade nas terras silenciosas. A doença levou Rapas, e ele era o homem mais forte que já conheci. No fim, dizem que o filho dele o colocou sobre os ombros para levá-lo ao sol. Pode imaginar alguém colocando aquele touro no ombro? Mesmo um filho dele! Envelhecer é uma coisa terrível.

- Você tem Ilita e suas filhas. Ela ainda não o deixou? - murmurou Tubruk.

Ferco fungou no vinho.

- Ainda não, mas continua ameaçando todo ano. Na verdade, você é que precisa de uma mulher boa e gorda. Elas afastam a idade maravilhosamente, você sabe. E mantêm seus pés quentes à noite.

- Sou muito apegado às minhas manias para um novo amor. Onde encontraria uma mulher que me quisesse? Não, eu achei uma espécie de família na propriedade do campo. Não posso imaginar outra.

Ferco assentiu, sem que seus olhos perdessem nada da tensão que preenchia o corpo do velho gladiador. Estava preparado para esperar até que Tubruk se sentisse preparado para contar o motivo de sua visita súbita. Conhecia o outro muito bem para não apressá-lo, assim como sabia que ajudaria como pudesse. Não era simplesmente uma questão de dívidas que tivesse, ainda que houvesse muitas; era o fato de que Tubruk era um homem que ele respeitava e de quem gostava. Não havia maldade nele, e ele era forte de um modo que Ferco raramente vira.

Mentalmente contabilizou suas posses e o ouro disponível. Se fosse uma questão de dinheiro, houvera tempos melhores, mas ele possuía reservas e dívidas que poderiam ser cobradas.

- Como vão os negócios? - perguntou Tubruk, inconscientemente pensando o mesmo que Ferco.

Ferco deu de ombros, mas cortou a resposta despreocupada antes que ela saísse dos lábios.

- Eu tenho fundos - falou. - Sempre há necessidade de escravos em Roma, como você sabe.

Tubruk olhou firme para o homem que um dia o vendera para ser treinado para combater na frente de milhares de pessoas. Mesmo então, quando era um jovem escravo de pedreira que não sabia nada do mundo nem do treinamento que viria, tinha visto que Ferco nunca era cruel com os que passavam por sua mão. Lembrava-se de ter entrado em desespero na noite antes de ser mandado para os cercados de treinamento, quando sua mente havia pensado em maneiras de acabar com a própria vida. Ferco tinha parado perto dele enquanto fazia a ronda e lhe disse que, se tivesse coragem e força, poderia comprar a liberdade e ainda ter a maior parte da vida pela frente.

- Nesse dia eu vou voltar e matar você - dissera Tubruk a ele. Ferco sustentou seu olhar por longo tempo antes de responder:

- Espero que não. Espero que você me convide para compartilhar uma taça de vinho.

O jovem Tubruk foi incapaz de responder, mas mais tarde aquelas palavras eram um conforto, simplesmente saber que um dia poderia haver liberdade para sentar-se e beber ao sol, dono de si mesmo. No dia em que se libertou, atravessou a cidade até a casa de Ferco e pôs uma ânfora na mesa. Ferco colocou duas taças ao lado e a amizade dos dois teve início sem amargura.

Se havia alguém no mundo fora da propriedade, em quem ele pudesse confiar, era Ferco, mas mesmo assim ficou em silêncio enquanto repassava os planos que tinha feito desde que Clódia viera vê-lo. Será que não havia outro modo? O caminho que seguiu o deixava enjoado, mas sabia que, se estava preparado para morrer protegendo Cornélia, certamente poderia fazer isso.

Ferco se levantou e segurou o braço de Tubruk.

- Você está perturbado, meu velho amigo. O que quer que seja, peça. Seus olhos ficaram firmes enquanto Tubruk erguia os olhos e sustentava o olhar, com o passado aberto entre os dois.

- Posso confiar minha vida a você? - perguntou Tubruk.

Ferco segurou seu braço com mais força ainda, em resposta, depois sentou-se de novo.

- Não precisa perguntar. Minha filha estava morrendo antes que você arranjasse uma parteira para salvá-la. Eu próprio teria morrido nas mãos daqueles ladrões se você não tivesse lutado com eles. Eu lhe devo tanto que pensei que nunca teria a chance de pagar. Peça.

Tubruk respirou fundo.

- Quero que me venda de novo como escravo. Para a casa de Sila --falou em voz baixa.

Júlio mal sentia as mãos de Caberá levantando suas pálpebras. O mundo parecia alternadamente escuro e luminoso, e sua cabeça estava cheia de uma agonia rubra. Escutou a voz de Caberá vindo de longe e tentou xingá-lo por perturbar a escuridão.

- Os olhos dele estão errados - disse alguém.

Gadítico? O nome não significava nada, mas ele conhecia a voz. Será que seu pai estava ali? Lembranças antigas de estar deitado no escuro, na propriedade do campo, vieram e se fundiram com os pensamentos. Será que ainda estava na cama depois de Rênio tê-lo ferido no treinamento? Seus amigos estavam nas muralhas enfrentando a rebelião dos escravos sem ele? Lutou ligeiramente e sentiu mãos apertando-o para baixo. Tentou falar, mas a voz não obedecia, apesar de um som abafado ter saído, como o gemido de um bezerro agonizante.

- Isso não é bom sinal - disse a voz de Caberá. - As pupilas estão de tamanhos diferentes e ele não está me vendo. O olho esquerdo está cheio de sangue, mas isso vai passar em algumas semanas. Veja como está vermelho. Está me ouvindo, Júlio? Caio?

Júlio não podia responder nem mesmo ao seu nome de infância. Um peso de escuridão comprimia todos para longe dele. Caberá se levantou e suspirou.

- O elmo salvou sua vida, pelo menos, mas o sangue saindo dos ouvidos não é bom. Ele pode se recuperar ou pode continuar assim. Já vi isso acontecer com ferimentos na cabeça. O espírito pode ser esmagado.

O sofrimento era claro na voz, e Gadítico se lembrou de que o curandeiro viera a bordo com Júlio, e os dois tinham uma história que remontava a muito antes do tempo passado na Accipiter.

- Faça o que puder por ele. Há uma boa chance de que todos vejamos Roma de novo se eles conseguirem o dinheiro que querem. Pelo menos por um tempo somos mais valiosos vivos do que mortos.

Gadítico lutava para manter o desespero longe da voz. Um capitão que perdia seu navio não tinha probabilidade de arranjar outro. Preso e desamparado no convés da segunda trirreme, tinha visto sua amada Accipiter afundar num redemoinho de bolhas e destroços. Os escravos nos remos não tinham sido soltos, e seus gritos soaram desesperados e roucos até que as águas tomaram o navio.

A luta fora brutal, mas a maioria de seus homens finalmente foi morta, sobrepujados e atacados por dois lados. Repetidamente Gadítico repassou a curta batalha na mente, procurando modos de ter vencido. Sempre terminava dando de ombros, dizendo a si mesmo para esquecer a perda, mas a humilhação permanecia.

Tinha pensado em tirar a própria vida para negar a eles o resgate e a vergonha que isso causaria à sua família. Se ela ao menos pudesse conseguir o dinheiro.

Teria sido mais fácil se ele tivesse afundado com a Accipiter, como tantos de seus homens. Em vez disso, teve de se sentar em sua própria imundície com os doze oficiais sobreviventes e Caberá, que havia escapado da cela oferecendo-se para usar suas habilidades de curandeiro para os piratas. Sempre havia alguns cujos ferimentos não se fechavam, e com infecções que se grudavam aos órgãos genitais depois das prostitutas nos portos solitários. O velho estivera ocupado desde a batalha e só tinha permissão para vê-los uma vez por dia para verificar os ferimentos e curativos.

Gadítico se mexeu ligeiramente, coçando os piolhos e pulgas que o infestavam desde a primeira noite na cela apertada e imunda. Em algum lugar lá em cima, os homens que os mantinham cativos andavam pelos conveses da trirreme, ricos com os prisioneiros para resgate e com os baús de prata roubados do porão da Accipiter. Fora um risco lucrativo para eles, e Gadítico fez uma careta ao se lembrar da arrogância e do triunfo dos piratas.

Um dos homens tinha cuspido no rosto dele, depois de suas mãos e seus pés serem amarrados. Gadítico ficou vermelho de fúria ao pensar nisso. O patife era cego de um olho, o rosto uma confusão de cicatrizes antigas e barba crescida. O olho branco parecia espiar o capitão romano, e o riso dele quase o fez mostrar sua raiva e se humilhar ainda mais, lutando. Em vez disso, ficou olhando impassível, apenas grunhindo quando o homenzinho o chutou na barriga e foi embora.

- Deveríamos tentar fugir-sussurrou Suetônio, tão perto de Gadítico que este sentiu o cheiro do seu hálito.

- César não pode ser movido por enquanto, portanto tire isso da cabeça. Vai levar alguns meses até a mensagem do resgate chegar à cidade, e mais alguns para o dinheiro voltar até nós, se voltar. Teremos mais tempo que o suficiente para fazer planos.

Prax também fora poupado pelos piratas. Sem sua armadura, ele parecia muito mais comum. Até o cinto fora retirado para que a grande fivela não fosse usada como arma, e ele ficava constantemente repuxando a bracae. De todos, era ele que aceitava a mudança de sorte com menos raiva, e sua paciência natural os ajudava a ficar firmes.

- Mas o garoto está certo, capitão. Há uma boa chance de eles simplesmente nos jogarem no mar quando receberem a prata de Roma. Ou o Senado pode impedir nossas famílias de fazer o pagamento, preferindo se esquecer de nós.

Gadítico se irritou.

- Você se esquece, Prax, que os senadores também são romanos, apesar de toda a sua má opinião sobre eles. Não vão deixar que sejamos esquecidos.

Prax deu de ombros.

- Mesmo assim deveríamos fazer planos. Se esta trirreme encontrar outra galera romana, seremos jogados ao mar se eles parecerem dispostos a fazer uma abordagem. Um pedaço de corrente nos nossos tornozelos faria o serviço lindamente.

Gadítico encarou seu optio por alguns instantes.

- Certo. Vamos pensar em algumas coisas, mas se a chance vier não vou deixar ninguém para trás. César está com um braço quebrado, além do ferimento na cabeça. Vão se passar semanas antes que ele possa ao menos se sentar.

- Se é que vai sobreviver - interveio Suetônio.

Caberá espiou o jovem oficial com o olhar afiado.

- Este aqui é forte, e tem um bom médico cuidando dele.

Suetônio se desviou do olhar intenso do velho, subitamente embaraçado. Gadítico rompeu o silêncio.

- Bem, temos tempo para pensar em todas as situações, senhores.

Temos muitíssimo tempo.

 

Casavério se permitiu um sorriso de autocongratulação enquanto examinava o comprido salão da cozinha. Em toda parte a agitação da noite estava terminando, com os últimos pedidos servidos havia horas.

- A perfeição está nos detalhes - murmurou consigo mesmo, como tinha feito em todas as noites nos dez anos em que era empregado de Cornélio Sila.

Bons anos, se bem que nesse tempo sua figura, que já fora magra, tinha inchado de um modo alarmante. Casavério se encostou na lisa parede de argamassa e continuou a moer no pilão, preparando uma pasta de sementes de mostarda que Sila adorava. Mergulhou um dedo na mistura escura e acrescentou um pouco de óleo e vinagre da fileira de potes de gargalo estreito pendurados ao longo da parede. Como um cozinheiro podia resistir a provar suas próprias refeições? Fazia parte do processo. Seu pai era ainda mais gordo, e Casavério tinha orgulho do próprio peso, sabendo que apenas um idiota empregaria um cozinheiro magro.

Os fornos de tijolos tinham sido fechados por tempo suficiente e deviam estar frios. Casavério sinalizou para os escravos, sugerindo que eles podiam ser limpos para colocar carvão novo de manhã. O ar na cozinha ainda estava pegajoso de calor, e ele puxou um trapo do cinto para enxugar a testa.

Com o peso, o cozinheiro parecia suar mais, admitiu a si mesmo, apertando o pano já úmido contra o rosto.

Pensou em terminar a pasta num dos cômodos frescos onde eram preparados os pratos gelados, mas odiava deixar os escravos sem vigilância. Sabia que eles roubavam comida para as famílias, e se isso fosse moderado ele poderia perdoar. Mas, deixados sozinhos, eles podiam ficar incautos, e quem sabia o que poderia desaparecer? Lembrou-se de seu pai reclamando da mesma coisa à noite, e rapidamente sussurrou uma oração pelo velho, onde quer que ele estivesse agora.

Havia uma grande paz no fim de um dia que tivesse corrido bem. A casa de Sila era conhecida pela comida boa, e quando chegava o pedido de alguma coisa especial ele gostava da empolgação e da energia que tomava seu pessoal, começando com o momento de antecipação ao abrir o maço de receitas do pai, desamarrando as tiras de couro que prendiam os valiosos pergaminhos e passando o dedo pelas letras, sentindo prazer no fato de que somente ele podia lê-las. O pai tinha-lhe dito que todo cozinheiro deveria ser um homem educado, e Casavério suspirou um momento, com os pensamentos indo para o seu filho. O garoto passava as manhãs na cozinha, mas os estudos pareciam voar da mente sempre que o dia era bonito. O garoto era um desapontamento, e Casavério passara a aceitar que ele talvez jamais pudesse comandar sozinho uma grande cozinha.

Mesmo assim ainda faltavam anos antes que ele deixasse seus pratos e fogões pela última vez, retirando-se para sua casinha num bom distrito da cidade. Talvez então arranjasse tempo para receber os convidados que sua esposa queria. De algum modo, nunca conseguira levar seus conhecimentos para casa, satisfazendo-se com pratos simples de carne e legumes. Seu estômago roncou um pouco diante desse pensamento, e ele viu que os escravos estavam retirando seus pacotes assados de pão e carne das cinzas dos fornos, onde tinham sido postos no final. Era uma pequena perda para a cozinha poder mandá-los de volta aos alojamentos com alguns bocados, e isso criava uma atmosfera amigável, ele tinha certeza.

O novo escravo, Dálcio, passou por ele com uma bandeja de metal com potes de temperos, prontos para ser postos de volta nas prateleiras. Casavério sorriu para ele enquanto o sujeito começava a esvaziar a bandeja.

Era um bom trabalhador, e o mercador não tinha mentido ao dizer que ele sabia se virar numa cozinha. Casavério pensou que poderia deixá-lo preparar um prato para o próximo banquete, sob seu olhar vigilante.

- Certifique-se de que os temperos vão para os lugares certos, Dálcio. O homem enorme assentiu, sorrindo. Certamente não era um falador.

Talvez aquela barba tivesse de ser cortada, pensou Casavério. Seu pai nunca permitia barbas na cozinha, dizendo que faziam o lugar parecer sujo.

Provou de novo a pasta de mostarda e estalou os lábios com prazer, notando que Dálcio terminou a tarefa rapidamente e bem-feita. Pelas cicatrizes ele mais parecia um velho lutador, mas não havia nada de violento nele. Se houvesse, Casavério não o deixaria na cozinha, onde a pressa interminável e a necessidade de carregar coisas significava que as pessoas sempre se esbarravam. O mau humor não podia sobreviver nos porões das casas ricas, mas Dálcio tinha se mostrado amável, ainda que silencioso.

- Vou precisar de alguém me ajudando amanhã de manhã para preparar as massas. Gostaria de fazer isso?

Casavério não percebeu que estava falando devagar, como se com uma criança, mas Dálcio não pareceu se importar, e seus silêncios convidavam a esses modos. Não havia maldade no cozinheiro gordo, e ele ficou genuinamente satisfeito quando Dálcio assentiu antes de voltar ao depósito. Um cozinheiro precisava ter bom olho para bons trabalhadores, seu pai sempre dizia. Era a diferença entre ir cedo para a sepultura e alcançar a perfeição.

- ... e a perfeição está nos detalhes - murmurou de novo consigo mesmo.

No fim do comprido salão da cozinha, a porta para a casa acima se abriu e um escravo muito bem vestido entrou. Casavério se empertigou, deixando o pilão e o almofariz de lado sem pensar duas vezes.

- O senhor pede desculpas pela hora tardia e pergunta se podem lhe mandar alguma coisa fria antes de ele dormir, um prato gelado - disse o rapaz.

Casavério agradeceu, satisfeito, como sempre, com a cortesia.

- Para todos os convidados? - perguntou rapidamente, pensando.

- Não, senhor, os convidados partiram. Só o general continua aqui. A cozinha passou do estupor do fim do dia à prontidão no tempo em que Casavério demorou para dar as ordens. Dois ajudantes foram mandados escada abaixo até as salas do gelo, sob a cozinha. Casavério passou por arco baixo e por um corredor curto até onde as sobremesas eram preparadas.

- Um sorvete de limão, acho - murmurou enquanto andava. -

Lindos e azedos limões do sul, adoçados e frios.

Tudo estava no lugar quando ele entrou na fresca sala de sobremesas. Como a cozinha principal, as paredes tinham dezenas de ânforas penduradas, cheias de xaropes e molhos que eram preparados e postos nos jarros sempre que a cozinha ficava calma. Aqui não havia qualquer sugestão do calor dos fornos, e ele sentiu o doce frio no corpo pesado, com um tremor agradável.

Os blocos de gelo, enrolados em tecido áspero, foram trazidos em minutos e esmagados sob suas ordens, até o gelo se transformar numa pasta fina. A isso ele acrescentou o limão agridoce e mexeu, apenas o bastante para dar sabor sem ficar forte demais. Seu pai tinha dito que o sorvete não devia ficar amarelo, e Casavério sorriu ao notar a cor e a bela textura, usando uma concha para colocar a mistura nas tigelas de vidro sobre uma bandeja.

Trabalhou rapidamente. Mesmo na sala fresca o gelo estava derretendo e a passagem pela cozinha teria de ser rápida. Esperava que um dia Sila permitisse a abertura de outra passagem na rocha sob sua casa luxuosa, de modo que as sobremesas geladas pudessem ir diretamente para cima. Mesmo assim, com cuidado e velocidade, os pratos chegariam quase intactos à mesa.

Depois de apenas alguns minutos as duas tigelas estavam cheias do sorvete branco, e Casavério chupou os dedos, gemendo com um prazer exagerado. Como era bom provar o frio no verão! Imaginou brevemente quantas moedas de prata as duas tigelas representavam, mas era uma quantia inimaginável. Carroças transportavam os enormes blocos de gelo das montanhas, perdendo metade durante a viagem. Eles eram trazidos para a escuridão dos depósitos de gelo abaixo, onde iriam derreter lentamente, mas proporcionando bebidas e sobremesas geladas durante todos os meses de verão. Lembrou-se de verificar se os suprimentos estavam adequados. Estava quase na época de um novo pedido.

Dálcio entrou na sala atrás dele, ainda carregando a bandeja de temperos.

- Posso ver o senhor preparar os sorvetes? Meu último senhor nunca teve isso.

Casavério sinalizou animado para ele entrar.

- O trabalho está feito. Eles devem ser levados correndo pela cozinha antes que comecem a derreter.

Dálcio se inclinou sobre a mesa e seu braço derrubou o jarro de xarope grosso numa ampla mancha amarela. O bom humor de Casavério desapareceu num instante.

- Depressa, seu idiota, pegue panos para limpar isso. Não há tempo a perder.

O grande escravo pareceu aterrorizado e gaguejou.

- D... desculpe. Tenho outra bandeja aqui, senhor.

Ele estendeu a bandeja e Casavério levantou as tigelas, limpando-as rapidamente com seu trapo suado. Não havia tempo para ser sensível, pensou. O gelo estava derretendo. Pôs as tigelas na bandeja e enxugou os dedos, irritado.

- Não fique aí parado, corra! E se tropeçar nos próprios pés vou mandar chicoteá-lo.

Dálcio saiu rapidamente da sala, e Casavério começou a limpar a sujeira derramada. Talvez o criado fosse desajeitado demais para tarefas mais difíceis.

No corredor, foi trabalho de um instante Tubruk esvaziar o frasco de veneno nas tigelas, mexendo com um dedo. Feito isso, correu pela cozinha e entregou a bandeja ao escravo que esperava.

Os olhos que tinham parecido tão nervosos olharam firme para as costas que se afastavam enquanto a porta da casa acima se fechava atrás dele. Agora devia escapar, mas havia primeiro um trabalho sangrento a fazer. Suspirou. Casavério não era um homem ruim, mas um dia, no futuro, mesmo com a barba cortada e o cabelo crescido de novo até o tamanho normal, o cozinheiro poderia reconhecê-lo.

Sentindo-se subitamente cansado, virou-se de novo para as salas frescas, tocando a faca com cabo de osso sob a túnica enquanto andava. Iria se certificar de que aquilo parecesse um assassinato, não suicídio. Isso deveria manter a família de Casavério livre da vingança.

- Deu a bandeja a ele? - disse Casavério rispidamente quando Tübruk entrou de novo na pequena sala fresca.

- Dei. Desculpe, Casavério.

O cozinheiro ergueu os olhos enquanto Tubruk se aproximava rapidamente. A voz do criado havia se aprofundado ligeiramente e os modos usuais tinham desaparecido. Ele viu a faca, e o medo e a confusão o atravessaram.

- Dálcio! Largue isso! - disse ele, mas Tubruk enfiou a faca no peito carnudo, rompendo o coração. Golpeou mais duas vezes, para ter certeza.

Casavério lutou para respirar, mas o ar não vinha. Seu rosto ficou roxo e as mãos balançaram, derrubando as colheres e as jarras de cima da mesa com estardalhaço.

Finalmente Tubruk se levantou, sentindo-se enjoado. Em todos os seus anos como gladiador e legionário, nunca tinha assassinado um inocente e se sentia manchado por isso. Casavério era um homem agradável, e Tubruk sabia que os deuses clamavam contra quem feria os bons. Firmou-se, tentando afastar o olhar do corpo do gordo no chão. Saiu em silêncio, com os passos soando alto no corredor que levava de volta à cozinha. Agora tinha de escapar e alcançar Ferco antes que o alarme soasse.

Sila estava estirado com preguiça num divã, os pensamentos se afastando da conversa com o seu general, Antonido. Tinha sido um dia longo e parecia que os senadores estavam tentando bloquear suas indicações para novos magistrados. Ele fora nomeado Ditador com mandato para restaurar a ordem à República, e nos primeiros meses eles tinham se mostrado bastante ansiosos em lhe conceder cada desejo. Recentemente haviam demorado horas debatendo com longos discursos sobre os poderes e as limitações do cargo, e seus conselheiros tinham dito que durante um tempo ele não deveria se impor com muita aspereza. Eram homens pequenos, pensou. Pequenos em feitos e sonhos. Mário zombaria deles, chamando-os de tolos, se estivesse vivo.

- ... serão feitas objeções aos lictores, meu amigo - estava dizendo Antonido.

Sila fungou cheio de desdém.

- Com ou sem objeções, vou continuar a ter vinte e quatro deles contigo. Posso ter muitos inimigos, e quero que eles sejam uma lembrança do poder enquanto ando entre o Capitólio e a Cúria.

Antonido deu de ombros.

- No passado eram apenas doze. Talvez seja melhor deixar que o Senado tenha a palavra final nisso, para ganhar força em negociações mais sérias.

- Eles são um bando de velhos desdentados! A ordem não voltou a Roma no ano passado? Eles poderiam ter feito isso? Não. Onde estava o Senado quando eu lutava pela minha vida? Que ajuda eles me deram? Não. Eu sou o senhor deles, e eles devem ser obrigados a reconhecer esse fato simples. Estou cansado de pisar com cuidado por causa da sensibilidade deles e fingir que a República ainda é jovem e forte.

Antonido não disse nada, sabendo que qualquer objeção seria recebida com promessas e ameaças ainda mais loucas. A princípio se sentira honrado em ser nomeado conselheiro militar, mas o posto era vazio, com Sila usando-o apenas como marionete para suas ordens. Mesmo assim, parte dele concordava com a frustração de Sila. O Senado lutava para proteger a dignidade e a velha autoridade, ao mesmo tempo que reconhecia a necessidade de um ditador para manter a paz na cidade e nas terras romanas. Era uma farsa, e Sila estava se cansando rapidamente do jogo.

Um escravo entrou com os sorvetes, colocando-os numa mesa baixa antes de fazer uma reverência e sair da sala. Sila sentou-se, esquecendo-se da irritação.

- Você terá de provar isso. Não há nada igual para aliviar o calor do verão.

Ele pegou uma colher de prata e enfiou o sorvete branco na boca, fechando os olhos de prazer. Logo a tigela estava vazia, e ele pensou em pedir outra. Todo o seu corpo parecia mais refrescado depois do sorvete, e a mente estava calma. Viu que Antonido não tinha começado e insistiu em que ele tomasse.

- Deve ser comido depressa, antes de derreter. Mesmo depois, pode ser uma bebida maravilhosamente refrescante.

Observou o general provar uma colherada e sorriu com ele.

Antonido queria terminar a conversa e ir para casa para ficar com a família, mas sabia que não podia se levantar até que Sila ficasse cansado. Imaginou quando isso seria.

- Seus novos magistrados serão confirmados amanhã na Cúria - falou.

Sila se deitou em seu divã, com a expressão retomando as rugas carrancudas.

- É melhor que sejam. Devo favores a esses homens. Se houver outro atraso, o Senado vai lamentar, juro pelos deuses. Vou debandá-lo e mandarei pregar as portas!

Ele se encolheu ligeiramente ao falar, e sua mão foi até a barriga, esfregando de leve.

- Se o senhor optar por debandar o Senado, haverá guerra civil de novo, com a cidade outra vez em chamas - disse Antonido. - No entanto suspeito que o senhor triunfaria no final. Sabe que tem o apoio inabalável das legiões.

- Este é o caminho dos reis. Ele me atrai e repele ao mesmo tempo. Eu amava a República, ainda amaria se ela fosse comandada pelo tipo de homem que a comandava quando eu era menino. Todos se foram, e, quando Roma chama, os pequenos que restaram só conseguem vir correndo para mim.

Sila arrotou de repente, encolhendo-se, e quando ele fez isso Antonido sentiu um verme de dor começar nas entranhas. O medo o fez se levantar, pousando o olhar nas tigelas, uma vazia, a outra praticamente intocada.

- O que é isso? - perguntou Sila, levantando-se, com o rosto se retorcendo no reconhecimento, ao mesmo tempo que falava. A queimação na barriga estava se espalhando, e ele apertou as mãos no corpo, como se quisesse esmagá-lo.

- Também estou sentindo - disse Antonido em pânico. - Pode ser veneno. Enfie os dedos na garganta, depressa!

Sila cambaleou ligeiramente, tombando sobre um dos joelhos. Parecia a ponto de desmaiar, e Antonido estendeu a mão para ele, ignorando sua dor menor, que ia aumentando.

Enfiou um dedo na boca frouxa do ditador, fazendo uma careta quando um jorro de polpa escorregadia foi vomitada. Sila gemeu, os olhos se revirando na cabeça.

- Ande, ande, de novo - insistiu Antonido, apertando a ponta dos dedos na carne macia do interior da garganta.

Os espasmos vieram, ejetando bile escura e saliva dos lábios, até que o ditador começou a ter espasmos secos. Então o peito afrouxou e os pulmões pararam de sugar, imobilizando-se com uma última respiração chiada. Antonido gritou pedindo ajuda e esvaziou o próprio estômago, esperando através do medo que não tivesse ingerido o bastante para morrer.

Os guardas foram rápidos, mas já encontraram Sila pálido e imóvel, e Antonido, semiconsciente, coberto por um líquido fedorento composto por tudo que os dois tinham comido. Mal tinha forças para ficar de pé, mas eles ficaram imobilizados, não sabendo o que fazer sem receber ordens.

- Chamem os médicos! - grasnou com a garganta áspera e inchada. A dor em seu estômago começou a diminuir, e ele afastou a mão, tentando se apoiar. - Isolem a casa. O Ditador foi envenenado! - gritou. - Mandem homens às cozinhas. Quero saber quem trouxe essa sobremesa aqui para cima e o nome de todo mundo que a tocou. Andem!

Sua força pareceu abandoná-lo naquele momento, e ele se deixou afrouxar de volta no divã onde havia apenas alguns minutos estivera discutindo tão pacificamente o Senado. Sabia que tinha de agir depressa, caso contrário Roma explodiria no caos assim que a notícia chegasse às ruas. Vomitou de novo e, quando terminou, sentiu-se fraco, mas a mente começou a clarear.

Quando entraram correndo, os médicos ignoraram o general para cuidar de Sila. Tocaram-lhe o pulso e o pescoço, entreolhando-se, horrorizados.

- Ele se foi - disse um deles, com o rosto branco.

- Seus assassinos serão encontrados e despedaçados. Juro por minha casa e pelos meus deuses - sussurrou Antonido, com a voz amarga como o gosto em sua boca.

Tubruk chegou à pequena porta para a rua no momento em que gritos irromperam na construção principal da casa de Sila. Havia apenas um guarda ali, mas alerta e a postos, com o rosto sério.

- Volte para o lugar de onde veio, escravo - disse com firmeza, apoiando a mão no gládio.

Tubruk rosnou para ele e saltou para a frente, dando-lhe um soco que o arrancou do chão. O soldado caiu desajeitado, sem sentidos. Tubruk parou, sabendo que poderia passar rapidamente sobre ele, atravessar a pequena porta de serviço e ir embora. O homem iria reconhecê-lo e poderia dar uma descrição, mas poderia ser executado por não conseguir guardar o portão. Tubruk controlou o desespero que o preenchia desde que matara Casavério. Seu dever era para com Cornélia e Júlio, e a memória do pai de Júlio, que tinha confiado nele.

Sério, sacou da pequena faca e cortou a garganta do soldado, ficando longe para não sujar as roupas de sangue. O sujeito gorgolejou com o corte, os olhos se clareando por um momento antes que a morte o tomasse. Tubruk largou a faca e abriu o portão, saindo nas ruas da cidade e se misturando às poucas pessoas que circulavam, fazendo suas jornadas pacíficas sem saber que o velho lobo andava entre elas.

Tinha de chegar a Ferco para ficar em segurança, mas havia mais de um quilômetro e meio a cobrir, e, mesmo andando depressa, não podia correr, pois temia ser visto e perseguido. Atrás podia ouvir o ruído familiar das sandálias dos soldados assumindo posição e começando a parar as pessoas, procurando armas ou um rosto culpado.

Mais legionários passaram correndo por ele, com os olhares varrendo a multidão enquanto tentavam se adiantar a fechar a rua. Tubruk pegou uma rua lateral e depois outra, tentando não entrar em pânico. Eles ainda não sabiam quem estavam procurando, mas precisava raspar a barba assim que estivesse em segurança. O que quer que acontecesse, sabia que não deveria ser apanhado vivo. Pelo menos assim, com sorte, jamais o ligariam à propriedade rural e à família de Júlio.

Enquanto os soldados começavam a fechar a rua, um homem na multidão correu subitamente, derrubando um tabuleiro de legumes que estivera carregando. Tubruk agradeceu aos deuses pela consciência culpada do outro e tentou não olhar para trás enquanto os soldados o derrubavam, ainda que os gritos do homem fossem desesperados enquanto eles batiam com sua cabeça nas pedras do chão. Tubruk continuou andando e virando numa rua depois da outra, com passos rápidos, e os gritos finalmente ficaram para trás. Diminuiu o ritmo nas sombras que iam escurecendo enquanto chegava ao beco aonde Ferco tinha mandado que ele fosse. A princípio pensou que o lugar estava deserto, mas então viu seu amigo sair de uma porta escura e chamá-lo. Entrou rapidamente, com os nervos quase se dilacerando, finalmente desmoronando no pequeno cômodo sujo que significava segurança, pelo menos por um tempo.

- Você fez? - perguntou Ferco enquanto Tubruk tentava recuperar o fôlego e sua pulsação começava a ficar mais lenta.

- Acho que sim. Saberemos amanhã. Eles fecharam as ruas, mas consegui passar. Deuses, foi por pouco!

Ferco lhe entregou uma navalha e sinalizou para uma tigela de água fria.

- Você ainda precisa sair da cidade, meu amigo. E isso não vai ser fácil se Sila estiver morto. Se estiver vivo, será quase impossível.

- Está preparado para o que tem de fazer? - perguntou Tubruk em voz baixa, esfregando a água na barba que cobria o rosto.

- Estou, mas me dói fazer isso.

- Não tanto quanto vai doer em mim. Faça depressa, assim que eu tiver me barbeado.

Ele notou sua mão tremendo enquanto usava a lâmina estreita e xingou-se quando cortou a pele.

- Deixe-me fazer isso - disse Ferco, pegando a navalha. Durante alguns minutos houve silêncio, ainda que os pensamentos dos dois estivessem frenéticos.

- Saiu sem ser visto? - perguntou Ferco enquanto trabalhava na barba teimosa. Tubruk não respondeu por longo tempo.

- Não. Tive de matar dois inocentes.

- A República pode suportar um pouco de sangue na bainha, se a morte de Sila restaurar a igualdade em Roma. Não posso lamentar o que fez, Tubruk.

Tubruk permaneceu quieto enquanto a lâmina cortava o resto da barba. Em seguida esfregou o rosto, com os olhos tristes.

- Faça agora, enquanto estou entorpecido.

Ferco respirou fundo, girando para encarar o velho gladiador. Não restava nada do hesitante Dálcio em seu rosto forte.

- Talvez... - começou Ferco, em dúvida.

- É o único modo. Já discutimos isso. Faça!

Tubruk agarrou os braços do assento enquanto Ferco levantava o punho e começava a dar socos até transformar seu rosto numa massa irreconhecível. Ele sentiu o nariz se partir em linhas antigas e cuspiu no chão. Ferco respirou pesado e Tubruk tossiu, encolhendo-se.

- Não pare... ainda - sussurrou através da dor, querendo que aquilo acabasse.

Quando terminassem, Ferco voltaria com Tubruk para casa, deixando o quarto alugado sem qualquer traço deles. Tubruk seria acorrentado a outros escravos que iam deixar a cidade, com o rosto inchado. Seu último ato diante do mercado de escravos fora assinar um vale de venda em seu próprio nome. Ferco entregaria mais um escravo anônimo na propriedade fora de Roma, pronto para uma vida de trabalho exaustivo nos campos.

Finalmente Tubruk levantou a mão e Ferco parou, ofegando e espantado com a quantidade de esforço despendido na surra. O homem que estava sentado na cadeira tinha apenas uma pequena semelhança com o que viera da rua. Estava satisfeito.

- Nunca bato nos meus escravos - murmurou. Tubruk levantou a cabeça devagar.

- Você não bateu num escravo - falou, engolindo sangue.

Brutus se abaixou debaixo de um afloramento de pedra, ofegando. Os perseguidores tinham trazido arcos, e seu rápido vislumbre mostrara dois arqueiros ficando atrás enquanto os outros se esgueiravam cautelosamente em direção ao lugar onde eles estavam. Assim que ele e Rênio fossem obrigados a se mostrar, as flechas iriam penetrar neles, e tudo acabaria.

Brutus se comprimiu o máximo possível contra a rocha escura, pensando furiosamente. Tinha certeza de que havia reconhecido o marido de Lívia como um dos arqueiros, de modo que parecia que ele fora persuadido da inocência da garota enquanto não havia ninguém para argumentar com ela. Sem dúvida, Lívia iria recebê-lo em casa como herói, se ele chegasse arrastando o corpo de Brutus.

O pensamento nela aqueceu Brutus por um momento. O marido chato provavelmente nunca apreciaria o que ele tivera.

Rênio tinha dado sua adaga ao jovem, preferindo o peso sólido de seu gládio. Brutus estava com a espada na bainha e uma pequena faca em cada mão enquanto esperava. Sabia que podia atirá-las suficientemente bem para matar, mas dificilmente eles lhe dariam chance de mirar antes que os arqueiros disparassem. Seria difícil.

Pôs a cabeça acima da borda e observou a posição dos homens que subiam em sua direção. Os arqueiros gritaram um alerta aos companheiros, mas Brutus já estava fora das vistas e indo para uma nova posição. Dessa vez se levantou totalmente e atirou uma faca antes de se jogar no chão.

Uma flecha passou acima, mas Brutus riu ao ouvir a faca acertando a carne. Moveu-se de novo, avançando ao longo da crista para perto de Rênio, com a segunda faca pronta na mão.

- Acho que só o arranhou - murmurou Rênio.

Brutus franziu a testa, por ter perturbado sua concentração, ruborizando quando um jorro de xingamentos soou por cima da crista.

- E o irritou - acrescentou Rênio.

Brutus se retesou para outra tentativa. Teria adorado mirar num dos arqueiros, mas o arco poderia simplesmente ser apanhado por outro, e eles estavam mais longe da pequena crista que escondia os romanos.

Saltou e descobriu um dos inimigos quase em cima dele. O homem se assustou com a súbita aparição, e Brutus afundou a lâmina em sua garganta exposta, saltando para trás e se arrastando de barriga no chão, levantando poeira.

Mais dois vieram balançando as espadas. Brutus se levantou para enfrentá-los, tentando ficar de olho nos arqueiros atrás e estragar a mira deles com saltos súbitos para a esquerda e a direita.

Uma flecha atravessou o ar perto de suas pernas enquanto o primeiro grego era empalado pelo seu gládio. Brutus se agarrou no corpo frouxo, usando-o como escudo. Apesar de estar morrendo, o homem gritou e xingou Brutus enquanto o rapaz dançava com ele para um lado e outro. Uma flecha veio de lugar nenhum e atravessou as costas do homem, fazendo o sangue jorrar de sua boca no rosto de Brutus, que xingou e jogou o corpo nos braços do companheiro dele, depois levantou o gládio contra a virilha do inimigo, no clássico golpe de legião. Os dois caíram para longe em silêncio, nos arbustos e flores, e Brutus se pegou olhando o marido de Lívia no momento em que este soltou sua flecha.

Começou a se mover, mas a haste turva o alcançou enquanto se virava, derrubando-o de costas. A armadura tinha-o salvado, e Brutus abençoou os deuses pela sorte enquanto rolava. Levantou-se e viu Rênio dar um soco, derrubando o marido de Lívia antes de encarar o último deles, que ficou parado cheio de terror, com os braços tremendo sob a tensão do arco.

- Calma, garoto - gritou Rênio. - Desça até o seu cavalo e vá para casa. Se disparar essa coisa, corto sua garganta a dentadas.

Brutus deu um passo na direção de Rênio, mas o velho gladiador estendeu uma mão para impedi-lo.

- Ele sabe o que tem de fazer, Brutus, só lhe dê um pouquinho de tempo - disse Rênio com clareza.

O rapaz que segurava o arco retesado balançou a cabeça, parecendo pálido de tensão. O marido de Lívia se retorceu no chão e Rênio pisou em seu pescoço para segurá-lo.

- Vocês tiveram sua batalha, garotos, agora vão para casa e impressionem suas mulheres com a história - continuou Rênio, aumentando suavemente a pressão de modo que o marido de Lívia começou a gadanhar seu pé, sufocando.

O arqueiro afrouxou a corda e deu dois passos para longe.

- Solte-o - disse o rapaz, num sotaque forte. Rênio deu de ombros.

- Primeiro jogue o seu arco para longe.

O rapaz hesitou por tempo suficiente para o marido de Lívia ficar roxo, e então jogou o arco por cima das pedras atrás dele, com barulho. Rênio tirou o pé, deixando o marido de Lívia se levantar, chiando. O velho gladiador não se moveu enquanto os dois jovens gregos se distanciavam.

- Esperem! - gritou Brutus subitamente, fazendo todos se imobilizarem. - Vocês têm três cavalos e não precisam de todos. Eu quero dois.

Cornélia se sentou com as costas eretas, os olhos brilhantes de preocupação enquanto encarava Antonido, aquele a quem chamavam de cão de Sila.

O homem era implacável, ela sabia, e ele observava cada mudança em seu rosto enquanto a interrogava com concentração aterrorizante. Ela não tinha ouvido nada de bom a respeito do general de Sila, e agora tinha de lutar para não demonstrar medo ou alívio diante da notícia que ele trouxera.

Sua filha estava dormindo em seus braços. Tinha decidido chamá-la de Júlia.

- Seu pai, Cina, sabe que você está aqui? - perguntou ele, com a voz cortante enquanto o olhar se cravava nela.

Cornélia balançou a cabeça ligeiramente.

- Não creio. Sila mandou me trazer da casa de meu marido, fora da cidade. Eu estou esperando nestes aposentos, com o meu bebê, há dias, sem ver ninguém além de escravos.

O general franziu a testa, como se alguma coisa que ela tivesse dito não soasse verdadeiro, mas seus olhos jamais se afastavam dos dela.

- Por que Sila chamou-a?

Ela engoliu em seco, nervosa, e soube que ele percebeu isso. O que poderia lhe dizer? Que Sila a havia estuprado com a filha chorando ao lado? Ele podia rir ou, pior, pensar que ela estava tentando sujar o nome do grande homem depois de sua morte e mandar matá-la.

Antonido olhou-a se retorcer de preocupação e medo e quis lhe dar um tapa. Ela era suficientemente bela para tornar óbvio o motivo de ter sido chamada, mas ficou se perguntando como Sila podia ter se sentido excitado por um corpo ainda frouxo do parto.

Imaginou se o pai dela estaria por trás do assassinato e quase xingou ao perceber que havia mais um nome para acrescentar à lista de inimigos. Seus informantes haviam lhe dito que Cina estava numa viagem de negócios ao norte da Itália, mas assassinos poderiam ser mandados de lá. Levantou-se de repente. Orgulhava-se de sua capacidade de identificar uma mentira, mas ou ela era idiota ou não sabia de nada.

- Não viaje. Onde estará caso eu precise trazê-la de volta para cá? Cornélia pensou por um momento, lutando contra a súbita empolgação.

Seria libertada! Será que deveria voltar à casa da cidade ou à propriedade da família de Júlio?

Clódia provavelmente ainda estava lá, pensou.

- Estarei fora da cidade, na casa onde fui apanhada antes. Antonido assentiu, com os pensamentos já nos problemas que estava enfrentando.

- Sinto muito pela tragédia - ela forçou-se a dizer.

- Os responsáveis vão sofrer tremendamente - disse ele com a voz dura. De novo ela sentiu a intensidade do interesse do homem, fazendo sua expressão parecer falsa sob o escrutínio dele.

Depois de mais um momento, ele se levantou e se afastou atravessando o piso de mármore. O bebê acordou e começou a gemer para mamar. Sozinha e sem uma aia, Cornélia desnudou o seio para a boca da criança e tentou não chorar.

 

Tubruk acordou com cãibras e ainda rígido de frio na escuridão da casa dos escravos. Podia ouvir outros corpos se mexendo em volta, mas não havia sinal do amanhecer no cômodo onde eles dormiam acorrentados e eram preparados para viajar.

Desde as primeiras horas com Ferco, trabalhando nos detalhes, era nessa parte que ele mal se permitira pensar. Parecia uma pequena preocupação diante da possibilidade de tortura e morte que viria caso o atentado contra a vida de Sila tivesse falhado, ou se ele fosse apanhado fugindo. Havia tantos modos para ele sofrer um desastre que a noite e o dia que passaria como escravo haviam sido empurrados para o fundo da mente, quase esquecidos.

Olhou ao redor, os olhos percebendo as formas até mesmo no escuro. Podia sentir o peso das algemas de metal prendendo suas mãos à corrente lisa que fazia barulho ao menor movimento. Tentou não se lembrar de como tinha sido na primeira vez, mas sua memória trouxe de volta aqueles dias, noites e anos até que se amontoaram e murmuraram dentro dele, e era difícil não gritar. Alguns dos homens acorrentados choravam baixinho, e Tubruk nunca ouvira um som mais triste.

Eles podiam ter sido trazidos de terras distantes ou ter sido forçados à escravidão devido a crime ou dívidas. Havia uma centena de maneiras, mas ter nascido escravo era pior do que todo o resto, ele sabia. Quando pequenos podiam correr e brincar numa ignorância feliz até ter idade suficiente para entender que não possuíam futuro, além de ser vendidos.

Tubruk sentiu os cheiros de um estábulo: óleo e palha, suor e couro, limpos animais humanos que não possuíam nada e eram possuídos. Ergueu-se contra o peso das correntes. Os outros escravos achavam que ele era um deles, culpado de alguma coisa, para ter sido tão espancado. O guarda o havia marcado como encrenqueiro pelo mesmo motivo. Somente Ferco sabia que ele era livre.

O pensamento não trouxe conforto. Não bastava dizer a si mesmo que estava a apenas uma curta viagem da propriedade rural e da liberdade. Se você é considerado escravo e está acorrentado no escuro, incapaz até mesmo de se levantar, onde está a preciosa liberdade? Se um homem livre é preso numa fila de escravos, ele é escravo, e Tubruk sentiu o velho medo sem nome que sentira no mesmo cômodo havia décadas. Comer, dormir, levantar-se e morrer pela vontade de outro - tinha retornado a tudo isso, e seus dias de orgulho por ter aberto o caminho para a liberdade pareciam cinzas.

- É uma coisa tão frágil - falou, só para ouvir sua voz, e o homem ao lado grunhiu acordando, quase puxando Tubruk enquanto lutava para se virar.

