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A NOITE DE SÃO BARTOLOMEU / J. W. Rochester
A NOITE DE SÃO BARTOLOMEU / J. W. Rochester

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

 

O INÍCIO DAS LUTAS RELIGIOSAS

Henrique de Navarra é também chamado de "Bearnais", o bearnês. Sua avó, Margarida d'Angoulême, era uma mulher superior, jovial. Escreveu um livro que teve muito sucesso na época, "Heptameron", contos no estilo de Boccacio, deleitando milhões de leitores até os dias atuais. Gentil, ardorosa, culta, ela exerceu uma benéfica influência em seu irmão, Francisco I. Mas se casou com o Rei de Navarra e trocou o esplendor da Corte e a companhia de seu dinâmico irmão pela longínqua cidade de Bearn, distante do grande mundo e próxima dos Pirineus, cercada de lobos e bandidos. Ali nasceu seu neto.

Seu castelo de Nérac se tornou, naquele tempo, o refúgio daqueles que a Sorbonne ameaçava.

A Sorbonne, fundada por Roberto de Sorbon em 1257, tornou-se o local das deliberações gerais da Faculdade de Teologia, que começou a ser conhecida desde então com o nome de Sorbonne. Atingiu um grande poder.

Freqüentemente era consultada para arbitrar contendas e cada vez mais se intrometia em disputas onde não era chamada. Considerou-se sua biblioteca como a Oitava Maravilha e seus métodos de ensino e oráculos como inigualáveis. Seus veredictos não eram legais, mas qual Juiz se atreveria a repudiá-los? Até 1520, por exemplo, o caso "Lutero" constituía uma questiúncula eclesiástica. Coube à Sorbonne denunciá-lo como herético, falso profeta e Anti-Cristo. Admitindo que o estudo dos clássicos despertava a heresia, a Sorbonne baniu de seu rígido ambiente o ensino do grego. O indivíduo que procurasse aprender o hebreu e ler a Bíblia no original, se expunha a morrer queimado!

Sob ponto de vistas ortodoxo, só os padres regulares podiam analisar os escritos antigos e as novas contribuições da civilização.

No período de Francisco I, a Sorbonne conseguiu sobreviver. Só que ele, o Rei, resolveu fundar o Colégio de França, onde se ensinava livremente o grego, o hebreu e as Ciências Filosóficas, Médicas e Matemáticas. Este Rei tinha tendências protestantes.

Mas, voltemos a Margarida, sua irmã mais velha. Ela não se confessava publicamente protestante e, como agradava ao Rei a maneira elevada como ela encarava a vida, era deixada a fazer o que bem quisesse. E ela abrigava a todos os que não tinham garantias na França; mesmo Calvino mereceu seu amparo. ‘

Em seus últimos escritos, Margarida pretendeu reconciliar a Filosofia Clássica com os ensinamentos do Cristianismo. Mas... o Rei recuava passo a passo em direção à Igreja. Primeiro convidava para sua Corte pregadores de tendência Luterana e depois, sem motivo, os afastava.

Um deles, dos mais capazes expoentes de Lutero na França, pagou com o maior sacrifício os expedientes políticos do Rei. Luis de Berquin era o principal favorito de Francisco I. No início a Sorbonne o prendeu, acusando-o de herético, mas teve de soltá-lo devido à intervenção da Corte.

Quando o próprio Rei se tornou prisioneiro de guerra em Madrid, pelo insucesso da Batalha de Pavia, Berquin foi encarcerado pela segunda vez. Só o regresso de Francisco o salvou de ser queimado vivo. Já na casa dos cinqüenta anos, inofensivo e temente a Deus, os amigos tentaram convencer Berquin de aproveitar a oportunidade e fugir, mas não conseguiram. O pregador desafiou os síndicos da Sorbonne para um debate público e declarou que todos, não só os clérigos, deveriam ler a Bíblia.

Esta atitude selou o seu destino.

O Rei, no declínio de sua estrela, ameaçado pela Espanha, que detinha seus filhos como reféns, cercado de vassalos ligados aos seus inimigos, não ousava impedir as perseguições papais. Abandonou seu protegido e Berquin foi queimado em 17 de abril de 1529. Desde essa ocasião o Rei deixou de oferecer resistência. Jamais fora um homem de fortes convicções e capitulou sob as ameaças propaladas pela Sorbonne.

Cartazes atacando ostensivamente os dogmas da Igreja começaram a aparecer nas portas das igrejas, nas paredes das casas de Paris, Rouen, Meaux. A estátua milagrosa de Nossa Senhora tinha sido reduzida a pedaços que jaziam nas sarjetas. O povo se agitou com o agouro e a Sorbonne propagou que os infiéis "desconhecidos" freqüentavam as Cortes e que defendiam as novas idéias.

Francisco, preocupado, correu a Paris para acalmar a população excitada e encontrou os atrevidos cartazes pregados não só nas paredes das igrejas, mas também no Louvre, bairro real.

As maquinações se forjaram lentamente culminando com a morte, na fogueira, de 24 pessoas.

Em 19 de janeiro de 1535 se comemoraram as execuções, onde o Rei foi obrigado a, publicamente, se declarar católico. A Sorbonne tinha vencido, e a Igreja passou a abusar.

No seu primeiro ano de reinado (1547), Henrique II reuniu uma corte especial para combater os luteranos que passaram a ser rudemente tratados. Muitos fugiram.

Sob a regência de Francisco I, em todas as cidades, tinha havido adesão individual àquelas novas idéias. Agora os indivíduos se uniam. Para que seus decretos assumissem força legal, promoviam reuniões regulares de delegados. Em 1558 existiam aproximadamente, na França, cerca de 400.000 protestantes.

 

 

O CARNEIRO DE OURO

Em um dia nublado do mês de setembro de 1558, dois cavaleiros seguiam por um longo caminho. Vinham do sul da França e se dirigiam a Paris. Um deles, pelo visto um criado, conduzia o cavalo sobrecarregado. De estatura baixa e encorpado, rosto bronzeado, nariz adunco, olhos negros, lábios grossos e cabelos encaracolados; lembrava um cigano. A maliciosa expressão zombeteira a brilhar no seu olhar rápido não negava nem um pouco as qualidades desta raça.

A alguns passos adiante do criado seguia seu senhor. Um rapaz alto e forte, de uns vinte anos de idade; seu rosto de traços perfeitos era emoldurado pelos espessos cabelos escuros e encaracolados e pela barba curta da mesma cor. Os grandes olhos cinzentos irradiavam uma energia sombria. O nariz reto e as vivas narinas inquietas revelavam um temperamento agitado. A característica mais marcante de toda sua figura era a sua boca e seus lábios finos que traziam uma expressão de orgulho gélido e de uma crueldade de ferro.

Ele vestia uma túnica e consigo carregava um punhal e uma espada, os quais ficavam nitidamente à vista. A poeira densa que cobria a sua capa e as roupas do criado indicavam como havia sido longo o caminho.

Há mais de uma hora serpenteavam pelo bosque espesso. Os ramos das árvores seculares formavam uma abobada tão fechada sobre as cabeças dos caminhantes que mal deixavam entrar opaca luz. A noite se aproximava e a escuridão dentro do bosque aumentava a cada minuto. De repente o cavaleiro que seguia à frente parou o cavalo e voltando-se para trás gritou em tom de impaciência:

— Ei, Henrique! Acho que para zombarem de você indicaram um caminho errado. Prosseguiremos de dia. Agora devemos tratar de encontrar o hotel antes que escureça. Lá poderemos nos refazer e movimentar nossos membros adormecidos. Derramo o sangue de Cristo[1] e morro de fome; mas o fim desta floresta nunca chega...

O criado, ao olhar para o espesso bosque e o caminho escuro, esporeou o cavalo e num instante se colocou ao lado do seu senhor.

— Mais um pouco de paciência, Sr. Briand! Eu já superei um caminho difícil mais de uma vez. Veja lá! É a cruz de pedra da qual falou o dono da taberna onde nós almoçamos.

No máximo dentro de uma hora e meia estaremos no hotel "Carneiro de Ouro". Falaram-me que a cozinha de lá é ótima.

— Só espero que os outros viajantes não tenham acabado com tudo, completou dando risada Henrique.

Briand, assim se chamava o rapaz, disse em tom cansado:

— Então vamos lá! Torçamos para que o "Carneiro de Ouro" não traia nossas esperanças. Em todo caso temos que nos apressar para não ficarmos no meio da escuridão diabólica. Mantenha-se próximo a mim.

Convencido de que as longas pistolas podiam ser facilmente sacadas do coldre, em caso de necessidade, ele esporeou o cavalo e se pôs em marcha rápida. Como havia dito Henrique, não passou uma hora e meia e eles chegaram a uma clareira no centro da qual se erguia uma casa cercada por um sólido tabique[2]. Aqui era bem claro e Briand pôde ver uma tabuleta na qual estava desenhado um carneiro gordo e amarelo como um canário. Ele aparecia deitado numa grama que mais se assemelhava a uma salada. Dentro da casa estava escuro. Somente de uma janela lateral saia um largo raio de luz.

Ante a ruidosa chegada de Henrique, receberam-nos prontamente o taberneiro e o rapaz que trabalhava na estrebaria, apressando-se ambos em acomodar os hóspedes.

Briand desceu do cavalo e depois de ter ordenado a Henrique que se aproximasse dele entrou com o dono num quarto vizinho à cozinha. Aí havia algumas mesas rodeadas de banquinhos de madeira. Pela porta aberta se via a lareira, cujo fogo ardia vivamente. A uma das mesas se sentou um sujeito de uns trinta anos de idade, vestido como um gentil homem[3].No momento encontrava-se ocupado em consumir a janta farta que estava à sua frente. Sem deixar de tirar o rosto de cima do prato, esse homem de cara pouco simpática fitou Briand, que jogou no banco a capa e o chapéu, ordenando ao taberneiro que preparasse rapidamente um bom prato de comida para ele e para seu criado.

Enquanto o jantar não era servido, Briand andava pelo quarto para desenferrujar as pernas e os braços adormecidos; às vezes seu olhar invejoso e impaciente se voltava para a caça frita, o patê e os grandes ovos com presunto que estavam diante dos primeiros viajantes. Realmente o rapaz estava famélico. O cheiro do cozido excitava mais o seu apetite. Por isso qual não foi o seu agradável espanto quando o desconhecido gritou animadamente:

— Vejo sua impaciência e o compreendo inteiramente. Quando se caminhou muito e o estômago está vazio, não é nada bom se ver uma outra pessoa comendo. Por isso, senhor, eu o convido a dividir comigo minha janta, desde que você não se importe em sentar à minha mesa.

— Nós lhe somos muitíssimo reconhecidos. Com gratidão profunda aceito seu convite, respondeu Briand, aproximando-se do desconhecido. Eu sou o Conde de Saurmont!

— E eu Carlos Henrique, Barão de Mailor. Sente-se, Conde. Se isto que há aqui na mesa não é suficiente para satisfazer seu apetite, a sua janta nos proporcionará o reforço indispensável.

Logo os dois passaram a conversar como velhos amigos. Resolveram, inclusive, continuar o caminho juntos, visto que ambos se dirigiam a Paris.

Após o jantar o Barão propôs jogar dados, já que era muito cedo, e estava decidido que só prosseguiriam viagem no dia seguinte. Briand concordou com prazer.

Rapidamente os novos conhecidos se desafiavam durante as partidas iniciais. Ambos eram maus jogadores. Suas faces ávidas e cobiçosas, as expressões ardentes provavam que eles procuravam mais a vitória do que passar o tempo.

No começo vencia Saurmont. Depois a sorte mudou de lado e passou a ser favorável ao Barão. As moedas de ouro e os dobrões espanhóis do pesado cabaz[4] de Briand pouco a pouco passaram às mãos do Barão, cujo rosto mostrava satisfação pela cobiça saciada.

A paixão ardente pelo jogo e a forte vontade de devolver sua derrota fizeram o Conde se excitar e jogar até a última moeda, depois do que colocou a mão trêmula na testa.

Enquanto isto Henrique calmamente jantava a se fartar na cozinha. Ao ver que seu senhor começou a jogar, se aproximou dele e, a uma distancia respeitável, passou a observar o desenrolar do jogo.

Com a respiração pesada Saurmont se encostou na parede. Cegado pela paixão fatal, terminou por perder sua última moeda. Agora ele não tinha com o que ir a Paris.

Trêmulo de ódio, olhou para o Barão. Este contou fleumaticamente o dinheiro, reunindo-o àquele que ganhara. Juntou tudo e colocou no pesado cabaz que antes estava sobre a mesa.

— Sr. Conde, furtaram-no! Com meus próprios olhos vi como este Senhor trapaceou, disse nesse momento Henrique, aproximando-se da mesa e dirigindo ao Barão um olhar provocador de desafio.

Este ficou rubro e se levantou da mesa. Pegando o criado pelo pescoço, ele gritou com a voz rouca pela ira:

— Mentiroso! Cachorro vagabundo! O que se atreve a dizer?!

Enquanto isso Briand se endireitava e, encarando o adversário, gritou:

— Você é quem é mentiroso! Cego, insensato, como é que não compreendi logo o motivo de sorte tão grande? Devolva o ouro que você me roubou, miserável! bramiu, perdendo totalmente o auto controle e puxando a espada.

O Barão largou Henrique e desembainhou sua espada. Os dois oponentes com espuma na boca se lançaram um contra o outro. Ao soar o barulho dos bancos sendo atirados e das espadas se cruzando, apareceram na porta da cozinha, pálidos e assustados, o taberneiro e seu empregado. No entanto eles estavam bem acostumados aos duelos, costume violento da época. Pelos motivos mais vulgares os homens lutavam entre si. Assim, em silêncio, esperavam o resultado da batalha furiosa.

O Barão duelava com a destreza e o sangue frio de um espadachim profissional; por outro lado a raiva duplicava a força e a agilidade de Briand. Aparando a espada traiçoeira do adversário, o Conde aplicou-lhe um golpe tão violento no pescoço que a espada o atravessou de lado a lado.

Mailor caiu de joelhos. Um rio de sangue jorrava de sua boca. Depois rolou no chão, contorcendo-se e soltou um gemido. Em um minuto estendeu o braço, se esticou, e não mais se moveu.

— É o fim! O miserável morreu! Disse Henrique, inclinando-se sobre o cadáver.

Saurmont virou-se respirando ofegante. Quando ele enxugou a lâmina ensangüentada de sua espada, seu olhar cruel mirou o taberneiro e o seu criado que a tudo assistiam assustados.

— Por que ficam aí parados de boca aberta? Disse em tom grave; é melhor tratarem de esconder o corpo deste miserável desprezível que me roubou no jogo. Eu o castiguei merecidamente. Peguem uma lanterna e uma pá e o enterrem no bosque. Tomem para estimulá-los, acrescentou lançando, algumas moedas aos dois. Quando tudo estiver preparado, avisem-me.

Tão logo eles sumiram no matagal, Henrique murmurou, dando uma risada baixa:

— Parece-me, M. Briand, que você é o herdeiro legítimo deste maldito, castigado devido à sua jactância. Por isso, esconderei em sua mala o saco que pelo visto está bem recheado de moedas.

Sem esperar a resposta, ele escondeu esse pertence. A seguir, logo após cair de joelhos ao lado do cadáver, Henrique, com uma destreza assombrosa, revistou-o e tirou o "agrafe[5]" e o anel.

Mas quando ele ofereceu estes objetos ao Conde, este fez um gesto brusco de negativa.

— Não, fique com isso para você.

O Conde apanhou somente o rolo de pergaminhos que estavam escondidos no peito do defunto.

Enquanto Briand o folheava atentamente, Henrique, com a ajuda de uma chave chata, abriu a mala de Mailor que ainda se encontrava no canto e tirou de lá um saco de moedas de ouro, um traje completo e alguns pequenos objetos. Tudo isso ele escondeu no seu saco, recolocando a chave no lugar.

— Este foi realmente o Barão de Mailor. Todos os pergaminhos confirmam este nome e título - disse Saurmont guardando os papéis.

— Nesse caso esconda estes documentos, M. Briand. O finado Barão não sentirá mais a falta deles, e, para os vivos, estes papéis podem ser úteis, disse Henrique, com a intimidade familiar com que sempre se dirigia ao seu patrão, o qual não se ofendia absolutamente com isso.

Quando o taberneiro apareceu, informando que já estava tudo preparado, não havia no quarto um vestígio sequer do assalto recém-praticado. O corpo do Barão foi enrolado numa capa e Henrique, obedecendo às ordens do Conde, ajudou a carregá-lo. Briand pegou a tocha e iluminou o caminho do cortejo fúnebre que se dirigiu a uma pequena clareira na floresta, onde, sob a copa de grandes árvores, fora aberta a sepultura. Os três homens colocaram rapidamente o corpo e o sepultaram. Somente um pequeno cortejo falava do Barão Mailor.

— Mas ele não desapareceu pura e simplesmente do hotel! A alma das pessoas que sofreram uma morte trágica não têm sossego no túmulo e vagam pelo lugar onde pereceram, disse o taberneiro tomado pelo terror trêmulo e supersticioso. Este senhor morreu sem confissão e foi enterrado aqui como um cachorro. Como é possível que não queira se vingar de mim? Acrescentou ele, enquanto o estribeira rapidamente se persignava.

— Faça uma oração pela tranqüilidade de sua alma. Eu também acrescentarei uma "Ave Maria" e o defunto será muito mal-agradecido se depois disso começar a manchar com sua presença o seu hotel, respondeu Saurmont com um sorriso zombeteiro.

Os outros não compreenderam a ironia do Conde, mas o conselho lhes pareceu bom. Eles se prostraram de joelhos e com as vozes levemente tremidas, oraram com veneração pela alma do morto.

Na volta ao hotel, Briand deu ao taberneiro, pelo seu trabalho e pelo susto desagradável que passou, algumas moedas de ouro, dizendo logo em seguida:

— Se vocês querem ouvir o meu conselho, esqueçam que este viajante passou algum dia por sua soleira. Deus sabe que conhecidos ou parentes este homem tinha, e que aborrecimentos lhes poderia causar o que ocorreu. Será bem prudente silenciar e esquecer tudo. Tomem para si a mala, o cavalo e as armas do defunto e que tudo isto fique assim.

Depois deste discurso sensato, o Conde subiu ao quarto que lhe fora preparado. Henrique se deitou junto à porta e logo os dois mergulharam em sono profundo.

Aproveitamos o sono deles para levar ao conhecimento dos leitores o passado do herói da nossa história.

Eustáquio Briand, Conde de Saurmont, era o remanescente de uma família antiga e conhecida, possuidora de grandes propriedades em Lê Mans e Anjou. As guerras e os gostos demasiadamente pródigos deles lesaram esta enorme fortuna, tanto que o pai de Briand, Conde Luís de Saurmont completou o saque. Belo e brilhante cavaleiro, generoso como um príncipe, afamado pelos seus duelos e suas aventuras amorosas, Luís Eustáquio teve um importante papel no palácio de Francisco

Quase ao final do reinado deste soberano, durante uma viagem pela Espanha, Luís se tornou amigo de um senhor espanhol, Conde Guevara. Casou-se com sua filha, Eufemia, e retornou a Paris mais rico do que antes, já que a esposa lhe trouxe de dote uma sólida fortuna.

A nova Condessa de Saurmont era bondosa, mas frágil e doentia. A jovem mulher adorava seu marido, mas a vida do Conde e suas aventuras dispendiosas causaram-lhe profundo desgosto. O nascimento de Briand terminou por arruinar sua saúde.

Depois de alguns anos de existência tão agitada, o Conde terminou arruinado de novo. Abandonou o palácio e se retirou para uma de suas propriedades. Entretanto a vida da aldeia era insuportável para um gentil homem temperamental e ele encontrou meios de contrair novas dívidas e fazer novas loucuras. Quando o Conde foi morto num duelo por seu vizinho, cuja mulher fora seduzida por ele, deixou à esposa e filho apenas aquele castelo e algumas propriedades. Este dito castelo estava a tal ponto arruinado que para mais nada serviu. Quanto às mansões, todos os objetos de valor que outrora guardavam já haviam sido vendidos. Doente de corpo e alma, Eufemia deixou a França e partiu com Briand para a casa do irmão. Briand tinha apenas dez anos. Passados alguns meses sua mãe faleceu. O tio o adotou e passou a criá-lo ao lado dos[6] seus filhos: oito moças e um menino dois anos mais moço que Briand.

O Conde Guevara e sua esposa sempre demonstraram amor e interesse sinceros para com o órfão. Em tudo colocavam-no em pé de igualdade com seus filhos. Com o passar do tempo Briand revelou ter um caráter completamente diferente do pai.

Tudo aquilo que Luís tinha de generoso e pródigo, Briand tinha de incredulidade, frieza e introspecção. Do pai ele herdou somente um traço - sua paixão pelo jogo.

Sob seu domínio, ele esquecia a ponderação e o bom senso, deixando-se arrastar pela situação até o momento em que uma forte emoção se apossava dele. O moço cresceu calado e taciturno, procurando a solidão da leitura. Briand era a tal ponto reservado que ninguém percebera a enorme inveja que lhe causava seu primo e a fortuna dele. Ninguém suspeitava quanto rancor e crueldade acumulara na alma, e que persistência e natureza apaixonada estavam escondidas sob o rosto tranqüilo e distraído daquele jovem calado, sempre trajado de preto.

Briand, apesar da inveja contida, se relacionava bem com seu primo Pedro e sua prima Mercedes. Para grande surpresa “das pessoas do castelo, o jovem Conde fez sólida amizade com um jovenzinho que há muito vivia com os filhos do Conde. Ele era criado e companheiro de brincadeiras. Era Henrique, pequeno cigano que fora recolhido pela Condessa. Boa e sensível por natureza, a Condessa foi tocada pelo triste e incerto destino da jovem cigana que ela encontrou perto do castelo, morrendo de fome.

Ou se perdeu de sua gente, ou foi abandonada por eles. Nunca se soube. Triste e calada a cigana sofreu algumas semanas. Somente ante a morte a moça rompeu o silêncio e suplicou à Condessa que não abandonasse seu filho, que na ocasião contava quatro anos. A Condessa prometeu criá-lo e manteve a palavra. Batizou Henrique e educou-o no castelo, apesar do menino se revelar um cigano indomável. A educação lhe deu somente polimento externo por dentro ele continuava a ser integralmente o cigano astuto e malicioso.

O menino se prendeu fortemente a Briand, atendendo-o antes que a ninguém. Quando Saurmont completou vinte anos, Henrique passou a ocupar junto ao jovem a posição de cavalariço e homem de confiança.

Há mais de dois anos do início de nossa história falecera a Condessa de Guevara. Profundamente abatido, o Conde se recolheu a seu castelo e passou a se dedicar inteiramente à educação dos filhos. Ao perceber que sua filha sentia por Briand uma atração tão forte que esperava apenas uma ocasião favorável para se transformar em verdadeiro amor, ele pensou em casá-la com o sobrinho. Unicamente não lhe passou pela cabeça que Saurmont poderia não gostar de tal plano.

Entrementes, isto ficou assim mesmo. A delicada e frágil Mercedes não era nem de longe do agrado de Briand, que sob a aparência taciturna, escondia uma natureza completamente entregue às paixões humanas. É claro que se a prima fosse a única herdeira de Don Rodrigo, não recusaria em casar-se com ela. Mas o dote de Mercedes, ainda que bem grande, lhe pareceu demasiadamente pequeno para a venda de si mesmo. Aliás esse dinheiro um dia iria parar em suas mãos. Era necessário apenas não desobedecer o tio e esperar que o dinheiro lhe chegasse às mãos.

Com a energia e o espírito decisivo que lhe eram peculiares, ele comunicou a Don Rodrigo que desejava ir à França visitar suas propriedades e tentar regularizar a situação das mesmas. Além disso, se propôs apresentar-se ao Rei da França. Depois disso, quando voltasse, se o tio permitisse, ele ocuparia o lugar na família que o adotou, e que ele considerava como sua. Briand pensava realmente que um rapaz de boa origem como ele, contando com as antigas amizades de seu pai, poderia sempre ter sucesso na vida. Don Rodrigo não fez qualquer objeção.

Achou perfeitamente natural o desejo de visitar as suas propriedades que ainda não haviam sido liquidadas. Quanto a visitar o Rei em pessoa até considerava querer demais. Assim ele assentiu no desejo do sobrinho e lhe concedeu considerável soma em dinheiro. Despediram-se amigavelmente. Henrique desejou acompanhar o jovem Conde que terminou levando-o consigo por achar que o rapaz forte, astuto e divertido lhe seria simplesmente um criado útil.

A visita às propriedades pouco prazer dava a Briand. Ele estava certo de que para restabelecer o antigo prestigio do nome "de Saurmont" era necessário muito dinheiro.

Mas Briand se caracterizava pela insistência. Sabia que era um bom cavaleiro e dominava as armas magnificamente por isso acreditava no futuro. Sob estas conjecturas o deixamos a caminho de Paris. Mas de tal forma era sua paixão pelo jogo que terminou com a quantia de dobrões[7] que lhe foram dados pelo Conde Guevara.

Sem sentir o mínimo remorso pela morte de Mailor, Briand de Saurmont deixou o Hotel "Carneiro de Ouro" e continuou sua viagem a Paris. No dia seguinte, durante uma das paradas, lhe furtaram o saco com o ouro. O roubo fora feito de maneira tão sutil que Briand chegou a se perguntar se não teria sido Henrique. Mas o cigano ficou tão irritado e desgostoso, e se esforçou a tal ponto por descobrir o ladrão, que o Conde logo afastou suas suspeitas. No Hotel, lotado de hóspedes, qualquer um poderia ser suspeito.

Este acontecimento estragou o humor do jovem Conde. Seus recursos se reduziram significativamente e, preocupado, pensou que triste figura iria apresentar como um Saurmont, filho do brilhante Luís Eustáquio. Ele não queria pedir novos subsídios a Don Rodrigo, pois o velho senhor era muito cuidadoso com suas despesas. Mesmo que resolvesse lhe pedir algo, deveria esperar um bom tempo pela resposta, que, diga-se de passagem, não atingiria a quantia indispensável para que pudesse ocupar, no palácio, a posição que desejava.

Imerso nesses pensamentos desagradáveis, o Conde seguia adiante, em silêncio, quando de repente se aproximou Henrique e perguntou, com a intimidade familiar, por que estava com esse ar pensativo e se a perda do saco de ouro o havia deixado tão abalado assim.

— Não é só isso. Minha situação agora é triste e humilhante para um homem de minha origem - respondeu Briand.

Acostumado que estava desde a infância a conversar com Henrique, e vendo nele uma espécie de amigo, em breves palavras lhe expôs o que o deprimia e como seria difícil se apresentar aos velhos amigos do pai sendo um pobretão.

Depois de ouvir com atenção, Henrique refletiu e disse repentinamente:

— M. Briand! Eu gostaria de lhe dar uma idéia que talvez o livre das dificuldades.

— Diga, Henrique! Eu nunca tive tanta necessidade como agora de um bom conselho, respondeu sorrindo Briand.

— Eu quero lhe propor apresentar-se em Paris, não sob o próprio nome, mas sob o nome de Barão Mailor. Ninguém o conhece e será mais fácil orientar-se, se viver com a identidade de um palaciano desconhecido da província. Você sempre poderá se tornar Conde de Saurmont, quando considere necessário. Encontre uma explicação plausível para o fato de usar um nome alheio e não será difícil.

— E uma boa idéia. Pensarei nela, respondeu Briand.

Essa sugestão agradou de tal forma ao Conde que, ao chegar a Paris, se hospedou num hotel simples, sob nome de Barão de Mailor.

O Conde de Saurmont possuía na capital o seu próprio hotel[8]. (8) No dia posterior à chegada, Briand se dirigiu até lá. O aspecto externo do vasto edifício semidestruído, com seu pátio vazio e as janelas que ainda restavam fechadas, lhe causaram tal impressão que se apressou em ir embora. Depois passou a colher informações sobre os antigos amigos do pai.

Nessa tarefa teve vários desapontamentos. Um dos Senhores morreu; outros ocupavam altos cargos na província, e outros ainda que encontrara, o receberam muito mal, transpirando o orgulho e o luxo que os cercavam. Para se apresentar ao Rei, Briand não tinha pressa. Como Barão de Mailor não queria aparecer, já que o conhecimento com jovens de diversas procedências o fez compreender muito bem qual a diferença que havia entre eles. A idéia de aparecer pobre, ele, Conde de Saurmont, entre essa juventude rica e pródiga, era insuportável para seu orgulho.

Por isso se tornou o Barão de Mailor, contentando-se por enquanto com a discreta posição ocupada. Briand era muito jovem para não se deixar arrebatar pelos novos e diversos prazeres da capital. Além disso, ele se sentia bem em sua cidade natal, a qual lhe causava indisfarçável adoração.

 

A BARONESA D'ARMI

Talemos agora de Jacqueline, moça jovem de vinte e cinco anos, recém-viúva, que ansiava casar-se com um jovem do palácio e se tornar uma dama, assim como sua parenta, a Baronesa d'Armi.

Esta também nascera taberneira e, em relação à beleza, não podia rivalizar com a graciosa Jacqueline.

Briand, pelas suas maneiras e aparência agradou duplamente, tendo o título de "Barão" elevado ainda mais o seu prestígio. Devido a isso a taberneira dispensou a seu hóspede a mais carinhosa atenção e lhe serviu os pratos mais saborosos. Tanto assim que o rapaz não ficou insensível a tais abordagens. A viúva chegava a considerar que estava na véspera do dia em que se tornaria Baronesa.

A situação estava nesse ponto quando chegou a Baronesa d'Armi. Ela fora à província ver as propriedades do marido, como triunfalmente declarava Jacqueline. O título de Baronesa não lhe inspirava excessivo orgulho, tanto é que veio visitar sua prima no hotel.

Esta se apressava em lhe apresentar o Barão de Mailor. Dentro de sua cegueira irracional já o via como seu futuro marido.

A Senhora Lourença d'Armi à primeira vista não causou boa impressão a Briand. Ele sentiu quase aversão pela pequena mulher de trinta anos.

Ela tinha cabelos negros e espessos. Seus grandes olhos negros expressavam astúcia, e neles surgia freqüentemente uma expressão de crueldade e frieza, ao mesmo tempo, que nos lábios se congelava um sorriso adocicado.

A Baronesa estava toda enfeitada. Trajava um vestido de veludo verde e em parte dourado. De sua cabeça pendia uma touca de plumas. Vários ornatos de grande valor adornavam suas mãos e seu pescoço. No entanto, no aspecto geral, tudo isso dava a impressão de mau gosto e transmitia uma imagem de pequena burguesa pretensiosa.

Na verdade Lourença era de origem simples e passado impetuoso. Seu pai mantinha em Paris uma taberna bem simpática, porém, o rendimento principal não provinha disso, mas sim de uma casa de jogos que os freqüentadores chamavam de "Rai".

Como nas felizes residências de nossos antepassados ali se podia encontrar todo o indispensável para o entretenimento do coração e do estômago. Nas salas de jogos se podia satisfazer o gosto pelas sensações fortes e gastar o quanto fosse possível.

Por isso "Rai" sempre esteve cheia de gente rica e aventureira, portadores de títulos de nobreza, pessoas que esbanjavam ouro e jogavam dinheiro sem fazer conta de quanto.

O taberneiro educou sua filha única num convento.

Quando Lourença completou dezessete anos trouxe- a para casa, e em dois anos, ela era um dos melhores chamarizes da sala "Rai".

Moça charmosa, de maneiras provocantes, conquistou o coração de um capitão que se apaixonou de tal maneira, que se casou com ela.

Depois de alguns anos de união, perturbados por uma série de desentendimentos, o Capitão morreu duelando com um colega; o motivo do duelo ficou desconhecido e Lourença se tornou viúva com uma pequena mas sólida posição financeira.

Ela de novo vinha visitar o pai, e, como antes, se apresentava no salão de jogos.

Os admiradores já não eram tantos, uma vez que estava mais feia e engordara. Em compensação agora havia adquirido um cinismo provocador. Com uma astúcia diabólica sabia excitar a paixão pelo jogo e arrastar os descuidados até a completa ruína.

Já há mais de sete anos Lourença se encontrava viúva quando o acaso trouxe ao seu hotel um certo Barão João d'Armi. Jogador, gastador, homem sem qualquer princípio, perpetuamente necessitado de dinheiro, devido a seus gastos desordenados; este mesmo Barão permitiu que Lourença o dominasse completamente, tornando-se seu amante.

Ela o conquistou no mesmo grau em que a ele faltava o caráter. Ora tolerava as fraquezas do Barão João, as quais estudara minuciosamente; ora o importunava e atormentava.

A todo momento ele lhe pedia dinheiro, dinheiro esse que era sustentado no crédito, terminando no final das contas por fazê-lo escravo na insolvência.

Quando enviuvou, o Barão concordou prontamente em pagar suas dívidas, casando-se com Lourença. Pouco antes disso o pai dela faleceu. Deixou à filha em testamento a Casa de Jogos "Rai" e uma boa quantia de "écus"[9] de ouro. A nova Baronesa d'Armi cortou pela raiz tudo o que lembrasse sua origem humilde. Vendeu a taberna e a Casa de Jogos sem permitir que a esperança do Barão em usar esse dinheiro se concretizasse. Lourença era avarenta e compreendia bem o valor do dinheiro.

Ela sabia que a posse de ouro torna conciliáveis as pessoas sedentas por este metal encantador. Então amarrava fortemente seu porta-níqueis e não regalava d'Armi com moedas, sem motivo.

Jacqueline sentia uma espécie de admiração e respeito para com essa nobre prima, portadora de uma grandiloqüência e de um orgulho grotesco que causavam forte impressão.

Briand vendo pela primeira vez a imagem majestosa da Baronesa jactante e cheia de trejeitos, sentiu um irresistível desejo de rir.

Entretanto, numa conversa posterior, esse primeiro julgamento se desfez, já que Lourença não era desprovida de inteligência. Ela soube despertar o interesse do rapaz ao fazer a alusão à possibilidade de que, com a ajuda do marido, ele poderia travar conhecimento com pessoas úteis e agradáveis. Por fim, para grande insatisfação de Jacqueline, convidou o falso Mailor para visitá-la.

Ele aceitou o convite e uns dias depois foi à casa da Baronesa. A senhora d'Armi morava numa casa bem grande e confortável onde recebeu Briand com muita amabilidade.

Apresentou-o a alguns cavalheiros e o levou a uma elegante sala de jogos, onde a entrada era permitida somente por recomendação.

Finalmente uma noite recebeu Briand tão bem que, estando este embriagado, aconteceu algo fora do habitual. Sob a influência dos vapores do vinho ele sentiu uma súbita e fortíssima atração pela velha Baronesa que mal acabara de conhecer. O sentimento não foi apenas passageiro.

Desde esse dia o rapaz se tornou uma visita constante em casa de Lourença, que, com sua malícia inerente e perseverante, foi pouco a pouco o dominando por completo, sob o pretexto de se intrometer nos negócios dele, tendo somente uma participação maternal. Para agravar o quadro, a infeliz paixão de Briand pelo jogo o deixava em má situação. A Baronesa o repreendia e lhe passava sermões. Um dia lhe propôs se estabelecer, juntamente com Henrique, em sua casa. O moço vacilava em aceitar a proposta, mas Lourença sabia vencer sua indecisão. Briand, num momento de irritação, provocado por mais uma cena de ciúmes de Jacqueline, decidiu mudar.

Em retribuição à hospitalidade ele levou à Senhora d'Armi um belo bracelete que a mãe lhe deixara e que levava consigo para o caso de ficar sem dinheiro.

A partir desse momento a influência de Lourença sobre ele aumentou ainda mais. Com suspeitas engendradas pelo ciúme, ela seguia todos seus passos e habilmente frustrava todos os encontros com pessoas afins a ele. Para isso levava Briand aos mais variados prazeres grosseiros e lhe incentivava o gozo pelo jogo que o ia empobrecendo e o deixava completamente dependente dela.

O Barão d'Armi estava ausente. De tempos em tempos enviava cartas que sempre deixavam Lourença em prantos copiosos e intermináveis queixas.

Ela contou a Briand sua infelicidade no matrimônio, o quanto João d'Armi era esbanjador, de caráter insuportável, e como a traía e furtava a cada passo. Nesse exato momento o Barão se encontrava no exército do Duque de Guise[10]. Dali ele bombardeava a esposa com pedidos de dinheiro.

— Miserável! Esse esbanjador vai acabar comigo! De onde eu, infeliz mulher, vou tirar uma soma tão grande quanto a que ele me pede? Repetia Lourença desesperada a estalar os dedos. Se não fosse minha fraqueza e meu caráter angélico eu devia me vingar e mandar embora esse miserável de bolsos furados, esse pobretão. Tomara que estique as canelas de fome. Eu mantenho tudo com meus próprios meios, uma vez que ele arruinou o castelo de ponta a ponta.

O Conde ouvia indiferente ao desabafo. O ciúme, bem como o amor da Baronesa começaram a incomodá-lo. As discussões passaram a ser constantes; entretanto, apesar dessas desavenças e do desejo secreto do rapaz de se desfazer de sua amante, após fazerem as pazes os seus laços se tornavam mais fortes, já que Lourença tinha sobre ele uma estranha e incompreensível influência. Sob a força de seus olhos verdes e ao som de sua voz adocicada, a fibra enérgica do Conde afrouxava e sua resistência era vencida. No final das contas triunfavam o desejo e a opinião de Lourença.

A Baronesa o corrompia, sufocando nele os sentimentos cavalheirescos em tudo aquilo que tinha de elevado, ao mesmo tempo que era indulgente para com o seu orgulho e paixões vis.

Nessa época Briand conheceu casualmente uma jovem muito bonita e se apaixonou a tal ponto por ela que começou a desprezar Lourença por completo. Esta, sem manifestar o seu grande ciúme, dissimulava, por vingança, não notando a infelicidade que acometia o jovem no jogo.

Certa feita, numa manhã, ela comunicou melancolicamente que precisava deixar Paris.

— Graças a esse esbanjador do João eu me encontro em sérias dificuldades, não permitindo por meus meios que eu continue a viver aqui, disse ela levantando os olhos para o céu. Por isso estou partindo para o Castelo d'Armi, onde a pequena Diana carece de cuidados maternais.

Briand estava preocupado. Na véspera havia jogado uma soma considerável e agora não possuía um tostão sequer. Ainda que escrevesse ao tio, a resposta tardaria muito.

Nesse exato minuto ele não sabia como retribuir a hospitalidade de Lourença. Ela, em silêncio, observava o nervosismo do rapaz. De repente ela lhe tomou a mão e disse:

— Meu bom Carlos Mallor! Vejo como o aflige a idéia de se separar de mim. Eu também sofro. A vida sem sua companhia me parece vazia. Se não é difícil para você ausentar-se de Paris por uns meses, venha comigo ao Castelo d'Armi. A caça lá é excelente, a vida calma, e quando João voltar, poderá ajudá-lo a conseguir um lugar junto ao Sr. Guise. É claro que meu marido possui muitos defeitos, mas é bom e prestativo.

Ele, depois de um minuto de reflexão, acabou concordando. Sua posição falsa em Paris o incomodava, e, a hipótese de se revelar, não passava por sua cabeça. Por outro lado, não tinha nenhuma pressa em voltar à casa do tio para se casar com aquela prima feia; assim decidiu partir. O único cuidado de Briand era levar Henrique junto.

Por algumas moedas de ouro o jovem encarregou um amigo, que o cigano fizera, de enviar ao Barão de Mailor no castelo d'Armi qualquer pacote recebido no nome do Conde de Saurmont.

No dia marcado, grandes e confortáveis carruagens, escoltando Briand e seu criado, deixaram Paris, com destino a Anjou.

 

DIANA

A distância de um dia de caminhada de Anjou se erguia o Castelo d'Armi. Era uma construção grande e sombria que fora reformada no século anterior. A reforma, que podia ser facilmente notada, a fez perder seu antigo aspecto feudal. As valas e cornijas[11] desapareceram, cedendo lugar a um amplo jardim rodeado por um muro alto, com portões gradeados sobre os quais se via um brasão. Não obstante, o solar era uma imponente habitação de fidalgos. Suas altas torres pontiagudas se destacavam agradavelmente do fundo escuro do bosque. Mas o imponente castelo tinha um ar triste de abandono. Tudo estava vazio e em silêncio. A grama irrompia por entre os blocos do calçamento de pedra do pátio e cobria as alamedas do parque. A estrebaria e a ante-sala estavam vazias. Sete ou oito pessoas vivendo nesse castelo se perderiam dentro dele.

No castelo viviam a pequena Diana, filha do Barão por parte do primeiro casamento, a boa Justina e um menino de doze a treze anos, um velho roupeiro e três criados.

Estas pessoas eram, sem dúvida, insuficientes para manter o castelo, mas os econômicos proprietários consideravam ser o número satisfatório para servir à criança.

Devido a tal negligência o castelo acabou ficando em ruínas — o que pouco os inquietava.

No tempo em que os avós de Diana viviam, a situação era bem diferente. O castelo era repleto de vida e dentro de suas paredes se reunia a alegre sociedade de proprietários das redondezas. O Barão era rico e hospitaleiro, agradando-lhe muito o convívio com esse círculo de amizades. Para grande desgosto do velho, o céu lhe recusara um filho, legando como única herdeira a filha Ana, moça delicada e doentia. Quando Ana completou quinze anos o pai contratou núpcias com o primo dela, João d'Armi, pois desejava unir os dois últimos rebentos , da antiga família. O casamento deveria se realizar quando a noiva completasse dezenove anos.

Um ano antes de se realizarem as núpcias o Barão morreu, porém sua filha manteve a palavra e se casou com o primo.

O casamento foi dos mais infelizes. O Barão João d'Armi era homem sem qualquer princípio e mulherengo. Raramente aparecia em casa. Sua jovem esposa, desprezada por ele que tanto lhe devia, silenciosamente e aos poucos foi se consumindo.

Os dois primeiros filhos de Ana morreram ainda na idade pueril. Somente o último, uma menina, sobreviveria. Este nascimento porém acabou com a saúde da Baronesa. Com a morte já dentro da alma, a jovem mulher sentiu a aproximação de seu fim prematuro. Ela temia pelo futuro de Diana que ficaria indefesa, a mercê do poder do pai indigno e maldoso. Sua única salvação era Justina, mulher do primeiro guarda de caça e ama de leite da pequena Diana.

Justina, criada leal, chorou amargurada o triste destino de sua patroa e a vida conjugal infeliz de Ana. Com lágrimas nos olhos, Justina jurou à Baronesa que sempre olharia pela órfã como se fosse a própria filha.

Envolvida pela dor e solidão, a Baronesa se sentia ao menos satisfeita com esta promessa, ainda que fosse a proteção de uma pobre criada que não tinha muito a dar.

Ana também contava muito com a afeição que o filho de Justina, Antônio, seu afilhado querido, tinha por Diana. Para sua idade o rapazinho já era bem crescido, cuidadoso e responsável, além de ser cheio de energia. A pedido da própria Baronesa Ana o sacerdote da aldeia passou a dar aulas a Antônio. E aquele não se cansava de elogiar a aplicação, atenção e estupenda capacidade de seu discípulo.

Sentindo a aproximação da morte, a Baronesa ordenou que fosse chamada alguma personalidade oficial para legalizar seu testamento, tentando garantir o futuro de Diana, quanto à parte financeira. À Justina entregou uma soma considerável destinada à educação de Antônio e à compra das primeiras necessidades deste, logo após o término do curso. Quando o rapazinho, com lágrimas nos olhos, agradeceu, ela obrigou-o a jurar que ele sempre seria um verdadeiro amigo e devotado criado de sua filha, e que haveria de protegê-la com todas as forças deste mundo.

Passados alguns meses, Ana d'Armi faleceu. Diana, que na época tinha um ano e meio, não podia compreender plenamente sua infelicidade. Ainda que gritasse e chorasse ao ver que sua mãe não se movia nem a beijava, algumas flores caídas do caixão a consolavam. Mantendo-se fiel ao seu juramento, Justina cercou a criança de amor e de cuidados. Diana se sentia feliz e logo a lembrança da mãe se apagou completamente de sua memória.

Oito meses após o falecimento de Ana d'Armi, o Barão João chegou inesperadamente ao castelo acompanhado de sua nova esposa. Os antigos criados os receberam com frieza.

A pequena Diana manifestou tamanho medo e aversão por sua madrasta que nenhum carinho e nenhum presente conseguiam vencer seu sentimento. Já do pai a menina gostava muito. O Barão chegou inclusive a merecer alguma consideração de Justina, pelo carinho e ardente amor demonstrados ao encontrar a filha. Ficando de joelhos junto à cama onde estava Diana, ele a cobriu de beijos, e, em seguida, agradeceu muito à ama de leite seus cuidados.

— Ainda que desprezasse a falecida, ele realmente ama a criança com sinceridade, comentou ela ao sair o Barão. A única coisa que não posso entender é como depois de viver com um anjo como a Sra. Ana ele pôde se casar com essa grosseirona!