Tubruk afastou os olhos, agradecendo pela escuridão. Não queria que a luz entrasse pelas janelas altas para revelar os rostos. Eles estavam indo para vidas curtas e brutais nos campos, trabalhando até cair e não poder se levantar mais. E eram como ele. Talvez um ou dois homens naquele cômodo fossem escolhidos pela força ou velocidade e treinados para o circo. Em vez de terminar a vida como aleijados carregadores de água ou levados pela doença, sangrariam o futuro na areia. Um ou dois poderiam ter filhos e vê-los ser levados para a venda assim que crescessem.

A luz veio lentamente, mesmo contra a sua vontade, mas os escravos acorrentados estavam imóveis, indiferentes em seu confinamento. Para muitos, o único sinal de vigília era um leve chacoalhar das correntes enquanto se esticavam. Com a luz vinha a comida, e eles esperaram com paciência.

Tubruk levou a mão ao rosto e se encolheu ao perceber o inchaço provocado pelos socos de Ferco na noite anterior. A surpresa do guarda tinha sido óbvia quando Tubruk foi trazido. Ferco nunca fora um homem cruel, e o guarda soube que Tubruk devia tê-lo insultado terrivelmente para levar um espancamento tão óbvio na noite antes de ser entregue aos novos donos.

Nenhuma pergunta fora feita, claro. Mesmo que os escravos pudessem passar apenas alguns dias na casa enquanto Ferco recebia seu lucro, ele os possuía tão absolutamente quanto o assento em que se sentava ou as roupas que vestia.

Todos receberam tigelas de madeira com uma misturada de legumes cozidos e pão, e Tubruk estava enfiando os dedos na sua quando a porta se abriu de novo e três soldados entraram com Ferco. Tubruk manteve o rosto abaixado, como os outros, não ousando encará-los, nem mesmo por acidente. Um murmúrio de interesse varreu o cômodo, mas Tubruk não participou. Tentou adivinhar por que estariam ali, e sua barriga pareceu esfriar com a tensão. Eles já deveriam ter falado com todos os funcionários da cozinha de Sila e descoberto que um tal de Dálcio havia desaparecido. Ferco tinha dito que ele seria examinado nos portões da cidade antes de partir, mas não esperava que fossem tão meticulosos a ponto de revistar suas salas de escravos antes mesmo da partida.

À luz cinzenta da manhã, Tubruk achou que seria identificado imediatamente, mas os soldados prosseguiram sem pressa entre os escravos que comiam, claramente pretendendo ser meticulosos na tarefa recebida. E deviam ser mesmo, pensou Tubruk azedamente. Se não o descobrissem aqui e ele fosse identificado no portão, eles seriam punidos severamente. Imaginou se Sila tinha comido o veneno e sabia que não teria certeza durante dias ou até mesmo semanas, caso o Senado optasse por adiar a notícia, O povo de Roma praticamente nunca via o Ditador, a não ser à distância, acima de uma multidão. Eles continuariam com suas vidas e, se Sila sobrevivesse, talvez nunca soubessem do atentado.

Uma mão áspera se enfiou debaixo de seu queixo enquanto ele mastigava a comida lentamente. Tubruk deixou que sua cabeça fosse levantada e se pegou olhando nos olhos de um jovem legionário. Engoliu o bocado e tentou não demonstrar preocupação.

O soldado assobiou.

- Esse aí levou uma tremenda surra - falou em voz baixa.

Tubruk piscou os olhos inchados, nervoso.

- Ele insultou minha esposa, oficial - disse Ferco. - Eu mesmo administrei a punição.

- Foi mesmo?

Tubruk sentiu o coração bombear violentamente enquanto desviava os olhos, lembrando-se tarde demais de que estivera sustentando o olhar quando não devia.

- Eu lhe abriria a barriga, se insultasse a minha - disse o legionário, deixando o queixo de Tubruk tombar.

- E perder o meu lucro? - respondeu Ferco rapidamente. O oficial deu um riso de desprezo e cuspiu uma palavra:

- Mercadores.

Passou para o próximo com Ferco, e Tubruk limpou a tigela, seguran-do-a com força para esconder as mãos que tremiam de alívio. Minutos depois os soldados tinham ido embora e os guardas entraram para chutá-los até ficarem de pé, prontos para ser presos na carroça que iria levá-los para fora de Roma, para suas novas casas e novas vidas.

Júlio apertava a cabeça contra as barras da pequena cela no porão da trirreme, fechando o olho esquerdo para ver mais claramente o que estava acontecendo. Com aquele olho aberto, o borrão trazia dores de cabeça, e ele queria adiar isso ao máximo possível a cada dia. Respirou fundo e se virou de novo para os outros.

- Definitivamente é um porto. O ar é quente, e sinto cheiro de frutas ou temperos. Diria que é na África.

Depois de um mês na semi-escuridão apinhada, as palavras causaram uma agitação de interesse nos romanos que estavam sentados ou deitados de encontro às laterais de madeira da prisão. Ele os olhou e suspirou antes de arrastar os pés até o seu lugar, abaixando-se cuidadosamente para evitar colocar o peso no braço quebrado.

O mês tinha sido duro com todos. Sem navalhas nem água com que se lavar, os soldados geralmente exigentes eram um grupo maltrapilho, imundo e barbudo. O balde que tinham recebido como toalete estava transbordando e cheio de moscas zumbindo. Ficava num canto especial, mas o excremento tinha escorrido para o piso ao redor, e eles não tinham panos para se limpar. No calor do dia o ar tinha o fedor de doença, e dois deles haviam desenvolvido febres que Caberá mal podia controlar.

O velho curandeiro fazia o possível, mas era meticulosamente revistado sempre que trazia a comida ou vinha cuidar dos doentes. Os piratas ainda o mantinham ocupado com suas próprias doenças, e Caberá disse que era óbvio que eles não tinham um curandeiro a bordo havia muitos anos.

Júlio sentiu a dor de cabeça começando e conteve um gemido. Desde que havia recuperado a consciência as dores estavam com ele, minando sua energia e sua força, e fazendo-o ser rude com os outros. Todos estavam irritadiços, e a disciplina que tinham tido um dia estava sendo erodida diariamente na escuridão, com Gadítico precisando intervir mais de uma vez para impedir socos quando os ânimos se acirravam.

Com os olhos fechados, a dor de cabeça permanecia quieta, mas Caberá tinha dito que ele não devia parar de usar o olho turvo e que devia passar horas a cada dia focalizando perto e longe, para não perdê-lo quando finalmente voltassem ao sol. Ele precisava acreditar que aquilo acabaria. Voltaria a Roma, para Cornélia, e o sofrimento se transformaria em lembranças. Ajudava um pouco imaginar que isso já havia acontecido, que ele estava sentado ao sol sobre o muro da propriedade no campo, com o braço em volta da cintura fina de Cornélia, e com o ar fresco e limpo das colinas balançando seus cabelos. Ela perguntaria como tinha sido na imundície e no fedor da cela, e ele faria pouco de tudo aquilo. Queria ser capaz de lembrar com mais clareza o rosto dà mulher.

Levantou a mão e franziu a vista para ela, depois para a porta gradeada, repetidamente até que a dor de cabeça começou a latejar na têmpora esquerda. Deixou a mão tombar e fechou os olhos para a situação devastada depois de um mês comendo rações que os impediam de morrer, mas pouco mais do que isso. O que não daria por uma ostra fria escorrendo pela garganta! Sabia que era estúpido se torturar, mas sua mente produzia visões luminosas das conchas, tão reais como se estivessem penduradas diante dele, e tão nítidas quanto sua visão tinha sido antes da luta na Accipiter.

Não recordava nada daquele dia. Pelo modo como sua memória contava, ele tinha passado de saudável e forte para quebrado e dolorido num instante, e nos primeiros dias de consciência estivera cheio de fúria contra o que lhe fora tirado. Ficou cego do olho esquerdo por tempo suficiente para achar que nunca mais enxergaria de novo e que jamais poderia usar uma espada com alguma habilidade.

Suetônio lhe dissera que os homens com um olho só não podiam ser bons lutadores, e ele já percebia que errava as coisas ao tentar pegá-las, com a mão cortando o ar quando não conseguia avaliar a distância direito. Pelo menos isso tinha voltado com a visão, ainda que as silhuetas tremulantes que conseguia ver com o olho esquerdo o enfurecessem, dando vontade de esfregar o olho para limpá-lo. A mão subiu para fazer exatamente isso, pelo hábito, e ele se conteve, sabendo que não adiantaria.

A dor de cabeça pareceu achar outro canal no cérebro e abriu caminho por ele até que esse ponto passou a latejar em sincronia com o outro. Esperava que ela ficasse ali, e não fosse em frente. A idéia do que vinha acontecendo era um medo que ele mal havia começado a explorar, mas por três vezes a dor havia crescido até provocar clarões que o consumiam, e ele tinha acordado com os lábios amargos da bile amarela, deitado em sua própria imundície com Gadítico segurando-o sério. No primeiro ataque mordera a língua com força suficiente para a boca se encher de sangue e o engasgar, mas agora eles haviam rasgado uma tira de pano de sua túnica para enfiar entre seus dentes enquanto ele se convulsionava, cego.

Todos os soldados fedorentos e de olhos vermelhos levantaram a cabeça ao ouvir passos nos degraus estreitos que desciam do convés. Qualquer coisa incomum era aproveitada para interromper o tédio interminável, e até mesmo os dois que estavam com febre tentaram ver, mas um caiu para trás, exausto.

Era o capitão, que quase parecia brilhar com a pele limpa e saudável comparado aos homens da Accipiter. Era suficientemente alto para ter de baixar a cabeça ao entrar na cela, acompanhado por outro homem que trazia uma espada e uma adaga, pronto para repelir algum ataque súbito.

Se sua cabeça não estivesse pulsando com a doença maligna, Júlio poderia ter rido da proteção. Os romanos tinham perdido a força, incapazes de se exercitar. Ele ainda ficava espantado ao ver a rapidez com que os músculos se enfraqueciam pela falta de uso. Caberá tinha mostrado como se manterem fortes, fazendo força uns contra os outros, mas isso não parecia Produzir muita diferença.

O capitão estava com a respiração curta, os olhos vendo o balde cheio de excremento. Seu rosto era bronzeado e enrugado pelos anos passados franzindo a vista diante da claridade do mar. Até mesmo as roupas tinham um cheiro fresco, e Júlio ficou doido para estar ao ar livre, em espaços abertos, com uma força tão grande que seu coração martelava de necessidade.

- Chegamos a um porto seguro. Em seis meses, talvez, vocês serão largados em alguma noite solitária, livres e pagos.

O capitão parou para desfrutar o efeito das palavras. Só a menção de um fim para a prisão fez com que o olhar de cada homem se grudasse nele.

- As quantias a ser pedidas é que são um problema delicado - continuou ele, com a voz agradável como se estivesse falando com um grupo de homens que conhecia bem, e não de soldados que iriam despedaçá-lo com os dentes se tivessem forças. - Não deve ser tanto que seus entes queridos não possam pagar. Pára esses nós não temos utilidade. Mas de algum modo não acredito que vocês serão sinceros se eu pedir que digam quanto suas famílias pagarão. Estão entendendo?

- Entendemos muito bem - disse Gadítico.

- É melhor que cheguemos a um acordo, eu acho. Cada um de vocês vai dizer seu nome, patente e riqueza, e eu decidirei se estão mentindo e acrescentarei o que achar certo. Talvez seja como um jogo.

Ninguém respondeu, mas foram feitas promessas silenciosas aos seus deuses, e o ódio era bastante claro nas expressões.

- Bom. Então vamos começar.

Ele apontou para Suetônio, com o olhar atraído enquanto o rapaz coçava os piolhos que deixavam feridas vermelhas no corpo de todos.

- Suetônio Prando. Sou oficial de vigia, o posto mais baixo. Minha família não tem nada para vender - respondeu Suetônio, com a voz densa e rouca pela falta de uso.

O capitão franziu a testa para ele, avaliando. Como os outros, não havia nada que inspirasse sonhos de riqueza em seu corpo magro. Júlio percebeu que o capitão estava simplesmente se divertindo à custa deles. Sentindo prazer ao ter os arrogantes oficiais de Roma reduzidos a barganhar com o inimigo. Mas que opção eles tinham? Se o pirata exigisse demais e suas famílias não conseguissem pegar o dinheiro emprestado ou, pior, caso recusassem pagar, viria uma morte rápida. Era difícil não participar do jogo.

- Acho que pelo posto mais baixo vou pedir dois talentos: quinhentas moedas de ouro.

Suetônio ofegou, ainda que Júlio soubesse que a família dele poderia pagar isso com facilidade, ou dez vezes essa quantia.

- Pelos deuses, homem. Eles não têm tanto dinheiro! - disse

Suetônio, com o corpo sujo ajudando a dar a sensação de verdade às palavras.

O capitão deu de ombros.

- Reze a esses deuses para eles poderem levantar o dinheiro, caso contrário você vai para o mar, com um pedaço de corrente para mantê-lo no fundo.

Suetônio se deixou afundar num desespero aparente, mas Júlio sabia que ele devia estar se considerando mais esperto do que o pirata.

- Você, centurião? É de uma família rica? - perguntou o capitão. Gadítico olhòu-o irritado, antes de falar.

- Não sou, mas nada que eu disser fará qualquer diferença para você - rosnou antes de desviar o olhar.

O capitão franziu a testa diante do pensamento.

- Acho... sim, para um centurião, um capitão, como eu... seria um insulto se eu pedisse menos de vinte talentos. Seriam umas cinco mil moedas de ouro, eu acho. Sim.

Gadítico o ignorou, mas pareceu afundar ligeiramente, em desespero.

- Qual é o seu nome? - perguntou o capitão a Júlio.

Ele também pensou em ignorar o outro, mas então sua dor de cabeça latejou e uma lança de fúria se ergueu dentro dele.

- Meu nome é Júlio César. Eu comando uma vintena. E também sou chefe de uma casa rica.

As pálpebras do capitão se ergueram, e os outros murmuraram, incrédulos. Júlio trocou um olhar com Gadítico, que balançou a cabeça numa mensagem clara.

- Chefe de uma casa! É uma honra conhecê-lo - disse o capitão com um riso de desprezo. - Talvez vinte talentos sejam justos para você também.

- Cinqüenta - disse Júlio, empertigando as costas.

O capitão piscou, com seus modos tranqüilos desaparecendo.

- São vinte mil peças de ouro - disse ele, com o espanto suplantando a complacência.

- Cobre cinqüenta - respondeu Júlio com firmeza. - Depois de encontrar você e matá-lo, vou precisar de dinheiro. Estou longe de casa, afinal de contas.

Apesar da dor de cabeça, ele conseguiu dar um riso selvagem. O capitão se recuperou rapidamente da surpresa.

- Você foi o que quebrou a cabeça. Deve ter enlouquecido no meu convés. Vou pedir cinqüenta, mas, se não vier, o mar é suficientemente fundo para guardá-lo.

- Não é suficientemente largo para esconder você de mim, seu filho da puta. Vou pregar seus homens numa fila de cruzes ao longo de toda a costa. Seus oficiais eu posso mandar estrangular, por misericórdia. Tem minha palavra.

Os soldados irromperam em gritos de concordância e riram do capitão, que empalideceu de fúria. Por um momento, parecia que ele entraria mais na cela para golpear Júlio, mas se controlou e olhou em volta, cheio de escárnio pelos homens presos.

- Vou cobrar preços altos por todos vocês. Vejam se vão comemorar então! - gritou acima das zombarias enquanto saía com o tripulante, que trancou a porta muito bem, balançando a cabeça incrédulo para Júlio, por entre as barras.

Quando teve certeza de que não havia ninguém para ouvir, Suetônio se aproximou de Júlio.

- Por que fez isso, seu idiota? Ele vai transformar nossas famílias em mendigos por causa do seu orgulho imbecil.

Júlio deu de ombros.

- Ele vai cobrar o que achar que pode conseguir, do mesmo modo como faria antes de descer aqui, mas talvez peça cinqüenta por mim, só de raiva.

- César está certo - disse Gadítico. - Ele só estava jogando com a gente. - E de súbito deu um risinho. - Cinqüenta! Viram a cara dele? Isso era Roma dentro de você, garoto. - Seu riso se transformou numa tosse, mas ele continuou sorrindo.

- Acho que você foi errado em provocá-lo - continuou Suetônio, e um ou dois dos outros murmuraram concordando.

- Ele matou romanos e afundou a Accipiter, e vocês acham que deveríamos entrar no joguinho? Eu cuspiria em vocês se tivesse saliva - disse Júlio com rispidez. - E falei sério. Assim que estiver livre, vou achá-lo e matá-lo. Mesmo que demore anos, ele vai ver meu rosto antes de morrer.

Suetônio veio até ele, furioso, mas foi seguro por Peritas quando tentou passar.

- Sente-se, idiota - rosnou Peritas, empurrando-o de volta. - Não há sentido em brigar entre nós, e ele nem está recuperado ainda.

Suetônio recuou com uma carranca que Júlio ignorou, coçando preguiçosamente por baixo da tala do braço enquanto pensava. Seus olhos observaram os homens doentes caídos na palha úmida e fedorenta.

- Este lugar vai nos matar - disse ele. Peritas assentiu.

- Sabemos que eles guardam o topo da escada com dois homens. Teremos de passar por eles. Agora que estamos atracados, pode valer a tentativa, não é?

- Talvez - disse Júlio -, mas eles são cuidadosos. Mesmo que pudéssemos arrancar as dobradiças da porta, a escotilha do convés é trancada por cima sempre que alguém desce aqui, até mesmo Caberá. Não vejo como a gente poderia quebrá-la suficientemente rápido para sair antes que haja uma multidão esperando.

- Poderíamos usar a cabeça de Suetônio - disse Peritas. - Alguns golpes fortes e uma das duas coisas arrebentaria. Em qualquer das duas opções seria uma vitória.

Júliu riu com ele.

Na noite seguinte um dos doentes morreu. O capitão deixou Caberá arrastar o corpo e jogá-lo no mar sem cerimônia. O humor dos que restavam afundou em direção ao completo desespero.

 

Estou rodeado por mulheres - disse Tubruk animado quando Aurélia, Cornélia e Clódia entraram, trazendo vida e energia ao calmo triclínio.

Nas semanas depois de Ferco tê-lo trazido para dentro dos portões e posto a nota de compra em suas mãos desamarradas, Tubruk havia recuperado boa parte da paz que perdera na cidade. A reunião a cada manhã para comer tinha se tornado um ritual para os quatro, e Tubruk havia começado a ansiar pelo desjejum leve. Aurélia estava sempre melhor de manhã e, se ele era um bom juiz, havia uma verdadeira amizade entre Cornélia, Clódia e ela. A casa não via risos desde antes dos tumultos dos escravos, e elas levantavam o ânimo de Tubruk.

Seu rosto se curou com o tempo, mas ele tinha uma nova cicatriz sobre o olho esquerdo para lembrá-lo do sofrimento. Lembrava-se do alívio que sentiu ao ver os legionários vestidos de preto nas ruas, um uniforme que a cidade veria durante um ano inteiro como luto pela morte do ditador. Mesmo então, o tecido escuro tinha parecido inadequado para o humor de Roma. Ferco lhe dissera que havia uma nova brisa soprando no Senado, com Cina e Pompeu trabalhando para restaurar a velha República e de novo fazer dormir os fantasmas dos reis, que Sila tinha trazido de volta às ruas.


Agora o administrador da propriedade rural só ia raramente à cidade, e sempre com cautela. Achava que eram boas as chances de nunca ser ligado ao envenenamento do líder de Roma, mas seria preciso apenas uma acusação, e o Senado arrasaria a propriedade procurando provas. Se achassem Ferco e o torturassem, Tubruk tinha certeza de que o mercador o entregaria a eles. Ferco tinha uma família à qual amava, e honra e amizade desmoronavam diante disso. Mesmo assim fora a coisa certa a fazer, e eles tinham vencido, mesmo que ele jamais conhecesse um dia de paz completa enquanto os amigos e defensores de Sila procurassem o assassino.

Um mês depois de sua volta, Tubruk tinha posto uma capa pesada e ido de cavalo à cidade fazer oferendas nos templos de Marte e Vesta, agradecendo pela vida de Cornélia. Também tinha rezado pela alma de Casavério e do guarda que matara no portão.

Cornélia estava com a filha sentada no colo, e Clódia estendia a mão a intervalos para fazer cócegas nas axilas do bebê e provocar risos. Até Aurélia sorria das gargalhadas infantis que vinham de Júlia, e Tubruk passou mel em seu pão com uma mistura de emoções borbulhando por dentro. Era bom que Aurélia tivesse encontrado um pouco da felicidade antiga. Ela passara muito tempo rodeada por homens sérios. Quando segurou a neta no colo pela primeira vez, tinha chorado sem soluços, com as lágrimas caindo.

Mas ele tinha certeza de que ela estava decaindo, e esse pensamento lhe trazia dor enquanto via que Aurélia não comera com os outros. Gentilmente, Tubruk empurrou um prato de pão fresco e crocante para perto dela, sobre a mesa baixa, e seus olhos se encontraram por um segundo. Ela pegou um pedaço e tirou uma lasca, mastigando-a lentamente enquanto ele olhava. Aurélia tinha dito que comer provocava os ataques, deixando-a doente e vomitando. Não havia apetite e, antes de ele observá-la com atenção, ela estivera perdendo peso de modo alarmante, mal comendo qualquer coisa.

Ela estava se desfazendo à sua frente, e, não importando o que ele dissesse quando estavam a sós, Aurélia apenas chorava e dizia que não conseguia comer. Não havia espaço nela para comida.

Clódia fez cócegas na criança e foi recompensada por um súbito arroto acompanhado por leite vomitado. As três mulheres se levantaram ao mesmo tempo para ajudar a limpar, e Tubruk se levantou junto, sentindo-se excluído e não se importando nem um pouco.

- Gostaria que o pai dela estivesse aqui para vê-la crescer - disse Cornélia, pensativa.

- Ele estará, querida - respondeu Tubruk. - Eles têm de manter os reféns vivos, caso contrário o trato acaba. Para eles é só um negócio. Júlio virá para casa e, agora que Sila está morto, ele pode recomeçar.

Ela pareceu receber mais esperanças nas palavras do que ele próprio sentia. Não obstante o que acontecesse, Tubruk sabia que, mesmo que Júlio conseguisse voltar, não seria o mesmo depois das experiências. O jovem que tinha embarcado para escapar de Sila tinha morrido. Quem voltaria ainda era desconhecido. A vida seria dura para todos eles depois de pagar um resgate tão elevado. Tubruk tinha vendido parte da terra à família de Suetônio, que havia barganhado cruelmente o preço, sabendo da necessidade dele devido à sua própria demanda. Tubruk suspirou. Pelo menos Júlio ficaria satisfeito por ter uma filha e uma mulher para amá-lo. Isso era mais do que Tubruk possuía.

Olhou para Clódia e a encontrou olhando de volta, com algo que trouxe o sangue ao seu rosto, como se fosse um menino. Ela piscou para ele antes de se virar para ajudar Cornélia, e ele se sentiu estranhamente desconfortável. Sabia que deveria sair para ver os trabalhadores que esperavam suas ordens, mas sentou-se e pegou outro pedaço de pão e comeu devagar, esperando que ela o olhasse de novo.

Aurélia cambaleou ligeiramente, e Tubruk foi depressa até lá, segurando seu ombro. Ela estava incrivelmente pálida, e a pele parecia de cera. Ele sentiu a falta de carne debaixo da stola, e a tristeza sempre presente cresceu por dentro.

- A senhora deveria descansar - falou em voz baixa. - Levo mais comida depois.

Aurélia não respondeu, seus olhos assumindo o ar distante. Ela se moveu com ele, levada para longe da mesa, os passos hesitantes e fracos. Tubruk sentiu os tremores no corpo dela começando de novo, cada vez deixando-a mais fraca do que a última.

Cornélia e Clódia foram deixadas a sós com a criança, que bateu a mão-zinha no vestido da mãe, tentando achar um mamilo.

- Ele é um bom homem - disse Clódia, olhando para a porta por onde os dois tinham saído.

- Uma pena ser velho demais para virar marido - respondeu Cornélia ineptamente.

Clódia firmou o queixo.

- Velho? Ele ainda é forte onde importa - disse, com a voz incisiva. Então viu os olhos brilhantes de Cornélia e ruborizou. - Você está vendo demais, menina. Deixe a criança mamar.

- Ela está sempre com fome - disse Cornélia, encolhendo-se quando deixou Júlia se grudar, apertando o rostinho contra o peito.

- Isso ajuda a gente a amá-la - disse Clódia, e, quando Cornélia ergueu os olhos diante daquele tom de voz, os olhos de Clódia estavam cheios de lágrimas.

 

Na semi-escuridão fresca do quarto, Tubruk abraçou Aurélia com força até o ataque finalmente passar. A pele dela queimava contra a dele, e ele balançou a cabeça diante de tamanha magreza. Por fim, ela o reconheceu de novo, e ele deitou-a nas almofadas macias.

Abraçara-a pela primeira vez na noite do funeral do marido, e isso havia se tornado um ritual entre os dois. Ele sabia que ela se reconfortava com sua força e havia menos machucados nesses dias, com os membros que se sacudiam presos com força nos braços dele. Tubruk descobriu que estava ofe-gante e imaginou de novo como era possível que ela tivesse tanta força num corpo tão devastado.

- Obrigada - sussurrou ela com os olhos entreabertos.

- Não foi nada. Vou lhe trazer uma bebida fresca e deixá-la descansar.

- Não quero que me deixe, Tubruk.

- Eu não disse que cuidaria da senhora? Estarei aqui enquanto precisar de mim - disse ele, tentando forçar uma alegria na voz.

Ela abriu os olhos totalmente e virou a cabeça para ele.

- Júlio disse que ficaria comigo, mas partiu. Agora meu filho também se foi.

- Às vezes os deuses zombam de nossas promessas, querida, mas seu marido era um homem decente. Seu filho também voltará em segurança, se é que eu o conheço.

Ela fechou os olhos de novo e Tubruk esperou até que o sono natural voltasse, antes de sair do quarto.

 

Enquanto tempestades se chocavam no litoral, a trirreme atracada se sacudia violentamente apesar do abrigo na minúscula baía africana, longe das terras pertencentes a Roma. Vários dos oficiais estavam com ânsias de vômito, mas não havia comida para sair. Os que tinham água na barriga, por causa da ração magra, lutavam para não perder uma gota, com as mãos apertando a boca com força. Nunca havia suficiente, e no forte calor seus corpos ansiavam por umidade de qualquer tipo. A maioria punha as mãos em concha enquanto urinava, bebendo o líquido de volta o mais rápido possível, antes que se perdesse.

Júlio permaneceu sem se afetar com o balanço do navio e sentiu um prazer considerável com o desconforto de Suetônio, que estava deitado de olhos fechados, gemendo baixinho com as mãos na barriga.

Apesar do enjôo, havia um novo otimismo na cela minúscula. O capitão tinha mandado um homem dizer que todos os resgates tinham sido pagos, viajando por terra e mar até um ponto de encontro secreto onde um agente dos piratas havia completado a última parte da longa viagem e trazido o ouro até este porto distante. Júlio sentira que era uma pequena vitória o capitão não ter vindo pessoalmente. Eles não o viram durante meses desde que o sujeito tentara atormentá-los, e isso agradava a todos. Tinham passado pelo ponto mais baixo do cativeiro e estavam ficando mais fortes.

O grupo desesperado dos primeiros meses agora aguardava pacientemente a libertação. A febre reivindicara mais dois, diminuindo um pouco o aperto. Depois disso, a nova vontade de sobreviver vinha parcialmente de Caberá, porque finalmente tinha conseguido barganhar rações melhores para eles. Tinha sido uma jogada perigosa, mas o velho percebeu que pouco mais da metade deles chegaria à liberdade a não ser que fossem mais bem alimentados e limpos, por isso havia se sentado no convés e se recusado a curar outro pirata até que lhe dessem alguma coisa em troca. Na época, o capitão estava sofrendo de uma erupção virulenta que pegara no porto e praticamente não reclamou antes de permitir. Com a comida veio a esperança, e os homens começaram a acreditar que poderiam ver Roma e a liberdade de novo. As gengivas inchadas e sangrentas começaram a se curar, e Caberá teve permissão de lhes dar um copo do sebo branco do navio para passar nas feridas.

Júlio também tinha feito sua parte. Quando a tala foi removida ele ficou horrorizado ao ver como seus músculos tinham desaparecido e imediatamente começou os exercícios que Caberá tinha sugerido. Fora uma agonia naquele espaço apertado, mas Júlio organizava os oficiais em dois grupos de quatro e cinco. Um grupo se amontoava ao máximo possível durante uma hora e deixava os outros terem espaço para lutar e levantar os colegas como se fossem pesos mortos, trazendo de volta os músculos que tinham perdido, antes de trocar de lugar e deixar o outro grupo trabalhar e suar. O balde de excremento tinha sido chutado vezes incontáveis, mas os homens ficaram mais fortes e não sucumbiam mais às febres.

Agora as dores de cabeça vinham com menos freqüência, mas as piores o deixavam quase incapaz de falar. Os outros tinham aprendido a deixá-lo em paz quando ele ficava pálido e fechava os olhos. O último ataque tinha acontecido há dois meses, e Caberá disse que poderia ter sido o derradeiro. Júlio rezava para que fosse verdade. As lembranças da doença de sua mãe tinham lhe dado um medo terrível da fraqueza que o derrubava e forçava sua mente a ir para a escuridão.

Com a notícia de que o navio estava pronto para alçar velas e ir para um trecho solitário de costa e deixá-los, os oficiais da Accipiter ficaram em júbilo, e Peritas até deu um tapa nas costas de Suetônio, de tanta empolgação. Ainda estavam barbudos e com aparência selvagem, mas agora conversavam fantasiando sobre casas de banho onde seriam esfregados com óleo.

Era estranho como as coisas mudavam. Antes Júlio havia sonhado em ser um general como Mário, mas agora achava que ficar limpo era um prazer ainda maior. Mas seu desejo de destruir os piratas não tinha mudado. Alguns dos outros falavam em voltar à cidade, mas ele sabia que não poderia fazer isso enquanto o dinheiro de sua família estivesse no porão de um navio pirata. Sua raiva o obrigara a suportar a doença e a dor que vinha do exercício forçado, e ele se impunha mais a cada dia, sabendo que tinha de ficar forte para que suas palavras ao capitão não fossem apenas cuspe no vento.

O movimento da trirreme mudou lentamente, e os romanos comemoraram baixo quando o movimento ficou mais firme e eles puderam ouvir a batida dos remadores à medida que o navio ia para o mar aberto.

- Estamos indo para casa - disse Prax, pensativo, com um tremor na voz. A palavra tinha uma força estranha, e um dos homens começou a chorar. Os outros olharam para longe, embaraçados, apesar de terem visto coisa pior nos meses que passaram juntos. Muitas coisas tinham mudado entre eles nesse tempo, e algumas vezes Gadítico imaginava se poderiam trabalhar de novo como uma tripulação mesmo que acipiter surgisse inteira e flutuando para eles. Tinham mantido alguns rudimentos de disciplina, com Gadítico e Prax resolvendo disputas e impedindo brigas, mas a consciência de posto fora lentamente erodida enquanto cada um julgava o outro segundo novas regras e encontrava diferentes pontos fortes e fracos.

Peritas e Prax tinham se tornado bons amigos, cada um vendo no outro algo da mesma postura fleumática em relação à vida, apesar da diferença de idade. Prax tinha perdido a barriga grande, substituindo-a por músculos duros depois de semanas se esforçando com os outros nos exercícios diários. Júlio suspeitava que ele ficaria satisfeito com a vida nova quando estivesse bar-beado e limpo. Sorriu ao pensar nisso, coçando uma ferida na axila.

Gadítico fora um dos que tinham sofrido nas águas turbulentas do cais, mas estava recuperando a cor enquanto o navio cortava as ondas, em vez de balançar nelas. Júlio havia encontrado um respeito e um afeto por ele que não existia na época da obediência automática à autoridade. O sujeito mantivera o grupo unido e parecia apreciar o que Júlio e Caberá tinham feito por eles.

Suetônio não melhorou no cativeiro. Vira os laços formados entre Peritas, Prax, Júlio e Gadítico e se ressentia amargamente por Júlio ser incluído. Por um tempo ficou amigo dos outros quatro oficiais, e dois campos tinham surgido. Júlio tinha usado esses grupos para competir uns contra os outros no treinamento diário, e finalmente um dos oficiais dera um cascudo em Suetônio quando este reclamou em sussurros.

Pouco depois disso Caberá pudera trazer a primeira comida decente que eles viam desde o início, e todos comemoraram. Era típico do velho ter dado as frutas para Júlio distribuir. Suetônio mal podia esperar a liberdade e a restauração da ordem, querendo ver o momento em que Júlio percebesse que era um oficial subalterno de novo.

Duas semanas depois de saírem do porto foram tirados da cela no escuro e deixados numa costa estranha, sem armas nem suprimentos. O capitão fez uma reverência para eles quando foram levados ao pequeno barco que seria remado até a praia, onde podiam ouvir o barulho das ondas.

- Adeus, romanos. Vou pensar bastante em vocês enquanto gastar suas moedas - gritou ele, rindo.

Os oficiais ficaram em silêncio, mas Júlio o olhou firmemente, como se notasse cada ruga em seu rosto. Estava furioso porque Caberá não tivera permissão de descer com eles, mas sabia que eles poderiam retê-lo. Era mais um motivo para achar o capitão e rasgar sua garganta.

Na praia as amarras foram cortadas e os marinheiros recuaram com cuidado, as adagas prontas.

- Não façam nada estúpido agora - alertou um deles. - Vocês podem acabar chegando em casa. - Então entraram no barco e remaram com força até a trirreme negra contra o mar enluarado.

Peritas se abaixou e pegou um punhado da areia macia, esfregando-a entre os dedos.

- Não sei quanto a vocês, garotos, mas eu vou nadar - disse ele, tirando numa pressa súbita as roupas infestadas.

Um minuto depois apenas Suetônio estava na praia, e então ele foi arrastado de roupa e tudo pelos oficiais que gritavam e riam.

 

Brutus usou a adaga para tirar a pele das lebres que eles haviam comprado de um agricultor, juntando as entranhas num monte escorregadio. Rênio tinha achado algumas cebolas selvagens, e, com o pão de casca grossa e um odre de vinho pela metade, seria uma festa para a última noite que passavam ao relento. Roma estava a menos de um dia de viagem, e com a venda dos cavalos eles estavam com lucro.

Rênio jogou alguns pedaços de madeira morta no fogo e ficou o mais perto possível, desfrutando o calor.

- Passe o odre, garoto - falou com a voz mole.

Brutus tirou a rolha e entregou o odre a ele, olhando Rênio guiar o gargalo até a boca e tomar um gole.

- Eu iria com calma, se fosse você. Você não tem cabeça para o vinho, e não quero que arranje uma briga comigo nem que fique chorando por alguma coisa.

Rênio o ignorou, finalmente ofegando ao baixar o odre.

- E bom estar em casa de novo.

Brutus encheu a pequena panela até em cima e a pôs do outro lado do fogo.

- É mesmo. Eu não tinha notado o quanto sentia falta antes do vigia avistar a costa. Isso trouxe tudo de volta.

Balançando a cabeça diante da lembrança, ele mexeu o cozido com a adaga. Rênio levantou a cabeça e pousou-a na mão.

- Você percorreu um longo caminho desde que era o garoto que eu treinei. Acho que nunca disse como fiquei orgulhoso quando foi feito centurião da Punho de Bronze.

- Você contou a todas as outras pessoas. No fim a história acabou chegando a mim - respondeu Brutus, sorrindo.

- E agora você vai ser um homem de Júlio?-perguntou Rênio, olhando o cozido que borbulhava.

- Por que não? Andamos pelo mesmo caminho, lembra? Caberá disse isso.

- Disse o mesmo a mim - murmurou Rênio, testando o cozido com um dedo. Apesar de estar claramente fervendo, ele não pareceu sentir o calor.

- Achei que era por isso que você voltou comigo. Poderia ter ficado com a Punho, se quisesse.

Rênio deu de ombros.

- Queria estar de novo no centro das coisas. Brutus riu para o grandalhão.

- Eu sei. Agora que Sila está morto, é a nossa hora.

 

Não sei do que está falando - disse Ferco, fazendo força contra as cordas que o prendiam ao assento, mas elas não cederam.

- Acho que sabe exatamente o que quero dizer - respondeu Antonido, inclinando-se muito perto, de modo que os rostos quase se tocaram. - Tenho o dom de saber identificar mentiras. - Ele fungou duas vezes subitamente, e Ferco se lembrou de que o chamavam de cão de Sila. -Você fede a mentiras - disse Antonido com desprezo. - Sei que estava envolvido, então simplesmente conte e não mandarei trazer os torturadores. Não há como escapar daqui, mercador. Ninguém viu você ser preso e ninguém saberá que conversamos. Só diga quem ordenou o assassinato e onde o assassino está, e sairá incólume.

-- Leve-me a um tribunal. Arranjarei um advogado para provar minha inocência! - disse Ferco, a voz trêmula.

- Ah, gostaria disso, não é? Dias desperdiçados em conversa fiada enquanto o Senado tenta provar que tem uma só lei para todos. Não existe lei aqui embaixo, nesta sala. Aqui nós ainda nos lembramos de Sila.

- Não sei de nada! - gritou Ferco, fazendo Antonido recuar alguns centímetros, para seu alívio.

O general balançou a cabeça, lamentando.


- Sabemos que o assassino se chamava Dálcio. Sabemos que foi com prado para trabalhar na cozinha três semanas antes. O registro da venda desapareceu, claro, mas houve testemunhas. Você acha que ninguém notaria o agente de Sila no mercado? Seu nome, Ferco, surgiu repetidamente.

Ferco empalideceu. Sabia que não teria permissão de viver. Não veria as filhas de novo. Pelo menos, elas não estavam na cidade. Mandara a esposa para longe assim que os soldados vieram procurar os registros do mercado de escravos, entendendo o que aconteceria e sabendo que não poderia fugir com elas se quisesse que escapassem aos lobos que os amigos de Sila colocariam em sua pista.

Tinha aceitado que havia um pequeno risco, mas depois de queimar os papéis da venda pensou que eles nunca fariam a ligação entre tantos milhares de outros. Seus olhos se encheram de lágrimas.

- Está sentindo culpa? Ou é só porque foi descoberto? - perguntou Antonido incisivamente.

Ferco não disse nada e olhou para o chão. Não achava que fosse capaz de suportar a tortura.

Os homens que entraram por ordem de Antonido eram velhos soldados, calmos e imperturbáveis diante do que tinham de fazer.

- Quero que ele cite nomes - disse Antonido. Em seguida se virou de volta para Ferco e levantou a cabeça dele até que os olhos dos dois se encontraram de novo. - Assim que esses homens tiverem começado, vai ser necessário um esforço tremendo para fazê-los parar. Eles gostam desse tipo de coisa. Há algo que queira me dizer antes do início?

- A República vale uma vida - disse Ferco com os olhos brilhantes. Antonido sorriu.

- A República está morta, mas eu adoro encontrar um homem de princípios. Vejamos quanto tempo isso dura.

Ferco tentou se afastar quando as primeiras tiras de metal foram encostadas em sua pele. Antonido ficou olhando fascinado por um tempo, depois empalideceu lentamente, encolhendo-se diante dos sons abafados, arfantes, que Ferco soltava quando os homens se curvavam sobre ele. Assentindo para continuarem, o general saiu, com pressa de chegar ao ar fresco da noite.

Era pior do que qualquer coisa que Ferco já vira, uma agonia de humilhação e terror. Virou a cabeça para um dos homens e seus lábios se retorceram, abrindo-se para falar, ainda que os olhos turvos não pudessem ver mais do que vagas formas de dor e luz.

- Se vocês amam Roma, deixem-me morrer. Deixem-me morrer depressa.

Os dois homens pararam para trocar um olhar, depois voltaram ao trabalho.

Júlio estava sentado na areia com os outros, estremecendo enquanto a alvorada finalmente chegava para esquentá-los. Tinham encharcado as roupas no mar, tirando o pior dos meses de escuridão fétida, mas precisavam deixar que secassem no corpo.

O sol subiu rapidamente, e eles foram testemunhas silenciosas da primeira alvorada gloriosa que viam desde que estavam no convés da Accipiter. Com a luz perceberam que a praia era uma fina tira de areia ao longo do litoral desconhecido. Árvores densas se amontoavam na borda, indo até onde avista alcançava, a não ser por um caminho largo a apenas oitocentos metros de distância, encontrado por Prax enquanto eles examinavam a área. Não tinham idéia de onde o capitão os havia deixado, a não ser que era provavelmente perto de um povoado. Para que os resgates fossem uma fonte regular de dinheiro, era importante que os prisioneiros voltassem à civilização, e eles sabiam que o litoral não seria desabitado. Prax tinha certeza de que era o litoral norte da África. Disse que reconhecia algumas árvores, e era verdade que os pássaros que voavam não eram os mesmos de Roma.

- Talvez estejamos perto de um povoado romano - dissera Gadítico. - Há centenas deles ao longo da costa, e não podemos ser os primeiros prisioneiros a ser abandonados aqui. Talvez possamos chegar a um navio mercante e voltar a Roma antes do fim do verão.

- Não vou voltar - dissera Júlio em voz baixa. - Não assim, sem dinheiro e em trapos. Falei sério com o capitão.

- Que opção você tem? - respondeu Gadítico. - Mesmo que tivesse um navio e uma tripulação poderia passar meses procurando aquele pirata no meio de tantos outros.

- Ouvi um guarda chamá-lo de Celso. Mesmo que não seja o nome verdadeiro, é um começo. Conhecemos o navio dele, e alguém deve conhecê-lo.

Gadítico levantou a sobrancelha.

- Olha, Júlio. Eu gostaria de ver o desgraçado de novo, tanto quanto você, mas simplesmente não é possível. Não me importei que houvesse provocado o idiota a bordo, mas a realidade é que não temos sequer uma espada e nenhuma moeda.

Júlio se levantou e olhou firme para o centurião.

- Então vamos começar conseguindo isso, depois homens para formar uma tripulação, depois um navio para a caçada. Uma coisa de cada vez.

Gadítico devolveu o olhar, sentindo a intensidade por trás.

- Nós?- perguntou em voz baixa.

- Eu faria isso sozinho, se fosse preciso, mas levaria mais tempo. Se ficarmos juntos, tenho algumas idéias para conseguirmos nosso dinheiro de volta e podermos voltar a Roma com orgulho. Não vou me arrastar de volta para casa espancado.

- Não é um pensamento que me agrade - disse Gadítico. - O ouro que minha família mandou deve tê-la deixado na pobreza. Eles ficarão felizes em me ver em segurança, mas todo dia terei de ver como a vida deles mudou. Se você não estiver apenas sonhando, vou ouvir suas idéias. Falar não faz mal.

Júlio estendeu a mão e segurou o ombro do comandante antes de se virar para os outros.

- E vocês? Querem voltar como cães escorraçados ou levar alguns meses mais tentando recuperar o que perdemos?

- Eles devem ter mais do que apenas o nosso ouro a bordo - disse Peritas lentamente. - Não vão poder deixá-lo em lugar nenhum em segurança, de modo que há uma boa chance de que a prata da legião também esteja lá.

- E ela pertence à legião! - disse Gadítico com um traço de sua antiga autoridade. - Não, rapazes. Eu não serei um ladrão. A prata da legião é marcada com a estampa de Roma. O que houver dela voltará aos homens que mereciam o pagamento.

Os outros assentiram, sabendo que era justo. Suetônio disse de repente, incrédulo:

- Vocês estão falando como se o ouro estivesse aqui, e não num navio distante que nunca veremos de novo enquanto estivermos perdidos e com fome!

- Você está certo - disse Júlio. - É melhor começarmos a ir por esse caminho. Ele é muito largo para ser usado apenas por animais, de modo que deve haver um povoado por perto. Conversaremos sobre isso quando tivermos chance de nos sentirmos romanos de novo, com boa comida na barriga e essas barbas fedorentas cortadas.

O grupo se levantou e foi com ele na direção da abertura entre as árvores, deixando Suetônio sozinho, com a boca aberta. Depois de alguns instantes, ele correu atrás dos outros.

Os dois torturadores recuaram em silêncio enquanto Antonido via o destroço do que tinha sido Ferco. O general se encolheu diante da carcaça mutilada, satisfeito por ter conseguido tirar um cochilo enquanto isso acontecia.

- Ele não disse nada? - perguntou Antonido, balançando a cabeça, espantado. - Pela cabeça de Júpiter, olhem o que vocês fizeram com ele.

Como um homem pode suportar isso?

- Talvez ele não soubesse nada - respondeu um dos homens, sério. Antonido pensou nisso por um momento.

- Talvez. Eu gostaria de podermos ter trazido as filhas dele, para eu ter certeza.

Ele parecia fascinado com os ferimentos e inspecionou o corpo de perto, notando cada corte e queimadura. Assobiou baixinho entre os dentes.

- Espantoso. Eu não acreditaria que ele tinha tanta coragem. Ele nem tentou dar nomes falsos?

- Nada, general. Ele não disse uma palavra.

Os dois homens trocaram um olhar de novo, escondidos atrás das costas do general enquanto este se curvava perto do cadáver dobrado ao meio. Foi um minúsculo instante de comunicação antes de retomarem a expressão vazia.

 

Varro Emiliano recebeu os oficiais maltrapilhos em casa com um sorriso aberto. Apesar de ter se aposentado da vida na legião havia quinze anos, era sempre um prazer ver os jovens que os piratas deixavam em seu pequeno trecho de litoral. Fazia-o lembrar do mundo fora do povoado, suficientemente distante para não perturbar sua vida pacífica.

- Sentem-se, senhores - falou, indicando divãs com estofamento fino. Já tinham sido bons, mas o tempo havia tirado o brilho do tecido, notou lamentando. Não que os soldados se importassem, pensou enquanto eles ocupavam os lugares indicados. Somente dois permaneceram de pé, e ele soube que eram os líderes. Esses pequenos truques lhe davam prazer. - A julgar pela aparência de vocês, eu diria que foram deixados pelos piratas que infestam esse litoral - disse com a voz encharcada de simpatia. Imaginou o que eles diriam se soubessem que o pirata Celso costumava vir ao povoado conversar com seu velho amigo e contar as notícias e as fofocas das cidades.

- No entanto este vilarejo está intocado - disse o mais jovem dos dois.

Varro olhou-o incisivamente, notando o intenso olhar azul. Um dos olhos tinha um centro grande e escuro que parecia enxergar o homem verdadeiro através de seus modos alegres. Apesar das barbas, todos estavam mais eretos e fortes do que os grupos miseráveis que Celso deixava ali perto a intervalos de cerca de dois anos. Pelo menos seus filhos estavam do lado de fora, com armas e prontos para ser chamados. Valia a pena ser cuidadoso.

- Os que foram trocados por resgates costumam ser deixados ao longo deste litoral. Tenho certeza que eles acham útil devolver os homens à civilização, para que os resgates continuem sendo pagos. O que gostariam que fizéssemos? Aqui somos agricultores. Roma nos deu a terra para uma aposentadoria tranqüila, não para lutar contra piratas. Esse é o serviço das nossas galeras, imagino. - Ele disse a última palavra com um brilho no olhar, esperando que os jovens sorrissem ou parecessem embaraçados por terem fracassado nessa tarefa. O olhar firme jamais hesitou, e Varro descobriu que seu bom humor estava se evaporando. - O povoado é pequeno demais para uma casa de banhos, mas há algumas casas particulares que vão recebê-los e emprestar navalhas.

- E quanto a roupas? - disse o mais velho dos dois.

Varro percebeu que não sabia o nome deles e piscou, Esse não era o modo usual para aquelas conversas. O último grupo tinha praticamente chorado por achar um povoado romano numa terra tão estranha, sentados em divãs numa casa de pedra, bem construída.

- Você é o oficial aqui? - perguntou Varro, olhando para o homem mais jovem.

- Eu era o capitão da Accipiter, mas o senhor não respondeu à minha pergunta - disse Gadítico.

- Não temos vestimentas para vocês, sinto muito... - começou Varro. O rapaz saltou para ele, agarrando sua garganta e arrancando-o de seu assento. Ele engasgou horrorizado e com medo súbito enquanto era arrastado até a mesa e apertado contra ela, olhando aqueles olhos azuis que pareciam saber de todos os seus segredos.

- Você mora numa casa muito boa para um agricultor - sibilou a voz para ele.-Acha que não iríamos reparar? Qual era o seu posto? Com quem serviu?

O aperto diminuiu para deixá-lo falar, e Varro pensou em chamar os filhos, mas sabia que eles não ousariam nada, com a mão do sujeito ainda em sua garganta.

- Eu era centurião, com Mário - disse ele roucamente. - Como ousa... - Os dedos se apertaram de novo e sua voz foi cortada. Ele mal podia respirar.

- Família rica, não era? Há dois homens do lado de fora, escondidos. Quem são eles?

- Meus filhos...

- Chame-os. Eles vão sobreviver, mas não serei emboscado quando sairmos. Você vai morrer antes de eles o alcançarem, se alertá-los. Dou minha palavra.

Varro acreditou e chamou os filhos assim que teve fôlego. Olhou horrorizado enquanto os estranhos iam rapidamente até a porta, agarrando os homens quando eles entraram e tirando suas armas. Eles tentaram gritar, mas uma saraivada de golpes os derrubou.

- Vocês estão errados em relação a nós. Levamos uma vida pacífica aqui - disse Varro, com a voz quase esmagada.

- Você tem filhos. Por que não voltaram a Roma para se juntar ao exército como o pai? O que poderia mantê-los aqui senão uma aliança com Celso e homens como ele?

O jovem oficial se virou para os soldados que seguravam os filhos de Varro.

- Levem-nos para fora e cortem a garganta deles - falou.

- Não! O que querem de mim? - disse Varro depressa. Os olhos azuis se grudaram nele de novo.

- Quero espadas e o ouro que os piratas lhe pagam para garantir um lugar seguro. Quero roupas para os homens e armaduras, se tiverem.

Varro tentou assentir, com a mão ainda em seu pescoço. O aperto aumentou por um segundo.

- Não tente me enganar - disse o homem mais jovem.

- Quem é você? - chiou Varro.

- Sou sobrinho do homem a quem você jurou servir até a morte. Meu nome é Júlio César - falou em voz baixa.

Júlio deixou o homem se levantar, mantendo o rosto sério e ameaçador enquanto o ânimo crescia por dentro. Há quanto tempo Mário lhe dissera que um soldado às vezes precisava seguir seus instintos? Desde o primeiro instante em que entrou no povoado pacífico, notando a rua principal bem-cuidada e as casas boas, soubera que Celso não iria deixá-lo intocado sem algum acordo. Imaginou se todos os povoados ao longo da costa seriam assim e por um momento sentiu uma pontada de culpa. A cidade mandava seus legionários aposentados para esses litorais distantes, dando-lhes terra e esperando que se virassem, mantendo a paz apenas com sua presença. De que outro modo eles poderiam sobreviver sem barganhar com os piratas? Alguns deles poderiam ter lutado a princípio, mas seriam mortos, e os que vinham depois não tinham chance.

Olhou os filhos de Varro e suspirou. Aqueles mesmos legionários aposentados tinham filhos que nunca haviam visto Roma, proporcionando novos homens para os navios piratas quando vinham. Notou a pele morena dos dois, as feições numa mistura de África e Roma. Quantos desses haveria sem saber nada das lealdades dos pais? Eles jamais poderiam ser agricultores, tanto quanto ele, com um mundo para ver.

Varro esfregou o pescoço enquanto olhava Júlio e tentou adivinhar os pensamentos dele, com o ânimo afundando ao ver que os olhos estranhos pousaram em seus filhos amados. Temia por eles. Podia sentir mesmo a raiva do jovem oficial.

- Não tivemos a menor chance - disse ele. - Celso teria nos matado a todos.

- Vocês deveriam ter mandado mensageiros a Roma, contando sobre os piratas - respondeu Júlio em tom distante, com os pensamentos em outro lugar.

Varro quase riu.

- Acha que a República se importa com o que acontece conosco? Os senadores nos fazem acreditar nos sonhos deles enquanto somos jovens e fortes para lutar por eles, mas quando isso acaba se esquecem de quem somos e voltam para convencer outra geração de idiotas, enquanto ficam mais ricos e mais gordos com o lucro das terras que ganhamos para eles. Nós estávamos sozinhos, e eu fiz o que precisava fazer.

Havia verdade em sua raiva, e Júlio olhou-o, percebendo a postura mais ereta.

- A corrupção pode ser cortada. Com Sila no controle, o Senado está morrendo.

Varro balançou a cabeça devagar.

- Filho, a República estava morrendo mesmo antes de Sila aparecer, mas você é jovem demais para ver isso.

Varro desmoronou em seu divã, ainda esfregando a garganta. Quando Júlio desviou o olhar, descobriu todos os oficiais da Accipiter olhando-o, esperando pacientemente.

- E então, Júlio? - disse Peritas em voz baixa. - O que faremos agora?

- Vamos pegar o que precisarmos e ir para o próximo povoado, e depois para o próximo. Essas pessoas nos devem por ter deixado os piratas prosperarem entre elas. Não duvido de que existam outros como este - respondeu, indicando Varro.

- Acha que pode continuar fazendo isso? - perguntou Suetônio, horrorizado diante do que estava acontecendo.

- Claro. Da próxima vez teremos espadas e roupas boas. Não vai ser tão difícil.

 

Tubruk golpeou o machado no corte do carvalho agonizante. Uma lasca de madeira saudável pulou, mas os galhos mortos mostravam que era hora da velha árvore tombar. Não demoraria muito até ele chegar ao cerne e tinha certeza de que o miolo estava podre. Estivera trabalhando por mais de uma hora, e o suor fazia sua bracae de linho grudar-se ao corpo. Tirara a túnica depois de se aquecer e não sentia necessidade dela, apesar da brisa que soprava pela floresta. Era difícil não pensar nos problemas de administrar a propriedade depois do pagamento do resgate, mas empurrou esses pensamentos para o lado, concentrando-se nos golpes com a pesada lâmina de ferro.

Parou, ofegando, e pousou as mãos no cabo comprido do machado. Houvera um tempo em que ele podia usar um machado o dia inteiro, mas agora até os pêlos de seu peito tinham ficado de um cinza invernal. Talvez fosse idiota continuar se forçando, mas a velhice vinha mais depressa para quem se sentava e esperava por ela, e pelo menos o exercício mantinha sua barriga lisa.

- Eu costumava subir nessa árvore - disse uma voz atrás dele.

Tubruk pulou diante da interrupção do silêncio do bosque, virando-se com o machado na mão.

Brutus estava ali, sentado num toco com os braços cruzados e o riso antigo tornando os olhos brilhantes. Tubruk riu de prazer ao vê-lo e encostou o machado no grosso tronco do carvalho. Por um momento, nenhum dos dois falou, e então Tubruk foi até ele e pegou-o num abraço enorme, levantan-do-o do toco.

- Por todos os deuses, Marco, é bom ver você, garoto - disse enquanto soltava Brutus. - Você mudou. Está mais alto! Deixe-me olhá-lo.

O velho gladiador recuou e vestiu a túnica.

- Esta é uma armadura de centurião. Você prosperou.

- Punho de Bronze - respondeu Brutus. - Nunca perdi uma batalha, mas estivemos perto da derrota uma ou duas vezes quando eu estava dando ordens.

- Duvido. Deuses, sinto orgulho de você. Voltou de vez ou está a caminho para outro lugar?

- Meu contrato terminou. Há algumas coisas que pretendo fazer na cidade antes de achar uma nova legião.

Pela primeira vez Tubruk notou como o rapaz estava empoeirado.

- Andou muito?

- Meio mundo, parece. Rênio não gosta de gastar dinheiro com cavalos, mas achamos dois pangarés numa parte do caminho.

Tubruk deu um risinho enquanto pegava o machado e o punha no ombro.

- Então ele voltou com você? Pensei que tivesse desistido da cidade, quando queimaram a casa dele nos tumultos.

Brutus deu de ombros.

- Ele foi vender o terreno e achar uma casa para alugar. Tubruk sorriu, lembrando.

- Agora Roma está calma demais para Rênio. Acho que ele vai odiar. - E deu um tapa no ombro de Brutus. - Desça o morro comigo. Seu velho quarto está do mesmo modo, e um bom banho e uma esfregadela vão tirar o pó da estrada dos seus pulmões.

- Júlio voltou?

Tubruk pareceu se encurvar um pouco, como se o machado subitamente pesasse mais.

- Tivemos de levantar o dinheiro do resgate para ele quando os piratas Pegaram sua galera. Ainda não sabemos se está em segurança.

Brutus olhou-o, espantado.

- Deuses, eu não soube disso! Ele foi ferido?

- Não sabemos de nada. Só recebi o pedido do dinheiro. Tive de pagar guardas para levá-lo a um navio mercante no litoral. Cinqüenta talentos.

- Eu não achava que a família possuísse tanto dinheiro - disse Brutus em voz baixa.

- Não temos. Todos os negócios tiveram de ser vendidos, além de parte das terras. Só restou o dinheiro da colheita. Os anos serão duros por um tempo, mas há o bastante para sobreviver.

- Ele já teve sua cota de azar. O bastante para uma vida.

- Duvido que ele fique por baixo por muito tempo. Júlio e você são iguais. O dinheiro sempre pode ser ganho de novo, se a gente viver por tempo suficiente. Sabia que Sila morreu?

- Ouvi dizer. Mesmo na Grécia os soldados nos portos usavam luto. É verdade que ele foi envenenado?

Tubruk franziu a testa um segundo, desviando os olhos antes de responder.

- É verdade. Ele fez muitos inimigos no Senado. Seu general, Antonido, ainda está procurando os assassinos. Não creio que vá desistir.

Enquanto falava, Tubruk pensava em Ferco e nos dias terríveis que tinham se seguido depois de saber que ele fora levado. Tubruk nunca conhecera um medo igual, esperando que os soldados viessem marchando da cidade para levá-lo a julgamento e execução. Eles não tinham vindo, e Antonido continuou a interrogar e investigar. Tubruk nem ousava procurar a família de Ferco, para o caso de Antonido estar vigiando-a, mas jurou que a dívida seria paga de algum modo. Ferco fora um amigo de verdade, mas, mais do que isso, tinha acreditado na República com uma paixão que surpreendera o velho gladiador quando este lhe falara pela primeira vez sobre o plano para matar Sila. Ferco praticamente não precisou ser persuadido.

- ...Tubruk? - Brutus interrompeu seus pensamentos, curioso.

- Desculpe. Eu estava pensando no passado. Dizem que a República voltou e que Roma é de novo uma cidade com lei, mas não é verdade. Eles cravam os dentes uns nos outros para impedir que alguém assuma o lugar de Sila. Recentemente dois senadores foram executados por traição apenas a partir da palavra dos acusadores. Eles subornam, roubam e dão trigo grátis à população, que enche a barriga e volta para casa satisfeita. É uma cidade estranha, Marco.

Brutus pôs a mão no ombro de Tubruk.

- Não sabia que você se importava tanto com ela.

- Sempre me importei, mas confiava mais quando era mais jovem. Achava que homens como Sila e, sim, Mário não podiam fazer mal a ela, mas podem. Podem matá-la. Sabe que o trigo gratuito acaba com os pequenos agricultores? Eles não conseguem vender a colheita. Suas terras são postas à venda e somadas às enormes propriedades dos senadores. Esses agricultores terminam nas ruas da cidade, recebendo o mesmo trigo que os arruinou.

- Com o tempo haverá homens melhores no Senado. Uma nova geração, como Júlio.

A expressão de Tubruk se suavizou um pouco, mas Brutus estava chocado com a profunda amargura e a tristeza que viu revelada. Tubruk sempre fora um pilar de certeza na vida dos rapazes. Ele lutou para achar as palavras certas a dizer.

- Faremos uma Roma da qual você poderá se orgulhar. Tubruk segurou o braço que ele havia estendido.

- Ah, ser jovem outra vez-disse sorrindo. - Venha para casa, Aurélia vai ficar empolgada em vê-lo tão alto e forte.

- Tubruk? Eu... - Brutus hesitou. - Não vou ficar muito tempo. Tenho dinheiro suficiente para me alojar na cidade.

Tubruk olhou-o, entendendo.

- Esta é sua casa. Sempre será. Fique o quanto quiser.

- Obrigado. Eu não tinha certeza se vocês esperariam que eu procurasse meu caminho agora. Eu posso, você sabe.

- Sei, Marco. - Tubruk sorriu enquanto gritava para abrirem o portão. O rapaz sentiu que um peso lhe era retirado.

- Agora me chamam de Brutus.

Tubruk estendeu a mão e Brutus segurou-a no estilo dos legionários.

- Bem-vindo ao lar, Brutus.

Tubruk guiou-o até a cozinha, onde foi esquentada a água para o seu banho, sinalizando para ele ocupar um assento enquanto Tubruk cortava carne e pão. Também estava com fome depois de trabalhar com o machado, e os dois comeram e conversaram com a facilidade e o conforto de velhos amigos.

 

O calor parecia açoitar sua pele enquanto Júlio inspecionava os seis novos recrutas. O sol africano chegava a tornar sua armadura dolorosa ao toque, e em qualquer lugar em que o metal fazia contato com a pele era uma agonia, até ele poder se mexer.

Nada do desconforto aparecia em sua expressão, ainda que as primeiras dúvidas atrapalhassem a concentração enquanto observava os homens que tinha encontrado. Eram bastante fortes e em boa forma, mas nenhum recebera treinamento como soldado. Para que seu plano desse certo, precisava de pelo menos cinqüenta, e tinha começado a acreditar que iria conseguir. O problema era que eles precisavam obedecer às ordens e fazer guerra com o tipo de disciplina que os oficiais da Accipiter consideravam ponto pacífico. De algum modo, tinha de deixar claro o simples fato de que eles morreriam sem isso.

Fisicamente eram bastante impressionantes, mas apenas dois dos seis tinham se oferecido como voluntários, e eram do último povoado. Esperava que surgissem mais quando eles começassem a parecer uma meia-centúria romana decente, mas os primeiros quatro vieram porque ele insistira, e continuavam com raiva. O segundo povoado pareceu feliz em se livrar do maior de todos, e Júlio adivinhou que devia ser um encrenqueiro. Sua expressão parecia fixa num riso de desprezo que irritava Júlio sempre que o via.

Rênio os teria espancado até ficarem em forma para ele, pensou. Era um começo. Precisava pensar no que Rênio faria. Gadítico.e os outros da Accipiter tínham-no seguido até agora, mal acreditando em como tinha sido fácil depois do primeiro povoado. Júlio se perguntava quantos romanos, entre todas as centenas de fazendas de aposentadoria, teriam filhos que poderiam aprender a lutar. Havia um exército ali, e só era preciso alguém encontrá-los e lembrar o chamado do sangue.

Parou perto do encrenqueiro e viu como os olhos encontravam os seus com uma indagação educada e nem um traço de medo ou respeito. Era bem mais alto do que a maioria, com os membros compridos e de músculos esguios, brilhando de suor. Os mosquitos que atormentavam os oficiais da Accipiter não pareciam perturbá-lo nem um pouco, e ele permanecia como uma estátua no calor. O sujeito fez com que Júlio se lembrasse de Marco, até certo ponto. Parecia um romano em cada centímetro, mas até mesmo o latim que falava era uma mistura corrompida de dialetos e expressões africanas. Júlio sabia que o pai dele tinha morrido e deixado uma fazenda que o rapaz havia negligenciado ao ponto da ruína. Deixado sozinho, ele teria sido morto numa luta ou se juntaria aos piratas quando o resto do dinheiro e do vinho acabassem.

Qual era o nome dele? Júlio se orgulhava de aprender os nomes rapidamente, como tinha visto Mário fazer com cada homem sob seu comando, mas sob o olhar frio não conseguiu pensar a princípio. Então lhe veio. Ele tinha dito para ser chamado de Ciro, sem dar outro nome. Provavelmente nem sabia que era um nome de escravo. O que Rênio faria?

- Preciso de homens que possam lutar - disse Júlio, observando os olhos castanhos que devolviam o seu olhar com tanta firmeza.

- Eu sei lutar - respondeu Ciro, com a confiança óbvia,

- Preciso de homens que consigam controlar o temperamento numa crise.

- Eu posso... - começou Ciro.

Júlio deu-lhe um tapa no rosto. Por um momento, a raiva relampejou nos olhos escuros, mas Ciro se manteve firme, com os músculos do peito nu tremendo como os de um grande felino. Júlio se inclinou para perto dele.

- Quer pegar uma espada? Me matar? - sussurrou com a voz áspera.

- Não - respondeu Ciro, e a calma estava de volta.

- Por quê? - perguntou Júlio, imaginando como poderia alcançá-lo.

- Meu pai... dizia que um legionário tinha de ter controle.

Júlio ficou onde estava, mas seus pensamentos giraram loucamente. Havia uma alavanca ali.

- Você não tinha controle no povoado onde o achamos, tinha? - falou, esperando que tivesse adivinhado corretamente o relacionamento de Ciro com os aldeãos. O sujeito enorme não disse nada por longo tempo, e Júlio esperou com paciência, sabendo que não deveria interromper.

- Na época... eu não era legionário.

Júlio encarou-o, procurando a insolência que tinha esperado. Ela não existia, e em silêncio ele xingou o Senado por desperdiçar homens como aquele, que sonhavam em ser legionários enquanto desperdiçavam a vida numa terra estranha.

- Você não é legionário - disse Júlio devagar, e viu a boca começando a se retorcer em resposta à rejeição -, mas posso torná-lo um. Vai aprender irmandade comigo e de mim, e andará pelas ruas da cidade distante de cabeça erguida. Se alguém o fizer parar, você dirá que é um soldado de César.

- Direi.

- Senhor.

- Direi, senhor - respondeu Ciro, ficando empertigado.

Júlio recuou para se dirigir aos recrutas, parando junto aos oficiais da Accipiter.

- Com homens como vocês, o que não podemos conseguir? Vocês são filhos de Roma, e vamos lhes mostrar sua história e seu orgulho. Vamos ensinar a usar o gládio e as formações de batalha, as leis, os costumes, a vida. Outros virão, e vocês vão treiná-los, mostrando o que significa ser de Roma. Agora vamos marchar. O próximo povoado verá legionários quando avistar vocês.

A fila de pares era desengonçada e fora de passo, mas Júlio sabia que isso iria melhorar. Imaginou se Rênio teria visto a necessidade nos novos homens, mas descartou o pensamento. Rênio não estava aqui. Ele estava.

Gadítico esperou com ele, acompanhando seu passo ao chegar ao fim da coluna.

- Eles seguem você - observou. Júlio se virou rapidamente para o capitão.

- Eles precisam, se quisermos tripular um navio e recuperar nosso resgate.

Gadítico deu uma fungada de leve, batendo na armadura de Júlio. Júlio parou e hesitou.

- Ah, não - sussurrou. - Avise que vamos alcançá-los. Depressa! Gadítico deu a ordem e ficou olhando enquanto a fila dupla de romanos marchava pelo caminho. Rapidamente eles sumiram de vista virando uma curva, e Gadítico se virou para Júlio com ar interrogativo. Ele tinha ficado pálido e fechado os olhos.

- É a doença de novo? - perguntou Gadítico.

Júlio assentiu debilmente.

- Antes... do último ataque, senti gosto de metal na boca. Estou sentindo agora. - Ele escarrou e cuspiu, com a expressão amarga. - Não diga a eles. Não...

Gadítico apanhou-o enquanto ele caía e segurou-o enquanto seu corpo se sacudia e se retorcia, as sandálias cortando arcos no mato baixo com a violência do movimento. Os mosquitos pareciam sentir sua fraqueza e se juntaram em volta num enxame. Gadítico olhou ao redor procurando alguma coisa para enfiar entre os dentes de Júlio, mas o pano que haviam usado naAccipiter tinha sumido há muito. Arrancou uma folha grossa e conseguiu enfiar o cabo fibroso na boca de Júlio, soltando-o quando a boca se fechou com força. A folha ficou presa, e Gadítico firmou-o com todo o peso até o ataque terminar.

Finalmente Júlio conseguiu se sentar e cuspir a haste que quase tinha cortado com os dentes. Sentia como se tivesse levado uma surra até a inconsciência. Fez uma careta ao ver que a bexiga tinha se esvaziado e bateu com os punhos na terra em fúria, espalhando os mosquitos antes deles voltarem rapidamente à pele exposta.

- Eu pensava que isso tinha acabado.

- Talvez seja o último - respondeu Gadítico. - Os ferimentos de cabeça são sempre complicados. Caberá disse que isso poderia continuar por um tempo.

- Ou pelo resto da minha vida. Sinto falta do velho - disse Júlio com a voz débil. - Minha mãe tinha ataques assim. Nunca entendi realmente como era. Parece a morte.

- Você consegue ficar de pé? Não quero perder os homens, e depois do seu discurso eles poderiam marchar a manhã inteira.

Gadítico ajudou o jovem oficial a ficar de pé e o viu respirar algumas vezes para se recuperar. Queria oferecer palavras de conforto, mas elas não vinham com facilidade.

- Vai superar isso. Caberá disse que você era forte e nada do que eu mesmo tenha visto me faz pensar de outro modo.

- Talvez. Então vamos em frente. Eu gostaria de ficar perto do mar, para me lavar.

- Posso dizer que lhe contei uma piada e que você se mijou de rir. Júlio deu um risinho e Gadítico sorriu.

- Pronto. Está vendo? Você é mais forte do que imagina. Alexandre, o Grande, tinha a doença dos tremores, pelo que dizem.

- Verdade?

- Sim. E Aníbal. Não é o fim, só um fardo.

Brutus tentou esconder o choque ao ver Aurélia na manhã seguinte. Ela estava branca como gesso e magra, com uma teia de rugas que não se encontrava ali quando ele partira para a Grécia havia anos.

Tubruk tinha visto sua perturbação e preencheu os vazios da conversa, dando a Aurélia as respostas das perguntas que ela não fez. O velho gladiador nem tinha certeza de que ela reconhecia Brutus.

O silêncio de Aurélia era coberto pelos risos de Clódia e Cornélia cuidando do bebê de Júlio durante o desjejum. Brutus sorriu devidamente para a criança e disse que ela se parecia com o pai, mas na verdade não conseguia ver semelhança com qualquer coisa humana. Sentia-se desconfortável no triclínio, sabendo que aquelas pessoas tinham criado laços que o excluíam. Era a primeira vez que se sentia um estranho naquela casa, e isso o entristeceu.

Tubruk saiu com Aurélia depois de ela ter comido apenas um pouquinho, e Brutus se esforçou bastante para participar da conversa, contando às mulheres sobre a tribo de peles azuis contra a qual havia lutado nos primeiros meses com a Punho de Bronze na Grécia. Clódia riu quando ele contou sobre o selvagem que tinha balançado a genitália para os romanos, acreditando estar em segurança. Cornélia cobriu os ouvidos de Júlia, e Brutus ruborizou, sem graça.

- Desculpe. Estou mais acostumado à companhia dos soldados. Faz um tempo desde que saí desta casa.

- Tubruk contou que você cresceu aqui - interveio Clódia, para deixá-lo à vontade, sabendo que de algum modo era importante fazer isso. - Disse que sempre sonhou em ser um grande espadachim. Conseguiu realizar o sonho?

Tímido, Brutus contou sobre o torneio de espada que tinha vencido, contra os melhores das centúrias da legião.

- Eles me deram uma espada feita com ferro mais forte, que mantém o gume melhor. Ela tem ouro na bainha. Vou mostrar a vocês.

- Júlio vai ficar em segurança? - perguntou Cornélia sem aviso.

Brutus reagiu com um sorriso rápido.

- Claro. O resgate foi pago. Não há perigo para ele.

As palavras saíram com facilidade, e ela pareceu se tranqüilizar. As preocupações de Brutus ficaram intocadas.

 

Naquela tarde subiu o morro de volta com Tubruk até o carvalho, cada um carregando um machado no ombro. Assumiram posição de cada lado do tronco e começaram o ritmo lento dos golpes que abriam uma fenda cada vez mais profunda na madeira, à medida que o dia passava.

- Há outro motivo para eu ter voltado a Roma - disse Brutus, enxugando o suor da testa com a mão.

Tubruk baixou o machado e respirou fundo durante alguns instantes antes de responder.

- Oqueé?

- Quero achar minha mãe. Não sou mais um menino e quero saber de onde vim. Achei que você talvez soubesse onde ela estava.

Tubruk soprou ar pelos lábios, pegando o machado de novo.

- Isso vai lhe trazer sofrimento, garoto.

- Eu preciso. Tenho uma família.

Tubruk bateu com a lâmina do machado no carvalho com uma força tremenda, cravando-o.

- Sua família está aqui - disse ele, puxando-o de volta.

- É o meu sangue. E nunca soube quem é meu pai. Só quero conhecê-la. Se ela morresse sem que eu a visse, iria me arrepender para sempre.

Tubruk parou de novo, depois suspirou antes de falar.

- Ela tem uma casa na Via Festus, no lado mais distante da cidade, perto da colina do Quirinal. Pense bem antes de ir. Pode ficar desapontado.

- Não. Ela me abandonou quando eu tinha apenas alguns meses. Nada que ela possa fazer agora vai me desapontar - disse Brutus em voz baixa antes de pegar o machado de novo e continuar a cortar a velha árvore.

Enquanto o sol se punha, o carvalho caiu e eles voltaram para casa ao crepúsculo. Rênio estava lá, esperando à sombra do portão.

- Fizeram uma construção no lugar onde ficava minha casa - falou irado com Brutus - e alguns jovens legionários me expulsaram da cidade como se eu fosse um encrenqueiro. Minha própria cidade!

Tubruk soltou uma gargalhada explosiva.

- Disse a eles quem era? - perguntou, tentando continuar sério. Rênio estava claramente irritado com a diversão dos dois e praticamente rosnou:

- Eles não conheciam meu nome. Pirralhos, recém-desmamados, todos eles.

- Há um quarto aqui, se quiser - disse Tubruk. Rênio olhou pela primeira vez o antigo aluno.

- Quanto está cobrando?

- Só o prazer da sua companhia, velho amigo. Só isso. Rênio fungou.

- Então você é um idiota. Eu teria pagado um bom dinheiro. Quando Tubruk gritou, o portão foi aberto e Rênio entrou na frente deles.

Brutus captou o olhar de Tubruk e riu diante do afeto que encontrou.

 

Brutus parou na encruzilhada, no sopé da colina do Qquerenal, e deixou a multidão agitada passar em volta. Tinha levantado cedo e verificado a armadura, agradecendo pela túnica limpa que Tubruk tinha arranjado. Alguma parte dele sabia que era ridículo se importar, mas tinha lubrificado cada segmento e polido o metal até ficar brilhando. Sentia-se espalhafatoso em meio às cores mais escuras da multidão, mas se reconfortava com o peso sólido, como se ele o protegesse de algo mais do que armas.

A Punho de Bronze tinha o seu próprio armeiro e, como todo mundo na centúria, era o melhor. A greva que Brutus usava na perna direita era habilmente moldada para acompanhar os músculos. Tinha gravado um padrão de círculos cortados com ácido, e Brutus pagara um mês de salário por ela. O suor escorria por trás da cobertura de metal, e ele se abaixou para tentar coçar a pele, sem sucesso. A praticidade tinha-o feito deixar a pluma do elmo na propriedade do campo. Não seria bom ficar se grudando nos lintéis da casa em que sua mãe morava.

Foi a visão do prédio que o fez parar e avaliar. Esperava uma habitação de quatro ou cinco andares, limpa mas pequena. Em vez disso, a fachada era coberta de mármore escuro, quase como um templo. As construções principais eram afastadas da poeira e da sujeira das ruas, visíveis apenas através de um portão alto. Brutus supunha que a casa de Mário tivesse sido maior, mas era difícil ter certeza.

Tubruk não lhe dissera nada além do endereço, mas enquanto observava o lugar Brutus viu que era uma área rica, com boa parte da multidão composta de serviçais e escravos fazendo mandados e carregando mercadorias para os seus senhores. Tinha esperado que sua mãe se impressionasse com o filho que se tornara centurião, mas ao ver a casa percebeu que ela poderia pensar nele como apenas um soldado comum, e hesitou.

Pensou em voltar ao campo. Sabia que Rênio e Tubruk iriam recebê-lo bem sem julgar seu fracasso, mas não havia planejado isso desde que estava na Grécia? Seria ridículo recuar diante do prédio grandioso.

Respirou fundo e verificou a armadura mais uma vez, procurando imperfeições. As tiras de couro estavam amarradas e não havia uma mancha à vista. Serviria.

A multidão se dividiu ao redor, sem esbarrar, enquanto ele se adiantava. De perto, o portão trazia lembranças da casa de Mário do outro lado da cidade. Ele mal havia chegado perto quando o portão se abriu, com um escravo fazendo reverência e sinalizando para ele entrar.

- Por aqui, senhor - disse o escravo, fechando o portão e andando na sua frente por um corredor estreito. Brutus foi atrás, com o coração martelando. Estaria sendo esperado?

Foi levado a uma sala luxuosa como nunca vira. Colunas de mármore sustentavam o teto e eram douradas da base ao topo. Havia estátuas brancas enfileiradas nas paredes e divãs ao redor de um laguinho no centro, onde ele vislumbrou peixes grandes nadando quase imóveis no fundo. Sua armadura parecia desajeitada e barulhenta naquele silêncio, e Brutus desejou ter desamarrado a greva para dar uma boa coçada antes de entrar.

O escravo desapareceu por uma porta e ele ficou sozinho tendo apenas o barulho suave da água para distraí-lo. O local era bastante pacífico e, depois de pensar um momento, retirou o elmo e passou as mãos pelos cabelos úmidos.

Sentiu o ar se mover quando outra porta se abriu atrás dele, e depois se levantou abruptamente, surpreso, quando uma mulher linda veio em sua direção. Estava pintada como uma boneca e tinha mais ou menos a sua idade, pensou. O vestido era de um tecido que Brutus nunca tinha visto, e através dele dava para ver a silhueta dos seios e dos mamilos. A pele era perfeitamente pálida, e o único enfeite que ela usava era uma pesada corrente de ouro no pescoço.

- Sente-se - disse a garota. - Deve ficar confortável. - Enquanto falava, ela se sentou no divã de onde Brutus havia saltado e cruzou as pernas delicadamente, fazendo o vestido se mexer e revelar o suficiente para provocar um rubor no rosto dele. Ele sentou-se ao lado, tentando achar um fiapo da decisão que tinha juntado antes. - Eu agrado você? - perguntou ela em voz baixa.

- Você é linda, mas estou procurando... uma mulher que eu conhecia.

Ela fez beicinho e ele sentiu uma vontade de beijá-la dolorosamente terrível, de envolvê-la nos braços e fazê-la ofegar. Essa imagem fez seus sentidos girarem e ele percebeu que o ar tinha se enchido de um perfume que o deixou tonto. A mão dela tocou-o logo acima da greva, onde centímetros de sua perna nua e morena estavam revelados. Brutus estremeceu ligeiramente e em seguida voltou a si, em choque. Levantou-se num movimento súbito.

- Está esperando que eu pague?

A garota pareceu confusa e mais jovem do que ele havia pensado a princípio.

- Não faço isso por amor - disse ela, com boa parte da suavidade de sua voz tendo desaparecido.

- Servília está aqui? Ela quererá me ver,

A garota se deixou afundar no divã, com os modos sensuais desaparecidos num instante.

- Ela não recebe centuriões, você sabe. Teria de ser cônsul para ir com ela.

Brutus encarou-a, horrorizado.

- Servília! - gritou ele, passando pelo laguinho até o outro lado da sala. - Onde você está?

Ele ouviu o barulho de pés se aproximando atrás de uma porta, por isso abriu rapidamente outra e entrou, fechando-a diante do riso da garota no divã. Pegou-se num longo corredor com um escravo boquiaberto segurando uma bandeja de bebidas.

- O senhor não pode passar por aqui! - gritou o escravo, mas Brutus o empurrou de lado, fazendo as bebidas voar. O escravo saiu correndo, e então dois homens bloquearam o corredor no final. Ambos seguravam porretes e juntos preenchiam a passagem estreita, com os ombros roçando as paredes enquanto vinham na sua direção.

- Bebeu um pouquinho demais, não foi? - rosnou um deles enquanto se aproximavam.

Brutus desembainhou o gládio num movimento suave. Ele brilhou, com a lâmina mostrando sulcos como os da greva, com desenhos em redemoinho que captavam a luz. Os dois homens pararam, subitamente inseguros.

- Servília! - gritou Brutus a plenos pulmões, mantendo a espada erguida para os homens. Eles tiraram adagas de bainhas no cinto e avançaram lentamente.

- Seu sacanazinho metido a besta! - disse um deles, balançando a adaga. - Acha que pode vir aqui e fazer o que quiser? Nunca tive a chance de matar um oficial, mas vou gostar disso.

Brutus se enrijeceu.

- Fiquem em posição de sentido, seus desgraçados ignorantes - falou rispidamente. - Se eu vir uma lâmina apontando para mim, mandarei enforcá-los.

Os homens hesitaram enquanto ele os olhava furioso, reagindo ao tom de voz quase como num reflexo. Brutus deu um passo furioso na direção deles.

- Digam-me como homens da sua idade deixaram a legião para guardar um bordel. São desertores?

- Não... senhor. Servimos na Primogênita.

Brutus manteve o rosto rígido para esconder sua surpresa e deleite.

- Sob o comando de Mário?

O mais velho assentiu. Agora os dois estavam eretos diante dele, e Brutus os olhou de cima a baixo, como se estivesse numa inspeção.

- Se eu tivesse tempo, mostraria a carta que ele escreveu para me mandar à minha centúria na Grécia. Marchei com ele até os degraus do Senado para exigir seu triunfo. Não envergonhem sua memória.

Os dois piscaram cheios de desconforto enquanto Brutus falava. Ele deixou o silêncio se estender mais um pouco.

- Agora eu tenho negócios a tratar com uma mulher chamada Servília. Vocês podem trazê-la até mim ou podem me levar a ela, mas vão agir como soldados enquanto eu estiver aqui, entendido?

Enquanto os dois homens assentiam, uma porta se abriu com violência no fim do corredor e uma voz feminina disse rispidamente:

- Fiquem longe dele e me dêem um campo de visão limpo.

Os dois guardas não se moveram, com os olhos cravados no jovem centurião. A tensão aparecia em seus ombros, mas eles permaneceram imóveis.

Brutus falou claramente:

- É ela?

O mais velho estava suando de tensão.

- Ela é a senhora da casa - confirmou ele.

- Então façam o que ela manda, senhores.

Sem outra palavra, os dois guardas ficaram de lado, revelando uma mulher que apontava uma flecha para Brutus.

- Você é Servília? - perguntou ele, notando o ligeiro tremor nos braços dela, que estavam começando a se cansar.

- O nome que você esteve gritando como um moleque de rua vendendo peixe? Eu sou a dona desta casa.

- Eu não represento perigo para você - respondeu Brutus. - E eu afrouxaria esse arco antes de acertar em alguém por acidente.

Servília olhou seus guardas e pareceu encontrar conforto na presença deles. Soltando a respiração, afrouxou o arco, mas Brutus viu que ela continuou segurando-o, de modo que pudesse ser levantado e disparado rapidamente se ele corresse em sua direção. Ela já conhecera a ameaça de soldados, supôs ele.

A mulher que Brutus estava vendo não se parecia nem um pouco com a da sala das estátuas. Era alta e magra como ele, com cabelos compridos e escuros que pendiam soltos até os ombros. A pele reluzia do sol e de saúde, e o rosto não era bonito, na verdade era quase feio, mas a boca larga e os olhos escuros tinham uma sensualidade inteligente que ele achou que atrairia muitos homens. Suas mãos eram largas e fortes no arco, e pulseiras de ouro chacoalhavam em seus pulsos enquanto ela se movia.

Ele captou cada detalhe e sentiu dor ao reconhecer um toque de si mesmo na linha do pescoço perfeito.

- Você não me reconhece - disse ele em voz baixa.

- O que disse? - perguntou ela, chegando mais perto. - Você cria confusão na minha casa e entra armado nos meus aposentos. Deveria mandar chicoteá-lo, e não pense que o seu belo posto iria salvá-lo.

Ela andava de modo soberbo, pensou Brutus. Tinha visto esse tipo de confiança sexual numa mulher apenas uma vez, no templo de Vesta, onde as virgens se moviam com insolência em cada passo, sabendo que tocá-las significaria a morte para qualquer homem. Ela possuía alguma coisa daquilo, e ele se sentiu começando a ficar excitado, enjoado com isso, mas sem saber como se sentir um filho. O sangue subiu ao seu rosto e ao pescoço, e ela deu um sorriso sensual, mostrando dentes brancos e afiados.

- Achei que você pareceria mais velha - murmurou ele, e uma expressão irritada veio aos olhos dela.

- Eu me pareço como sou. E ainda não reconheço você.

Brutus guardou a espada. Queria dizer quem era e ver o choque romper a confiança dela, ver os olhos dela se arregalarem de espanto ao perceber como ele era um rapaz impressionante.

Então tudo pareceu não valer a pena. Uma lembrança há muito reprimida lhe veio, de quando entreouviu o pai de Júlio falando sobre sua mãe, e suspirou ao ver aquilo confirmado. Ele estava num bordel, não importando como parecesse rico. Realmente não importava o que ela pensasse a seu respeito.

- Meu nome é Marco. Eu sou seu filho - disse, dando de ombros. Ela se imobilizou como uma de suas estátuas. Por um longo momento sustentou o olhar dele, depois seus olhos se encheram de lágrimas e ela largou o arco e voltou correndo para o lugar de onde viera, batendo a porta com uma força que sacudiu as paredes.

O guarda estava olhando Brutus, boquiaberto.

- É verdade, senhor? - disse ele, rouco. Brutus assentiu e o homem ficou vermelho de embaraço. - Nós não sabíamos.

- Eu não tinha dito. Olha, vou sair agora. Há alguém esperando para me cravar uma flecha quando eu passar pela porta?

O guarda relaxou ligeiramente.

- Não. Eu e o garoto somos seus únicos guardas. Em geral, ela não precisa de segurança.

Brutus se virou para sair e o guarda falou de novo:

- Sila cortou a Primogênita das listas do Senado, Tivemos de aceitar o trabalho que conseguimos pegar.

Brutus se virou para ele, desejando ter mais a oferecer.

- Agora eu sei onde estão. Posso achá-los de novo se precisar de vocês. O guarda estendeu a mão e Brutus apertou-a no cumprimento do legionário.

Na saída, Brutus passou pela sala do laguinho, sentindo-se grato por estar vazia. Parou apenas para pegar o elmo e jogar um pouco d'água no rosto e no pescoço. Isso não ajudou a diminuir sua confusão. Sentia-se atordoado pelos acontecimentos e queria desesperadamente encontrar algum lugar quieto onde pudesse pensar a respeito. A idéia de andar em meio à multidão das ruas era irritante, mas teria de voltar à propriedade no campo. Não tinha outro lar.

No portão, alguém veio correndo para ele. Brutus quase desembainhou de novo a espada, mas era uma jovem escrava, sem arma. A garota pareceu ofegante ao chegar perto dele, e Brutus percebeu quase distraidamente o arfar de seu seio. Outra beldade. Parecia que a casa era cheia delas.

- A senhora disse que o senhor deve voltar aqui amanhã de manhã. Ela irá recebê-lo.

Inexplicavelmente, Brutus sentiu o ânimo crescer diante das palavras.

- Estarei aqui.

O padrão ao longo da costa sugeria que o próximo povoado seria mais distante do que o trecho que os soldados poderiam marchar num dia. Eles conseguiam um tempo melhor quando acompanhavam as trilhas de animais grandes e podiam ir por elas até se afastar do litoral. Júlio não estava querendo se afastar para longe do som das ondas, por medo de se perder completamente. Quando saíam de uma trilha era um trabalho difícil, suarento, atravessar as hastes e arbustos que cresciam até a altura da cabeça, cheios de espinhos de pontas vermelhas que já pareciam marcados de sangue. Longe do mar, o ar era denso de umidade e os insetos perturbavam a todos, levan-tando-se invisíveis das folhas pesadas ao ser incomodados pelos romanos. Quando montaram acampamento para a noite, Júlio imaginou se o isolamento dos povoados romanos seria evidência de algum plano de longo prazo do Senado para impedir que aquelas aldeias afastadas se unissem com a passagem das gerações, mas achou que era apenas para lhes dar espaço para crescer. Supôs que poderia ter pressionado os homens durante a noite, mas os oficiais da Accipiter sentiam-se muito menos confortáveis na quente noite africana do que os que haviam crescido naquele litoral. Estranhos gritos de animais os acordavam, fazendo com que estendessem as mãos para as espadas, enquanto os recrutas continuavam dormindo sem perceber.

Júlio dera a Peritas a tarefa de escolher guardas para os turnos de vigia, juntando homens novos com aqueles em quem confiava, aos pares. Tinha plena consciência de que a cada quilômetro ao longo das estreitas trilhas de caça havia uma chance de os jovens aldeãos desertarem. Com poucas armas, eles seguiam desarmados durante o dia, mas era preciso dar espadas aos que montavam guarda, e um ou dois dos rapazes olhavam para as lâminas de ferro com algo parecido com avareza. Júlio esperava que fosse uma cobiça pelas coisas de seus pais, não um desejo de roubar o que pudessem e fugir.

Conseguir comida tinha apresentado um problema parecido. Era crucial que os homens da Accipiter não passassem a depender de seus encarregados para comer. Seria uma mudança sutil mas significativa na escala de autoridade que Júlio tinha montado. Ele sabia que quem distribuía comida era o chefe, independentemente da patente. Esta era uma verdade mais antiga do que a própria Roma.