A influência da Sra. Lourença logo se fez sentir. O ambiente senhorial do castelo d'Armi cedeu lugar a uma atmosfera pequeno burguesa e mesquinha. Alguns empregados foram demitidos; os cavalos e cachorros vendidos, e em alguns meses o castelo passou a ter um aspecto de abandono que se acentuava ano a ano.

Para alegria grande de todos, os proprietários partiram para retornar não tão cedo. Justina passou novamente a dirigir os afazeres domésticos. Diana cresceu ao lado dela e de seu companheiro de brincadeiras, Antônio. Sempre que havia oportunidade ambos se mimavam e agradavam. Ela brincava livremente pelas grandes salas decoradas do castelo e corria no jardim com Antônio e o grande cachorro Lanceio, que lhe servia como um autêntico "cavalo de sela". À noite a menina dormia numa grande cama enfeitada com sinos, na qual sua mãe passara os últimos dias.

Ao tempo de nossa narrativa, Diana já era uma encantadora menina de quatro anos com espessos cabelos loiros e encaracolados que a cobriam como uma colcha.

Às vezes Justina permitia à sua pupila que fosse.ao bosque, sob a proteção de Antônio, à cata de frutos ou de ninhos de passarinho. Tais passeios sempre eram uma grande festa para ambas as crianças.

Num maravilhoso dia primaveril Diana recebeu autorização para ir ao bosque ver um ninho que Antônio havia encontrado. Antes das crianças deixarem o castelo, Justina, como de hábito, vestira-os elegantemente. O vestido de Diana havia sido feito da saia de sua mãe. Ao filho ela mandara trajar sua roupa de passeio. Ao liberar as crianças, Justina deu seu costumeiro conselho:

— Se você encontrar alguém no bosque e essa pessoa lhe perguntar, Antônio, quem você está acompanhando, não se esqueça de responder que esta é a formosa senhorita Diana, Baronesa d'Armi, e que você é seu pajem.

Conversando com alegria, as crianças adentraram o bosque e chegaram a um lugar onde se encontrava um belo ninho. Antônio subiu na árvore enquanto Diana, segurando um grande maço de flores, olhava para o alto, acompanhando cada um de seus movimentos.

Nesse instante ouviu-se um ruído por entre os arbustos e logo uma voz indagando em tom alto:

— Quem está na árvore?... Quem é você, belo nenê?

Diana se virou e com curiosidade olhou para dois cavaleiros que estavam a alguns passos dela. Um deles, um homem já idoso, era com certeza o serviçal. O outro era um encantador menino de dez anos.

— Na árvore há um ninho e eu sou Diana.

A menina silenciou repentinamente e começou a pensar. Ela esquecera o título e o sobrenome. Resolvendo rapidamente, ela gritou:

— Antônio, você que está aí, diga quem eu sou! Você deve saber, Justina lhe disse.

— O nome da minha pequena senhorita é Diana, Baronesa d'Armi, gritou Antônio Gilberto, sem abandonar seu lugar no alto da árvore.

Sem prestar atenção à observação do seu acompanhante, o menino desceu do cavalo e jogou as rédeas. Segurando o chapéu, ele galantemente se aproximou da menina. Esta se riu ao fitá-lo.

Criada em absoluto isolamento, Diana não podia compreender muita coisa do mundo, porém, devido às infindáveis histórias cavalheirescas que nas noites de inverno lhe contava Justina, em sua cabeça havia uma grande quantidade de idéias fantásticas.

— Você é certamente um cavaleiro errante? Perguntou ela inesperadamente, enquanto o menino a saudava.

— Um futuro cavaleiro, sim, só que não errante, respondeu ele dando risada. Eu vivo com meu avô no Castelo de L'Étaim. Meu nome é Visconde René de Beauchamp.

Enquanto travavam conhecimento, Antônio descia da árvore com o ninho. Em poucos minutos uma animada conversa se encetou entre as crianças. Depois Diana convidou René para vir brincar em sua casa, perguntando este, por sua vez, com quem ela vivia. Ao saber que a menina vivia sozinha com sua ama de leite, ele, resolvendo rapidamente, comunicou ao seu acompanhante que iria ao Castelo d'Armi brincar com Diana.

O velho criado quis protestar, mas René teimou e o pequeno grupo, escoltado pelo velho Silvestre dirigiu-se ao castelo. As horas passaram voando. A irradiante Diana mostrou às visitas o castelo, seu quarto, os brinquedos, Lanceio e o jardim. René também se sentia muitíssimo alegre. Ao entrarem correndo do jardim, cansados e ofegantes, Justina lhes ofereceu um merecido almoço.

Depois do almoço a amizade se tornou mais forte e as crianças passaram a se tratar com mais intimidade. René, tomado pela alegria, disse:

— Diana este lugar é muito bom; aqui nós somos os mais velhos. Uma vida assim me agrada mais do que aquela que eu levo com meu avô. Escute, quer se casar comigo?

— O que vai acontecer se eu casar com você? perguntou a menina, não sem desconfiança, ao ouvir esta primeira proposta.

— Quando nos casarmos vamos ficar sempre juntos, poderemos brincar quanto quisermos e viver aqui.

Antônio será o nosso pajem, explicou René sem se ofender pela desconfiança expressada.

— Oh, se é para isso, então eu concordo em ser sua esposa. O que de melhor poderíamos desejar senão de nos alegrarmos tanto quanto hoje?

A observação de Silvestre de que uma ausência tão prolongada poderia intranqüilizar o avô pôs fim à visita. Diana se desfez em pranto. O futuro casal se beijou de todo coração e se despediram prometendo um novo encontro para breve.

No dia seguinte o pequeno Visconde chegou novamente, desta vez acompanhado do avô. Vencido pela beleza invulgar de Diana, o velho Visconde beijou-a e a sentou nos joelhos. Perguntou à Justina qual o motivo por que uma criatura tão pequena vivesse sem pai nem mãe, entregue aos cuidados dos empregados. Com certa indecisão, já que julgava indelicada a intervenção de seu hóspede, Justina contou tudo o que se referia à sua pupila. O Visconde estava vivendo há meses enclausurado em seu castelo e estava totalmente alheio ao que acontecia no país. O estranho comportamento do Barão d'Armi em relação à filha o deixou perplexo.

— Se um dia qualquer, boa senhora, estiver preocupada com o futuro da criança, me procure, disse ele ao se levantar. Todos nós somos mortais. Se por acaso alguma infelicidade ocorrer ao Barão João, a menina encontrará em minha casa um verdadeiro refúgio.

A partir desse dia René de Beauchamp passou a visitar o Castelo d'Armi quase que diariamente. As crianças se tornaram inseparáveis e se aborreciam quando não se encontravam em companhia uma da outra.

 

A CHEGADA DE MAILOR

Depois de uma longa e fatigante viagem, Lourença e o falso Barão de Mailor chegaram finalmente ao Castelo. Eles tiveram que esperar um bom tempo junto à entrada até que o sujo e despenteado jardineiro abrisse o portão. A passagem pelo pátio vazio e pela longa série de salas, que apesar de luxuosamente mobiliadas se encontravam abandonadas, fez Briand sentir uma tristeza inexprimível e certa repugnância. No entanto, ao ver um belo quadro essa má impressão logo se apagou. A porta lateral de uma das salas estava aberta. Por ela se saía num grande terraço, cercado de balaustradas. No fundo se viam as árvores verdes do jardim, entre as quais reluziam as águas tranqüilas de um lago. A atenção do Conde porém, estava voltada para um grupo pitoresco, e não para a paisagem bucólica. No meio do terraço um menino sentado sobre uma almofada, com um livro aberto sobre os joelhos, lia num ressonante e monótono tom de voz um certo conto fantástico. Ao seu lado, deitado no tapete, havia um grande cachorro de pelos encaracolados.

Uma pequena menina trajando um vestido de dama azul claro abraçou o cão pelo pescoço e encostou na cabeça dele, recostando-se logo a seguir. Debaixo do gorrinho, também azul, caíam espessos cachos dourados que pendiam até a cintura. Toda tranqüilidade desta cena foi perturbada por Lourença ao entrar no terraço dando um grito estridente:

— Diana, minha cara criança!

A menina levantou espantada. Imediatamente a Baronesa a tomou pela mão e a cobriu de beijos, repetindo:

— Querida Diana! Por acaso você se esqueceu de mim durante a minha ausência?

Por um minuto a menina suportou as carícias dela, mas logo depois começou a rechaçá-la, gritando.

— Me solte!

Lourença não insistiu e a colocou no chão, após o que, aproximando-se de René, perguntou:

— E você quem é, meu pequeno amigo? Enquanto o garoto pronunciava com vivacidade seu nome e título, Briand se aproximara de Diana e se inclinando para ela, tentava tomá-la pela mão. A menina, todavia, recuou com uma indisfarçável expressão de medo e repulsa.

— Ei, Diana! Como você pode ser tão indelicada? Dê agora mesmo a mão ao Barão de Mailor e se apresente a ele, gritou Lourença. Sem esperar a resposta, ela se aproximou da menina, levou-a ao Conde e acrescentou rindo:

— Reconciliem-se.

Naquele instante Diana ficou petrificada. Contudo, quando Briand quis beijá-la, ela começou a berrar alto e a se esquivar com pés e mãos.

— A troco de que vocês perturbam Diana? com raiva, gritou René, lançando-se na direção de sua amiga.

O cachorro se pôs a latir alto. A barulheira só terminou quando Justina apareceu para levar a menina.

Aparentemente os tempos que se seguiram ao episódio foram um pouco mais tranqüilos. Lourença se ocupava dos afazeres domésticos ordenando que se fizesse mais uma série de intermináveis desmontagens, empacotamento e empilhamento em cofres e armários, além de exigir que fosse feito o inventário de todos os objetos que estivessem guardados nesses móveis.

Nas conversas com o desagradável Mailor, seu tema predileto era xingar o marido e calcular o ódio que este devia sentir por não receber resposta às suas cartas.

— O querido João endereça seus pedidos às paredes vazias do meu quarto, repetia ela, achando graça.

No que se referia a Briand, pelo visto, ele estava satisfeito com a vida calma que levava. Não havia feito uma única visita aos vizinhos da propriedade. Apenas caçava e, de vez em quando, visitava o padre e o promotor mais próximos. Na realidade, sob essa aparência serena o rapaz continha todo o seu ódio e sua intranqüilidade.

Não recebera nenhuma resposta da Espanha. Ele de bom grado mandaria Henrique a Paris ou ao tio, se esta viagem não exigisse demasiado para as presentes condições em que se encontravam suas reservas. Também não era só isso que o preocupava. Henrique havia ido secretamente às duas propriedades que Briand possuía em Anjou, uma das quais próxima ao Castelo d'Armi. Para infelicidade do Conde, ao invés do esperado ouro, o cigano trouxe más notícias: as propriedades estavam dilapidadas até o último grau pelos agiotas nelas alojados.

Apesar de sua admirável dissimulação, o rapaz, vez que outra, mal conseguia se dominar. Uma noite, quando o Conde se sentara com Lourença, esta lhe contou que quando ele estava caçando pela manhã, havia chegado um hóspede com uma carta do marido. Na carta o Barão lhe escrevera coisas ultrajantes e com insistência exigia dinheiro. Briand quase não a ouvia, absorto que estava em seus próprios problemas. De repente Lourença lhe tomou a mão e disse:

— Carlos, não confia em mim? Meu coração diz que você sofre. Posso até adivinhar o motivo de suas preocupações. Seus negócios, estão falidos e para um jovem chegar a ser brilhante cavalheiro é preciso muito ouro. Sei disso e quero propor uma maneira de sair das dificuldades.

— Que maneira é essa? respondeu ligeiramente surpreendido o Conde.

— Casar.

Briand fez um gesto de desprezo, ao mesmo tempo que um sorriso de sarcasmo era esboçado em seus lábios. Ele já tivera a oportunidade em Paris de se convencer do terrível ciúme de Lourença, por isso considerou esse conselho uma sugestão de mau gosto e pouco sutil. Entretanto a Baronesa continuava sem se incomodar:

— Sim, eu quero casá-lo, e casá-lo com a pequena Diana.

A ressonante gargalhada do Conde interrompeu-a.

— A carta do Barão João perturbou sua razão, Lourença. Casar-me com uma menina de quatro anos! Isso é cômico.

— Escute-me até o fim, antes de julgar o meu plano. Nele há muita coisa boa, sem considerar que uma esposa é excepcionalmente cômoda para um marido de vinte anos, observou Lourença calmamente. Diana tem posses.

A mãe lhe deixou uma grande soma — cem mil "écus" — que está depositada em Anjou. Só que o seu testamento possui um item tolo que reza que esse dinheiro não pode ser tocado até que a menina se case. Então esta soma será entregue a seu marido. Felizmente o testamento não indica quando Diana deve se casar, e nada o impede de se casar com ela e receber os cem mil "écus", cinicamente concluiu Lourença.

Briand nada respondeu. A idéia de comprometer seu futuro não o agradava nem um pouco, mas o estranho poder que a Baronesa exercia sobre ele novamente se fazia sentir.

Sob o olhar agudo das pupilas verdes o pensamento do rapaz se perturbava. Ele estava inclinado a recusar a proposta de criar para si uma situação que de certa forma o tornasse dependente. Passando a mão no queixo, respondeu.

— Vou pensar.

Um pouco depois despediu-se da Baronesa e saiu para seu quarto. Seu aspecto sombrio e preocupado chamou a atenção de Henrique que observou por um bom tempo como o Conde andava nervosamente pelo quarto. Finalmente perguntou:

— O que há com você, "Monsieur"? Aconteceu algo desagradável?

Briand estava acostumado a discutir seus problemas com Henrique, o qual considerava um amigo fiel e com quem crescera. Por isso ele confidenciou sem qualquer vacilação o plano de se casar proposto por Lourença.

Ao serem lembrados os cem mil escudos os olhos do cigano brilharam de cobiça.

— Você concordou, M. Briand? Rapidamente perguntou ele, esquecendo que o Barão de Mailor se chamava Carlos.

— Não. Não posso me atrever a isso! Detesto todo e qualquer laço. Atar meu futuro a essa criancinha é absolutamente ridículo. Além do mais eu não quero revelar meu verdadeiro nome.

— Bah! pronunciou Henrique com desprezo. Não vejo a mínima necessidade de fazer isso. Por que não haveria de se casar sob o nome de Barão de Mailor? Você possui todos os documentos. Quando quiser sempre poderá se transformar no Conde de Saurmont. Cem mil escudos é um belo dote. Esta soma viria bem a calhar para salvar suas propriedades em Anjou, antes que os malditos agiotas terminem por limpá-las completamente. Com esse dinheiro ainda poderia evitar que os esplêndidos bosques de São Germano fossem liquidados.

— Isso é verdade. Mas pense bem, Henrique: uma esposa de quatro anos e um sogro e uma sogra como o Barão e sua esposa...

Henrique estalou os dedos.

— Não é necessário conseguir tudo de uma vez. Da Sra. d'Armi e seu marido poderemos nos livrar quando houver ocasião. A pequena Diana, sem dúvida, substituirá a bela Dona Mercedes, que além de tudo, enciumada, dará cento e sessenta mil de dote.

— Não. Menos de duzentos mil Don Rodrigo não dará por ela. Mas isso é muito pouco pela sua corcova e sua pretensão, notou Briand, com uma risada, querendo evidentemente refutar os argumentos de Henrique.

A perspectiva de salvar duas propriedades espetaculares e deter a liquidação do bosque que cobria inteiramente a terra de São Germano, terminaram dominando o pensamento de Briand. Naquele lugar se erguia o castelo herdado, berço do Conde de Saurmont e onde se encontravam os túmulos de seus ancestrais. Salvar o antigo berço da família da destruição total era para ele um dever. Por isso, na manhã seguinte, ele comunicou à Lourença que depois de ter refletido bem em tudo, concordava em se casar com Diana.

A Baronesa, naturalmente, ficou muito feliz.

— Eu sinto que o próprio Deus me inspirou este plano para sua felicidade, Carlos, e para a felicidade da minha cara Diana, gritou ela. Hoje mesmo escreverei a João e pedirei o seu consentimento, Estou certa de que ele também ficará feliz.

Só que eu penso, caro Barão, que, tendo em vista a terrível falência dos negócios do pobre João, você deverá dar-lhe uma parte do dote. Tal providência ajudará sua empreitada e, além do mais, você não pode deixar que o pai de sua esposa fique na miséria.

Briand franziu as sobrancelhas; a negociata tomara um novo aspecto. Depois de entregar a parte do pai, sem dúvida, a próxima a ser recompensada seria a madrasta.

Naquele momento seu primeiro impulso era desistir da idéia, mas o desejo de se livrar da corja de agiotas o dominara a tal ponto que, a contragosto, ele disse que estava preparado para pagar pelo consentimento do Barão.

Nessa mesma noite Lourença escreveu ao seu marido uma carta de várias páginas. A Baronesa descreveu minuciosamente a ruína em que se encontravam e a utilidade que teria o casamento proposto, já que liberaria um capital morto. Diana, é claro, ficaria muito feliz em se casar com um homem bondoso e desinteressado, que renunciaria a uma boa parte do dote para ajudar o seu futuro sogro a sair das dificuldades.

Enquanto esperava a resposta de João d'Armi, Briand resolveu, ainda que fosse um pouco, conquistar a simpatia de sua futura esposa, cuja opinião sobre tão importante negócio não fora pedida. A menina continuava hostilizando-o, esquivando-se, e raramente conversava com ele. A idéia de que na igreja, na frente do padre, poderia se repetir uma cena tão ridícula quanto aquela do primeiro encontro não agradava muito ao Barão. Assim, decidiu começar com uma conversa tranqüila.

Briand comunicou sua intenção a Lourença e lhe pediu que o ajudasse.

— Não há nada mais fácil, respondeu ela rindo. Preciso ventilar o baú no qual se encontram as coisas da falecida Ana d'Armi. Segundo João lá estão guardados tecidos caros, broches e peles valiosas. As traças podem estragar essas coisas e meu dever é guardar a herança para a filha. Convidarei Diana para ver o baú, se isso lhe interessar, o que é bem provável; você poderá chegar a cortejá-la. Isto, inclusive, lhe dará uma noção de quanto custarão dentro de vinte anos a toalete e os gastos da senhora Mailor, concluiu ela rindo.

Ao quarto de Lourença foram trazidos os grandes baús com a herança de Diana.

A pilhagem ia ter início. Na opinião da Baronesa tudo aquilo que se pudesse estragar e se amassar devido ao longo tempo dentro dos baús, deveria ser posto de lado para que ela mesma os arejasse com mais freqüência. Na verdade ela queria os objetos para uso próprio. Afinal o que uma menina faria com tantas coisas assim?

Diana, demonstrando tanto interesse pelas roupas, permaneceu no quarto da Baronesa. Tocava os panos e os bordados, provava os cachecóis e a cada vestido retirado perguntava:

— Esse aí é para quem?

— Para você, minha querida, Lourença respondia com ternura. A cada resposta os olhos da criança irradiavam alegria.

A interessante ocupação ainda continuou por muito tempo. Em determinado momento Briand chegou ao quarto de Lourença. Ele se esforçaria em conversar com Diana, sem esquecer contudo de trazer consigo doces e brinquedos. Tal esforço não foi em vão. No princípio os presentes eram recebidos com um silêncio de desprezo, mas depois com um meio sorriso. Ao final o Conde conseguiu até pô-la no colo. É verdade que a testa da menina estava franzida e o olhar era de desconfiança. Entretanto esses maus sintomas logo se dissiparam quando Briand contou uma história de fadas e outra de bandidos as quais prenderam a atenção da criança.

— Apesar de ser chato, você até que é um bom contador de histórias, disse Diana com toda franqueza. Como o Conde não se mostrava antipático, este entretenimento sincero aumentava dia a dia.

O pequeno René, como antes, visitava Diana e sem o mínimo ciúme dividia com ela os doces que o seu rival trazia. O garoto não tinha tempo de ter ciúme, tão preocupado estava. Ele contou à sua amiga que havia ocorrido um escândalo em sua família. A noiva do sobrinho do velho Visconde cancelou o noivado depois que a família dela achou um noivo mais rico para a moça. O rapaz ficou em terrível desespero. Ele amaldiçoou a traidora e desafiou para um duelo o seu rival. Visto que o Visconde não permitia ao sobrinho travar o duelo esse começou a rasgar a própria roupa e ameaçou se afogar. Este problema na família causou forte impressão em René.

Ele não parava de repetir à Diana, palpitante de interesse, todas as palavras do primo, e, ainda representava o desespero e os gestos agitados dele.

Diana se entretinha assim com René, quando chegou a resposta do Barão João d'Armi. Como previra Lourença, o "maravilhoso" pai consentiu em dar a mão da filha a um desconhecido. Ele agradeceu à esposa pela idéia original; mandou um abraço ao seu futuro genro e lhe suplicou que adicionasse mil escudos da soma a si próprio. No final da carta acrescentou:

"Minha cara Lourença - eu bem a conheço e posso confiar completamente na sua escolha. Mailor deve ser excelente pessoa. Desse modo apresse o casamento, e assim que receber o dinheiro envie-o para mim por mensageiro. Ordene ao enviado que não poupe cavalos. Só se ele empregar dois ou três chegará rápido. Eu não tenho dinheiro algum e ainda estou devendo muito”.

Nessa mesma remessa foram anexados documentos oficiais destinados ao Promotor em Anjou e ao Sacerdote. Contentíssima, Lourença se dirigiu naquele mesmo instante a Anjou para executar todas as formalidades indispensáveis. Da cidade ela trouxe uma fazenda branca, bordada de prata, e uma grande caixa de bombons que, sem dúvida, deveriam deslumbrar Diana, já que nela havia várias figuras de animais, igrejas, um urso, além de dois anjos de bala e de um pão doce. Tudo estava preparado, só faltava Briand formalizar o pedido.

Lourença abriu na frente do espelho a fazenda bordada, depois de já ter colocado na mesa ao lado a enorme caixa de bombons. Em seguida chamou Diana. Ao ver o tecido a menina se lançou ao espelho e contemplando com curiosidade fez sua habitual pergunta:

— Para quem é isso?

— Para você, minha cara, respondeu Lourença beijando-a. É para o vestido do seu casamento. Uma mulher é sempre uma mulher.

— Meu casamento? Com quem? perguntou a menina enquanto continuava a admirar o tecido.

— Com nosso amigo, o bom e amável Barão de Mailor.

A menina fez uma cara feia e franziu a testa. Não dando tempo para que o mal-estar aumentasse Briand pegou a caixa de bombons e oferecendo-a aberta, disse com um sorriso:

— Se você se casar comigo, Diana, eu sempre lhe darei bombons deliciosos como estes e contarei histórias interessantes. Será que isso é mau?

Diana olhou a caixa de guloseimas e sua face se aclarou. Nada respondeu, mas assim que pegou a caixa, que mal conseguia segurar, saiu correndo do quarto.

O Conde e a Baronesa soltaram uma ressonante gargalhada.

— O silêncio é sinal de concordância. Agora ninguém o impede, Carlos, de ordenar a preparação do seu traje de casamento, disse Lourença, enquanto enxugava do seu rosto carnudo as lágrimas da risada.

Curvando-se sobre a tentadora e pesada caixa, Diana chegou ao seu quarto, sentou-se no chão e espalhou à sua volta o tão valioso tesouro adquirido. A menina estava completamente absorvida nessa tarefa quando entrou René.

Também ele ficou cativado pelos bombons. Sentado ao lado de sua amiga ele examinou tudo. Repartiu com ela o cachorro e o servo, e, após isso, ajudou-a a colocar o restante na caixa. Quando acabou de comer os pãezinhos, perguntou:

— Você ainda não me disse quem teve a idéia de lhe dar essa caixa.

— Ela me foi dada pelo Barão de Mailor, por eu ter me tornado sua noiva. Além desse presente, minha madrasta também me fará um vestido de noiva, com uma fazenda bordada em prata, respondeu Diana chupando uma pera confeitada.

Para grande assombro dela, René deu um salto e, vermelho de ódio, tomou-lhe a pêra, atirando a fruta ao canto.

— Você quer ser mulher de Mailor? Ousa se vender somente por uma infeliz caixa de bombons? Ele bateu a caixa nas pernas com tanta força que os bombons se espalharam para todos os lados.

Acaso você se esqueceu, sua traidora, de que prometeu se casar comigo?

E então René rasgou sua gola, lançou-se à mesa e começou a arrancar seus próprios cabelos, numa cena exatamente igual a que fizera seu primo Gastão, no momento de desespero.

A princípio a assustada Diana olhava para seu amigo sem entender o motivo da raiva, depois se lembrou da história que ele havia contado. Da mesma forma que aquela noiva hipócrita ela não cumprira sua palavra. Um remorso amargo tomou conta de seu coração. Ela tinha medo de servir de motivo para a ruína do noivo enganado.

— René, não se enforque! gritou ela, que chorando, correu para ele. Acalme-se!

Eu serei sua esposa, dou-lhe minha palavra de honra. Devolverei a caixa ao Barão!

Estas palavras acalmaram um pouco René, que parou de gritar e esbravejar. Depois tomou Diana pela mão, pegou a caixa de bombons e a levou ao quarto de Mailor.

Briand mal acabara de voltar ao seu quarto. Estava sentado junto à janela, absorto em pensamentos, quando de repente se ouviu uma forte batida à porta e René gritando:

— Abra, senhor Mailor! Nós precisamos conversar sobre um assunto importante.

O rapaz surpreso, levantou e abriu a porta. O assombro dele aumentou ainda mais quando viu René com o rosto vermelho de raiva e a gola rasgada. O menino segurava Diana, que chorava, por uma mão, enquanto que na outra carregava a famosa caixa de bombons.

— Nós viemos devolver os seus bombons, disse orgulhoso o pequeno Visconde. Diana levianamente aceitou seu presente de noivado, esquecendo totalmente de que me havia prometido sua mão. Ela não pode se casar com você. Se não renunciar à sua pretensão, serei obrigado a levá-la à minha casa. Meu avô está a par de tudo e concorda com nosso casamento. Ele saberá defender minha noiva.

René obrigou Diana a colocar o presente na porta e a levou, saindo ainda mais furioso pela insensata risada de Briand, encerrando a cena tragicômica.

Voltando ao seu quarto, as crianças continuaram discutindo. Os gritos e berros foram crescendo e crescendo a tal ponto que o velho Silvestre foi abrigado a levar René para pôr fim à tumultuada cena.

Na manhã imediata, o avô de René veio visitar Lourença, para saber o que acontecera, já que ele pouco havia entendido da narrativa de seu neto que havia regressado doente e terrivelmente agitado.

Lourença lhe explicou que iria casar Diana. Ao ouvir o nome do noivo, o velho Visconde se surpreendeu e delicadamente observou que, se isso iria ocorrer só para garantir um futuro decente à menina, uma vez que o Barão d'Armi era conhecido de todos, seria mais fácil encontrar um companheiro que fosse de idade aproximada à dela. A Baronesa, respondendo com frieza, disse que tudo estava sendo feito de acordo com o consentimento da família. Assim o Sr. de Beauchamp se desculpou e partiu dizendo que não deixaria mais seu neto vir ao castelo.

Daquele dia à data do casamento, Briand esteve ocupado em confortar e divertir sua futura mulher que, de olhar triste e desencantado, raramente se alegrava. Graças a tal atenção do noivo e sobretudo às histórias, lendas e guloseimas, Diana se animou, e no dia do casamento toda sua alegria infantil estava de volta.

No grande dia, Lourença, desde a manhãzinha trouxera Diana para junto de si, a entretendo, a vestia como uma boneca, ao mesmo tempo que a empanturrava de doces.

Terminado o trabalho, a menina se encontrava encantadora, sem considerar, é claro, o aspecto cômico do seu traje e a coroa de pedras preciosas que adornava seus exuberantes cachos de ouro.

Não havia convidados. Lourença não era amiga das mulheres da vizinhança, já que estas a evitavam; por isso ela se contentava em ter na cerimônia as pessoas indispensáveis: as testemunhas, o Sacerdote e o Promotor.

Quando a Baronesa entrou na sala, onde todos estavam reunidos, levando pela mão Diana, uma sensação horrível se apossou de Briand. Com o coração pesaroso ele tomou a menina pela mão e a conduziu ao altar.

O rostinho sério de Diana durante a cerimônia aumentou ainda mais a sensação de perturbação e melancolia do Conde. Uma voz interior murmurava que ele estava agindo como um canalha, que era um duplo ladrão: ao roubar uma consciência inocente tomando-lhe o dinheiro, e a se negar até mesmo a lhe dar seu verdadeiro nome. Seu olhar estava cravado na menina que se colocara de joelhos a seu lado. Os olhos grandes e claros da criança dirigiam-se ao Padre, ao mesmo tempo que os seus lábios sussurravam com precisão a única oração que ela conhecia: "Pai nosso que estais nos Céus..."

Quando Briand colocou o anel em Diana, várias lágrimas rolaram pelo rosto da menina. Os presentes começaram a recear que a noiva fugisse, porém acabou por se manter séria e calma até o final, permitindo que o marido a beijasse. Com um estranho ar de dignidade e distinção, recebeu os cumprimentos dos convidados.

Depois do almoço, Diana que havia adormecido, foi levada ao quarto, enquanto Lourença se distraía com os convidados na sala de jogos. Briand, como sempre, seduzido pelo jogo, perdeu uma grande soma para o Promotor. Quando o rapaz voltava pelo corredor, percebeu a porta do quarto de Diana aberta. Influenciado pela intranqüilidade moral que o perturbava o dia inteiro, o Conde se deteve e entrou no quarto que estava iluminado por uma lâmpada de cabeceira e duas velas de cera. As velas estavam sobre a mesa em meio dos restos do banquete. Ao lado, ainda vestida, Justina dormia profundamente. Aproximando-se do leito, Briand se inclinou e fitou a adormecida e tranqüila Diana.

— Com o tempo ela será muito bonita, murmurou. Esboçando um sorriso meio malicioso, meio amargo, ele continuou: e eu nessa época já serei um homem bem de idade, e quem sabe se então René de Beauchamp não será um forte opositor?

Nos dias seguintes Briand andou muito ocupado. Recebera o recado de Lourença lembrando que antes de mais nada ele deveria pagar ao doce paizinho de sua esposa. Contudo, graças à sua insistência cansativa, Lourença conseguiu arrancar-lhe mais do triplo do que ele inicialmente calculava dar a ela. Feito isso, o Conde, por intermédio de Henrique, tratou de liquidar as dívidas que pendiam sobre suas propriedades. Sob o pretexto de estar caçando, ele visitou às escondidas o Castelo de São Germano.

Ficou tão contente que resolveu usar seu nome verdadeiro e se estabelecer na França. Para isso esperava apenas o final das conversações com um dos agiotas. Se este último fosse menos complacente, não estaria negociando diretamente com o Conde de Saurmont.

Enquanto seu esposo corria atrás dos negócios, a pequena Baronesa de Mailor se reconciliava com seu amigo René. Cedendo à própria Diana, Briand escreveu ao velho Conde, pedindo-lhe que, se a raiva de seu neto houvesse passado, permitisse que ele viesse ao Castelo d'Armi. René que estava muito aborrecido sem Diana, comunicou com dignidade que se resignara ante o fato consumado.

Apesar da decisão tão sensata, o pretendente preterido mostrou uma indisfarçável aversão pelo seu feliz rival. Quando ficou a sós com Diana lhe perguntou:

— E então, Diana? Você não é muito feliz ao lado do seu marido velho?

— E por acaso Carlos é velho? replicou surpresa a menina.

— Quando você for adulta ele será um verdadeiro Matusalém, se é que ele ainda viva tantos anos. Eu espero que ele morra antes de nós dois nos tornarmos adultos.

Então nos casaremos, salvo o caso de você me trair novamente.

— Não, não. Desta vez seja mais justo. Se Carlos morrer de velhice eu serei sua esposa. Entretanto não posso dizer que sou infeliz. Ele brinca comigo e à noite me conta histórias. Até construiu um balanço no meu quarto. Tudo isso é muito divertido. Só uma coisa não me agrada: ele me dá menos bombons agora que antes do nosso casamento.

— Miserável! René resmungou com desprezo.

Passaram-se alguns meses. O outono começou. Como a chuva era constante e as conversações com alguns agiotas se alongavam, Briand, com freqüência, ficava em casa e de mau humor.

Não recebera uma única notícia do tio, o que, aliás, pouco o inquietava. Lourença o importunava com seu amor e suas pretensões. Chegava a lhe dar asco, e, enquanto não concretizava seu desejo de se livrar dela, ele a aturava.

Seu estranho casamento também o oprimia. Não obstante, a excepcional beleza e a inteligência invulgar para uma menina daquela idade, aliviavam a condição do rapaz.

A criança se acostumara com ele, e Briand, por sua vez, sempre a levava para brincar em seu quarto, preferindo a tagarelice da sua pequenina esposa à companhia de Lourença.

Uma noite, no fim de maio, Briand estava no quarto com Diana sentada nos seus joelhos. Ela contava suas conversas com René quando Henrique entrou no aposento carregando um pacote nas mãos.

— O correio trouxe de Paris, Sr. Barão, disse ele, entregando o pesado pacote ao seu patrão. O nosso antigo amigo albergueiro o enviou, só que os maus caminhos atrasaram a entrega.

O rapaz abriu rapidamente o envelope, tirando de dentro uma folha de pergaminho e uma carta escrita por Rodrigo Guevara. Ele olhou o pergaminho só por cima. O papel era um cheque para o recebimento de uma grande soma de um banqueiro judeu em Paris. À medida que foi lendo a carta seu rosto foi se tornando extremamente pálido.

Arrebatado por uma súbita fraqueza ele caiu em cima da mesa.

— O que há com você, Carlos? Está morrendo? perguntou Diana assustada.

Briand se endireitou como se houvesse sido eletrizado pela voz da menina. Seus olhos brilhavam de ódio. Empurrou a criança com tanta força que ela caiu no chão.

A seguir gritou alto:

— Leve-a, que está me dando nos nervos! Machucada pela queda, e assustada com tal tratamento, Diana começou o berreiro. Henrique, sem fazer uma única observação, levantou a menina e a conduziu para Justina. Quando ele voltou, o Conde, nervoso como um tigre numa jaula, andava pelo quarto. Seu rosto desfigurado refletia desespero e terror.

— Provavelmente as noticias que você recebeu são muito importantes... Por que está assim tão emocionado? perguntou o cigano de forma amistosa e familiar, permitindo-se esta relação com seu antigo companheiro de jogos.

Briand parou e apertando a mão de Henrique gritou totalmente fora de si:

— Se são importantes as notícias? Meu tio escreve que Pedro morreu em conseqüência de uma queda de cavalo. Ele me está chamando e deseja me casar com Mercedes e me fazer seu herdeiro, compreende? Basta apenas estender a mão para me apoderar da fortuna de Guevara e dar adeus a algumas infelicidades... Ficar para sempre ligado a esta maldita criança... maldição!

O Conde segurou as duas mãos atrás da cabeça. Henrique também empalideceu.

— Que infelicidade! ele murmurou.

Dentro de um minuto ele se endireitou e moveu-se até às mãos do Conde.

— Não se desespere, Sr. Briand. Quando o assunto é herança qualquer sentimentalismo seria loucura. O senhor precisa se livrar da pequena esposa que, sem propósito, está ligada ao senhor. Livre-se dela, depois nós iremos embora, nos despedimos para sempre do castelo d'Armi e de sua formosa Lourença. Além disso não se esqueça de que o Conde de Saurmont nunca esteve casado. Provar sua identidade como o Barão é muito difícil, assim como aqui ninguém sabe seu nome verdadeiro. Seria sensato não dizer nada sobre isso a Don Rodrigo.

O Conde ouvia e com dificuldade recobrava o fôlego.

— Você está com a razão, Henrique. Qual seria o preço para isso? Eu devo ser livre. Mas de que modo me livrar desses laços fatais e o mais rápido possível? Meu tio escreve que está debilitado física e moralmente, devido ao último acidente... ele impacientemente espera a minha chegada para me entregar a administração de suas propriedades!...

— Deixe-me pensar até amanhã. A noite é boa conselheira e tal plano deve ser amadurecido, disse Henrique.

Briand passou uma noite infernal. A possibilidade de possuir a imensa fortuna que tanto desejava provocou um verdadeiro furacão em sua alma. Em sua imaginação surgiram terras, o castelo de Guevara e o modo de vida principesco desses poderosos senhores. A idéia de se tornar proprietário desses tesouros lhe provocou orgulho, cobiça, ambição, abafando definitivamente os fracos protestos da consciência. Quando o sol surgiu, Briand já era na alma um criminoso. Sua alma se tornara insensível por causa de apenas uma perspectiva de posse desse ouro! Sem a mínima hesitação ele entrou no caminho perigoso da maldade, colocando em movimento então a trágica roda que uma vez atingindo alguém, nunca libertaria, mas o empurraria de um crime a outro, enquanto não o esmagasse completamente.

De manhã, quando Henrique chegou, ele encontrou seu senhor calmo, frio e decidido; contudo o Conde se calara e apenas dirigiu um olhar interrogativo. O outro acenou com a cabeça e sussurrou:

— Eu encontrei e até já tomei as providências; com toda a probabilidade, hoje à noite você estará viúvo. Você conhece a pequena ponte abandonada numa ilhota no meio da represa; a ponte está muito velha e apodreceu toda. Ontem à noite eu separei um pouco as madeiras e tirei alguns pregos; agora, quando alguém apenas pisar nela, cairá imediatamente.

Por essa ponte ninguém passa, exceto Diana e o pequeno Beauchamp, pois eles adoram passear na ilhota. Não será uma grande desgraça se eles se afogarem; a sua liberdade vale isso. De qualquer maneira não haverá gente para salvá-los, pois essa parte do jardim está sempre vazia.

Briand ficou pálido e um tremor nervoso percorreu seu corpo. O inevitável assassinato da pequena criatura, para a qual ele jurou amor e proteção, em um primeiro instante provocou-lhe um indescritível pavor, mas ele com a vontade reforçada, reprimiu essa fraqueza. Em sua imaginação surgiu o altivo castelo de Guevara com suas torres recortadas e essa visão era suficiente para abafar a voz da consciência.

— Bem, Henrique, obrigado, disse ele em tom baixo. Você pode ter em sua conta a minha gratidão. Agora sele para mim o cavalo; quero me refrescar.

Agitado com o sossego perdido, o Conde saltou na sela e saiu na carreira. Ele passou por Angers, tomou a primeira refeição da manhã na casa do promotor com o qual tinha boas relações e se permitiu jogar cartas. Já era noite quando ele parou, finalmente, diante do recortado castelo d'Armi.

O camareiro lhe abriu os portões. O rosto aflito do velho e sua voz agitada denunciavam algo de anormal. Ele exclamou:

— Ah... Sr. Barão, que desgraça nós evitamos na sua ausência!

O Conde estremeceu. Por um instante seu coração parou de bater e o sangue lhe subiu à cabeça.

— Evitaram? Se a desgraça foi evitada, então para que me assustar com os seus estúpidos gritos? ele gritou de modo severo.

O Conde passou rápido em frente ao assombrado criado, desejando esconder dele a expressão de seu rosto, mas, dando alguns passos ele parou, percebendo que era preciso então perguntar o que havia acontecido.

Voltando a cabeça, ele, de uma forma gentil, perguntou:

— O que aconteceu, meu bom Marcelo? Você de tal maneira me assustou que eu até esqueci de perguntar sobre isso.

— Desculpe-me se o assustei, senhor Barão, desculpou-se o velho. A menina Diana, por pouco, não se afogou na represa; para felicidade o afilhado de Justina, Juliano, chegou hoje e acompanhava a criança. Ele tirou Diana da água. Mas nós ainda estamos abalados com esse acontecimento! Eu no mesmo instante destruí a maldita ponte para que tal acontecimento não possa se repetir.

— Agradeço, Marcelo, por esta sensata precaução. Hoje mesmo ordenarei a Justina que não deixe a criança sozinha sem qualquer cuidado. Eu estremeço diante da idéia do que poderia ter acontecido.

Habilmente escondendo um sentimento misto de decepção e alívio, Briand entrou no castelo e se dirigiu ao quarto de Diana. Entretanto apossou-se dele forte desgosto e murmurou:

— O próprio destino está contra mim!

Diana, abalada, com os cabelos molhados, estava sentada na poltrona, diante do fogo vivo que ardia na lareira, enrolada em um xale de lã. Justina sentada diante da lareira aquecia o vinho e repreendia sua pequena senhora. Diana, abatida com a sensação de sua culpa, calada baixou a cabecinha.

Justina exclamou gesticulando com vigor, vendo Briand:

— Ah, Sr. Barão! Hoje o senhor por pouco não ficou viúvo! E tudo por causa da teimosia da Sra. Baronesa. Eu disse umas cem vezes que essa maldita ponte cairia... Eu avisava, proibia, mas nada... bastava me virar e a Sra. Diana já corria para a ilhota!

Trocando algumas palavras com Justina e expressando sua alegria pelo acontecimento de final feliz dessa aventura, Briand aproximou a cadeira para junto da criança e a abraçou. Ele sentia como ela estava tremendo de febre; mas a menina estava zangada com ele pela desavença do dia anterior. Ela tirou seu braço e fechou os olhos.

O Conde não prestou atenção nesse gesto impetuoso; brincava e se esforçava com atitude carinhosa a animar sua pequena esposa.

A chegada repentina da criada de Lourença os interrompeu.

— A Baronesa pede que o senhor vá imediatamente conversar com ela, Sr. Mailor. Ela está indisposta e não dormiu a noite toda.

Despedindo-se de Diana, Briand seguiu a criada que o conduziu ao aposento da senhora d'Armi.

Ela estava deitada na cama, de olhos fechados e com compressas na cabeça. Segurou fracamente a mão do Conde. Parecia tão debilitada que o Conde teve de se inclinar e direção aos seus lábios que murmuravam com uma voz apagada.

— Estou morrendo, meu amigo!

— O que está acontecendo com você, querida Lourença? Ontem me pareceu que você estava completamente saudável, disse Briand olhando com desconfiança para a doente.

— A doença pela qual estou morrendo inesperadamente se apossou de mim, mas isso era previsto. João tanto me traiu e me atormentou que minha saúde se abalou diante de tal sofrimento. Mas o assunto não é esse. Você sabe que sempre penso em mim mesma em último lugar. Estou inquieta pelo destino de minha pequena Diana; jurei educá-la como minha própria filha e me atormenta a idéia de que quando eu morra, ela perecerá. Jure-me amar fielmente a menina e nunca se separar dela.

Certamente nada mudará dos meus profundos conhecimentos em assuntos de educação, mas, no extremo das medidas, você, Carlos, proteja-a de qualquer perigo. João é bom mas ele adora gozar a vida na libertinagem. Ele está pronto a arruinar uma mulher, mesmo sendo ela sua própria filha.

Briand ouvia com crescente espanto. O que significaria essa conversa e essa fingida doença? No mesmo instante ele percebeu o olhar mordaz e malicioso de Lourença, que parecia espreitar suas idéias refletidas em seu rosto. O Conde se perturbou.

— Afugente tais pensamentos sombrios, querida! Eu creio que você se restabelecerá.

— Infelizmente! Para que eu me restabelecerei? Gemeu a Sra. d'Armi; não sou necessária na terra, e até você, Carlos, não está me compreendendo e tem segredos de intriga por trás das minhas costas; "eu sou seu melhor amigo, em quem você poderia confiar tudo, o amigo que, não olhando para minhas tênues forças, está pronto a ajudá-lo em tudo."

Um mórbido sentimento dominou Briand. Pela cabeça lhe passou um pensamento de que Lourença sabia de algo e ele notava o tom descontente.

— Com você, querida Lourença, eu não tenho segredo algum e lamento que seu estado doentio lhe incutiu essas estranhas idéias.

A Baronesa nada respondeu; fechou os olhos e ficou pensativa. O Conde a observando, notou uma vaga expressão maldosa e debochada em seus lábios. De repente ela abriu os olhos e dirigindo a Briand um curioso olhar, inesperadamente perguntou:

— Você sabe que hoje, por pouco Diana não se afogou? Estranho acontecimento! A ponte ainda estava bastante resistente... se ela não estava estragada, pode-se concluir que a estragaram de propósito. Mas a quem a criancinha estaria incomodando? O que você acha?

Embora possuindo a capacidade de se controlar, o Conde empalideceu, suportando seu curioso e resistente olhar e perturbando-se.

"Beba vinho, Carlos. Eu vejo que a possibilidade inesperada de se tornar viúvo ainda o agita. Mas por que hoje você está tão calado? Você teve algum pesadelo? Teve um sonho alegre, excelente? Por exemplo — seu primo morreu na Espanha e você se tornou o herdeiro!

Briand se levantou bruscamente, sendo atingido pelo sarcasmo; por um instante a raiva e o pavor lhe tiraram a capacidade de falar. Instintivamente sua mão procurou o cabo do punhal. Uma vontade indescritível de acabar com seu desprezível segredo. Com um penetrante e sarcástico olhar, Lourença observava todas as emoções refletidas muito claramente no rosto pálido e desfigurado de seu amante; sem considerar o perigo a que estava exposta, evidentemente, ela não se mostrava nem um pouco assustada.

Com voz abafada ela disse, destacando cada palavra:

— Acalme-se, querido Conde de Saurmont; deixe em paz o seu punhal! Esse é um perigoso brinquedo nos homens irritadiços. Minha morte não o tornará viúvo, mas para livrar o Sr. Mailor não se pode todos os dias destruir pontes.

Com um suspiro rouco Briand se desarmou. Ele se deixou cair na cadeira e fechou os olhos com as mãos. Parecia-lhe estar perdendo a respiração por causa da idéia de se encontrar sob o domínio dessa víbora, que o segurava com sua dura e traiçoeira mão e certamente sabia tirar proveito, com muita astúcia, da situação criada.

Sua raiva e desespero eram tão grandes e o futuro parecia de tal forma destruído, que por um instante ele teve gana de cravar o punhal em si mesmo. Nesse momento uma mão macia o tocou:

— Carlos ingrato! Você não conhece "seu melhor amigo e leal conselheiro", disse Lourença com uma voz carinhosa e meiga. É possível que você esteja pensando que estou louca, que não compreendo que deve enviuvar e que a tal herança, como seja a de seu tio, não pode ser tirada de suas mãos?... Para mim é muito difícil aceitar sua desconfiança; por enquanto você está me enganando e eu estava pensando à noite toda de que forma melhor poderia pôr em ordem este importante assunto. Eu o amo tão profunda e desinteressadamente que o cedo à sua prima. Quero este casamento para que possa aproveitar todas as alegrias da vida.

Na voz da Baronesa ressoava uma expressão intraduzível.

"Meu coração amoroso segue você, vou viver simplesmente perto de você, em algum pavilhão misterioso que você construiu para seu leal amigo Barão Mailor, transformado em Conde de Saurmont".

Lourença parou de falar, mas vendo que o Conde não lhe respondia, continuou:

— Bem, volte a si e ouça atentamente o plano criado por mim para sua libertação. O assunto é sério e o tempo urge.

O Conde endireitou-se e enxugou o suor que escorria pela testa; estava pálido como um cadáver, mas seu rosto já apresentava sua rotineira expressão gélida. Briand decidiu que em certos momentos era preciso se submeter e não desprezar o perigo. Mas se ela se tornasse muito desagradável ele, no momento exato, sem piedade, a liquidaria.

— Antes de tudo, começou calmamente Lourença, é preciso forçar Justina a adoecer. Isso levará alguns dias. Hoje mesmo você informa que a carta recebida ontem o obrigou a partir rapidamente a Paris devido a um assunto urgente; e lá você, de passagem, se avistará com os parentes. Você acrescenta que vai levar junto a esposa para apresentá-la a sua família. Assim como a doença de Justina vai se estender por algum tempo, você resolverá ir sozinho, sem a ama-seca e me pedirá para me juntar a vocês o quanto mais rápido possível. E assim você partirá, mas como está com pressa e perdeu muito tempo esperando Justina, você escolheu um caminho pela floresta densa, o poupando de grande volta. Henrique e Roberto, que tão estranhamente se parece com você, o escoltarão.

— Tudo está muito bem! Apenas eu não compreendo para que me servirá toda essa comédia? perguntou o Conde impaciente.

— Você agora verá. No caminho daqui até a primeira parada você deve largar a criança na floresta.

Assim, como Roberto se oporá a isso, você e Henrique o matarão e desfigurarão seu rosto. Em seguida é necessário vesti-lo com suas roupas, pôr nele os seus anéis e no bolso a certidão de casamento e os seus documentos do Barão Mailor. De modo que tudo estará acabado.

O bom Barão morto pelos ladrões desaparece para sempre, a morte de Roberto não piorará sua consciência, assim você o matará para que não atrapalhe seu plano, e Diana, se por acaso a acharem, não saberá de nada. Até o assassinato você deverá levá-la para o fundo da mata. E ela, sem dúvida, ficará logo doente de medo. Vamos convencer a todos de que facínoras o mataram e o jogaram no bosque.

Durante o tempo dessa conversa Lourença não tirou os olhos do jovem. Havia um estranho encanto no Conde que a seduzia. Briand se acalmou. Eles, de comum acordo, continuaram a discutir detalhes desse abominável crime.

Briand, calmo e contente voltou para seu quarto, onde Henrique o esperava, furioso e preocupado com o fracasso do seu atentado. Mas quando o Conde desenvolveu diante dele o plano criado por Lourença, o cigano observou com um riso seco:

— É preciso reconhecer que a senhora d'Armi é uma mulher muito inteligente. Admitamos que em seu projeto existam algumas falhas, mas eu me esforçarei em completá-las.

Alguns dias de atraso me serão muito úteis para esse objetivo.

Os dias seguintes foram para Briand uma constante troca de emoções: terror, remorso e impaciência febril.

Justina começou a sofrer forte dor de cabeça e se enfraqueceu por completo. A própria Baronesa abnegadamente cuidou dela, deixando-a apenas para cuidar da arrumação das coisas.

Diana, sozinha, admirada com a perspectiva da viagem ficou contente e despreocupada. Quanto a Henrique, com o pretexto de fazer compras, foi para Angers; à noite do terceiro dia ele voltou e informou Briand que arrumara o importante assunto.

— Como o meu corpo não existirá, então é indispensável que achem pelo menos o cadáver de Roberto, disse ele zombando. Em Angers encontrei uma pessoa magra e morena como Roberto. Sob um razoável pretexto eu o levei à floresta e lá o matei. O corpo dele escondi nos arbustos, perto da plataforma "Cruz Negra". Esse lugar, eu acho, é o melhor de todos para acabar com Roberto.

Na manhã seguinte Briand anunciou que não poderia esperar mais e que deveria partir ao meio-dia. Por isso se apressaram nos últimos preparativos para a partida e na hora combinada, junto à entrada principal, os dois cavalos já estavam atrelados à liteira. Diana vestindo um traje caro, corria em volta do castelo, despedindo-se dos brinquedos, do jardim, do velho cachorro de caça do Barão e principalmente de Lanceio; a despedida desse fiel companheiro de brincadeiras e a briga com o Conde que se recusava a levar o cachorro, trouxeram-lhe amargas lágrimas. Diana disse a Justina apenas até logo e como a boa mulher estava um pouco melhor, dentro de alguns dias deveria unir-se a eles.

O cuidado com a ama-de-leite pareceu esgotar completamente as forças de Lourença, contudo, com a cabeça enrolada em compressas, mas mantendo-se de pé, ela saiu para acompanhar a partida dos viajantes.

Desfazendo-se em lágrimas, Lourença se despediu dos dois, principalmente de Diana; parecia que ela não conseguia se despedir - a beijava e abraçava; não prestando atenção na febril impaciência de Briand, ela o segurou ainda por uma meia hora nos degraus da escada, dando instruções detalhadas sobre os cuidados de como vestir e alimentar Diana. Afora isso lhe deu um bilhete, no qual estava mencionado em quais dos inúmeros cestos estavam coisas úteis ao momento e guloseimas.

Por fim tudo foi dito e mostrado. Briand, a quem toda essa encenação apenas servira para irritar, entrou na liteira, colocou Diana sentada nos joelhos e ordenou partissem. A menina estava muito contente com o novo divertimento e não parava de tagarelar, ora sentada nos joelhos de Briand, ora mexendo nos cestos dos pastéis e convidando seu acompanhante a comer. Mas pouco a pouco o silêncio de Briand e seu estranho e chamejante olhar a assustavam. Ela parou de sorrir e tagarelar e se escondeu no fundo da liteira. O estado de espírito do Conde o deixava incapaz de conversar com a criança. Não desistia da decisão tomada, mas algo nele tremia. Desviava o olhar da menina alegre, que ele implacavelmente trouxe para o sacrifício, em sua ambiciosa cobiça.

Persistente, orgulhoso e ardente ao extremo, Briand não media sua frieza discreta, mas estava preparado para o crime, se no assunto estivessem envolvidos sua ambição de riqueza e grandeza, ou satisfação de suas paixões; mas representar tal comédia, como desejava Lourença, ele achava que não poderia e mesmo não queria.

Passaram-se algumas horas. Os viajantes se encontravam agora no âmago da enorme floresta e a liteira deveria atingir dentro de meia hora a plataforma "Cruz Negra". Nesse ponto as estradas se tripartiam: uma ia para Angers, outra atravessava a floresta, saindo na estrada em direção a Paris e a terceira conduzia diretamente para o castelo de São Germano. Por essa última, Briand, onerado pelas dívidas e arruinado pelos agiotas, ia ocultamente se reapropriar de suas propriedades.

E chegou o momento de agir. Energicamente reprimiu os vagos protestos da consciência; o Conde se endireitou.

— Por que você está tão calada, Diana? Vamos dar uma volta. A propósito, você colherá flores. Olhe que estranhas campânulas azuis estão crescendo à beira da estrada!

A menina olhou para ele com uma expressão estranha e curiosa e balançou negativamente a cabeça. A voz rouca do Conde e seu febril olhar a assustaram.

— Neste caso eu a carregarei um pouco, propôs Briand, ordenando parar. Vocês vão adiante, disse ele a Roberto e Henrique - eu quero dar uma volta. Se nós não nos encontrarmos até a "Cruz Negra", então vocês parem lá e esperem.

Trazendo Diana no colo, o Conde ia devagar sob a espessa folhagem, e, furtivamente, se afastava da estrada. Em vão ele propôs à menina correr e colher um buquê de flores. Como ela instintivamente estivesse sentindo o perigo ameaçador, Diana enlaçou-se ao pescoço de Briand em silêncio e se apertou contra ele. O Conde ouviu o palpitar acelerado do seu coraçãozinho e o contato da meiga e aveludada face lhe provocou um arrepio. Ele se deteve. Era preciso acabar. Os imprevistos dessa hora quase dominaram suas forças.

— Espere-me aqui, Diana, vou deixá-la um instante, ele disse com voz abafada, tentando colocar a menina no chão. Mas ela desesperadamente se agarrava a ele gritando:

— Eu não quero! Sem você tenho medo, Carlos!

Em condição de não mais se controlar, o Conde arrancou com força as mãos enlaçadas de Diana, colocou-a à força no chão e se pôs a correr em direção à estrada. Os soluços da pequenina lhe davam a sensação de um golpe de lança, mas o orgulho e a cobiça o dominavam, a tal ponto, que abafaram todos os sentimentos humanitários. Apenas uma vez ele se virou e viu que a menina tentava correr atrás dele, mas de repente ela tropeçou numa raiz, caiu, e, com um gesto infantil de desespero cobriu o rosto com as mãos. A imagem da criança caída no chão, o pequeno e nervoso rostinho emoldurado pelos cachos despenteados louros, ficaria gravado de uma forma inesquecível na memória de Briand... não olhando mais para trás, ele continuou a correr e logo chegou à liteira que o esperava no prado.

Roberto tendo se virado no seu assento com visível intranqüilidade e desconfiança, olhava para a estrada. Talvez tivesse ouvido os gritos de Diana... Henrique, de guarda, colocou a mão no cabo do punhal.

— Onde está a criança? O que fez com ela, Sr. Barão? o fiel criado perguntou com inquietação, vendo Briand sentando na liteira.

— Eis o que o ensinará a não se intrometer nos assuntos que não lhe dizem respeito! gritou Henrique, cravando o punhal nas costas de Roberto que caiu no chão sem dar um grito.

— Depressa ao trabalho, Sr. Briand! Tire-lhe a roupa enquanto eu trarei o substituto, acrescentou Henrique se dirigindo para o matagal de onde apareceu com o cadáver, que jogou perto da liteira. O trabalho sombrio estava concluído. Desta vez o Conde ajudou Henrique com vigor. Para o assassinato do pobre criado Briand se comportou de forma completamente indiferente, recuperando a fria decisão. Rapidamente tirou a roupa para vesti-la em Roberto e com um tiro de pistola o desfigurou, para eliminar aquilo que o cadáver atrapalhava na semelhança com o Conde. No dedo do morto colocou o anel de noivado e no bolso os documentos do Barão de Mailor. Transformaram o segundo cadáver em Roberto. Depois viraram e devastaram a liteira. Disfarçados, os dois facínoras depressa deixaram esse lugar de morte e consternação e se dirigiram para o lado oposto que deveriam seguir. Na primeira estalagem suficientemente distante para não levantar suspeitas, eles trocaram de roupa, trocaram os cavalos e imediatamente se dirigiram à cidade portuária, onde, conforme a situação, Briand deveria aguardar sua cúmplice.

 

MAIS UM CASAMENTO

Passaram-se três dias do acontecimento narrado e nenhuma notícia havia então chegado ao Castelo d'Armi, onde Lourença ativamente se preparava para a partida, visto que Justina se sentia muito melhor.

No quarto dia, de manhã, chegou um camponês assustado e informou que na noite anterior ele havia encontrado junto à "Cruz Negra" a liteira virada e dois cadáveres nos quais se reconheciam o Barão de Mailor e Roberto. Diante dessa notícia Lourença perdeu os sentidos. Todas as pessoas do castelo foram tomadas por autêntico pasmo.

Ninguém sabia o que fazer. Voltando a si, a Sra. d'Armi deu algumas ordens indispensáveis e demonstrou uma extraordinária atividade e energia. Mandou avisar as autoridades e se dirigiu pessoalmente ao local do crime. Com gritos e desmaios provocados pela visão do cadáver de Mailor e o desaparecimento de Diana, Lourença fez todo o possível para procurar sua enteada. A floresta toda foi vasculhada, em todas as direções foram enviados mensageiros, mas tudo em vão - nem a menina, nem seu cadáver foram encontrados, como se a floresta a tivesse engolido, ou bandidos a tivessem raptado, matando seu marido.

Lourença parecia ter enlouquecido de desespero. Gritos e gemidos eram ouvidos por todo castelo. Subitamente ela informou que precisava ir se encontrar com o Barão João e lhe noticiar a respeito do acontecimento. Ela partiu deixando a pobre Justina com uma febre fortíssima. Justina sofria no próprio coração o desaparecimento de sua pupila.

Está claro que a Sra. d'Armi não pensava em ir até o marido e se dirigiu diretamente a Barcelona, onde já a esperava o amante agora transformado em Conde de Saurmont.

— Bem, então? Como tudo saiu? Briand perguntou preocupado quando ficaram a sós.

— Tudo correu às mil maravilhas, o que aliás sempre ocorre quando os meus conselhos são ouvidos, respondeu sorrindo Lourença. A morte do respeitável Barão de Mailor foi constatada de forma legal e enterrado com as honras correspondentes no jazigo do castelo d'Armi. Toda província está comentando esse assassinato.

— E Diana? perguntou o Conde com a voz indecisa.

— Ela desapareceu, não deixando sequer vestígio, e você, sinceramente, pode se considerar viúvo.

— Você pensa que ela morreu, Lourença?

— Isso não é provado, mas é muito provável. Encontrá-la-iam viva em algum lugar? Eu penso que se isto acontecesse, ela se esconderia de medo na floresta e lá terminaria seus dias.

Pálido, respirando com dificuldade, Briand se encostou na parede; um terrível sentimento de pavor e remorso lhe contraiu o coração. A imagem da pequena criança com mórbida nitidez se desenhou diante dele.

— Não há nada mais estúpido do que o remorso; é preciso saber suportar aquilo que a coragem faz. Semelhante fraqueza é indigna de um homem, disse Lourença interrompendo a reflexão do jovem.

Briand se endireitou e limpou o suor que corria em sua testa.

— Pois não foi mesmo por ninharia que você se decidiu a agir daquela forma; e assim como a situação é irremediável, então me parece que ao invés de se entregar a uma tola compaixão, você deveria se apressar e visitar seu tio, que certamente está surpreso com sua longa ausência, prosseguiu Lourença.

Estas palavras e a costumeira influência que exercia no Conde fizeram efeito. Ele se acalmou rapidamente e lhe voltou a habitual lucidez.

Chegando em Madrid, Briand temporariamente acomodou Lourença, tendo prometido lhe informar sobre todo o andamento do assunto. Depois se dirigiu em companhia de Henrique a Pompelum, pois o castelo de Guevara se encontrava nos arredores.

O sol estava se pondo quando Briand subiu a trote a elevada colina; em seu cume fora erguido o antigo castelo. A visão interior de uma colossal parede e altas e recortadas torres, altivamente desenhadas no azul do céu intensificavam as batidas do coração do Conde. Nessa moradia de príncipe ele agora entrava na qualidade de dono. Pela primeira vez desde aquele minuto em que abandonou Diana, ele respirou livremente, a plenos pulmões.

A recordação do crime cometido que o estava dificultando pegar o caminho do castelo já havia sumido e se encontrava num distante passado. Quando o Conde entrou pela grande porta, alguns criados correram em sua direção; ajudaram-no respeitosamente a descer do cavalo e informaram que havia visitas no castelo. Don Rodrigo e as visitas se encontravam na grande sala que dava saída ao terraço.

Avisado da chegada do sobrinho, o velho senhor saiu ao seu encontro. Beijando o recém-chegado, sussurrou-lhe ao ouvido:

— Quer dizer então que a sua chegada pode ser considerada como uma resposta afirmativa?

— Sim, tio; se a prima conceder a honra de eu me tornar seu marido, respondeu em tom mais baixo ainda.

O velho Conde sorriu e apertou-lhe fortemente a mão.

— Vocês será uma presença desejada. Eu o apresentarei às visitas como meu futuro genro.

Na sala se reunião uma multidão de senhoras e damas, todos em torno de Mercedes, que, de rosto pálido, se ruborizou de uma forma brilhante e expressiva, quando o primo lhe beijou a mão.

Durante o jantar, Don Rodrigo anunciou o noivado. O casamento foi marcado para dentro de seis semanas. O momento seguinte foi muito animado e absorveu definitivamente a atenção toda de Briand. Orgulhoso e feliz ele esqueceu por completo do passado. Inicialmente o tio lhe deu a administração de grande parte de suas propriedades.

O velho Conde se sentia cansado e doente. A morte de seu filho único lhe partiu o coração e ele sentia cansaço pela vida. Depois Don Rodrigo o conduziu a Madrid e o apresentou ao Rei, como seu futuro genro.

Ele pediu permissão para transmitir aos filhos de sua filha o nome e as propriedades. Assim como, na ausência de herdeiros diretos, eles deveriam passar para algum herdeiro de suas filhas.

Sua Majestade, com benevolência, concordou com este pedido. Foi dada permissão para receber o nome de Saurmont Guevara após a morte do sogro. Briand foi condecorado com a "Ordem da Grande Espanha, Primeira Classe". Um grande contentamento tomou conta de sua orgulhosa alma, quando ele, pela primeira vez, compareceu diante do Rei.

O reflexo desse contentamento foi demonstrado em forma de carinho e amabilidade para com Mercedes, que já havia se desacostumado com isso.

Durante o tempo de permanência em Madrid, Briand visitava Lourença. Ele havia acertado alojá-la em Pompelum, assim como freqüentemente a visitava sem chamar atenção.

Finalmente chegou o dia do casamento. Desejando comemorar festivamente esse dia, Rodrigo convidou para a cerimônia toda nobreza. Briand estava com um traje coberto de brilhantes; embora Mercedes estivesse ricamente vestida e com jóias da família, não parecia muito apresentável e tinha uma expressão de doente, quando comparada com as esbeltas e bonitas pessoas postadas no altar da capela.

Desde o momento de sua chegada, Briand se encontrava ocupado com a quantidade de assuntos celebrando seu amor-próprio. Mas quando entrou na capela iluminada e repleta de pessoas elegantes, foi invadido por um sentimento doentio. Com nitidez mórbida diante dele surgiu a pequena capela sombria e vazia do Castelo d'Armi.

Com enorme esforço de vontade, ele queria afastar essas insuportáveis recordações, mas tudo foi inútil; com uma clareza assombrosa todos os detalhes do seu primeiro casamento passaram pela sua mente. Ele viu o pequeno e encantador rostinho de Diana, seus longos cachos dourados e a expressão séria dos olhos claros. Ainda soava em seus ouvidos o "sim" pronunciado com uma sonora voz infantil. Essa impressão foi tão forte que ele estremeceu. Seu olhar deslizou tímida e lentamente para uma mulher feia, de perfil esquelético, parada ao lado, de joelhos - sua noiva...

Uma espantosa palidez subitamente se espalhou pelo rosto do noivo, de tal forma que chamou a atenção e o sacerdote olhou espantado para o jovem. O Conde reuniu toda sua força de vontade para superar essa perigosa fraqueza e conter o tremor das mãos quando colocasse a aliança.

Quando enfim a cerimônia acabou, um verdadeiro suplício para ele, suspirou com alívio. A nova esposa de Briand estava bem longe de ser como aquela de quem ele se livrara; Mercedes era exigente, loucamente apaixonada por ele, ciumenta e desconfiada. Ela estava se considerando feia e sentia que, sob a amabilidade fingida do marido, se escondia uma completa indiferença para com ela. Cada ausência de Briand agitava a jovem mulher e a amabilidade dele em relação a outra mulher a irritava, sendo motivo para cenas desagradáveis. Já que o jovem Conde não deu motivo para se desconfiar de sua fidelidade, Don Rodrigo tomou posição favorável ao genro e convenceu a filha, mostrando-lhe que tal comportamento imprudente apenas afastaria de si o coração do marido.

Ele falava que Briand não poderia deixar de ser cortês e gentil com as damas. Ele seria ridículo se levasse a esposa à caçada ou se fosse com ela em viagens de negócios a Pompelum ou a alguma parte de sua propriedade.

Estava claro para Briand a situação das coisas. Difícil era sustentar uma relação com Lourença. A propósito, ele não era suficientemente corajoso para desprezar a perigosa amante. Por isso ele confiara esse assunto a Henrique. O cigano alugara uma casa solitária no subúrbio de Pompelum e transportou a Baronesa para lá. Aliás, ela em tais delicadas circunstâncias manifestou uma rara delicadeza. Fechada em seu refúgio, não saía para nenhuma parte e parecia que não se ofendia com as raras visitas de Briand, absolutamente. Ela apenas se aborrecia, e o único meio de distraí-la — delicadamente ela sugeriu esse fato a Briand — seria que ele a presenteasse mais freqüentemente com jóias preciosas.

Quisesse ou não, o Conde deveria ser atencioso; distrair Lourença e manter seu bom estado de espírito. Para tal situação as coisas eram terrivelmente difíceis; a idéia da presença da desonesta megera intrigante era para ele constante perigo, oprimindo-o, e a avareza do Conde revoltava Lourença. Afinal ele já se cansara de sua amante, um tanto velha e sem valia, e considerava não ser mais possível se fingir apaixonado pelas duas diferentes mulheres. E Briand começou a procurar algum meio de sair dessa desagradável situação. Ele possuía uma extraordinária mente engenhosa, e, conhecendo até em detalhes a natureza rude, indisciplinada e apaixonada da Sra. d'Armi, armou um plano inicialmente vago nos aspectos gerais.

Um feliz acontecimento o ajudou a realizá-lo antes do que esperava.

Um assunto urgente obrigou Briand a partir inesperadamente para uma propriedade do tio, situada nos arredores de Córdoba; durante a viagem o Conde se resfriou e no dia seguinte da chegada ao castelo se sentiu tão mal que ficou de cama e ordenou ao criado chamar um médico.

— Isso levará muito tempo, senhor, respondeu o velho criado. Se for à cidade será então preciso para isso umas vinte horas e o médico mais perto, o velho Peret, está meio cego e surdo.

— Apesar disso é preciso chamar um médico. Não posso morrer aqui sem qualquer ajuda, respondeu impaciente Briand.

— Aqui na aldeia temos um médico muito bom. Ele, em verdade, não possui uma grande fama, mas é excelente. Se o Sr. Conde permitir eu o trarei; estou convicto de que ele o curará.

— Certamente deve ser algum charlatão! Mas quem ele curou?

— Primeiramente nosso padre Manoel. Nem os médicos da cidade, nem romaria em Compostela conseguiram curá-lo, mas Don Alberico colocou-o em pé. Depois ele salvou uma moribunda, esposa do nosso coletor.

— Bem, então vá agora mesmo e o traga rapidamente, respondeu o Conde.

Briand se apressou em se curar. Vários assuntos difíceis o esperavam; a possibilidade de que Dona Mercedes suspeitasse de algo em conseqüência do tardio regresso ao castelo provocou-lhe arrepios.

Passadas duas horas o criado trouxe o doutor ao quarto do Conde que adormecera num pesado sono febril. Don Alberico lançou em torno de si um olhar curioso. Pela primeira vez ele atravessava a soleira de um castelo e o luxo da mobília, aparentemente, provocou uma forte impressão no pobre médico de aldeia. Quando Briand acordou, Don Alberico, com profunda reverência e gesto de humildade, aproximou-se dele e confiou se poderia contar com a benevolência do Conde.

O Conde olhou para ele — para a rara beleza do médico. Don Alberico se distinguia por ser um puro tipo ocidental, estatura média, excelente complexão, rosto bronzeado e grandes e aveludados olhos pretos. Este jovem devia ser de origem moura ou judia. Não olhando para o traje e sapatos gastos, chapéu esburacado, estropiado, que ele agitava graciosamente, sua aparência evidentemente chamava atenção.

O médico se mostrou muito experiente e disse ao cliente que teria de voltar para casa e preparar o remédio que ele mesmo traria ao Conde, já que este tinha presa em se recuperar.

Realmente no dia seguinte Briand se sentia completamente curado, e, apenas cedendo ao pedido do doutor, ficaria na cama até a sua chegada. Fixando o olhar no rosto vivo do médico e interrogando-o sobre seu passado e planos futuros, o Conde ponderava sobre a idéia que lhe aparecera de manhã, cuja realização lhe parecia cada vez mais fácil. Ele convidou Don Alberico a visitá-lo semanalmente, pois por enquanto ele ficaria no castelo para evitar o retorno da doença. Assim que ficou sozinho Briand sorriu satisfeito consigo mesmo.

— Esse doutor é esperto, ambicioso e astuto. É como se ele tivesse sido criado para me libertar de minha sócia. Lourença não seria Lourença se perto de tal beleza não me forçasse mudar, murmurou Briand. Eu preciso apenas levá-lo comigo, o que a propósito não será difícil, assim como eu lhe darei mais do que a infeliz prática que aqui lhe é oferecida.

Dois dias antes da partida, o Conde o pagou regiamente e lhe disse:

— Don Alberico! Eu agora me convenci de que o senhor é um excelente médico e gostaria de conservá-lo junto de mim. Estou pensando ir à França dentro de uns dois

meses para visitar minhas terras e me apresentar à corte. O senhor me acompanhará e, acredito, posso lhe prometer que sua carreira estará feita.

O médico, radiante, desmanchou-se em expressões de lealdade.

— Espere. Até a minha partida o senhor terá de viver solitariamente em Pompelum. Eu não posso levá-lo comigo ao castelo de Guevara pois o médico que cuida de meus tios esforçar-se-ia em lhe prejudicar a vida. O louvável Don Peret defende ciosamente sua posição e de todas as formas procurará lhe prejudicar. Por isso eu o colocarei em casa de uma conhecida minha. Esta dama é uma excelente mulher; tive contato com ela até o meu casamento; negócios a estão segurando ainda em Pompelum.

Tudo saiu segundo o desejo do Conde; Don Alberico foi instalado em um quarto solitário da casa de Lourença. Este com uma admirável delicadeza avaliou a situação das coisas e manifestou uma extrema discrição, o que provocou em Briand a melhor das impressões sobre a capacidade diplomática do médico. Lourença devorou com os olhos o espanhol e mal ouvia Briand.

Na visita seguinte o Conde já achou a Sra. d'Armi seriamente doente e Don Alberico à cabeceira. Mal contendo um riso, ele voltou ao castelo de Guevara.

Agora eu preciso apenas ser mais generoso e ciumento que habitualmente, murmurou ele, e tudo correrá às mil maravilhas pela expressão do meu amável amigo.

Desde esse dia as visitas a Lourença eram muito divertidas. A Baronesa estava constantemente doente e Alberico cuidava dela. Apenas as surradas roupas do doutor foram trocadas por roupas de veludo com colarinhos de renda. Em seu dedo brilhava um magnífico rubi.

Aproveitando esse acontecimento, o Conde manifestou desconfiança e fez uma cena de ciúmes com sua amante. Lourença astutamente se esforçava em acalmá-lo, mas Briand continuava vigiando, chegando inesperadamente e de todas as maneiras se esforçava para incomodar esse idílio.

Finalmente chegou o momento de Briand efetuar o golpe decisivo. Certa vez à noite ele veio com uma pesada mala que mandou levar ao quarto de Lourença.

— Ordene agora mesmo que me sirvam o jantar porque eu preciso ir para casa, ele disse. Vou deixar essa mala até amanhã; nela há dez mil escudos que consegui esconder de meu tio para minhas necessidades pessoais. Amanhã eu volto a pegá-la. A propósito, ordene a Alberico vir aqui, preciso falar com ele.

— Você está doente? A Baronesa perguntou com desconfiança.

— Não, mas o meu tio está, e como o próprio

Bartolomeu Peret teme que seja gota, então eu quero aproveitar a ocasião e apresentá-lo a Alberico. Estou confiante de que ele curará meu tio. Aí então ele poderá se instalar no castelo e acompanhar Don Rodrigo a Salerossa, onde deverá ficar três meses. Quero avisar o doutor que amanhã o convidarei para ir ao castelo.

Conforme ele falava, o rosto de Lourença assumiu uma expressão de preocupação e ela apressadamente saiu do quarto. O jantar foi logo servido e devido a um infeliz acontecimento, Don Alberico não se encontrava presente e Briand devia partir.

Dentro de três dias novamente o Conde voltou a Pompelum. O estado de Don Rodrigo lhe dava uma boa desculpa para as constantes vindas à cidade. Para grande satisfação o velho que tomava conta dos portões da casa de Lourença lhe informou que naquela mesma noite em que ele estivera ali, a Baronesa fez as malas e no breu da noite saiu com Don Alberico, avisando que ela estava deixando a cidade para sempre. Briand percorreu todos os quartos, convenceu-se, como aliás imaginava, de que sua mala e todos os objetos mais ou menos valiosos tinham sumido. No quarto de dormir, em cima da mesa, ele achou o seguinte recado:

"Querido amigo Carlos! Eu sempre vou guardar uma boa recordação sua e nos momentos difíceis de minha vida espero encontrá-lo. Eu tanto colaborei para sua felicidade que seria terrível abandoná-lo para sempre, No presente momento você é muito incomodo para mim. Eu me permito fazer um pequeno empréstimo totalmente honesto".

Muito satisfeito com o êxito de sua artimanha, Briand, rindo, rasgou a mensagem que tão bem caracterizava Lourença.

— Tudo correu como havia planejado ...para você o infortúnio por ter se atrevido a fazer isso! ele resmungou e se dirigiu a galope ao castelo.

Briand já pensava que se tinha livrado de todas as preocupações e, de repente, certa vez de manhã, apareceu Henrique e lhe informou que queria se despedir e se fixar em outro lugar; pelos seus serviços e silêncio ele exigiu uma grande soma. Briand não poderia dispor de tal soma sem o conhecimento de Don Rodrigo e por isso tentou baixar a pretensão do cigano, mas Henrique insistiu de uma forma tão impertinente que Briand teve que ceder. Deu o dinheiro sob a condição de que sumisse definitivamente; quando, em uma linda manhã, o cigano desapareceu do castelo, o Conde convenceu Don Rodrigo que o ingrato tinha roubado a quantia que ele mesmo dera.

Desta vez Briand estava confiante de que acabara por completo com os crimes ocorridos - e cada lembrança lhe era odiosa; pela primeira vez ele respirou totalmente livre e entregou-se a todos os prazeres da alta e elevada posição que comprara tão caramente.

Passou-se mais de um ano sem que ocorresse qualquer acontecimento especial. A vida no castelo corria como antes, apesar de não ser tão ruidosa. Como Mercedes se preparava para ser mãe, sua fraca saúde exigia tranqüilidade e cautela.

Certa vez à noite, quando Briand passeava sozinho perto do castelo, um ciganozinho deu-lhe uma carta. Para surpresa do Conde, a carta era de Henrique, o qual escrevia que havia lhe ocorrido uma desgraça e pediu novo subsídio. O Conde compreendeu: essa tranqüilidade comprada o conduziria por fim ao definitivo desespero.

Agarrando pelo colarinho o pequeno mensageiro, ele o encheu de chicotadas; depois lhe ordenou transmitir àquele que o tinha enviado que ele sempre poderia encontrar ali a força, nada mais. O garoto, gemendo, saiu correndo.

Um pouco mais calmo o Conde lamentou que se tivesse deixado arrebatar tanto, mas passados dois meses e Henrique não dando sinal de vida, Briand se tranqüilizou, decidindo que o cigano não quis irritá-lo com um novo pedido.

Certa vez, de manhã, desejando conversar com Don Rodrigo, Briand se dirigiu até seu gabinete. Para sua grande surpresa a porta do gabinete que estava sempre aberta, desta vez se encontrava fechada; ele bateu algumas vezes e não recebeu resposta, embora lhe parecesse ouvir passos e vozes atrás da porta. Por fim ela se abriu e o próprio velho Conde deixou o sobrinho entrar, e fechou cuidadosamente o ferrolho. O jovem já se preparava para perguntar, por brincadeira, que significava tal mistério, quando notou uma expressão no rosto do tio que lhe tirou completamente a capacidade de falar. O velho estava irreconhecível - tremia como se estivesse com febre, pálido, o rosto desfigurado estava salpicado de manchas escuras e os lábios tremiam impedindo-o de falar.

— Tio! Que aconteceu?! Briand disse finalmente, recuando de terror, enquanto Don Rodrigo caía sem forças numa cadeira.

Diante da pergunta o velho senhor deu um salto como se fosse tomado pela ação de uma corrente elétrica. Segurando a mão de Briand, ele o sacudiu com força e advertiu com voz irreconhecível:

— Bandido miserável! Traidor oculto de minha filha e da honra de meu nome! Falso Barão de Mailor. Não pode mais falar.

Briand, derrotado, estava calado e imóvel; apenas uma idéia lhe veio à cabeça: quem poderia ter falado ao tio sobre o terrível segredo!?

— Ah, miserável! Mil vezes assassino desonesto, que lançou na morte uma criatura inocente. Faminto de morte e a criaturinha ligada a você de forma sagrada!... gritou o Conde. Mas eu me vingarei de você, bandido! Eu descubro a minha vergonha e o entrego às mãos da justiça.

Espumando de raiva, cambaleando como bêbado, o Conde mal se arrastou até a escrivaninha, as forças o deixaram e ele caiu na poltrona; com um máximo esforço ele se soergueu e tentou alcançar a pesada sineta colocada ao lado do tinteiro.

Esse movimento fez com que Briand voltasse a si. Ele entendeu que, se a sineta começasse a tocar, atrairia criados e, para ele, não haveria mais solução. A honra, posição e até a própria vida, tudo estaria perdido. Um medo terrível se apossou dele; logo, rápido, e movido mais pelo instinto que por reflexão, ele se jogou em direção de Don Rodrigo, o agarrou pela garganta e o derrubou da poltrona. O velho se livrou, tentando gritar; foi então que Briand agarrou uma almofada de veludo e apertou contra o rosto do Conde; a luta continuou silenciosa e desesperada por alguns segundos, mas logo Don Rodrigo retesou os dedos e ficou imóvel.

A almofada caiu das mãos trêmulas de Briand; com dificuldade, tomando alento e depois se sentindo cair ele se apoiou na escrivaninha; sua cabeça girava e os olhos como que cresceram fitando o pálido e deformado rosto do cadáver. Nesse minuto uma mão caiu em seu ombro e uma voz zombadora disse:

— Excelente negócio você arrumou, Barão de Mailor!

O Conde se virou rápido e um grito surdo, furioso, se desprendeu de seus lábios, quando viu Henrique. Ele estava de pé diante dele, com a mão segurando o cabo do punhal.

— Miserável, Ingrato! Delator! gritou com voz roufenha.

Henrique o olhou com desprezo e insolência.

— Só quero saber: quem de nós é miserável? Em todos os casos você ganhou dos crimes perfeitos cometidos por nós e este, - apontou para o cadáver - é uma prova evidente de que você não é ingrato. Na outra vez, Sr. Briand, seja generoso com seus cúmplices e não os leve à vingança; agora mesmo eu lhe dou três minutos para refletir se deseja pagar-me devidamente pelo silêncio sobre este novo crime ou tentar entrar comigo numa luta. Não será tão fácil me obrigar a calar como a este velho; se eu for o vencedor, eu o entregarei à Justiça. Aqui está a corda para amarrá-lo. E ele levantou a mão, na qual estava enrolada uma corda longa e forte.

Enquanto o cigano falava assim com o Conde, este restabelecera o autodomínio, apesar da raiva. Briand entendera que aquela não era a hora de discutir ou negociar, e além disso, ele conhecia bem a força hercúlea de Henrique.

— Qual é o preço do seu silêncio? ele perguntou. Henrique disse uma grande quantia e citou algumas jóias de grande valor, acrescentando com cinismo que as jóias estavam na gaveta da escrivaninha e o dinheiro no cofre colocado na parede. Briand nada falou; entregou-lhe tudo que exigia. Henrique colocou tudo num saco que trazia, apertou um botão secreto na porta, coisa que o Conde nunca havia suspeitado existir, e sumiu...

Sozinho, o jovem retomou sua habitual presença de espírito e com firmeza colocou tudo em ordem, apagando todos os vestígios da luta. Na escrivaninha ele espalhou contas e papéis, jogou a pena no chão para que todos pensassem estar o Conde trabalhando quando a morte subitamente o pegou. Em seguida saiu; os quartos vizinhos estavam vazios; o próprio Don Rodrigo dispensara os serviçais e apenas no quarto da frente estava o ajudante. Briand o avisou que o Conde estava muito ocupado e que tinha proibido que o incomodassem, caso tivesse necessidade, chamaria. Isso freqüentemente acontecia, o que não traria suspeitas. À hora do jantar o velho criado, preocupado com o longo silêncio do senhor, arriscou entrar em seu escritório; imediatamente altos brados anunciaram a todo castelo sobre o infeliz acontecimento.

Fingindo-se assustado, Briand correu em direção ao morto. Sob seu cuidado foram tentados todos os meios para que Don Rodrigo recuperasse os sentidos, mas certamente tudo foi em vão. Um acontecimento favoreceu o assassino — Bartolomeu Peret, o velho médico do castelo, tinha partido ainda na véspera para ficar alguns dias em casa de sua filha que estava doente. Então nenhum olhar experiente viu no cadáver sinais suspeitos de morte violenta. E quando voltou o doutor, Don Rodrigo estava, com toda suntuosidade compatível com sua posição, enterrado no jazigo da família.

Para a pobre Mercedes a perda do pai e o terrível susto causado pela morte inesperada tiveram conseqüências desastrosas.

Desde esse dia ela andou doente, e dentro de seis semanas lhe nasceu o filho que lhe custou a vida. Sua morte trouxe grande alívio a Briand. Livrou-o do peso de suas mulheres, deixando a ele o filho que lhe garantia todas as vantagens de seu casamento criminoso; enfim ficou único proprietário da colossal fortuna e firmemente se decidiu aniquilar seus cúmplices, se eles aparecessem, em qualquer época.

 

A CRIANÇA ABANDONADA

Quando Briand desapareceu entre as árvores e Diana compreendeu que tinha ficado sozinha, ficou paralisada de terror. Não tinha sequer força para gritar. Apenas eram ouvidos tiros em algum lugar perto, o que fez com que ela saísse do torpor em que se encontrava.

Sob a influência deste novo susto, a criança novamente se pôs a correr. As fracas perninhas começaram a tremer; ela parou e se apertou contra um tronco de um enorme carvalho, com soluços chamando Justina, Antônio, pessoas do castelo, e até o cachorro Lanceio, fiel amigo. Mas, infelizmente, apenas o eco respondeu, e por fim, esgotadas as lágrimas, a pequena se silenciou.

Anoiteceu. As elevadas árvores produziam gigantescas sombras na clareira da relva e sob os ramos já estava completamente escuro. À medida em que a escuridão aumentava, um novo terror se apoderou da pequena e infeliz criatura; recordava-se de todas histórias de lobos, cobras, fantasmas e diversos monstros, com os quais Justina a distraía nas longas noites de inverno. Cada som da floresta, o estalido de um ramo seco sob as patas dos cervos, o barulho das folhas, o grito de alguma ave noturna obrigavam-na a se levantar de terror e se apertar contra o tronco de carvalho. Além disso a criança estava faminta e gelada, pois o orvalho abundante umedecia suas roupas leves. Com o corpo todo tremendo, Diana fechou os olhos. Ela não tinha mais forças para gritar; até o terror pouco a pouco mudou para uma apatia mortal.

Quando a lua surgiu, uma luz suave penetrou através da folhagem, iluminando fracamente a clareira. Ali pertinho, na floresta densa, se ouviu um forte estrondo. Dos arbustos saiu um enorme cachorro com pêlos espessos que se dirigiu diretamente à criança que estava caída no chão úmido. Diana não se moveu.

O animal olhou Diana e começou a lhe lamber o rosto. Diante desse contato a criança abriu os olhos, transpirando pavor; olhava para o cachorro, o qual tomava por lobo e pensava que ele a iria comer; mas como o monstro aparentemente não se apressava em devorá-la, mas ao contrário, balançava amigavelmente o rabo, Diana de repente pensou que era Lanceio seu amigo, apenas muito maior. Enlaçou o pescoço do animal e apertou a cabecinha na sua espessa pelagem.

A amizade se selou rapidamente. Continuando a lamber a menina, o cachorro se sentou ao seu lado. Feliz, Diana não se sentia mais sozinha, apertava-o contra si e se aquecia com seu contato. Dentro de curto espaço de tempo o animal demonstrou impaciência e se levantou como se estivesse preparando para ir embora, mas Diana estava apavorada de terror com o fato de novamente ficar sozinha e se agarrou com força nele; o cachorro se sentou, mas rápido voltou a se levantar, esforçando-se em trazer consigo a menina. Finalmente os novos amigos se compreenderam.

A menina se levantou e se agarrou com as duas mãozinhas na coleira do seu condutor e foi ao lado dele, o quanto permitiam suas perninhas trêmulas e inertes. Assim andaram bastante; quando Diana parava para tomar fôlego o cachorro pacientemente a esperava ela estava muito pesada e agitada; sua cabeça girava e ela, perdendo a consciência caiu no chão.

Seu enorme acompanhante parou no mesmo instante. Pareceu pensar e decididamente agarrou com os dentes a roupa de Diana e prosseguiu caminho carregando cuidadosamente sua carga.

A uma certa distância da estrada principal onde se bifurcava para a aldeia e o castelo de São Germano, encontrava-se um grande prado rodeado por tão espessos arbustos que da estrada era impossível ver o que lá acontecia. No meio desse prado estava armada uma fogueira em torno da qual estavam sentadas algumas pessoas: uma jovem mulher pálida e prematuramente definhada, vigiava a grossa sopa que estava cozinhando; dois garotos vorazes seguiam cada movimento dela; três homens, um dos quais corcunda e anão, e os outros dois eram jovens de porte atlético.

Após todos terem saciado a fome, a mulher despejou o restante em uma louça quebrada, esfarelando os restos de pão e lançando um olhar em volta perguntou:

— Onde está mesmo Merlem? Ele deve estar faminto e, a propósito, não veio jantar.

— Ele correu para a floresta; pode ser que ele nos traga alguma lebre, respondeu um dos jovens e assobiou alto.

Um latido distante foi a resposta; dentro de uns dez minutos saiu do bosque o cachorro trazendo nos dentes Diana, com um alegre ganido e colocou sua carga nos joelhos da jovem senhora.

— Senhor! Jesus Cristo! A criança está morta! Sim... e ainda é uma pequena dama. Onde Medem a encontrou?

Todos, com curiosidade, se reuniram em torno dela.

— Não, a menina não morreu, apenas está desmaiada. Está viva, Maturina! Ela precisa ser friccionada e colocar em sua boca alguma coisa quente, disse um dos jovens, trazendo Diana para perto do fogo e esfregando-lhe as mãos.

Graças a tais medidas a pequena logo abriu os olhos e avidamente bebeu uma caneca de leite de cabra e comeu um pedaço de pão, de modo que, tendo sido revigorada, ela se sentiu com forças para responder às perguntas. Mas o terrível cansaço e o medo passado pareciam que tinham tirado por completo a memória da criança; dela apenas puderam saber que se chamava Diana, que se separara da ama-de-leite Justina, madrasta, cachorro Lanceio, que tinha ido fazer uma longa viagem e Carlos largou-a na floresta, tirando-a da liteira sob o pretexto de colher flores. Perguntada sobre Carlos, a menina após uma madura reflexão respondeu que ele era seu marido; um receio mortal de ficar novamente sozinha fez com que Diana começasse a chorar e a implorar que não a deixassem na floresta.

— Ah, Deus! Tão pequena e já uma mulher casada! Mas não tema, menina, nós não a jogaremos como fez seu malvado marido, garantiu Maturina beijando a menininha.