Agradeceu aos deuses por Peritas, que parecia capaz de pegar pequenos animais com armadilhas naquelas terras estranhas do mesmo modo como havia caçado nas florestas da Itália. Até mesmo os recrutas ficaram impressionados, olhando-o se juntar de novo ao grupo depois de apenas algumas horas, trazendo o corpo frouxo de quatro lebres. Com quinze homens saudáveis para alimentar, a caçada noturna tinha se tornado uma habilidade vital, e Peritas tinha ajudado a impedir que eles se dividissem em duas facções, os que podiam caçar e os que tinham de esperar para ser alimentados.

Júlio olhou para o amigo que estava ocupado cortando fatias de carne do lombo de um leitão que tinha apanhado mais cedo, partindo a perna do animal com uma pedra atirada rapidamente enquanto ele saía do esconderijo, quase em cima dos soldados. A mãe não foi vista, ainda que os guinchos tivessem chegado até eles, vindo dos arbustos distantes. Júlio desejou que ela tivesse chegado mais perto, de modo que todos poderiam estar diante de um festim, em vez de alguns bocados quentes. Não havia gordura sobrando em nenhum dos homens da Accipiter, e iria se passar um tempo antes que eles perdessem completamente a aparência esquálida. Sua boca se retorceu ao pensar que deveria ter a mesma aparência. Fazia muito tempo que não se olhava num espelho e imaginou se seu rosto havia mudado para melhor ou pior. Será que Cornélia ficaria feliz em vê-lo, ou chocada e perturbada pela aparência feia que ele imaginava, evidência muda dos horrores da prisão?

Deu um risinho diante do vôo da fantasia. Ele seria o mesmo, não importando o quanto seu rosto tivesse mudado.

Suetônio ergueu a cabeça rapidamente ao ouvir o riso, sempre vendo insulto onde não havia. Era difícil resistir a provocar o sujeito, mas nisso Júlio estabelecera restrições rígidas para si mesmo. Sentia que o despeito vinha do medo de que Júlio usasse sua nova autoridade para se vingar de agravos antigos. Não podia se dar ao luxo de desfrutar sequer um momento desse prazer, para o caso de isso romper a unidade que estava tentando montar. Sabia que tinha de se tornar o tipo de líder que estava acima de pequenos agravos, de ter diante dos homens a aparência que Mário tivera para ele - esculpido numa pedra melhor. Assentiu para Suetônio brevemente e depois olhou para os outros.

Gadítico e Prax supervisionavam o acampamento, marcando o perímetro com galhos caídos, por falta de algo melhor. Júlio ouviu-os repassar as regras de sentinela com os homens e sorriu num momento de nostalgia.

- Quantas vezes você pergunta quem vem? - estava dizendo Prax a Ciro, como tinha feito com todos os homens.

- Uma, senhor. Eles gritam pedindo para se aproximar do acampamento e eu digo: "Aproxime-se e seja reconhecido."

- E se eles não gritarem ao se aproximar do acampamento? - perguntou Prax, animado.

- Acordo mais alguém, espero que eles cheguem perto e corto a cabeça deles.

- Bom garoto. Pescoço e virilha, lembre-se. Em qualquer outro lugar eles ainda podem ter força suficiente para levá-los junto. No pescoço e na virilha é o mais rápido.

Ciro riu, absorvendo cada migalha de informação que Prax lançava. Júlio gostava do ânimo do grandalhão. Ele queria ser um legionário, conhecer o que seu pai havia amado. Prax também tinha descoberto que gostava de ensinar todas as coisas que tinha aprendido em décadas marchando e navegando por Roma. Com o tempo os novos homens seriam capazes de enganar qualquer um. Pareceriam legionários e falariam com a mesma gíria e as expressões casuais.

Júlio franziu a testa e tentou achar uma posição confortável para se deitar. Se eles permaneceriam de pé quando todos em volta estivessem derrubados e o inimigo trouxesse a morte certa com gritos de triunfo... isso não saberiam com certeza até que acontecesse. Não ajudava muito o fato de os homens da Accipiter nem saberem de onde vinha essa coragem louca. Um homem podia passar a vida evitando cada conflito e depois perdê-la para proteger alguém que amava. Júlio fechou os olhos. Talvez essa fosse a chave, mas não eram muitos os homens que amavam Roma. A cidade era grande demais, impessoal demais. Os legionários que Júlio tinha conhecido jamais pensavam na República dos eleitores livres, esculpida em sete colinas por um rio. Eles lutavam por seu general, por sua legião, até mesmo pela centúria e pelos amigos. Um homem de pé ao lado dos amigos não pode correr, pelo risco de passar vergonha.

Suetônio gritou de repente, saltando de pé e batendo em si mesmo.

- Socorro! Tem alguma coisa aqui no chão!

Júlio saltou de pé e os outros homens se aproximaram do fogo, com as espadas desembainhadas. Parte de Júlio notou com prazer que Ciro ficou em seu posto.

À luz da fogueira uma fileira preta de formigas enormes movia-se como óleo no chão, desaparecendo nas sombras atrás da luz. Suetônio estava ficando frenético e começou a arrancar as roupas.

- Elas estão em cima de mim! - gemeu.

Peritas se adiantou para ajudá-lo e, quando seu pé pisou perto da coluna, parte dela deslizou para ele, e ele recuou com um grito, batendo nas pernas com a mão nua.

- Deuses! Tirem isso daí! - gritou ele.

O acampamento se dissolveu num caos. Os que tinham sido criados naquele litoral estavam bem mais calmos do que os oficiais da Accipiter. As formigas picavam tão profundamente quanto ratos, e quando os soldados as arrancavam seus corpos se partiam e deixavam as mandíbulas ainda grudadas e rasgando a carne no espasmo da morte. A pinça era forte demais para ser arrancada com os dedos, e logo Suetônio estava coberto pelas cabeças escuras, as mãos sangrentas de tanto puxá-las.

Júlio chamou Ciro e observou enquanto ele verificava calmamente os dois romanos, tirando o resto dos corpos dos insetos com as mãos poderosas.

- Elas ainda estão em cima de mim! Você não consegue tirar as cabeças? - implorou Suetônio, estremecendo de terror, parado quase nu enquanto o grandalhão revistava sua pele procurando as últimas.

Ciro deu de ombros.

- As pinças têm de ser tiradas com uma faca, não podem ser abertas. As tribos as usam para fechar ferimentos, como se fossem pontos.

- O que são elas? - perguntou Júlio.

- Soldados da floresta. Elas guardam a coluna durante a marcha. Meu pai costumava dizer que eram como os batedores usados por Roma. Se você ficar longe, elas não atacam, mas se ficar no caminho elas vão fazer você pular como Suetônio.

Peritas lançou um olhar maligno para a coluna que continuava atravessando o acampamento.

- Poderíamos queimá-las. Ciro balançou a cabeça.

- A fila é interminável. É melhor simplesmente se afastar delas.

- Certo, vocês ouviram - disse Júlio. - Peguem as coisas e se preparem para andar um quilômetro e meio na direção da costa. Suetônio, quero você vestido e pronto para ir. Você e Peritas podem tirar as pinças da pele quando nos acomodarmos de novo.

- É uma agonia - gemeu Suetônio.

Ciro olhou-o, e Júlio sentiu uma pontada de vergonha e irritação ao ver o jovem oficial se mostrando tão fraco diante dos recrutas.

- Ande, ou eu mesmo amarro você em cima das formigas - disse ele.

A ameaça pareceu causar efeito e, antes que a lua se afastasse muito no céu, um novo acampamento estava montado, com Ciro e outros dois terminando o turno de vigia. De manhã todos estariam cansados pela falta de sono depois da agitação.

A cabeça de Júlio latejava devagar, parecendo acompanhar os ritmos dos insetos ao redor. A cada vez que caía no sono, sentia a picada de um inseto na pele exposta. Os bichos deixavam manchas de seu sangue quando eram mortos, mas sempre havia outros esperando que ele se imobilizasse. Fez um travesseiro com suas tralhas e usou um trapo para cobrir o rosto, ansiando pelos distantes céus de Roma. Podia ver Cornélia na mente e sorriu. A exaustão alcançou-o um instante depois.

Com inchaços vermelhos na pele e sombras sob os olhos, chegaram ao próximo povoado antes do meio-dia, a menos de dois quilômetros do litoral. Júlio liderou os homens indo até a praça, sentindo as visões e cheiros que tinham um toque de civilização. De novo ficou impressionado com a ausência de fortificações de qualquer tipo. Os velhos soldados que tinham recebido terras nesse litoral deviam ter pouco medo de ataques, pensou. As fazendas eram pequenas, mas devia haver comércio entre esses locais isolados e aldeias nativas, mais para o interior. Viu uma quantidade de rostos negros entre os romanos que se juntaram para ver seus homens. Imaginou quanto tempo demoraria para que o sangue romano se misturasse e se perdesse, de modo que as gerações distantes não soubessem nada de seus ancestrais e de como eles viviam. A terra voltaria ao estado anterior à vinda deles e até mesmo as histórias em volta das fogueiras hesitariam e seriam esquecidas. Imaginou se lembrariam o império de Cartago aqui, quando milhares de navios tinham explorado o mundo a partir de portos neste litoral. Era um pensamento arrepiante, e ele o deixou de lado para refletir mais tarde, sabendo que precisava se concentrar se quisesse sair deste lugar com mais coisas de que precisava.

Como tinham sido ordenados, seus homens ficaram em posição de sentido em fila dupla, com a expressão séria. Contando com a espada de Júlio, apenas oito homens estavam armados, e somente três tinham armaduras decentes. Manchas de sangue marcavam a túnica de Suetônio, e seus dedos estremeciam de vontade de tocar as feridas deixadas pelas formigas em todo o corpo. A maioria dos oficiais da Accipiter estava queimada de sol e picada por insetos, e somente os novos recrutas não pareciam afetados.

Júlio achou que pareciam mais uma tropa de bandidos ou piratas do que legionários romanos e viu um bom número de pessoas se armar disfarçadamente, com o nervosismo aparecendo em todos. Um açougueiro parou de cortar o que parecia um primo do leitão que eles haviam comido na noite anterior. Ele saiu de detrás de sua mesa com o cutelo pousado no braço, pronto para um ataque súbito. Júlio deixou o olhar pairar sobre a multidão, procurando quem estaria no comando. Sempre havia alguém, mesmo nos lugares selvagens.

Depois de uma espera tensa, cinco homens vindo da extremidade mais distante das casas se aproximaram. Quatro estavam armados, três deles com machados de cabo comprido e o último com um gládio que havia se partido em alguma batalha antiga, deixando-o com pouco mais do que uma adaga pesada.

O quinto homem andou cheio de confiança até os recém-chegados. Tinha cabelos grisalhos cor de ferro e era magro como um graveto. Júlio achou que ele teria uns sessenta anos, mas mantinha a postura empertigada de um velho soldado e, quando falou, foi no latim fluente da cidade.

- Meu nome é Parrakis. Este é um povoado pacífico. O que querem aqui? Ele fez a pergunta a Júlio e não pareceu ter medo. Naquele momento Júlio mudou seu plano de intimidar o líder, como tinha feito com o primeiro. O povoado podia ter negócios com os piratas, mas havia pouca evidência de terem lucrado com isso. As casas e as pessoas eram limpas, mas sem adornos.

- Somos soldados de Roma, éramos da galera Accipiter. Um pirata chamado Celso nos trocou por resgates. Queremos montar uma tripulação e encontrá-lo. Este é um povoado romano. Espero ajuda de sua parte.

Parrakis levantou as sobrancelhas.

- Sinto muito, aqui não há nada para vocês. Não vejo a Itália há mais de vinte anos. Não existe dívida a ser paga pelas famílias daqui. Se tiverem prata, vocês podem comprar comida, mas depois devem ir embora.

Júlio chegou um pouco mais perto, notando o modo como os companheiros de Parrakis se retesaram e, ao mesmo tempo, ignorando-os explicitamente.

- Estas terras foram dadas a legionários, não a piratas. Este litoral está infestado por eles e vocês têm o dever de nos ajudar.

Parrakis riu.

- Dever? Deixei isso para trás há uma vida inteira. Digo de novo: não tem poder sobre nós aqui. Vivemos e comerciamos em paz. Quando os piratas aparecem, vendemos mercadorias e eles vão embora. Acho que você está procurando um exército, não é? Não vai achar neste povoado. Aqui entre os camponeses, não há nada da cidade.

- Nem todos os homens que estão comigo são do navio. Alguns são de povoados a oeste. Preciso de homens que possam ser treinados para lutar. Homens que não estejam dispostos a passar a vida escondidos neste povoado, como vocês.

Parrakis ficou vermelho de raiva.

- Escondidos? Nós trabalhamos a terra e lutamos contra pestes e doenças só para alimentar nossa família. Os primeiros vieram de legiões que lutaram com honra em terras longe de casa e finalmente receberam o último presente do Senado, a paz. E você ousa dizer que estamos nos escondendo? Se eu fosse mais novo, usaria uma espada contra você, seu filho da puta insolente!

Júlio desejou ter agarrado o homem logo de início. Abriu a boca para falar rapidamente, sabendo que estava perdendo a iniciativa. Um dos homens com machados interveio primeiro:

- Eu gostaria de ir com eles.

O sujeito mais velho se virou, com a saliva se juntando branca nos cantos da boca.

- Quer ir e ser morto? O que está pensando?

O que estava com o machado apertou os lábios diante da raiva que vinha de Parrakis.

- O senhor sempre disse que aqueles foram os melhores anos de sua vida - murmurou ele. - Quando os velhos ficam bêbados, sempre falam daqueles dias como se fossem de ouro. Eu só tenho a chance de arrebentar as costas desde o amanhecer até a noite. O que vou contar às pessoas quando estiver velho e bêbado? Como era bom matar um porco numa festa? A ocasião em que eu quebrei um dente numa pedrinha que estava no pão que a gente faz?

Antes que o estupefato Parrakis pudesse responder, Júlio interveio:

- Só peço que você diga isso às pessoas do povoado: eu preferiria voluntários, se houver outros como este.

A raiva abandonou Parrakis, fazendo-o parecer exausto.

- Jovens - disse ele com um tom resignado. - Sempre procurando einpolgação. Acho que eu também já fui assim. - E se virou para o que estava com o machado. - Tem certeza, garoto?

- O senhor tem Deni e Cam para trabalhar na fazenda, não precisa de mim também. Quero ver Roma.

- Certo, filho, mas o que eu disse é verdade. Não há vergonha em ganhar a vida aqui.

- Eu sei, pai. Vou voltar para vocês.

.- Claro que vai, garoto. Aqui é a sua casa.

No total, oito jovens do povoado se apresentaram como voluntários. Júlio escolheu seis, recusando dois que eram pouco mais do que crianças, ainda que um deles tivesse esfregado fuligem no rosto para parecer a sombra de uma barba. Dois dos recém-chegados trouxeram arcos. Estava começando a parecer o exército de que ele precisava para tripular um navio e revirar os mares atrás de Celso. Júlio tentou controlar o otimismo enquanto marchavam saindo das árvores luxuriantes para o litoral, para os primeiros exercícios do dia. Fez na cabeça uma lista do que eles precisavam. Ouro para conseguir um navio, mais vinte homens e trinta espadas, comida bastante para mantê-los vivos até chegarem a um porto importante. Podia ser feito.

Um dos arqueiros tropeçou e caiu chapado, fazendo a maior parte da coluna parar. Júlio suspirou. Uns três anos para treiná-los também seria bom.

 

Servília sentou-se na beira do divã, com as costas eretas. A tensão era clara em cada linha do corpo, mas Brutus sentiu que não deveria falar primeiro. Tinha passado a maior parte da noite acordado, sem resolver nada. Por três vezes tinha decidido não visitar a casa perto da colina do Quirinal, mas cada vez fora um gesto de desafio oco. Nunca houvera realmente um momento em que ele não teria vindo vê-la. Não sentia nada parecido com um amor de filho, no entanto algum ideal nebuloso o fazia voltar, com todo o fascínio de arrancar cascas de ferida e se ver sangrando por ela.

Tinha desejado que ela o procurasse quando era criança, quando estava sozinho e com medo do mundo. Quando a mulher de Mário o havia mimado com a necessidade de um filho ele se afastou, enervado com emoções que não entendia de fato. Mesmo assim a mulher que o encarava tinha sobre ele um domínio que ninguém mais possuía, nem Tubruk, nem mesmo Júlio.

No silêncio pouco natural ele a sorvia, procurando alguma coisa cujo nome não sabia e que nem tentava entender. Ela usava uma estola branquíssima contra a pele bronzeada, sem qualquer jóia. Como acontecera na véspera, seu cabelo comprido estava solto, e quando ela se movia era com uma graça ágil que tornava um prazer simplesmente olhá-la andar e se sentar, como Brutus admiraria o passo perfeito de um leopardo ou uma gazela. Seus olhos eram grandes demais, decidiu ele, e o queixo forte demais para uma beleza clássica, mas era impossível não olhá-la, notando as rugas que marcavam os olhos e em volta da boca. Ela parecia tensa, pronta para saltar e fugir correndo dele, como fizera antes. Brutus esperou e imaginou quanta tensão estaria aparecendo em seu próprio rosto.

- Por que você veio? - perguntou ela, rompendo o silêncio medonho. Em quantas respostas ele havia pensado para essa pergunta! Cena após cena tinha sido representada em sua imaginação durante a noite: zombando dela, ofendendo-a, abraçando-a. Nada disso o havia preparado para esse momento.

- Quando eu era criança ficava imaginando como você era. Queria vê-la, ao menos uma vez, só para saber quem você era. Queria saber como você era.

Ele ouviu sua voz tremer e um espasmo de raiva o atravessou. Não iria passar vergonha. Não falaria como uma criança para essa mulher, a puta.

- Sempre pensei em você, Marco. Comecei a escrever muitas cartas para você, mas nunca mandei.

Brutus controlou os pensamentos. Nunca tinha ouvido seu nome falado por ela, em todos os anos da vida. Isso o deixou com raiva, e a raiva lhe permitiu falar com calma.

- Como era meu pai?

Ela olhou para as paredes da sala simples onde estavam.

- Era um homem bom, muito forte e alto como você. Só o conheci durante dois anos, antes dele morrer. Mas me lembro de que ele ficou muito feliz por ter um filho. Ele escolheu o seu nome e o levou ao templo de Marte para ser abençoado pelos sacerdotes. Ficou doente naquele ano e foi levado antes do inverno. Os médicos não o puderam tratar, mas houve muito pouca dor no final.

Brutus sentiu os olhos se enchendo de lágrimas e limpou-os, irritado, enquanto ela continuava.

- Eu... eu não podia criá-lo. Eu mesma era uma criança e não estava pronta ou não era capaz de ser mãe. Deixei-o com o amigo dele e fugi.

Sua voz se embargou completamente na última frase, e ela abriu a mão apertada, revelando um pano amassado que usou para enxugar os olhos.

Brutus ficou olhando-a com um sentimento estranho de distanciamento como se nada que ela fizesse ou dissesse pudesse tocá-lo. A raiva tinha se esvaído e ele se sentia quase leve. Havia uma pergunta que queria fazer, mas ela não saiu fácil.

- Por que não me procurou enquanto eu estava crescendo?

Ela não respondeu por longo tempo, usando o pano para enxugar as lágrimas, até que a respiração se firmou e ela pôde olhá-lo de novo. Sustentou a cabeça com uma dignidade frágil.

- Eu não queria que você sentisse vergonha.

A calma não natural deu lugar às emoções que varriam Brutus, revelan-do-o como uma palha numa tempestade.

- Eu poderia sentir - sussurrou com a voz rouca. - Ouvi alguém falando sobre você há muito tempo e tentei fingir que era um engano, para tirá-la da mente. Então é verdade que você...

Ele não podia dizer as palavras, mas ela se empertigou ainda mais, com os olhos brilhando.

- Que eu sou uma prostituta? Talvez. Já fui, se bem que quando os homens que a gente conhece são suficientemente poderosos eles nos chamam de cortesãs ou mesmo companheiras. - Ela fez uma careta, com a boca se retorcendo. - Achei que você poderia sentir vergonha de mim e não poderia encarar isso no meu filho. Não espere que eu sinta essa vergonha. Perdi isso há tempo demais para ao menos lembrar. Eu levaria uma vida diferente se pudesse voltar atrás, mas não conheço ninguém que não tenha esse mesmo sonho inútil, bobo. Agora não vou viver a vida de cabeça baixa com a culpa todos os dias! Nem mesmo por você.

- Por que pediu que eu voltasse hoje? - perguntou Brutus, subitamente incrédulo por ter atendido tão facilmente ao pedido.

- Queria ver se seu pai ainda teria orgulho de você. Queria ver se eu sentia orgulho de você! Fiz muitas coisas das quais me arrependo, mas ter tido você sempre me confortou quando a situação era difícil demais para suportar.

- Você me abandonou! Não diga que isso confortou você, pois nunca nem mesmo foi me ver. Eu nem sabia onde você estava na cidade! Você poderia ter ido para qualquer lugar.

Servília levantou quatro dedos rígidos para ele, dobrando o polegar embaixo.

- Quatro vezes mudei de casa desde que você era um bebê. Sempre mandei uma mensagem a Tubruk dizendo onde eu estava. Ele sempre soube como me contatar.

- Eu não sabia - respondeu Brutus, impressionado com a veemência dela.

- Você nunca perguntou - disse ela, deixando a mão cair de volta no colo.

O silêncio recomeçou como se nunca tivesse sido rompido, subitamente inchando-se no espaço entre os dois. Brutus se pegou procurando alguma coisa para dizer, algo que finalmente pudesse confundi-la, permitindo-lhe sair com dignidade. Observações cortantes vinham e iam em seus pensamentos, até que ele finalmente viu que estava sendo um idiota. Será que ele a desprezava, sentia vergonha da vida ou do passado dela? Olhou para dentro procurando resposta e encontrou uma. Não sentia sequer um fiapo de vergonha. Sabia que em parte isso era porque tinha liderado homens como oficial numa legião. Se tivesse vindo procurá-la sem ter feito nada, poderia odiá-la, mas havia se erguido e medido seu valor aos olhos dos inimigos e amigos, e não tinha medo de ser medido aos dela.

- Eu... não me importo com o que você fez - falou lentamente. - Você é minha mãe.

Ela irrompeu numa gargalhada, balançando-se para trás no divã. De novo ele se sentiu perdido diante daquela mulher estranha, que podia despedaçar cada momento de calma que ele conseguia invocar.

- Ah, que nobreza de sua parte! - disse ela em meio ao riso. - Que rosto tão sério para me dar a absolvição. Você não me entendeu nem um pouco? Sei mais sobre o modo como essa cidade funciona do que qualquer senador em seu pequeno manto e sua barba aparada. Tenho mais dinheiro do que poderia gastar e mais poder na minha palavra do que você pode imaginar. Você me perdoa por minha vida desregrada? Meu filho, me parte o coração ver como você é jovem. Faz com que eu me lembre de como já fui jovem também.

Seu rosto ficou imóvel e o riso sumiu dos lábios.

- Se eu quisesse que você me perdoasse alguma coisa, seria pelos anos que poderia ter tido com você. Quem eu sou, eu não mudaria por nada, e os caminhos que viajei até chegar a este dia, a esta hora! Eles não podem ser perdoados. Você não tem o direito nem o privilégio de fazer isso.

- Então o que você quer comigo? Eu não posso simplesmente dar de ombros e tentar esquecer que eu cresci sem você. Eu já precisei de você mas aqueles em quem confio e que amo são os que estavam comigo na época. Você não estava.

Ele se levantou e olhou-a, confuso e magoado. Ela se levantou junto.

- Vai me deixar agora? - perguntou ela em voz baixa. Brutus levantou as mãos, em desespero.

- Quer que eu volte?

- Muito - disse ela, tocando em seu braço. O contato fez o cômodo oscilar e ficar turvo.

- Bom. Amanhã?

- Amanhã - confirmou ela, sorrindo por entre as lágrimas.

 

Lúcio Auriga escarrou e cuspiu, irritado. Havia alguma coisa no ar da Grécia central que sempre secava sua garganta, especialmente quando fazia calor. Ele preferiria estar desfrutando de um sono na tarde, à sombra de sua casa, em vez de ser convocado a essa vasta planície, onde a brisa constante o irritava. Não era adequado a um romano estar à disposição dos gregos, não importando a posição que ocupassem, pensou. Sem dúvida seria outra reclamação para ele resolver, como se não tivesse nada para encher os dias além de ouvir os problemas deles. Ajeitou a toga enquanto os homens se aproximavam. Não deveria parecer incomodado pelo local que eles haviam escolhido para o encontro. Afinal de contas, os gregos eram proibidos de andar a cavalo, ao passo que ele podia simplesmente montar e voltar para dentro das muralhas de Farsalo antes do escurecer.

O homem que tinha feito a convocação andou sem pressa até ele, com dois companheiros. Seus ombros e braços enormes estavam frouxos, balançando ligeiramente com seu passo comprido. Parecia ter acabado de descer das montanhas que rompiam o horizonte a toda volta, e por um momento Lúcio estremeceu levemente. Pelo menos não tinham vindo armados, pensou. Em geral Mitrídates não era um homem que se lembrasse de obedecer às leis de Roma. Lúcio examinou-o enquanto ele andava pelo capim baixo e as flores do campo. Sabia que os moradores locais ainda o chamavam de rei, e pelo menos ele caminhava como se o fosse, com a cabeça erguida, apesar da rebelião desastrosa.

Agora era tudo história, pensou Lúcio, e anterior à minha época, como tudo o mais nesse país desconfortável. Mesmo que chegasse a chance de assumir o posto de governador, sabia que iria recusá-lo. Era um povo muito desagradável. Ficava pasmo ao pensar em como aqueles camponeses grosseiros e vulgares podiam ter produzido uma matemática de complexidade tão extraordinária. Se não tivesse estudado Euclides e Aristóteles, nunca teria aceitado o posto fora da Itália, mas a idéia de encontrar esse tipo de mente havia embriagado o jovem comandante. Suspirou. Não era possível encontrar um só Euclides numa cidade daquele povo.

Mitrídates não sorriu quando parou diante do pequeno grupo de oito soldados que Lúcio havia trazido. Virando-se no local, olhou a distância ao redor, depois respirou fundo, enchendo o peito poderoso e fechando os olhos.

- E então? Vim ao seu chamado - disse Lúcio em voz alta, esquecendo-se por um momento que deveria parecer calmo e inabalável.

Mitrídates abriu os olhos.

- Sabe o que é este lugar? - perguntou. Lúcio balançou a cabeça.

- Aqui é o ponto exato onde fui derrotado pelo seu povo há três anos. - Ele levantou o braço grosso, com os dedos esticados, apontando. - Aquele morro, está vendo? Eles tinham arqueiros ali, disparando sobre nós. No fim nós chegamos até lá, mas eles tinham feito armadilhas e enfiado espetos no chão. Um monte de homens foi perdido removendo-os, mas nós não podíamos deixá-los nas nossas costas, sabe? Isso destrói o moral.

- Sim, mas... - começou Lúcio. Mitrídates levantou a mão aberta.

- Shhh. Deixe-me contar a história.

O homem era uns trinta centímetros mais alto do que Lúcio e parecia ter uma força que proibia as interrupções. Seu braço nu se estendeu de novo, com os músculos nodosos movendo-se sob a pele, junto com os dedos.

- Onde a terra se dobra, aqui, eu tinha homens com fundas, os melhores com quem já lutei. Eles derrubaram muitos dos seus, e depois, no fim, pegaram espadas para se juntar aos irmãos. As linhas principais estavam atrás de você, e meus homens ficaram pasmos diante da habilidade que viram. Que formações! Contei sete chamados diferentes na batalha, ainda que pudesse haver mais. O quadrado, claro, e os chifres para envolver. A cunha, ah, era incrível vê-los formando uma cunha no meio dos meus homens. Eles usavam os escudos bem demais. Acho que os homens de Esparta poderiam contê-los, mas naquele dia nós fomos destruídos.

- Eu não creio... - começou Lúcio.

- Ali ficava a minha tenda, a menos de quarenta passos de onde estamos hoje. Na ocasião o chão estava enlameado. Mesmo agora essas flores e o capim me parecem estranhos quando imagino aquela batalha. Minha mulher e minhas filhas estavam ali.

Mitrídates, o rei, sorriu com os olhos distantes.

- Eu não deveria ter deixado que elas viessem, mas nunca pensei que os romanos cobririam distância tão grande numa única noite. Assim que percebemos que eles chegaram à área, já estavam sobre nós, atacando. No final minha mulher foi morta, e minhas filhas arrastadas e assassinadas. Minha menina mais nova tinha apenas quatorze anos e teve as costas partidas antes de cortarem sua garganta.

Lúcio sentiu o sangue sumindo do rosto enquanto escutava. Havia uma veemência tão grande nos movimentos lentos do outro que ele quase deu um passo atrás caindo nos braços de seus soldados. Tinha ouvido a história quando chegou, mas havia algo arrepiante em escutar aquela voz calma descrever tais horrores.

Mitrídates olhou para Lúcio e seu dedo apontou para o peito dele.

- Aí onde você está é onde eu me ajoelhei, amarrado e derrotado, rodeado por um círculo de legionários. Pensei que iriam me matar, e quis isso. Tinha ouvido minha família gritando, veja bem, e queria ir com elas. Começou a chover, eu lembro, e o chão estava encharcado. Algumas pessoas do meu povo dizem que a chuva são as lágrimas dos deuses, já ouviu dizer? Naquele momento eu entendi.

- Por favor... - sussurrou Lúcio, só querendo ir embora e não ouvir mais.

Mitrídates o ignorou ou não o ouviu através das lembranças. Às vezes parecia ter se esquecido de que os romanos estavam ali.

- Eu vi Sila chegar e desmontar. Ele usava a toga mais branca que eu já vi. Você precisa se lembrar de que todo o resto estava coberto de sangue, lama e imundície. Ele parecia... intocado por tudo aquilo... - O grego balançou a cabeça ligeiramente. - Foi a coisa mais estranha de ver. Ele me disse que os homens que tinham matado minha mulher e minhas filhas tinham sido executados, sabia disso? Ele não precisava enforcá-los, e eu não entendi o que ele poderia querer de mim, até que me ofereceu uma escolha. Viver e não levantar armas de novo enquanto ele vivesse ou morrer naquele momento, por sua espada. Acho que se ele não tivesse dito aquilo sobre os homens que mataram minhas meninas, eu teria escolhido a morte, mas aceitei a chance que ele me deu. Foi a escolha certa. Pude ao menos ver meus filhos de novo.

Mitrídates se virou para os dois homens que estavam com ele e sorriu.

- Hoca, aqui, é o mais velho, mas Tasso se parece mais com a mãe, eu acho.

Lúcio deu um passo atrás enquanto percebia o que Mitrídates estava dizendo.

- Não! Sila não... você não pode!

Ele parou quando de repente surgiram homens vindo de todas as direções. Desceram da crista de cada morro e saíram da floresta, onde Mitrídates disse que os romanos tinham arqueiros escondidos. Cavalos vieram trovejando até parar perto dos legionários, que tinham desembainhado as espadas, esperando sérios e sem pânico pelo fim. Dezenas de flechas estavam apontadas para eles, esperando a ordem.

Lúcio agarrou o braço de Mitrídates, com medo.

- Isso é passado! - gritou desamparadamente. - Por favor! Mitrídates segurou-o pelos ombros, com força. Seu rosto estava retorcido de raiva.

- Dei minha palavra de não pegar em armas enquanto Cornélio Sila estivesse vivo. Agora minha mulher e minhas filhas estão seguras enterradas, e eu terei o sangue que me é devido!

Ele levou uma das mãos atrás do corpo e pegou uma adaga escondida. Apertou-a contra a garganta de Lúcio e puxou o gume rapidamente.

Os legionários morreram em segundos, empalados e incapazes de ao menos devolver um golpe.

Seu filho mais novo cutucou o corpo de Lúcio com o pé, mantendo o rosto pensativo.

- Este foi um jogo perigoso, meu rei - disse Tasso ao pai. Mitrídates deu de ombros, enxugando o sangue do rosto.

- Neste lugar há espíritos que nós amamos. Era só isso que eu podia fazer por eles. Agora me dê um cavalo e uma espada. Nosso povo está adormecido há muito tempo.

 

Júlio estava sentado à sombra na casa de bebidas e envolveu com os dedos o primeiro copo de vinho que via há quase um ano. O barulho da rua no porto romano vinha lá de fora, e o murmúrio de conversas ao redor trazia um sentimento de lar, especialmente se fechasse os olhos.

Peritas emborcou seu vinho na garganta sem cerimônia, segurando o copo no alto até ter certeza de que cada gota tinha saído, antes de recolocá-lo na mesa. Suspirou apreciando.

- Acho que, se eu estivesse sozinho, venderia minha armadura e beberia até ficar cego - falou. - Faz muito tempo.

Os outros assentiram, bebericando ou virando de uma vez os copos, comprados com as últimas moedas que possuíam.

O resto dos homens, novos e antigos, estava a quilômetros de distância, litoral acima, bem escondido das patrulhas casuais. Só os cinco tinham vindo ao porto decidir aonde iriam. Tinha sido estranho ser recebidos e interpelados por legionários enquanto se aproximavam dos primeiros armazéns, mas para a maioria dos cinco oficiais o sentimento principal fora de alívio. Os meses ao longo da costa tinham se tornado uma aventura distante ao ouvirem a primeira ordem em latim claro, para se identificarem. Pelo menos a história de terem sido presos por piratas não havia causado mais do que uma sobrancelha erguida enquanto os soldados percebiam as armaduras limpas e as armas adequadas que eles usavam. Somente por isso, seu orgulho fez os oficiais se sentirem gratos. Teria sido desagradável chegar como mendigos.

- Quanto tempo falta para o questor chegar aqui? - perguntou Prax olhando para Gadítico. Como centurião, era ele que tinha falado ao oficial romano encarregado do porto, concordando em se encontrarem depois na estalagem perto das docas. Era um pequeno ponto de tensão que todos sentiam. Os outros oficiais tinham se acostumado tanto a olhar para Júlio em busca de ordens que a lembrança das patentes era um incômodo entre eles. Suetônio mal podia se controlar para não rir.

Gadítico tomou um gole de seu vinho, fazendo uma ligeira careta quando um machucado em sua gengiva ardeu.

- Ele disse que viria na quarta hora, de modo que ainda temos algum tempo. Ele terá de mandar um relatório a Roma, dizendo que estamos vivos e bem. Sem dúvida vai nos oferecer espaço num navio mercante que estiver indo para lá.

O centurião parecia perdido em pensamentos, como os outros, praticamente incapaz de aceitar que tinha voltado à civilização. Alguém na multidão esbarrou nele enquanto passava atrás, e Gadítico se enrijeceu. Fazia muito tempo que eles estavam longe da agitação das cidades e dos portos.

- Vocês podem pegar um navio para casa, se quiserem - disse Júlio em voz baixa, olhando os cinco homens ao redor da mesa. - Mas eu vou continuar.

Por um momento, ninguém respondeu, então Prax falou:

- Contando conosco, somos trinta e oito. Quantos desses têm habilidade e disciplina para lutar, Júlio?

- Contando com os oficiais daAccipiter, eu diria que não mais de vinte. O resto é o que nós encontramos, camponeses com espadas.

- Então não pode ser feito - disse Peritas, carrancudo. - Mesmo que possamos encontrar Celso, e os deuses sabem que não vai ser fácil, não temos homens suficientes para ter certeza de que vamos derrotá-lo.

Júlio fungou, irritado.

- Depois de tudo que conseguimos, você acha que vou largar tudo?

Aqueles lá na floresta são nossos homens, esperando o chamado para vir. Acha que deveríamos simplesmente deixá-los e pegar um navio para Roma? não há honra nisso, Péri, nenhuma. Vão para casa se quiserem. Não vou segurar nenhum de vocês. Mas, se forem, dividirei o resgate de vocês com eles quando acharmos Celso e o derrotarmos.

Peritas deu um risinho diante das palavras iradas do jovem.

- Acha que podemos fazer isso? Honestamente? Você nos trouxe até aqui, e eu nunca acreditaria, se não estivesse junto para vê-lo cuidar daqueles povoados. Se diz para irmos em frente, vou até o fim.

- Pode ser feito - disse Júlio com firmeza. - Precisamos entrar a bordo de um navio mercante e levá-lo ao mar. Longe do litoral vamos tentar parecer o mais tentadores possível. Sabemos que os piratas atuam neste litoral; eles vão morder a isca. Pelo menos nossos homens parecem legionários romanos, mesmo que alguns sejam de baixa qualidade. Podemos colocar os bons lutadores na frente e blefar.

- Vou até o fim - disse Prax. - Preciso do meu resgate de volta para desfrutar da aposentadoria.

Gadítico assentiu em silêncio. Júlio olhou a mesa ao redor, com o olhar fixo no homem que conhecia há mais tempo.

- E você, Suetônio? Quer ir para casa?

Suetônio tamborilou com os dedos na mesa de madeira. Sabia que esse momento viria, desde o início, e tinha prometido que aproveitaria a primeira chance de voltar. De todos eles, sua família era a que podia suportar com facilidade a perda do resgate, mas a idéia de voltar como um fracassado era amarga. Roma tinha muitos jovens oficiais, e o futuro não parecia tão luminoso quanto na época em que ele subiu pela primeira vez ao convés da Accipiter. Seu pai tinha esperado uma promoção rápida para o filho, e quando isso não aconteceu o senador simplesmente parou de pedir. Agora tê-lo de volta na propriedade da família sem nada além da derrota em sua ficha seria difícil para todos eles.

Uma idéia se formou em sua mente, enquanto os outros o observavam, e Suetônio lutou para impedir que qualquer sinal dela aparecesse. Havia um modo de retornar à cidade em triunfo, se tivesse cuidado. Deliciosamente, ela também implicaria a destruição de Júlio.

- Suetônio? - repetiu Júlio.

- Estou dentro - respondeu com firmeza, já planejando.

- Excelente. Precisamos de você, Tônio - respondeu Júlio.

Suetônio manteve o rosto imóvel, mesmo fervilhando por dentro. Nenhum deles o considerava muito, ele sabia, mas seu pai aprovaria o que estava para fazer, pelo bem de Roma.

- Aos negócios, senhores - disse Júlio, baixando a voz de modo a ficar restrita ao pequeno grupo. - Um de nós terá de voltar aos homens e dizer para virem ao porto. Os soldados aqui parecem não ter problema com a história da prisão com os piratas, de modo que mandaremos que eles a usem, se forem interrogados. Precisamos ser cuidadosos. Não seria bom que alguns fossem retidos para o questor examinar de manhã. Quero estar no mar na primeira maré, com todos eles a bordo.

- Não podemos trazê-los à noite? - perguntou Peritas.

- Podemos passar pelos poucos guardas legionários, mas a notícia de um grupo grande de soldados embarcando num navio mercante será passada aos piratas. Não tenho dúvida de que eles possuem espiões neste lugar, informando que navios carregam ouro e cargas que interessam a eles. É o que eu faria, e aAccipiter parou aqui antes de sermos atacados. Afinal, eles têm dinheiro para pagar alguns subornos. O problema é colocar quase quarenta homens a bordo sem tornar óbvia a armadilha. Teremos mais chance com pequenos grupos de dois e três de cada vez, durante toda a noite.

- Se você estiver certo, eles devem ter vigias nas docas, que vão nos ver - disse Gadítico em voz baixa.

Júlio pensou um momento.

- Então vamos separar os homens. Descubram quem sabe nadar e mandem que cheguem ao navio pela água, onde podemos puxá-los por cordas. Esta noite há apenas uma lua crescente, de modo que talvez possamos fazer isso sem ser vistos. As armaduras e espadas terão de ser levadas a bordo como fardos de mercadorias para ser vendidas. Tem de ser você, Peritas. Você nada como um peixe. Pode trazê-los ao redor da língua de terra assim que escurecer?

- É um longo trecho para nadar, mas sem armadura, sim. Afinal, aqueles rapazes cresceram no litoral. Devem conseguir - respondeu Peritas.

Júlio enfiou a mão na bolsa presa ao cinto e pegou duas moedas de prata.

- Pensei que você tinha dito que o dinheiro havia acabado! – disse prax cheio de animação. - Vou querer mais um copo do mesmo, se não se importar.

Júlio balançou a cabeça, sem sorrir.

- Talvez mais tarde. Guardei estas moedas para que dois de vocês possam vir aqui esta noite tomar algumas bebidas. Quero que alguém faça o papel de um guarda que está na última noite antes de viajar com uma carga valiosa, alguma coisa que seja informada aos piratas pelos contatos deles. Quem fizer isso não pode ficar bêbado, nem ser morto, por isso preciso de alguém sólido e confiável, talvez com alguns anos a mais do que a maioria de nós.

- Certo, não precisa martelar isso tanto - disse Prax, sorrindo. - Eu gostaria de um serviço assim. Topa, Gadi?

O centurião balançou a cabeça ligeiramente, olhando Júlio.

- Este, não. Quero ficar com os homens para o caso de alguma coisa dar errado.

- Fico com você - disse Suetônio de repente. Prax levantou as sobrancelhas, depois deu de ombros.

- Se não houver mais ninguém - continuou Suetônio, tentando não parecer ansioso demais. Isso lhe daria a chance de que precisava, longe dos outros. Prax assentiu com relutância e Suetônio se recostou na cadeira, relaxando.

- Vi você olhando os navios enquanto nós vínhamos - disse Gadítico a Júlio. Este se inclinou para mais perto e todos juntaram as cabeças para ouvir as palavras dele.

- Havia um que estava carregando suprimentos - murmurou ele. -- O Vêntulus. Trirreme e vela. Uma pequena tripulação que podemos dominar sem muito problema.

- Vocês percebem - disse Suetônio - que se roubarmos um navio de um porto romano isso nos torna piratas também?

Mesmo enquanto falava ele percebeu que era um erro alertá-los, mas parte dele não podia resistir à pequena provocação. Mais tarde eles se lembrariam e saberiam quem os havia salvado dos planos loucos de Júlio. Os outros se imobilizaram ligeiramente enquanto pensavam nas palavras, e Júlio olhou irritado para o jovem oficial.

- Só se formos vistos. Se isso tira o seu sono, pague ao capitão as perdas dele com a sua parte.

Gadítico franziu a testa.

- Não. Ele está certo. Quero que fique claro que ninguém da tripulação será morto e que a carga ficará intocada. Se tivermos sucesso, o capitão deverá ser pago por seu tempo e pelos lucros perdidos.

Ele fixou o olhar em Júlio, e o resto pôde sentir a tensão entre os dois tornando o silêncio desconfortável. A questão de quem os comandava fora ignorada por tanto tempo que eles quase a haviam esquecido, mas ela continuava ali, e Gadítico comandara a Accipiter com disciplina. Suetônio lutou para não rir da luta silenciosa que havia provocado.

Finalmente Júlio assentiu, e a tensão desapareceu.

- Certo - disse ele. - Mas, de um modo ou de outro, quero o controle daquele navio ao cair da noite.

Uma nova voz falou subitamente acima deles, fazendo com que todos se inclinassem para trás.

- Quem é o oficial comandante aqui? - disse a voz, inconscientemente ecoando boa parte dos pensamentos deles. Júlio examinou seu copo de vinho.

- Eu era o capitão da Accipiter - disse Gadítico, levantando-se para cumprimentar o recém-chegado.

O sujeito era uma lembrança de Roma ainda mais do que os legionários que guardavam o porto. Usava uma toga sobre a pele nua, mantida no lugar por um broche de prata com uma águia gravada no metal. Seu cabelo era curto e a mão que ofereceu a Gadítico tinha um pesado anel de ouro no quarto dedo.

- Vocês parecem mais saudáveis do que a maioria dos ex-prisioneiros de piratas que recebemos neste porto. Meu nome é Pravitas, o questor daqui. Vejo que seus copos estão vazios, e eu também estou seco.

Ele sinalizou para um escravo de serviço, que veio rapidamente e encheu os copos de novo, com um vinho melhor do que o primeiro. Obviamente o questor era bem conhecido na cidade portuária. Júlio notou que ele tinha chegado sem guardas, outro sinal de que as leis de Roma eram firmes aqui. Mas tinha no cinto uma adaga comprida, que ajeitou ligeiramente para poder se sentar no banco com os outros.

Quando o vinho foi servido, o questor levantou seu copo para um brinde.

- A Roma, senhores.

Eles repetiram as palavras em coro e tomaram o vinho, não querendo desperdiçar aquela qualidade em goles grandes, sem saber se o sujeito pediria mais.

- Quanto tempo vocês ficaram presos? - perguntou enquanto os copos eram baixados de novo.

- Seis meses, achamos, mas era difícil ter noção do tempo. Em que mês estamos? - respondeu Gadítico.

Pravitas levantou as pálpebras.

- É um longo tempo para se ficar prisioneiro. Estamos logo depois das calendas de outubro.

Gadítico calculou rapidamente.

- Ficamos presos por seis meses, mas demoramos três para chegar a este porto.