Quando por fim Diana dormiu nos joelhos da jovem mulher, ela a conduziu para o furgão e a colocou ao lado de seus filhos. Depois, todos da família de acrobatas viajantes, começaram a discutir como atuar no imprevisto acontecimento.

— É preciso entregá-la a algum funcionário local para ser encontrada pelos seus. Nós mesmos não podemos percorrer todos os castelos...

— Entregá-la para que matem este anjo? Pois se a jogaram na floresta para que morresse de fome... disse Maturina.

— Eu proponho deixá-la, manifestou o marido da jovem senhora.

— Ainda mais! Deixar esta nobre criança acostumada com o luxo, quando nós próprios mal podemos nos sustentar! observou o anão, antigo palhaço da companhia, encolhendo os ombros.

— Espera, Henriquinho. Acha que a menina será para nós um peso? Ao contrário, ela nos ajudará; ela é bonita como um sonho... nós lhe ensinaremos nossa arte; ela se apresentará junto com Mercedes e Jacó e vai percorrer o público.

Essa opinião venceu. Diana ainda dormia quando o furgão se pôs a caminho na estrada. Após alguns dias de descanso começaram a ensiná-la a andar na corda e vários outros números.

Nos primeiros momentos dessa nova vida Diana se sentia imensamente infeliz; com gritos e súplicas ela queria que a levassem de volta ao castelo de seu pai, Barão, mas devido a um estranho acontecimento todos os nomes, com exceção de Justina, Carlos, Lanceio, haviam saído de sua memória; as ameaças de levá-la de volta para a floresta foram suficientes para obrigá-la a se calar e fazê-la obediente.

Júlio, irmão do marido de Maturina ensinava-a; fazia isso bondosamente e com paciência. Ele a via como ágil, graciosa e leve avezinha. Diana, mais rapidamente do que esperavam, aprendeu a andar sobre a bola, na corda estendida e interpretar com os garotos as pantomimas, sendo que não recebeu nenhuma punição e seu professor, aliás, muito se orgulhava dela.

Passado um mês Diana estreava com sucesso em uma festa de aldeia e trouxe tal sorte que todos da troupe ficaram admirados; desde esse dia ela contou com a simpatia geral dos participantes,; a companhia andou por toda França, parando em todo lugar em que se pudesse ganhar dinheiro.

Entretanto essa vida irregular com estranhos costumes agia de modo prejudicial na delicada natureza de Diana. A comida frugal & insuficiente minava suas forças.

Exercícios cansativos a esgotaram; ela sentia frio dançando em trajes leves nos palcos, nos dias frios e úmidos. Emagreceu terrivelmente e eram freqüentes as ameaças de Maturina para obrigá-la a realizar seu programa. Mas a boa mulher observou que a criança estava se definhando visivelmente de saudade; previa o momento em que a menina se tornaria não apenas inútil, mas traria tempos difíceis para a pobre família.

— É necessário procurar um médico em alguma cidade e depois lhe dar descanso, todos admitiram unanimemente. A pequena companhia, concordando com a decisão, se dirigiu a uma grande vila localizada ao lado da cidade, a dois ou três dias de viagem; contavam em encontrar lá não apenas o médico, mas fazer uma abundante coleta, pois lá se comemorava um feriado religioso e tinham organizado uma feira; além disso nos arredores estavam situadas as tropas do Duque de Guise, o que prometia um numeroso e generoso público.

Como já era fim de outono e o tempo estava muito frio para apresentações ao ar livre, a pequena companhia alugou uma barraca na área da feira e se preparou para dar um brilhante espetáculo.

Diana com um vestido rosa e uma estrela dourada de algodão presa aos seus belos cabelos louros estava pronta para a apresentação e Maturina se esforçava, sob todas formas, para convencer a triste e apática criança.

— Apenas hoje se esforce ainda mais, querida, em realizar melhor seus números. Virão belos senhores que darão a você moedas de ouro e depois eu lhe comprarei um casaco de frio e você vai descansar o mês inteiro.

A apresentação estava se desenrolando; Júlio e seu irmão mostravam uma força prodigiosa, carregando pesos enormes, levantavam um ao outro, e comiam estopa quente; de repente entrou na barraca nova multidão de espectadores; eram oficiais rindo e conversando alto; eles abriram caminho aos empurrões na multidão e se sentaram na primeira fila.

Triste e cansada, Diana apenas havia começado a pantomima com Marcelo e Jacó; ela se apoiava na parede, entretanto a presença de oficiais lhe chamou a atenção. Com curiosidade começou a examiná-los e de repente seu olhar cresceu com um homem de estatura elevada que trazia no pescoço uma corrente de ouro, na qual estava pendurado algo como um amuleto, rodeado de um clarão; o rosto da criança foi invadido por uma cor viva e brilhante; onde ela já havia visto essa pessoa e essa corrente com uma estrela pendurada?

Diana apertou as mãos contra a testa, a intensidade de suas idéias foi tão forte que lhe causou quase uma dor física; uma luz inesperada lhe iluminou a mente: a pessoa e a corrente estavam pintados num retrato pendurado no quarto de sua falecida mãe, quarto esse agora ocupado por Lourença.

— Pai! Pai! Sou eu, ela gritou; e jogando-se precipitadamente à frente, por pouco não caiu do palco.

Diante desse grito o oficial se levantou rapidamente, como de um salto e, desnorteado, olhava para a criança que continuava a gritar e estendia as mãozinhas para ele, depois, perdendo os sentidos, ela caiu no chão.

Criou-se uma confusão geral. Ele, como era realmente o Barão d'Armi, imediatamente subiu ao palco. Ainda nada sabia sobre o desaparecimento da filha, mas a semelhança da pequena acrobata, com sua falecida esposa, e o apelo dela o perturbaram.

A apresentação foi interrompida.

Enquanto Maturina trazia Diana à consciência, seu marido e Júlio contavam ao Barão onde e como haviam encontrado a criança, ou, mais fielmente, o cachorro deles e o que aconteceu daí em diante.

Voltando a si do desmaio Diana confirmou o relato dos acrobatas, acrescentando alguns detalhes e de que maneira Mailor a abandonou. Esse relato enfureceu o Barão.

Derramando lágrimas, ele cobriu de beijos a filha. Depois, um pouco mais calmo, ele informou que ficaria com a filha e recompensou generosamente os acrobatas pelos cuidados com Diana. Após uma despedida emocionada dos seus protetores e do cachorro Merlem (para o qual d'Armi comprou uma linda coleira a pedido de Diana), ela se mudou para a tenda que seu pai alugara junto com dois outros oficiais.

Compreendendo todo o incomodo desse tipo devida, d'Armi decidiu levar Diana para seu castelo, com Justina. Com esse objetivo ele tirou licença e se dirigiu para Angers. O Barão, a cavalo, colocou a criança diante de si e partiu. Mas se a viagem divertia a criança, ao mesmo tempo cansou-a extremamente. O estado doentio da menina se agravava e no terceiro dia desde a partida do acampamento, Diana ficou doente, com febre. Continuar a viagem era impossível, por isso d'Armi sentiu verdadeiro alívio quando soube de um taberneiro, em cuja taberna tinha parado, que há alguma distância adiante se encontrava um grande monastério feminino. E o Barão se decidiu ir até lá.

A Abadessa ainda era uma jovem mulher, de rara beleza; acolheu a criança e o seu trágico passado com carinho e interesse. Comunicou que a menininha ficaria com ela.

Após uma despedida comovente d'Armi partiu.

A doença de Diana foi prolongada e perigosa, mas, graças unicamente aos cuidados maternais da Abadessa e das bondosas irmãs, Diana engordou e se sentiu muito bem em seu novo ambiente.

No monastério se educavam mocinhas até 17 anos dos 9 aos 17, das melhores famílias. Diana era a caçula. Ela se divertia correndo pelo imenso jardim, se balançava e, sendo carregada num carrinho, era como se fosse uma boneca - todas brincavam com ela.

Passou-se um ano e subitamente o Barão d'Armi ali apareceu para saber notícias dela e carregá-la com ele. Trouxe a notícia da morte de Mailor.

O rosto da Abadessa tinha uma expressão de preocupação; estava extremamente ligada a Diana e conservava desconfiança de João d'Armi e, principalmente, de sua esposa pelos ingênuos relatos feitos por Diana. O coração da Abadessa estava angustiado diante da idéia que a pobre criança novamente ficasse sob o domínio de Lourença, pelo visto mulher perversa.

— Sr. Barão! O Senhor nada tem contra a idéia de deixar Diana conosco até a maioridade? ela perguntou após um breve silêncio. Nós aqui educamos filhas das melhores famílias da França, por isso sua filha receberá educação adequada com sua origem e o senhor estará livre de quaisquer cuidados com ela e isso será para o senhor comodidade; o senhor mesmo diz que freqüentemente se vê obrigado a se separar da esposa devido aos negócios... eu gostaria de me ocupar com a menina como se ela fosse minha própria filha.

— Com o mais profundo agradecimento aceito sua generosa oferta, Madre Odila, respondeu d'Armi contente.

Uma hora depois tudo se havia acertado: Diana ficaria no Monastério até completar dezesseis anos; o Barão iria visitá-la uma vez por ano. Pela educação da menina a Madre não quis cobrar e por isso o Barão lhe ofereceu uma bolsa recheada de dinheiro para as necessidades da Igreja e para distribuição de esmolas.

Terminado este assunto o Barão d'Armi carinhosamente se despediu da filha e partiu apressado.

 

VELHOS CONHECIDOS

Fim de março de 1569. Anoitece. Os pedestres que haviam se atrasado nas ruas de Paris se apressavam em chegar em casa quanto antes possível. Era perigoso para o cidadão comum e ainda mais para uma mulher se aventurarem por uma das escuras ruas parisienses, freqüentadas por ladrões e por grupos de rapazes delinqüentes, que se divertiam em cortar as capas dos transeuntes e assediar as moças. Por isso as pessoas corriam para casa e trancavam as portas com fortes fechaduras de ferro.

Assim que o vigia deu o sinal para que as lamparinas e lampiões fossem apagados, toda capital mergulhou na escuridão e no silêncio.

Somente os hotéis freqüentados pelos senhores fidalgos fugiam à regra; neles os divertimentos prosseguiam noite adentro, a luz irradiava de suas janelas e as tochas iluminavam a entrada.

Os pajens e soldados tomavam a rua. Conversavam animadamente enquanto guardavam os cavalos e as liteiras de seus patrões.

Nesse dia em que damos prosseguimento à nossa história, na Rua Grenel[12] , uma grande multidão se reunia numa bela e suntuosa mansão. A fachada da casa estava muito bem iluminada pelas tochas e lampiões; junto à entrada, de minuto a minuto parava uma liteira de onde saíam damas e cavalheiros acompanhados de seus criados.

Em determinado momento certo senhor aproximou-se, desceu do cavalo e, acompanhado de um dos criados, entrou no vestíbulo. Ao adentrar, jogou a capa e subiu rapidamente a escada que levava ao primeiro andar. Era um homem de estatura elevada, trajado todo de negro. Somente uma corrente de ouro de grande valor e um "agrafe" brilhante, preso à pena de seu chapéu, quebrava um pouco o aspecto um tanto sombrio de sua vestimenta lúgubre.

— Eternamente de luto, Sr. Saurmont! Quando o senhor deixará disso e trará ao seu hotel uma moça que o faça esquecer todas as suas perdas? disse a empregada, alegre e simpática moça, enquanto o Conde beijava sua mão.

No mesmo tom gracejador o moço respondeu que não tinha sorte e que sempre se atrasava em conquistar o coração e a mão de uma dama descomprometida, que, sem dúvida, poderia fazê-lo esquecer de tudo.

Depois de conversar um pouco mais com suas hóspedes, o Conde se dirigiu ao quarto vizinho e sentou à mesa de jogos. Não notou que desde sua entrada, na primeira sala, uma dama sentada na outra extremidade do quarto mantinha os olhos fixos nele. Era uma mulher de aproximadamente cinqüenta anos, muito gorda, rosto pintado e sulcado de rugas. Vestia-se com requintado mau gosto, denunciador de sua pretensão em parecer jovem e bonita. Nesse instante ela se imiscuiu no grupo de damas e cavalheiros que preferiam os jogos de "tamp". Logo conseguiu ocupar o lugar de um dos parceiros de Briand, pois o cavalheiro todo de negro era ele. Ao reconhecer Lourença, empalideceu imediatamente; quanto a ela, a Sra. d'Armi, ao que parece, era a primeira vez que ele a via. Pela faísca rápida que escapava dos olhos da senhora, ele sabia que fora reconhecido. Aliás, não podia ser de outro modo, visto que Briand pouco havia mudado; tinha agora trinta e dois anos, mas continuava a ser o mesmo de antes, moço alto e encorpado que onze anos atrás seguira em direção ao hotel "O Carneiro de Ouro" em busca da felicidade.

Durante o jogo Lourença não dirigiu ao Conde uma única palavra em especial. Somente quando o jogo terminou e todos se retiraram ao refeitório, ela se aproximou e disse em voz baixa:

— Onde você está morando? O olhar que acompanhou esta pergunta foi tão significativo que Briand compreendeu que sua perigosa cúmplice novamente se punha em seu caminho.

Sem vacilar lhe deu o endereço do Hotel de Saurmont onde agora vivia.

O encontro modificou radicalmente seu estado de espírito, estragando seu apetite a tal ponto que ele, alegando dor de cabeça, se desculpou perante todos e abandonou a animada reunião.

Com raiva e desespero, o Conde voltou para casa. O passado que considerava esquecido e sepultado para sempre, voltava a assediá-lo.

A mulher pérfida, seu gênio do mal, novamente surgia em sua vida, lhe parecendo uma pedra enterrada no peito. Uma inexprimível melancolia e o pressentimento de uma infelicidade próxima invadiu seu coração. Torturado por fortes lembranças desagradáveis, verdadeiros pesadelos, resolveu ir se deitar.

Após a morte de Mercedes, Briand passou a se sentir plenamente feliz - era livre, sozinho, possuía enormes propriedades dos Guevara, e seus odiados cúmplices estavam longe. Apesar de todas as honras adquiridas na Espanha, o Conde se considerava francês. Sua primeira providência foi legalizar a posse de todas as terras pertencentes ao Conde de Saurmont; em seguida foi à França onde visitou suas propriedades, tratando de colocá-las em ordem e remobilizo seu castelo vazio. Já havia arrumado tudo, quando de repente o surpreendeu inesperada infelicidade: seu filho de quatro anos faleceu. A criança sempre fora doente como a mãe, no entanto nada pressagiava fim tão prematuro. Isto privava Briand de parte da fortuna da família. Não obstante lhe ficaram reservados os bens pessoais de Mercedes e as terras que Don Rodrigo havia deixado em testamento para o genro, se por acaso sua filha não tivesse filhos. Graças a essa precaução e a compra de terras na França, Briand desfrutava de sólida condição financeira. Ele não tinha interesse pela Espanha e acabou se fixando definitivamente na França.

O acerto de todos os negócios lhe ocupou mais de um ano e depois disso resolveu não adiar mais seu plano de se mudar para a França. Briand visitou novamente todas suas propriedades com a intenção de escolher uma que lhe servisse de moradia permanente. Afinal um irresistível impulso o fez visitar São Germano, castelo que era o berço de seus antepassados e o local habitual em que o Conde de Saurmont costumava se recolher.

Há um ano deste episódio, quando retornamos a nossa história ele havia vindo a Paris para se apresentar ao Rei. Enquanto aguardava o encontro, vivia em completa despreocupação. No decorrer desses anos nenhum de seus cúmplices havia dado sinais de vida, fazendo com que o Conde até já passasse a considerá-los mortos. Mas o inesperado encontro com Lourença lhe apagou esta agradável esperança.

Briand se levantou extenuado pela noite de insônia, mostrando péssimo humor.

Para não chamar a atenção, sentou-se como de hábito para o desjejum, mas não conseguiu tocar na comida; estava mergulhado em pensamentos, segurando a cabeça com as mãos, quando o criado entrou anunciando que o Barão João d'Armi desejava vê-lo. Ele estremeceu...

— É o pai de Diana... lhe perpassou pela cabeça e acrescentou em pensamento: "Miserável! Na certa descobriu o segredo por meio de minha cúmplice... Agora os dois vão querer me arrancar dinheiro!"

Mas Briand se enganara; ele conhecia mal a Sra. d'Armi. Ela não era capaz de indicar ao seu querido João o caminho para o pote de ouro, pois desejava usufruir dele sozinha. Se soubesse o segredo, João se livraria dela... Lourença contudo não desejava o sumiço do marido, já que manipulava o Barão como uma arma dócil.

Tomado de mal-estar que o inquietava, o Conde deu permissão para que a visita fosse recebida. Passados alguns minutos entrou no aposento um senhor distinto e garboso — o Barão d'Armi.

Estendeu a mão cordialmente ao Conde e transmitiu as lembranças da esposa; depois, visivelmente cansado e ofegante pela marcha rápida, deixou-se cair na poltrona.

Briand fitava o Barão cheio de curiosidade e ao mesmo tempo que lhe respondia com frieza e reserva. João era um homem alto, apresentando traços já envelhecidos.

Um sorriso alegre não abandonava seu rosto; seus pequenos e penetrantes olhos cinza nunca se fixavam no interlocutor, fugindo de qualquer olhar que pudesse descobrir seus pensamentos íntimos.

O Conde achou dever convidar o hóspede a acompanhá-lo no desjejum, convite este prontamente aceito. Comendo com grande apetite o Barão tagarelava de tal modo animado, que distraía seu anfitrião; o convidado falava tão alto e tão rápido que suas palavras soavam como um zumbido forte, sendo que Briand começou a considerar os modos dele um tanto divertidos; somente mais tarde ele compreendeu que tal falatório era uma artimanha e que sob a amável e bondosa aparência exterior do Barão se escondia a hipocrisia, a cobiça e a crueldade.

Após a refeição, os dois passaram ao gabinete do Conde. D'Armi se atirou à poltrona, e, meditando em algo, ora esfregava o queixo, ora revistava os bolsos nervosamente; Briand o fitava em silêncio aguardando a ocasião oportuna para fazer uma pergunta que trazia engasgada na garganta, desde a chegada dele. Queria saber se tinham tido alguma notícia sobre o destino de Diana, mas, antes que o Conde conseguisse abrir a boca, d'Armi se levantou rapidamente e tirou do bolso uma carta. Dando-a a Briand, falou em tom alto, sem tomar fôlego:

— Oh! Finalmente me lembrei de que minha esposa me pediu que lhe entregasse este bilhete. Abrindo a carta Briand leu o seguinte:

"Querido Conde, quando ontem você perdeu quinhentos escudos eu lhe emprestei com todo prazer esta soma. Pensei que poderia aguardar, mas dificuldades inesperadas me obrigam a lhe pedir que devolva esta bagatela a meu marido."

Saurmont esperava uma chantagem; admirado pelo comedimento do pedido, apressou-se em devolver a quantia ao Barão, que, com visível satisfação, colocou-a no bolso.

O episódio só desviou a atenção do Conde por um minuto; com sua habitual persistência retomou o propósito de perguntar ao Barão a respeito da sorte de sua pequena viúva.

— O senhor sempre vem a Paris, Barão? Seria agradável poder encontrar sempre o senhor e sua esposa, pessoas com as quais simpatizo muito. Tem uma grande família? perguntou ele ao mesmo tempo que seu coração começava a bater com mais força.

— Não, nós estamos por aqui só de vez em quando; normalmente ficamos no meu castelo d'Armi, respondeu com calma. No que se refere a minha família ela é bem pequena.

Sou casado pela segunda vez; de meu primeiro casamento tenho somente uma filha, uma criança que se pode dizer - é mais do que encantadora.

O coração de Briand palpitava com mais força ainda. Esforçando-se ao máximo, ele conseguiu deter o afluxo de sangue que traiçoeiramente ruborizava suas faces.

— Sua filha vive? perguntou ele se virando.

— Bem viva; e eu lhe digo que ela é maravilhosa como um anjo. A vida de minha pequena Diana é repleta de tragédias; um dia destes contarei suas desditas. Mas, diga-me, caro Conde: por acaso não somos vizinhos?

Minha propriedade faz divisa com as extensas terras de São Germano, cujo proprietário possui o mesmo sobrenome seu.

— Realmente possuo terras em Anjou e São Germano, lugar que é inclusive o berço de meus ancestrais, respondeu Briand com indiferença.

D'Armi no entanto se encheu de contentamento:

— Oh, nesse caso esperamos ter a felicidade de vê-lo um dia qualquer em nossa casa. Então lhe mostrarei Diana. Agora ela ainda se encontra no mosteiro, mas assim que voltarmos ao castelo eu a levarei de lá.

Assim que o Barão partiu, Briand se trancou num aposento, na tentativa de serenar o sentimento pesado que o atormentava. Não somente Lourença com seu gênio pérfido o dominava, mas além disso Diana estava viva e poderia ser uma perigosa arma na mão de seus oponentes. Esta preocupação superou o pálido sentimento de consciência

aliviada por não ter matado a criança. Com um suspiro rouco o Conde fechou os olhos e largou o corpo na poltrona. Ele novamente se viu no bosque com Diana nos braços, que timidamente se agarrava a ele; parecia-lhe que sentia o toque das pequenas mãozinhas e das faces macias da menina ao mesmo tempo que ouvia a voz dela entrecortada pelas lágrimas: "Será terrível sem você, Carlos!" Vinha-lhe à mente a imagem da criança em mudo desespero, ajoelhada sobre as folhas. Que milagre a salvou?

Alguns dias depois d'Armi tornou a visitar o Conde e o convidou com tanta insistência para almoçar que Briand não pôde recusar. A partir dessa visita reiniciava o estranho poder que Lourença tinha sobre o rapaz. Ela era carinhosa e amável com Briand, mas sabia manter uma distância prudente, evitando ter que lhe pedir dinheiro emprestado. Aos poucos e imperceptivelmente readquiria o antigo poder sobre ele; juntamente com o marido ela acompanhava o Conde em seus divertimentos e estimulava as fraquezas dele. Algumas semanas foram suficientes para que o casal se tornasse indispensável a Briand; em companhia de d'Armi o rapaz passava as noites mais agradáveis.

Para aquela época, o Barão era considerado um homem de elevada cultura; distinguia-se pela inteligência aguçada, por ser um excelente interlocutor e por partilhar com o Conde da paixão pelas ciências ocultas. Desde o tempo de sua viuvez, Saurmont se aprofundou no estudo da astrologia, encontrando no Barão um ótimo companheiro de conversas sobre o assunto; além disso a Sra. d'Armi soube despertar o interesse de seu "novo" amigo pela política, apresentando-o ao Duque de Guise. Em breve Briand se tornou membro influente do partido católico.

O receio despertado no Conde ao reencontrar Lourença e o marido se dissipou completamente. Somente as recordações de Diana lhe traziam certa espécie de angústia.

Aproveitando um minuto apropriado ele perguntou, um tanto vacilante, à Baronesa, de que maneira a menina poderia ter escapado da morte no bosque. Essa pergunta desagradou bastante a Sra. d'Armi.

— Naturalmente é triste para você que a criança não tenha morrido, ela respondeu com despeito. Seu próprio gênio do mal, Briand, fez com que ela fosse poupada.

Somente os mortos calam e não aparecem novamente. No que toca a Diana, João me contou que a menina conserva bem viva lembrança do episódio. Quem sabe? Pode ser, inclusive, que ela o reconheça...

— Isso não é possível, murmurou ele.

— Não diga!... Na ocasião ela reconheceu João!... E a Baronesa contou como Diana foi apanhada por acrobatas errantes e de que maneira ela conseguiu reconhecer o pai, apesar de ele estar sentado abaixo do estrado de representação.

Por outro lado, João d'Armi lhe contou a história do casamento de Diana com um odiável Mailor que, fingindo ser pobre, induziu ao erro sua maravilhosa esposa; o Barão elogiava com tanta freqüência a beleza da filha que o Conde começou a suspeitar que era seu desejo casá-la com ele. Essa idéia fazia com que Briand se risse sem motivo. Sim, o Conde sentia um certo pesar ao ouvir o nome de Diana. Movido por um pressentimento vago, interrogou os astros sobre o futuro e sobre um possível encontro com Diana - todas as vezes o horóscopo respondeu que a encontraria inevitavelmente e que ela teria um papel fatídico em sua vida.

E assim se passaram alguns meses.

No começo do verão o Barão e sua esposa comunicaram que era imprescindível que partissem para o Castelo d'Armi. Eles convenceram Briand a acompanhá-los até Anjou e a passar o tempo caçando em São Germano, bosque centenário, famoso pela profusão de animais. Ainda que estivesse contra a idéia de aparecer novamente no lugar de ação do falecido Mailor, o Conde, como sempre, acabou se deixando convencer por Lourença. No final de julho de sessenta e nove, os três juntos deixaram Paris.

Chegando em São Germano, Briand, após descansar da viagem, tratou de visitar suas terras e organizar uma caçada que fosse digna de um príncipe. Com esse objetivo o Conde ia constantemente a Angers.

Devido a um processo o Barão e a esposa também passavam a maior parte do dia na cidadezinha.

No castelo d'Armi até o momento Briand não havia voltado. Um certo impulso irresistível fazia com que evitasse esse lugar repleto de recordações criminosas.

Certa vez, no começo de setembro, o Conde sentiu o desejo de fazer um passeio pelos arredores; o tempo estava estranho, por isso Briand esperava em breve estar no castelo d'Armi. Sem que ninguém o visse, queria ver o local onde viveu e agiu sob o nome de Barão Mailor. Distraído, absorto em recordações tristes, ele se afastou do castelo bem mais do que pretendia; caiu a noite quando o Conde percebeu o quanto tinha se afastado. Voltando-se para trás, esforçava-se em se orientar e encontrar o caminho mais próximo. Passando pela azinhaga[13], com surpresa desagradável notou que estava na trilha que levava à Clareira da Cruz Negra. Um inexprimível sentimento de angústia e medo tomou conta de seu coração. Sob o dossel espesso do bosque, a escuridão era quase total. Cansado, o cavalo mal conseguia se locomover a trote curto.

O Conde seguia em silêncio, evitando olhar para os lados, porém ao se aproximar da clareira onde o caminho se bifurcava e no centro da qual havia uma cruz, seu olhar amedrontado insistia em se fixar no local onde em um certo dia Henrique matou Roberto e no qual fora trazido outro cadáver, morto pouco antes.

Nesse minuto o cavalo se sobressaltou, parando tão repentinamente que o Conde quase caiu da sela; o rapaz queria ir embora o mais depressa possível, mas em vão tentou com o esporão e o açoite que o animal saísse do lugar. O cavalo se recusava a prosseguir. Respirando com dificuldade, pêlo arrepiado, o corpo do bicho tremia todo, ao mesmo tempo que parecia estar pregado à terra. Briand começou a suar frio. A aproximação de um perigo desconhecido o enchia de pavor supersticioso; seu olhar perturbado vagueou pela clareira imersa na pálida penumbra. De repente, por sobre a copa das árvores surgiu o disco lunar. Sob sua luz prateada Briand viu a alguns passos dois abomináveis fantasmas ensangüentados. Ele não tinha dúvidas quanto à origem não carnal dessas criaturas, que, como nuvens de prata, pairavam a meio metro do solo. Deste par disforme começavam a se delinear claramente dois torsos e suas cabeças animadas, apresentando olhos móveis.

Com a rapidez de um relâmpago os fantasmas se colocaram ao lado de Briand, agarrando o cavalo. O Conde não podia se enganar: era Roberto e o desconhecido assassinado por Henrique. Um ódio selvagem lhes deformava as feições e inundava de sangue seus rostos; o olhar terrivelmente fixo das criaturas se concentrava em Briand, que emudecido e paralisado, parecia haver perdido até a capacidade de pensar. Ele, trêmulo, endireitou-se; o próprio pavor gigantesco que o paralisava dirigia seus atos.

Aí ele recordou uma formula mágica que - conforme as palavras de um livro de feitiçaria - eram empregadas para afugentar almas perversas; com a mão tremendo apertou a cruz de ouro que trazia pendurada no pescoço e gritou: "Vade retro, satana!" (recua, satanás!). O Conde ouviu uma gargalhada estranha e estridente; logo os vultos recuaram e desapareceram no ar. O cavalo imediatamente se pôs a caminho como se houvessem retirado uma barreira de sua frente. Briand apenas o guiava maquinalmente; passada uma hora de galope em meio à escuridão ele parou frente às grades do castelo d'Armi.

Atendendo ao ressonante som do sino, o criado veio às pressas lhe abrir o portão. Mas as forças o abandonaram, as rédeas se lhe escaparam das mãos, e ele teria caído do cavalo se os criados que vieram recebê-lo não o segurassem. Voltando a si o Conde não disse palavra sobre a visão e atribuiu o desmaio ao seu cansaço enorme.

Mas... o medo experimentado havia sido tão forte que ficou de cama por alguns dias; a idéia de as vítimas sobreviverem à morte do corpo, e, tomadas pelo ódio, sedentas de vingança, poderem perseguir seus assassinos, atormentava-o como um pesadelo. Esforçava-se ao máximo para se libertar desse terrível trauma; finalmente para se livrar dessa fraqueza supersticiosa, Briand se convenceu de que fora vítima de uma ilusão. Retornou a Paris, e ao invés de passar seis semanas como planejado, acabou permanecendo todo inverno. Durante esse tempo se imiscuiu em todas as intrigas do Partido Católico.

Regressou a Anjou somente na primavera de 1570, atendendo aos convites incessantes que Lourença e o marido lhe faziam por carta.

 

O RETORNO DO CONVENTO

Durante muitos anos, desde o tempo em que recomeçamos o nosso relato, Diana continuou a viver rio mosteiro. Essa vida monótona e tranqüila teve uma influência benéfica em sua saúde. Agora estava alta, esbelta e se distinguia pela deslumbrante alvura de sua tez. Os olhos azul-escuros eram emoldurados pelos cílios e sobrancelhas negras. Os loiros e dourados cabelos da tal coloração que Tissiano imortalizou davam-lhe uma original e extraordinária beleza. No aspecto moral era uma criança séria, embora de natureza orgulhosa e irascível. Sobre seu passado trágico ela conservava uma clara recordação e profundo ódio contra o Barão Mailor. Agora ela compreendia que ele saqueara seus bens e a deixara na miséria, com o título ilusório de Baronesa. Quando comparava sua vida solitária, sob a dependência material da Abadessa, com a riqueza e amor que cercavam suas amigas, sua alma se enchia de amargor e tristeza.

Nos primeiros anos d'Armi, de tempos a tempos, visitava a filha, mas há oito anos já não vinha visitá-la e todos a tratavam como uma órfã. Ela, sozinha, ainda tinha esperança, no fundo da alma, de que seu pai apareceria. Sob tais difíceis circunstâncias a criança cresceu e seu caráter se modificou. A alegre e confiante menina se transformou em uma insegura e irascível moça, fechada em orgulho. Em vão Madre Odila lutava contra esses defeitos que perturbavam a amorosa e generosa alma de Diana, capaz de qualquer sacrifício. Todas suas forças não conduziam a nenhum resultado. De natureza apaixonada e extraordinariamente agitada, era sempre capaz de se arrastar sob a influência do instante.

Desde o momento em que Diana parou de ser uma boneca para suas amigas, restou-lhe apenas uma amiga - a Condessa Clemência de Montfort. Ela era seis anos mais velha.

Com amor e proteção constantes, conquistara por completo o coração de Diana. Clemência também era casada; descendendo de uma família católica nobre, aos seis anos

ela já estava casada com um rapazinho de treze, Armando de Montfort, mas como seu maridinho era huguenote, então a família de Clemência resolveu que até os dezesseis anos ela se educaria no convento para que fosse instruída firmemente na fé de seus antepassados. As duas jovenzinhas freqüentemente conversavam sobre seus (15) huguenote[14] destinos.

Só que Clemência falava sobre as festas brilhantes, os presentes principescos, as semanas alegres, as acomodações do Castelo de Montfort; Diana transmitia tristes recordações e contava a criminosa tentativa de abandoná-la na floresta para que todas as possíveis abomináveis maldades lhe ocorressem, imaginadas por seu marido...

Todos os verões o Conde Armando visitava sua esposa. Ele vinha então com a mãe e com o irmão caçula. E durante três dias reinava a mais completa alegria na sala de recepção da Abadessa, sempre repleta de presentes e guloseimas, trazidos pelo jovem Conde.

À medida que Clemência crescia e se transformava em encantadora jovem, a separação se tornava para as duas mais difícil. Mas o jovem casal esperava com impaciência o momento em que finalmente estariam unidos para sempre.

Quando Clemência apresentou seu marido à amiga, logo se simpatizaram. Desde então Armando trazia presentes para Diana e sempre parte das freqüentes encomendas ali chegadas eram para Diana, vindas do Castelo de Montfort. Clemência estava encantada. Ela disse à amiga que seu cunhado Raul a achava encantadora e ela e Armando decidiram levá-la consigo, caso seu pai não aparecesse. Diana iria viver no Castelo de Montfort como irmã e depois a casariam com Raul, que concordou inteiramente com esse plano.

Por mais que esse fato representasse algo de alvissareiro, pertencia ao futuro e o futuro estava distante. Quando chegou o momento da separação das duas, a pobre Diana chorou amargamente. Ela acompanhou até a liteira sua amiga que também estava emocionada. Elas se prometeram escrever mútua e freqüentemente. Quando o último cavaleiro do brilhante cortejo que conduzia a jovem Condessa despareceu ao longe, a triste Diana, em desespero voltou à cela do convento.

Os dias se seguiam e não havia nenhuma modificação no destino da jovem. D'Armi não aparecia. A única alegria de Diana eram as cartas que de tempo em tempo chegavam do Castelo de Montfort.

Clemência não esquecia sua pequena amiga e lhe dava algumas informações de sua vida calma e magnífica. Assim Diana soube do nascimento de seu fílho; a morte de sua sogra; o perigo a que ficou exposto Raul numa viagem de negócios a Anjou, quando saiu ferido; a difícil doença de seu filho. Após algum tempo chegou também uma carta anexada à Abadessa, na qual a Condessa pedia confiar-lhe Diana, assim que completasse dezesseis anos. A Senhora de Montfort acrescentava que no tempo determinado pela Abadessa ela própria viria buscar a amiga.

Diana, feliz, suplicou à Madre Odila que a libertasse o quanto mais rapidamente possível. Mas Odila se achava na obrigação de manter a promessa feita ao Barão d'Armi, na qual se comprometera ficar com a jovem enquanto não completasse dezesseis anos e ainda faltavam quatro meses. Depois então ela, com prazer, a confiaria à Sra. de Montfort. Nesse sentido Odila escreveu uma carta à Condessa convidando-a a vir ao convento buscar a amiga no fim de setembro.

Passados dois dias após o recebimento da carta, Diana estava no aposento da Abadessa, conversando com ela sobre o pequeno dote que queria prover a jovem, quando de repente retiniu o sino anunciando a chegada de algum visitante.

Após alguns instantes entrou um cavalheiro acompanhado do criado; um largo chapéu de feltro enfiado até os olhos impedia de se ver as feições, mas qual não foi a surpresa das duas mulheres, quando a irmã que tomava conta do portão informou a chegada do Barão d'Armi.

Diana empalideceu terrivelmente e se encostou à parede; a alegria e a emoção lhe tiraram a capacidade de falar, parecendo-lhe que apenas o som desse nome já lhe dava o restabelecimento de sua posição social, de sua família e de proteção legal.

Quando o Barão entrou no aposento, Diana, num impulso, se lançou em seus braços.

D'Armi abraçou-a fortemente e cobriu-a de beijos, mas se lembrando da Abadessa, delicadamente afastou a filha e se aproximou da Madre Odila. Beijou sua mão murmurando palavras de agradecimento.

— Sua chegada para nós é verdadeira surpresa, Sr. Barão. Confesso, cheguei a pensar que tivesse morrido... Logo serão oito anos e como não temos nenhuma notícia... falou ela com um sorriso de freira.

D'Armi perturbou-se; como de hábito pôs-se a falar sobre assuntos importantes, infelicidades familiares e as exigências do serviço. Depois, interrompendo, virou-se rapidamente para Diana, e a olhou com admiração. Daí ele exclamou extasiado:

— Mas você se tornou uma linda mulher, minha filha! Tal beleza divina lhe é uma completa fortuna! Agradeço você ter se tornado uma das primeiras belezas da França.

Juro pelo sangue de Cristo que lhe encontrarei um brilhante partido.

A Abadessa franziu as sobrancelhas e voltando-se com olhar severo para d'Armi disse em tom de desaprovação:

— Seu orgulho paternal, Barão, e a alegria do encontro com a filha inspiram-lhe estranhas palavras, pouco cristãs. A beleza física é um dom frágil e perigoso; freqüentemente ocorre ser fatal. É digno de um profundo pesar aquele que baseia nele suas ambições e esperanças. Tudo fiz para enobrecer o espírito de Diana e lhe incutir sólidos princípios e virtudes; com a ajuda de Deus que isto não pereça! Os enfeites da alma irão ampará-la na vida.

O Barão enrubesceu:

— Sem dúvida, respeitável Madre, estava dizendo tolices. Peço que me desculpe, assim falei em virtude da minha alegria. Que pai não sonha com o futuro brilhante para sua filha? Concordo com a Senhora que a verdadeira beleza é da alma - isso constitui a felicidade da minha Diana.

— Bem, no essencial nós concordamos. Mas diga-me, Barão, o Senhor chegou para me raptar Diana?

— Sim e não, estimada Madre Odila. No momento atual estou indo a Paris por encargo do Duque de Guise, mas dentro de quatro ou cinco dias voltarei a Anjou e, como nessa ocasião ela já terá completado dezesseis anos, então eu, com a sua permissão, virei buscá-la. Agora mesmo, peço-lhe, pegue este dinheiro e o empregue no enxoval compatível com a origem dela. A senhora sempre foi tão bondosa para com ela, que eu espero não recuse em me atender este último pedido.

Nessa mesma noite ele partiu, tendo antes combinado todos os detalhes com ambas sobre a partida de Diana.

A alegria de Diana se transformou em tristeza incontrolada.

O pai a desapontou. Tinha a impressão de que ele havia provocado na Abadessa uma impressão desagradável, o que mais ainda a embaraçava.

Quando foi enviado um mensageiro à Condessa de Montfort com a notícia da mudança do acontecimento, o coração de Diana se entristeceu enormemente.

Mas - o que é próprio da mocidade - o prazer de escolher tecidos, provar vestidos, a despreocuparam e a distraíram. Queria entrar nesse mundo desconhecido para ela onde tudo parecia fascinante e lhe parecia que o futuro muito lhe prometia. Mas Diana se sentia profundamente amargurada.

Ao tempo combinado chegou apenas uma carta do pai na qual informava que assuntos imprevistos o obrigavam a adiar a partida em alguns meses e, nas últimas linhas, fixava o mês de abril.

Os meses de inverno passaram como de costume monotonamente na vida do mosteiro.

Apenas um acontecimento muito importante para a comunidade transformou essa vida pacífica: o velho sacerdote morreu e foi substituído por outro bem diferente em relação às freiras e pensionistas.

O Abade Gabriel ainda era jovem. Tinha beleza aristocrática, era altivo e tinha maneiras de uma pessoa da alta sociedade. Logo se estabeleceu um extremo contraste com o velho sacerdote alegre e amante da comida, que tinha morrido de indigestão. A profunda religiosidade do Pé. Gabriel e sua sombria tristeza faziam com que todos se relacionassem com ele com respeito e simpatia, dado sua existência compenetrada. As freiras e educandas se curvavam diante da sua branda mas enérgica vontade.

Diana, principalmente, submeteu-se à sua influência.

O olhar triste e severo do Abade tinha o dom de interromper seu acesso de ira e orgulho muito mais rapidamente que todas as longas conversas do calmo confessor ou da persuasão da Abadessa.

À medida que se aproximava à hora da partida Diana considerou todas suas preocupações: a lembrança da madrasta a perseguia; toda vez que sua figura e seu rosto coberto de compressas surgiam em sua mente, um indescritível sentimento de medo e repugnância lhe apertavam o coração.

A imagem de Mailor também mais vivamente ressurgiu na memória da Diana. A idéia de ver novamente os lugares onde ele tinha vivido e viver no castelo onde ele tinha sido enterrado lhe encheram o coração de ódio furioso.

Apenas nos primeiros dias de maio chegou a carta do Barão. Ele se desculpava de não poder vir pessoalmente e enviava uma senhora de confiança e quatro homens para a escolta da filha.

A mulher enviada, alta e magra, não agradou a Diana nem à Abadessa; a futura acompanhante usava uma submissão bajulatória com que se submetia à jovem Baronesa, mas... não havia escolha.

Os últimos preparativos foram rapidamente concluídos e as bondosas irmãs e pensionistas competiam umas com as outras na demonstração de amor àquela que as deixava.

Cada uma lhe trouxe um mimo, um pequeno presente ou palavras carinhosas.

Conforme pedido da Madre Odila, Diana se confessou e comungou na véspera da partida; as palavras do Pé. Gabriel lhe causaram profunda impressão e nunca ela o fez com tanta humildade e devoção.

— Minha filha, disse o Abade, quando Diana se pôs de joelhos no confessionário, este momento uso na intenção, não tanto para a confissão, mas para uma conversa séria.

Os pecados aqui cometidos não foram mais que leves faltas. Agora pecados dos mais diversos tipos, lutas e tentações vão incitá-la quando sair deste refúgio de paz.

O mundo, minha menina, é uma arena de batalhas encarniçadas, onde se chocam todas as paixões e se disputam grosseiramente todos os interesses. Uma mulher jovem e bonita está mais sujeita a esse perigo do que todos os outros. Certamente não sei qual o destino que Deus lhe está reservando, e, diante das atuais circunstâncias, você será obrigada a defender os princípios e virtudes que lhe foram aqui mostrados. Mas, pelo que sei, resistir à maldade, às vezes, é muito difícil. Nesses minutos é preciso chamar por todas as forças da bondade, pois a maldade cometida por nós, vinga-se de nós mesmos. Não é Deus, fonte de bondade, que nos pune, mas nossos próprios desejos nos aniquilam e nossa consciência nos julga. E assim, Diana, seja virtuosa para você mesma. Tomara que sua alma seja tão limpa que qualquer um possa olhar não a deixando ruborizada! E que o dever a oriente e a mantenha nas experiências da vida. Procure não errar.

Após a curta confissão, ele acrescentou:

— Mas agora me diga: está em paz com todos? Sua alma não está perturbada pela maldade contra alguém?

Diana, com lágrimas nos olhos, emocionada, o ouvia. Mas, diante das últimas palavras, com a mobilidade que lhe era característica, levantou a cabeça e seus olhos brilharam de ódio:

— Estou em paz com todos meu Pai; odeio apenas uma única pessoa, o defunto Mailor. Mas por ele eu nunca pedirei.

— Talvez você não esteja agindo certo, Diana, disse o Abade, inclinando-se em sua direção. Não podemos julgar os mortos, esse direito pertence a Deus. Esteja certa - a justiça divina é terrível a nós; ela vê aquilo que está escondido de nós e atinge onde nossa mão não pode alcançar. Sei que este homem agiu criminosamente contra você mas você não pode se vingar por causa dessa Lei da qual lhe estava falando; essa Lei irá derrotá-lo bem melhor que o seu fraco ódio.

Nesse momento Diana se achou derrotada, mas depois disse:

— O senhor está certo, meu Pai! Se Deus tomar a si a punição dele, que é tão malvado, certamente fará melhor do que eu. Ele o mandará para o inferno e então já não poderei odiá-lo.

O Padre balançou a cabeça em assentimento e um sorriso melancólico surgiu em seus lábios.

— Você interpreta muito estranhamente minhas palavras. Deixe pra lá. No momento atual esqueça seu ódio, Diana, e se coloque plenamente na vontade do Todo Poderoso.

No dia seguinte, após uma difícil despedida de ambas - Diana e Odila - e de intermináveis beijos e bênçãos das bondosas irmãs, Diana abandonou o Mosteiro.

De início a viagem transcorreu sem incidentes; emocionada, ora contente, ora angustiada por se aproximarem do lugar onde havia passado sua infância, ela imaginava o prazer de voltar para o lar e viver com o pai querido, vivendo bem com todos. Diana, com impaciência, perguntava quando chegariam. Mas a calada companheira de viagem - Agniessa - a incomodava muito, falando com Diana e se relacionando com ela de forma servil, sempre a bajulando, como se Diana fosse uma nobre especial.

Agniessa tinha conseguido que a mocinha viajasse usando uma máscara para evitar os perigos extremos para uma jovem e linda mulher.

Diana começou a questioná-la sobre a madrasta, a vida no castelo d'Armi, os vizinhos e outros interesses, o que fez a acompanhante se tornar quieta e reservada.

Durante o último pernoite Agniessa se sentiu mal. Durante a viagem sentiu uma forte dor de estômago que, aumentando a tal ponto, a obrigou a ficar numa aldeia, não agüentando prosseguir.

Diana quis ficar com ela até o dia seguinte, mas o criado que acompanhava a escolta explicou que tinha ordem de chegar nesse mesmo dia, pois o Barão estava impaciente em ver a filha, sendo assim, seria melhor atravessar diretamente pelo bosque ao invés de ir por Angers.

Com a possibilidade de se ver novamente naquele bosque Diana se pôs a tremer, rememorando sua terrível lembrança. Vendo seu pavor o criado, sorrindo, convenceu-a de que a estrada era segura e de que era preciso se apressarem, pois era possível chegar ao castelo no início da madrugada e, em todo caso, quatro homens de escolta eram suficientes para manter os vagabundos e miseráveis a uma considerável distância.

Puseram-se a caminho.

O coração de Diana batia fortemente quando entraram pela estreita estrada do bosque. As recordações oprimiam sua cabeça. Tinha até a impressão de que reconheceria, entre os gigantescos carvalhos, aquele em que se escondera naquela terrível noite. À medida em que a escuridão crescia debaixo da espessa folhagem, aumentava sua intranqüilidade.

— Ainda está longe, Tomaz? perguntou ela afinal, debruçando-se na janela da liteira.

— No mais tardar dentro de uma hora estaremos na clareira da Cruz Negra e de lá até o castelo são exatamente duas horas e meia de viagem, respondeu respeitosamente o criado.

— Três horas ainda... murmurou Diana recostando-se no interior da liteira e fechando os olhos.

Transcorreu muito tempo. Fez-se quase total escuridão. Cansada e abalada, Diana estava adormecendo quando alguns disparos, gritos e gemidos logo a acordaram. Em seguida um forte solavanco virou a carruagem de lado. A portinhola se abriu e duas pessoas mascaradas agarraram a jovem e a obrigaram a sair. Ela lhes escapou e se agarrando às cortinas gritava por socorro. Tomaz, com voz desesperada lhe fazia eco: "socorro! ladrões! bandidos!"

Mas Diana era fraca para se defender durante muito tempo. Foi então que um bandido conseguiu arrastá-la para fora e ela perdeu os sentidos.

Os atacantes, parecia, tinham vencido totalmente. Duas pessoas do comboio estavam deitadas gravemente feridas, sobre seus cavalos mortos. O terceiro também estava morto e apenas Tomaz ainda se defendia desesperadamente, quando apareceu inesperada ajuda. Três cavaleiros a toda velocidade logo chegaram à clareira, e num piscar de olhos dois bandidos jaziam mortos, o terceiro, ferido, tentava correr. O restante da quadrilha desapareceu na densa floresta.

O salvador inesperado era Briand de Saurmont, que havia chegado de Paris há oito dias; estava indo ao Castelo D'Armi aonde não ia há seis meses. Nada sabia sobre a chegada de Diana. Guardando séria recordação sobre esse antigo lugar, ele havia ordenado acompanhá-lo dois criados.

Saltando do cavalo o Conde se aproximou da liteira e inclinou-se em direção à impassível viajante. Ela estava de máscara, mas mesmo naquele ambiente ele notou que ela era jovem e bonita.

— Ah, Senhor Conde! Foi a própria Virgem Santa Maria que o mandou para nos socorrer, gritou Tomaz agradecido.

— Como?! É você?! A quem você está acompanhando? perguntou Briand admirado.

— A senhorita Baronesa de Mailor, filha do nosso amo. Fomos buscá-la no Mosteiro.

O Conde estremeceu e no mesmo instante se sentiu empalidecer. O estranho acontecimento o surpreendeu, fazendo com que reencontrasse Diana quase no mesmo lugar onde a desejou matar... Mas, conseguindo se controlar, ordenou Tomaz ajudá-lo a levantar as pessoas feridas. Depois, quase instintivamente, arrancou a máscara de um dos bandidos e a colocou. Somente após tomar essa precaução é que levantou a jovem que, com profundo suspiro, voltou a si.

— Nada tema, minha senhora - todo perigo já passou, disse ele, respeitosamente, saudando-a.

Ao som de sua voz Diana estremeceu, endireitou-se e, nervosa, perguntou:

— Quem é o Senhor?

— Eustáquio Briand, Conde de Saurmont, vizinho e amigo de seu pai. Se me permite eu a acompanho até o castelo; agora mesmo darei as ordens indispensáveis.

Não esperando resposta, ele se encaminhou aos feridos, dando ordens, a um de seus criados, para que cuidassem deles. Mandaria socorro ao chegar ao Castelo. Levantaram a liteira. Como um cavalo estava morto, foi substituído pelo cavalo do criado do Conde; o criado montou o cavalo de seu senhor, Tomaz ocupou o lugar do cocheiro.

Briand pediu permissão a Diana para ir junto na liteira, mas se sentou longe dela.

Ela concordou acenando com a cabeça; percorreu a figura do Conde com ar suspeito e lhe demonstrou descontentamento visível com um olhar severo. Cachos avermelhados iluminaram nitidamente seu encantador rostinho emoldurado pelo exuberante e dourado cabelo.

Briand se sentia completamente cego e um arrepio percorreu seu corpo quando se sentou tão próximo a Diana na liteira. Ambos ficaram calados. A jovem procurava intensamente se lembrar do passado, esforçando-se em lembrar onde ela já tinha ouvido essa voz metálica cujo som lhe tinha despertado milhares de recordações vagas. De repente estremeceu: lembrou-se de que tal voz era de Mailor e, inclinando-se subitamente a seu acompanhante, perguntou:

— O Senhor freqüentava a casa de meu pai, senhor de Saurmont, quando eu era criança e morava no Castelo d'Armi?

— Não, Baronesa. Apenas no ano passado, em Paris, travei contato com seu pai. Não será indiscrição de minha parte se seu lhe perguntar por que a senhorita me faz essa pergunta?

— Bem, pois como o senhor é nosso vizinho, sua voz me é parecida, Diana respondeu indecisa.

Ela não podia estar errada. A voz surda, levemente rouca de Saurmont era exatamente a de seu velho Carlos, quando nessa mesma floresta, ele lhe disse: "vamos passear um pouco. Você poderá colher as belas campânulas azuis que crescem nas laterais da estrada”. E isso não se tornou uma simples brincadeira...

Um sentimento de saudade contida, raiva, lástima e estranha adoração encheram a alma de Briand. A encantadora jovem ali sentada a seu lado era Diana e a ofegante respiração que ele ouvia na estreita liteira provinha dela. Ela o agradava como ninguém ainda o havia agradado antes, e, além disso, um imenso abismo os separava - ela era sua viúva! O ódio que ela deveria sentir pelo perseguidor de sua infância parecia lhe dar uma segunda visão, permitindo quase reconhecer Mailor no Conde de Saurmont.

Reprimindo um fundo suspiro, Briand enxugou o suor frio que lhe apareceu na testa. Seu delito passado lhe surgiu inteiro na mente, desta vez lúgubre e zombeteiro.

Nunca havia imaginado que a ameaça de Nêmesis[15] poderia ser tão cruel- Mas ele sentia que, se desejasse desviar a suspeita que havia surgido em Diana, era preciso usar de toda presença de espírito.

Com esforço e boa vontade, reprimiu a furiosa tempestade que irrompia em sua alma e iniciou uma conversa sobre generalidades, na qual ele habilmente dava a entender que quase toda totalidade de sua vida havia passado na Espanha e apenas no ano passado tinha chegado a São Germano.

Diana quase esqueceu a suspeita passageira quando chegaram ao Castelo d'Armi.

Inicialmente o Barão João recebeu a filha com brados de alegria que logo se transformaram em exclamações de raiva, quando soube do atentado contra sua filha que teria sido terrível, não fosse a intervenção do Conde.

Nesses momentos de emoção ninguém notou o aspecto de decepção de Lourença, diante da aparência da enteada; seu olhar venenoso mal ocultou a raiva quando percebeu que Briand havia salvado Diana.

Com seu característico fingimento a Baronesa dissimulou seus sentimentos. Aproximou-se de Diana, seu rosto gordo com as bochechas caídas, refletindo bondade maternal e amável ternura.

Briand discretamente se afastou sob pretexto de dar ordens a respeito dos feridos deixados na floresta. Ao voltar, todos já estavam à mesa de jantar. Aproximou-se de Diana e a cumprimentou alegremente pela volta ao lar paterno.

A jovem reuniu toda força de caráter para este primeiro encontro face a face. Uma espantosa palidez revelava toda sua emoção, quando Diana, num grito rouco, olhando para ele, recuou com indisfarçável pavor.

— Eu tenho a infelicidade de parecer algum bandido, tal o pavor que lhe provoco? lhe perguntou o Conde com um sorriso um tanto constrangido.

— Você é uma criancinha, minha filha? Como pode se dirigir desta maneira à pessoa que a salvou? Este é o mais nobre, generoso cavalheiro que conheço, disse o Barão d'Armi com descontentamento.

Diana se envergonhou.

— Realmente eu estou confusa. Mas o Conde se parece tanto com o abominável Mailor, que me surpreende; até mesmo na voz, no olhar, e inclusive nos traços do rosto.

D'Armi soltou uma gargalhada, tomando-a pela cintura; Lourença também riu, mas Briand observou com pesar:

— Para mim é muito difícil que o meu tipo provoque tais tristes recordações e eu lastimo profundamente minha semelhança com tão desprezível pessoa.

— Não, não! Eu agora vejo que Mailor possuía mais estatura e não tinha esses traços finos de rosto.

Depois, estendendo a mão, ela acrescentou com encantadora ingenuidade:

— Desculpe minhas palavras imprudentes e minha idéia estúpida de compará-lo com essa desprezível criatura.

— Eu esqueço e peço que essa comparação pouco lisonjeira para minha pessoa apenas não seja transferida para mim, com esse ódio que ele fez por merecer, Briand respondeu gentilmente beijando-lhe a mão.

Quando conduziram Diana a seu quarto, o Conde também se desculpou e se recolheu a seus aposentos.

Lourença ficou sozinha e enfim deu acesso à raiva reprimida. Não era apenas não ter conseguido realizar a tarefa arquitetada de livrar-se da enteada, como também agora sentia instintivo ciúme dela por ter provocado uma profunda impressão em Saurmont.

— Cuidado, mocinha imprestável, por se colocar em meu caminho! resmungou ela fechando os punhos. Desta vez o imbecil já não pode despregar os olhos dela. É necessário ir novamente ao esconderijo na Espanha, que desempenhou para mim um bom serviço no assunto de herança. Quem sabe se lá eu não ouvirei ou verei alguma coisa de útil?

Briand, com passadas largas, andava pelo quarto. Ele também tirou a máscara de indiferença e cortesia e no seu abalado rosto se manifestavam os mais diversos sentimentos.

A figura sedutora de Diana estava a sua frente como uma visão tentadora. Seus sentimentos eram extremamente excitantes. Ele era suficientemente experiente da vida para compreender que nele já havia se instalado forte paixão - por sua própria viúva!... Com um sorriso sádico ele se atirou à poltrona e fechou os olhos com a mão.

Mas, com sua natureza enérgica, não se desesperava por muito tempo.

Por que não corrigir esse fracasso? Diana estava livre e o Barão iria entender como felicidade ter um genro como ele. Isso mesmo - voltaria para sua própria vítima através de um segundo casamento que daria a ela nome, posição, corrigindo completamente o mal cometido e ele se reconciliaria com a felicidade.

Assim ele se acalmou, levantando-se com nova esperança.

Bateram de leve à porta nesse instante e a voz adocicada de Lourença perguntou:

— Posso entrar, meu amigo?

O Conde empalideceu como um defunto; como pudera se esquecer da terrível cúmplice, a criatura grosseira e traiçoeira que se prendia a ele numa paixão sem fim?

Ele a deixou entrar.

— Bem, meu querido Barão de Mailor, como achou sua viúva? Lourença perguntava medindo o jovem com um olhar cínico e malicioso. Ela é bastante bonita! Tão bonitinha e você deve guardar em segredo seus direitos de marido... Coitadinho! Ah! Ah! Ah!

Encontrando o sombrio e duro olhar de Briand, ela mudou para um tom sério:

— Aliás eu vim aqui provocá-lo a propósito desse curioso incidente, fazendo você falar no assunto. Lembre se, Briand, que você é muito culpado com o que fez a essa criança - nós a saqueamos... no meu louco amor por você isso me custou muito remorso à consciência. No momento atual João e eu nos encontramos em situação lamentável.

Espero que você nos ajude com uma pequena soma para sustentar e vestir sua viúva; isso tudo vai ficar muito caro e sua dívida é sustentar a família que ficou em péssimas condições graças a você; assim como a antiga situação de Diana era boa, agora você tem de nos repor o que recebeu dela, nos livrando desta dificuldade.

— Eu lhe darei uma soma suficiente de dinheiro para compensar as despesas pela educação, mas você entende que não tenho comigo tal dinheiro, disse ele com irritação.

— Agradeço, Briand, pela generosidade, da qual não duvidava. Mas me permita lhe dar um conselho, sugerido pelo meu amor. Faça correr a Senhora de Mailor - ela odeia o defunto marido, com o qual, por infelicidade, você se parece tão surpreendentemente; você se arriscaria a sofrer contrariedades, caso manifestasse demasiada atenção. Contente-se com a mulher que você conhece e cuja beleza já atingiu o completo desenvolvimento e que não teme comparação com nenhuma pensionista insignificante!

Não obtendo resposta dele que a ouvia com raiva, deu-lhe um leve beijo. Depois, balançando muito seu corpanzil feio, saiu do quarto.

 

UM CRIME SEM REMORSO

A algumas "lieves” [16] da residência do Barão d'Armi, no alto de uma colina coberta por verdejante bosque, erguia-se o Castelo de Beauchamp. Era um amplo edifício, de tipo feudal, com torre e larga muralha. Uma aléia magnificamente conservada levava ao portão do castelo.

Desde o falecimento do velho Barão de Beauchamp o castelo praticamente deixou de servir como moradia permanente. Seu jovem proprietário, René, passava a maior parte do tempo em Paris, vindo ali somente para caçar. Todavia, em um maravilhoso dia de julho, no qual continuamos nossa narrativa, o Visconde chegou inesperadamente ao castelo para repousar em solidão e se ocupar de leituras e afazeres na propriedade.

No aposento do primeiro andar, mobiliado com luxo excessivo e um tanto pesado para o século XVI, um jovem com vinte cinco anos de idade estava sentado em uma poltrona junto à janela. Tinha sobre os joelhos um velho in-folio encadernado em couro. Seu olhar pensativo e distraído contemplava a paisagem que se abria diante de seus olhos. Do alto da colina se avistava um vale circundado por florestas. Da janela se podia ver dois caminhos sinuosos guarnecidos pelas sebes. O primeiro ia para direita e, atravessando o campo, sumia no meio de denso matagal; o outro, contornando caprichosamente o monte, vinha ao castelo.

O antigo companheiro de brincadeiras de Diana agora era um rapaz bonito, de ar altivo e aristocrático; seu rosto pálido contrastava com os traços finos e perfeitos.

Seus grandes olhos verdes eram acompanhados por longas e negras pestanas. A boca delineada por lábios finos e de cantos levemente caídos, expressava orgulho e obstinação.

Naquele momento tranqüilo a expressão de bondade e serenidade do jovem inspirava muita simpatia; no entanto, qualquer observador atento, perceberia que no fundo desses olhos calmos se escondia uma tempestade, e todo um mundo de paixões refugiava-se atrás dos lábios trocistas.

Era visível que algo inquietava René, ainda que seu rosto jovem e despreocupado pudesse dissimulá-lo. Ele carregava realmente, terrível amargura, que por tê-lo deixado muito abalado, fez com que viesse ao castelo veio em busca de paz e esquecimento.

Quando chegou ao palácio real o Visconde se apaixonou insensatamente por uma dama de companhia da Rainha-Mãe. Bonita mas rebelde e leviana, Marion de Marillac era o perfeito tipo daquelas mulheres perigosas e sedutoras das quais Catarina de Médicis gostava de se ver rodeada e que chamava de "esquadrão volante[17]" . Marion não era muito rica, porém era ávida de luxo e roupas caras; ansiava conseguir uma situação financeira sólida, mas diversos motivos fizeram com que seu coração ficasse tomado de rancor e de ódio. Entre as desilusões, a que mais a havia marcado, fora a traição de um jovem fidalgo, pelo qual se apaixonara perdidamente e que a abandonara para se casar com uma rica herdeira. Amargurada, Marion aceitou sem vacilar a proposta de René, apesar de não lhe ter nenhum afeto.

Cego pelo amor, o Visconde não viu quem era a verdadeira Marion, atribuindo-lhe todas as virtudes que desejava ter numa esposa, e se casou, esperando encontrar a paz e a felicidade ideais. Mas logo ele se deu conta da realidade e poucos meses após o casamento, todas suas ilusões estavam desfeitas. Já sabia que a esposa era cínica, desonesta e se casara apenas por dinheiro. Sufocado de raiva e ciúme, René passou dois anos arrastando uma triste vida de casado. Entretanto a Viscondessa deu fim ao matrimônio rapidamente, fugindo de casa e indo viver na vila do Duque de Guise do qual se fez amante.

É difícil descrever o inferno vivido por René e sua ira descontrolada quando descobriu os rastros da fugitiva.

Ele decidiu matá-la e o teria feito se não houvesse chegado a Paris seu cunhado, Marquês de Marillac, que o deteve a tempo. Ele mesmo sobreviveu a um matrimônio catastrófico, que o havia transformado num homem sombrio, calado e inclemente para com as fraquezas femininas.

Ele tinha certa influência sobre René, moço nervoso, impressionável e ainda imaturo. Aimé o convenceu de que uma mulher como Marion não era digna de amor nem de ódio, e que por ela não se pedia sentir nada mais que desprezo. Além disso, esse desprezo profundo não admitia lamentações ou súplicas e por isso não permitia que as mãos fossem sujas com o sangue da megera.

O Marquês não gostava da irmã, muito mais nova que ele, nascida de um segundo casamento do pai. Ademais uma parente muito rica, que batizara Marion, havia deixado em testamento para ela grande parte de sua fortuna, o que feria os direitos de Aimé e até mesmo o revoltava, já que ele mesmo não era rico. Se ele não fosse um cristão suficientemente bom, não hesitaria em se livrar da irmã através dos meios da época, e não se acanharia em julgá-la sem clemência, induzindo René à vingança. Todavia, para ter a satisfação de julgar e castigar a irmã traidora, que se atrevera a sujar sua honra, seu nome, devia se armar dum sangue tão frio e cruel quanto o que mostrara à sua falecida esposa.

Este episódio da vida de Aimé havia sido encoberto e mantido em mistério. Até o próprio René não sabia ao certo sobre a inesperada morte da esposa do Marquês e de seu filho recém-nascido. Não querendo parecer indelicado, ele sempre evitou perguntar a Aimé qualquer coisa referente ao assunto.

Tranqüilizado parcialmente pelo cunhado, o Visconde se encontrava em condições de ir a Anjou. Depois de passar algumas semanas em casa de Aimé como hóspede, o jovem partiu para seu castelo onde se retirou como um ermitão. O amor por Marion havia se acabado, mas a solidão e as recordações amargas o oprimiam.

De repente o som estridente e penetrante de uma trombeta de caça arrancou René de seus pensamentos. Olhou pela janela e viu o jardineiro subindo na direção da mansão, na companhia de dois empregados. Ele se levantou, pondo o livro de lado e após ordenar que o jantar fosse preparado, começou a andar de um lado para outro do quarto, à espera de seu cunhado que, conforme havia prometido, viria visitá-lo.

Um quarto de hora se passou quando o Marquês entrou no quarto. Após um caloroso abraço, René acompanhou seu hóspede à sala de jantar, onde se sentaram à mesa fartamente servida de frios, vinho e frutas.

Marillac comeu com grande apetite, acompanhando os pedaços de carne com bons goles de vinho. Ele tinha trinta e três anos; era forte, de porte atlético. A espessa cabeleira loura emoldurava o rosto corado, sulcado por traços grosseiros. Nos olhos claros brilhavam orgulho e crueldade. A boca grande, com dentes muito brancos, conferia a sua estampa uma impressão de energia selvagem. Vestia uma "camisole[18]" lilás de veludo, trazendo o punhal e a espada.

Depois do jantar os rapazes passaram ao aposento já conhecido do leitor, e se sentaram à mesa na qual havia um tabuleiro de xadrez, uma grande jarra de vinho e duas taças. Aimé estava de muito bom humor. Contava aventuras de caça, entretendo e divertindo o cunhado. Só quando alguns temas foram esgotados eles começaram a jogar xadrez, o que absorveu a atenção de ambos.

Logo Marillac se endireitou e, enchendo o copo de vinho, disse em voz alta:

— Esqueci de lhe dizer que hoje encontrei uma pequena e encantadora mulher, bela e delicada como uma fada. "Par Dieu![19]"- Como diria o grande Carlos IX que pena, René, você esteja casado! Poderia se entreter e cicatrizar todas as feridas do coração.

O Visconde, concentrado que estava nas combinações do jogo, ergueu a cabeça surpreso.

— Não compreendo suas queixas. Você é viúvo. Se essa dama encantadora lhe causou forte impressão, por que você mesmo não tenta cicatrizar suas feridas?

Ao notar que Marillac corava, René acrescentou:

— Mas me diga onde viu a beldade e quem é ela?

— Hoje não foi a primeira vez que encontrei essa menina encantadora. Eu a tinha visto antes, duas vezes; na primeira eu estava indo para Anjou e a outra, caçando perto da cabana dos mineiros e da clareira da Cruz Negra. Trajava um vestido simples, azul, que lhe caía muito bem. Não pude tirar os olhos dela. Nunca vi pele tão alva, cabelos tão loiros e olhos azuis claros e grandes com tal sedutora expressão de alegria pura e inocente, que tornava seu rosto ainda mais belo e atraente.

Até parece óbvio que seu olhar angelical nunca guardou um sentimento impuro que fosse e seus lábios sorridentes jamais devem ter traído e mentido.

Cada vez mais perplexo, René seguia as palavras de seu cunhado.

— Aimé, Aimé! Não estou conhecendo você nisso! Você é inimigo das mulheres e delira como um .adolescente! Quem é essa mulher sedutora? perguntou ele, caindo na gargalhada.

O Marquês jogou a cabeleira loira para trás e disse:

— Quanto a isso já andei me informando. Chama-se Diana, Baronesa de Mailor. É viúva. O Barão a desposou quando tinha cinco anos. Ele faleceu há dez ou doze anos atrás.

Atualmente a mocinha vive com seu pai na Mansão d'Armi. Provavelmente ouviu falar dela, não?

O Visconde, pensativo, apoiou os cotovelos na mesa. O nome Diana despertava nele mil recordações da infância. Ele se via novamente na Mansão d'Armi, brincando com sua pequena amiga. Em suas imagens mentais surgiram, por instantes, as figuras de Lourença e de Mailor. Ao se lembrar da famigerada caixa de bombons, seus ciúmes e a cena que fizera, um sorriso brotou em seus lábios.

— Uma vez que Diana está aqui, devo conversar com ela, disse ele alegremente; depois, dando um tapinha nos ombros do cunhado, continuou: "Agora não me surpreendo mais com sua admiração. Ela deve ter se tornado uma verdadeira obra dos céus."

— Você a conhece? Perguntou Marillac.

— Sim, eu a conheci na época em que se casou com Mailor - éramos então grandes amigos. Desde então a perdi de vista. Acho, Aimé, que você deve aparecer na Mansão d'Armi. Sei que a viuvez o aborrece e a pequena Baronesa o atrai. Não será difícil para você conquistar-lhe o coração. Meiga e pura, ela o fará feliz e no novo matrimônio você esquecerá suas mágoas.

O olhar do Marquês se fez carrancudo e com tristeza e ironia falou:

— As mulheres são traiçoeiras. Tolo aquele que confiar inteiramente numa mulher. Diana de Mailor ainda não teve sua natureza estragada, mas existe mulher, mesmo a mais depravada que na aurora da vida não fosse inocente? Quando a atmosfera contaminada do mundo a. estragar, quando as paixões penetrarem em sua alma, quem pode garantir que ela não haverá de mentir e que seu coração venha a trair a felicidade conjugai? Não. Eu não quero mais me atrever a entrar nesse jogo terrível e novamente correr o risco de me afligir diante do suplício insuportável de ver a mulher amada preferir outro. Quando a criatura adorada atinge tal grau de degradação, somos obrigados a fazer justiça com as próprias mãos... e se cria um inferno para toda vida!... Um inferno de remorsos para uma consciência delinqüente. Ademais a honra e o orgulho sofrem tanto que, no fundo da alma, se forma enorme ferida que só a morte pode sanar.

A voz do Marquês foi mudando gradativamente, fazendo com que as últimas palavras saíssem roucas da garganta. Sua face corou e as veias do rosto se tornaram salientes como se estivessem prestes a estourar. Sob a torrente de lembranças desagradáveis, Aimé fechou os olhos e, com os músculos das mãos tensos, dobrou o suporte de prata da taça, como se fosse uma vareta, derramando o vinho na mesa.

René o observava com um misto de medo e curiosidade, surgindo-lhe de imediato na mente as lembranças dos sofrimentos que Marion lhe ocasionara. O interesse que lhe inspirou o cunhado misturou-se à raiva por Aimé ter evitado que ele resolvesse o seu caso à sua maneira. Por fim o Visconde estava totalmente tomado pelo desejo de conhecer essa tragédia familiar.

— Aimé! Diga-me como você vingou sua honra e por que quer me convencer a não matar Marion? perguntou com a voz trêmula.

O Marquês se sobressaltou. Sem responder palavra, levantou-se, jogou a vasta cabeleira para trás e começou a andar pelo quarto. Depois, parando diante de René, disse com um sorriso amargo:

— Você se convenceu de que não teve força para se vingar; não soube conservar a criatura querida, nem amou como eu. Mas lhe digo: é preciso cair no inferno para se tornar um verdadeiro satanás.

— Você pensa que eu não sou capaz de me vingar? Ainda espero lhe provar o contrário, disse René ofendido e ruborizado.

— Acalme-se, eu não quis dizer isso. Se você amar novamente será de maneira diferente daquela que amou Marion, que pouco a pouco acabou com o sentimento que você nutria por ela. Isso foi a sua infelicidade, já que suas mãos não se mancharam com a culpa de assassinar uma criatura que só merece desprezo mas, se uma nova traição apunhalar seu coração, e você amar como eu amei, ao ter consciência de sua própria vergonha, não duvido de que se vingará cruelmente. Agora escute, matarei sua curiosidade, contarei o que se passou entre mim e minha esposa.

"Casei-me com uma francesa por amor, idolatrando-a cegamente. A má conselheira, a vaidade, me insinuou que sendo jovem, bonito e gostando dela, não teria dificuldades em conquistar seu coração. Por dois anos nada perturbou nossa união. Mas faltava apenas uma felicidade: termos um filho, um herdeiro.

"Nessa época um triste acontecimento me tirou do lar. Meu velho tio Bispo[20] adoeceu gravemente e, pressentindo o fim próximo, pediu que fosse vê-lo. A estima, o respeito, bem como importantes interesses da família exigiam que eu partisse, contudo não tencionava me demorar muito. O céu, no entanto, quis que fosse diferente.

"Assim me pus a caminho da Normandia. A enfermidade de meu tio se prolongou por muito tempo, depois do que ainda fui obrigado a ficar para tratar dos negócios da herança e também para me recuperar do meu próprio estado de saúde.

"Todo esse tempo mantive uma ativa correspondência com minha querida francesa. Pedi-lhe inclusive que viesse juntar-se a mim, porém ela se negou, invocando problemas de saúde.

"As cartas dela ora eram lacônicas, secas, ora cheias de carinho; deveriam me dar idéia de seu estado de espírito, contudo estava cego e por isso não percebi o estranho e hesitante acanhamento, a quase vergonha com a qual ela me comunicou que estava grávida. Não cabia em mim de felicidade. Os dois meses que ainda deveria passar na Normandia me pareciam uma eternidade. Nesse ínterim não recebi mais nenhuma carta e comecei a me preocupar seriamente.

"Já havia decidido partir quando caiu em minhas mãos uma carta destinada ao meu criado Lourenço. A correspondência chegara de Marillac, por isso abri sem vacilar. Ao lê-la fiquei atordoado.

"A carta era de meu velho roupeiro, o pai de Lourenço. Cheio de tristeza e indignação o criado fiel perguntava quando regressaríamos, pois contava ao filho o caso infame que se desenrolava no castelo entre minha esposa e um vizinho, e como os dois começaram a se recolher em um pavilhão de caça. Terminando, o roupeiro comentou que suspeitava, e com fundamento, da verdadeira origem da criança a nascer.

O Marquês parou, respirando com dificuldade. Dominando-se, continuou:

"Foi um milagre eu não ter perdido o juízo; acho que o ódio e a sede de vingança me mantiveram lúcido. Nessa mesma noite parti. Durante a longa viagem tive tempo de me acalmar e refletir melhor.

"Quando imaginava o rosto alvo e belo de minha esposa, chegava a duvidar de sua culpa. Então me perguntava se oito meses eram suficientes para esquecer o companheiro amado. Mas quando o pensamento se fixava no meu feliz oponente, a traição se configurava óbvia. O Conde Gabriel de Montfort era um dos homens mais sedutores que eu já conhecera. Consciente de minha vaidade funesta, eu devia reconhecer que ele era mais atraente que eu.

"Essa falta de semelhança entre nós dois ainda mais avivou meu ódio. Se minha mulher houvesse se apaixonado por um homem parecido comigo seria mais fácil de perdoar. Conhecia o Conde, esteve em Anjou quando me casei, e, pelo visto, se interessou por minha esposa.

Um pouco antes de eu partir ele havia recebido de herança terras pegadas às minhas propriedades. Com toda certeza, ao vir tomar posse das terras aproveitou a ocasião para me conquistar a mulher.

"Fervia dentro de mim com essa idéia e, convicto, decidi liquidar minha esposa e seu filho.

"Guardar a traição e perdoá-la não podia. Expulsá-la significaria jogá-la nos braços do amante, que, claro, a acolheria. Estes pensamentos me ferviam o sangue, e você pode imaginar como eu me sentia.

"Era noite quando cheguei à mansão. Proibi quem quer que fosse que anunciasse minha chegada. Passei em frente ao quarto da Marquesa que, naturalmente, não me esperava.

"Deitada no divã, estava tão concentrada lendo um bilhete que nem sequer ouviu meus passos. De repente notou minha presença. Sem dúvida nenhuma minha expressão não pressagiava nada de bom, fazendo com que ela empalidecesse e saltasse do divã.

"O bilhete caiu de suas mãos. Sem dizer uma palavra o apanhei e li. Era uma carta de Montfort, escrita com tais expressões que não restavam dúvidas de sua culpa.

"Permita-me passar em silêncio pela cena final. Fiquei totalmente fora de mim. Desse momento guardo uma pálida lembrança do rosto dela, que também estava fora de si. Sem vacilar me confessou tudo. Rastejava de joelhos e implorava para castigá-la da maneira que julgasse melhor, suplicava até que a trancasse em um convento, só não queria que eu me vingasse de seu amante.

"Por que não a matei nessa maldita hora? Até hoje isto é um mistério para mim. Entrei em torpor como se estivesse bêbado, só voltando a mim ao raiar do dia, quando a mulher do roupeiro veio dizer que minha mulher havia dado a luz. A notícia fez com que meu sangue frio retornasse, mas, ao mesmo tempo, despertou um sentimento insuportável de repugnância - algo me angustiava - tinha sede de matar...

"Ordenei à mulher do roupeiro que preparasse um banho gelado para a Marquesa e o filho. A pobre senhora quase desmaiou, todavia. Depois de repetida a ordem, retirou-se muda de espanto.

"Algumas horas depois a criança morreu e a mãe foi retirada sem sentidos da banheira, agonizante.

"Recuperando a consciência e pressentindo a morte próxima me mandou chamar. Recusei-me, era impossível ver seu rosto de novo, contudo o velho Gilberto voltou mais uma vez e, caindo aos meus pés, suplicou que fosse.

"Senhor Conde, repetia ele soluçando, Jesus perdoou seus inimigos e o senhor não quer perdoar alguém que se arrependeu? Pense bem, já que sua hora também haverá de chegar e Deus lhe fechará as portas do paraíso por ter tido um coração tão duro".

"Fui vê-la, reconsiderando o fato. Quando olhei a francesinha branca como o travesseiro, com a morte estampada no rosto, meu ódio e minha ira imediatamente se esvaíram.

Via somente seus olhos grandes, cheios de tristeza e sofrimento me fitando.

"Aimé, murmurou ela estendendo em minha direção suas mãos geladas e trêmulas, perdoe-me por tê-lo coberto de ódio e vergonha.

Você me julgou e condenou. Não protesto contra sua sentença justa, contudo estou expiando minha culpa - me perdoe! Não me amaldiçoe nesta hora terrível, para que possa morrer em paz."

"A voz e o olhar dela voltaram a me comover. Ela tinha razão; o castigo fora aplicado e eu poderia tê-la perdoado.

"Duas horas depois tudo estava terminado. Ela não soltou minha mão e naqueles minutos solenes me pareceu que pensava somente em mim, esquecendo o amante, motivo de sua morte.

"Daí me dei conta de que estava viúvo. Sentia-me plenamente satisfeito com meu triunfo e minha vingança.

O Marquês se calou e entre os dois amigos seguiu-se um longo silêncio.

— E Montfort? Você finalmente o matou? Perguntou René.

— Nós duelamos, respondeu Aimé, levantando a cabeça e enxugando o suor frio do rosto. O duelo foi até a morte. Só paramos quando caímos sem sentidos no chão. Pensei que o havia matado, mas quando me restabeleci fiquei sabendo que ele também havia escapado com vida. Depois pronunciou o voto - o que mostra que sentiu certa dose de responsabilidade por ter corrompido uma pessoa no caso, ter seduzido a mulher do próximo.

— Como? Pronunciou o voto? Mas Montfort não era huguenote? perguntou René.

— O Conde Gabriel era católico, mas... já foi muito longe essa história! Boa noite! Sinto que preciso de um descanso, respondeu Aimé, despedindo-se de René.

Estando só, o Visconde começou a andar de um lado a outro no quarto. A história de Aimé lhe havia causado forte impressão e avivou suas próprias recordações amargas. Mesmo assim, pouco a pouco seu pensamento tomou outro rumo e sua atenção passou a se concentrar em Diana.

Tinha um desejo muito grande de ver sua antiga amiguinha, resolvendo no dia seguinte mesmo ir ao Castelo d'Armi.

Desde que regressara à Mansão d'Armi, Diana levava vida monótona, até mais solitária que no convento, onde as bondosas irmãs e as amigas de estudo formavam uma grande família. Além disso, quando havia a visita dos pais das pensionistas, sempre tinham muito divertimento.

Agora ela quase sempre estava sozinha. O Barão passava a maior parte do tempo em Angers ou nas vizinhanças. Lourença estava eternamente ocupada com "negócios inadiáveis", dizia ela, cujos resultados nunca apareciam.

A única distração que Diana encontrava era passear a cavalo pelos arredores.

Dia a dia a madrasta se tornava mais antipática para Diana. Sua hipocrisia despertava repulsa na mocinha educada e meiga. A ridícula pretensão de Lourença de se conservar eternamente bonita, com suas roupas de péssimo gosto, faziam a jovem moça rir às escondidas. Cedo Diana percebeu que Lourença se arrumava somente nos dias em que Saurmont vinha visitá-los. Sabendo disso, Diana se esforçava para não cair em risos ao ver a madrasta obesa e de pena na cabeça, esforçando-se para ser atraente.

Por outro lado, alguma coisa que ela mesma não sabia precisar não lhe agradava no relacionamento existente entre o Conde e Lourença. De vez em quando um certo olhar estranho, um sorriso ambíguo, ou um gesto mais atrevido de Lourença chocava, ainda que Diana fosse ingênua e pura para suspeitar da verdadeira natureza desse relacionamento.

No que se refere a Briand, naquelas semanas seu estado de humor não era dos melhores. Um medo muito forte e persistente o consumia por dentro. Não podia mais viver sem ver Diana, sem se deleitar com sua voz, seu sorriso, e o brilho dos seus olhos. Ao mesmo tempo o ciúme selvagem de Lourença e a pouca simpatia de Diana por ele, mal podendo disfarçar, o obrigavam a manter seus sentimentos escondidos.

Mas ele não desistia. Com a energia que lhe era própria começou agradando Lourença com presentes e delicadeza fingida, para assim poder estar perto de Diana, apesar do mal-estar que causava à moça, quando ela o encarava de frente, como se procurasse algo que pertencia ao odiado Mailor. Vez por outra ela inesperadamente recordava algum episódio do passado, observando atentamente que efeito isso provocava nele.

Foi assim que em certa ocasião, passando pelo jardim, Diana mostrou uma ilhota no meio do lago e disse:

— Antes havia uma ponte aqui. Foi destruída depois que ruiu sob meus pés e quase me afoguei. Isso foi no tempo em que Mailor, não sei por que motivo, queria se livrar de mim, disse ela rindo. Hoje, é claro, sei que a ponte havia sido desmontada propositadamente.

— Ah! Maldito! Por que eu não estava aqui nessa época para castigá-lo! murmurou Briand, para esconder a inquietação que o dominava.

Devido a muitas conversas desse tipo, Briand começou a seguir Diana, sem o conhecimento dela. Quando ela passeava no jardim ou lia sob a copa de uma árvore, ele se deitava em alguma moita e de lá a admirava, apaixonado. Diana gostava sobretudo de um relvado no fim do parque. Lá, debaixo de um carvalho frondoso, havia um banco de pedra rodeado de roseiras e jasmins,-e, quase pegado ao muro, meio destruído nesse trecho e coberto de plantas, era o palco preferido para as brincadeiras de René e Diana. Entrando pela brecha do muro, por dezenas de vezes, o garoto tomava de assalto a colina verdejante, que ainda podia ser vista no relvado, e o castelo, libertando sua pequena amiga. A fortaleza de areia fora erguida por ele próprio.

No dia imediato à chegada de Marillac ao castelo de Beauchamp, Diana se recolhera ao seu canto preferido, já que desde cedo a cabeça lhe doía. Pensando estar só, a mocinha desfez suas tranças e se deitou no banco. Trajando um vestido muito bonito e coberta pela capa, a menina de cabelos dourados estava maravilhosa, como num sonho.

A jovem não suspeitava de que Briand estava escondido a alguns passos dela, devorando-a com os olhos. Como de costume ele havia seguido Diana desde longe. Escondido atrás dos arbustos se embevecia, admirando-a. Nunca a vira tão maravilhosa como nesse minuto. O coração de Briand batia aflito, quando ele pensava que essa criatura encantadora era sua viúva e lhe pertenceria se a vergonhosa cobiça e perfidez de Lourença não o tivessem persuadido a se livrar dela! Mal conseguia conter seus suspiros.

— Ah! Mesmo assim você será minha, nem que seja preciso que o próprio Deus ou Satanás se coloquem entre nós, pensou o Conde. D'Armi me ajudará, e, se a bruxa odienta aparecer no meu caminho, que o Diabo a carregue!

Os pensamentos do Conde foram interrompidos pelo sonoro estalar de galhos sendo quebrados. Através da brecha do muro entrou um rapaz e depois de agilmente saltar na grama se dirigiu ao jardim.

Surpreso, Briand o fitou. Era um moço alto e encorpado, calçado com botas de cano alto e tinha como veste um traje de veludo preto. O Conde nunca o vira. Como um relâmpago lhe surgiu na mente a idéia de que este, provavelmente, seria um conhecido de Diana, companheiro de estudos, por ela apaixonado. Talvez esta não fosse a primeira vez que ela vinha àquele lugar solitário recebê-lo. Instintivamente o Conde pôs a mão no cabo do seu punhal, inclinou-se pra frente e, quando se preparava para se lançar sobre seu suposto oponente, a voz de Diana o deteve:

— Quem é o senhor? O que quer aqui? perguntou ela, visivelmente assustada.

Ela se levantou e, surpresa, olhava para o desconhecido que dela se aproximava.

— Diana! Minha pequena Diana! Pois então não me reconhece? Seu antigo colega de infância? gritou o moço.

— Meu caro René! Como não o reconheci? respondeu Diana, atirando-se aos braços dele e abraçando, sem notar que agora ambos eram adultos.

Beijaram-se afetuosamente, sentando-se lado a lado no banco. Rindo, olhavam um para o outro.

— O demônio está solto! O pequeno Visconde! resmungou Briand irritado ao ver os beijos e os mal contidos risos, lembrando-se da antiga ira infantil do artigo rival.

— Como você ficou bonita, Diana! Meu Deus, mais bonita que você só os anjos do céu! gritou contente o Visconde.

A moça corou.

— Você também não está nada mal. Como cresceu e como lhe fica bem essa barba! Só que me diga: por que passou pela brecha do muro ao invés de entrar pelo portão principal, como deve fazer um cavalheiro?

— É fácil explicar. Ao passar pelo muro vi a passagem e fui tomado pelo desejo de rever nosso lugar de brincadeiras preferido. Imediatamente notei que você estava aqui, sem pensar em outra coisa, tão feliz estava em vê-la.

— Meu Deus, como estou feliz em reencontrá-lo! Aqui estou tão sozinha, disse Diana apertando amigavelmente a mão do Visconde. Conte-me, René, o que andou fazendo esse tempo todo? Ainda vive como antes com o avô no Castelo de Beauchamp? acrescentou ela.

O moço ficou pálido. A pergunta inocente de Diana fê-lo recordar Marion, e ele, involuntariamente, comparou o encantador rostinho de olhar puro de sua amiga de outrora com a beleza provocante e o olhar cínico e insolente de sua esposa.

— Meu avô morreu, Diana. Casei-me e agora vivo na corte, respondeu René contemplando curioso os olhos claros da moça.

— Está casado, caro René? Permita-me cumprimentá-lo e desejar felicidades para você e sua esposa, a qual estimo como irmã, disse alegremente Diana, sem a mínima hesitação.

O Visconde franziu a testa imediatamente, quando notou que a notícia do casamento não a havia inquietado nem de leve.

— Obrigado, Diana, pelos seus bons votos. Más minha esposa não está aqui e eu não posso apresentá-la a você, respondeu ele secamente; porém dominando-se acrescentou:

E você, que fez depois que nos separamos? Por que se sente tão sozinha?

Diana rapidamente lhe contou sobre a morte de Mailor, sua vida entre acrobatas errantes e sua ida ao convento e depois o regresso a casa.

— Papai é bom para mim, contudo ele se ausenta tanto de casa que quase não o vejo, disse ela encerrando o relato. Quanto a minha madrasta, não me inspira confiança.

É estranha, descuidada de seus modos e vaidosa. Ninguém nos visita a não ser o Conde de Saurmont. Ele se mostra muito gentil para comigo, mas seu olhar insistente às vezes me assusta. Imagine só, René, esse Conde se assemelha muitíssimo ao falecido Mailor. Há momentos que me parece estar vendo e ouvindo o detestável Carlos, e então a raiva e a antipatia se apossam de mim. Até fui ao túmulo de Carlos, mas de nada ajudou. A sensação é mais forte do que eu e fujo dele.

Depois de conversarem por uma hora René decidiu partir, sem antes prometer que voltaria no dia seguinte acompanhado de Marillac.

— Venha, venha mesmo. Traga seu cunhado, mas entre pelo portão principal e não pelo muro, já que isso pode manchar minha reputação de viúva, respondeu rindo Diana.

Pensativo e preocupado, René voltou a si. A beleza de Diana o havia realmente encantado. Não conseguia pensar em outra coisa que não fosse em sua amiga de infância.

René a comparava com Marion e, sem se dar conta, começava a sentir um grande ódio por ela; no íntimo lamentava não estar completamente livre.

Marillac apareceu para jantar, depois de ter andado caçando o dia inteiro. Ele perguntou ao cunhado se havia realizado o desejo de visitar a mansão d'Armi. René lhe falou do encontro e exprimiu o desejo de, no dia seguinte, voltar à família para reatar a amizade com Lourença. Mas, quando Aimé, com visível surpresa concordou em acompanhá-lo, René mal conseguiu conter a impressão desagradável que tal afobação lhe causara.

René se vestiu com todo esmero no dia seguinte. Pela primeira vez, desde a fuga de Marion, ele trocou seu sério traje negro por uma "camisole" azul, e uma capa de veludo dourado; na touca trazia uma pena acompanhada por valioso agrafe de brilhantes e safiras.

Satisfeito com sua aparência, o Visconde se contemplava no espelho quando entrou Marillac. Admirado e nada contente, René notou que ele também estava arrumadíssimo, e que a roupa de veludo verde lhe ia muito bem.

— "Verto o sangue de Cristo", mas esse matador de mulheres, me parece, está querendo encontrar outra vítima, reclamou com enfado René. Depois acrescentou maliciosamente:

__Você parece um noivo, caro Aimé.

O Marquês ao ajeitar diante do espelho a gola da renda cara, virou-se e não menos malicioso mediu o Conde dos pés à cabeça:

— E você parece que há muito tempo perdeu o aspecto de infeliz marido abandonado...

— Não posso me apresentar mal, logo na primeira visita à Baronesa, disse o Visconde depois de ficar vermelho.