- Vocês devem ter sido deixados longe - disse Pravitas com interesse.

Gadítico percebeu que não queria explicar quanto tempo tinham passado treinando novos soldados para lutar e obedecer a ordens, por isso apenas deu de ombros.

- Alguns de nós estavam feridos. Tivemos de andar devagar.

- E as espadas e armaduras? Estou surpreso ao ver que os piratas não ficaram com elas.

Gadítico pensou em mentir, mas o questor poderia facilmente prender os cinco se pensasse que estavam escondendo alguma coisa. Já parecia estar cheio de suspeitas, apesar do tom leve, por isso o capitão tentou ficar perto da verdade.

- Nós as pegamos num povoado romano, de uma velha armaria. Eles fizeram com que trabalhássemos para pagar, mas, como precisávamos recuperar a forma, isso acabou sendo bom.

- Muito generoso. Só as espadas devem valer uma bela quantia. Que povoado era, vocês sabem?

- Olha, senhor. O velho soldado que nos deixou ficar com elas estava ajudando romanos que tinham passado por tempos difíceis. O senhor devera deixar a coisa assim.

Duro lutou para permanecer calmo. Será que eles o consideravam un contrabandista, um pirata? Tentou não parecer culpado, mas havia sempre alguma coisa a ser descoberta. Hoje em dia havia "tantos regulamentos que era impossível lembrar todos.

- Tenho um excelente vinho na cabine. Podemos conversar lá - disse ele, forçando um sorriso.

Os soldados o seguiram sem dizer palavra.

 

Espere! Há alguma coisa errada - sibilou Suetônio, segurando Prax quando ele estava para sair da sombra dos prédios do cais.

O optio afastou irritado os dedos que o seguravam.

- Não estou ouvindo nada. Precisamos encontrar Júlio. Venha.

Suetônio balançou a cabeça, o olhar varrendo o cais vazio. Onde estava o questor? Certamente o sujeito não tinha ignorado o aviso que ele mandara. Tinha sido muito fácil sussurrar uma mensagem para um legionário enquanto o sujeito esvaziava a bexiga na escura privada do lado de fora da estalagem. Antes que o soldado pudesse terminar e se virar, Suetônio tinha desaparecido de volta na agitação e nas luzes do salão, com o coração batendo empolgado. Será que o sujeito estava bêbado demais para passar o recado? Pelo que Suetônio lembrava, ele estivera cambaleando ligeiramente enquanto esvaziava o vinho da noite na valeta de madeira.

O jovem romano fechou os punhos, frustrado. O questor recompensada quem impedisse a pirataria no coração de um porto romano. Júlio seria destruído e Suetônio poderia voltar a Roma com a dignidade intacta, finalmente deixando para trás a humilhação sofrida. A não ser que o legionário bêbado tivesse esquecido a mensagem que ele havia sussurrado ou que tivesse desmaiado na volta para o alojamento. Percebeu que deveria ter se certificado, mas houvera apenas alguns instantes para escolher o sujeito antes de ir embora.

- O que é, - perguntou Prax. - O navio está ali. Vou correr até lá.

- É uma armadilha - disse Suetônio rapidamente, tentando em desespero protelar. - Há algo errado, posso sentir.

Ele não ousava dizer mais, temendo as suspeitas de Prax. Seus sentidos se esforçavam por ouvir algum sinal dos soldados do porto, mas não podia ouvir nada.

Prax forçou a vista para o rapaz nas sombras.

- Bem, não estou sentindo nada. Se perdeu a coragem, fique aqui, mas eu vou indo.

O corpulento optio começou a correr para o casco escuro do navio mercante, desviando-se das poças de luz. Suetônio olhou-o, franzindo a testa. Melhor ficar sozinho, mas se o questor não viesse ele teria de seguiir os outros. Não poderia ser deixado para trás, para implorar uma passagem

Tenso e nervoso enquanto segurava a amurada, Júlio espiou da lateral do Vêntulus para o cais. Onde estavam Prax e Tônio? Seu olhar varreu o espaço aberto entre os navios e os armazéns, procurando seus homens, desejando que eles voltassem logo. A lua crescente havia subido sem parar, e ele tinha certeza de que não faltariam mais de algumas horas para o alvorecer.

Ouviu uma batida fraca atrás e arriscou um olhar para ver outra nadador chegar às sombras do convés, deitando-se de costas e soprando de exaustão. Sem luzes para guiá-los, eles haviam nadado até as águas profundas ao longo da língua de rocha que formava o porto natural, ssem ter ao menos um ponto de apoio nela devido aos ouriços e às superfícies cortantes que arrancavam a pele ao menor contato. Muitos tinham chegado com sangue nas pernas e com o terror dos tubarões aparecendo nos olhos. Os homens tinham ouvido falar deles, mas Júlio se preocupava mais com os outros que não sabiam nadar, entre estes o gigante Ciro. Tinham de correr para o porto no escuro, sem alertar os guardas do questor, e estavam atrasados.

Restava apenas um brilho de luz da lua coberta por nuvens, mas havia tochas em lugares espalhados ao longo de todo o cais, luzes amarelas tremulantes que se moviam e saltavam à brisa que soprava da costa. O vento tinha mudado há uma hora, e Júlio só queria ver as âncoras ser puxadas, as cordas cortadas, e ir embora. O capitão estava amarrado e amordaçado na cabine, com a tripulação aceitando a presença de alguns soldados extras sem comentário ou alarme. A coisa tinha acontecido quase melhor do que Júlio esperava, mas, enquanto olhava as luzes das tochas balançando, sentiu um medo súbito de que o questor tivesse capturado seus homens e que tudo tivesse sido por nada.

Queria não ter mandado Prax e Suetônio à estalagem. Poderia ter havido uma briga ou eles poderiam ter levantado suspeitas com uma história mal contada de riquezas a bordo. Era um risco muito grande, admitiu, batendo os nós dos dedos brancos na amurada do Vêntulus.

Ali! Reconheceu a figura de seu velho optio correndo para o navio. Imobilizou-se enquanto procurava Suetônio, mas não havia sinal dele. O que dera errado?

Prax subiu a bordo, ofegando.

- Onde ele está? - perguntou Júlio rispidamente.

- Atrás de mim. Acho que perdeu a coragem. É melhor o deixarmos - respondeu Prax, olhando para a escura cidade portuária.

A distância Júlio ouviu um grito e se inclinou para a frente, naquela direção. Veio outro, mas na brisa não dava para ter certeza do que era. Virou a cabeça à esquerda e à direita, e então ouviu as batidas rítmicas de legionários em movimento, com as sandálias com ferro nas solas fazendo barulho nas pedras, um som que ele reconheceria em qualquer lugar. Dez, talvez vinte homens. Definitivamente, não eram os seus. Contando com Suetônio, apenas seis outros vinham para as docas a pé. Sua boca ficou seca. Tinha de ser o questor vindo prender todos eles. Sabia que o sujeito tinha desconfiado.

Virou-se e olhou para a prancha estreita que balançava junto com o Vêntulus, prendendo o navio mercante à doca. Somente alguns sacos de areia a mantinham firme. Ele poderia tirar aquilo num segundo e ordenar que o navio partisse. Gadítico estava guardando o capitão. Peritas estaria com o Mestre dos escravos, pronto para dar o sinal. Ele se sentia terrivelmente solitário no convés deserto e desejou que os outros estivessem ali.

Balançou a cabeça, irritado. A decisão era sua, e ele iria esperar até ver quem estava vindo. Franziu a vista para os prédios das docas, rezando para que seus homens aparecessem, mas não havia nada, e ele escutou os legionários passarem para a marcha acelerada, com o barulho dos pés chegando cada vez mais alto.

Quando saíram dos becos escuros para o cais iluminado por tochas, o coração de Júlio se encolheu. O próprio questor estava ali e liderava o que pareciam vinte homens, armados e andando depressa, direto para a linha de navios escuros e para o Vêntulus.

 

Suetônio se afrouxou de alívio ao escutar o barulho dos soldados. Esperaria até que tivessem capturado os outros e se afastaria ao alvorecer. O questor ficaria satisfeito em falar com o homem que dera o alerta. Sorriu consigo mesmo. Seria tentador ficar para a execução de Júlio, só para atrair o olhar dele na multidão. Por um momento, sentiu uma pontada de arrependimento pelos outros, mas deu de ombros inconscientemente. Eles eram piratas, e nenhum tinha impedido Júlio de destruir a disciplina com suas lisonjas obscenas e suas promessas. Gadítico não era apto para comandar, e Peritas... ele gostaria de ver Peritas ser derrubado.

- Suetônio! - gritou uma voz atrás dele, quase fazendo seu coração parar de choque. - Corra, o questor trouxe soldados, vá!

Suetônio entrou em pânico ao sentir o ombro ser agarrado pelos homens que saíram correndo das sombras. Um olhar aterrorizado lhe mostrou que o gigante Ciro estava puxando-o sem diminuir o passo. Arrancado para o espaço livre, só pôde ficar boquiaberto ao ver os sérios soldados do porto vindo para eles, com as espadas à mostra. Engoliu em seco, cambaleando para a frente. Não havia tempo para pensar. Engolindo o medo com fúria, correu com os outros. Agora não havia chance do encontro particular entre cavalheiros que tinha imaginado com o questor. Primeiro precisava passar pelo caos vivo. Trincou o maxilar e correu, ultrapassando Ciro em alguns passos.

Júlio quase gritou de alívio ao ver os últimos deles correndo para o navio.

Os homens do questor os viram imediatamente e gritaram ordens para que parassem.

- Venham! - gritou Júlio aos seus homens. Em seguida balançou a cabeça de um lado do cais para o outro, gemendo ao ver como os legionários do questor estavam perto de seus homens. Não havia tempo. Mesmo que Ciro e os outros conseguissem chegar ao convés, seriam seguidos direto pelos primeiros soldados do porto.

O coração de Júlio martelou, deixando-o tonto enquanto olhava os dois grupos se aproximando. Ficou imóvel, obrigando-se a não agir rápido demais, depois se virou e gritou por sobre o convés:

- Agora! Anda, Pérli! Agora!

Abaixo dele, no fundo do corpo do navio, escutou Peritas responder com ordens próprias. O Vêntulus estremeceu enquanto os remos eram tirados dos blocos de apoio e comprimidos contra as pedras do cais, fazendo com que o navio se movesse pelas águas escuras. Júlio cortou furiosamente a corda que o prendia, abrindo uma fenda na amurada quando ela se partiu. Mais gritos soaram abaixo enquanto a tripulação acordava com o movimento, sem dúvida pensando que tinham ficado à deriva. Júlio sabia que eles esperavam ficar mais alguns dias no porto e tinha apenas alguns segundos antes que o convés se enchesse com eles. Ignorou o problema quando a prancha balançou com o navio, com os sacos de areia caindo.

Será que tinha gritado cedo demais? Os soldados estavam a menos de quinze metros de seus homens quando os primeiros saltaram, virando-se e desembainhando as espadas. Suetônio se movia como um furão, os pés mal tocando a prancha enquanto se jogava no navio.

- Venha, Ciro. Estamos indo! - gritou Júlio, acenando a espada sobre a cabeça.

O grandalhão era lento demais. Sem pensar, Júlio começou a ir para a prancha, pronto para pular no cais com ele.

Parando, Ciro desembainhou sua espada para receber o ataque dos soldados do porto.

- Ciro! Eles são muitos! - gritou Júlio, na dúvida entre saltar para a captura certa e o desejo de ajudar o último de seus homens. Os remos se Moveram de novo e a prancha caiu.

Ciro deu alguns passos lentos até a beira do cais, não ousando virar as costas. Os homens do questor correram até ele e Ciro atacou o primeiro com o punho, um golpe que derrubou o soldado na água. A armadura do legionário o arrastou para baixo, num jorro de bolhas prateadas. Ciro girou e ofegou quando uma espada o acertou nas costas. Seus braços balançaram mas ele rugiu e se lançou para o navio que partia, agarrando a amurada com uma das mãos. Júliou segurou seu pulso, olhando para os olhos escuros loucos de dor e energia.

- Ajudem-me a puxá-lo! - gritou Júlio enquanto lutava para continuar segurando a pele suada. Foram precisos mais dois para puxar Ciro por cima da amurada, e ele ofegou com o ferimento das costas, deixando uma mancha escura na madeira onde estava deitado.

- Eu não queria matá-lo - disse Ciro com a respiração dificultosa. Júlio se ajoelhou ao lado e segurou sua mão.

- Você não teve escolha.

Os olhos de Ciro se fecharam com a dor, e ele não viu a expressão séria de Júlio quando este se levantou e voltou até a amurada. O navio começou a se afastar do cais enquanto os escravos encontravam espaço para mergulhar os remos na água.

A menos de seis metros de distância os legionários olhavam furiosos, com o ódio claro nas expressões. Apesar de estarem tão perto, aquele era um golfo que se alargava lentamente e que eles não podiam atravessar e, enquanto Júlio olhava em silêncio, um deles cuspiu nas pedras, enojado.

O questor estava com eles, tendo trocado a toga por uma túnica escura e um saiote de couro. Seu rosto estava vermelho de fúria e exaustão enquanto era forçado a ver o navio se afastar do porto e finalmente ser engolido pela noite. Dois de seus homens xingaram baixo, olhando o Vêntulus.

- Ordens, senhor? - disse um deles, olhando o questor. Pravitas só respondeu quando sua respiração se estabilizou e parte do rubor tinha sumido do rosto.

- Corra até o capitão da galera que chegou ontem. Diga que minhas ordens são para partir imediatamente e caçar o navio mercante Vêntulus. Quero que ele parta em menos de uma hora, nesta maré.

O soldado fez uma saudação.

- Sim, senhor. Devo dar alguma explicação a ele?

Pravitas assentiu rapidamente.

- Diga que um legionário foi morto e o navio foi roubado por piratas.

Júlio reuniu seus homens na escuridão do convés em movimento. Apenas Ciro estava ausente, deixado numa cabine para descansar, depois de receber uma bandagem no machucado. O corte era fundo, embaixo da omoplata, mas parecia limpo, e com sorte ele sobreviveria.

A tripulação fora trancada embaixo, até que a nova situação lhes fosse explicada. Pelo menos seus oficiais podiam velejar e colocar o navio em movimento sem dificuldade. Mesmo assim era péssimo ter inocentes como prisioneiros. Fazia lembrar o cativeiro deles, e Júlio mais sentia do que via a raiva dos homens da Accipiter.

- As coisas mudaram - disse ele, tentando ordenar os pensamentos atabalhoados. - Para os de vocês que não ouviram, um dos soldados do questor se afogou na luta para trazermos os nossos a bordo. Isso significa que ele colocará cada galera na área procurando por nós. Devemos ficar longe da costa enquanto pudermos e fugir de cada vela durante um tempo, até que as coisas se acalmem. Não planejei isso, mas agora não há como recuar. Se formos apanhados, seremos mortos.

- Não serei um pirata - interrompeu Gadítico. - Começamos isso para lutar contra eles, não para nos juntarmos aos desgraçados.

- Aquele questor tem os nossos nomes, lembra? - disse Júlio. - A mensagem que ele mandará a Roma vai descrever como roubamos um navio e afogamos um dos seus homens. Quer você goste ou não, nós somos piratas até pensarmos num modo de sair desta confusão. A única esperança é ir em frente e capturar Celso. Pelo menos, poderemos mostrar boa vontade. Isso pode impedir que eles nos crucifiquem.

- Olhe onde suas idéias nos trouxeram! - rosnou Suetônio, sacudindo o punho. - Isso é um desastre! Não há volta para nenhum de nós.

Surgiram discussões de todos os lados, e Júlio deixou que gritassem, lutando contra o próprio desespero. Se ao menos o questor tivesse passado a noite na cama, eles estariam longe, para achar seus captores.

Por fim sentiu-se suficientemente calmo para interromper.

- Quando vocês terminarem de discutir, descobrirão que não temos escolha. Se nos entregarmos, o questor nos levará a julgamento e execução. Isso é inevitável. Tenho uma coisa a acrescentar.

Um silêncio baixou, e ele se sentiu enjoado ao ver a esperança no rosto dos outros. Ainda achavam que ele poderia produzir alguma mudança, e a Júlio só restavam promessas em que ele próprio não tinha certeza de acreditar. Atraiu o olhar de um oficial da Accipiter após outro, incluindo todos.

- Naquela prisão fedorenta acharíamos um sonho estar aqui com um navio, prontos para lutar de volta contra os inimigos. Isso custou um preço, mas daremos um jeito quando Celso estiver a nossos pés e o ouro dele for nosso. Animem-se.

- Roma tem longa memória para seus inimigos - disse Gadítico, com a voz débil.

Júlio se obrigou a sorrir.

- Mas nós não somos inimigos de Roma. Sabemos disso. Só precisamos convencê-los também.

Gadítico balançou a cabeça lentamente e deu as costas para Júlio, andando pelo convés. Os primeiros toques da alvorada estavam no céu, e golfinhos cinzentos brincavam e saltavam sob a quilha rombuda enquanto o Vêntulus cavalgava as ondas, com os remos num ritmo rápido para levá-los para longe de terra e do castigo.

 

Servília caminhava lentamente pelo Fórum com o filho, imersa em pensamentos. Ele parecia contente com o ritmo lento, o olhar se demorando na casa do Senado enquanto se aproximavam. Ela mal notava os grandes arcos e cúpulas, tendo-os visto mil vezes.

Olhou para Brutus sem deixar que ele percebesse. A seu pedido, ele havia chegado para a reunião vestindo todo o polido uniforme de centurião. Ela sabia que os fofoqueiros iriam notá-lo e perguntar seu nome, presumindo que o rapaz fosse um amante. Agora um bom número poderia confidenciar em sussurros que seu filho tinha voltado, um mistério que eles adorariam explorar. Brutus não passaria despercebido no coração da cidade, ela sabia. Havia alguma coisa de fera no modo como ele caminhava, a cabeça inclinada para ouvir, uma confiança que fazia a multidão abrir caminho diante dele quase inconscientemente.

Tinham se encontrado todos os dias durante um mês, primeiro na casa dela, depois caminhando juntos pela rua. A princípio os passeios eram rígidos e desconfortáveis, mas à medida que os dias passavam eles podiam conversar sem tensão, e até mesmo rir, ainda que tais momentos fossem raros.

Servília ficara surpresa ao ver quanto prazer sentia em mostrar a ele os templos e contar as histórias e lendas que rodeavam todos. Roma é cheia de lendas, e ele as ouvia com um interesse ávido que estimulava dela.

Ela passou a mão pelo cabelo, puxando-o para trás num gesto casual. Um homem que passava parou para olhá-la e Brutus franziu a testa para ele fazendo-a sentir vontade de rir. Às vezes Brutus tentava ser protetor, esquecendo-se de tudo a que ela sobrevivera nesta cidade durante toda a juventude do filho. Mas de algum modo Servília não se importava.

- O Senado está em sessão hoje - disse ela ao vê-lo olhando pelas portas de bronze, para os corredores sombreados.

- Sabe o que eles estão discutindo?

Brutus passara a aceitar que havia pouca coisa relativa ao Senado que ela não soubesse. Não perguntara se ela possuía amantes na nobilitas, mas suas suspeitas eram claras pelo modo como a mãe evitava delicadamente o assunto. Servília sorriu para ele.

- A maior parte é terrivelmente chata: nomeações, regulamentos municipais, impostos. Os empoeirados parecem adorar isso. Acho que vai estar escuro antes de terminarem.

- Eu adoraria ouvir - disse Brutus em tom pensativo. - Chato ou não, gostaria de passar um dia ouvindo essas pessoas. Elas têm uma influência tão grande nas terras romanas! E tudo a partir desse lugar pequeno.

- Ficaria entediado em menos de uma hora. A maioria do trabalho verdadeiro é feita em particular. O que você veria é o último estágio, enquanto eles redigem as leis que foram mastigadas durante semanas. Não é uma coisa que um rapaz teria prazer em ver.

- Eu teria - respondeu ele, e Servília pôde perceber o desejo em sua voz.

Perguntou-se de novo o que faria com o filho. Ele parecia contente em passar cada manhã com ela, mas nenhum dos dois tinha discutido o futuro. Talvez fosse certo simplesmente desfrutarem a companhia um do outro, mas às vezes ela via o desejo do rapaz de ir em frente, mas ainda sem um objetivo claro. Sabia que ele estava à deriva quando se encontrava com ela, tendo saído por um tempo do caminho de sua vida. Não podia lamentar sequer um momento disso, mas talvez ele precisasse de um empurrão para voltar a si mesmo.

- Dentro de uma semana eles passarão para as nomeações dos postos mais elevados - disse Servília em tom despreocupado. - Roma terá um novo pontífice máximo e altas autoridades. Os comandos das legiões também serão alocados.

Ela viu com o canto dos olhos a cabeça de Brutus se virar rapidamente em sua direção. Ainda havia ambição ali, por baixo do exterior relaxado!

- Eu... deveria me inscrever em uma nova legião - disse ele lentamente. - Posso assumir um posto de centurião em praticamente qualquer lugar.

- Ah, acho que posso conseguir uma coisa melhor do que isso para um filho meu - disse ela descuidadamente.

Brutus parou e segurou seu braço de leve.

- O quê... como?

Ela riu diante de sua confusão, fazendo-o ruborizar.

- Às vezes me esqueço de como você pode ser inocente - falou suavizando as palavras com o seu sorriso. - Acho que você passou um tempo longo demais marchando e lutando. E, provavelmente é isso. Misturando-se com selvagens e soldados, sem nem um pouquinho de política na vida.

Ela ergueu a mão até o ponto em que o filho a segurava e apertou a mão dele com afeto.

- Os senadores são simplesmente homens, e os homens raramente fazem o que é certo. Na maior parte do tempo são persuadidos ou coagidos a fazer o que fazem. Subornos em ouro trocam de mãos, mas a verdadeira moeda de Roma são a influência e os favores. Metade das nomeações já deve estar decidida naquelas reuniões particulares. O resto pode ser barganhado ou exigido.

Servília esperava um sorriso para suas palavras, mas Brutus pareceu magoado, e ela soltou sua mão.

- Achei que era... diferente - falou ele em voz baixa.

Servília se recompôs, apanhada entre o desejo de não despedaçar as ilusões dele e a necessidade urgente de acordar o jovem soldado para a realidade antes que ele fosse morto.

- Está vendo aquela área fechada? Lembra-se que eu disse que é onde o povo de Roma vem votar nas nomeações do Senado, nos tribunos, nos gestores e até mesmo nos pretores? É uma eleição secreta, e eles a levam a sério, mas repetidamente os mesmos homens são eleitos, as mesmas famílias, com poucas mudanças. Parece justo, mas os eleitores não conheceriam alguém de fora. Só os senadores têm fama e riqueza suficiente para ter seus nomes na boca dos homens livres de nível mais baixo na cidade. É tudo uma ilusão, mas uma ilusão elegante. O espantoso é que poucos senadores tentam ser justos, melhorando a cidade e o bem-estar dos cidadãos. - Servília apontou para a sede do Senado. - Há grandes homens nesse prédio, homens que iluminam a cidade com suas obras. Mas a maioria dos outros carece de qualquer tipo de força. Eles usam o poder do senado para obter riquezas e mais autoridade para si mesmos. Esta é a realidade simples. O Senado não é mau nem abençoado, e sim uma mistura, como tudo o mais em que colocamos as mãos na vida.

Brutus examinou-a enquanto ouvia sua veemência. Quer soubesse ou não, Servília não era tão distanciada e cansada do mundo como gostava de parecer. Seu ar geralmente cínico tinha desaparecido enquanto falava dos senadores venais, com repulsa óbvia. Ela não era uma mulher simples, pensou Brutus, não pela primeira vez.

- Entendo. É só que, quando conheci Mário, ele era como um deus. As coisas pequenas estavam abaixo dele. Conheci muitos que não conseguiam ver além do próprio trabalho e do posto, e quando olho para trás percebo que ele tinha uma visão para a cidade e que tudo que fazia era para torná-la real, não importando o quanto lhe custasse. Ele arriscou tudo que possuía para derrubar Sila, e estava certo! Sila se estabeleceu como um rei em Roma no momento em que Mário morreu.

Servília olhou rapidamente em volta para ver se alguém estava suficientemente perto para ouvir.

- Não diga esses nomes tão alto em público, Brutus. Esses homens podem estar mortos, mas as feridas continuam abertas. Por outro lado, ainda não acharam os assassinos de Sila. Eu fico feliz por você ter conhecido Mário. Ele nunca foi à minha casa, mas até seus inimigos o respeitavam, disso eu sei. Gostaria que houvesse outros como ele. - Seu tom de voz ficou mais leve enquanto ela parecia desconsiderar a seriedade do assunto. - Agora vamos continuar andando antes que os fofoqueiros comecem a se perguntar o que estamos conversando. Quero subir a colina até o templo de Júpiter. Sila mandou reconstruí-lo depois da guerra civil trazendo as colunas dos restos do templo de Zeus na Grécia. Vamos fazer uma oferenda lá.

- No templo dele? - perguntou Brutus enquanto caminhavam.

- Os mortos não possuem templos. Ele pertence a Roma, ou ao próprio deus, se preferir. Os homens se esforçam demais por deixar alguma coisa. Acho que é por isso que eu os amo.

Brutus olhou-a, de novo golpeado pela sensação de que aquela mulher tinha visto e vivido várias vidas, em comparação com a sua única.

- Quer que eu assuma um posto numa legião? - perguntou ele.

Ela sorriu diante do assunto mais seguro.

- Seria a coisa certa a fazer. Há pouco sentido em me deverem favores se eu nunca os cobrar, não é? Você poderia passar toda a carreira como centurião, desconsiderado por comandantes cegos, terminando seus dias numa pequena fazenda numa província nova praticamente indomada, tendo de dormir com a espada ao lado. Aceite o que posso lhe dar. Agrada-me poder ajudá-lo depois de ficar tanto tempo longe de sua vida. Você entende? É uma dívida que eu tenho para com você, e eu sempre pago minhas dívidas.

- O que tem em mente?

- Ah, o interesse fica aguçado, não é? Bom. Eu odiaria pensar que um filho meu não tem ambição. Vejamos. Você mal fez dezenove anos, de modo que os postos religiosos estão fora de cogitação durante alguns anos. Deve ser militar. Pompeu fará com que seus amigos votem no que eu quiser. Ele é um velho companheiro. Crasso também concordará comigo devido a favores passados. Cina concordaria. Ele é... um amigo mais atual.

Brutus ficou boquiaberto.

- Cina, o pai de Cornélia? Eu achava que ele era um velho!

Servília deu um risinho, um som profundo e sensual.

- Só às vezes...

Brutus ficou vermelho de embaraço. Como poderia olhar Cornélia nos olhos na próxima vez em que a encontrasse?

Servília continuou, com a boca se curvando para cima enquanto ignorava a confusão do filho:

Com a ajuda deles, você poderia ter o comando de mil homens em qualquer das quatro legiões que eles vão rever. O que acha?

Brutus quase tropeçou. O que a mãe oferecia era espantoso, mas ele percebeu que teria de parar de se surpreender a cada revelação de Servília. Ela era uma mulher muito incomum de muitos modos, especialmente para se ter como mãe. Um pensamento lhe veio e ele parou de andar. Ela se virou e olhou-o com as sobrancelhas erguidas em interrogação.

- Que tal a antiga legião de Mário? Servília franziu a testa.

- A Primogênita está acabada. Até mesmo o nome foi retirado, não pode haver mais do que um punhado de sobreviventes. Use a cabeça, Brutus. Cada um dos amigos de Sila ficaria sabendo de seu nome. Você teria sorte de sobreviver um ano.

Brutus hesitou. Tinha de perguntar, ou sempre iria se questionar por não ter aproveitado a chance.

- Mas é possível? Se eu aceitar o risco, esses homens que você mencionou podem ordenar que ela seja reformada?

Servília deu de ombros e outro passante a encarou, capturado por um momento. Brutus tocou o punho do gládio e o homem foi em frente.

- Se eu pedisse, sim, mas a Primogênita caiu em desgraça. Mário foi declarado inimigo do Estado. Quem viria lutar sob o nome dele? Não. É impossível.

- Eu quero. Só o nome e o direito de juntar e treinar novos soldados. Não posso pensar em nada que eu desejasse mais.

Servília o encarou nos olhos, examinando-os.

- Tem certeza?

- Crasso, Cina e Pompeu podem fazer isso? - perguntou ele com firmeza.

Servília sorriu, ainda espantada ao ver como esse rapaz podia fazer suas emoções passarem num instante da raiva e da diversão para o orgulho. Não podia lhe recusar nada.

- Seria preciso cada favor que eu tenho, mas eles me devem. Pelo meu filho, eles não me negariam a Primogênita.

Brutus abraçou-a e ela devolveu o abraço sorridente, tirada do chão na felicidade dele.

- Você precisará levantar um capital enorme se quiser trazer uma legião de volta dos mortos - disse ela quando o rapaz a colocou no chão de novo. - Vou apresentá-lo a Crasso. Não conheço ninguém mais rico, não creio que exista alguém com mais dinheiro, mas ele não é idiota. Terá de convencê-lo de algum retorno do ouro investido.

- Vou pensar nisso - disse Brutus, olhando para o prédio do Senado atrás deles.

Lembrando-se de sua frustração na Accipiter, Júlio não imaginava que agradeceria pelo peso e a velocidade lenta das galeras romanas. Enquanto a alvorada chegava com o clarão súbito da costa tropical, seus homens tinham gritado de medo quando a vela quadrada romana foi avistada. Júlio tinha-a visto durante as primeiras horas de luz, até ter certeza de que a distância estava diminuindo. Sério, deu ordens de jogar a carga no oceano.

Pelo menos o capitão não tivera de testemunhar, já que ainda estava amarrado a um assento em sua cabine. Júlio sabia que o homem ficaria furioso ao descobrir, e uma quantidade maior do ouro de Celso teria de lhe ser entregue caso tivessem sucesso. Realmente não havia opção, mas fora uma hora desconfortável enquanto seus homens traziam pequenos grupos de tripulantes para ajudá-los a jogar as valiosas mercadorias de um continente na esteira do navio. Algumas das madeiras raras boiaram na água, no lugar onde caíram, mas as peles e os fardos de tecido foram rapidamente para o fundo. Os últimos itens a ser jogados foram enormes presas de marfim amarelo. Júlio sabia que elas eram valiosas e pensou em deixá-las, antes de sua decisão se firmar e ele dar um sinal relutante para jogá-las por cima da amurada, com o resto.

Então mandou os homens ficarem a postos, olhando a vela no horizonte contra o clarão do sol nascente. Se ela continuasse se aproximando, a única coisa que restaria seria arrancar tudo que fosse possível do navio, mas, à medida que as horas passavam, a galera que os seguia foi ficando cada vez menor, até se perder de encontro à luz refletida do mar.

Júlio se virou para seus homens que trabalhavam em meio à tripulação. Notou que Gadítico não estava junto, tendo ficado embaixo do convés quando foi dada a ordem de abandonar a carga. Franziu a testa ligeiramente, mas decidiu não ir até o companheiro e forçar a situação. Finalmente ele veria que tinham de continuar com o plano original. Era a única esperança. Júlio levaria o Vêntulus para longe da costa durante algumas semanas, continuando a treinar seus recrutas para a guerra no mar. Gostaria de mandar fazer um corvus, mas eles deviam se parecer com qualquer outro navio mercante para atrair os piratas a um ataque. Então veria se tinha conseguido transformar camponeses em legionários ou se eles desmoronariam e o obrigariam a ver o Vêntulus afundar como a Accipiter. Trincou o maxilar e fez uma curta oração a Marte. Não deveriam desperdiçar esta segunda chance.

 

Alexandria olhou o pequeno cômodo que lhe fora oferecido. Não parecia grande coisa, mas pelo menos era limpo, e não era justo ocupar um lugar na casa minúscula de "Iàbbic agora que suas jóias estavam rendendo dinheiro. Sabia que o velho artesão deixaria que ela ficasse mais tempo, até mesmo pagando um pequeno aluguel se ela insistisse, mas mal havia espaço suficiente para sua família na apertada moradia no segundo andar.

Não tinha contado a eles sobre sua procura, pretendendo surpreendê-los com um convite para jantar quando achasse um local. Isso foi antes de quase um mês de busca. Eles poderiam ter achado estranho uma mulher que nascera escrava recusar alguma coisa, mas pelo dinheiro que ela estava disposta a pagar os cômodos oferecidos eram sujos, úmidos ou infestados de habitantes rasteiros que ela não esperava para examinar de perto.

Poderia pagar por mais do que apenas um cômodo, até mesmo por uma casinha. Seus broches estavam vendendo com a mesma rapidez com que ela conseguia fazê-los, e, mesmo com a maior parte dos lucros indo para metais novos e mais finos, havia o bastante para aumentar as economias a cada mês.

Talvez ser escrava tivesse lhe ensinado a valorizar o dinheiro, já que ela cedia de má vontade cada moeda de bronze que ia para pagar comida ou o teto sobre a cabeça. Pagar aluguel caro parecia a idiotice definitiva, sem possuir nada depois de anos entregando o dinheiro conseguido duramente. gastar o mínimo possível, e um dia poderia comprar uma casa própria, com uma porta para fechar contra o mundo.

- Você quer o quarto? - perguntou a dona.

Alexandria hesitou. Estava tentada a barganhar o preço ainda mais mas a mulher parecia exausta depois de um dia trabalhando nos mercados, e era um preço honesto. Não seria justo se aproveitar da pobreza óbvia da família. Alexandria viu que as mãos da mulher estavam manchadas e feridas com as cores dos toneis de tingimento, deixando uma leve marca azul sobre o olho quando ela afastava o cabelo inconscientemente.

- Tenho mais dois para ver amanhã. Depois disso lhe digo - respondeu Alexandria. - Posso vir aqui à noite?

A mulher deu de ombros, com a expressão resignada.

- Pergunte por Atia. Eu estarei por aí. Você não vai achar coisa melhor pelo preço que quer pagar, você sabe. Esta é uma casa limpa, e o gato cuida de qualquer camundongo que apareça. Você é quem sabe.

Ela se virou para começar o trabalho do fim de tarde, preparando a comida trazida do mercado como parte do pagamento. Uma boa quantidade estaria quase estragada, Alexandria sabia, no entanto Atia parecia não se curvar com o peso da vida.

Era uma coisa estranha ver uma mulher livre à beira da pobreza. Na propriedade rural onde Alexandria tinha trabalhado, até os escravos se alimentavam e se vestiam melhor do que a família daquela mulher. Era uma visão da vida que ela jamais havia explorado, e teve um estranhíssimo sentimento de vergonha parada ali com roupas boas, usando um dos seus broches de prata prendendo a capa.

- Vou ver os outros, depois volto - disse Alexandria com firmeza. Atia começou a cortar legumes sem comentários, colocando-os numa panela de ferro sobre um fogão de barro construído grudado na parede. Até mesmo a faca que ela segurava tinha uma lâmina fina como um dedo, gasta, mas ainda usada por falta de algo melhor.

Na rua lá fora, um coro de gritos agudos irrompeu e uma figura suja passou correndo pela porta aberta, esbarrando direto em Alexandria.

- Epa, garoto! Quase me derrubou! - disse ela, sorrindo.

O menino olhou-a com uma expressão interrogativa nos olhos azuis. Seu rosto estava sujo de poeira como o resto do corpo, mas Alexandria pôde ver que O nariz estava escuro e inchado, com um traço de sangue na ponta, que espalhou pela bochecha quando ele o enxugou, fungando.

A mulher largou a faca e o envolveu com os braços.

- O que andou aprontando agora?-perguntou ela, tocando o nariz dele.

O garoto riu e se retorceu para sair do abraço.

- Só uma briga, mãe. Os garotos que trabalham no açougue me perseguiram até em casa. Fiz um deles tropeçar quando quis me pegar, e ele me deu um soco no nariz.

O garoto riu de orelha a orelha para a mãe e enfiou a mão debaixo da túnica, tirando dois pedaços de carne desembrulhados, pingando sangue. A mãe gemeu e os agarrou com um movimento rápido.

- Não, mãe. Eles são meus! Eu não roubei. Só estavam caídos na rua.

O rosto da mãe ficou branco de raiva, mas ele continuou agarrando-a enquanto ela ia até a porta, pulando o mais que podia para recuperar seus prêmios da mão dela.

- Eu lhe disse para não roubar e não mentir. Tire as mãos de mim. Isso tem de voltar para o lugar de onde veio.

Alexandria estava entre Atia e a porta, por isso saiu à rua para dar passagem. Havia um grupo de garotos parados ali, com um ar vagamente ameaçador. Eles riram ao ver o menino pulando em volta da mãe, e um deles estendeu a mão para pegar os pedaços de carne, que foram jogados em sua palma sem uma palavra.

- Ele é rápido, moça. Isso eu tenho de admitir. O velho Tedo me disse para dizer que vai chamar a guarda se o seu garoto roubar mais alguma coisa.

- Não precisa fazer isso - disse Atia, irritada, enxugando o sangue das mãos num pedaço de pano que tirou da manga. - Diga a Tedo que ele nunca perdeu nada que não tivesse recebido de volta e que eu vou espalhar a notícia para não comprarem no açougue dele se ele tentar isso. Eu cuido da disciplina do meu filho, obrigada.

Belo serviço a senhora está fazendo - disse o garoto mais velho com desdém.

Atia levantou a mão rapidamente e ele recuou, rindo e apontando para a figura humilhada que ainda se grudava à saia dela.

- Eu mesmo vou dar uma surra no seu pequeno Turino, se ele aparecer perto do açougue. Não duvide. Atia ficou vermelha de raiva e se adiantou um passo, dando-lhes a desculpa que eles queriam para sair correndo, gritando insultos enquanto se espalhavam.

Alexandria ficou parada perto dos dois, imaginando se deveria simplesmente ir embora. A cena que tinha testemunhado não era da sua conta, mas estava curiosa para ver o que aconteceria agora que a mãe estava a sós com o moleque

O menino choramingou e esfregou o nariz cautelosamente.

- Desculpe, mãe. Só achei que a senhora ia gostar. Não achei que eles fossem me seguir até aqui.

- Nunca pense nisso. Se seu pai estivesse vivo, sentiria vergonha de você, menino. Ele diria que a gente nunca rouba e nunca mente. Depois daria um belo aviso no seu traseiro, com a tira de couro, coisa que eu deveria fazer.

O garoto lutou para se soltar, chutando-a enquanto ela segurava seu braço com firmeza.

- Ele era um cambista. Você diz que todos os cambistas são ladrões, de modo que ele também devia ser.

- Não ouse falar isso! - disse Atia com os lábios brancos.

Sem esperar resposta, pôs o garoto sobre o joelho e bateu nele com força, seis vezes. Ele lutou durante as três primeiras e ficou silencioso e imóvel nas últimas. Quando ela o colocou no chão, ele passou ao redor das duas mulheres, correndo pela rua estreita e desaparecendo na esquina.

Atia suspirou, olhando-o correr. Alexandria juntou as mãos nervosamente, sem graça por ter testemunhado aquele momento particular. Atia pareceu se lembrar dela subitamente e ficou ruborizada ao encará-la.

- Desculpe. Ele vive roubando, e eu não consigo fazer com que entenda que não deve. Ele é sempre apanhado, mas na semana que vem tenta de novo.

- O nome dele é Turino? A mulher balançou a cabeça.

- Não. Os outros o chamam assim porque a família veio de Turim. É um apelido insultuoso, mas ele parece gostar. Seu nome é Otaviano, por causa do pai. O pequeno terror. Só tem nove anos, mas está mais à vontade nas ruas do que em casa. Eu me preocupo com ele. - Ela olhou para Alexandria, observando as roupas e o broche. - Eu não deveria estar incomodando você com nossos problemas, moça. Não me importo em admitir que seria bom receber o aluguel do quarto. Ele não roubaria você, e se fizesse, isso eu devolveria na hora, pela honra da minha família. Não dá para saber mas há sangue bom nas veias dele. Otávios e César, ainda que o desgraçadozinho não faça idéia.

- César? - perguntou Alexandria rapidamente.

A mulher assentiu.

- A avó dele era uma César, antes de se casar com meu avô. Sem dúvida ela choraria se o visse roubar carne de um açougueiro a menos de três ruas de distância. Quero dizer, eles conhecem a cara do menino! Vão quebrar os braços dele se ele fizer isso de novo, e como é que eu ficaria?

Lágrimas escorreram de seus olhos e Alexandria se adiantou sem pensar e a envolveu com o braço.

- Vamos entrar. Acho que vou ficar com aquele seu quarto.

A mulher se empertigou e olhou-a, irritada.

- Eu não quero caridade. A gente se vira, e com o tempo o menino vai aprender.

- Não é caridade. O seu quarto é o primeiro que vejo limpo, e eu... trabalhei para uma família César há alguns anos. Pode ser a mesma família. Nós somos quase parentes.

A mulher enxugou os olhos com o pano, tirando-o do lugar onde formava um bolo dentro da manga.

- Você está com fome? - perguntou ela sorrindo.

Alexandria pensou na pequena pilha de legumes que esperavam para ser cortados.

- Eu já comi. Vou lhe pagar o primeiro mês e depois volto para onde estou hospedada, para pegar minhas coisas. Não é longe.

Se andasse depressa e não demorasse na casa de Tabbic, achava que poderia voltar à nova casa antes do escurecer. Talvez então eles tivessem podido comprar um pouco de carne com o dinheiro do aluguel.

Us senadores se remexeram desconfortáveis em seus lugares. Tinha sido uma longa sessão, e muitos haviam chegado ao ponto em que estavam ignorando as complicações das discussões e simplesmente votando do modo como haviam concordado antes.

Com as sombras da tarde se alongando, foram acesas tochas usando círios presos em hastes compridas. O brilho das pequenas chamas era refletido nas paredes de mármore branco polido, e o ar estava cheio do perfume suave de óleo aromático. Uma grande parte dos trezentos senadores que tinham se reunido naquela manhã já havia saído, deixando as últimas votações passarem sem sua presença.

Crasso sorriu sozinho, tendo se certificado de que os que o apoiavam permaneceriam até que as tochas fossem apagadas e que o longo dia chegasse ao término oficial com a oração pela segurança da cidade. Ouviu atentamente a lista de nomeações, esperando pela que ele e Pompeu tinham acrescentado para ser votada. Quase involuntariamente, seus olhos foram até a lista de legiões, gravada no mármore branco. No lugar onde a Primogênita estivera inscrita havia agora um espaço em branco. Seria agradável desfazer outro pequeno pedaço do legado de Sila, mesmo que o pedido não tivesse sido feito por sua velha amiga.

Ao pensar nisso, olhou para Cina, e os olhos dos dois se encontraram por um momento. Cina assentiu para a lista de legiões e sorriu. Crasso devolveu o sorriso, notando o cabelo do amigo que ia embranquecendo. Sem dúvida Servília não poderia preferir um pai invernal daqueles a ele, não é? O simples pensamento nela agitou seu sangue, fazendo-o perder nas reminiscências o fim de uma seção. Olhou o modo como Cina votou e levantou a mão junto com ele.

Outros senadores se levantaram, pedindo licença em silêncio, indo para suas casas e suas amantes por toda a cidade. Crasso tentou não deixar o rosto mostrar o prazer quando Cato se aproximou e passou por ele, imerso numa discussão. Seria mais fácil com a ausência dos partidários de Sila, mas mesmo que todos os silanos estivessem no prédio ele duvidava que Cina, Pompeu e ele próprio não pudessem forçar aquilo por entre os dentes deles. Restaurar a Primogênita iria deixá-los furiosos. Lembrou-se de agradecer a Servília pela idéia quando se encontrassem de novo. Talvez um pequeno presente para demonstrar o apreço.

Pompeu se levantou para responder a uma pergunta relativa ao novo comandante de uma legião na Grécia. Falou com uma confiança envolvente sobre os novos nomes, recomendando-os ao Senado. Crasso tinha ouvido dizer que acontecera outra rebelião, e as perdas significavam chances de amigos e parentes dos homens que estavam no Senado. Balançou a cabeça com tristeza, lembrando-se do dia em que Mário tinha forçado uma votação que tirou Sila de Roma para derrotar Mitrídates pela primeira vez. Se Mário estivesse aqui agora, faria com que eles levantassem a cabeça e fizessem alguma coisa a respeito! Em vez disso, aqueles idiotas discutiam dias a fio, quando deveriam estar separando duas das preciosas legiões para acuar os gregos.

Crasso deu um sorriso torto ao perceber que era um dos idiotas que ele próprio criticava. A última rebelião tinha levado à guerra civil e a um ditador. Nenhum dos generais no salão ousava se apresentar, por medo de que os outros se unissem contra ele. Não queriam outro Sila, e em resultado nada era feito. Até Pompeu esperava, e ele era quase tão impetuoso quanto Mário. Seria suicídio se apresentar como voluntário, como Mário e Sila tinham feito. Havia despeito e inveja demais para deixar que qualquer um deles obtivesse vitória sobre Mitrídates. Culpa de Sila, por tê-lo deixado ficar livre da primeira vez. O homem não fazia nada certo.

Pompeu sentou-se e a votação foi feita rapidamente, deixando apenas o último item do dia, proposto por Crasso e apoiado por Pompeu. Os dois tinham mantido o nome de Cina fora dos registros naquele ponto, já que havia boatos de que ele estivera envolvido no envenenamento de Sila. Sem fundamento, claro, mas ninguém podia impedir que os fofoqueiros de Roma fizessem seu serviço.

Por um momento, Crasso imaginou se eram realmente sem fundamento, mas depois descartou a idéia. Ele era um homem prático, e Sila e o passado tinham ficado para trás. Se a filha de Cina tinha evitado se tornar a amante relutante de Sila, como ele ouvira ser sussurrado, certamente havia prova de que os deuses olhavam com favor a casa de Cina - ou os Césares, talvez. Definitivamente, um dos dois.

Tinha ouvido dizer que acontecera algum avanço para descobrir o escravo que levara o veneno, mas nada ainda era sabido sobre quem tinha ordenado a morte. Crasso olhou o salão meio vazio. Poderia ser qualquer um deles. Sila tinha feito inimigos com uma completa ausência de cautela. E a cautela deveria ser a primeira regra da política, pensou Crasso. A segunda regra da política deveria ser evitar mulheres atraentes que precisassem de favores, mas os homens não tinham muita chance de alegria na vida, e Servília Proporcionara algumas memórias que ele guardava com carinho.

- Restauração da Primogênita aos registros das Legiões - anunciou o mestre dos debates, fazendo Crasso se empertigar e se concentrar. - Licença para recrutar, treinar, fazer juramentos e nomear oficiais sob a autoridade do Senado a ser dada a Marco Brutus, de Roma-continuou o orador num tom monótono que não combinava com o murmúrio de empolgação que varreu o resto dos cem senadores em seus lugares. Um dos silanos saiu rapidamente, sem dúvida para trazer seus amigos de volta para a votação. Pompeu franziu a testa ao ver Calpúrnio Bíbilo e dois outros se levantarem para falar. Bíbilo fora um partidário fervoroso de Sila e sempre que tinha oportunidade ainda jurava que os assassinos seriam descobertos.

Parecia que eles estavam pensando num velho truque. Um depois do outro falaria ao Senado longamente, até que a sessão terminasse, ou pelo menos até um número suficiente de seus seguidores poder ser convocado para derrubar a moção. Se a proposta fosse empurrada para a próxima sessão, talvez não fosse aprovada.

Crasso olhou para Cina e captou o olhar dele, em comiseração. Para sua surpresa, o velho deu-lhe uma piscadela. Crasso relaxou e se recostou no assento. O dinheiro era uma alavanca poderosa; sabia disso mais do que ninguém. Para protelar a votação, os silanos precisariam de permissão para começar, e o mestre dos debates recitou os detalhes da proposta sem olhar ao menos uma vez para os bancos onde eles estavam, pigarreando ruidosa mente em busca de atenção.

Quando todos os detalhes foram descritos, o mestre dos debates pediu a votação imediata. Um dos silanos xingou algo e saiu do salão do Senado, uma grosseira quebra de etiqueta. A nomeação foi aprovada rapidamente e a sessão foi encerrada. Durante a oração final, Crasso lançou um olhar de lado para Pompeu e Cina. Teria de escolher com cuidado o presente para Servília. Sem dúvida aqueles dois tinham idéias semelhantes.

 

Júlio esperava no porão escuro, com a espada desembainhada e tendo os outros ao redor. Estavam em silêncio esperando o sinal, e naquele silêncio estranho as tábuas do Vêntulus estalando quase pareciam vozes baixas acima da batida das ondas contra o casco.

Acima deles, os soldados podiam ouvir os piratas rindo e xingando enquanto amarravam a primeira trirreme ao Vêntulus e se reuniam no convés do cargueiro sem resistência. Júlio se esforçava por ouvir cada som. Era um momento tenso para todos, mas mais perigoso para os que tinham permanecido em cima, onde poderiam ser mortos como exemplo ou simples crueldade. A princípio Júlio ficara surpreso ao ver que algum tripulante do Vêntulus estava disposto a ficar no convés enquanto os piratas abordavam. A suspeita inicial e a raiva contra seus homens tinham desaparecido quando ele contou os planos de atacar os piratas, e Júlio acreditava no entusiasmo dos homens. Eles haviam sentido grande prazer em escolher quais iriam se render no convés, e Júlio Percebeu que, para aqueles marinheiros, a chance de se vingar dos piratas que eles temiam e odiavam seria uma oportunidade única. Para eles não havia a força de uma galera legionária. Um navio mercante como o Vêntulus sempre Precisava correr em busca de proteção, e com o passar dos anos muitos tripulantes tinham perdido amigos diante de Celso e dos outros bandidos.

Apesar disso Júlio havia deixado Peritas e Prax com eles, vestidos com roupas maltrapilhas. Não era bom confiar a vida a estranhos, e um dos seus oficiais poderia dar o sinal mesmo que os tripulantes os traíssem. Preferi não deixar nada por conta da sorte.

Vozes soaram fracas através das escotilhas acima da cabeça. Seus homens se remexeram, apertados, mas não ousando sequer suspirar. Não havia como ter certeza de quantos inimigos estavam no convés. Geralmente uma tripulação de piratas era menor do que as forças de uma galera romana, e raramente com mais de trinta espadas, mas depois de ter testemunhado os conveses apinhados dos dois navios que afundaram a Accipiter, Júlio sabia que não poderia contar com a certeza dos números. Precisava da surpresa para se certificar. Contando com o resto da tripulação, cinqüenta homens esperavam com ele. Júlio tinha decidido permitir que os marinheiros escolhessem suas armas, raciocinando que não poderia abrir mão de homens para vigiá-los. O melhor que poderia conseguir era fazer com que se misturassem aos seus novos soldados, impedindo um súbito ataque pela retaguarda quando corressem para o convés.

Um deles estava ao seu lado, segurando uma barra de ferro enferrujada como arma. Não havia sugestão de falsidade no outro, pelo que Júlio podia ver. Como os outros, seu olhar estava fixo nas escotilhas escuras, delineadas pela luz do sol brilhando pelas rachaduras, em amplos arcos dourados que redemoinhavam e brilhavam com a poeira. As traves se moviam de modo quase hipnótico enquanto o Vêntulus balançava nas ondas. Mais vozes falaram acima, e Júlio se retesou ao ver que a luz era bloqueada por sombras em movimento, com as tábuas estalando sob o peso. Seus homens não ficariam em cima das escotilhas. Tinham de ser os piratas, movendo-se sobre a presa.

Júlio tinha esperado o máximo possível antes de descer com os outros, querendo ver com os próprios olhos como os piratas atuavam, pensando na próxima vez. Para fazer com que parecesse real, teve de ordenar aos remadores do Vêntulus uma boa velocidade, mas estava pronto para fazer com que alguns remos atrapalhassem os outros se os piratas não pudessem se aproximar. Não fora necessário. O navio inimigo devia estar vazio, e foi chegando cada vez mais perto à medida que o dia continuava.

Quando eles estavam suficientemente perto para contar os remos, Júlio desceu para perto de seus homens. A maior preocupação era que o inimigo empregasse uma tripulação treinada, como Celso. Se fossem homens pagos poderiam não estar acorrentados aos bancos, e a idéia de uma centena de remadores musculosos subindo para atacar seus homens significaria o desastre, estivessem armados ou não. Ele tinha visto que o navio inimigo levava um aríete em ponta, que poderia ancorá-los se batessem de frente com a presa, mas achou que não iriam usá-lo, preferindo chegar ao lado e abordar. Sem dúvida, sentiam-se seguros tão longe da costa e das galeras de patrulha, capazes de se demorar tirando a carga e possivelmente ficando com o Vêntulus, em vez de afundá-lo. Afinal de contas, os piratas não tinham estaleiros. Esperava que eles tivessem trazido apenas uma força básica para o convés do Vêntulus. Com o inimigo amarrado em segurança, nenhum dos dois navios poderia escapar, o que era exatamente o que Júlio desejava. Suava de ansiedade esperando o sinal. Havia muitas coisas que poderiam dar errado.

Acima soprava um vento forte, espalhando minúsculas gotas de água salgada no rosto da tripulação do Vêntulus e seus captores. Sabendo do plano, a tripulação tinha se rendido sem reclamar, gritando para que os remos fossem recolhidos e a vela baixada. O Vêntulus balançava nas ondas sem velas e remos para fazê-lo se mover. Uma saraivada de flechas passou por cima enquanto os piratas os amarravam, e Peritas teve de se desviar para não ser acertado. Viu alguns tripulantes sentados no convés, com as mãos levantadas. Nenhuma flecha estava caindo perto deles, por isso ele imitou a ação, puxando Prax. As flechas pararam de voar assim que todos estavam sentados. Peritas ouviu risos dos homens que esperavam para abordar e deu um riso carrancudo, esperando o momento certo. Júlio tinha dito para aguardar até que o inimigo tivesse dividido as forças entre os dois navios, mas era impossível avaliar quantos eles tinham de reserva. Peritas decidiu que gritaria quando vinte homens tivessem atravessado a amurada. Um número maior do que esse poderia não ceder ao primeiro ataque, e a última coisa de que eles precisavam era uma batalha acirrada no convés. Uma parte muito grande dos homens de Júlio era composta de novatos, e se os piratas não se rendessem depressa a vantagem poderia mudar de lado e eles perderiam tudo.

Os primeiros dez inimigos chegaram ao convés principal do Vêntulus. Mesmo eles estando confiantes, Peritas notou como se moviam como uma unidade, protegendo-se de algum ataque súbito. Espalharam-se ligeiramente indo até a tripulação sentada, e ele viu compridas tiras de couro penduradas nos cintos, prontas para amarrar os prisioneiros. Sem dúvida, aqueles dez eram os melhores lutadores, veteranos que conheciam o serviço e que podiam abrir caminho para sair de encrenca. Peritas desejou que Júlio o tivesse deixado levar uma espada para o convés. Desarmado, sentia-se nu.

A tripulação se deixou ser amarrada sem luta, e Peritas hesitou. Com apenas dez no convés, era cedo demais para dar o sinal, mas os piratas estavam trabalhando com eficiência, e se amarrassem o resto com a mesma rapidez eles não seriam de ajuda quando a luta começasse. Viu mais quatro passar por cima da amurada até o Vêntulus, e depois olhou o rosto sério do homem que se aproximou dele, com uma tira de couro na mão. Teriam de ser quatorze.

Quando o homem o encarou, Peritas gritou alto:

- Accipiter! - E se levantou.

O pirata pareceu confuso e reagiu irritado, mas então as escotilhas se abriram e os legionários romanos surgiram num enxame entre eles, com as armaduras brilhando ao sol.

O homem perto de Peritas girou para vê-los, com o queixo caindo. Sem hesitar, Peritas pulou nas costas dele, passando o antebraço pela garganta do sujeito com toda a força. O pirata cambaleou alguns passos para a frente, depois girou a espada para trás e cravou-a no peito de Peritas. O romano caiu em agonia.

Júlio liderava o ataque. Matou o primeiro homem que estava à sua frente, xingando ao ver que Peritas tinha chamado cedo demais. Os arqueiros ainda estavam no outro navio, e flechas escuras se cravaram no convés, matando um tripulante amarrado. Não havia como evitá-las sem escudos, e Júlio só podia esperar que o ataque não hesitasse. Seus homens nunca tinham estado sob tiroteio, e isso era difícil até para soldados experientes, quando cada instinto dizia para se abaixar e se esconder. Sua lâmina se chocou contra outra e ele deu um soco pelo lado, derrubando o oponente. Um golpe rápido na garganta exposta e logo passou por cima dele. No espaço aberto, olhou à esquerda e à direita, observando a cena. A maioria dos piratas no Vêntulus estava caída. Seus homens lutavam bem, ainda que um ou dois estivessem se esforçando por arrancar flechas dos membros uivando de dor.

Uma flecha veio zumbindo e acertou o peito de Júlio, fazendo-o recuar um passo. Ele ficou sem fôlego, mas aquela coisa maligna caiu no convés de madeira com barulho e ele percebeu que a armadura o havia salvado.

- Abordar! - gritou, e seus homens correram com ele na direção do navio pirata. Mais flechas passaram por eles causando pouco dano, e Júlio agradeceu aos deuses pela forte placa romana. Pulou na amurada do Vêntulus e escorregou, com as sandálias com placas de ferro deslizando na madeira.

Caiu aos pés do inimigo com um estrondo de metal e xingando. Afastou uma espada com o antebraço, levando um corte. Seu gládio estava debaixo do corpo, e ele teve de rolar para livrá-lo. Outra lâmina se chocou contra seu ombro, arrancando a placa.

Os outros romanos rugiram quando o viram cair, golpeando loucamente os piratas que os enfrentavam. Eles se jogaram contra o inimigo sem cautela, levando a linha de ataque para além de Júlio. Gadítico agarrou seu braço e o puxou de pé.

- Mais uma que você me deve - rosnou Gadítico enquanto partiam juntos para o inimigo.

Júlio correu até um pirata e estocou com seu gládio, preparando-se para evitar um contragolpe. Em vez disso, o oponente perdeu o equilíbrio enquanto Júlio recuava para fora do alcance e arrancava a espada de sua mão, fazendo-a sair girando sobre as tábuas. O homem olhou aterrorizado enquanto Júlio baixava o gládio pesado sobre sua garganta.

- Por favor! Basta! - gritou ele, aterrorizado.

Júlio parou, arriscando outro olhar rápido em volta. Os piratas hesitavam. Muitos estavam mortos, e os que restavam tinham levantado os braços, pedindo paz. Espadas tombaram no convés. Os arqueiros ainda vivos baixaram os arcos, tendo cuidado com eles, mesmo enquanto se rendiam.

Recuando um passo, Júlio olhou para trás, e seu coração inchou de orgulho.

Seus recrutas estavam ali parados, com uniformes brilhantes, espadas desembainhadas e seguras na primeira posição. Pareciam em cada centímetro uma meia-centúria, confiantes e disciplinados.

- Levante-se - disse ao homem caído. - Reivindico este navio para Roma.

Us sobreviventes foram amarrados usando-se as mesmas cordas trazidas Para a tripulação do Vêntulus. Tudo foi feito depressa, mas Júlio teve de ordenar que um tripulante fosse contido depois de chutar seu ex-captor na cabeça quando o pirata foi amarrado.

- Açoitem esse homem - disse Júlio com a voz firme e forte. Seus homens seguraram o marinheiro com firmeza, enquanto o resto da tripulação do Vêntulus trocava olhares. Júlio os encarou fazendo com que baixassem a cabeça, sabendo que era importante aceitarem suas ordens. Deixados em paz eles provavelmente teriam cortado os prisioneiros em pedacinhos transformando anos de ódio numa orgia de tortura e violência. Nenhum deles o encarou, e em vez disso se afastaram dos grupos que tinham se juntado para comemorar. Finalmente Júlio se virou para supervisionar o resto da captura. Os remadores que ele temera podiam ser ouvidos no porão, gritando de terror com os sons da batalha acima. Ele mandaria homens para acalmá-los.

- Senhor, aqui! - gritou uma voz.

Prax segurava o corpo de Peritas, com a mão apertando uma ferida aberta no alto do peito. Havia sangue em volta da boca do amigo, e ao vê-lo Júlio soube que não havia esperança. Caberá poderia tê-lo salvado, mas nada mais poderia.

Peritas estava sufocando, os olhos abertos sem foco. Cada respiração dificultosa trazia mais sangue aos lábios. Júlio se agachou perto dos dois e muitos outros se juntaram ao redor, bloqueando o sol. No silêncio, enquanto olhavam, os segundos que passaram pareceram durar longo tempo, mas finalmente a respiração difícil cessou e o olhar brilhante se desbotou numa imobilidade vítrea.

Júlio se levantou, olhando o corpo do amigo. Sinalizou para dois dos outros.

- Ajudem Prax a levá-lo para baixo. Não vou jogar um dos nossos no mar junto com eles.

Em seguida, se afastou sem outra palavra e, dentre todos, só os oficiais da Accipiter entendiam por que ele precisava mostrar uma fachada tão séria. O comandante não revelaria fraqueza diante dos homens e nenhum deles ignorava mais quem estava no comando. Até Gadítico manteve a cabeça baixa enquanto Júlio passava por ele, andando sozinho.

Quando, naquela noite, os dois navios estavam em segurança, Júlio reuniu com os outros oficiais da Accipiter, e eles fizeram um brinde a Peritas que não tinha chegado ao fim do caminho.

Antes de dormir, Gadítico caminhou com Júlio no convés enluarado. ficaram em silêncio por longo tempo, perdidos em lembranças, mas, quando chegaram ao topo da escada que descia ao porão, Gadítico segurou o braço dele.

- Você está no comando aqui.

Júlio se virou para ele, e o capitão pôde sentir a força de sua personalidade.

- Eu sei - disse ele simplesmente.

Gadítico deu um riso torto.

- Foi quando você caiu que eu percebi. Todos os homens foram atrás de você sem esperar ordens. Acho que eles vão segui-lo a qualquer lugar.

- Eu gostaria de saber para onde estava liderando-os - disse Júlio em voz baixa. - Talvez um dos homens que nós capturamos saiba onde Celso está. Veremos de manhã. - Ele olhou para o lugar onde Peritas havia tombado. - Péri riria um bocado de mim, me vendo cair daquele jeito. Seria um modo ridículo de morrer.

Enquanto falava, ele deu um risinho sem humor. O bravo ataque terminando direto aos pés do inimigo. Gadítico não riu. Bateu no ombro de Júlio, mas o rapaz não pareceu sentir.

- Ele não teria morrido se eu não quisesse achar Celso. Vocês todos já estariam de volta a Roma, com os nomes livres da desgraça.

Gadítico segurou o ombro de Júlio e o girou lentamente, até ele encará-lo de novo.

- Não foi você que nos disse que não adiantava ficar pensando no que poderia ter sido? Todos nós gostaríamos de voltar atrás e fazer escolhas melhores, mas não é assim que a coisa funciona. Temos uma única chance, mesmo que o mundo dependa dela. Eu poderia não ter ido com a Accipiter para aquele trecho de litoral, mas se não tivesse ido, quem sabe? "oderia ter ficado doente ou ser esfaqueado numa estalagem, ou caído numa escada e quebrado a cabeça. Simplesmente não há sentido em se Preocupar. Aceitamos cada dia como ele vem e tomamos as melhores deCisões que pudermos.

E se elas tiverem um resultado ruim? - murmurou Júlio. Gadítico deu de ombros. Geralmente eu culpo os deuses.

- Acredita neles?

- Não se pode navegar sem saber que há alguma coisa a mais do homens e pedras. Quanto a todos os templos, sempre procurei me garantir com oferendas. Não faz mal a ninguém e a gente nunca sabe.

Júlio deu um leve sorriso diante daquela filosofia prática.

- Eu espero... ver Peritas de novo - disse ele. Gadítico assentiu.

- Todos veremos, mas ainda vai demorar um tempo. - Em seguida baixou a mão que estava no ombro de Júlio, enquanto descia deixando-o ali, com o rosto virado para a brisa do mar.

Quando ficou sozinho, Júlio fechou os olhos e ficou imóvel por longo tempo.

Na manhã seguinte Júlio dividiu seus homens em duas tripulações. Sentia-se tentado a assumir o posto de capitão no navio pirata, que era mais rápido, mas, seguindo o instinto, deu-o a Duro, o capitão dono do Vêntulus. Duro tinha ficado totalmente afastado da luta, trancado em sua cabine, mas quando entendeu a situação parou de gritar pela carga que eles haviam jogado no mar. Odiava os piratas tanto quanto qualquer tripulante e sentiu grande prazer em vê-los amarrados, como ele estivera há apenas algumas horas.

Quando Júlio fez a oferta, Duro apertou sua mão para selar o acordo.

- Os dois navios serão meus quando você achar os homens que deseja?

- A não ser que um deles seja afundado quando atacarmos Celso. Meus homens vão precisar de uma embarcação para voltar às terras romanas. Eu gostaria que fosse a dele, mas ele conhece seu trabalho e não vai ser fácil tomá-la, se é que poderemos achá-lo - respondeu Júlio, imaginando até onde poderia confiar no capitão. Para ter certeza de sua lealdade, deixaria apenas alguns tripulantes do Vêntulus ir com ele para o outro navio. Seus legionários sustentariam a coragem do capitão para ele, caso ela falhasse.

Duro pareceu satisfeito, e não era de espantar. A venda do navio capturado iria lhe render muito mais do que o valor da carga que perdera, apesar de ter gemido quando soube que o marfim fora jogado no mar.

O principal problema era o que fariam com os piratas que haviam sobrevivido à luta. Os feridos tinham sido despachados e jogados no mar junto com os mortos, seguindo ordens de Júlio. Eles haviam escolhido sua vida, Júlio não teve simpatia por seus gritos. Com isso ainda restavam dezessete para ser guardados dia e noite. Júlio apertou o maxilar com firmeza. O destino deles estava em seus ombros.

Mandou os piratas serem levados separadamente à cabine do capitão, onde sentou-se calmamente à mesa pesada. Cada um estava amarrado e firmemente seguro por dois de seus homens. Júlio queria que eles se sentissem desamparados, e o rosto que virou para eles era o mais duro e cruel que conseguiu. Eles tinham afirmado que seu capitão fora morto na batalha, e Júlio ficou pensando nisso. Sem dúvida, o homem preferiria não ser conhecido, se estivesse entre os prisioneiros.

- Duas perguntas - disse ao primeiro. - Se você puder responder, viverá. Se não, vai para os tubarões. Quem é o seu capitão?

O homem cuspiu no chão aos pés de Júlio, desviando o olhar como se não estivesse interessado. Júlio ignorou isso, mas sentiu gotas de líquido quente tocar seu tornozelo debaixo da mesa.

- Onde está o homem chamado Celso?

Não houve resposta, mas Júlio notou que o prisioneiro tinha começado a suar.

- Muito bem - disse em voz baixa. - Que os tubarões fiquem com ele. Tragam o próximo.

- Sim, senhor - responderam os soldados ao mesmo tempo. Então o homem pareceu voltar à vida, lutando e gritando loucamente até a amurada. Eles o seguraram ali por alguns instantes, enquanto um dos recrutas tirava uma faca do cinto. O outro olhou-o interrogativamente. Ele deu de ombros e cortou as cordas que seguravam as mãos do pirata antes de Jogá-lo ao mar com grande estardalhaço, gritando.

O soldado guardou a adaga e se juntou ao outro, olhando a luta frenética do pirata na água embaixo.

Só achei que ele deveria ter uma chance - disse ele. Viram três tubarões escuros indo na direção do homem que lutava. Os tubarões vinham acompanhando os navios desde que os primeiros corpos foram jogados. O pirata os viu chegando e ficou alucinado na água, sacudindo-a até formar espuma em volta. Depois foi puxado da superfície e os dois soldados se viraram para pegar o próximo homem a ser interrogado.

O segundo não sabia nadar e simplesmente afundou. O terceiro xingou-os o tempo todo, durante as perguntas e enquanto era jogado por cima da amurada, até afundar. Mais tubarões tinham se juntado na água, deslizando um sobre o outro num turbilhão sangrento enquanto lutavam pela carne.

O quarto homem falou assim que Júlio fez as perguntas:

- Você vai me matar de qualquer modo.

- Não se você contar o que eu quero saber. O homem afrouxou o corpo, aliviado.

- Então, eu sou o capitão. Não vai me matar?

- Se me disser onde está Celso, terá minha palavra - disse Júlio, inclinando-se para ele.

- No inverno ele vai para Samos, na Ásia. Fica do outro lado do mar da Grécia.

- Não conheço o nome - disse Júlio em dúvida.

- É uma grande ilha no litoral, perto de Mileto. Os navios romanos não patrulham perto dela, mas eu já estive lá. Estou dizendo a verdade!

Júlio acreditou e assentiu.

- Excelente. Então é para lá que vamos. Qual é a distância?

- Um mês indo direto, no máximo dois.

Júlio franziu a testa diante da resposta. Eles precisariam parar para pegar provisões, e isso significava mais riscos. Ergueu os olhos para os dois soldados.

- Joguem os outros aos tubarões.

O capitão pirata fez uma careta diante da ordem.

- Mas não eu. Você disse que eu não seria morto. Júlio se levantou devagar.

- Perdi bons amigos nas mãos do seu pessoal, bem como um ano da minha vida.

- Você deu a palavra! Precisa de mim para guiá-lo até lá. Não vai conseguir achar Celso sem mim - disse o outro rapidamente, com a voz falhando de medo.

Júlio o ignorou, falando com os soldados que seguravam seus braços.

- Tranquem-no em algum lugar seguro por enquanto.

Quando eles tinham saído, Júlio ficou sozinho na cabine, ouvindo o resto dos piratas ser arrastados até a amurada. Olhou para as mãos quando o barulho finalmente acabou, e de novo pôde escutar os estalos e gemidos de um navio velejando. Esperava sentir vergonha ou remorso pelo que tinha ordenado, mas, surpreendentemente, isso não aconteceu. Depois fechou a porta para chorar por Peritas.

 

Alexandria suspirou irritada ao ver que seu broche tinha sido tirado das roupas que ela dobrara na noite anterior. Um olhar rápido nos outros cômodos revelou que Otaviano tinha saído de casa cedo, e ela firmou o queixo enquanto fechava a porta indo para a oficina de Tabbic. Não era apenas a prata valiosa, ou mesmo as muitas horas que tinha gasto para moldar e polir o broche. Era o único que tinha feito para si mesma, e muitas pessoas que tinham se tornado compradoras haviam visto e comentado sobre ele, ao encontrá-la. O desenho era uma águia simples, que ela não teria escolhido para seu ombro se o animal não tivesse se tornado o símbolo de todas as legiões e universalmente desejável. Eram principalmente oficiais que a faziam parar e perguntavam sobre ele, e ser roubado por um moleque sujo a fazia fechar e abrir os punhos enquanto andava, com a capa caindo nos ombros e precisando ser puxada o tempo todo, com a ausência do broche.

Ele não era somente um ladrão, mas também um idiota, pensou. Como poderia achar que não seria apanhado? Uma possibilidade preocupante era que o menino estivesse tão acostumado à punição que a houvesse descontado do preço do broche, disposto a pegar qualquer coisa que surgisse desde que pudesse mantê-la. Alexandria balançou a cabeça, irritada, murmurando sozinha o que faria quando o visse. Ele não sentia vergonha, nem mesmo diante da mãe. Otaviano vira isso quando os garotos do açougueiro vieram atrás da carne que ele havia pegado.

Talvez fosse melhor não falar com Atia. A idéia de ver a humilhação no rosto dela era dolorosa, e mesmo depois de menos de uma semana em seu quarto novo Alexandria tinha passado a gostar da mulher. Ela possuía orgulho e uma espécie de dignidade. Era uma pena que nada disso parecesse alcançar o filho.

A oficina de Tabbic fora danificada perto do fim dos tumultos de dois anos atrás. Alexandria o ajudara a reconstruí-la, aprendendo um pouco de carpintaria enquanto ele refazia a porta e as bancadas de trabalho. Seu meio de vida tinha sido salvo pela remoção a tempo de todos os metais valiosos para a casa em cima, protegida por barricadas contra as gangues de raptores que tinham enlouquecido quando a cidade entrou no caos. Enquanto se aproximava das instalações modestas, Alexandria decidiu não incomodá-lo com sua irritação. Ela lhe devia muito, e não somente por deixá-la ficar em segurança com sua família durante a pior fase. Não parecia necessário dizer, mas a jovem tinha uma dívida para com Tabbic, que prometia pagar.

Quando abriu a porta de carvalho, o som de um grito agudo encheu o espaço. Seus olhos brilharam de satisfação ao ver que Tabbic estava segurando Otaviano, que se sacudia no ar, com o braço musculoso. O artesão ergueu os olhos quando a porta se abriu e virou o garoto para encará-la ao ver que era Alexandria.

- Não vai acreditar no que esse garoto levado tentou me vender agora mesmo - disse ele.

Otaviano lutou com mais ferocidade ainda ao ver quem tinha entrado. Chutou o braço que o segurava suspenso aparentemente sem esforço. Tabbic o ignorou.

Alexandria disparou pela oficina até onde os dois estavam.

- Onde está meu broche, seu ladrãozinho?

Tabbic abriu a outra mão e revelou a águia de prata, que ela prendeu de novo no lugar.

- Entrou aqui com a cara mais limpa do mundo e disse para eu fazer oferta! - contou Tabbic, irritado.

Sendo completamente honesto, odiava quem via o roubo como uma vida fácil. Sacudiu Otaviano mais uma vez, jogando a indignação contra o garoto que gemia e chutava, olhando em volta à procura de um modo de fugir.

- O que vamos fazer com ele? - perguntou Tabbic.

Alexandria pensou alguns instantes. Por mais que fosse tentador espancar o garoto até a rua, sabia que suas posses ainda poderiam ser roubadas por aqueles dedinhos a qualquer momento. Precisava de uma solução mais duradoura.

- Acho que posso convencer a mãe dele a deixar que ele trabalhe para nós - falou, pensativa.

Tabbic baixou Otaviano até os pés dele tocarem o chão. Imediatamente o garoto mordeu a mão do velho e Tabbic o levantou de novo com uma força casual, deixando-o pendurado numa fúria inútil.

- Você só pode estar brincando. Ele é pouco melhor do que um animal! - disse Tabbic, franzindo o rosto para as marcas brancas de dentes nos dedos.

- Você pode ensinar a ele, Tabbic. Não há um pai para fazer isso, e pelo modo como está indo ele não vai viver até ficar adulto. Você disse que precisava de alguém para trabalhar com os foles, e sempre há necessidade de varrer e carregar coisas.

- Deixa eu ir! Não vou fazer nada! - gritou Otaviano. Tabbic olhou-o de cima a baixo.

- O garoto é magro como um rato. Não há força nesses braços - falou devagar.

- Ele tem nove anos, Tabbic. O que esperava?

- Ele vai fugir assim que a porta for aberta.

- Se fugir, eu o pego de volta. Ele vai ter de voltar para casa em algum momento, e eu vou esperar lá, dar-lhe uma surra e trazê-lo de volta. Estando aqui, ele vai ficar longe de encrenca, e vai ser útil para nós dois. Você não vai ficar mais novo e ele poderia me ajudar na forja.

Tabbic deixou Otaviano encostar no chão de novo. Dessa vez ele não mordeu, mas ficou olhando os dois adultos cautelosamente, enquanto falavam dele como se ele não estivesse na oficina.

- Quanto vocês vão me pagar? - perguntou, esfregando as lágrimas iradas com os dedos sujos, fazendo pouco mais do que manchar o rosto.

Tabbic riu.

- Pagar! - disse ele com a voz cheia de escárnio. - Garoto, você vai estar aprendendo um ofício. Você é que deveria nos pagar.

Otaviano cuspiu uma fiada de palavrões e tentou morder Tabbic de novo. Dessa vez o artesão deu-lhe um tapa sem nem mesmo olhar.

- E se ele roubar as mercadorias? - perguntou.

Alexandria notou que o velho estava começando a se acostumar com a idéia. Esse era o problema, claro. Se Otaviano fugisse com prata, ou pior, com a pequena quantidade de ouro que Tabbic mantinha trancada, isso prejudicaria a todos. Ela fez sua expressão mais séria e segurou o queixo de Otaviano, virando o rosto dele para ela.

- Se ele fizer isso - falou, fixando o menino com o olhar -, teremos todo o direito de exigir que ele seja vendido como escravo para pagar a dívida. A mãe também.

- Vocês não fariam isso! - disse Otaviano, chocado com as palavras a ponto de não conseguir lutar.

- Meu negócio não é uma instituição de caridade, garoto. Nós faríamos - respondeu Tabbic com firmeza. Por cima da cabeça de Otaviano ele piscou para Alexandria.

- Nesta cidade as dívidas são pagas. De um modo ou de outro - concordou ela.

 

O inverno tinha chegado depressa, e Tubruk e Brutus estavam usando capas grossas enquanto cortavam o velho carvalho para fazer lenha, pronta para ser levada de carroça até o depósito da propriedade. Rênio não parecia sentir o frio e tinha deixado o cotoco despido ao vento, longe das vistas de estranhos. Tinha trazido um jovem escravo da propriedade para firmar os galhos enquanto ele usava o machado. O garoto não tinha dito uma palavra desde que chegara nos calcanhares de Rênio, mas ficava bem longe quando Rênio golpeava a madeira, e seu rosto avermelhado pelo vento lutava para esconder um sorriso quando a lâmina escorregava e fazia Rênio cambalear e xingar baixinho. Brutus conhecia o velho gladiador suficientemente bem para Se encolher numa avaliação silenciosa do que aconteceria se Rênio visse a diversão do menino. O trabalho estava fazendo todos suarem e soltarem vapor na respiração. Brutus olhou criticamente Rênio dar uma machadada, fazer do dois pedaços menores voarem. Ele ergueu o machado de novo, olhando para Tubruk.

- O que mais me preocupa é a dívida com Crasso. Só os alojamentos custam quatro mil aurei.

Brutus girou o machado com facilidade enquanto falava, grunhindo quando acertou um golpe limpo.

- O que ele espera em troca? - perguntou Tubruk. Brutus deu de ombros.

- Ele disse para não me preocupar, o que significa que não consigo dormir só pensando. O armeiro que ele contratou está produzindo mais conjuntos de equipamentos do que os homens que eu tenho, mesmo depois de revirar Roma. Com o meu salário de centurião, teria de trabalhar anos só para pagar as espadas.

- Quantias assim não significam grande coisa para Crasso. Segundo as fofocas, ele poderia comprar meio Senado, se quisesse - disse Tubruk, parando para se apoiar no machado.

O vento fez as folhas girarem em volta deles. O ar cortava suas gargantas com um frio que era quase um prazer.

- Eu sei. Minha mãe me disse que ele já possui uma parte de Roma tão grande que nem sabe o que fazer com ela. Tudo que ele compra dá lucro, mais um motivo para imaginar qual é o lucro em comprar a Primogênita.

Tubruk balançou a cabeça enquanto levantava o machado de novo.

- Ele não a comprou, nem você. Nem diga isso. A Primogênita não é uma casa ou um broche, e só o Senado pode comandá-la. Se ele acha que está levantando uma legião particular, você deveria lhe dizer para colocar um novo estandarte nas listas.

- Ele não diz isso. Só faz assinar as contas que eu mando. Minha mãe acha que ele está usando o dinheiro para garantir a aprovação dela. Tenho vontade de perguntar a ele, mas e se for verdade? Eu não prostituiria minha mãe com aquele homem nem com nenhum outro, mas preciso ter a Primogênita.

- Para Servília não seria a primeira vez - observou Tubruk com um risinho.

Brutus pousou o machado cuidadosamente sobre uma tora. Encarou Tubruk e o velho gladiador parou ao ver sua expressão irada.

- Você pode dizer isso uma vez, Tubruk. Não diga de novo.

A voz de Brutus estava fria como o vento que os embrulhava, e Tubruk se apoiou de novo no machado enquanto encarava os olhos penetrantes.

- Ultimamente você tem falado dela um bocado. Não lhe ensinei a baixar a guarda tão facilmente com ninguém. Nem Rênio.

Rênio fungou baixo em resposta, enquanto chutava um pedaço de galho que estava debaixo de seus pés. Sua pilha de lenha tinha metade do tamanho das outras, mas lhe custara mais.

Brutus balançou a cabeça.

- Ela é minha mãe, Tubruk! O outro deu de ombros.

- Você não a conhece, garoto. Só quero que tenha cuidado até conhecer.

- Conheço o bastante - disse Brutus, pegando o machado de novo. Durante quase uma hora os três trabalharam em silêncio cortando a madeira e empilhando-a na pequena carroça de mão que estava ali perto. Finalmente, vendo que Brutus não falaria, Tubruk engoliu a irritação.

- Vai ao campo das legiões com os outros? - perguntou sem olhar para Brutus.

Ele sabia a resposta, mas pelo menos era um assunto seguro para continuar a conversa. A cada ano, no inverno, todos os rapazes que faziam dezesseis anos iam ao Campo de Marte onde novas legiões plantavam seus estandartes. Somente os aleijados e cegos eram recusados. Recém-restaurada às listas do senado, a Primogênita se qualificava para plantar sua águia junto com as outras.

- Tenho de ir - respondeu Brutus, as palavras saindo de má vontade. Sua expressão franzida se aliviou enquanto ele falava. - Com os que vem de outras cidades, haverá uns três mil. Alguns vão assinar contrato com a Primogênita. Os deuses sabem que preciso aumentar os números, e rapidamente. Os alojamentos que Crasso comprou estão praticamente vazios.

-- Quantos já tem? - perguntou Tubruk.

- Com os sete que chegaram ontem, quase noventa. Deveria vê-los, Tubruk.

O rapaz olhou para a distância enquanto via o rosto deles de novo, na mente.

- Acho que todos os homens que sobreviveram à batalha com Sila voltaram. Alguns tinham assumido outros ofícios na cidade e simplesmente largaram as ferramentas e saíram quando souberam que a Primogênita estava sendo reformada. Outros nós encontramos guardando casas e templos e eles vieram sem discutir. Tudo pela memória de Mário.

Ele parou um momento e sua voz ficou mais incisiva.

- Minha mãe tinha um guarda que era optio na Primogênita. Ele perguntou se poderia voltar, e ela deixou. Ele vai ajudar Rênio a treinar os novos, quando chegarem.

Tubruk se virou para Rênio.

- Vai com ele? Rênio largou o machado.

- Não tenho futuro como lenhador, garoto. Farei minha parte. Tubruk assentiu.

- Tente não matar ninguém. Vocês já terão um trabalho difícil para conseguir gente do modo como está. Os deuses sabem que a Primogênita não é mais a legião para a qual eles sonham entrar.

- Nós temos história - respondeu Brutus. - As novas legiões que eles estão montando não poderão se comparar com isso.

Tubruk olhou-o incisivamente.

- Uma história vergonhosa, alguns acham. Não me olhe desse jeito. É o que todos dizem. Eles vão marcar vocês como a legião que perdeu a cidade. Você terá dificuldade com isso. - Ele olhou as pilhas de lenha em volta e a carroça cheia e assentiu consigo mesmo. - Por hoje chega. O resto pode esperar. Há uma taça de vinho quente esperando por nós.

- Então só mais um - disse Rênio, virando-se para o garoto ao lado sem esperar resposta. - Acho que as minhas machadadas estão um pouco melhores do que quando eu comecei, não acha, garoto?

O escravo passou a mão rapidamente debaixo do nariz, deixando uma mancha prateada ao longo da bochecha. Ele assentiu, subitamente nervoso. Rênio sorriu para o menino.

- Com um machado um braço não é tão firme quanto dois, veja bem-Pegue aquele galho e segure firme enquanto eu corto.

O garoto arrastou um pedaço de carvalho até os pés de Rênio e começou a se afastar.

- Não. Segure firme. Uma mão de cada lado - disse Rênio, a voz endurecendo.

Por um segundo o garoto hesitou, olhando os outros dois que observavam com interesse silencioso. Ali não havia ajuda. Encolhendo-se, apoiou as mãos nos lados arredondados da tora e se inclinou para fora do alcance, com o rosto numa antecipação terrível.

Rênio se demorou até achar uma posição que lhe agradasse.

- Segure com força, agora - alertou, começando a dar o golpe enquanto falava. A cabeça do machado girou num borrão e partiu a madeira com um estalo. O garoto enfiou as mãos debaixo das axilas, trincando o queixo por causa da dor súbita.

Rênio se agachou ao lado do garoto, pousando o machado no chão. Em seguida puxou gentilmente uma das mãos dele, para ser inspecionada. As bochechas do garoto estavam vermelhas de alívio, e enquanto via que não havia ferimento Rênio deu um riso e desgrenhou o cabelo dele, animado.

- O machado não escorregou - disse o menino.

- Não quando foi importante - concordou Rênio, rindo. - Você foi corajoso. Vale uma taça de vinho quente, eu diria.

O garoto riu diante disso, esquecendo-se das mãos que ardiam.

Os três homens se entreolharam com lembranças e prazer diante do orgulho do garoto, enquanto pegavam as hastes da carroça e começavam a descer o morro em direção à sede da propriedade.

- Quando Júlio voltar, quero que a Primogênita esteja forte - disse Brutus enquanto chegavam ao portão.

Júlio e Gadítico espiavam por entre os arbustos na colina íngreme, para o navio distante e minúsculo ancorado abaixo, na calma baía da ilha. Ambos estavam famintos e com uma sede quase insuportável, mas o odre estava vazio e eles tinham concordado em só começar a viagem de volta ao escurecer.

Tinham demorado mais do que esperavam para subir a encosta mais suave até o pico, onde o terreno tombava íngreme. A cada vez que os dois achavam que tinham alcançado o cume, outro era revelado, e no fim a alvorada tinha-os feito parar logo depois de iniciar a descida. Quando viram pela primeira vez o navio, Júlio estava imaginando se seu informante pirata estivera mentindo para se salvar dos tubarões. Durante toda a longa jornada até a ilha, o outro estivera acorrentado num remo de seu próprio navio e parecia que merecera a vida dando os detalhes do ancoradouro de inverno de Celso.

Júlio desenhou o que podiam ver usando carvão em pergaminho, para ter algo a mostrar aos outros quando fossem apanhados. Gadítico olhava-o em silêncio, com o rosto azedo.

- Não pode ser feito, não com uma dose de certeza - murmurou enquanto olhava de novo por entre a folhagem.

Júlio parou de desenhar de memória e se ergueu sobre os joelhos para ver a cena de novo. Nenhum dos dois usava armadura, tanto pela velocidade quanto para impedir que o sol se refletisse, revelando sua posição. Júlio se recostou de novo para terminar o desenho, olhando-o criticamente.

- Não usando um navio - falou depois de um tempo, com o desapontamento desenhando suas feições.

Durante um mês de viagem rápida, a tripulação tinha se exercitado dia e noite, preparando-se para a batalha contra Celso. Júlio apostaria a última moeda na capacidade de eles abordarem e o dominarem rapidamente com apenas algumas baixas. Agora, olhando a pequena baía aninhada entre três montanhas, todo o planejamento parecia desperdiçado.

A ilha não tinha uma terra central, apenas três frios e antigos picos vulcânicos que abrigavam uma baía pequena. De seu ponto de vista, eles podiam ver que canais de águas profundas passavam entre as montanhas, de modo que, de qualquer lado que fosse atacado, Celso poderia escolher um dos outros e desaparecer no mar sem pressa ou perigo. Com três navios eles poderiam encurralá-lo sem problemas, mas com apenas dois era um jogo perdido.

Lá embaixo Júlio viu as formas escuras dos golfinhos nadando em volta do navio na baía. Era um lugar lindo, e ele achou que gostaria de voltar, se tivesse chance. De longe as montanhas pareciam sérias e cortantes, cinza-esverdeadas aos raios do sol, mas empoleirados onde estavam era uma coisa gloriosa. O ar era tão límpido que dava para ver os detalhes nos outros dois únicos serrilhados, por isso ele e Gadítico não ousavam se mexer. Se podiam ver o movimento de homens no convés do navio de Celso, poderiam ser vistos também, e a única chance de vingança desapareceria.

- Era de imaginar que ele passasse o inverno numa das grandes cidades longe de Roma - disse Júlio, pensativo. A ilha parecia desabitada, a não ser pelo navio ancorado, e ele ficou surpreso ao pensar que a tripulação de piratas empedernidos não a considerasse monótona depois de meses roubando mercadores. - Sem dúvida ele visita o continente, mas dá para ver que este lugar é mais seguro do que qualquer outro. Aquele lago no pé das colinas é provavelmente de água doce, e eu imagino que eles podem achar aves e peixes suficientes para dar um festim ou dois. Em quem ele confiaria para cuidar do navio quando estivesse longe? Tudo que seus homens teriam de fazer seria levantar âncoras e ele perderia tudo. - Júlio olhou Gadítico com as sobrancelhas erguidas. - Coitado - falou, enrolando o mapa.

Gadítico riu e olhou para o sol.

- Deuses. Vão se passar horas antes que a gente possa voltar por cima do cume, e minha garganta está cheia de pó.

Júlio se deitou esticado com os braços sob a cabeça.

- Usando balsas nós poderíamos chegar perto, com nossos navios vindo atrás para bloquear a fuga. A próxima noite sem lua vai nos dar tempo suficiente para montar algumas e planejar. Agora vou dormir um pouco até ficar escuro para a volta - murmurou, fechando os olhos. Dentro de minutos estava roncando baixinho, e Gadítico olhou-o espantado.

Estava tenso demais para dormir, por isso continuou vigiando os movimentos dos homens a bordo do navio na baía, abaixo. Imaginou quantos morreriam se Celso tivesse o bom senso de colocar vigias todas as noites e desejou ter uma confiança no futuro como a daquele rapaz.