— Por isso mesmo estou assim, replicou p Marquês, dirigindo-se à porta.

René o seguiu. Os moços atravessaram a saída em silêncio e subiram em seus cavalos à caminho da mansão.

 

NOIVADO PRECIPITADO

A partir desse dia os tempos passaram a ser maus para Briand. As visitas freqüentes de Marillac e René encheram o coração dele de receio e ódio. A convivência de Diana com seu amigo de infância, os cortejos indiscretos do Marquês e o modo como Lourença protegia Marillac, aguçaram sua ira. Mas o Conde não era homem de desistir tão facilmente da mulher desejada. Com impaciência aguardou o retorno do Barão João, que havia se ausentado por algumas semanas. Este iria ajudá-lo a conquistar a filha e a refrear a esposa.

Sem suspeitar nem de leve das intrigas e artimanhas que se desenrolavam a seu redor, Diana recebeu os dois moços com a mais pura alegria; via René como irmão, e, na qualidade de homem casado, considerava-o sem segundas intenções. O Visconde nada lhe falou sobre suas infelicidades conjugais, e a jovem acreditava, de boa fé, em qualquer mentira que ele imaginasse para explicar a ausência de Marion.

As cortesias de Marillac divertiam Diana. Não sentindo por ele nada mais que simpatia, ela recebia com prazer todos os pequenos presentes e as gentilezas que ele lhe concedesse. Lourença ficava, evidentemente, não menos contente quando o Marquês lhe enviava flores raras ou uma confortável e bela carruagem para levá-la à igreja mais próxima. À Diana a companhia dos dois jovens aliviava a constrangente intimidade da vida familiar. Irritavam-na as constantes observações do pai e da madrasta.

Acostumada à delicadeza e comedimento das irmãs e de Odila, chocava-se com a imensa grosseria de Lourença.

Foi numa destas cenas familiares que, ocorrida justamente no dia da partida do Barão João, lhe causou extrema impressão negativa. O motivo da discussão era a ida à igreja na carruagem do Marquês. Diana, que era devota habituada a não perder missa, perguntou se não era possível que um padre rezasse missa na capela da mansão.

— Já não chega que eu tenha dado de comer a tais parasitas? perguntou d'Armi.

— Sim, sim! Eu sei que você julga supérfluo tudo aquilo que é dispensável a um verdadeiro ambiente senhorial, mas, em compensação é generoso como um rei quando encontra uma belezinha qualquer que o agrade... observou mordaz a Baronesa. Por isso escute: quero um padre aqui!

— Verdade? Por quê não convida de novo o Padre Pancrácio? Só que eu o considero bom demais; seria melhor chamar o pai Deus - este sim, um verdadeiro santo, reparou João.

— Enlouqueceu para me propor esse homem maltrapilho? Replicou Lourença.

— Nesse caso obrigue o Conde Briand a servir de sacerdote e se contente com esse confessor.

Lourença lhe acentou um soco forte, interrompendo a frase do Barão; trêmula de raiva, saltou da cadeira e começou a brigar. Pálida de medo, Diana saiu correndo.

Ainda que nada tivesse entendido do duplo sentido nas palavras de seu pai, sua antipatia por Saurmont aumentava a cada dia. Depois de notar que seu bom relacionamento com o Marquês irritava o Conde, ela se mostrou ainda mais amável com Marillac, divertindo-se ao ver o rosto pálido de Briand ficar vermelho, e faíscas de raiva saírem de seus olhos.

Inconscientemente ela jogava com a paixão do Conde. Lourença, com receio e pesar observava os fatos. Ela conhecia bem Briand, sua energia e persistência. Sabia que o Conde não desistiria de ter a mulher querida diante de qual empecilho fosse e João o ajudaria nessa empresa. Por isso ela resolveu criar na própria Diana os obstáculos, se pudesse intransponíveis, para a realização das intenções do Conde. Sem deixar para depois, decidiu elaborar o mais rapidamente possível um plano de imediata execução.

Certa manhã Lourença mandou chamar Diana que a atendeu a contragosto. A madrasta estava com ar aflito, olhos vermelhos de chorar e os cabelos cobertos por panos de compressa; a moça a encontrou sentada junto à lareira; fez sinal para que Diana se sentasse no banco, após o que começou a falar com voz suave e mansa sobre seu amor pela enteada e dos cuidados que sempre tivera para com ela, desde pequenina. Após o comovente início, continuou:

— Minha queridinha! Há alguns dias reluto em abrir-lhe os olhos para fatos que já aconteceram e estão acontecendo ainda e que, inevitavelmente, ao serem revelados, diminuirão o amor e o respeito que sente por seu pai. Porém, temo que, com meu silêncio, seu ódio ainda venha a ser maior. Devo lhe dizer que seu pai é um esbanjador, mal gastador da fortuna dos d'Armi e de seu dote. Vive pedindo dinheiro e, para consegui-lo, pouco se incomoda ou se envergonha de como tem de consegui-lo. Assim foi que, em troca de alguns milhares de escudos, a entregou a Mailor, dando ensejo para que aquele canalha a roubasse. Mesmo agora noto que João tenciona empurrá-la para o Conde Saurmont. Sem dúvida o Sr. Briand é rico e respeitável; uma união com ele encheria seu pai de orgulho, mas, infelizmente, o Conde tem o tipo de caráter que às mulheres só traz infelicidades.

Isso sem falar da antipatia que você sente por ele.

"Saurmont é depravado, leviano e não sabe conter suas paixões. Quando nos encontramos em Paris ele sentiu por mim urna atração selvagem e, aproveitando a ausência de seu pai, me obrigou à força. Ao invés de lavar sua honra, João tomou emprestado do Conde uma quantia grande, que, é lógico, nunca devolverá, fechando os olhos para o episódio odioso.

"Só há pouco tempo consegui superar este jogo vergonhoso: uma inesperada herança me devolveu a independência.

"Contudo não posso conceber que um homem que humilha uma senhora agora estenda a mão à filha dela, querendo se casar.

"Compreenda: esta confissão é difícil para mim, mas minha estima por você me encorajou a fazê-la. Permita-me preveni-la - não há dúvidas de que seu pai quer casá-la com Saurmont. Para evitar futuros contragostos, case-se com o Marquês de Marillac. Ele sempre a procura e não tardará em fazer uma proposta. Esse homem bonito e bondoso a fará feliz.

Imensamente pálida, Diana ouviu assustada a madrasta, sem a interromper. As terríveis acusações levantadas contra o pai a oprimiam e, caindo em soluços, ela fugiu de Lourença.

Trancou-se no quarto e mergulhou em desespero. A idéia de que o pai era assim tão desonesto a deixava doente. Mas, à medida que conseguia se acalmar, refletia: a antipatia nata pela senhora d'Armi lhe inspirava suspeitas quanto à veracidade dos fatos contados por ela. Começou a comparar o amor de seu pai com as acusações de Lourença, e no final das contas se convenceu de que a madrasta o caluniara injustamente.

Por outro lado ela não tinha a menor dúvida quanto aos defeitos e vilanices atribuídos a Briand. A idéia de se casar com ele a fazia tremer; quanto a isso sua madrasta estava certa - seria mil vezes melhor casar-se com o Marquês. Por isso decidiu que daria seu consentimento assim que ele fizesse uma proposta. Diana ansiava deixar a casa do pai onde se sentia só. Até o próprio René andava triste e calado, só aparecendo na mansão de vez em quando.

Não tardou muito para que Briand tivesse a desagradável surpresa de concluir que a atitude de Diana para com ele havia mudado de maneira brusca, passando a lhe ser francamente hostil; repulsa e desprezo quase confessos brilhavam nos olhos dela, mal ele se aproximava. Com ódio exacerbado, Briand desconfiou que no caso havia a mão de Lourença e resolveu se entender com ela. Sem perder tempo, dirigiu-se à Baronesa e lhe comunicou que desejava corrigir o delito cometido no passado casando-se com Diana.

— Apresento-lhe meus cumprimentos. Nossa relação não será em nada abalada por este casamento, e, em contrapartida, você só terá a ganhar com isso, cara Lourença, finalizou ele.

Um sorriso ambíguo brotou dos lábios da Baronesa:

— Guarde-me Deus de impedir que você corrija seus erros! A propósito, este é um assunto pessoal seu, caro Barão de Mailor, e o consentimento de sua viúva não depende de mim. Faça o pedido a ela e a João quando ele voltar.

No mesmo dia em que transcorreu esta conversa, Diana recebeu uma carta do Sr. de Montfort, que a havia deixado inquieta e cujo conteúdo não revelou a ninguém. A Condessa Clemência havia escrito que tencionava estar em breve em Paris, para passar um ano ou dois já que seu marido Armando tinha negócios a tratar na capital.

Todos estavam ansiosos em vê-la. Para evitar que o Barão João não se colocasse contra a ida da filha a Paris, a Condessa de Montfort, com o concurso do Duque de Nevers, conseguiu que sua amiga fosse designada dama de honra junto à Rainha Elisabeth[21]; a indicação se oficializaria assim que Clemência recebesse da moça uma confirmação, à qual aconselhava enviar diretamente ao Duque, pó. um mensageiro honesto que a certificasse da entrega da carta. Sem vacilar um segundo,

Diana respondeu que concordava e ficaria muito feliz em rever os amigos.

Ela desejava ardentemente viver por uns tempos em Paris. Que objeção o pai poderia ter contra a honra de ver sua filha no palácio? Até resolvera, caso ficasse noiva de Marillac, impor a condição de que o casamento não se realizaria antes de um ano, uma vez que ela não tinha a mínima vontade de se casar com Aimé.

Além disso Diana queria ver um pouco do mundo, antes de se enterrar numa mansão velha, naquele fim de mundo chamado Anjou.

Dois dias depois chegou d'Armi. Na primeira noite, logo após o jantar, Briand foi vê-lo em seu aposento. Após relatar em linhas gerais quais eram seus negócios e propriedades lhe pediu a mão da filha. O relato convenceu plenamente o Barão e este já se sentia no paraíso. Abraçou Saurmont, chamando-o de filho e agradeceu aos céus a concessão de tal felicidade a sua filha. Mas, de repente, sua cara gorda se fechou e ele, titubeante, perguntou se Lourença sabia das intenções do Conde.

— Antes de conversar com Diana eu devo me aconselhar com Lourença. Seu amor maternal será ofendido se ela for excluída de tão importante assunto, disse João em tom resoluto.

Briand, pensativo e irônico, seguiu-o com o olhar. Por um momento o Conde perguntou a si mesmo se d'Armi acreditou naquilo que ele dissera com tanta convicção. O moço conhecia bem o caráter da Baronesa e sua posição de conselheira enérgica em todos os negócios sujos. Ao retornar, d'Armi interrompeu os pensamentos do Conde, comunicando imediatamente que Lourença havia concordado com o abençoado casamento que deveria trazer felicidade a sua filha.

— Amanhã de manhã, meu caro Briand, faça a proposta. Se aquela pequena insensata der o contra, conte comigo, acrescentou o Barão, contente consigo mesmo.

No dia seguinte, ao voltar de um passeio matinal, Diana colocava as flores nos vasos, flores que lhe tinham sido presenteadas, quando chegou sua criada Gabriela, correndo, e lhe disse que o Conde de Saurmont pedia para falar com ela.

Surpresa, Diana mandou conduzi-lo à pequena sala de visitas, onde ele estivera mais de uma vez com d'Armi. Quando Saurmont entrou, Diana colocou as flores na mesa e com frieza lhe indicou que sentasse.

— Deseja conversar comigo, Conde? disse ela. Bem...?

Briand se aproximou da poltrona, e depois de pegar a mão dela, levou-a calorosamente aos lábios.

— O assunto diz respeito à felicidade de toda nossa vida e de nosso futuro, declarou ele emocionado. Diana, sei que não me ama, pois tenho a infelicidade de me parecer com o homem que a fez tão infeliz, inspirando-lhe aversão. Mas a considero muito boa e justa para repelir, devido a uma semelhança casual, um amor tão profundo e sincero, do qual ninguém pode duvidar. Concorde em ser minha esposa, Diana! Seus pais concordaram. Dedicarei toda minha vida à sua felicidade.

Diana empalideceu. Ouviu a declaração de sobrancelhas franzidas. Levantou-se rapidamente do lugar e mediu o Barão com um olhar frio e hostil.

— Sinto muito, Sr. de Saurmont, que eu mesma seja obrigada a lhe dizer que considero sua proposta uma ofensa. Permita-me observar que sei do vergonhoso relacionamento que manteve e que talvez ainda mantenha com minha madrasta. Depois disso seu desejo de se casar comigo é um insulto ao meu pobre e cego pai; nunca, ouça bem - nunca serei sua esposa!

Quaisquer que sejam os motivos que estimularam e forçaram a Sra. Lourença a me revelar a verdade, agradeço-lhe muito ter-me mostrado que o senhor não se parece com Mailor somente na aparência, mas também no espírito.

Briand ouvia pálido, com o corpo todo a tremer. O desprezo contido em cada palavra da moça lhe dava a sensação de verdadeiras bofetadas. O ódio que sentia por Lourença o estrangulava. Com sua malícia inerente, a megera enganara todos e vencera a partida. Após escutar as últimas palavras de Diana, o Conde se levantou e, mal contendo palavras, saiu da sala, dirigindo-se rapidamente ao quarto de Lourença.

No corredor ele encontrou d'Armi. Foi suficiente olhar o rosto aflito do Conde para compreender que Diana, além de recusar a proposta, o havia ofendido de alguma maneira.

Quando Briand entrou no quarto de Lourença, ela estava tranqüilamente ocupada em tirar doces de um grande pote e recolocá-los em um pequeno recipiente. A Baronesa trajava uma saia de veludo tão amarrotada e manchada, que era difícil descobrir sua cor verdadeira; nos cabelos embaraçados, uma pena presa a valioso agrafe dava um toque estranho.

Emudecido de raiva, Briand parou. Seus lábios tremiam e se recusavam a obedecer. O ruído da porta se abrindo fez Lourença se virar e ela, com bondade simulada, olhou para seu amante:

— Opa! Como está inquieto, meu amigo! A viuvinha sem juízo já recusou sua lisonjeira proposta?!

Mailor, Mailor! Acaso não sabe que eu o amo demais, para deixá-lo escapar, mesmo que seja para a filha amada? Há tempos você deveria saber que o meu amor não tolera rivais.

Contente-se com isso e jamais esqueça de que só o meu amor e a sua fidelidade mantêm no fundo de minha alma o segredo do crime do falecido Mailor, deste impostor e assassino do tio. Não se faça de infeliz, meu amigo! No desespero de ficar sem você, posso perder a razão, e quando uma pessoa está fora de si, ela mesma não sabe o que faz. Sendo assim, procure não perturbar meus pensamentos e me amargurar com sua pretensão de se unir a outra!

Eu sei, continuou ela convencida e satisfeita, balançando seu corpo gordo e sujo, que não há mulher que seja tão inteligente e bela como eu. Meus encantos atingiram o máximo, não temendo qualquer comparação, mas eu, por princípio, não suporto uma segunda divindade ao meu lado.

Tamanha era a repulsa na falta de vergonha, fazendo o sangue de o Conde subir à cabeça com tanta força, que ele perdeu seu habitual comedimento e se lançou sobre a megera, dando-lhe fortes bofetadas no pescoço e pelas costas.

Lourença se endireitou, colocando os doces sobre a mesa e gritou bem alto; com destreza e muita rapidez ela empurrou o Conde e, com mãos sujas de geléia, o agarrou pelos cabelos. Depois, puxando a caça de Briand para trás, imobilizou-o pelo ataque inesperado e lhe deu ela duas bofetadas.

— Vá embora, seu animal selvagem! Como ousa tratar uma fraca mulher dessa maneira! acrescentou ela o empurrando e pondo-o para fora com forte soco.

Como um bêbado, quase sem consciência, Briand foi ao quarto que sempre ocupara no Castelo d'Armi. Mas mal passou a soleira, como que sufocado pelo desespero e pelo ódio, perdeu os sentidos.

Ao ver o Conde de Saurmont passando à sua frente como um verdadeiro furacão, uma terrível ira se apossou de d'Armi. Admitiria ele que uma criança idiota recusasse um noivo espetacular e que lhe fechasse o acesso a tal mina de ouro? Não! Nunca! Vermelho de raiva, foi ao quarto de Diana, e, com expressões ríspidas, lhe comunicou que, se a persuasão não lhe devolvesse o juízo, "ele", seu pai, a obrigaria a se casar com Saurmont. As tímidas objeções da menina foram encobertas pelos quase gritos do pai, que se retirou batendo a porta.

A pobre Diana, tremendo, nervosa, se encolheu na poltrona. A angústia era tal que não conseguia chorar. Lourença estava certa: o pois queria forçá-la a um casamento odioso. De repente foi tomada pelo receio de que o Barão regressaria acompanhado por Briand. Sem pensar duas vezes, saiu para o jardim e se escondeu na vegetação.

Só então deu vazão às lágrimas.

— Meu Deus! O que aconteceu com você?

Ao ouvir estas palavras, Diana ergueu a cabeça. Enxugando rapidamente as lágrimas, ela estendeu a mão a Marillac que chegava à moita, levado pelo seu cão de caça.

— Por que está metida aqui? Sem o faro de Plutão eu não a teria encontrado, continuou o Marquês, segurando-a pela mão e sentando ao lado dela no banco.

Em tom amigável começou a perguntar a Diana qual era o motivo de tanta tristeza. Apesar do silêncio dela, ele logo adivinhou o que havia acontecido.

Aflito e irritado, Aimé decidiu que não poderia mais adiar sua proposta a Diana. Com palavras carregadas de sentimento, ele a convenceu de seu amor, e lhe pediu que o aceitasse.

A proposta, feita em momento tão desesperado, se configurava como uma verdadeira possibilidade de salvação. Não obstante Diana foi o suficientemente honesta para confessar ao Marquês que, apesar do grande respeito e profunda simpatia que sentia por ele, não o amava apaixonadamente, como uma mulher deveria amar o marido. Se ele se contentasse com isso, e fosse paciente e indulgente, ela, com prazer, se tornaria sua esposa.

Marillac concordou com tudo. Então Diana lhe contou sobre sua indicação para Dama da Corte:

— Desejando fugir daqui e conseguir uma situação mais ou menos independente, eu assumiria esse posto. Em minha opinião não se pode recusar, nem mesmo por um ano, esse respeitável cargo junto ao Rei da França, continuou ela com vivacidade. Espero que você concorde em adiar nosso casamento e me permita ir a Paris, onde, sem dúvida, nos uniremos.

O rosto do Marquês se alterou. Não lhe agradava nem um pouco a idéia de adiar o casamento por um ano. Porém recusar-se a aceitar essa condição e impedir que a moça se colocasse no palácio não lhe parecia razoável, e por isso concordou.

Depois de tudo combinado, Marillac deu um beijo de noivado, levantou-se e alegremente disse:

— Agora comunicarei a seu pai que ele não mais precisa se preocupar em conseguir um bom genro e que, se o Sr. de Saurmont tiver bom senso, deixará a mansão onde não tem mais nada a fazer, a não ser que deseje conhecer minha espada.

D'Armi estava no seu quarto conversando com Briand. Explicava que havia dito à filha que sua vontade se faria cumprir e, que, por bem ou por mal, a tornaria esposa dele. O Conde, de cara fechada, ouvia em silêncio. A chegada do Marquês interrompeu a conversa. Sem se intimidar pela presença do Conde, Marillac, falando com vivacidade e firmeza, disse ao Barão que Diana lhe dera a mão e que ele ali estava para lhe pedir que endossasse com seu consentimento paternal a palavra da moça.

Completamente desconcertado, de respiração presa pelo espanto, d'Armi olhou para o Marquês sem saber o que falar. Por fim murmurou:

— Mas... Diana o ama? O Marquês franziu a testa.

— Pelo visto sim, já que ela concordou em ser minha esposa, respondeu ele, endereçando a d'Armi um olhar frio. A propósito, devo lhe comunicar que estou cumprindo apenas uma habitual delicadeza pedindo seu consentimento. Sendo viúva, Diana pode a seu critério escolher o marido.

Depois de haver recebido com desdém as escusas do Barão d'Armi, Aimé se desculpou e se retirou.

Assim que ele deixou o recinto, Briand também se levantou. Estava pálido, sentia um ódio terrível, sem prestar atenção mínima ao palavreado do Barão que, preocupado, tentava convencê-lo de que aquilo não impediria o seu casamento. O Conde saiu dali, ordenou selar o cavalo e, sem se despedir de ninguém, partiu para a mansão São Germano.

Após passar um dia agradável ao lado da noiva, o Marquês regressou à Mansão Beauchamp. Lá chegando se encontrou com o cunhado após o jantar. Marillac não o via já há quinze dias pois René Sr. ausentara para tratar de negócios. Ao terminar de falar sobre a viagem René observou sorrindo:

— Como você está feliz hoje, Aimé! Provavelmente teve sorte na caça e abateu um cervo?

Um sorriso de satisfação iluminou o rosto do Marquês e os dentes brancos por debaixo do bigode louro apareceram:

— Melhor do que isso! Apanhei um verdadeiro bocado real! disse ele, erguendo sua taça. Cumprimente-me, René, hoje me tornei noivo de Diana d'Armi.

O Visconde já estava de mão erguida para brindar com ele quando, rapidamente, colocou a taça na mesa. O Visconde estava rubro:

— Tornou-se noivo de Diana? Está delirando?

— Parece-me que é você quem está delirando! O que há de estranho no meu noivado? retrucou Marillac.

— E Diana concordou em ser sua esposa? automaticamente perguntou René.

— Que o diabo o carregue! O que significa essa tagarelice? Escute bem, não sou um monstro que não sente desejo por nenhuma mulher, ou será que você está com ciúmes? gritou o Marquês, saltando furioso da cadeira.

René conteve sua emoção e disse secamente em tom tranqüilo:

— Sente-se e se tranqüilize, Aimé! Não estou com ciúmes. Somente a surpresa e a amizade inspiraram minhas palavras. Sua escolha me parece arriscada. Ao meu ver Diana não o ama. Se essa francesa que se casou com você por amor o traiu, o que pode esperar de uma mulher que não o quer?

Diana será sempre tentada, ela é muito bonita para não despertar paixões.

— Porém ela é bem jovem, bem honesta e mais que tudo - uma autêntica interna de convento para ficar me traindo. Após se tornar minha mulher ela aprenderá a me amar, respondeu Aimé de rosto pálido.

— Está convencido disso? Sem dúvida Diana "ainda é" pura e inocente, mas só o futuro poderá provar o que será como mulher.

— Eu a educarei e me esforçarei em remover do caminho qualquer tentação. Inclusive você, espero, não tente seduzi-la, observou Aimé, com um ligeiro sorriso desajeitado.

— Deus me livre! É claro que não atentarei contra sua felicidade, respondeu o Visconde encerrando a conversa. Mil sentimentos contraditórios atormentavam sua alma.

Não queria se convencer de que estava apaixonado por Diana mas, ao mesmo tempo, a idéia de vê-la esposa de Marillac lhe causara angústia. Por qual motivo ela se casaria com um homem tão rude, ao qual não amava e que talvez a matasse como matou a primeira esposa?

"Amanhã mesmo a verei. Ela me vê como um amigo, um irmão, e por isso haverá de me contar os motivos que a levaram a concordar com este matrimônio, pensou ele."

Não era ainda meio-dia quando o Visconde chegou ao castelo d'Armi. Através do velho jardineiro que estava cumprindo a função de porteiro, ele soube que, na véspera, o Barão havia partido e que Lourença estava muito doente. A própria Diana o recebeu. Na pequena sala de visitas o fogo ardia na lareira, uma vez que, apesar de ser agosto, as paredes da velha construção estavam úmidas. Diana estava sentada junto à janela. Trajava, como sempre, um vestido de lã branca. Em seu colo estava um pergaminho. Quando René entrou ela o enrolou e o colocou na janela.

Ao primeiro olhar o Visconde notou que ela estava pálida, angustiada e muito triste.

— Vim lhe dar os parabéns, Diana, mas não posso fazê-lo de coração limpo, uma vez que seu noivado com Aimé me parece estranho, disse ele segurando a mão dela e sentando-se a seu lado.

— Você não aprova minha escolha? Por quê?

— Porque você não o ama.

— É verdade, não o amo como deveria, mas o respeito e me esforçarei em amá-lo, disse ela enrubescendo.

— Mas por que você tem que se casar com ele? falou René impetuosamente. Eu a considero uma pessoa inteligente; você é jovem e bonita, pode se casar por amor. Diga-me francamente, Diana, que motivos a levaram a agir assim? Acho que tenho o direito de saber.

— Sem dúvida. Para você, de quem gosto como de um irmão, não tenho segredos. Desta forma, ouça porque sou forçada a casar com Marillac.

Em poucas palavras ela lhe contou o que a madrasta lhe dissera sobre suas relações com Briand e o inexprimível pavor que lhe causava a idéia de pertencer ao Conde.

Pensando em evitar esse casamento para o qual seria empurrada pela cobiça do pai, ela concordara em ser esposa de Marillac.

— Agora eu compreendo. Mas Aimé também a fará infeliz. Ele é terrivelmente ciumento, exigente e rude, disse René inquieto.

— O casamento só se realizará dentro de um ano; até esse dia poderei me acostumar com o meu destino, respondeu Diana com tristeza.

A seguir ela lhe contou sobre a sua designação para dama de honra da corte.

Sabendo dessas novidades, o bom estado de espírito do Visconde voltou imediatamente. Naquele momento ele considerou que um ano era intervalo de tempo muito grande e que, até lá, muita coisa poderia mudar. Dessa vez deu parabéns a ela de coração limpo, e lhe disse que também iria a Paris para tratar de negócios e lá teria prazer em se encontrar com ela. Uma descrição brilhante de Paris e de seus palácios, feita por René, fizeram com que a moça logo recuperasse seu estado de ânimo.

A notícia de que Diana tinha sido convidada para ser dama de honra caiu na Mansão d'Armi como uma bomba. Lourença balançava entre a raiva e a auto-satisfação, mas sabia como conter-se. No que se referia a d'Armi, no começo indignava-se com a malícia e a dissimulação da filha, mas logo se acalmou e, por todos os meios, se esforçava em apressar o dia da partida. Enchia-se de orgulho ao pensar em ver a filha ocupando tão respeitável posto junto à jovem Rainha. Além disso, aproveitando a excelente oportunidade, ele queria se insinuar na aristocracia, depois de visitar o Hotel de Nevers[22], já que a Duquesa, por meio de uma carta muito amável que acompanhava o documento oficial, convidava Diana para se instalar em sua casa enquanto não arrumasse lugar no Louvre.

Diana sentiu enorme alívio quando a grande carruagem, acompanhadas por três cavalos sobrecarregados e escoltados por quatro criados, deixaram finalmente a Mansão d'Armi.

Despediu-se da madrasta com frieza. Já do noivo, na véspera à noite, se despediu ternamente. Marillac ficaria fora por três meses; ia visitar uma velha tia de quem esperava herança. Depois disso pretendia encontrar-se com Diana em Paris.

Apesar do visível entendimento reinante entre os noivos, às vezes certas palavras angustiavam a jovem tanto que, por um momento, ela se surpreendeu com o desejo de que algum acontecimento imprevisto modificasse o destino.

Durante a viagem Diana chegou até a se esquecer do Marquês. Seus pensamentos estavam em Paris, no novo mundo onde agora iria viver. Para ela somente ali seu destino se resolveria. Seu coração palpitou mais do que nunca quando, finalmente, sua carruagem chegou aos portões da capital.

D'Armi resolveu descansar um dia ou dois na hospedaria de Lourença, antes de se apresentar com a filha no castelo da Duquesa de Nevers. Ainda que a casa estivesse ocupada por hóspedes, para os donos sempre se arranja um canto.

Passados dois dias d'Armi, todo trajado de negro, sério e orgulhoso como um verdadeiro Senhor, levava a filha ao Hotel da Duquesa de Nevers.

Diana sentia muita timidez nesse palácio, repleto de vida, movimento de cortesãos, pajens e guerreiros. À primeira vista ela se chocou com a realidade do novo mundo, mas o orgulho nato a ajudou a manter a dignidade.

Quando se apresentou à Duquesa, suas maneiras eram de um discreto comedimento e graciosa timidez, o que causou excelente impressão.

— Ah! Eis por fim a amiga de infância da minha querida Clemência, disse a Sra. de Nevers, beijando amigavelmente Diana. Dou-lhe os parabéns, Sr. Barão, por ter uma fila tão encantadora. Deixe-a comigo por alguns dias, eu mesma a apresentarei à Rainha e cuidarei para que ela se instale, acrescentou bondosamente a amável senhora.

Quando d'Armi partiu, a Duquesa de Nevers levou Diana para seus aposentos. Após ordenar que preparassem seu traje para a visita que faria à irmã do Rei, Marguerite de France[23]; conversou animadamente com a moça e lhe perguntou sobre sua vida passada. Ingênua e sincera, Diana lhe contou tudo abertamente e disse, inclusive, que estava noiva de Marillac.

— Marillac? repetiu a Duquesa, tentando se lembrar da pessoa. De repente teve um sobressalto e sacudiu a cabeça. E quando será o casamento? perguntou ela.

Ao saber de Diana que as núpcias seriam dentro de um ano, e que Marillac não viria antes de três ou quatro meses, a Duquesa disse rindo:

— Nesse caso nem tudo está perdido! Sua escolha, menina, não é boa. Recordo que vi o Sr. Marillac. É um soldado rude. Sobre seu passado correm maus rumores. Aqui poderá arranjar um futuro mais brilhante do que se casar com esse palaciano de província. Não diga a ninguém que está comprometida. Você é linda, Diana! Quando terminarmos de arrumar este seu traje que faz lembrar - Deus me perdoe! - tempos do falecido Rei Francisco, você vai brilhar no palácio e só de você mesma dependerá seu futuro.

A Sra. de Nevers era bonita, feliz, adorada, educada nos princípios daquela época; não continha suas paixões e fantasias e considerava a surpreendente beleza de Diana um capital que seria um desperdício não utilizar.

Na manhã seguinte saíram para visitar diversos fornecedores. E então Diana, penteada e vestida conforme a última moda, presenciava, em companhia da Duquesa, a homenagem à jovem Rainha. Com grande curiosidade ela observou toda a enfadonha cerimônia de homenagem à soberana; à primeira vista a própria Rainha lhe inspirou profunda simpatia.

Elisabeth da Áustria não era bonita. Seus traços grosseiros e vulgares eram de pouco encanto, contudo seus pequenos olhos cinzas transmitiam tanta bondade e tristeza que ela, involuntariamente, inspirava simpatia. A Rainha acolheu de modo benevolente sua nova dama de honra e a autorizou a descansar alguns dias para se habituar a Paris.

Depois de alguns dias Diana deixou o hotel da Duquesa e se instalou no Louvre. Seus aposentos constavam de um pequeno apartamento com três quartos, vestiário e um aposento para Gabriela, sua camareira.

A moça se sentia felicíssima. Havia visto apenas o lado externo da vida palaciana e não tinha focalizado ainda os espinhos que se escondiam por debaixo dessa brilhante aparência da corte.

Diana aguardava com impaciência ver o Rei e os demais membros da família real.

Certa ocasião, à noite, Carlos IX chegou de uma caçada em Fontainebleau. Ao ouvir o som das trompas anunciando a chegada, ela correu à janela que dava para o pátio.

A luz dos archotes, porém, dificultava a visão e a jovem não pode reconhecer o Rei, tendo de se contentar em contemplar o pomposo cortejo.

Até que enfim, durante o primeiro plantão, seu desejo se realizou quando acompanhava sua senhora em um encontro com a Rainha-Mãe.

Catarina de Médicis se encontrava num pequeno salão com quadros e móveis escuros. Sentada numa grande poltrona junto à lareira, ela conversava tranqüilamente com um senhor idoso. Os olhos meio cerrados e os lábios finos lhe davam um certo ar de maldade, apesar de no geral sua fisionomia inspirar bondade. Trajava um vestido negro e na cabeça um gorro com um longo véu que ainda hoje se pode ver em seus retratos. Ela se dirigiu à nora com muita delicadeza, mas depois de um minuto de conversa conduziu habilmente a jovem Rainha a um canto do quarto, onde prosseguiu a conversa.

Observando-a, Diana no'.ou que, mesmo estando atenta às palavras de sua interlocutora, Catarina não perdia de vista nada do que acontecia naquela câmara. Por um segundo uma chama rápida irrompeu de seus olhos, como um relâmpago, direcionado para um dos presentes.

Logo depois chegou o Rei, acompanhado dos Duques d'Anjou e d'Alençon e de vários cortesãos. O soberano estava visivelmente animado, mostrando excelente estado de ânimo. As maçãs do rosto rosadas se destacavam no rosto pálido.

— Como você se esqueceu, Carlos? Será que jogou dados até tão tarde? - perguntou a Rainha Catarina depois dele haver beijado sua mão.

— Não, eu ensaiei dois novos motivos para clarim e depois ganhei uma aposta de meu irmão, o Duque d'Anjou, respondeu Carlos IX, saudando sua esposa.

— E qual era a aposta, Senhor? Perguntou com seu sorriso tímido e discreto a Rainha Elisabeth.

— Apostei que poderia girar cem vezes saltando, sem ficar tonto. O Conde disse que isso não era possível e que após vinte voltas eu perderia o equilíbrio. Fiz cento e vinte voltas que dariam para balançar a Torre de Nesle[24], contou o Rei rindo alto e satisfeito consigo mesmo.

Ouviram-se algumas exclamações de admiração. O próprio Duque d'Anjou habilmente observou que não se importava em ter perdido a aposta, em primeiro lugar porque o Rei sempre deve estar com a razão, e segundo porque, para dirigir a maravilhosa França, ele devia ter uma cabeça forte.

— "Pâques Dieu", você está certo, Henrique; um punho forte e uma cabeça forte, gritou o Rei rindo com gosto.

Depois a conversação se encaminhou a outros assuntos. O Rei discorria sobre a próxima caçada e sobre um livro muito raro que lhe pertencia. A seguir contou à mãe sobre a nova profecia de Nostradamus e, aproveitando o tema falou que num quarteirão da Rua Temple se instalara um novo astrólogo, muito hábil e misterioso.

Um dos cortesãos que o visitou, contou sobre os milagres e seu conhecimento incomum.

Ao saber disso os olhos de Catarina brilharam. Após saber quem era esse cortesão, ela conversou com ele longamente.

Diana se surpreendeu, ficando sob uma triste impressão difícil de descrever. Estava decepcionada. Imaginara o Rei e a Rainha de maneira completamente diferente.

No que se referia a suas amigas acompanhantes de ambos os soberanos, como a maior parte dos cortesãos, não a agradavam nem um pouco. Os trejeitos afetados do Rei e seus descaramentos atrevidos no relacionamento com os cortesãos, chocavam de forma inexprimível a jovem pensionista de convento.

As semanas seguintes nada trouxeram de novo. Diana mantinha zelosamente seu posto junto à jovem Rainha. As horas livres passava no Hotel de Nevers, onde a Duquesa sempre a recebia cordialmente e lhe propiciava os mais variados entretenimentos.

Certa vez encontrou na casa da Duquesa uma jovem dama cuja aparência não lhe agradou.

Era uma mulher alta e magra, de vinte anos. Seu rosto era alvíssimo, olhos verdes, amendoados e emoldurados pelos cílios longos e negros, cintilavam como os olhos de um gato. A pequena boca vermelha guardava um sorriso provocante de paixão. Seu gesticular e toda sua figura mostravam um descaramento cínico e, no fundo das pupilas verdes brilhava algo de cruel e de mau. Vestia um fino traje : um vestido azul e, na cabeça, uma touca negra de veludo com penas.

A beleza de Diana, naturalmente, chamou a atenção da dama. Enquanto a Duquesa apresentava uma a outra, ela lançou um olhar de curiosa maldade sobre a moça.

Ao nome de Viscondessa Marion de Beauchamp Diana se espantou. Esquecendo a má impressão, ela disse alegremente surpresa:

— Marion de Beauchamp! Você é esposa de René de Beauchamp?

— Sim, é meu marido, respondeu enrubescendo levemente a admirada Marion.

— Como sou feliz por finalmente ter conhecido a esposa de meu amigo de infância! Quantas vezes eu e René lamentamos sua ausência!

Um leve sorriso zombeteiro perpassou os lábios da Baronesa:

— Verdade? Estou muito comovida pelos sentimentos de meu marido para comigo. Agora me recordo de que ele me falou de sua pequena Baronesa de Mailor e sobre suas freqüentes visitas à Mansão d'Armi. Porém você me será ainda mais próxima. Ontem recebi uma carta de titia, na qual me relata que meu irmão, Marquês de Marillac se tornou noivo da Senhora de Mailor.

— Sou eu. Só que eu e o Sr. Aimé resolvemos manter em segredo o nosso noivado até o próximo ano.

Com a chegada de duas damas a conversa tomou outro rumo. Diana quase não tomava parte nela, apenas observava Marion que narrava com assombrosa falta de discrição um indecente caso que havia ocorrido com um dos senhores da corte do Duque d'Anjou. Quanto mais observava a Sra. de Beauchamp, mais antipatia a tomava. Por que ela ficou vermelha ao ouvir o nome de René? Por que ela permanece aqui enquanto ele vive, só, na Mansão Beauchamp? Ela devia amar o jovem, belo e gentil rapaz.

Quando a Sra. de Nevers retornou, após ter acompanhado as visitas à saída, surpreendeu Diana extremamente pensativa e lhe indagou no que pensava.

— Sobre a Sra. de Beauchamp; o que a faz viver aqui, longe de René? perguntou inocentemente Diana.

A Duquesa sentou na cadeira e deu uma longa gargalhada, depois enxugou as lágrimas e disse:

— De onde você veio, minha criança, que não sabe aquilo que corre em todas as bocas? A bela Marion abandonou a casa do marido e passou a viver com meu cunhado, o Duque de Guise de quem se tornou amante.

— A mulher de René é amante do Sr. de Guise?! E a senhora sabe disso! disse espantada Diana.

A Duquesa caiu novamente em risos.

— Oh! Criança! Não fique assim assustada. Henrique de Guise[25] gosta naturalmente de mulheres bonitas e não esconde isso de ninguém. Se a esposa dele, Catarina, se atormentasse muito, ficaria com os cabelos brancos em três meses. Aliás não foi ele quem desviou Marion do bom caminho. Antes dele o Sr. de Surdi a amou e agora dizem que o Sr. d'Anjou está perdidamente apaixonado por ela. Mas esqueçamos a bela Marion; posso lhe falar de coisas mais interessantes. Ontem recebi uma carta da Condessa de Montfort - ela virá para o Natal e pede que lhe entregue este bilhete.

Feliz com a notícia, Diana pegou o bilhete. A alegria de encontrar em breve sua amiga a fez esquecer de Marion. Passada a agitação, somente no silêncio da noite ela voltou a pensar naquilo que ouvira. Agora entendia a estranha expressão de René toda vez que a conversa se referia à esposa e, no entretanto, ele queria vir a Paris.

Será que já teria perdoado a traidora?

Os dias que se seguiram não trouxeram novidades. Maríllac escrevia de tempos em tempos. Na última carta lhe contou que a doença da tia o segurava e não podia deixá-la assim. René também não viria, o que aliás Diana achou compreensível. Ao receber a carta do noivo, sentiu um grande alívio; a cada dia mais lhe pesava o compromisso, já que quando comparava Aimé com os palacianos, ele quase sempre ficava em desvantagem. A beleza ímpar da moça causou forte impressão no palácio sobretudo desde o dia em que o Rei após observá-la disse: "Que moça encantadora!".

Desde esse dia o número de admiradores aumentou muito e até o Duque d'Alençon lhe dispensava especial atenção.

O Natal se aproximava. Certa manhã uma Dama veio anunciar uma visita e Diana, com alegria, viu que era a Condessa de Montfort. As amigas correram em direção uma da outra, abraçando-se e beijando-se calorosamente. Depois de uma animada conversa, Clemência convidou Diana para passar o dia seguinte em sua casa.

A Noite de São Bartolomeu

— Armando e Raul desejam muito vê-la, porém não sabem que você se tornou tão bonita. Quem sabe - e a Condessa riu maliciosamente _ não irá se realizar nosso antigo plano...?

Diana ficou vermelha, e logo em seguida pálida; deu um suspiro. Ela lembrou do Conde Raul e de seu noivado, mas irrefletidamente silenciou sobre o último.

Na manhã seguinte Diana se vestiu com requintada elegância. Clemência e seu marido a receberam de braços abertos. A feliz e orgulhosa Clemência lhe apresentou seu filho. A seguir passaram a conversar sobre o passado e o futuro.

— Onde está Raul? Nós estamos sentados à mesa e ele se atrasa, sabendo da importante visita que temos, disse Clemência com ligeira insatisfação.

— Ele foi ao Louvre se encontrar com o Sr. de Nancy[26] e deve regressar em breve. De qualquer forma ele não sabe da visita de Diana, acrescentou o Conde, sorrindo manhosamente. Eu queria fazer uma surpresa assim ele viria logo para conhecer sua encantadora amiga...

— Veja, tio Raul! alegremente gritou Luciano correndo à porta.

O coração de Diana começou a bater com mais intensidade. Curiosa, viu um jovem alto e forte que se aproximava rapidamente, enquanto segurava na mão seu chapéu com pena. A moça o reconheceu imediatamente, já que Raul pouco havia mudado. Só que sua beleza se tornara a de um adulto, e uma barba rala e sedosa lhe cobria o rosto.

Ele vestia um traje muito elegante.

O olhar do moço, com admiração indisfarçável, caiu sobre o rosto de Diana que, pálida e nervosa, respondeu ao seu cumprimento. No mesmo instante Clemência desatou a rir.

— Por que tanta cerimônia entre velhos conhecidos? Será que você esqueceu, Raul, que a Sra. de Mailor foi minha colega no convento de Nossa Senhora?

O Conde ficou vermelho e surpreendido. Depois de algumas gentilezas e desculpas, ele tomou a mão de Diana e a beijou.

— Pelo reinicio de nossa velha amizade, acrescentou ele fazendo graça.

À noite Diana retornou para casa com a feliz sensação de que aquele dia fora um sonho. Raul esteve a seu lado o tempo todo e se recusou acompanhar o irmão a uma reunião de protestantes. Quando a figura do Conde surgia nas imagens mentais da moça, seu coração batia com estranha força, enquanto que a lembrança de Marillac a fazia tremer. Com ódio e impensada malvadeza ela comparava a estampa rude e os membros grosseiros de seu noivo com o elegante e belo Raul, de traços delicados e olhos negros como veludo, mãos finas e bem tratadas como as de uma mulher.

A partir desse dia Diana sempre passava suas horas livres no Hotel de Montfort. Contrariando o bom-senso, ela não podia ficar sem ver Raul que, por sua vez, fascinado pela moça, sem saber do noivado, não escondia sua paixão por ela, cortejando-a insistentemente.

— Ao que parece sua casa está predestinada a reunir os seus adoradores, disse, certa vez, sorrindo Raul.

— Quem pode ser, além de Clemência, de seu e de você, Conde? Vocês me cercam de todas as atenções, me estragando com mimos, argumentou Diana enrubescendo.

— Meu médico é uma excelente e honestíssima pessoa. Chama-se Antônio Gilberto e está certo de que a mãe dele foi sua babá; diz conhecê-la desde o dia em que você nasceu.

— Antônio, o filho da minha querida Justina, aqui? Oh! Diga-lhe para vir correndo, gritou alegremente a moça.

Quinze minutos depois...

— Como estou feliz em vê-lo, Antônio! Como está Justina? perguntou Diana, estendendo a mão ao moço todo vestido de preto e ele, com olhos brilhantes de felicidade, respeitosamente a cumprimentou.

Teve início, então, uma conversa entrecortada. Diana fez tantas perguntas ao mesmo tempo ao seu ex-pajem, que ele não sabia a qual delas responder primeiro. Por causa disso a cena se tornou cômica, um verdadeiro "quiproquó".

— Não! Desse jeito eu nunca saberei nada, disse Diana por fim. Venha me ver, Antônio, amanhã pela manhã, no Louvre. Lá poderemos conversar com mais calma.

Conforme o pedido, no dia seguinte Antônio Gilberto apareceu na residência real. Conduziram-no às dependências de Diana, que o esperava com impaciência. Recebendo seu antigo amigo de infância com vinho e salgadinhos, ela lhe pediu que contasse como tinha vivido desde o tempo em que se separaram e de que maneira se tornara médico de Montfort.

— Tamanha felicidade eu recebi graças à proteção de Nossa Santíssima Virgem Maria e as preces de minha boa mãe, respondeu ele emocionado.

Usando sua permissão, nobre dama, lhe contarei como tudo isso aconteceu.

"Após seu desaparecimento do Castelo d'Armi, minha mãe passou a se sentir muito mal. Nada conseguia dissipar a inconformação dela pelo fato de o Barão de Mailor ter planejado algo contra você mas Deus, por justiça, já o castigou, tolerando que o assassino o golpeasse.

"Eu também fiquei muito triste. O quarto e o jardim, depois do que aconteceu, me pareciam grandes demais. Eu passava o tempo todo na igreja para a qual a sorte me conduziu, ajudando a velha Madalena nos seus afazeres domésticos. Nessa época o Pé. Celestino recebeu a visita de seu irmão gêmeo, cirurgião muito hábil, que não descansava, nem mesmo durante aquela semana de visita. Acompanhei o Sr. Gilles por todos os lugares, procurando ser-lhe útil. Tal afinco despertou nele simpatia por mim, terminando por pedir permissão à minha mãe para me levar a Paris onde, sob sua orientação, tu aprenderia medicina. Mamãe, agradecida, permitiu, pois eu tinha catorze anos e era preciso pensar no futuro. Um bom doutor não podia ter carência de pão nesta nossa época agitada , em que guerras, duelos e vários incidentes causam tanto dano a senhores arrebatados e a pessoas de seus séquitos, acrescentou em tom bondoso Antônio.

"Desde o momento em que minha partida foi decidida, minha mãe também decidiu abandonar o castelo d'Armi. Ela procurou um lugar de ama-seca e o conseguiu numa casa, na qual viveu até o dia de sua morte, dois anos atrás.

Depois de descrever a Diana, que chorava ao recordar sua fiel ama-de-leite, os detalhes da morte de Justina, o jovem continuou:

"Nos anos seguintes me entreguei completamente aos estudos. Somente duas vezes me foi possível visitar mamãe. Sobre a segunda visita ainda voltarei a falar. Assim correu o tempo. Terminei os estudos e tive a felicidade de ser durante dois anos aluno do conhecido, Ambrósio[27] (28), voltando depois ao meu primeiro professor, que havia adoecido e por isso desejou que eu o substituísse no tratamento de alguns doentes.

"Há uns três anos atrás meu professor, Sr. Gilles, recebeu a notícia de que seu outro irmão, comerciante em Angers, sentindo-se doente, pedia a presença para o acerto de diversos assuntos da família. Meu pobre patrão, preso à cama devido a uma terrível doença, estava incapacitado de viajar. Então ele depositou em mim toda sua confiança, pedindo que fosse em seu lugar e resolvesse todos os problemas com seu irmão, de acordo com as instruções dadas por ele.

"Concordei com alegria, uma vez que, próximo a Angers vivia minha mãe a quem eu sempre estava ansioso por ver. Por isso me esforcei para apressar a partida.

"A viagem foi feita sem qualquer contratempo. Eu estava bem equipado. Levei na mala meus instrumentos cirúrgicos e uma caixa de remédios, graças aos quais pude ganhar uma boa quantia durante a viagem.

"Não faltava mais do que um dia para chegar a Angers, quando ocorreu um incidente que mudou meu destino. Atravessava rapidamente um bosque grande e espesso, com pressa de chegar a um hotel antes que a noite caísse. De repente ouvi uns gritos e tiros partindo das redondezas. Esporeei os cavalos e numa curva da estrada vi cinco ou seis bandidos atacando furiosamente três cavaleiros. No exato minuto em que os vi, um dos cavaleiros caiu, quase em seguida um outro cambaleou na sela e deixou cair a arma.

"Lançando-me na defesa do terceiro cavaleiro, atirei com minha pistola nos bandidos, um dos quais caiu. O cavaleiro matou outro e os demais fugiram. Já escondidos no matagal, um dos bandoleiros atirou e meu companheiro de combate foi ferido no peito e caiu no solo soltando um gemido.

"Saltei do cavalo e examinei os corpos estendidos. Logo constatei que o último a cair era um jovem fidalgo rico e os dois que o acompanhavam seus criados, dos quais um estava morto e outro levemente ferido e atordoado.

"Tirando da mala os instrumentos e a caixa de remédios, examinei o ferimento do jovem senhor. Era grave mas não mortal. Fiz um curativo preventivo.

"Quando verti um pouco de vinho na boca do ferido e lhe dei sal para cheirar, ele abriu os olhos. Então o soergui e perguntei quem era, prevenindo-o de que seu caso era muito delicado e inspirava cuidados.

"—Tenhamos esperança de que a sorte nos traga alguém que nos indique o refúgio mais próximo, respondeu o ferido. Eu estava viajando a negócios. Meu nome - Conde Raul de Montfort.

— Raul? Era o Sr. Raul? gritou Diana, ficando vermelha como uma cereja.

— Sim, minha senhora, era ele. Foi exatamente esse episódio que nos fez encontrar. Mas continuarei minha narrativa. Comecei a ficar preocupado por estar no bosque, com os dois feridos, quando por fim fui tirado das dificuldades por um mineiro que retornava a sua choupana. Fiquei sabendo por ele que nos encontrávamos em terras pertencentes ao Marquês de Marillac.

— Marillac!... interrompeu Diana fortemente surpresa.

— Sim, Marquês Aimé de Marillac. Talvez o conheça, senhorita? Sim, bem... este senhor estava em Paris na casa de seu cunhado e o mineiro me disse que, nas proximidades havia um pavilhão de caça, onde vivia o guarda do bosque e seu filho, os quais, naturalmente, não negariam abrigo a um senhor ferido. Estimulando sua prontidão com moedas de ouro, eu o mandei para lá a fim de levantar o alarme. Logo ele voltou com dois homens e uma liteira-maca, na qual colocamos o Conde. O criado contundido voltou a si e seguiu montado no cavalo, enquanto eu o acompanhava ao lado, escorando-o. O pavilhão de caça era uma maciça construção de pedra, com alguns cômodos confortavelmente mobiliados.

"Instalando o Conde numa grande cama com colunas, cuidadosamente tratei seu ferimento. Durante essa operação que o Conde suportou com incomum paciência, ele me disse:

"—Você é muito talentoso para sua idade, mestre Antônio. Eu o quero a meu lado; não me abandone- até meu pleno restabelecimento. Compensá-lo-ei generosamente pelo tempo perdido."

"Depois de saber que eu me dirigia a Angers para tratar de negócios de mau patrão, ele prometeu me liberar para realizar minhas obrigações, assim que sua saúde o permitisse.

"Passados alguns dias no tratamento do criado que sobrevivera, este pôde ir ao Castelo de Montfort com a notícia do desagradável atentado. Permaneci com o Conde me prendendo cada vez mais ao seu encantador e excelente caráter, e cuidei dele o melhor que pude, esforçando-me em alegrá-lo nos longos e aborrecidos dias, levando livros que se encontravam no pavilhão ou lhe contando diversas histórias ocorridas durante minha prática médica.

"Certa noite, quinze dias após a partida do serviçal, um grupo de cavaleiros, encabeçados por dois senhores, parou no pavilhão. Um deles era jovem e atraente, muito parecido com o Conde Raul. O outro, surpreendentemente, era meu antigo professor Ambrósio Pare. O restante do grupo era constituído de homens armados, empregados e cavalos carregados de malas.

"Corri ao encontro deles para recebê-los e conduzi-los ao meu doente. Ao meu ver, Pare não ficou menos surpreso que eu.

"—Você aqui, Antônio! Disse ele. Que coincidência!

"Expliquei como chegara até ali e expressei minha alegria em vê-lo.

"O encontro dos dois irmãos me provou que entre ambos reina a relação mais cordial e fraterna. Mas como lhe transmitir o que eu senti quando o célebre cirurgião se inclinou sobre-o doente que eu, até aquele momento, havia tratado sozinho? Esqueci tudo. O meu coração começou a bater mais forte enquanto ele, com todo cuidado, examinava o ferimento e o curativo feito por mim. Por fim, se levantou e me abraçou amigavelmente, dizendo:

"—Você é um excelente jovem, Antônio, e o reconheço como meu aluno. Eu mesmo não teria feito melhor.

"Emocionei-me. Tal elogio, saído dos lábios do afamado cirurgião, me elevava a meus próprios olhos. Alguns dias depois fiquei sabendo que as palavras do renomado cientista, demasiadamente bondosas para aumentar o mérito de quem não o tem, me abriram as portas da carreira.

"O Conde Armando de Montfort, sem se importar com minha idade, me propôs o posto de médico e cirurgião no seu castelo. Concordei com prazer, feliz por saber que aos vinte cinco anos já tinha o futuro garantido para toda vida.

"Antes de partir, meu novo senhor me deu oito dias para arrumar os negócios de Gilles e abraçar mamãe.

"Meu encontro com ela e as notícias que lhe trazia foram suas últimas alegrias deste mundo, já que três meses depois ela faleceu.

"No que se refere a mim, fui com os dois Condes ao Castelo de Montfort.

— E é feliz lá, Antônio?

— Sinto-me como no paraíso. O castelo é luxuoso e nunca desfrutei vida tão boa como a que me é proporcionada lá.

Além disso os dois Condes me tratam muito bem e permitem que eu disponha do tempo conforme minha vontade. Se não tenho doentes no castelo, então me é autorizado sair para tratar dos pobres nas aldeias vizinhas. Esta vida tranqüila e a atividade proveitosa me agradam, me fazem verdadeiramente feliz. A cada dia sou mais reconhecido ao meu bom senhor.

— Sim, eles são muito bons, gentis e atenciosos, disse Diana com entusiasmo. E Clemência é a melhor de todos:

Antônio, com um sorriso, balançou a cabeça.

— Até o ano passado eu não pensava assim, ponderou ele, já que a Condessa trata os subordinados com muita frieza e desdém. Ela não mudava suas maneiras arrogantes, mesmo quando se relacionava com pessoas da mesma posição dela. Mas lhe digo: no ano passado me convenci que debaixo da arrogância da Condessa se esconde um coração amoroso e uma mente justa e atenciosa.

"Nessa época o pequeno Luciano adoeceu com uma inflamação. Nenhuma vez pensei que ele estivesse perdido, que morresse, mas o Senhor me encorajou e consegui salvar o menino.

"Durante esses dias e nessas terríveis noites, a Condessa não deixou o filho nem por um minuto. Ela me ajudou com tamanha destreza e energia, que a única coisa que me restava era admirá-la. Naquele dia, quando lhe disse: Condessa, seu filho está salvo! Ela, emocionada, apertou minha mão. Vendo que fiquei desconcertado com tal sinal de reconhecimento por parte dela, a quem eu considerava muito orgulhosa, ela emocionada disse:

"—Bom Antônio! Aquilo que você fez por nós não se paga com ouro. Vi que na assistência a meu filho você colocou uma parte de sua alma. Por isso agradeço como me sussurra o coração.

"Essa tem sido minha vida até o dia de hoje." Só que eu não esperava mais por esta grande felicidade em Paris e eis que tenho a alegria de reencontrá-la! Ah! Que pena minha boa mãezinha não tenha podido viver até este momento!

Profundamente emocionada, Diana lhe estendeu a mão que ele beijou. E a partir desse dia recomeçou a antiga amizade, por um lado de respeito, por outro lado de sinceridade e fidelidade ilimitadas, como nunca houve antes entre o filho de Justina e de sua pequena senhora.

 

LIVRE ENFIM

Dali para diante o tempo foi para Diana uma mistura estranha de felicidade e dor.

Freqüentemente ela ia ao Hotel de Montfort e notava, dia após dia, o amor de Raul aumentando por ela.

O jovem não escondia seus sentimentos e há muito tempo teria feito a proposta, se a própria jovem não tivesse fugido cuidadosamente de cada explicação definitiva.

Ela temia confessar a Raul que estava noiva do Marquês de Marillac; e se ele começasse a desprezá-la pela hipocrisia? Se ele se afastasse dela com desprezo e se ativesse a outra mulher? Esta idéia provocou na alma de Diana uma tempestade de ira e ciúmes que lhe prendiam a respiração. Por outro lado a perspectiva de se casar com Marillac lhe provocava terror. Só pelo fato de estar com Raul, deleitando-se com sua voz e com sua aparência, ela esquecia o passado e não pensava no futuro.

Tal tensão nervosa atuava nefastamente na saúde de Diana, e Clemência, surpresa, começou a notar a mudança que se passava nela.

Apenas uma coisa sustentava um pouco a jovem: a ausência do Marquês. Ele não se apressava em chegar a Paris, e, com a alma em paz, se ocupava de seus interesses pela grande herança que lhe tinha sido proporcionada pelo falecimento da tia.

René também não aparecia. Mas Diana sabia, através da carta do Visconde, que ele se gripara e que poderia chegar a Paris só dentro de cinco ou seis semanas.

A carta de Marillac tirou de Diana a última tranqüilidade. Ele, muito gentilmente, lhe escrevia que os negócios que o haviam prendido em Anjou estavam chegando ao fim, esperando para o fim de maio poder estar em Paris. Estava se preparando para implorar à noiva reduzir o prazo de experiência e que marcasse o mais depressa possível o casamento deles.

Ela gelou até a medula dos ossos. Casar-se com Marillac era para ela pior que a morte. Mas como se livrar dele? Após três noites de insônia e de lágrimas intermináveis, Diana decidiu contar tudo a Clemência.

Na manhã seguinte se dirigiu com essa intenção aos aposentos da Condessa. Ela estava sozinha, pois o marido e cunhado tinham ido à Assembléia[28] onde havia uma reunião de protestantes, felizes e orgulhosos com a brilhante vitória alcançada pelo partido deles. Realmente, não considerando a oposição dos católicos, a fúria e oposição abafadas da Rainha-Mãe, o Rei Carlos há alguns dias confirmara o casamento de sua irmã Margarida com Henrique de Navarra (11.04.1572) [29]. Todos esperavam que essa união consolidasse a paz firmada dois anos antes[30].

A Condessa de Montfort embora fosse católica, amava demasiadamente seu marido para se relacionar hostilmente com o partido dele.

Nela, uma mulher honrada e casta, causava repugnância o descaramento cínico das damas da corte. Os boatos de que o Duque d'Anjou[31] tomava banhos de sangue humano, um homem requintado ao mais alto grau, não agradavam à jovem mulher. Ela, em segredo, alegrou-se quando o povo saqueou os hotéis de alguns italianos, protegidos de Catarina. A multidão os culpava de roubarem crianças e entregarem à Rainha-Mãe e seu querido filho, para a preparação de banhos de sangue humano.

— O que há com você, Diana? Já há tempo estou notando você se modificando, tornando-se triste. É evidente que algo a oprime. Mas o quê? Eu nem posso imaginar. A vida lhe está sorrindo e o futuro promete felicidade. A propósito: você não está vendo que Raul a ama? Que desgraça você teme quando pode se unir a esse jovem bonito e nobre?

Diante dessas palavras Diana desatou em prantos; lançou-se aos braços da Condessa exclamando com voz entrecortada:

— Ah! Clemência! É isso que principalmente está me sufocando e tirando minha calma. Vejo que Raul me ama, mas não posso me casar com ele.

— Não é melhor ser sincera, pequena insensata? Não será por que você não o ama? perguntou a Condessa admirada.

— O que você está falando? Será possível conhecer Raul e não o amar? respondeu Diana, não percebendo o sorriso que foi provocado por sua resposta ingênua.

Seu rosto queimava e ela prosseguiu:

— Vou lhe contar tudo e peço seu conselho. Estou noiva - essa é minha infelicidade...

— Você está noiva?! Mas meu Deus, quem é esse noivo? O noivo invisível?

Desfazendo-se em lágrimas, Diana contou todos os motivos que a tinham forçado a se atar a Marillac que, apesar de tudo, era melhor que o abominável Saurmont. Ela lhe contou o seu desespero. Levada agora por sua obrigação, queria se ver livre da palavra empenhada, vendo-se livre desse casamento - custasse o que custasse.

— Você deve se confessar ao Marquês e lhe pedir devolver sua palavra. Vai conseguir se casar com ele amando outro? observou a Condessa em tom sério.

— Mas se ele não quiser desfazer o noivado, então você tem toda razão - custe o que custar devo ser livre. Raul não irá me desprezar pela minha impulsividade e meu silêncio criminoso...? disse Diana com timidez.

Clemência se pôs a rir.

— Não tema! Uma pessoa apaixonada não costuma ser tão inescrupulosa. Aliás, hoje mesmo informarei tudo a ele, visto estar sofrendo muito. A insistência com que você se esquiva de qualquer explicação o incomoda.

Diana abraçou a amiga e a beijou; recusou-se a almoçar sob pretexto de seu serviço. Na realidade ela sentia mesmo era necessidade de ficar sozinha para pensar melhor como se comportar em relação a Marillac.

Por alguns dias Diana se esquivou de ir ao Hotel de Montfort. Era-lhe terrível e vergonhoso se encontrar com Raul. Mesmo quando a própria Clemência saía com ela, ela se recusava a passar o dia com eles.

Mas um dia, antes do almoço, chegou Raul. A jovem ficou corada até as orelhas, baixou os olhos, e fez como se não estivesse notando nada, mas o Conde se sentou a seu lado e lhe beijou a mão. Seu olhar, não considerando a ligeira tristeza, era bondoso e afetuoso em demasia e ela se refez imediatamente. Sem qualquer palavra ela entendeu que Raul a amava e até tinha esperanças para o futuro - e Diana tomou a firme resolução de se livrar de Marillac.

A partir desse dia lhe voltou a boa disposição de espírito. Apenas na calada da noite, quando ela pensava na explicação inevitável e difícil que se aproximava, seu coração se comprimia dolorosamente e já se punha a desejar que o Marquês nunca chegasse.

Chegou o final de maio e uma intranqüilidade febril tomou conta de Diana. Assim, a cada instante, ela esperava ver Marillac, já que ele não lhe tinha respondido a carta.

Certa manhã, quando Diana estava cansada, irritada e ainda na cama, a camareira Gabriela entrou correndo e informou que tinha chegado o Visconde de Beauchamp e desejava vê-la.

Diana, alegremente, começou a se vestir apressada. O quanto temia a chegada de Aimé se alegrava com a chegada de René. Sem dúvida, seu amigo de infância a ajudaria e lhe daria um bom conselho.

Nesse instante René assobiava uma ária de caçador, andando pela sala de estar da Dama de Honra. Ele ainda estava um pouco pálido pela gripe recente e com visível impaciência olhava para a porta por onde entraria Diana.

Com o passar dos meses a imagem da pequena amiga dos jogos infantis mais e mais se apossava dele. A beleza dela o inebriava, mas com essa admiração se misturava o sentimento de amargor, quase desgosto, porque Diana via nele apenas o amigo. Uma coisa o irritava terrivelmente - aos olhos dela era apenas um irmão, e não um homem bonito e sedutor, que tinha conquistado tantos corações femininos. Ele a perdoava por se ter unido a Marillac, por necessidade, mas não podia desculpá-la por não dar a entender que preferia ele ao invés do Marquês. Em seu ciumento rancor René às vezes esquecia completamente que já era casado. Quando se recordava desse fato era para pensar de que modo se livraria de Marion, por quem sentia um desprezo gélido.

Com o resultado dessas reflexões, foi que decidiu se utilizar de sua permanência em Paris para se divorciar da devassa com quem havia casado e que havia abandonado o lar.

Mas antes de tudo, deveria colocar um sólido obstáculo ao casamento de Marillac. Por consciência, não podia permitir que Diana casasse com uma pessoa que tinha matado a primeira esposa. Poderia acontecer que ele, René, viesse a conquistar o coração de Diana e então o ciúme doentio do Marquês de Marillac incomodaria sua felicidade.

Não! Em todo caso, a jovem deveria ser avisada do que Aimé era capaz.

Com a entrada de Diana se interromperam os pensamentos do Visconde. Lançou um olhar cheio de admiração à bonita jovem que considerava sua. Cumprimentou-a de forma fraternal e familiar que caracterizava a relação deles.

— O Marquês veio com você? Diana perguntou com voz ligeiramente indecisa.

— Não, Aimé chegará dentro de alguns dias, mas, a propósito, quero lhe falar seriamente a respeito dele, disse o Visconde sentando-se ao lado dela e lhe segurando amistosamente a mão. Marillac me disse que desejava apressar o casamento. Antes de vocês se ligarem definitivamente, eu quero, outra vez, repetir que na minha opinião você será infeliz. Você não ama Aimé e ele será um marido inconveniente.

A primeira esposa se casou por amor e o caráter dele, severo, ciumento e desconfiado, envenenou-lhe a vida.

— Ah! René! Mil vezes você está certo. Eu estou apenas pensando numa coisa: devolver ao Marquês sua palavra. Mas ele me libertaria da obrigação?

— Você deve forçá-lo a fazer isso; com esse objetivo eu lhe revelarei uma página do seu passado. Talvez não me seja conveniente fazer isso, mas eu a amo muito para permitir que você coloque seu destino em mãos tão cruéis.

Ele narrou a Diana, detalhadamente, a aventura amorosa da Sra. de Marillac, sua morte e a da pobre criança, pela vontade cruel do Marquês.

Diga-lhe que você soube por acaso desta triste história e que não pode se tornar esposa da pessoa cuja consciência está carregada por dois crimes.

Diana escutando-o empalideceu terrivelmente. De fato, na posição de mulher apaixonada ela prestou muito menos atenção ao crime de Marillac do que no excelente motivo para se livrar dele.

— Certamente por nada na terra me casarei com tal criatura! Como lhe estou agradecida por me ter prevenido! exclamou a astuta Eva, beijando estrepitosamente o rosto do Visconde.

Mas ela não lhe revelou os motivos por que tanto desejava o rompimento com Marillac.

Cego, com a idéia preconcebida, Beauchamp interpretou essa gentileza como evidência do amor que ela tinha por ele. Transcorrida uma hora, tendo saído da casa de sua jovem amiga, ele trazia consigo a convicção de que era amado e assim que se divorciasse de Marion nada o impediria de realizar a nova união.

O relato de René acalmou consideravelmente o difícil sentimento que Diana experimentava, à espera da inevitável explicação que daria a Marillac. O crime não a chocou muito. Nessa época infeliz de discussões religiosas, crimes, revolução civil, crueldades extremas e de toda espécie eram até certo ponto normais; as pessoas se acostumavam de certa forma a elas.

Para ela o homicídio do Sr. de Marillac quase sumiu na satisfação de encontrar tão excelente pretexto para lhe restituir a liberdade.

Essa confiança se tornava tão grande que, passados alguns dias, Gabriela a informou sobre a visita do Marquês e Diana até não se afastou do grande espelho, diante do qual, pela última vez, observava seu vestido de corte. Como nesse dia ela estivesse de plantão, o Marquês, tendo entrado na pequena sala de estar, se deteve.

Seu olhar brilhante imediatamente cresceu em direção à esbelta, elegante figura de Diana em pé, diante do espelho, ajeitando a corrente com a cruz. A longa ausência, ainda mais fortalecia os sentimentos de Marillac; o suave e inocente rostinho da noiva lhe trazia uma visão sedutora e ele, de todo coração, estava ansioso para apertá-la em seus braços. Nesse momento a figura da jovem o fascinou. Até esse instante ele só a tinha visto com vestidos de lã simples, branco, cinza; nunca havia suposto que um vestido luxuoso poderia aumentar tanto sua beleza. E, realmente, o vestido de veludo azul bordado a ouro, a capa redonda e um pequeno gorrinho com um longo véu, destacavam ainda mais a alvura ofuscante de sua pele e o tom dourado do exuberante cabelo.

Um forte rubor se espalhou repentinamente pelo rosto do Marquês - ele se encontrava a dois passos da jovem. Abraçando sua cintura fina, ele a puxou e se inclinou para beijá-la.

— Como você é linda e como a amo! Ele murmurou.

Diana estremeceu. Escapando de seu abraço, com a agilidade de um lagarto, ela recuou alguns passos.

— O que significa tal recepção? perguntou Marillac empalidecendo e franzindo as sobrancelhas.

Ligeiramente emocionada Diana fez um sinal para Gabriela se retirar. Depois, mostrando uma cadeira para o Marquês, ela disse em voz surda:

— Sente-se, Sr. Aimé. A explicação que agora vamos ter é muito importante e peço ao senhor que ouça sem raiva o que lhe digo.

Marillac recusou a cadeira oferecida e apoiando-se no encosto, disse em voz entrecortada:

— Diga o que você tem de importante a me dizer.

— Eu não posso ser sua esposa e lhe peço que devolva minha palavra, assim como lhe devolvo a sua, Diana respondeu após um minuto de indecisão.

De início o Marquês nada disse. Empalideceu mortalmente e era visível que uma emoção terrível o impedida de falar. De repente segurou a mão da jovem e exclamou com voz rouca.

— Qual o motivo de tal ofensa, deste injusto desacato?

O Marquês apertava a mão de Diana com espantosa força, mas ela não se queixava.

— Para que chamar de ofensa uma confissão inspirada por duradoura honestidade? Quando ficamos noivos lhe disse que sentia apenas respeito pelo senhor. Agora, com todas as forças de minha alma eu amo outro. Então julgue - poderei estar casada com o senhor e o senhor ter como esposa uma mulher cujo coração pertence a outro homem?

— Posso e exijo que mantenha a palavra dada por você, exclamou Aimé vermelho de ira; quanto à confiança, então, deixe comigo.

Os olhos de Diana brilharam. Conseguiu arrancar sua mão com força e exclamou com raiva e desprezo:

— Não é verdade que você me afogará numa banheira de gelo como fez à Sra. Francisca? Mas eu não permitirei que me matem! Eu amo, sou amada e quero viver, está entendendo?

Ele empalideceu terrivelmente e recuou.

— Quem lhe falou sobre meu passado sombrio? perguntou com voz rouca. Informaram-lhe pelo menos que Francisca me traiu vergonhosamente? acrescentou ele subitamente.

— Será que você está pensando que é possível esconder tais fatos e que ninguém soube sobre eles? Conheci a verdade aqui em Paris através da Duquesa de Nevers. Estou sabendo também que Francisca o traiu. Mas um cristão pode mandar embora uma esposa infiel, não matá-la. Todos nós somos fracos e somos suscetíveis ao erro.

— Você tem razão. Ainda lhe devo agradecer por me ter prevenido antes do casamento, exclamou Marillac com um riso seco; mas se pode saber quem é esse felizardo amado por você? Não tema, ele acrescentou vendo a hesitação dela, toda corte vai saber o nome da pessoa em quem recaiu sua escolha. Ele mesmo, espero, não se recusará em dar uma pequena explicação àquele de quem roubou a noiva.

Diana orgulhosamente se aprumou e mediu o Marquês com um olhar impetuoso:

— Claro que não! O Conde Raul de Montfort não recuará diante de um duelo, se houver necessidade, medirá armas com o assassino da mulher. Aliás ele nada roubou de você, visto que eu conservei absoluto silêncio sobre nosso casamento.

Diante do nome de Montfort, Aimé empalideceu mortalmente e se encostou à parede.

— Ah! É a celestial Nêmesis! A sombra vingativa de Francisca trouxe o substituto Montfort para me barrar o caminho da felicidade. Agora eu estou vendo que o nosso rompimento é ocasionado pela minha vítima. Ela se coloca entre mim e qualquer união. Adeus, Baronesa! Seja feliz e esqueça minhas palavras ofensivas. Estou partindo e nunca mais, nesta vida, vou conduzir mulher alguma ao altar.

Não esperando a resposta, ele se virou e, quase correndo saiu do aposento, montou no cavalo e foi embora. Passados dois dias, não tendo inclusive se avistado com o cunhado, Marillac deixou Paris e se dirigiu lentamente a caminho de Anjou.

Tendo se despedido de Diana, René de Beauchamp decidiu se divorciar o mais rápido possível; mas antes de começar o processo tinha de encontrar Marion e o verdadeiro domicílio dela, o que no momento não conhecia. Por isso foi buscar informações com seus amigos, jovens cortesãos. Era possível que a Viscondessa ainda se encontrasse ligada ao Duque de Guise, então decidiu se dirigir para onde ela estivesse e lhe anunciar que já tinha resolvido se livrar dela, a impudica que o tinha desonrado publicamente.

A mocidade dourada entre a qual Beauchamp tinha muitos conhecidos o recebeu de braços abertos. Puseram-se a comemorar intensamente a volta de René a seu meio.

René, entre as viagens matinais e os banquetes noturnos esqueceu por alguns dias até mesmo seu divórcio e a formosa Diana. É preciso reconhecer que René era leviano, amava o prazer e podia assim se apaixonar loucamente e depois lamentar amargamente essa paixão.

Finalmente cansado dos prazeres, certa noite lembrou-se de seu propósito. Como estivesse meio drogado, perguntou diretamente ao amigo, Conde de Guerchy[32] se conhecia o paradeiro de sua esposa. O Conde, também bêbado, sem qualquer hesitação lhe deu muitas informações sobre as aventuras de Marion. Não esqueceu de mencionar que o Duque d'Anjou freqüentemente visitava a formosa Viscondessa e havia o boato de que seria seu atual amante. René se enfureceu, mas, mesmo bêbado, não esqueceu o endereço e na manhã seguinte se dirigiu ao lugar indicado.

Marion morava nos arrabaldes, num pequeno Hotel rodeado por um jardim - uma pequena construção perdida em uma densa vegetação. Silêncio e exterior simples mas, no interior, luxuoso; e nesse contraste se refugiava a mulher bonita que possuía motivos para gostar de sigilo e evitar bisbilhotice.

Sombrio, de sobrancelhas enrugadas, René observava a habitação de sua esposa; já se dispunha a chamar cuidadosamente da grade de entrada, de ferro trabalhado quando o portão se abriu deixando sair dois cavaleiros em direção a uma estreita e deserta travessa. Ante essa visão o primeiro a sair fez um brusco movimento para trás, como se desejasse não ser reconhecido mas René sabia se tratar do Duque d'Anjou. Com um movimento instintivo, criado pelo hábito, inclinou-se René diante do filho da França. O Duque soergueu ligeiramente o chapéu e, sorrindo gentilmente, fez uma reverência. Depois, esporeando o cavalo, sumiu com seu acompanhante na curva da esquina.

De rosto contraído e fervendo de raiva, o Visconde entrou no jardim, e adentrando, afastou com um forte açoite o criado que tentava lhe barrar o caminho. Subiu correndo rapidamente pela escada decorada com estátuas e flores. No patamar se aglomeravam alguns criados distraídos, vestidos de libré. Assustados com o que havia acontecido ao colega, hesitavam em fazer parar o visitante atrevido. De repente o pequeno pajem exclamou:

— Meu Deus! É o Senhor René, o marido de nossa ama!

Nesse mesmo momento por entre os reposteiros surgiu o rosto astuto da camareira - espiou e sumiu. Não prestando atenção na agitação dos criados, o Visconde chamou o pajem em tom áspero, ordenando-lhe que o levasse até Marion. O rapazinho, assustado, obedeceu. Através da fileira de quartos luxuosamente mobiliados, ele o conduziu a uma pequena sala de estar. Imediatamente, da porta oposta, saiu Marion.

Seu rosto ardia; ela vestia um penhoar branco de seda. Ficaram por uns instantes calados. A fúria calava o Visconde. Ela estava evidentemente abalada com a chegada inesperada do marido - ela temia qualquer gesto imprevisível dele. Mas, mantendo a presença de espírito e astúcia inerente às mulheres, ela foi a primeira a romper o silêncio. Esforçando-se em aparentar calma e despreocupação, ela disse:

— Bem vindo, René! Sente-se! Estou contente com sua vinda provocada certamente por motivos bem importantes... Você me mostrou o quanto é rancoroso, mas talvez, após uma conversa franca você vai me desculpar o erro da mocidade e esquecerá o passado.

— Basta! Basta! Minha Senhora! Pare com isso! Respondeu ele não tirando o chapéu e lhe lançando um olhar cheio de ódio e desprezo. Apenas ficarei nesta casa para pequena conversa franca, pois você enlameia minha honra e se vende, é verdade, para importantes senhores, mas a desonra prevalece. Foi principalmente para isso que vim. Amigavelmente digo: estou cansado de ver tanta abjeção sobre mim e pretendo que meu nome não mais sirva de escudo para seus atos torpes, infames e vis. Não interessa quem são seus amantes: um simples oficial, um duque ou um príncipe. Estou farto disso. Quero o divórcio - eis o que vim lhe anunciar.

Ela tremia toda; seu rosto estava coberto de manchas vermelhas. Olhava o marido com fúria e temor. Não esperava isso; ela não tinha preconceitos mas temia o escândalo público.

— Você fará isso?! Vai me difamar perante todos? Falou com raiva.

— Sim! Faço! Será que você estava pensando que eu permitiria sua traição nunca lhe dando um "basta"!? Nesse caso você vai se decepcionar. Quero ser livre... são tantas as provas de sua traição que o processo será decidido a meu favor. Se quer o assunto resolvido o quanto antes e sem muito barulho, peça ajuda ao Duque d'Anjou.

Já que Sua Realeza lhe faz visitas matinais, não lhe será difícil conversar com ele. A intercessão dele ante o Pai Sagrado eliminará todas as dificuldades. Pode pedir também ajuda ao Duque de Guise, cuja influência é incontestável - ele é um de seus amigos...

René sentia cruel escárnio, os olhos brilhando; nela as palavras eram como bofetadas, sufocando-a de fúria, os olhos verdes lançando chispas, as mãos crispadas como se procurassem algo contundente para arremessar à cabeça dele.

Mas ela resolveu se acalmar para tirar proveito da situação; olhou-o zombeteira e venenosa:

— Bem! Estou vendo que entre nós não há possibilidade de qualquer entendimento e vou aproveitar seu conselho; aceito o divórcio, mas com o mínimo escândalo possível.

Peço-lhe apenas uma coisa: não faça o pedido de divórcio enquanto o mensageiro não voltar de Roma com a permissão do Santo Padre para o casamento de Margarida com Henrique, Rei de Navarra.

Por instantes o Visconde hesitou. Marion observou zombeteiramente:

— Como! Até tão pequeno prazo lhe parece insuportável? Você está querendo se casar novamente e de tal forma está apressado em se livrar logo de mim?

— Eu já protelei demais... Quero me livrar de uma mulher depravada que arrasta meu nome na lama, disse René se virando para ela; mas concordo em atender seu pedido.

— Eu lhe agradeço. Acredite, senhor, também desejo ardentemente me livrar de você...

Ele nada mais falou, indo embora.

René se sentia leve, feliz. Tinha sido dado o primeiro passo com um bom golpe. Em futuro não distante, Diana, sua amiga bela e impoluta daria à sua vida um novo encanto.

Segurando o reposteiro Marion estava imóvel. Quando cessaram ao longe os passos do Visconde, ela desatou em seca risada. Expressão tipicamente diabólica se desenhou em seu rosto e murmurou:

— Estúpido infeliz! Nunca entregará o pedido de divórcio. Antes do que imagina estará "lá", no lugar de onde não se volta - nem católicos, nem os cachorros huguenotes.

Vou cuidar de poupá-lo de qualquer preocupação.

 

  1. MONTEFELICE

Depois de proibir quem quer que fosse de perturbá-lo, Briand se trancou no quarto e por horas ficou estirado no divã, tentando se concentrar na leitura. Sua mente, porém, sonhava sempre se centrando em maus pensamentos. Podia-se supor que Lourença, imperceptivelmente, estava exercendo novamente sua inexplicável influência sobre o rapaz, visto que a raiva do Conde para com ela abrandara e ele já não mais pensava em matá-la. Somente a aversão e o rancor fizeram com que sustentasse sua decisão de não aparecer no Castelo d'Armi.

O Barão João, que havia vindo para se despedir do Conde antes de partir a Paris, assim como os outros vizinhos, não foi recebido. Dessa forma Briand não ficou sabendo nem da designação de Diana para dama de honra no palácio, nem do adiamento do seu casamento. Ao contrário, procurando evitar um eventual encontro com Marillac e a noiva, mudou-se para uma propriedade afastada, onde passou todo inverno.

Somente no final de abril negócios inadiáveis, o término de um processo, obrigaram-no a voltar a São Germano, passando o mais rápido e longe possível do Castelo d'Armi. Transcorreram mais de duas semanas quando, na Procuradoria de Anjou, se encontrou com o Barão d'Armi. Sem se importar com a frieza e comedimento do Conde, o Barão deu um grito de alegria ao vê-lo, lhe dizendo que havia acabado de regressar de Paris, onde se encontrara com Diana. Já há mais de seis meses a menina ocupava o posto de dama de honra junto à Rainha Elisabeth.

De pálido que estava, o rosto de Briand ficou vermelho.

— Diana ainda não se casou? indagou ele acanhadamente.

— Não, Não! O casamento se realizará somente no outono. Oh! Vou contar as boas novas se você puder me receber hoje à noite.

— Venha jantar comigo hoje à noite e conversaremos, respondeu o Conde sem vacilar.

A noite, acompanhado de uma grande taça de velho vinho d'Armi contou a Briand tudo o que havia ocorrido. Falou como, durante os passeios com a filha por Paris, travou contatos com o partido dos Guise, dos espanhóis[33] e com outros defensores do catolicismo. O Barão João, apesar de ser pervertido, corrupto e de não ter qualquer traço nobre era homem inteligente; compreendia perfeitamente que a confusão política, originada pela vitória do partido dos protestantes, pela fraqueza do Rei, perigosas intrigas catástrofe sangrenta: possivelmente o assassinato de Coligny e ainda a liquidação de todos protestantes, como pregava o Bispo Sarpin, exigindo isso em ardentes discursos sanguinolentos. Panigarole, milanês de nascimento, antigo homem do povo, devido a um duelo tinha se tornado membro da Igreja.

Apenas há três semanas de sua chegada de Paris, d'Armi resolveu retornar novamente à capital, aconselhando o Conde a vir com ele.

— Os acontecimentos políticos que estão sendo preparados, disse ele, exigem a presença de todos os bons católicos a Paris. Quem sabe o que pode acontecer durante a rebelião contra os traidores como, por exemplo, com Marillac. Não há dúvida de que, se o Rei, desconsiderando a opinião de todos, insistir no casamento de sua irmã Margarida, será derramado sangue, conclui d'Armi.

O malicioso brilho do olhar do Barão se fixou no rosto pálido de Briand que estava visivelmente distraído e se encontrava alheio à conversa.

Mas as palavras hábeis do Barão surtiram efeito. O amor apaixonado e perseverante do Barão Mailor silenciavam ali somente sob a pressão da necessidade. Ao mínimo sinal de esperança, ele renascia com nova força. A possibilidade de liquidar seu oponente de tal maneira que Diana não ficasse sabendo disso o fazia sorrir, e o desejo de rever a moça superou o restante. Depois de pensar alguns minutos confirmou que iria a Paris, assim que terminassem os negócios que o tinham trazido a Anjou.

Ainda que Briand corresse muitíssimo com seus negócios estes eram resolvidos tão lentamente e com tanta dificuldade nessa época, que o seguraram algumas semanas.

Somente em fins de junho pode chegar a Paris. Encontrou então ali as paixões políticas no auge.

A morte repentina de Jeanne d'Albret mandada, conforme diziam, através de um par de luvas perfumadas, era o boato do dia. Uns, silenciosamente, outros a altos brados, atribuíam esse assassinato a Catarina de Medícis[34].

A questão de se realizar o casamento de Henrique o "Bearnais", apesar das advertências e da teimosia do Papa em não dar seu consentimento, era o tema de todas conversas. Saurmont também se deixou levar ao comentário desses fatos.

Com vontade férrea e afinco, começou a se orientar, lamentando d'Armi, que prometera encontrá-lo, não o tivesse feito. A impaciência do rapaz em ver Diana e saber se Marillac havia chegado, atingia limites extremos; mas, para saber do que se passava, devia esperar a volta de d'Armi. No dia imediato à chegada a Paris, o Conde se dirigiu ao Louvre para se apresentar ao Rei e ao Duque d'Anjou.

Descendo as escadas após a audiência, encontrou uma dama, luxuosamente vestida, em quem sem se admirar reconheceu Diana. A tal ponto ela havia melhorado que os olhos dela e toda sua figura transbordavam saúde e felicidade.

A moça também o reconheceu e, detendo-se, estendeu-lhe a mão.

Surpreso com tal doçura, Briand respeitosamente apertou os dedos delicados e róseos da moça junto a seus lábios. Trocaram frases sem importância. Continuando essa breve conversa, o Conde notou que Diana trazia ao pescoço, no vestido, nos braços e no cinto, objetos preciosos de grande valor, e que a antiga aversão se transformara em quase amigável indiferença.

Com o espírito carregado de desconfiança e ciúmes terríveis, retornou Briand a casa e se trancou no quarto, após ter enviado a João um bilhete pedindo que viesse o mais rapidamente possível.

Nervosíssimo, o Conde andava de um lado para outro no quarto. De onde Diana conseguira enfeites tão caros, e por que ela mudara de maneira tão radical? Será que Marillac havia comprado o coração dela? Mas ele era tão rico assim?! Ou poderia ser que a encantadora beleza de Diana houvesse conquistado um admirador mais rico e poderoso? Só de lhe passar isto pela mente, Briand, cheio de ódio, apertava fortemente o punhal.

Ele se sentiu aliviado quando, à noite, d'Armi chegou para vê-lo. Podia se ver facilmente que o Barão se sentia embaraçado. Assim que ficaram a sós ele tentou levar a conversa para a política, mas isso não interessava em absoluto a Briand.

— Pare! Peço-lhe pelos huguenotes e pelos católicos. Diga-me, Sr. João tudo o que se refere a sua filha. Hoje pela manhã a encontrei no Louvre. Seu aspecto brilhante e algumas outras particularidades me deixaram pensativo. Conte-me se Marillac está aqui e para quando está marcado o casamento. Aconteceu algo de inesperado que me obrigue a mudar de planos?

O Barão ficou ainda mais desconcertado; recuou e, depois de fechar os olhos, balbuciou algumas frases incompreensíveis. Por fim disse:

— Você tem razão, Briand, há novidades. Oh! Se soubesse a surpresa que tive ao chegar aqui! Durante minha ausência Diana não me preveniu que recusara Marillac, que para meu grande espanto, voltou atrás, abandonando o compromisso. E já no dia seguinte contratou núpcias com um huguenote, Conde Raul de Montfort.

— E você não evitou tão escandaloso noivado?! gritou o Conde, pálido como um morto, saltando da cadeira.

— Meu Deus! Não se irrite assim, Conde!

O casamento ainda não se realizou! Deve compreender que um huguenote maldito é mais fácil de eliminar do que um católico.

— E daí? Não devia consentir nesse noivado monstruoso!

— Não permitir! Gostaria de saber como você faria isso! Esquece que Diana é viúva?

Terrivelmente pálido e com tremedeira geral, Briand caiu numa cadeira. Isso era verdade! Diana era viúva, a sua viúva! Ele próprio, com sua conduta anterior lhe dera a liberdade de ação que agora o perturbava.

— Além disso, continuava d'Armi, sem prestar atenção à súbita fraqueza do Conde - quando cheguei, o noivado já estava oficialmente estabelecido. O Rei o aprovou, parabenizou os noivos e expressou satisfação dizendo que os verdadeiros súditos seguiam o bom exemplo da irmã dele, Margarida. Depois acrescentou rindo: "Esperem para se casar quando se realize o matrimônio de minha irmã. Vocês podem se aproveitar deste caso e se arranjará sem qualquer permissão. Se o Papa tardar em nos enviar aquilo que exigimos, tomarei Margot pela mão e por mim mesmo a casarei[35]". Compreenda - depois de tais palavras, o mínimo que me restava era consentir.

— Quem é esse tal de Montfort?

— Quanto a ele, verdade seja dita, é um moço extraordinário, rico e bondoso. Um verdadeiro príncipe. Pelo visto adora Diana e ela corresponde ao sentimento. Se ele não fosse um huguenote- d'Armi cuspiu e a seguir se persignou - eu nada teria contra ele. O irmão mais velho, Conde Armando, é o chefe do ramo protestante dos Montfort.

Coligny[36] se refere a ele com grande respeito. Parece-me que, por intermédio dele, se estabelecem os contatos com os Países Baixos.

Após notar, finalmente, o silêncio e o ar desconcertado do Conde, ele acrescentou

:— Não se irrite tanto, Briand; ainda não perdeu nada. Se você quer ver tudo com seus próprios olhos, acompanhe-me numa visita à Duquesa de Nevers. Haverá urra grande reunião, como diz Diana, pois um mago muito conhecido irá mostrar sua arte. Diana e o noivo também estarão lá. Depois de refletir com bom senso, o Conde concordou em ir à casa da Duquesa de Nevers. Queria ver Montfort, conhecê-lo, e se certificar de que Diana realmente amava o maldito huguenote. Que Raul pudesse desaparecer em suas mãos! decidiu irrevogavelmente Briand.

Para a mencionada festa ele se vestiu com requinte especial. Trocou seu habitual traje preto por vim brilhante traje cor de granada, aveludado, enfeitado com ouro e pedras de elevado valor. Sua intenção era ser o mais rico e elegante senhor da reunião.

Quando Saurmont chegou ao salão da Duquesa de Nevers já se reunia numerosa assembléia. Cumprimentando a anfitriã, ele notou, no grupo, a dama Diana. Pura, irradiante, maravilhosamente vestida, a moça conversava animadamente. Atrás da cadeira dela estava em pé uns ministros calvinistas que ele não tinha conseguido trazer à fé católica! - gentil homem de expressiva beleza. Os olhos dele, em profunda adoração, seguiam qualquer movimento da moça. Briand tratou de se internar no grupo para observar o jovem casal. Foi suficiente anotar um olhar de Diana direcionado ao noivo para se convencer de que ela também o amava.