 

A água escura estava tremendamente fria, encharcando os romanos deitados nas balsas e remando devagar em direção ao casco escuro do navio de Celso. Mesmo estando doidos para ir mais rápido, cada homem se mantinha firme, movendo as mãos entorpecidas pela água parada e provocando marolas suaves. As tripulações de Júlio tinham trabalhado febrilmente para montar as balsas, tirando tábuas e cordas dos dois navios que se abrigavam na costa virada para o mar, do lado oposto à baía. Quando terminaram, cinco plataformas se moviam lentamente pelos canais profundos em direção à praia onde Celso estava ancorado, com espadas enroladas juntas em tecido para equilibrar o peso. Não levavam armaduras. Apesar de toda a vantagem que elas teriam dado, Júlio achou que não haveria tempo de amarrar tudo no lugar. E, em vez disso, seus homens estremeciam com túnicas e calças molhadas, praticamente desprotegidos da brisa noturna.

 

Celso acordou subitamente em sua cabine e prestou atenção ao ruído que o acordara. Será que o vento havia mudado? A baía era um abrigo perfeito, mas uma tempestade poderia mandar um jorro de ondas pelos canais que poderia enfraquecer a segurança das âncoras no fundo de argila. Por um momento pensou em se virar no catre estreito e deixar o sono voltar. Tinha bebido demais com os outros naquela noite, e a gordura escorregadia da carne assada tinha se endurecido em crostas de cera na pele. Coçou preguiçosamente um ponto, raspando com a unha o resíduo do festim. Sem dúvida seus oficiais estavam dormindo de ressaca e alguém tinha de patrulhar o navio a cada hora. Suspirou e estendeu a mão no escuro para pegar as roupas, franzindo o nariz para o cheiro de vinho rançoso e comida grudado nelas.

- Devia ter pensado melhor - murmurou consigo, encolhendo-se quando um jorro de ácido se fez sentir subindo pela garganta. Imaginou se valeria acordar Caberá para fazer com que ele preparasse um pouco daquele grude parecido com giz, que parecia ajudar.

Houve um ruído súbito de pés se arrastando do lado de fora da porta e o som de um corpo batendo no chão. Celso franziu a testa, pegando a adaga no gancho, mais por hábito do que por alarme, enquanto abria a porta e olhava para fora.

Havia uma sombra ali, informe e escura de encontro à luz das estrelas.

- Onde está meu dinheiro? - sussurrou Júlio.

Celso gritou chocado, saltando para a frente e lançando o braço contra a figura. Sentiu dedos duros agarrando seu cabelo enquanto saía no convés, e sua cabeça foi puxada para trás um momento, antes de os dois escorregarem. Ele se afastou de quatro, gritando, tentando se livrar da lâmina que imaginou vindo para suas costas desprotegidas.

O convés principal era uma massa confusa de figuras lutando, mas ninguém lhe respondeu. Celso viu que seus homens estavam dominados, encharcados demais de bebida e sono para lutar. Desviou-se entre os amontoados de homens e correu para sua armaria, na popa. Teriam de montar uma defesa lá. A luta ainda não estava perdida.

Alguma coisa pesada bateu em seu pescoço e ele cambaleou. Seus pés se embolaram numa figura amarrada com cordas, e ele desmoronou com um estrondo. O silêncio era fantasmagórico. Não havia ordens nem gritos no escuro, apenas os grunhidos e a respiração de homens que lutavam pela vida sem misericórdia, usando qualquer coisa que lhes viesse às mãos. Celso vislumbrou um dos seus lutando com uma corda grossa em volta do pescoço, agarrando-a, depois se levantou e estava em movimento de novo no escuro, balançando a cabeça para afastar o pânico, o coração disparando com uma força desperdiçada.

A armaria estava rodeada por estranhos, com a pele molhada captando brilhos das estrelas enquanto se viravam para ele. Não podia ver seus olhos e levantou a adaga para golpear quando eles vieram na sua direção.

Um braço envolveu sua garganta por trás, e Celso golpeou-o loucamente, fazendo-o cair para longe com um gemido. Girou feito louco, balançando a adaga, e então as sombras se dividiram e um clarão iluminou a cena como um raio, mostrando os olhos brilhantes deles por um momento, antes que a escuridão retornasse, pior do que antes.

Júlio usou a pederneira de novo para acender a lâmpada a óleo que tinha apanhado na cabine de Celso, e Celso gritou de horror ao reconhecer o jovem romano.

- Justiça para os mortos, Celso - disse Júlio enquanto passava a luz sobre as feições abaladas do pirata. - Estamos com quase todos os seus homens, mas alguns se trancaram lá embaixo. Eles vão ficar.

Seus olhos brilharam à luz da lâmpada, e Celso sentiu os braços seguros com uma sensação medonha de coisa definitiva, enquanto os outros se aproximavam, arrancando a adaga de seus dedos. Júlio chegou perto até estarem quase se tocando.

- Os remadores estão sendo acorrentados aos bancos. Sua tripulação vai ser crucificada, como eu prometi. Reivindico este navio para Roma e para a casa de César.

Celso o encarou num fascínio estupefato. Sua boca ficou aberta, frouxa, enquanto tentava entender o que tinha acontecido, mas o esforço estava acima de suas possibilidades.

Sem aviso, Júlio deu-lhe um soco com força na barriga. Celso pôde sentir o salto ácido no estômago e engasgou por um segundo enquanto sua garganta se enchia de uma coisa amarga. Desmoronou nos braços dos captores e Júlio recuou. De repente Celso saltou para ele, livrando-se dos homens que tinham relaxado o aperto. Chocou-se contra Júlio e os dois caíram, com a lâmpada derramando o óleo no convés. Na confusão, os romanos se moveram para apagar o fogo, com o medo instintivo dos navegadores. Celso deu um soco na figura que lutava embaixo dele e depois saltou para o lado, desesperado para se livrar.

A figura gigantesca de Ciro o bloqueou, e ele não viu a lâmina contra a qual se chocou. Em agonia, olhou o rosto de seu matador e não viu nada ali, apenas um vazio. Então se foi, deslizando para longe da espada e caindo no convés.

Júlio sentou-se, ofegando. Podia ouvir o estalo de madeira se partindo ali perto enquanto seus homens abriam caminho para as cabines trancadas. A coisa estava quase no fim, e ele sorriu, encolhendo-se quando os lábios sangraram por causa de algum golpe que recebera na luta.

Caberá veio pelo convés em sua direção. Parecia um pouco mais magro, se isso era possível, e no sorriso amplo faltava pelo menos mais um dente do que Júlio recordava. Mesmo assim era o mesmo rosto.

- Eu vivia dizendo que você viria, mas eles não acreditaram - disse Caberá, alegre.

Júlio se levantou e o abraçou, dominado pelo alívio ao ver o velho em segurança. Não havia palavras que precisassem ser ditas.

- Vamos ver o quanto de nossos resgates Celso conseguiu gastar - disse finalmente. - Lâmpadas! Lâmpadas aqui! Tragam para o porão.

Caberá e os outros seguiram-no rapidamente descendo uma escada quase na vertical. Cada homem estava tão interessado quanto ele no que poderiam achar. No primeiro ataque os guardas estavam bêbados e foram facilmente dominados, mas a porta ainda estava fechada com uma barra, como Júlio tinha ordenado. Ele parou com as mãos nela, ofegante de ansiedade. O depósito poderia estar vazio, ele sabia. Por outro lado, poderia estar cheio.

A porta cedeu facilmente diante dos machados, e enquanto Júlio entrava seguido pelos outros as lâmpadas de óleo iluminaram o espaço que ficava logo abaixo do convés dos remadores. O murmúrio irado dos remadores pareciam ecos fantasmagóricos no espaço confinado. A recompensa deles por terem se aliado a Celso seria a escravidão, a única tripulação treinada a serviço de Roma.

Júlio respirou fundo. O depósito tinha grandes prateleiras de carvalho grosso a toda volta, cobrindo as paredes do chão ao teto. Cada prateleira tinha riquezas. Havia caixotes de moedas de ouro e pequenas barras de prata empilhadas, postas com cuidado para não afetar o equilíbrio do navio. Júlio balançou a cabeça incrédulo. O que via à sua frente bastava para comprar um pequeno reino em algumas partes do mundo. Celso devia ficar louco de preocupação com aqueles tesouros. Júlio duvidava que ele deixasse o navio em algum momento, tendo tanto a perder. A única coisa que não viu era o pacote de ordens de pagamento que Mário lhe dera antes de morrer. Sempre soubera que elas não teriam valor para Celso, que nunca poderia retirar as grandes quantias do tesouro da cidade sem que o seu passado fosse descoberto. Parte de Júlio esperara que elas não tivessem afundado com aAccipiter, mas o dinheiro perdido não era nada em comparação com o ouro que tinham ganhado em troca.

Os homens que entraram com ele ficaram boquiabertos com o que viam. Só Caberá e Gadítico entraram ainda mais no depósito, verificando e avaliando o conteúdo de cada prateleira. Gadítico parou de repente e puxou um caixote com um grunhido. Tinha uma águia gravada a fogo na madeira, e ele quebrou a tampa com o cabo da espada, com todo o entusiasmo de uma criança.

Seu punho voltou segurando brilhantes moedas de prata, recém-cunhadas. Cada uma era marcada com os caracteres de Roma e tinham a cabeça de Cornélio Sila.

- Podemos limpar nosso nome devolvendo isso - falou com satisfação, olhando para Júlio.

Júlio riu diante do sentimento de prioridade do outro.

- Com este navio para substituir a Accipiter, eles devem nos receber como filhos perdidos há muito. Sabemos que ele é mais rápido do que a maioria dos nossos - respondeu Júlio. Em seguida viu que Caberá estava enfiando uma quantidade de itens valiosos nas dobras de seu manto, pren-dendo-os com o cinto apertado. Júlio ergueu os olhos, achando divertido.

Gadítico começou a rir enquanto deixava as moedas escorrerem pelos dedos, de volta ao caixote.

- Podemos ir para casa - disse Gadítico. - Finalmente podemos ir para casa.

Júlio se recusou a deixar o capitão Duro levar as duas trirremes que tinham sido prometidas em troca da carga perdida, sabendo que seria idiotice reduzir as defesas até estarem em segurança num porto romano. Enquanto Duro se enfurecia diante dessa decisão, Gadítico visitou Júlio na cabine que tinha pertencido a Celso, agora lavada e desentulhada. O rapaz andou de um lado para o outro enquanto conversavam, incapaz de relaxar.

Gadítico tomou uma taça de vinho, saboreando a escolha de Celso.

- Poderíamos atracar no porto legionário em Tessalônica, Júlio, e entregar a prata da legião e o navio. Quando estivermos liberados, poderemos navegar ao redor da costa, ou mesmo marchar para oeste até Dirrhachium e pegar um navio para Roma. Agora estamos muito perto. Duro disse que vai jurar que nós fizemos um acordo, de modo que qualquer acusação de pirataria não se sustente.

- Ainda há aquele soldado que Ciro matou no cais - disse Júlio lentamente, imerso em pensamentos.

Gadítico deu de ombros.

- Soldados morrem, e não é como se ele o tivesse estripado. O homem do questor simplesmente teve má sorte. Agora eles não vão conseguir que nenhuma acusação se sustente. Estamos livres para voltar.

- O que vai fazer? Tem o bastante para se aposentar.

- Talvez. Estava pensando em usar minha parte para pagar ao Senado pelos escravos que afundaram na Accipiter. Se fizer isso, talvez eles até me mandem de volta ao mar como capitão. Tomamos dois navios piratas, afinal de contas, e eles não podem desconsiderar isso.

Júlio se levantou e segurou o braço do outro.

- Eu lhe devo muito mais do que isso, você sabe. Gadítico agarrou o braço que o segurava.

- Não há dívida comigo, rapaz. Quando estávamos naquela cela fedorenta... e os amigos morriam, minha vontade se foi com eles durante um tempo.

- Mas você era o capitão, Gadi. Você poderia ter se sustentado sobre a autoridade.

Gadítico deu um sorriso meio pesaroso.

- Um homem que precisa fazer isso pode descobrir que, afinal de contas, não está se sustentando sobre grande coisa.

- Você é um bom homem, e sabe disso. E um ótimo capitão - disse Júlio, desejando ter palavras melhores para o amigo. Sabia que Gadítico precisara de uma força rara para engolir o orgulho, mas sem isso eles jamais poderiam ter de volta a vida e a honra. - Então venha. Se é o que você quer, vamos atravessar até a Grécia e voltar à civilização. Gadítico sorriu com ele.

- O que vai fazer com a sua parte do ouro? - perguntou, meio cauteloso.

Somente Suetônio tinha reclamado quando Júlio reivindicou metade para si, deixando o resto para ser dividido igualmente. Depois de separar a prata romana e os resgates dos oficiais da Accipiter, a parte que cada um receberia ainda era mais dinheiro do que eles jamais esperariam ver. Suetônio não tinha falado uma palavra com Júlio desde que recebera sua parte, mas o rosto dele era o único carrancudo nos três navios. O resto olhava Júlio com uma espécie de espanto.

- Ainda não sei o que vou fazer - disse Júlio, o sorriso desaparecendo. - Não posso voltar a Roma, você se lembra.

- Por causa de Sila? - disse Gadítico, lembrando-se do jovem que tinha entrado para a sua galera logo antes da maré alta em Óstia, com o rosto sujo de fuligem do incêndio na cidade que ficara para trás.

Júlio assentiu, sério.

- Não posso voltar enquanto ele viver - murmurou, o humor ficando sombrio tão rapidamente quanto havia se iluminado.

- Você é jovem para estar se preocupando com isso. Alguns inimigos podem ser derrotados, mas com alguns você simplesmente precisa viver mais. E com mais segurança.

 

Júlio pensava nessa conversa enquanto passavam pelo canal de águas profundas que abrigava Tessalônica das tempestades do mar Egeu. Os três navios seguiam lado a lado diante do vento forte, com as velas estalando e cada homem disponível limpando e polindo os conveses. Ele tinha ordenado que fossem feitas três bandeiras da República para os mastros, e, quando rodeassem a última baía para o porto, seria uma visão de animar os corações romanos. Suspirou sozinho. Roma era tudo que ele conhecia. Tubruk, Cornélia e Marco, quando se encontrassem de novo. Sua mãe. Pela primeira vez em que podia lembrar, queria vê-la, só para dizer que entendia sua doença e que sentia muito. Uma vida no exílio não era fácil de suportar. Suspirou levemente enquanto o vento cortava sua pele.

Gadítico surgiu ao lado, junto à amurada.

- Alguma coisa não está certa, garoto. Onde estão os navios mercantes? As galeras? Este deveria ser um porto movimentado.

Júlio forçou a vista para ver terra enquanto se aproximavam. Finas tiras de fumaça subiam no ar, um número grande demais para serem fogos de cozinha. Quando chegaram suficientemente perto do cais, ele pôde ver que os únicos outros navios no porto estavam adernados, com sinais de incêndio. Um era pouco mais do que um casco partido. A água estava coberta numa espuma de cinzas encharcadas e madeira despedaçada.

O resto dos homens veio até o convés e ficou olhando a cena de desolação num silêncio chocado. Podiam ver corpos apodrecendo à luz fraca do sol. Pequenos cachorros mordiam-nos fazendo os membros esparramados se retorcer e pular numa paródia vulgar da vida.

Os três navios ancoraram e os soldados desembarcaram sem romper o silêncio fantasmagórico, com as mãos prontas nas espadas, sem precisar de ordens. Júlio foi com eles, depois de dizer a Gadítico para ficar a postos para uma retirada rápida. O capitão romano aceitou a ordem assentindo, juntando rapidamente um pequeno grupo para ficar com ele e controlar os remadores.

Nas desbotadas pedras marrons do cais, mulheres e crianças estavam caídas juntas, com grandes ferimentos na carne cheios de moscas que voaram zumbindo à aproximação dos soldados. O cheiro era insuportável, mesmo com a brisa fria do mar. A maioria dos corpos era de legionários romanos, com as armaduras ainda brilhantes por cima de túnicas pretas.

Júlio passou pelos amontoados de corpos junto com os outros, recriando a ação na mente. Viu muitas manchas de sangue em volta de cada grupo de mortos, sem dúvida onde os inimigos tinham caído e sido arrastados para os enterros. Deixar os corpos romanos onde estavam era um insulto deliberado, um ato de desprezo que começou a acender em Júlio uma fúria que ele viu refletida nos olhos dos que estavam ao redor. Caminhavam com as espadas a postos, percorrendo as ruas numa fúria crescente e afastando ratos e cães dos cadáveres. Mas não havia inimigo a ser desafiado. O porto estava deserto.

Júlio parou, respirando fundo pela boca, olhando o corpo caído de uma menininha nos braços de um soldado que fora esfaqueado nas costas enquanto corria com ela. A pele dos dois tinha ficado escura, endurecida e se encolhendo para revelar os dentes e as línguas negras.

- Deuses, quem pode ter feito isso? - sussurrou Prax consigo mesmo.

O rosto de Júlio era uma máscara amarga.

- Vamos descobrir. Esse é o meu povo. Eles gritam para nós, Prax, e eu vou responder.

Prax olhou para ele e sentiu a energia maníaca brotando do rapaz. Quando Júlio se virou para encará-lo, ele desviou o olhar, incapaz de enfrentar seus olhos.

- Forme uma equipe de sepultamento. Gadítico pode fazer as orações quando eles estiverem enterrados.

Júlio fez uma pausa e olhou o horizonte, onde o sol era de um opaco cobre invernal.

- E mande o resto deles cortar árvores. Vamos fazer as crucifixões aqui, ao longo desta costa. Isso vai servir como alerta a quem for responsável por isso.

Prax fez uma saudação e voltou correndo ao ponto de atracação, satisfeito por se afastar do fedor da morte e do jovem oficial cujas palavras o amedrontavam, apesar dele achar que o conhecia antes.

Júlio ficou parado, impassível, enquanto os cinco primeiros homens eram pregados aos troncos toscos. Cada cruz era levantada com cordas até escorregar para os buracos que as seguravam, firmadas com cunhas de madeira marteladas. Os piratas gritaram até ficar com a garganta ferida e nenhum som sair mais, além do assobio do ar. De um deles escorria suor sangrento das axilas e da virilha, finas linhas vermelhas que escreviam padrões feios na pele.

O terceiro homem teve espasmos de agonia enquanto o cravo de ferro era pregado através de seu punho na madeira macia da trave horizontal. Chorou e implorou como uma criança, puxando o outro braço com toda a força até ele ser agarrado e seguro para os golpes do martelo e do cravo que o prendeu de vez.

Antes que seus homens completassem a tarefa brutal com as pernas trêmulas do sujeito, Júlio caminhou para a frente, como se atordoado, desembainhando a espada devagar. Seus homens se imobilizaram diante da aproximação, e ele os ignorou, parecendo falar seus pensamentos em voz alta.

- Chega - murmurou, enfiando a espada na garganta do homem.

Houve um ar de alívio nos olhos que ficaram vítreos, e Júlio desviou a cabeça enquanto enxugava a espada, odiando a própria fraqueza, mas incapaz de continuar olhando.

- Matem o resto depressa-ordenou, antes de voltar sozinho ao navio. Seus pensamentos corriam loucos enquanto caminhava pelas pedras do cais, guardando a espada sem perceber. Tinha prometido crucificar todos, mas a realidade era uma feiúra que ele não podia suportar. O grito havia atravessado seus nervos e o deixado com vergonha. Fora necessária toda a força de vontade para ver os homens serem pregados depois do horror do primeiro.

Fez uma careta de raiva contra si mesmo. Seu pai não teria fraquejado. Rênio os teria pregado pessoalmente, sem perder o sono. Sentiu as bochechas queimando de vergonha e cuspiu no cais ao chegar à borda. Mesmo assim não poderia ter ficado com seus homens, olhando, e se afastar sozinho o teria diminuído aos olhos deles, depois de suas ordens terem dado início às mortes cruéis.

Caberá tinha-se recusado a se juntar aos legionários para as execuções. Ficou junto à amurada do navio com a cabeça virada para o lado, numa pergunta não verbalizada. Júlio olhou-o e deu de ombros. O velho curandeiro deu-lhe um tapa no braço e estendeu uma ânfora de vinho com a outra mão.

- Boa idéia - disse Júlio em tom distante, com os pensamentos em outro lugar. - Pegue mais uma, está bem? Esta noite não quero sonhos.

 

Apenas algumas construções do porto tinham teto e paredes suficientemente seguras para ser usadas pelos homens de Júlio. Muitas outras tinham sido incendiadas, com as paredes de pedra mantendo-se de pé como conchas vazias. Alternando-se entre os armazéns e os três navios, Júlio mandou os homens revistarem o local em busca de suprimentos. Apesar de Celso ter guardado o suficiente para a maior parte do inverno, dificilmente daria para alimentar tantos soldados ativos durante tanto tempo.

Os legionários andavam com cautela enquanto procuravam, jamais sozinhos e sempre atentos a um ataque de surpresa. Mesmo com os corpos retirados e enterrados, o porto era um lugar silencioso, meditativo, e eles estavam sempre com o pensamento de que quem destruíra o pacífico povoado romano ainda poderia estar por perto ou voltando.

Só encontraram um homem vivo. Sua perna tinha um corte enorme e a infecção se espalhara rapidamente. Acharam-no quando o ouviram se mexer para matar um rato que chegou perto demais do cheiro de sangue. Ele esmagou a cabeça do bicho com uma pedra e depois gritou de terror quando os homens de Júlio o agarraram pelos braços e o puxaram para a luz. Depois de dias no escuro, o homem mal podia suportar até mesmo o sol fraco da manhã e balbuciava loucamente enquanto era arrastado para os navios.

Júlio chamou Caberá assim que viu a perna inchada, mas achou que era inútil. Os lábios do homem estavam com crostas secas, e ele gemeu por entre lágrimas quando encostaram uma tigela d'água em sua boca. Caberá cutucou a carne inchada da perna com os dedos compridos, finalmente balançando a cabeça. Levantou-se e ficou de lado com Júlio.

.- O ferimento envenenou e a infecção subiu até a virilha. É tarde demais para amputar. Posso tentar aliviar a dor, mas ele não tem muito tempo de vida.

- Você não pode... pôr as mãos nele?

- Ele foi longe demais, Júlio. Já deveria estar morto.

Júlio assentiu com uma resignação amarga, pegando a tigela com seus homens e ajudando o homem a segurá-la junto aos lábios. Os dedos esqueléticos tremiam demais para mantê-la firme, e, quando segurou um deles, Júlio quase se encolheu com o calor de febre que atravessava a pele esticada.

- Consegue me entender? - perguntou.

O homem tentou assentir enquanto bebia e engasgou terrivelmente, ficando de um vermelho vivo com os esforços que rasgavam o resto das forças.

- Pode dizer o que aconteceu? - pressionou Júlio, desejando que o homem respirasse.

Finalmente os espasmos cessaram e o homem deixou a cabeça tombar no peito, exausto.

- Eles mataram todo mundo. Todo o país está em chamas - sussurrou.

- Uma rebelião? - perguntou Júlio rapidamente.

Tinha esperado que fosse algum invasor estrangeiro, assolando algumas cidades litorâneas antes de voltar aos navios. Isso acontecera com muita freqüência naquela parte do mundo. O homem assentiu, sinalizando com os dedos trêmulos para a tigela de água. Júlio entregou-a, olhando enquanto ele a esvaziava.

- Foi Mitrídates - disse o homem, com a voz rouca e áspera. - Quando Sila morreu, ele os chamou...

Ele tossiu de novo e Júlio se levantou chocado, saindo para o convés, longe do cheiro maduro de doença que enchia o cômodo. Sila estava morto? Agarrou a amurada do navio de Celso até as mãos terem cãibras. Esperava que tivesse sido uma agonia lenta para o homem que lhe havia tirado Mário.

Alguma parte dele tinha imaginado cenas em que voltaria a Roma com os novos homens, rico e com o poder crescendo, para lutar contra Sila e vingar Mário. Nos momentos de maior silêncio, sabia que era uma fantasia infantil, mas ela o havia sustentado por longo tempo, um sonho que tornou suportável os meses na cela, os ataques, tudo.

À medida que o dia continuava Júlio se lançou nos milhares de tarefas que precisavam ser organizadas enquanto eles tornavam segura a área do porto. As ordens que dava e os homens com quem falava pareciam distantes, à medida que tentava pensar no que faria a partir das notícias dadas pelo homem. Pelo menos organizar as provisões e as ordens de alojamento lhe davam algo com que se ocupar. A morte de Sila deixava um buraco em seu futuro, um vazio que zombava de seus esforços.

O mercador Duro o achou junto com três legionários limpando um poço envenenado. Era bastante comum uma força invasora estragar a água com animais apodrecendo, e Júlio estava trabalhando entorpecido com os outros, tirando galinhas mortas e pegajosas e tentando não engasgar com o cheiro enquanto elas eram jogadas longe.

- Preciso trocar uma palavra com o senhor - disse Duro.

A princípio Júlio não pareceu ouvi-lo, e o mercador repetiu mais alto. Júlio suspirou e foi até ele, deixando os outros soldados baixando as cordas com ganchos para outra tentativa. Júlio enxugou as mãos fétidas na túnica enquanto andava, e Duro viu que ele estava exausto, subitamente percebendo como o sujeito era jovem. Com o cansaço diminuindo a fogueira por dentro, ele parecia quase perdido. O mercador pigarreou.

- Eu gostaria de partir com minhas duas trirremes, senhor. Coloquei meu nome numa carta dizendo que o senhor alugou o Vêntulus para caçar piratas. Está na hora de eu voltar para minha família e minha vida.

Júlio o olhou com firmeza, sem responder. Depois de uma pausa, Duro recomeçou:

- Concordamos que quando o senhor achasse Celso eu teria meu navio e a outra trirreme para compensar a carga perdida. Não tenho nenhuma reclamação, mas preciso de que o senhor dê a ordem para seus homens deixarem meus navios, de modo que eu possa ir para casa. Eles não aceitam minhas ordens, senhor.

Júlio se sentiu dividido e com raiva. Nunca havia percebido como podia ser difícil manter viva alguma aparência de honra. Tinha prometido a Duro os dois navios, mas isso fora antes de achar o porto grego destruído por uma guerra. O que o sujeito esperava? Cada instinto marcial que martelava em Júlio dizia para recusar peremptoriamente. Como poderia pensar em abrir mão de dois de seus trunfos mais valiosos quando Mitrídates estava cortando tudo que fosse romano da carne da Grécia?

- Caminhe comigo - disse a Duro, passando por ele de modo que o capitão teve praticamente de correr para acompanhá-lo. Júlio voltava rapidamente para o cais onde os três navios balançavam suavemente nas ondas. Seus guardas o saudaram enquanto ele se aproximava, e Júlio devolveu o gesto, parando subitamente na borda, onde as galeras se erguiam acima deles.

- Não quero que vá para casa - disse em tom direto. Duro ficou vermelho de surpresa.

- O senhor deu a palavra, disse que eu poderia partir quando o senhor tivesse tomado o navio de Celso - falou rispidamente.

Júlio se virou para ele, e o capitão engoliu em seco, quieto diante de sua expressão.

- Não preciso que me lembrem, capitão. Não vou impedi-lo de ir embora. Mas Roma precisa destes navios.

Ele pensou por um longo tempo, com os olhos sombrios enquanto olhava as embarcações subindo e descendo nas águas sujas.

- Quero que o senhor os leve ao redor do litoral o mais rápido possível e descubra que porto Roma está usando para desembarcar as legiões no oeste. Entregue a prata da legião em meu nome... e no nome do capitão Gadítico, da Accipiter. Imagino que eles vão mandar o senhor de volta a Roma para pegar mais soldados. Não existe lucro nisso, mas os dois navios são rápidos e eles vão precisar de qualquer coisa que flutue.

Duro mudou o peso do corpo de um pé para o outro, pasmo.

- Estou meses atrasado. Minha família e meus credores vão achar que estou morto - falou, tentando ganhar tempo.

- Romanos morreram, o senhor não viu os corpos? Deuses, estou pedindo um serviço para a cidade que o viu nascer e criou. O senhor nunca lutou nem sangrou por ela. Estou lhe dando a chance de pagar o pouco que deve.

Duro quase sorriu diante das palavras, mas se controlou ao perceber que o rapaz falava totalmente sério. Imaginou o que seus amigos da cidade pensariam daquele soldado. Ele parecia ter uma visão de Roma que não tinha nada a ver com os mendigos, os ratos e as doenças. Notou que Júlio via a cidade como algo mais grandioso do que ele percebia, e por um momento sentiu um toque de vergonha diante dessa crença.

- Como sabe que não vou pegar o dinheiro e ir direto para o norte da Itália e para casa?

Júlio franziu a testa ligeiramente, virando os olhos frios para o mercador.

- Porque, se fizer isso, serei seu inimigo, e você sabe muito bem que o acabarei encontrando e destruindo.

As palavras foram ditas em tom casual, mas depois de ver as execuções e ouvir como Celso fora jogado por sobre a amurada de seu próprio navio, Duro enrolou o manto em volta do corpo com força, para se proteger do vento frio.

- Muito bem. Farei o que diz, mas maldigo o dia em que o senhor pisou no Vêntulus - respondeu com os dentes trincados.

Júlio chamou os guardas que estavam na proa dos navios de Duro.

- Meus homens devem desembarcar!

Os soldados à vista o saudaram e desapareceram para chamar os outros. Duro sentiu uma onda de alívio deixando-o risonho.

- Obrigado - falou.

Júlio parou enquanto começava a voltar aos armazéns. Atrás dele, onde as pedras do cais se juntavam à terra, cinco figuras pendiam em cruzes.

- Não esqueça - disse ele, depois deu as costas ao capitão e se afastou. Duro duvidou que isso fosse possível.

À medida que a noite caía os homens se reuniram no armazém que parecia em melhores condições. Uma das paredes estava chamuscada, mas o fogo não tinha pegado. Afora o cheiro acre no ar, o local era quente e seco. Lá fora tinha começado a chover, um tamborilar baixinho no fino telhado de madeira.

As lâmpadas a óleo tinham vindo do navio de Celso, e, assim que eles se fossem, os homens estariam reduzidos a achar suprimentos nas casas abandonadas do porto. Como para preparar os soldados para esse momento, as chamas estavam baixas, mal iluminando o espaço vazio do depósito. Sementes de trigo derramadas pelos saqueadores forravam o chão, e os soldados sentavam-se em sacos rasgados, tentando ficar o mais confortáveis possível.

Gadítico se levantou para falar aos homens amontoados. A maioria tinha trabalhado o dia inteiro, fosse consertando o telhado ou levando e trazendo suprimentos dos navios que partiriam na maré da manhã.

- Está na hora de pensar no futuro, senhores. Eu queria descansar um tempo num porto romano seguro antes de entrar em contato com minha casa. Em vez disso, um grego estripou nossos soldados. Isso não deve ficar sem punição.

Um murmúrio perpassou os homens, ainda que fosse difícil saber se era de concordância ou frustração. Júlio olhou-os enquanto se sentava perto de Gadítico. Aqueles eram seus homens. Ele havia passado tanto tempo com o objetivo simples de achar e matar Celso que não tinha pensado muito no que viria depois, represando o sonho distante de um dia confrontar o Ditador de Roma. Se ele levasse uma nova centúria para uma legião, o Senado teria de reconhecer sua autoridade com um posto oficial.

Fez uma careta silenciosa nas sombras. Ou talvez não reconhecesse, colocando Gadítico no comando e reduzindo Júlio de volta a comandar apenas vinte. Os senadores não eram do tipo que reconheciam a autoridade incomum que ele possuía sobre o grupo variegado, ainda que sua nova riqueza pudesse lhe dar influência se ele a usasse com sabedoria. Imaginou se poderia se satisfazer com um cargo assim e sorriu consigo mesmo, sem ser notado pelos homens que olhavam para Gadítico. Havia uma resposta simples. Ele aprendera que não havia nada melhor do que liderar e nenhum desafio maior do que não ter a quem pedir ajuda. Nos piores momentos eles o haviam procurado para saber o caminho, para ver o passo seguinte. Os deuses sabiam que era muito mais fácil seguir, sem pensar, mas nem de longe era tão satisfatório. Parte dele ansiava por aquela segurança, pelo simples prazer de fazer parte de uma unidade. Mas no coração ele queria a mistura inebriante de medo e perigo que vinha apenas do comando.

Como Sila podia estar morto? O pensamento voltava repetidamente para incomodá-lo. O homem ferido a bordo do navio de Celso não sabia de nada só que os soldados tinham recebido ordens de usar preto durante um ano inteiro. Quando o sujeito ficou inconsciente, Júlio o deixou nas mãos de Caberá, e, enquanto o sol baixava, ele morreu, o coração finalmente falhando. Júlio ordenara que ele fosse enterrado com os outros cadáveres romanos e sentiu vergonha ao pensar que nem tinha perguntado seu nome.

- Júlio? Quer falar com eles?- perguntou Gadítico, invadindo seus pensamentos e lhe dando um susto.

Sentindo-se culpado, ele percebeu que não tinha ouvido nada que o outro oficial dissera. Levantou-se devagar, juntando os pensamentos.

- Sei que a maioria de vocês esperava ver Roma, e verão. Minha cidade é um lugar estranho: mármore e sonhos erguidos com a força das legiões. Cada legionário é obrigado por juramento a proteger nosso povo em qualquer lugar que o encontrar. Tudo que um romano tem de dizer é "Eu sou cidadão romano" e ter garantido nosso abrigo e nossa autoridade. - Parou, e todos os olhos no depósitos estavam fixos nele. - Mas vocês não fizeram esse juramento e não posso obrigá-los a lutar por uma cidade que nunca viram. Vocês têm mais riquezas do que a maioria dos soldados veria em dez anos. Devem fazer uma escolha livre: servir sob juramento ou partir. Se nos deixarem, irão como amigos. Nós lutamos juntos e alguns não chegaram até aqui. Para outros de vocês isso pode bastar. Se ficarem, eu deixarei o tesouro de Celso aos cuidados do capitão Duro, que vai se encontrar conosco na costa oeste quando Mitrídates for derrotado.

Outro rumor baixo de vozes encheu o salão quando ele parou de novo.

- Você confia em Duro? - perguntou Gadítico. Júlio pensou um momento, depois balançou a cabeça.

- Não com tanto ouro. Mandarei Prax para mantê-lo honesto.

Ele olhou para o seu optio e o viu sinalizar concordando. Com isso resolvido, Júlio respirou fundo enquanto olhava os homens sentados. Era capaz de dizer o nome de cada um.

- Vocês farão o juramento da legião aceitando meu comando? Eles rugiram, concordando.

Gadítico sussurrou áspero, inclinando-se perto do ouvido de Júlio.

- Deuses, homem. O Senado vai arrancar meus bagos se eu fizer isso.

- Você deve deixá-los, Gadi, junte-se a Suetônio no navio enquanto eu tomo o juramento deles.

Gadítico olhou-o com frieza, avaliando.

- Imagino por que o deixou lá. Ele não faria um juramento que não fosse violar. Você pensou aonde vai levá-los?

- Pensei. Vou montar um exército e liderá-lo direto até a garganta de Mitrídates.

Ele estendeu a mão e Gadítico hesitou, depois segurou-a num aperto breve que era quase doloroso.

- Então nosso caminho é o mesmo - disse, e Júlio assentiu, entendendo.

Júlio ergueu os braços pedindo silêncio, sorrindo quando conseguiu. Sua voz se espalhava com facilidade no silêncio súbito.

- Eu nunca duvidei de vocês - disse aos homens. - Nem por um momento. Agora levantem-se e repitam estas palavras.

Eles se levantaram como um só, ficando em posição de sentido, com a cabeça erguida e costas retas.

Júlio olhou em volta e soube que estava comprometido com o que decidira. Não havia nele nada que dissesse para voltar atrás, mas com o juramento sua vida mudaria, até a morte de Mitrídates.

Ele disse as palavras que seu pai lhe havia ensinado quando o mundo era simples.

- Júpiter Victor, ouça este juramento. Oferecemos nossa força, nosso sangue, nossa vida a Roma. Não recuaremos. Não cederemos. Não nos importaremos com o sofrimento ou a dor. Enquanto houver luz, daqui até o fim do mundo, defenderemos Roma e o comando de César.

Eles entoaram as palavras com as vozes claras e firmes.

 

Alexandria tentou olhar sem ser óbvia enquanto Tabbic explicava uma técnica a Otaviano, a voz um murmúrio constante e baixo acompanhando cada movimento das mãos fortes. Na bancada diante deles, Tabbic tinha posto um grosso pedaço de fio de ouro sobre um quadrado de couro. As duas extremidades do fio estavam fixas por minúsculas presilhas de madeira, e Tabbic estava gesticulando para mostrar como Otaviano deveria pressionar um estreito bloco de madeira sobre o fio.

- O ouro é o metal mais macio, garoto. Para fazer um desenho no fio você só precisa apertar o bloco de marcação suavemente e passar para trás e para a frente, mantendo o braço muito reto, como eu mostrei. Tente.

Otaviano baixou o bloco lentamente, deixando os dentes serrilhados da parte de baixo pousarem na linha de metal precioso com aparência frágil.

- É assim, agora faça um pouco mais de pressão. Isso, para trás e para a frente. Bom. Vejamos, então - continuou Tabbic.

Otaviano levantou o bloco e riu de orelha a orelha ao ver a série regular de contas que tinha se formado com a pressão. Tabicc olhou para o ouro, assentindo.

- Você tem um toque leve. Se fizer pressão demais parte o fio e terá de voltar ao princípio. Agora vou soltar as presilhas e virar, para você terminar as contas. Alinhe o bloco com cuidado e desta vez seja o mais suave possível; as juntas ficarão finas como os seus cabelos.

Tabbic viu o olhar de Alexandria enquanto esticava as costas, sentindo dor depois de estar curvado durante tanto tempo na bancada baixa que tinha feito para Otaviano. Ela piscou e ele ruborizou ligeiramente, pigarrean-do áspero para esconder um sorriso. Alexandria sabia que ele tinha começado a gostar das lições dadas a Otaviano. Tinha demorado muito tempo para ele perder parte da desconfiança contra o ladrãozinho, mas a jovem sabia, pelo trabalho que Tabbic fizera com ela, o quanto ele gostava de ensinar o ofício.

Otaviano xingou quando o fio estreito cedeu sob sua mão. Com ar tristonho, levantou o bloco e revelou três pedaços cortados. Tabbic juntou as sobrancelhas grossas e balançou a cabeça, juntando os pedaços partidos cuidadosamente para serem derretidos e esticados de novo.

- Vamos tentar de novo mais tarde ou amanhã. Você quase conseguiu dessa vez. Quando conseguir marcar o fio inteiro direitinho, vou mostrar como fixá-lo como borda para um dos broches da moça.

Otaviano pareceu desanimado, e Alexandria prendeu o fôlego enquanto esperava para ver se ele teria um dos chiliques violentos com que os havia atormentado nas primeiras semanas. Quando isso não aconteceu, ela soltou o ar dos pulmões com um lento jorro de alívio.

- Certo. Eu gostaria disso - disse ele devagar.

Tabbic lhe deu as costas, remexendo no pacote de trabalhos terminados que tinham de ser levados aos donos.

- Tenho outro serviço para você - disse ele, entregando uma bolsa de couro minúscula, dobrada e amarrada. - Isto é um anel de prata que eu consertei. Quero que vá até o mercado de gado e pergunte pelo mestre Getho. Ele comanda as vendas, de modo que não vai ser difícil achar. Ele vai lhe dar um sestércio pelo serviço. Pegue a moeda e volte correndo para cá, sem parar para nada. Entendeu? Estou confiando em você. Se perder o anel ou a moeda, nós dois estamos acabados.

Alexandria poderia ter rido alto diante da expressão séria do menino.

Aquela ameaça teria sido inútil nas primeiras semanas de aprendizado. Otaviano não se importaria em ficar sozinho. Tinha lutado tremendamente contra Os esforços conjuntos de sua mãe, Tabbic e Alexandria. Por duas vezes ela teve de revirar os mercados locais procurando-o, e na segunda vez o arrastou até os quarteirões dos escravos para que fosse avaliado. Depois disso ele não fugiu e adotou um jeito carrancudo que Alexandria achou que seria permanente.

A mudança veio no meio da quarta semana de trabalho, quando Tabbic lhe mostrou como fazer um padrão numa folha de prata usando minúsculas gotas do metal derretido. Ainda que o menino houvesse queimado o polegar ao tentar tocá-lo, o processo o fascinou, e naquela noite ele perdeu a hora do jantar, ficando para ver a peça final sendo polida. Sua mãe, Atia chegou à oficina com o rosto cansado cheio de desculpas. Ao ver a figurinha ainda trabalhando com os panos de polimento ficou sem fala, mas Alexandria acordou na manhã seguinte e viu que suas roupas tinham sido limpas e muito bem remendadas naquela noite. Nenhum outro agradecimento foi necessário entre as duas. Ainda que só se vissem durante uma ou duas horas por dia, antes de dormir, elas haviam encontrado uma amizade do tipo que pode surpreender duas pessoas reservadas, trabalhando tanto que jamais notavam estar solitárias.

Otaviano ia assobiando enquanto trotava no meio da multidão no mercado de gado. Quando os fazendeiros traziam seus animais para ser leiloados e abatidos, aquele era um lugar movimentado, cheio dos cheiros quentes de esterco e sangue. Todo mundo parecia estar gritando, com gestos complicados para fazer lances quando não podiam ser ouvidos.

Otaviano procurou um dos vendedores para perguntar por Getho. Queria entregar o anel consertado e voltar à oficina de Tabbic antes que os adultos acreditassem.

Enquanto serpenteava em meio à massa de pessoas, divertia-se imaginando a surpresa de Tabbic diante da volta rápida.

Uma mão o agarrou subitamente pelo pescoço e o menino foi erguido com um movimento brusco, os pés escorregando. Soltou a respiração num arquejo diante da interrupção dos pensamentos, lutando loucamente num instinto contra o agressor.

- Tentando roubar a vaca de alguém, não é? - disse uma voz dura, nasal, perto de seu ouvido.

Ele girou a cabeça bruscamente, gemendo ao ver as feições pesadas do garoto do açougue, com quem havia cruzado antes. Em que estivera penando? Como um idiota, tinha baixado a guarda usual para os predadores, e eles o haviam apanhado sem esforço.

- Me solta! Socorro! -gritou.

O garoto mais velho deu-lhe um soco com força no nariz, fazendo-o sangrar.

- Cala a boca. Estou lhe devendo uma surra mesmo, em troca da que levei por não ter apanhado você da outra vez.

O braço do garoto estava em volta do pescoço de Otaviano, apertando sua garganta enquanto ele era arrastado para trás até um beco. Lutou para se soltar, mas não adiantava, e a multidão nem olhava naquela direção.

Havia mais três garotos com o aprendiz do açougueiro. Todos tinham os braços longos de crianças acostumadas ao duro trabalho físico. Usavam aventais manchados de sangue fresco do trabalho no mercado, e Otaviano entrou em pânico, quase desmaiando de terror diante das expressões cruéis. Os garotos zombaram e deram socos enquanto viravam uma esquina no beco. Ali o barulho do mercado era abafado pelas paredes altas das casas de cômodos, quase se encontrando com as outras do lado oposto criando uma escuridão pouco natural.

O garoto do açougue jogou Otaviano na imundície que ia até o tornozelo, uma combinação de anos de lixo e excremento humano jogados das janelas estreitas acima. Otaviano saltou para o lado para escapar, mas um deles o chutou com força suficiente para empurrá-lo de volta no lugar, levantando o corpo pequeno e grunhindo com o impacto. Otaviano gritou de dor e medo enquanto os outros dois se juntavam ao primeiro, chutando-o em todas as partes que pudessem alcançar.

Depois de um minuto os três garotos descansaram com as mãos nos joelhos, ofegando com o esforço. Otaviano estava quase inconsciente, o corpo enrolado numa minúscula bola de sofrimento, praticamente indistinguível da sujeira em que se encontrava.

O garoto do açougue repuxou os lábios num riso de desprezo, levantando o punho e rindo rouco enquanto Otaviano tentava se encolher para longe.

- Você merece, seu desgraçado de Turim. Vai pensar duas vezes antes de roubar do meu patrão, não vai? - Ele mirou com cuidado e chutou Otaviano no rosto, uivando quando a cabeça pequena foi sacudida para trás. Otaviano ficou deitado sem sentidos, com os olhos abertos e o rosto meio submerso. Um pouco de água suja correu entre seus lábios e, mesmo inconsciente, ele começou a tossir e engasgar debilmente. Não sentiu os dedos que o revistaram nem ouviu o grito satisfeito quando os garotos mais velhos acharam o anel de prata na bolsinha.

O garoto do açougue assobiou baixinho enquanto experimentava o metal A pedra era um simples domo de jade pesado, preso no metal com minúsculas garras de prata.

- De quem será que você roubou isto? - disse ele, olhando a figura deitada. Cada um chutou o garoto mais uma vez em nome do dono do anel depois voltaram ao mercado, totalmente satisfeitos com a reviravolta na sorte.

Otaviano acordou horas depois, sentando-se devagar e com ânsias de vômito durante minutos enquanto experimentava as pernas para ver se elas podiam sustentá-lo. Durante longo tempo sentiu-se fraco e dolorido demais para se mover, agachado e cuspindo fios elásticos de sangue escuro no chão. Quando sua cabeça clareou o suficiente, enfiou a mão no bolso procurando o anel, depois examinou o chão em volta. Finalmente foi obrigado a admitir que o havia perdido, e novas lágrimas atravessaram a sujeira e o sangue em crostas no rosto. Cambaleou de volta à rua principal e abrigou os olhos contra a dolorosa luz do sol. Ainda chorando, com os pés inseguros, voltou à oficina de Tabbic, a mente vazia de desespero.

 

Tabbic bateu com os pés no piso de madeira, com a raiva em cada ruga de seu rosto franzido.

- Pelo inferno, vou matar o moleque por isso. Ele deveria ter voltado há séculos.

- E o que você vem dizendo há uma hora, Tabbic. Talvez ele tenha se atrasado ou não tenha encontrado o mestre Getho - respondeu Alexandria, mantendo a voz neutra.

Tabbic bateu com o punho na bancada.

- Ou talvez tenha vendido o anel e fugido, é o mais provável! - rosnou. - Terei de fazer um outro, você sabe. Com pedra de jade e tudo. Vai me custar um dia de trabalho e mais de um aureus em material para fazer um novo. Sem dúvida, Getho vai dizer que sua mãe agonizante lhe deu e vai querer compensação ainda por cima. Onde está esse garoto?

A grossa porta de madeira da oficina se entreabriu, deixando entrar um redemoinho de poeira da rua. Otaviano estava ali parado. Tabbic deu uma olhada em seus ferimentos e na túnica rasgada, e foi até ele, com a raiva desaparecendo.

- Desculpa - chorou o menino quando Tabbic o guiou para dentro da oficina. - Tentei lutar com eles, mas eram três, e ninguém veio me ajudar. Quando Tabbic tateou seu peito ofegante, procurando ossos quebrados.

O artesão grunhiu, soltando o ar por entre os dentes.

- Eles fizeram um bom serviço em você, sem dúvida. Como está a respiração?

Otaviano enxugou cautelosamente o nariz com as costas da mão.

- Está bem. Voltei o mais depressa que pude. Não vi eles na multidão. Em geral fico de vigia, mas estava com pressa e...

Ele irrompeu em soluços, e Alexandria o envolveu com o braço, sinalizando para Tabbic se afastar.

- Vá cuidar das suas coisas, Tabbic. Ele não quer um exame. Passou por uma situação difícil e precisa de cuidados e descanso.

Tabbic se afastou enquanto ela levava o menino para o cômodo dos fundos e subia a escada até a casa em cima da oficina. Sozinho, suspirou e esfregou o rosto, coçando a barba grisalha que tinha começado a crescer desde que a havia raspado pela manhã. Balançando a cabeça, virou-se para a bancada e começou a escolher as ferramentas de que precisaria para refazer o anel de Getho.

Trabalhou em silêncio durante alguns minutos, depois parou e olhou para a escada do fundo, enquanto um pensamento lhe vinha.

- Terei de fazer uma faca decente para você, meu garoto - murmurou sozinho, antes de pegar as ferramentas de novo. Depois de um tempo, enquanto desenhava o anel com giz, murmurou: - E ensinar a usá-la também.

Urutus estava no Campo de Marte, com o estandarte com a águia da primogênita enfiado no chão ao lado. Ficara satisfeito ao ver que algumas das outras legiões que recrutavam tinham de usar bandeiras de pano, ao passo que o velho estandarte que Mário tinha feito fora encontrado para ele. De ouro martelado sobre cobre, ele captava o sol da manhã e Brutus esperava que atraísse o olhar de um bom número de rapazes que vinham se juntando desde antes do amanhecer. Nem todos estariam se inscrevendo numa legião. Alguns tinham vindo apenas olhar, e para esses os vendedores de comida tinham montado barracas antes do amanhecer. O cheiro de carne assada e legumes o deixou com fome, e ele pensou em almoçar cedo, balançando as moedas no bolso enquanto olhava a multidão em volta da fileira de estandartes.

Tinha esperado que fosse mais fácil. Rênio tinha toda a aparência de um leão da velha Roma, e os dez homens que eles haviam trazido eram impressionantes nas armaduras novas, polidas até brilhar, para a admiração da turba. Mas Brutus fora obrigado a ficar olhando enquanto, por toda a fileira, centenas de jovens romanos se inscreviam para ser legionários, sem que nenhum deles chegasse perto do seu posto. Às vezes grupos menores tinham se juntado, apontando e sussurrando, depois ido em frente. Ele se sentira tentado a agarrar uns dois garotos e descobrir o que tinham dito, mas controlou o mau humor. Com o meio-dia se aproximando, a multidão se reduzira à metade e, pelo que ele podia ver, o estandarte da Primogênita era o único que não fora rodeado pela nova geração.

Trincou os dentes. Os que já haviam se inscrito atrairiam outros para aquelas águias. Agora imaginou as pessoas perguntando o que havia de estranho com a Primogênita para que ninguém quisesse entrar para ela. Mãos cobriam as bocas que sussurravam com empolgação pueril sobre a legião traidora. Ele pigarreou e cuspiu no chão de areia. Os testes terminavam ao pôr-do-sol e não havia nada a fazer além de ficar de pé e aguardar o fim, esperando talvez pegar alguns desgarrados enquanto a luz fosse sumindo. A idéia o fez queimar de embaraço. Sabia que se Mário estivesse ali estaria andando entre os rapazes, adulando, brincando e persuadindo-os a entrar em sua legião. Claro, naquela época havia uma legião para a qual entrar.

Brutus retomou sua avaliação carrancuda da multidão, desejando ser capaz de fazê-los entender. Três rapazes vieram em direção ao seu estandarte e ele sorriu, o mais receptivo que pôde.

- Primogênita, não é? - perguntou um deles.

Brutus olhou enquanto os outros escondiam sorrisos. Estavam ali por esporte, pensou. Por um instante fugaz, pensou em quebrar as cabeças batendo umas nas outras, mas se controlou, sentindo os olhos de seus dez homens. Podia sentir Rênio se eriçar ao lado, mas o velho manteve a calma.

- Fomos a legião de Mário, Cônsul de Roma - disse ele. - Vencedores na África e em todas as terras romanas. Há uma história gloriosa aqui, para os homens certos que se juntarem a nós.

- E como é o pagamento? - perguntou o mais alto, com um tom zombeteiro e sério ao mesmo tempo.

Brutus respirou devagar. Eles sabiam que o Senado estabelecia o pagamento para todas as legiões. Com Crasso para apoiá-lo, adoraria oferecer mais, mas o limite existia para impedir que patrocinadores ricos minassem todo o sistema.

- Setenta e cinco denários, o mesmo que as outras - respondeu depressa.

- Espera aí. A Primogênita? Não foram eles que acabaram com a cidade? - perguntou o rapaz alto como se tivesse tido uma revelação súbita. Em seguida se virou para os amigos sorridentes, que estavam felizes em deixá-lo comandar o show. - E, sim! - disse ele, deliciado. - Sila acabou com eles, não foi? Eles eram liderados por um traidor, não sei quem.

O rapaz alto parou ao captar a mudança nas expressões dos amigos, percebendo que tinha ido longe demais. Quando se virou de novo, Brutus lançou o punho, mas Rênio bloqueou o golpe com o braço estendido. Todos os três rapazes se encolheram diante da ameaça, mas seu líder recuperou rapidamente a confiança, com a boca se retorcendo num riso de desprezo.

Antes que ele pudesse falar, Rênio se adiantou.

- Qual é o seu nome?

- Germínio Cato - respondeu ele com arrogância. - O senhor deve ter ouvido falar do meu pai.

Rênio se virou para os soldados atrás dele.

- Anote o nome. Ele está inscrito.

A arrogância se desfez em espanto enquanto Germínio via seu nome ser escrito no pergaminho vazio.

- Você não pode fazer isso! Meu pai vai mandar...

- Você está inscrito, garoto. Diante de testemunhas - respondeu Rênio. - Estes homens vão jurar que foi voluntário. Quando nós o dispensarmos, você estará livre para correr até seu pai e contar como está orgulhoso.

O filho de Cato olhou para o velho legionário, com a confiança retornando.

- Meu nome estará fora desta lista antes do pôr-do-sol. Rênio se aproximou dele de novo.

- Diga a ele que Rênio anotou seu nome. Ele sabe quem eu sou. Diga que você sempre será conhecido como o rapaz que tentou desistir de servir à cidade nas legiões. Ele vai ser destruído se alguma coisa assim for espalhada, não acha? Você imagina que vai seguir os passos dele depois de uma vergonha dessas? O Senado não gosta de covardes, garoto.

O rapaz empalideceu de raiva e frustração.

- Eu vou... - Ele parou, e uma dúvida terrível se esgueirou em seu rosto.

- Você vai é ficar ao lado desta águia até estarmos prontos para tomar seu juramento. Até que me dêem outras ordens, você é o primeiro recruta do dia.

- O senhor não pode me impedir de ir embora! - respondeu Germínio, com a voz falhando.

- Está desobedecendo a uma ordem legítima? Mandarei chicoteá-lo se der outro passo para longe de mim. Fique em posição de sentido antes que eu perca a paciência!

A ordem ríspida deixou Germínio numa fúria impotente. Sob o olhar de Rênio, ele se empertigou. Ao seu lado, os amigos começaram a sair de fininho.

- Seus nomes! - disse Rênio, imobilizando-os. Eles o olharam mudamente e ele deu de ombros. - Anote-os como os legionários dois e três do dia. Agora que eu conheço o rosto de vocês, isso vai servir. Fiquem eretos para a multidão, rapazes. - Ele se virou para os soldados da Primogênita por um momento, ignorando o espanto deles. - Se eles fugirem - falou com clareza -, quero que sejam arrastados de volta e flagelados no campo. Isso vai nos custar alguns recrutas, mas os outros podem muito bem ver que há um lado duro em toda essa glória.

Os três jovens romanos encararam a multidão rigidamente, e Rênio olhou surpreso quando Brutus o puxou alguns passos até que não fossem entreouvidos.

- Cato vai ficar enlouquecido - murmurou Brutus. - Dentre todas as legiões, ele não vai querer o filho nesta.

Rênio pigarreou e cuspiu na grama empoeirada do campo.

- Também não vai querer que ele seja rotulado de covarde. A escolha é sua mas você não vai ganhar nada deixando-os ir agora. Ele pode tentar subornar você ou pode suportar isso. Nós saberemos dentro de um ou dois dias.

Brutus olhou atentamente o velho gladiador e balançou a cabeça, incrédulo.

- Você forçou isso para cima de mim, de modo que vou ver no que dá.

Rênio olhou-o.

- Se você tivesse batido nele, o pai mandaria matá-lo.

- Você não sabia quem ele era quando me impediu! - retrucou Brutus.

Rênio suspirou.

- Ensinei você melhor do que isso, garoto, ensinei mesmo. O que eu deveria pensar quando um garoto usa a insígnia do pai num anel de ouro com tamanho suficiente para comprar uma casa?

Brutus piscou para ele, depois foi ver os três novos recrutas e examinou a mão de Germínio um momento, sem falar. Ia voltar a Rênio quando outros três rapazes se destacaram da multidão e se aproximaram da águia da Primogênita.

- Assinem no pergaminho ali e fiquem com os outros, rapazes - disse Rênio. - Nós tomaremos seu juramento quando houver um número suficiente.

Um sorriso repuxou os cantos de sua boca enquanto ele sinalizava para os jovens ocuparem os lugares.

 

Com o calor da Grécia e as desculpas, Júlio estava achando difícil controlar o humor. Estava desesperado por recrutas, mas a cidade romana cercada de muralhas tinha se esquecido de seu dever original, e cada exigência era recebida por protelações e discussões.

- Tenho os jovens, agora traga os veteranos - disse Júlio ao líder da cidade.

- O quê? Você nos deixaria sem defesa? - gaguejou o outro, indignado.

Júlio permaneceu em silêncio, esperando alguns instantes antes de dar a resposta, como Rênio costumava fazer. Tinha achado que as pequenas pausas davam um peso em suas palavras como nenhuma outra coisa.

- Meus homens estão indo diretamente daqui para atacar Mitrídates. Não há mais ninguém de quem vocês precisem se defender. Não tenho tempo de treinar mais camponeses para ser legionários, e, pelo que você diz, não há outra força romana num raio de cento e cinqüenta quilômetros daqui. Quero que cada homem dentro destas muralhas que já segurou uma espada a serviço de Roma esteja aqui fora, armado e com armadura, do melhor modo possível.

O líder pressionado começou a falar de novo, e Júlio o interrompeu» levantando a voz ligeiramente:

- Espero não ter de mencionar as condições da aposentadoria dos legionários. Seria um ataque contra a honra deles eu lembrar que receberam terras sabendo que, se Roma os convocasse, eles teriam de atender. Ela chama. Convoque-os.

O líder se virou, quase correndo de volta para a sala do conselho. Júlio esperou com seus homens em posição de sentido às suas costas. Tinha suportado o bastante as protelações do conselho, e parte dele não sentia qualquer simpatia. Eles estavam numa terra conquistada, e a preocupação constante com rebeliões tinha se tornado uma realidade. Será que esperavam ficar quietinhos atrás das belas muralhas até que aquilo acabasse? Imaginou o que poderia ter acontecido se Mitrídates tivesse chegado ali primeiro. Nem valia a pena apostar que teriam declarado lealdade a ele temendo pelas famílias, abrindo os portões e se ajoelhando no pó.

- Alguém está vindo pela rua principal - disse Gadítico atrás dele. Júlio se virou para a esquerda e ouviu o passo cadenciado de pelo menos uma centúria de legionários. Xingou baixinho. A última coisa de que precisava nesse momento era encarar outro oficial das legiões regulares. Quando eles surgiram, o ânimo de Júlio cresceu.

- Legionários... alto! - disse uma voz grave, ecoando nas paredes da pequena praça.

Um dos homens de Júlio assobiou baixinho de surpresa diante do que viam. Os homens eram velhos. Usavam armaduras que datavam de quase cinqüenta anos, em alguns casos, com placas e malha de desenho mais simples. Os corpos mostravam os resultados de décadas de guerra. Alguns não tinham um olho ou uma das mãos. Outros mostravam antigas cicatrizes franzidas nos rostos e nos membros, mal costuradas, emendando a pele em longos crescentes.

O comandante era um homem corpulento com cabeça raspada e ombros poderosos. Seu rosto era muito enrugado, mas mesmo assim ele dava uma impressão de força que fez Júlio se lembrar vagamente de Rênio, quando o velho soldado fez uma saudação avaliando o comando de Júlio instintivamente pela distância que ele mantinha dos outros.

-- Quertoro Far, apresentando-se, senhor. Achamos que os conselheiros demorariam o dia inteiro, por isso fizemos a convocação sem eles. Os veteranos estão prontos para ser inspecionados, senhor.

Júlio assentiu e seguiu o homem, olhando enquanto mais e mais legionários entravam na praça e se arrumavam em excelente formação.

- Quantos são? - perguntou, tentando avaliar o valor dos homens de barbas brancas que via eretos ao sol de inverno.

- No total, quase quatrocentos, senhor, mas ainda estão vindo de fazendas distantes. Deveremos estar todos aqui ao escurecer, esta noite.

- E a idade média?

Quertoro parou e se virou para olhar o jovem oficial.

- Eles são veteranos, senhor. Isso significa que são velhos. Mas são todos voluntários e terão toda a dureza de que o senhor vai precisar diante de Mitrídates. Precisam de alguns dias para se exercitar juntos, mas lembre-se todos foram testados e todos chegaram até aqui. Muitos homens morreram por Roma no correr dos anos. Estes são os que venceram.

O homem tinha uma expressão insolente, mas Júlio podia ouvir a crença nas palavras enquanto ele tentava tranqüilizar o jovem e sério oficial que tinha vindo à sua cidade procurar um exército.

- E você, Quertoro? Você os comanda?

O careca riu, um som curto e entrecortado, que se interrompeu rapidamente.

- Eu, não, senhor. O conselho acha que comanda, imagino, mas esses homens seguem seu próprio caminho e fazem isso há muito tempo, a maioria. Veja bem, quando Mitrídates tomou o porto, eles começaram a afiar as espadas de novo, se é que o senhor me entende.

- Você não fala como se fosse um deles - disse Júlio, transformando a frase numa pergunta.

Quertoro levantou as sobrancelhas.

- Não foi intencional, senhor. Cumpri meus vinte anos na Primeira Cirenaica, dez como optio.

Algum instinto fez Júlio perguntar:

- Os últimos dez?

Quertoro pigarreou e desviou o olhar um momento.

- Pode-se dizer que foram os dez do meio, senhor. Perdi o posto perto do fim por jogar excessivamente.

- Sei. Bem, Quertoro, parece que estamos jogando de novo, você e eu - disse Júlio em voz baixa.

Quertoro riu de orelha a orelha, revelando a falta de dentes no maxilar inferior.

- Eu não apostaria contra eles, senhor, não se o senhor os conhecesse.

Júlio olhou as fileiras reunidas, com menos confiança do que demonstrava.

- Espero que esteja certo. Agora entre em forma, e vou me dirigir a eles.

Por um segundo pensou que Quertoro poderia se recusar e imaginou se o sujeito teria perdido o posto por mais do que simplesmente o jogo, uma ocupação bastante comum entre os legionários que não estavam de serviço. Então o careca entrou em forma e ficou em posição de sentido, olhando Júlio com interesse. Júlio encheu os pulmões.

- Veteranos de Roma! - bradou, fazendo os que estavam mais perto pular. Ele sempre tivera uma voz poderosa, mas parte dele se perguntava se isso bastaria caso alguns deles fossem surdos. - Meus homens e eu passamos por dois povoados ao sul antes de chegarmos aqui, recolhendo recrutas. A notícia que ouvimos é que Mitrídates está acampado a cerca de cento e cinqüenta quilômetros a oeste. Podem ter certeza de que novas legiões romanas estarão em marcha enquanto eu falo, vindo para o leste a partir dos portos de E)yrrhachium e Apolônia. Pretendo forçá-lo a ir na direção delas, ser o martelo para a bigorna romana.

Tinha conseguido o interesse. Cada olhar estava fixo nele, os de seus homens e os dos veteranos grisalhos. Agradeceu aos deuses pela decisão de marchar dezesseis quilômetros para o norte e recrutar naquela cidade.

- Com vocês eu tenho um milhar sob meu comando para atacar Mitrídates. Alguns desta cidade e dos povoados não têm treinamento. Outros que eu trouxe só estão acostumados a lutar no mar em galeras romanas. Vocês pertenceram a legiões de terra e devem ser a espinha dorsal enquanto marchamos. Darei a cada um de vocês um irmão de espada, um dos meus homens, para treinar.

Júlio parou, mas houve silêncio, e ele soube que os veteranos ainda se lembravam da antiga disciplina. Imaginou quantos suportariam os quilômetros antes de verem ação. Com soldados jovens e descansados ele poderia atravessar a distância em três ou quatro dias, mas com aqueles? Não havia como saber.

- Preciso de um de vocês para ser intendente, preparando os fardos o equipamento e a comida a partir do que puderem encontrar dentro dos muros da cidade.

Quertoro se adiantou, com os olhos brilhando de prazer.

- Quertoro? - disse Júlio.

- Intendente, senhor, com sua permissão. Há muito tempo venho querendo ter a chance de cutucar o olho do conselho.

- Muito bem, mas as reclamações deles virão a mim, e eu irei tratá-las com seriedade. Leve três dos meus homens e comecem a preparar os suprimentos. Precisamos de um escudo para cada homem e qualquer lança ou arco que vocês possam encontrar. Quero uma cozinha de campo fora das muralhas, com uma refeição pronta para eles antes do escurecer. Ainda há luz suficiente para exercícios, e quero ver como esses homens conseguem se movimentar. Eles estarão com fome quando terminarmos.

Quertoro fez uma saudação e marchou elegantemente até Gadítico, que permaneceu em posição de sentido onde Júlio o havia deixado, com os outros. Júlio ficou olhando enquanto mais dois eram escolhidos para ir com ele e tentou ignorar as premonições de que tinha acabado de soltar o lobo no meio dos gansos. Enquanto eles se afastavam rapidamente, Júlio viu o líder da cidade vir correndo do prédio do conselho, diretamente para os veteranos reunidos. Júlio se virou de costas para ele, sem interesse. O que quer que o conselho tivesse decidido não tinha mais importância.

- Vi que vocês conseguem ficar de pé e pelas cicatrizes vejo que sabem lutar - gritou em meio às fileiras. - Agora preciso ver se conseguem se lembrar das formações.

À sua ordem, eles se viraram e marcharam ao longo da rua principal até o portão de saída da pequena cidade. Os que tinham esperado em ruas laterais vieram atrás dos outros com precisão, e Júlio sinalizou para Gadítico vir na retaguarda. Os dois trocaram olhares, deixando o líder do conselho gritando lá atrás, a voz sumindo até que ele finalmente percebeu que não seria mais ouvido.

Demorou um tempo para os legionários formarem quatro filas iguais, os veteranos misturados aos jovens. Júlio caminhou rigidamente para um lado para o outro pelas fileiras, avaliando a qualidade dos homens que tinham reunido em seu nome. Enquanto franzia a testa para eles, lutava para se lembrar das lições sobre táticas de campo e rotinas que Rênio havia martelado nele há tantos anos. Nenhuma delas era sobre como começar uma legião do zero, mas algumas lhe vieram facilmente assim que pensou nos problemas práticos de fazer um grupo grande se movimentar e responder às ordens. A preocupação que não o abandonava era que um dos veteranos percebesse que ele nunca tinha comandado uma infantaria. Franziu ainda mais a testa. Teria de blefar.

Começando com o homem do canto, estabeleceu um quadrado simples, trabalhando as figuras na mente enquanto eles esperavam. Separou os outros em trinta fileiras numeradas, depois direcionou os homens dos cantos para assumir posições. Quando estavam prontos, Júlio gritou a ordem.

- Marcha lenta para formação de quadrado I

Foi uma coisa desigual, mas os homens se moveram com concentração solene até pararem de novo em silêncio.

- Agora olhem em volta, senhores. Quero um veterano perto de um jovem sempre que possível. Vamos misturar velocidade com experiência. Movam-se!

De novo eles trocaram de posições, com o ruído dos pés se arrastando parecendo fantasmagórico sem a conversa para acompanhar. Júlio viu que seus homens estavam aceitando a liderança dos modos dos veteranos e sorriu ligeiramente enquanto se lembrava de Rênio dizendo que um homem que liderava devia ser respeitado mas frio. Não deveria sorrir. Ele poderia não ser amado. Os soldados tinham amado Mário, mas haviam lutado por ele durante anos, e Júlio não tinha tanto tempo assim.

- Temos duas cortes de quatrocentos e oitenta. Separem-se na qüinquagésima fileira e deixem uma fila entre vocês. - De novo eles se moveram, e uma longa avenida se abriu na terra poeirenta. - A primeira corte se chamará Accipiter, o falcão. A outra será Vêntulus, a brisa. A Accipiter será comandada por meu segundo, Gadítico, a Vêntulus, por mim. Digam os nomes para vocês mesmos. Quando os ouvirem na batalha, quero que reajam sem pensar. - Ele decidiu não mencionar que um era um navio mercante e que o outro estava no fundo do mar. Enxugou suor da testa. - Antes de começarmos os exercícios de formação, precisamos ter um nome.

Ele parou, pensando desesperadamente enquanto a mente ficava vazia. Os veteranos o olhavam impassíveis, talvez adivinhando sua súbita falta de confiança. O nome certo iria animá-los enquanto atacavam, e Júlio começou a entrar em pânico quando nada lhe veio, dominado pela importância de conseguir de primeira o nome absolutamente certo.

Anda!, insistiu consigo mesmo. Fale o nome e lhes dê uma identidade Seus olhos percorreram as fileiras, irritados com a indecisão. Eles eram romanos, jovens e velhos. Isso.

- Vocês são os Lobos de Roma - falou.

Sua voz soou baixa, mas chegou até o homem mais distante. Um ou dois veteranos se empertigaram mais, e Júlio soube que tinha escolhido bem.

- Agora. Corte Vêntulus, forme-se em quatro manípulos à minha direita. Accipiter, vá para a esquerda. Temos três horas antes do escurecer. Exercícios de posicionamento até vocês caírem.

Ele não resistiu a apertar um punho numa satisfação feroz enquanto os soldados se separavam facilmente. Chamou Gadítico das fileiras da Accipiter e devolveu sua saudação.

- Quero que faça todas as formações que conhece até o escurecer. Não lhes dê um momento para pensar. Eu farei o mesmo com a minha. Mude os comandantes das unidades se eles estiverem obviamente fora de forma ou para reforçar a disciplina, mas com cuidado. Quero que estejam trabalhando bem quando formos comer.

- Está pensando em marchar amanhã? - perguntou Gadítico, mantendo a voz baixa para não chegar aos homens mais próximos.

Júlio balançou a cabeça.

- Amanhã faremos jogos de batalha, a sua contra a minha. Quero que os velhos se lembrem e que os jovens se acostumem a obedecer a ordens no campo, sob pressão. Encontre-se comigo à noite e vamos trabalhar nos detalhes. Ah, Gadítico...

- Sim, senhor.

- Trabalhe bem com a sua, porque amanhã a Vêntulus vai despedaçá-la e fazer você começar de novo.

- Estou ansioso por vê-lo tentar, senhor - retrucou Gadítico com um pequeno sorriso, saudando mais uma vez antes de voltar ao seu novo posto de comando.

Ao dar a ordem de marcha dois dias depois, Júlio sentiu um jorro de orgulho que deixou os pés leves na terra estrangeira. Seu olho direito estava quase fechado, devido a um golpe de cabo de machado dado por um dos homens de Gadítico, mas ele sabia que a dor iria passar.

Um bom número de soldados das duas cortes mancavam da surra levada nos treinos de batalha, mas eles tinham se transformado de estranhos em Lobos, e Júlio sabia que seria difícil matá-los, e mais difícil ainda quebrar seu ânimo. Eles atravessariam cento e cinqüenta quilômetros de mata e planícies, e Júlio tinha certeza de que Mitrídates precisaria de um grande número de seus camponeses rebeldes para suportar o que seria lançado contra ele. Sentia como se houvesse um bom vinho em seu estômago, dando-lhe vontade de rir de empolgação.

Ao lado, Gadítico sentiu seu humor e deu um risinho, encolhendo-se quando rachou de novo a boca inchada.

- Uma coisa em relação às galeras. Você não precisa carregar tanto metal e equipamentos nas costas - reclamou em voz baixa.

Júlio deu-lhe um tapa no ombro, rindo.

- Considere-se com sorte. Eles chamavam os homens de meu tio de "mulas de Mário", por causa do peso que conseguiam carregar.

Gadítico virou-se para responder, mudando a mochila pesada de lugar para aliviar os músculos. As pernas tinham recebido o pior. Muitos dos veteranos tinham tornozelos enormes, mostrando uma força adquirida em anos de marchas. Gadítico fez um juramento silencioso de que não mandaria sua corte descansar enquanto Júlio não o fizesse ou até que um dos seus veteranos caísse. Não sabia direito o que era mais provável.

Júlio começou a aumentar o passo através das fileiras, indo até a frente. Sentia-se capaz de marchar o dia e a noite inteiros, e que os romanos às suas costas iriam segui-lo. Atrás, a cidade diminuía à distância.

 

Toda uma vida lutando em terras estrangeiras não contribuía para a criação de homens frouxos, refletiu Júlio enquanto marchava perto do fim do segundo dia, meio cegado pelo pó e o suor. Se os veteranos tivessem relaxado durante a aposentadoria, ele duvidava de que pudessem acompanhar o passo ansioso dos jovens. Parecia que o trabalho duro de limpar a terra para plantar tinha-os mantido fortes, ainda que alguns parecessem feitos de tendões e pele debaixo da velha armadura. As túnicas de couro estavam rachadas e quebradiças depois de tanto tempo em baús, mas as tiras e placas de ferro das armaduras luziam de óleo e polimento. Eles podiam se dizer agricultores, mas a velocidade com que haviam atendido às convocações mostrava sua verdadeira natureza. Tinham sido os matadores mais disciplinados do mundo, e cada passo da longa marcha trazia de volta algo do antigo fogo. Isso aparecia na postura e nos olhos, à medida que o entusiasmo pela guerra era reacendido. Eram homens para quem a aposentadoria representava a morte, que se sentiam mais vivos na camaradagem dos soldados, quando podiam gastar as reduzidas energias nos golpes súbitos e no terror de boca seca ao enfrentar o ataque inimigo.

Júlio carregava um velho escudo nas costas, arrancado por Quertoro de onde estava pendurado sobre a porta de alguém. Um pesado odre de água encostado nas omoplatas, gorgolejando musicalmente a cada passo, o impedia de arranhar a pele. Como os outros das galeras, ele sentia a falta de forma física, resultado dos movimentos restritos a um convés, mas seus pulmões estavam limpos e não havia traços dos ataques de tremores que o haviam atormentado desde o ferimento na cabeça. Não ousava pensar nisso. Mas ainda se preocupava com o que aconteceria com sua autoridade se eles recomeçassem. Não havia nada de privado numa marcha forçada.

Durante a maior parte do primeiro dia Júlio tinha determinado um ritmo confortável. Tinha muito poucos homens, para se arriscar a perder mais veteranos do que era inevitável, e todos chegaram ao primeiro acampamento. Júlio tinha usado os mais jovens para o serviço de sentinela e nenhum deles havia reclamado, ainda que Suetônio tivesse claramente contido um comentário antes de assumir seu posto com uma obediência carrancuda. Havia ocasiões em que Júlio ficaria feliz em mandar chicoteá-lo e deixá-lo na trilha, mas controlava o mau humor. Sabia que precisava formar laços com os homens. Laços suficientemente fortes para suportar os primeiros momentos ferozes da batalha. Eles precisavam vê-lo como ele vira Mário - um homem a quem acompanhar até o inferno.

No segundo dia Júlio caminhou junto com Gadítico, na frente das duas cortes, durante a maior parte da manhã. Tinham pouco fôlego para discutir, mas concordaram em se revezar na frente, permitindo ao outro percorrer as unidades, avaliando os pontos fracos e fortes. Para Júlio, as idas até atrás eram valiosas, e foi durante elas que começou a ver a luz da empolgação mesmo nas expressões dos homens mais fracos. Eles haviam descartado as leis mesquinhas e as restrições da vida na cidade, voltando ao mundo mais simples que tinham conhecido.

Durante quase uma hora Júlio marchara à frente de uma fileira na metade da corte Vêntulus. Um dos veteranos atraíra sua atenção, o único que não o havia encarado nos olhos. Devia ser um dos mais velhos, escondido pelo grosso dos soldados em volta, o que Júlio achou que poderia ser deliberado. Em vez de capacete, usava uma velha pele de leão que cobria toda a cabeça e terminava numa linha muito bem cortada nos ombros. Os olhos do felino morto eram buracos escuros e fundos e, como o dono, ele parecia acabado há muito tempo para ser útil. O velho marchava olhando direto em frente, os olhos franzidos para se proteger da poeira. Júlio o examinou com interesse, captando as duras linhas de tendões que se projetavam no pescoço e os nós inchados das mãos que mais pareciam porretes de ossos do que dedos. Apesar do veterano manter a boca fechada com força, era óbvio pelas bochechas fundas que havia poucos dentes no velho maxilar. Júlio imaginou que espírito poderia manter aquele ancião marchando pelos quilômetros, sempre olhando na direção de um destino que nenhum deles podia ver.

Quando o meio-dia se aproximou e Júlio estava preparado para ordenar uma parada para comer e uma hora de descanso abençoado, viu o sujeito começar a mancar com a perna esquerda e notou que o joelho tinha inchado durante o pouco tempo em que estivera com ele. Gritou a ordem de parada e os Lobos se imobilizaram em dois passos, juntos, com um estrondo.

Enquanto Quertoro pegava o equipamento de cozinha, Júlio achou o velho sentado com as costas apoiadas numa árvore mirrada. Seu rosto enrugado se retesou enquanto ele enrolava o joelho fraco com uma tira de pano, fazendo tantas camadas que mal podia dobrá-lo. Havia tirado a cabeça de leão, colocando-a cuidadosamente ao lado. Seu cabelo era ralo e grisalho, grudado na pele em fios suados.

- Qual é o seu nome? - perguntou Júlio.

O velho falou enquanto enrolava o pano, testando o movimento e grunhindo de desconforto a cada tentativa.

- A maioria me chama de Cornix, o velho corvo. Sou caçador, ponho armadilhas na floresta.

- Tenho um amigo que poderia melhorar esse seu joelho. Um curandeiro. Ele provavelmente é mais velho do que você - disse Júlio em voz baixa.

Cornix balançou a cabeça.

- Não preciso. Esse joelho me levou em muitas campanhas. Vai agüentar mais uma.

Júlio não insistiu, impressionado pela teimosia do homem. Sem dizer mais uma palavra, pegou um pouco do pão e do cozido de feijão que Quertoro havia esquentado. Seria a última refeição quente dos soldados, à medida que eles se aproximavam de Mitrídates e não podiam se arriscar a que a fumaça fosse vista. Cornix pegou a comida, agradecendo com a cabeça.

- Você é um comandante estranho - falou enquanto comia os bocados. - Me trazendo comida.

Júlio o olhou comendo, sem responder por um momento.

- Seria de imaginar que você tivesse deixado essa vida de soldado para trás. Deve fazer... o quê? Vinte anos desde que esteve numa legião?

- Mais para trinta, e você sabe disso - respondeu o velho, sorrindo para revelar um bolo de pão não mastigado. - Ainda sinto falta às vezes.

- Tem família? - Júlio ainda imaginava por que o sujeito não estava em segurança nas colinas em vez de arrebentar o resto das forças junto com os outros.

- Os filhos foram para o norte, e a mulher morreu. Agora sou eu sozinho.

Júlio se levantou e observou a figura que mastigava placidamente, olhando-o se encolher enquanto flexionava o joelho enrolado. O olhar de Júlio foi até onde Cornix tinha posto o escudo e a espada, encostados numa árvore, e o velho seguiu seu olhar, optando por responder à pergunta não verbalizada.

- Eu ainda consigo usá-la. Não se preocupe.

- E vai precisar. Dizem que Mitrídates tem um grande exército. Cornix fungou desdenhoso.

- sempre dizem isso. - Ele terminou de comer um bocado do cozido e tomou um grande gole de seu odre. - Então, vai me perguntar?

- Perguntar o quê?

- Dava para ver que isso estava comendo você por dentro, durante todo o tempo em que marchava perto de mim. O que um homem da minha idade faz indo para a guerra? Era isso, não era? Acho que estava imaginando se eu ao menos podia levantar minha espada.

- Isso me passou pela cabeça - disse Júlio, rindo e respondendo ao brilho de humor nos olhos escuros.

Cornix riu com ele, uma longa série de sons chiados e duros. Depois ficou quieto e olhou direto para o jovem e alto comandante que tinha toda a confiança da juventude e toda a vida pela frente.

- Só para pagar minhas dívidas, garoto. Aquela velha cidade me deu muito mais do que eu devolvi. Acho que esta última vai ajustar as contas no final.

Ele piscou enquanto terminava de falar, e Júlio sorriu levemente, percebendo de súbito que Cornix tinha vindo com ele para morrer, talvez preferindo um fim rápido a uma agonia longa em alguma desolada cabana de caça. Imaginou quantos dos outros queriam jogar a vida fora com o resto da coragem, em vez de esperar uma morte que espreitava à noite. Júlio estremeceu ligeiramente enquanto voltava até as fogueiras, ainda que o dia não estivesse frio.

Não havia como ter certeza de onde Mitrídates acampava com seu exército irregular. Os informes que Júlio recebera de sobreviventes romanos deixados para trás podiam estar equivocados ou o rei grego poderia ter se afastado muitos quilômetros enquanto os Lobos marchavam para a área. A maior preocupação era que os batedores de cada uma das forças esbarrassem nos da outra e elas fossem obrigadas a agir antes de Júlio estar preparado. Seus batedores entendiam que a vida de todos dependia deles não serem vistos, e Júlio mandava os mais rápidos e em melhor forma viajar quilômetros procurando novos sinais do inimigo, enquanto o grosso dos Lobos se escondia nos arbustos. Era uma situação frustrante. Proibidos de usar fogo e incapazes de caçar em áreas amplas, estavam com frio e úmidos a cada noite, e mal se aqueciam com o sol débil que vinha de dia por entre as árvores.

Depois de quatro dias de inatividade Júlio estava praticamente pronto para ordenar que os homens fossem para campo aberto e assumir as conseqüências. Todos os seus batedores, menos três, tinham passado de volta pela linha externa de guardas e estavam comendo comida fria com os outros, num silêncio sofrido.

Júlio se irritava esperando os últimos três. Sabia que estavam na área certa, tendo achado uma centúria romana morta, sem armas e armaduras, a apenas oito quilômetros a leste, apanhada desprevenida enquanto guardava um forte solitário. Os corpos pareciam dignos de pena, na morte, e nenhuma palavra que Júlio pudesse ter dito teria instigado tanto a determinação de seus homens.

Os batedores chegaram juntos, pisando as folhas úmidas no passo de corrida lenta que usavam para cobrir quilômetros sem descansar. Ignorando o cozido frio que os esperava, foram direto a Júlio, com o rosto cansado mas cheio de empolgação. Todos tinham ficado fora durante os quatro dias, e Júlio soube imediatamente que, por fim, tinham achado o inimigo.

- Onde eles estão? - perguntou levantando-se num instante.

- A cinqüenta quilômetros a leste - respondeu um, ansioso por dar a notícia. - É um acampamento pesado. Parece que estão se preparando para se defender das legiões que vêm de Orico. Eles se entocaram num ponto estreito entre duas encostas íngremes.

O soldado parou para respirar e um dos outros continuou com o relato.

- Eles encheram as encostas de espetos e também o chão a oeste. Estavam com uma excelente fileira de batedores e guardas, de modo que não pudemos chegar muito perto, mas parecia suficientemente boa para parar uma cavalaria. Vimos arqueiros treinando e acho que vi o próprio Mitrídates. Havia um homem grande dando ordens nas unidades. Ele parecia no comando.

- Quantos homens havia? - perguntou Júlio rapidamente, querendo esse detalhe mais do que todo o resto.

Os batedores se entreolharam, e então o primeiro falou de novo:

- Achamos que uns dez mil, numa avaliação aproximada. Nenhum de nós pôde chegar suficientemente perto para ter certeza, mas o vale inteiro entre os morros estava coberto por tendas de couro, umas mil. Pensamos em oito ou dez homens para cada...

Os outros dois assentiram, observando Júlio para ver como ele recebia a notícia. Júlio manteve o rosto cuidadosamente vazio, ainda que estivesse desapontado. Não era de espantar que Mitrídates se sentisse confiante o suficiente para enfrentar os legionários que vinham para ele. Antes o Senado mandara apenas Sila, contra uma rebelião menor. Se mandasse uma legião de novo, Mitrídates poderia muito bem vencer, ganhando mais um ano antes que os senadores recebessem a notícia e trouxessem cada homem disponível nos outros territórios. Mesmo assim poderiam relutar em deixar o resto das terras romanas expostas. Sem dúvida, os senadores não ousariam perder a Grécia. Cada cidade sob domínio romano que se escondesse do rei atrás de muralhas altas poderia ser destruída antes que o Senado finalmente reunisse uma força esmagadora. Os rios ficariam vermelhos antes que o resto de Roma fosse separado das terras de Mitrídates, e se ele pudesse unir todas as cidades isso significaria guerra por uma geração.

Júlio dispensou os batedores para pegarem comida e terem um descanso merecido. Seria um descanso pequeno, ele sabia.

Gadítico veio para o seu lado, as sobrancelhas levantadas com interesse enquanto os batedores saíam.

- Nós o achamos - confirmou Júlio. - Dez mil homens, na maior estimativa. Estou pensando em percorrer dezesseis quilômetros esta noite e amanhã os trinta e poucos que restarem, quando escurecer. Nossos arqueiros vão derrubar as sentinelas e atacaremos a força principal antes do amanhecer.

Gadítico ficou preocupado.

- Os veteranos estarão praticamente exaustos se forçá-los tanto assim no escuro. Poderíamos ser trucidados.

- Eles estão em muito melhor forma do que quando saíram da cidade. Será difícil, e sem dúvida perderemos alguns, mas temos a surpresa. E eles marcharam durante a vida inteira. Quero que você organize uma retirada rápida depois do primeiro ataque. Não quero que eles pensem numa luta de morte contra tantos inimigos. Fale para eles como sendo um golpe rápido: ir direto, matar o máximo possível e cair fora. Chegaremos o mais longe possível antes do alvorecer e... Bem, então verei em que forma estamos.

Ele ergueu os olhos para o céu, através dos troncos cheios de musgo.

- Não falta muito para escurecer, Gadi. Deixe seus homens prontos para andar. Vou pará-los o mais perto possível para amanhã à noite, mas não devemos ser vistos. Vamos trabalhar as táticas quando estivermos mais próximos. Não há sentido em planejar detalhes até que eu veja como eles se organizaram. Não precisamos derrotá-los, só forçá-los a levantar acampamento e ir para oeste, na direção das legiões que vêm do litoral.

- Se elas estiverem vindo - respondeu Gadítico em voz baixa.

- Estarão. Não importa o que aconteceu depois da morte de Sila, o Senado não pode se dar ao luxo de perder a Grécia sem luta. Forme as fileiras, Gadi.

Gadítico fez uma saudação, com as feições se suavizando. Tinha consciência de que qualquer ataque seria arriscado contra um inimigo tão grande, mas pensou que, considerando os homens disponíveis, o assalto noturno que Júlio tinha sugerido era a melhor opção. Além disso, Mitrídates tinha juntado um exército com pessoas comuns, sem treino, que estavam para enfrentar uma força que incluía alguns dos lutadores mais experientes ainda vivos. Contra dez mil isso não era uma grande vantagem, mas faria diferença.

Enquanto dava à corte Accipiter a ordem para levantar acampamento, observou como os jovens e os velhos trabalhavam em comparsa, juntando-se rápida e silenciosamente em formação frouxa até saírem da mata. Realmente eram lobos, alguns deles.

 

 

                                                                       CONTINUA

 

 

Metrídates perdera seus guardas de perímetro e ainda não sabia. Júlio tinha observado o círculo externo durante quase uma hora, sorrindo finalmente ao ver o sistema simples que o rei grego usara. Cada um dos seus guardas ficava ao lado de uma tocha acesa em cima de um mastro de madeira. A intervalos irregulares eles a retiravam e balançavam acima da cabeça, respondidos pelo círculo interno e os outros espaçados em volta.

Mitrídates podia ter sido rei, mas não era um tático, percebeu Júlio. Os Lobos tinham rompido a defesa com pares de arqueiros, um para derrubar a sentinela assim que ela tivesse sinalizado e o outro para assumir seu lugar. Isso foi feito rapidamente, e eles puderam chegar até o círculo interno. Esses homens ficavam mais próximos uns dos outros, e substituí-los levou quase uma hora. Júlio tinha insistido na cautela, mas até ele estava ficando tenso enquanto o tempo passava à espera de que o último grego fizesse o sinal, sem perceber que apenas romanos podiam responder ao seu gesto.

 

 

 

 

Caberá soltou a última flecha silenciosa e o soldado inimigo caiu embolado na sombra, sem emitir um som. Instantes depois a tocha iluminou outra figura escura que ficou parada de pé, calmamente, como se tudo estivesse bem. Não houve alarme, e Júlio apertou o punho, empolgado.

O acampamento ao pé das colinas era iluminado por tochas iguais às sentinelas. Vista de longe, a noite escura de inverno era rompida por um mar de pontos dourados, olhos que não piscavam e espiavam os romanos que aguardavam o sinal de Júlio. Para o jovem comandante, o mundo inteiro parecia estar dependendo de sua palavra. Ele se aproximou de sua falsa sentinela mais próxima e assentiu para Caberá, que acendeu uma flecha encharcada de óleo, usando a tocha, e a disparou rapidamente enquanto as chamas se espalhavam para os seus dedos.

Gadítico viu a tira de fogo saltar para cima e apontou a espada para o acampamento à frente. Seus homens se moveram sem um único grito de batalha. Correram num silêncio fantasmagórico em direção aos poços de luz que marcavam o acampamento, convergindo com a Vêntulus de dois lados, para causar o máximo de pânico e confusão.

O exército grego tinha-se recolhido com a noite, dependendo dos distantes círculos de sentinelas para avisar sobre algum ataque. A primeira coisa que muitos deles souberam sobre o perigo foi quando suas tendas de couro foram rasgadas e espadas invisíveis golpearam seus corpos adormecidos, matando dezenas nos primeiros segundos. Gritos soaram e o acampamento adormecido começou a acordar para pegar em armas.

- Lobos! - gritou Júlio, achando que o tempo de silêncio havia terminado.

A empolgação varreu-o enquanto corria com seus homens pelo acampamento, matando qualquer um que...

 

 

                                                                                                    

 

                                         

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