Um ciúme terrível, um desesperado ciúme selvagem, um ódio contra o rapaz tomaram o coração do Conde. O amor de Diana fê-lo perder o juízo. Se o olhar e o pensamento pudessem matar, Raul não teria sobrevivido nesse momento. No mesmo minuto o Sr. Montefelice foi anunciado. Ruidoso murmúrio correu entre os convidados. Todos se apinharam para ver o famoso mago chegar".

Sob a influência da terrível perturbação que o havia tomado, Briand, inconscientemente, deixou a multidão arrastá-lo, e, sem ter o mínimo desejo, acabou se instalando na primeira fila, há alguns passos da Duquesa de Nevers.

O Sr. Montefelice entrou e saudou a anfitriã. Era um homem de alta estatura e pele bronzeada, os traços perfeitos do rosto eram emoldurados pela barba e espessos cabelos negros. As grossas sobrancelhas guarneciam os olhos negros e penetrantes, brilhantes de estranho fogo.

Já no primeiro olhar direcionado a essa figura característica, Briand teve um mau pressentimento. E esta impressão se fez tão forte que o obrigava a calar as tempestuosas emoções. Cuidadosamente ele se perguntou onde havia visto aquele rosto cujos traços lhe eram tão familiares. Ao mesmo tempo julgava jamais haver encontrado esse homem de nome Montefelice.

— Bem-vindo, Sr. Montefelice. Falei tanto aos meus amigos de seus conhecimentos de ocultismo, que esperam de si a confirmação de minhas palavras. Espero que hoje o senhor angarie novos louros à sua fama, disse gentilmente a Duquesa de Nevers.

Os lábios dele esboçaram um sorriso agradável e espontâneo.

— Desejo satisfazê-los, senhores. Coloco-me à disposição de dama ou cavalheiro que deseje ser o primeiro a experimentar meus conhecimentos, respondeu ele em voz altissonante, inclinando-se quase até o chão.

Briand quase caiu!... Parecia-lhe que um golpe de machado havia sido desfechado contra sua cabeça. Briand não havia reconhecido o elegante cavalheiro de cuidadosas maneiras, o Sr. Montefelice, mas a voz sim: era o cigano Henrique, conhecedor dos seus terríveis segredos. A primeira idéia de Saurmont foi correr. Guiado por esse impulso já havia dado o primeiro passo para trás quando, de repente, o olhar ardente do próprio Montefelice, depois de percorrer a platéia se deteve nele, encarando-o com firmeza. Com expressão intraduzível o cigano se virou e se aproximou da Duquesa de Nevers, mas Saurmont compreendeu que fora reconhecido.

Sua fronte estava coberta de suor; tremia de raiva e se apoiou no console, procurando pensar com calma. Pelo visto, sem ser muito exigido, Montefelice levou ao êxtase toda platéia. Ele descrevia o passado, previa o futuro e adivinhava o pensamento dos presentes. Contudo, todas conversas e expressões de surpresa e admiração chegavam ao ouvido de Briand como sons distantes, murmúrios. O Conde estava totalmente concentrado em descobrir uma maneira de sair dessa situação estranha. Este homem conhecia seus segredos e podia arruiná-lo a qualquer momento. E se a isso fosse acrescentada a surpreendente memória de Diana, então... então devia reconhecer que sua segurança estava entregue ao acaso...

Os minutos que corriam se revelavam a Briand verdadeira eternidade. Ele não devia partir antes de Henrique, uma vez que decidira se entender com ele, para saber quanto lhe custaria o silêncio ou o desaparecimento dele dali.

A penetrante voz metálica do sinistro homem soava nos ouvidos do Conde, obrigando-o a recordar as horas mais negras de sua vida. Via-se novamente no Castelo d'Armi e ouvia essa mesma voz aconselhando-o a liquidar definitivamente o Barão de Mailor, para renascer como Conde de Saurmont. Em sua mente se desenhou o quarto no Castelo Guevara onde, com as mãos trêmulas, estrangulou o tio e uma voz maliciosa e inesperada lhe dizia. “Boa coisa você fez!” Todas estas recordações encheram o coração do Conde de profunda ira. Sua mão, convulsivamente, apertava o cabo de brilhantes do seu punhal, com o forte desejo de perfurai o coração do miserável.

Mas a razão lhe sussurrou que o assassinato era arriscado. Henrique era ágil como um macaco, forte como um búfalo e dominava perfeitamente as armas. Se a sorte o poupasse, então seria inevitável a revelação de seu passado. Finalmente a festa, como tudo neste mundo, acabou e Henrique encerrou a apresentação. Saurmont também já se despedia, quando o alcançou na escada.

— Por acaso não conhece seu velho amigo da Itália? Eu o reconheci imediatamente, Sr. Montefelice, disse ele, controlando a aversão e se aproximando educadamente.

O cigano riu maliciosamente. Apertou com torça a mão de Briand: respondeu tão alto que até os convidados que desciam pela escada podiam ouvir.

— Mil desculpas, Sr. Conde! É verdade, eu não o matei na multidão de nobres senhores, mas, por acaso, não poderia reconhecê-lo! Fico muito feliz em encontrar um amigo aqui, onde me sinto tão só.

— Sendo assim, concorda em vir comigo até meu hotel tomar uma garrafa de vinho e passar as horas em agradável conversa, como nos velhos tempos em Veneza?

— Aceito com todo prazer seu amável convite, Conde, e me coloco à sua inteira disposição, respondeu Henrique, tomando pela mão seu antigo companheiro.

Briand se sentia sufocado em meio à rude familiaridade com seu antigo criado. Todo seu corpo tremia e ele andava como se estivesse pisando em brasas. Exausto, largou o corpo nas almofadas da liteira. Henrique se sentou ao lado. Reinava um silêncio mortal, já que ambos evitavam conversar na frente dos empregados.

Consideramos, nesta altura, indispensável dizer algumas palavras sobre o passado de Henrique e as circunstâncias que o levaram a Paris.

Depois de ter arrancado de Briand uma grande soma de dinheiro e diversos objetos de valor, Henrique deixou a Espanha e levou, como de costume, uma vida de festas e orgias. Jogos, mulheres, bem como especulações arriscadas, colocaram-no novamente na penúria. Já pensava em procurar Briand, de novo, quando o destino o levou a uma tribo de ciganos. O encontro despertou imediatamente seus instintos e gostos mundanos, fazendo-o inclinar-se apaixonadamente pela vida errante e pelas diversas aventuras. Logo sua coragem e maior instrução o destacaram no grupo, sendo ele escolhido como chefe do bando, com o nome de guerra: "Vampiro".

Durante o tempo em que passou na tribo também adquiriu poderes mágicos, que procurou desenvolver. Uma velha temida e odiada até pelos do bando o ensinava.

Uma vez Henrique, com muita ousadia, conseguiu salvar o filho desta mulher de uma surra mortal, por roubo de cavalos. Conquistou então para sempre o coração cruel da velha Topsi. Em retribuição ela fez dele seu discípulo.

Topsi lhe transmitiu a arte da adivinhação e o segredo da preparação de elixires e bebidas mágicas. Mas o que Henrique mais valorizava era a utilização de uma planta, cujas folhas o deixavam em estranha condição. Sob os efeitos do vegetal, ele tinha a segunda visão, e, sempre que a adquiria, conseguia adivinhar espetacularmente o pensamento alheio, encontrar objetos sumidos e prever o futuro.

Mas finalmente Henrique se cansou da vida errante e se tornou mago. Como nessa época este ofício era muito prestigiado, desfrutava de uma vida confortável. Durante a longa estadia em Veneza, conseguiu prestar serviços a um velho erudito egípcio, que vivia sozinho na cidade de São Marcos. Ocupava-se de ciências ocultas, de elaborar venenos e perfumes do oriente. Este mago recomendou Henrique ao florentino René[37], que preparava perfumes para a Rainha Catarina, quando o cigano expressou o desejo de ir a Paris. O velho astrólogo mantinha contato constante com René, que fornecia ingredientes caros e raros, indispensáveis à elaboração de cosméticos, poções e venenos.

Bem recomendado e trazendo a bagagem cheia das diversas receitas de magia, que o velho egípcio Said-Jano lhe havia dado, Henrique chegou a Paris acalentando esperanças de enriquecer na vida.

Realmente em René ele achou um patrono sem cobiça. O florentino taciturno e orgulhoso conhecia suas forças e não temia qualquer concorrente. Depois de conhecer a clarividência do cigano, amigavelmente passou a recomendar o Sr. Montefelice (como o próprio Henrique passou a se apresentar) aos seus ricos e numerosos clientes.

Certa vez o apresentou à Duquesa de Nevers, que havia vindo para comprar perfumes, sugerindo que experimentasse ali mesmo os poderes do seu protegido. Descuidada, a jovem concordou, perguntando quem a desposaria, já que um jovem senhor, admirador seu, havia sido morto num duelo naquela manhã. Henrique trouxe à Condessa água limpa e, na transparência do líquido, mostrou um belo moço, discretamente vestido, com uma carta na mão.

Rindo até às lágrimas, a Duquesa disse que este rapaz lhe era totalmente desconhecido e que, pelo visto, não era um dos cortesãos. Mas, qual não foi sua surpresa, quando dois dias depois apareceu em sua casa um jovem provinciano, com uma carta de um de seus parentes, reconhecendo no moço um olhar muito original, simpático.

Não é preciso dizer que este senhor conquistou a Condessa. Impressionada pelas capacidades de Henrique, a Sra. de Nevers recomendou-o a muitos de seus amigos e amigas, terminando por convidá-lo à sua festa, na qual Briand reencontrou o cigano.

Chegando ao hotel, Saurmont ordenou aos empregados que o jantar fosse servido. Enquanto isto era preparado, Henrique examinou a mobília e se admirou da riqueza e requinte na escolha de diversas obras de arte reunidas no gabinete do Conde.

Quando tudo estava preparado, Briand dispensou o empregado e trancou a porta. Ao ouvir o barulho da chave fechando a porta, o cigano, como uma espécie de perito conhecedor de armas, se virou rapidamente e perguntou desconfiado ao Conde:

— O que significa isto, caro Conde? Espero que não esteja planejando nenhuma traição. Eu não vejo aqui aquelas mesmas almofadas que foram tão fatidicamente usadas para o seu querido titio.

Sem esperar resposta, ele se apoiou na parede, puxou a mesa para si e, sacando duas pistolas, colocou-as ao lado do seu prato. Apalpando uma vez mais a parede, ele sentou e disse com um sorriso zombeteiro:

— Desculpe, Sr. Briand, mas a prudência é mãe da segurança. Agora vamos conversar. Suponho ser exatamente esta a finalidade de seu convite.

Vendo que o Conde olhava para ele com os cenhos franzidos e não dizia nada, Henrique prosseguiu:

— Qual o motivo dessa cara de preocupação, Sr. Briand? Se tem algo a me dizer. fale. É claro que antes de tudo devo cuidar de meus interesses, porém, se eu puder lhe prestar algum favor, sem prejuízo meu, farei com todo prazer, em nome de nossa velha amizade.

— Qual é o preço de sua vinda a Paris? perguntou Briand, puxando a cadeira e encarando Henrique.

Este franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça.

— Eu não estimo o preço de minha vinda a Paris, simplesmente porque não quero sair daqui - e Henrique frisou bem estas últimas palavras. Contudo, se o assunto trata do meu silêncio em relação às conhecidas vilanias do falecido Barão Mailor, então a coisa é diferente - isto, sim, "pode" ter um preço.

Aliás, vamos parar de falar por indiretas. Você me convidou para se certificar de que manterei silêncio sobre os segredos de seu passado. Para isso não há necessidade de que eu deixe Paris. Precisamos apenas acertar a soma que será desembolsada para manter o meu silêncio. Gostaria de - ele designou uma grande quantia - uma vez que não tenho dinheiro.

— Está bem, disse Briand, após pensar um pouco. Dar-lhe-ei inclusive o dobro do que deseja com a condição de que além de guardar absoluto silêncio, também evitará aparecer nos salões da alta sociedade que freqüento.

Henrique sorriu satisfeito.

— Concordo. Levarei uma vida solitária e começarei a receber meus abastados clientes em casa, como Nostradamus. Além disso, quem sabe, ainda não lhe poderei ser útil, Sr. Briand? Sou hábil, astuto e você sabe por experiência própria que sempre posso dar uma boa sugestão. A propósito, como achou sua viúva? Para mim Diana se tornou maravilhosa, como um anjo. Seu noivo a adora, é evidente. Você perdeu um verdadeiro tesouro, Sr. Briand. Na verdade, você a trocou pelo título de Conde de Saurmont e isto teve seu preço.

Ao ouvir as últimas palavras do cigano, o rosto do Conde ficou febrilmente corado. Inclinando-se para Henrique, disse com voz rouca:

— Nunca, ouviu? Nunca perderei Diana para ninguém! O amor e a dívida para com ela me mandam restabelecer seu nome e título. Preciso de você, Henrique, para acabar com esse cão huguenote. Ajude-me, Henrique.

— Entendido. Conte comigo quando for o tempo de agir. Matar um destes malditos, condenados pelo céu, será um ato de caridade. Quem não tem na consciência um pecado?

Quem não desejaria receber o perdão de Deus aniquilando dois inimigos da Santa Fé Católica? respondeu o cigano, fixando ligeiramente os olhos no céu.

Briand sorriu. Tirou do armário dois saquinhos cheios de ouro e os colocou na frente de enrique.

— Tome, e se lembre de nossa conversa, disse ele.

— Não esquecerei; você está garantido pelo fato de nossos interesses serem os mesmos, respondeu o cigano levantando-se.

Henrique manteve sua palavra. Sumiu dos salões e se instalou num bairro afastado onde, conforme suas palavras, se dedicaria inteiramente à ciência. Ali recebia muitos clientes, ansiosos por saber o futuro através do conhecido vidente. Entendendo que lhe seria difícil concorrer com os perfumes e venenos de René, Henrique se especializou em prever o futuro. Seus êxitos nesse campo foram tais que logo seu nome chegou aos ouvidos de Catarina, despertando nela o interesse por experimentar pessoalmente as aptidões do novo astrólogo.

A Rainha-Mãe acreditava de todo coração nas forças invisíveis da natureza, direcionadoras do destino dos homens. Ela acreditava nas forças do mal e gostava de empregá-las.

Italiana ambiciosa, preferia os crimes que não deixavam lágrimas. Mulher desprezada e odiada, ela, desde moça, enfrentara situações muito difíceis. Sendo regente, cercada de inimigos e adversários como mãe do Rei, com quem queria governar, Catarina necessitava manobrar constantemente partidos religiosos e guerras civis, valorizando enormemente a capacidade de se livrar dos inimigos com a ajuda de venenos apurados.

Além disso o desejo de conhecer o futuro a devorava. Queria saber se seu amado filho receberia a coroa da França[38] e se não seria traído, segundo as previsões de algum novo profeta.

Depois de saber que Montefelice se distinguia pela notável clarividência e suas previsões não se expressavam em palavras nebulosas ou em alegorias misteriosas, mas

ele mostrava ao visitante o futuro de maneira clara e viva, com realidade palpável, Catarina decidiu visitar este profeta. Não temia ser enganada. Muito estudo e longa vivência com as ciências ocultas lhe deram tamanho conhecimento que, qualquer enganador ou charlatão seria desmascarado no mesmo instante por ela.

Certa noite, duas horas depois de as luzes terem sido apagadas, uma liteira simples e discreta, conduzida por alguns homens disfarçados, deixou o Louvre, pela pequena cancela, atravessando ruas escuras e silenciosas em direção ao bairro retirado onde vivia Henrique.

Nas vias animadas que rodeavam a residência real, o pequeno cortejo se encontrou com alguns grupos de jovens que, na companhia dos archoteiros, perseguiam cidadãos atrasados, divertindo-se em lhes arrancar a capa e outras brincadeiras marotas semelhantes. Um destes tais grupos, maior e mais barulhento do que os demais, entretinha-se em acuar dois infelizes cidadãos deixados somente com a roupa de baixo, correndo desconcertados com as camisas rasgadas, gritando de pavor e de dor toda vez que recebiam um golpe nas pernas ou um soco.

O bando de desordeiros embriagados, ao notar a liteira, rapidamente a cercaram. Percebendo que dentro havia uma mulher disfarçada, exigiam que ela tirasse a máscara, acompanhando a exigência com palavras muito atrevidas.

De repente, um homem que parecia ser o chefe do bando passou a gritar muitos impropérios e, antes que os condutores pudessem apanhá-lo, correu para a sombra das casas juntamente com seu bando, sumindo pelo portão da rua

Sem incidentes posteriores, a carruagem chegou à casa de Henrique. Um dos criados bateu três vezes na porta com o cabo do punhal; o postigo foi aberto e depois de urra breve troca de palavras o porteiro os deixou entrar.

A dama mascarada, toda de negro e coberta por um longo e espesso véu, entrou na casa. Após fechar cuidadosamente a porta, o porteiro, um velho de tipo oriental, conduziu a dama até o mago.

Era um grande quarto, revestido por uma substância negra, na qual se podiam ver as inscrições feitas com alguma espécie de material desconhecido, exibindo sinais de vermelho-sangue. No fundo do quarto, numa mesinha decorada com cortinado negro, havia um grande espelho metálico em cuja superfície se viam todas as cores do arco íris. A moldura do espelho era formada pela imagem de serpentes, cujos olhos eram feitos de pedras fosforescentes verdes. Ao lado do espelho havia um recipiente de vidro cheio de água limpa.

A lâmpada, suspensa por uma corrente de ferro, iluminava fortemente a mesa, deixando na penumbra toda parte da estante do quarto, mobiliado apenas com algumas cadeiras.

A dama que havia entrado, permanecia em pé, examinando curiosa o misterioso espelho[39] quando se abriu uma porta camuflada na parede e entrou Henrique. Ele estava vestido com uma longa túnica preta. Seu rosto era pálido e os olhos possuíam um brilho febril, fixando, curioso, a dama. Inclinando-se até o chão, ele disse:

— Seja bendita a hora em que a Rainha entrou em minha modesta casa! Como o mais prestativo de seu escravos, lançarei a seus pés todo meu pequeno conhecimento e poder.

A dama teve um sobressalto; depois, tirando a máscara, disse:

— Você me reconheceu, profeta! Isto é claro - faz com que sejam bem recomendadas suas capacidades; mas, exijo provas mais sérias. De começo diga-me, se pode, o que faz o Rei no Louvre, neste minuto.

Henrique tomou o vaso e elevou ambas as mãos sobre ele. A seguir, inclinando-se, olhou por alguns minutos o líquido diáfano.

— O Rei não se encontra no Louvre. Ele está dando um sermão em alguns desprezíveis cidadãos que, desdenhando a ordem de apagar as luzes, correm pelas ruas, ao invés de ficarem em suas camas. Irão lembrar por muito tempo desta lição. Aliás Vossa Majestade acaba de ver seu filho a caminho de seu pacífico serviço. No presente momento Sua Majestade, Carlos, sobe as escadas para ver um senhor, ao que parece, para despertá-lo. Não é agradável a Vossa Majestade ver, em pessoa, o que se passa?

Catarina se inclinou curiosa. Como um quadro em miniatura, desenhava-se uma cena estúpida que, diga-se de passagem, não era para ela novidade: dois cortesãos do Rei, com a ajuda de golpes e empurrões, tiravam da cama um jovem rapaz. Carlos se ria a alto som dos gemidos e contorções da dor causada ao infeliz. A cena em si não surpreendeu Catarina. Porém o fato de o Mago mostrar um cena que a ele era completamente desconhecida, e bem conhecida da Rainha Catarina, causou forte impressão.

Ela se sentou e começou com Henrique uma longa conversa, durante a qual expressou desejo de conhecer o futuro de sua família e o destino de seus filhos.

— Espero que me seja dado satisfazer o desejo de Vossa Majestade, disse ele, todavia, para responder tão importante questão, me é indispensável fazer alguns preparativos.

Ele pegou um recipiente da estante e bebeu seu conteúdo, a seguir colocou o espelho no escabelo baixo, sentou-se no tapete e fixou a visão na superfície brilhante.

Pouco a pouco seu rosto foi se tomando ainda mais pálido, os olhos imóveis e o suor começou a escorrer abundantemente da testa. Repentinamente deu um grito de horror e, caindo para trás, exclamou:

— Sangue! Sangue! O que é isto? Uma rebelião ou um massacre? Os homens correm apavorados, mulheres e crianças caem sob golpes mortais!... Sangue jorra e cobre todo o céu e, como um mar enfurecido, cerca o pobre Carlos com suas ondas de sangue!...

Pálida e trêmula, Catarina tomou a mão de Henrique:

— Que diz? O Rei Carlos morrerá? Mas quem depois dele terá a coroa da França?

— Não me toque, pediu Henrique, afastando rapidamente a mão dela. Sim, o Rei Carlos morrerá afogado num mar de sangue. Depois dele Henrique III receberá o manto.

Uma faísca de orgulho e triunfo jorrou dos olhos de Catarina.

— Não tenho dúvidas - Henrique será rei, sussurrou ela e a seguir perguntou em voz alta:

— E após seu glorioso reinado, seu filho herdará o trono?

— Não! respondeu Henrique, que visivelmente começou a se mostrar inquieto.

Seu peito se espichou, tiques nervosos lhe percorriam os membros e desfiguravam seu rosto; então abriu tanto os olhos que estes pareciam de vidro.

Não! Henrique III, Rei polonês, morrerá apunhalado; seu herdeiro Henrique de Navarra também será assassinado[40]. Depois, oh! Grande Deus! Todas as desgraças estarão dirigidas ao "Bearnais" que, como uma nuvem, se concentrarão sobre a cabeça de seus descendentes. Essa nuvem crescerá mais durante as duas regências consecutivas após o que surgirá um grande Rei. O céu, pelo visto, irá clarear. Mas as nuvens negras permanecem; reúnem-se ainda mais ameaçadoras! Prorrompeu a tempestade, a terra é abalada até as profundezas. Oh! Um relâmpago e terror! O destino fatídico exterminará o gênero dos "Bearnais". A Majestade real decapitada[41].

As últimas palavras mal puderam ser ouvidas. Henrique caiu pálido no tapete com os olhos meio cerrados. Não obstante Catarina tinha ouvido o que ele dissera.

— E Francisco? O que será de Francisco? Também morrerá sem herdeiro? disse ela em tom alto, agarrando Henrique pelo braço.

Vendo que o mago estava imóvel, ela se endireitou. Estava carrancuda e de cenhos franzidos.

"—Também ele, autêntico vidente fala o mesmo! O Valois[42] será julgado. Mas ao menos o "Bearnais" e sua estirpe de Navarra serão vingados por mim. Não foi em vão que eu concentrei em você todas as forças do mal."

Ódio e fúria surgiram na expressão da Rainha. Seu punho cerrado parecia ameaçar o futuro desvendado a ela pelo vidente.

Nesse minuto Henrique se levantou. Dominando-se, Catarina lhe disse algumas frases de elogio e, a seguir, tirou do dedo um anel com precioso rubi e o entregou a Henrique que, radiante e com ar servil, acompanhou até à porta sua importante visita.

 

RENÉ, O PERFUMISTA

Desde que se livrou de Marillac, Diana vivia como se estivesse num sonho feliz. Já na manhã seguinte ela foi correndo notificar Clemência sobre a felicidade que sentia.

A Condessa a cumprimentou sinceramente. Logo antes do almoço chegaram os dois condes e ela, alegremente, lhes transmitiu a boa notícia. Diana e Raul trocaram apenas um olhar, mas, para eles, isso era o suficiente. Eles próprios, não sabendo como, se viram abraçados. Armando e sua mulher comunicaram que após evidente demonstração de entendimento mútuo, qualquer proposta formal seria desnecessária e agora mesmo se poderia anunciar o noivado.

A partir desse dia, conforme foi dito, nada perturbava a felicidade dos noivos. Raul parecia adivinhar os mínimos desejos da sua querida; ele a cercava de carinho, enchia-a com os mais caros presentes e ficava com ela todo tempo livre. O olhar radiante da jovem e sua inocente tagarelice obrigavam o jovem a esquecer as importantes ocupações políticas que inquietavam seu partido.

Um perigo constante rondava os protestantes o que era apenas refreado pela poderosa personalidade de Coligny e sua heróica valentia, fazendo com que ele ficasse em Paris, não observando a agitação popular católica, apoiada pelos espanhóis[43], por Guise, pelo Duque d'Anjou e pelo Papa, o qual, através dos padres, fanatizava a multidão e preparava a ação revoltante registrada na História com o nome de "Noites de São Bartolomeu".

Mas Diana era jovem demais, inexperiente, e estava muito feliz para se aprofundar na política ou mergulhar em pensamentos sombrios. Seu olhar ingênuo via apenas o aspecto externo, e esse era brilhante, calmo e pleno de festas, caçadas e bailes. Estavam tendo lugar os preparativos para o casamento de Margarida de Valois com o "Bearnais" e haveria muito divertimento e suntuosidades.

Diana e Raul também deveriam tomar parte nos bailes de máscara. O tempo da jovem estava totalmente ocupado em atividades com a Rainha, conversas com o noivo, controle do bordado do enxoval, dos vestidos e dos trajes que lhes eram indispensáveis para as festas e bailes de máscaras que estavam sendo preparados.

Além disso, a gentileza, abertamente manifestada pelo Rei ao partido dos protestantes, seu amor por Coligny a quem o Rei chamava de "pai" e a persistência com que procurava arranjar o casamento da irmã, eram garantias suficientes de segurança. E, assim, tudo parecia que estava indo para o melhor. Por isso, Diana soube dispersar todas preocupações políticas do noivo com sua inocente tagarelice e inesgotável alegria.

Foi aí que a própria Diana, sem saber, estreitou as relações e adquiriu a simpatia de uma pessoa que todos temiam, odiavam e, com todas as forças, tentavam evitar: René, o fornecedor de perfumes para a Rainha-Mãe. Ninguém sabia como esse quieto e sombrio italiano preparava incomparáveis cremes e ruges, que davam impressão de interromper o curso dos anos e restabelecia a mocidade. Era possível conseguir com ele os melhores perfumes e cosméticos, indispensáveis às penteadeiras das damas da alta sociedade. Mas, em lugar desses inocentes remédios, era possível receber de René refinados venenos e elixires que provocavam alucinações horrorosas.

Ele era bem conhecido como terrível feiticeiro, não tendo rivais quando era preciso socorrer um herdeiro pobre que possuía um parente rico, mas muito resistente...

Sombrio e feio como sua terrível arte, René era cúmplice de numerosos crimes cometidos na pervertida sociedade. Serviam-se dele sem qualquer timidez, mas ao mesmo tempo o odiavam, pois, com seu ameaçador conhecimento, a qualquer momento, o cliente de ontem poderia ser a vítima de hoje...

Ele era considerado extremamente rico, mas levava vida retirada e solitária; não tinha amigos e julgava desnecessário admitir em sua vida íntima pessoas indiferentes ou indiscretas, o que podia se tornar perigoso.

Diana apareceu na venda do florentino para comprar perfume e cosméticos. Já ao primeiro olhar dirigido à moça, uma estranha agitação se refletiu no tenebroso rosto do italiano, e ele, durante muito tempo ficou admirando o fresco e sorridente rosto de sua compradora.

Uma distante lembrança apagada pelos anos e pela vida surgiu do pântano do passado, lembrando ao sombrio e criminoso feiticeiro um episódio de sua mocidade. Àquela época ele amava uma jovem loira e sorridente como Diana, com a qual tinha estranha semelhança. Se a morte não tivesse ceifado essa flor no auge da mocidade, a vida de René teria sido bem diferente...

Essa ocasional semelhança e o modo sincero e gentil da jovem granjearam a simpatia do florentino. Diante de Diana René se desfazia em sorrisos.

Um acontecimento insignificante fortaleceu ainda mais esta boa harmonia: Diana tinha um pequeno cachorrinho, presente de Raul, muito querido por ela. De repente

o animal adoeceu. Apesar de ser bem assistido, por todos os meios, o cãozinho piorava a cada dia. A jovem estava muito aflita; vendo que nada ajudava, começou a acreditar, nas palavras de Gabriela, que o cachorro morreria de mau olhado de uma dama que tinha elogiado excessivamente a beleza do animal, certamente sentindo inveja de sua dona. A idéia ficou na cabeça de Diana e ,ela começou a pensar em René, cuja fama de feiticeiro já era conhecida por todos. Então ela resolveu lhe pedir que curasse o animal do mau-olhado. Muito emocionada, ela se dirigiu ao perfumista, escondendo debaixo da capa o cachorrinho. René, imediatamente, fez com que ela entrasse e, gentilmente, perguntou-lhe em que poderia ser útil.

— Eu vim, Sr. René, pedir-lhe um grande favor, começou Diana indecisa, enrubescendo como uma cereja.

Um fino sorriso apareceu nos lábios do italiano. Ofereceu-lhe uma cadeira e lhe perguntou amistosamente se ela não desejaria receber um elixir do amor, ou algum pó para eliminar alguma inimiga.

— Não, não! Exclamou Diana; eu sou amada e feliz. Mas se isto não fosse assim, então eu não desejaria utilizar de elixires que despertassem apenas um amor artificial; isto significaria que eu não seria capaz de despertar um sentimento verdadeiro. Que humilhação! No que diz respeito ao veneno, então, Deus me guarde! Algum dia me utilizar dele! Não tenho inimigas. Nunca permitiria, senhor, vir tentar responsabilizá-lo perante Deus!

Um rubor sombrio, repentinamente, se espalhou pelo rosto magro e enrugado do florentino. Essa voz harmoniosa lhe pareceu a voz de sua consciência, a voz da mocidade, que através dos lábios de sua amada Ginerva, lhe lembrava seu passado ainda não marcado pelos crimes cometidos. Um pesado e rouco suspiro soergueu o peito de René.

Mas, ocupada com seu pensamento, Diana não notou a emoção do perfumista; levantando a capa ela continuou:

— Olhe! Eu vim lhe implorar que cure este pequeno doente de um mau-olhado.

A emoção de René se transformou em espanto. Com um alegre sorriso ele pegou o animal e o examinou cuidadosamente. Depois, jogou algumas gotas de um líquido escuro na garganta do bichinho e deu alguns passes na cabeça do animal. Isto feito, devolveu o cachorro à jovem.

— Pegue, senhorita, este frasco e dê ao pequeno doente 5 gotas de manhã, e 5 à noite. Dentro de 3 dias o cachorro estará curado.

Diana calorosamente agradeceu ao perfumista e lhe estendeu um pequeno porta-níqueis, mas René fez um gesto negativo.

— Não, não. Tais ninharias não se pagam. Estou contente por tê-la servido, senhorita. Para mim, raramente chego a fazer uma bondade, até mesmo para um cachorro!

Não desejando ofender o terrível feiticeiro, Diana escondeu o porta-níqueis e estendeu a mão a René. Este apertou fortemente a mão dela e a acompanhou até a liteira.

Passadas algumas semanas, Diana soube que o florentino havia seriamente adoecido. A jovem resolveu visitá-lo, pois estava profundamente agradecida pela cura do cachorrinho.

Quando ela entrou, o doente, calado, com ar sombrio, estava sentado junto à janela. Diante do aparecimento de Diana, seu rosto clareou. Aspirou com prazer o perfume do buquê de lírios e rosas trazido por ela e agradecido disse:

— Como posso lhe agradecer por tal atenção a um velho feio como eu! Estas flores maravilhosas dadas para mim por encantadoras mãos, renovam minhas forças. Quantas pessoas a quem prestei muitos favores importantes e nenhuma se lembrou de mim!

Com a ingenuidade e sinceridade que lhe eram características ela se pôs a falar do noivo. Diana lhe contou sobre seu noivado, descreveu Raul e o amor que os ligava e soube trazer ao sombrio doente uma melhor disposição de espírito.

O gélido coração do florentino aqueceu devido a essa demonstração de interesse da jovem, e até o fez recordar do amor da juventude. A própria Diana, não sabendo, se revelou ser a única pessoa especial na corte que era imune ao veneno e à feitiçaria, pois René jurou que ninguém receberia dele arma que fosse destinada a prejudicar a jovem, ainda que para isso pagassem tanto ouro quanto o peso dela, Diana.

Uma única circunstância tinha causado desgosto à Diana: o estranho desaparecimento de seu amigo de infância. Ele parou, como fazia antigamente, de visitá-la e se relacionava com ela com cerimoniosa discrição. Além disso, ela soube, através do Duque de Nevers, que seu amigo de infância levava uma vida devassa. Quando a jovem perguntou o que significava tal conduta, René, sorrindo, respondeu que ele receava despertar o ciúme de Montfort, servindo-se em demasia dos privilégios de amigo de infância. Quando Diana começou a lhe falar com merecida reprovação da vida dissoluta, Beauchamp, impaciente, disse que esse controle ela tinha direito a empregar apenas com Raul.

Na realidade René se sentia profundamente ofendido com ela, por olhá-lo como a um irmão, e isso ele não podia desculpar. Não se conformava que, na estúpida cegueira, a entregara a Montfort, dando nas mãos de Diana a arma graças a qual ela se havia libertado de Marillac. Desde que Beauchamp soube do noivado de Diana, ele quase deixou de lado a intenção de pedir o divórcio.

Ele não sabia que Marion trabalhava afanosamente para se livrar dele de uma maneira muito mais radical do que por simples divórcio.

Dia 17 de agosto se comemorava o noivado de Margarida com o "Bearnais" e o casamento já deveria ser no dia seguinte. Mas no 17 de agosto aconteceu tal agitação que muitos começaram a duvidar da realização daquele compromisso. Uma multidão fanática com gritos e até berros se espalhava pelas ruas exclamando estrondosamente que Deus não permitiria tal união, que a fúria celestial cairia nos culpados e que haveria derramamento de sangue[44].

Tendo se misturado com a multidão, Antônio Gilberto percorreu toda cidade e voltou para casa intranqüilo e até atemorizado. Avisou Raul que essa história terminaria mal e prenunciava um casamento sangrento. Ninguém se intimidava em ameaçar o Rei. Este ouvia com os próprios ouvidos. Um profeta gritava que se o Rei insistisse nesse casamento, então com ele iria acontecer como com Isaque: Deus o privaria do direito da primogenitura dando-a a Jacob. As ameaças endereçadas aos protestantes, então, eram terríveis!

— Ah! Senhor! Melhor seria que os senhores todos partissem; temo que algo de trágico poderá lhes acontecer aqui. Hoje de manhã encontrei Gilles e ele me disse que, sem dúvida, algo está sendo preparado. A confraria está se armando secretamente e as quadrilhas de Guise estão crescendo a cada dia... disse isso com lágrimas nos olhos.

O jovem Conde o ouviu preocupado, e balançou a cabeça:

— Eu não estou convencido de que o conselho seja bom; nós não podemos partir, Antônio. Hoje de manhã meu irmão viu o Almirante e este lhe informou que não sairá de Paris, enquanto não for realizado o casamento; e ele espera que todos os protestantes resistam tão firmemente quanto ele. Você está exagerando o perigo. O Rei é muito bom para nós e se relaciona com Coligny com amor filial. Até agora ele nos tem protegido bem abertamente e o povo não deu atenção. O povo vai urrar, se isto puder confortá-lo. Aliás, se as quadrilhas de Guise estão aumentando, os nossos estão chegando a cada dia. É preciso apartar o exagero do medo. Mas em 30 de agosto todos nós partiremos, isso já está decidido.

Pobre Raul! Ele não sabia que o perigo que considerava longe e ilusório já era uma realidade palpável! A participação de todos estava decidida e na escuridão estavam sendo afiadas as espadas que deviam golpear Coligny e todos protestantes.

Durante todo mês o fogo político inventado pelo partido católico se espalhava cada vez mais. As últimas decisões corriam soltas pelo ar. A vitória de Coligny, pelo visto, tinha sido compreendida pelo Rei: obrigava o Duque d'Anjou a se unir a Guise para eliminar o enérgico chefe e célebre combatente, um nome que já constituía uma força.

Na qualidade de agentes que tinham participado na preparação da

Briand de Saurmont; sob a influência do ódio pessoal e do ciúme, o Conde pensava apenas na carnificina e, à semelhança com muitos outros, precavidamente preparou uma lista de pessoas das quais se livraria nessa ocasião tão propícia — o massacre dos huguenotes. E a cada dia que passava, isto se tornava mais provável. Tendo se colocado na comitiva do Duque d'Anjou, Briand podia acompanhar todas as peripécias e intrigas da corte, passadas entre o Rei, a Rainha-Mãe e Henrique, Duque d'Anjou.

O ódio e a rivalidade entre os dois irmãos não era segredo para ninguém. Carlos IX por nenhum momento se enganava com relação a essa pessoa efeminada, que parecia uma mulher, usava colar e pó de ruge no rosto. Dócil, discreto e "respeitável", ele recusava obstinadamente deixar a França. Não queria sair para se casar com Elisabeth da Inglaterra, ganhando com isso o trono de lá, e nem ocupar o trono da Polônia onde seria ele só o mandante. Carlos, o Rei, se sentia em uma situação vergonhosa, que prejudicaria aquele que viesse a sucedê-lo. Às vezes Carlos IX se via possuído pela tentação de eliminar o impertinente irmão que ousava estender a mão ambiciosa à sua coroa.

Pelo caráter de Carlos IX, toda explosão e até assassínio eram coisas distantes, não possíveis.

Certa vez Saurmont foi testemunha de uma cena entre os irmãos que provocou pavor no Duque d'Anjou e na Rainha-Mãe.

O Duque, em companhia de Saurmont e outros dote senhores, dirigiu-se ao aposento do Rei para saudá-lo. Carlos IX, em passos largos, andava pelo quarto e não lhe respondeu ao cumprimento; prosseguia em seu passeio colérico, olhando de soslaio para o irmão e, de forma hostil, segurava o cabo do punhal, o que fez com que Briand pensasse que ele apunhalaria o irmão.

O Duque d'Anjou estava com a mesma impressão e empalideceu de tal forma que no mesmo instante recuou em direção à porta. Depois, aproveitando-se do instante em que Carlos lhe deu as costas, ele se curvou rapidamente e agilmente escapou do quarto. O Rei logo notou a saída repentina. Não impedindo o irmão de partir, ele lhe lançou a seguir alguns olhares pouco tranqüilizadores.

"—Ufa! Escapei mesmo a tempo! Murmurou o Duque, não notando que Briand o tinha seguido. Preciso acabar com este canalha do Châtillon[45]. Ninguém como ele provoca desconfianças sobre mim!"

Também os Guise não perdiam tempo. Desde o início de agosto, sob o pretexto da aproximação do casamento, eles encheram Paris com o exército de seus partidários.

Esta luxuosa casa dos Guise, tendo abastecido os seus 15 episcopados, mantinha quadrilhas armadas. Além disso, todo um exército de senhores pobres, empregados, clientes, afluíram de todos os lados "para acompanhar o Sr. de Guise" (esta era a fórmula sagrada e significava que indicava a pessoa estar ligada ao Partido). Entre essas pessoas estavam os católicos fervorosos, mas também havia muitos aventureiros acostumados a pescar em águas turvas. Todas essas pessoas foram divididas nos destacamentos e o comando foi dado para os de confiança. Briand e d'Armi também receberam o comando de um destacamento.

Foram tomadas todas as medidas de precaução. Todas quadrilhas estavam alojadas nos domínios dos Guise e dos padres de Paris. Os respectivos chefes estabeleceram relações com 8 cidades e dirigentes de confrarias. Bastava apenas o sinal para lançar toda essa súcia ávida de sangue sobre os huguenotes espalhados pela cidade.

Mas, por enquanto, tudo ainda se encontrava duvidoso, assim como era indispensável receber permissão do Rei, e ele, pelo visto, não estava disposto a permitir a carnificina.

No dia fixado para o casamento, 18 de agosto, todos esperavam conflitos sangrentos ou o adiamento da cerimônia, já que ainda não viera a permissão do Papa. Para o espanto geral tudo transcorreu em paz e com grandes comemorações.

Carlos IX sustentava que o Papa tinha consentido e que a permissão chegaria a qualquer minuto. O Cardeal Bourbon não pôde resistir mais.

Para que todos pudessem ver o casamento, o Rei mandou erguer um gigantesco palco. Toda família real e a corte assistiram à cerimônia. Comentava-se que a noiva estava apaixonada pelo Duque de Guise e era leal ao partido dele. Ela não queria dizer "sim", mas Carlos, vigiando-a sem constrangimento, bateu-lhe na nuca, fazendo com que ela expressasse um sinal afirmativo[46]. havia imaginado que antes de matá-los deveria trancá-los, ridicularizá-los, fazendo com que o crime cometido não tivesse maiores repercussões. Esta zombaria cruel era feita pelo Duque d'Anjou e pela traiçoeira italiana.

Este dedicado irmão a quem a história acusa de ter ciúmes e de amar Margarida[47] se divertia em ridicularizar o jovem "Bearnais", que tinha sido dado a ela como marido e se esforçavam em apresentá-lo como um imbecil.

Assim, foi realizado o baile de máscaras denominado "O Segredo dos Três Mundos", no qual era retratado um paraíso, repleto de ninfas, representantes da Rainha de Navarra e suas damas da Corte. A entrada era protegida pelo Rei e seus irmãos vestidos e cavalheiros. Em batalha simulada, distribuíam, por acaso, fortes golpes de lança, afugentando outros cavalheiros que tentavam penetrar no paraíso. Sob o comando de Henrique de Navarra e Conde, os cavalheiros estavam derrotados, jogados, e, finalmente, agarrados com os diabos que os arrastavam ao inferno. O inferno era refletido pelo subsolo. Os infelizes maridos estavam trancados lá. Sobre suas cabeças havia começado o bale que se estendia por mais de uma hora, sendo que Margarida dançava com Guise.

A Noite de São Bartolomeu

O Rei, o Duque d'Anjou e toda sociedade estavam insensatamente alegres.

Por fim, aborrecidos com o encarceramento, derrubaram as portas e se armaram para dominar o paraíso. A batalha começou novamente. Mas subitamente ou de propósito, de vários lados aconteciam explosões de pólvora. Todo ambiente se encheu de fumaça e de um cheiro sufocante de enxofre. E todos imediatamente se dispersaram.

No dia seguinte houve uma nova apresentação alegórica, que ainda foi mais humilhante para os dois maridos do que o Baile das Máscaras do dia anterior: houve a apresentação de um torneio. O Rei de Navarra, Conde e seus séquitos apareceram vestidos em trajes turcos, com turbantes verdes. Imitar turco não era nada lisonjeiro, principalmente nesse momento, quando os muçulmanos tinham acabado de sofrer a derrota de Lepanto[48] contra os espanhóis.

Mas para Catarina e seu filho não era suficiente que os protestantes tivessem sido derrotados por homens; eles foram forçados ainda a sofrer uma derrota por duas mulheres, pois o Rei e o irmão passavam por amazonas. A ingênua Diana estava toda absorvida pelo seu amor. Tomava parte em todas as festas, alegrando-se sem qualquer segunda intenção.

Ela estava contente com o fato de se fantasiar e agradar a seu noivo, surpreendendo-a o aspecto de Raul e de seu irmão no Baile das Máscaras "dos Três Mundos". A Condessa Clemência ficou indignada em saber o papel que os protestantes tinham sido obrigados a representar; ela não queria acreditar em nada e, sinceramente, se amargurava com isso. Recusou-se a ir ao torneio e não permitiu que o marido fosse, sob o pretexto de doença.

Entre essas festas insensatas a desconfiança dos huguenotes estava adormecida e mascarada pelas maldades preparadas por Guise e Catarina. Desencadeou-se o atentado à vida de Coligny, o que provocou rapidamente a divisão de ambos partidos, despertando-lhes o ódio.

 

O ATENTADO

Na sexta-feira, 22 de agosto, quando Coligny estava voltando para casa e calmamente passando em frente a São Germano, houve um disparo de uma janela. A bala arrancou o dedo indicador da mão direita do Almirante; um segundo tiro lhe atravessou a mão. Alguns senhores da comitiva de Coligny acorreram em sua direção, mas o Almirante, sem qualquer inquietação indicou a janela de onde tinham vindo os tiros dizendo:

— Previnam o Rei.

Conduziram o ferido ao pequeno e sombrio hotel, onde ele morava. No mesmo momento saíram em busca de Ambrósio Pare, que não largou mais o Almirante até a morte deste.

A notícia sobre o atentando se espalhou com assombrosa rapidez pela cidade. Os protestantes de toda parte acorreram ao chefe de seu partido. Entre eles se encontravam também...

 

 

[1] expressão usada na época. NR

[2] espécie de parede pouco espessa, geralmente de tábuas, que serve para dividir os quartos nas casas. NR

[3] Rochester escreveu assim. NT

[4] Cesto de junco ou de vime; vem do francês e do provençal com essa forma. NR

[5] Alfinete ou broche com o qual se prendia, nesse tempo, um enfeite ao chapéu ou gorro. NR

[6] Francisco I — Rei da França, nasceu em 1494 e falecei! Em 1547; reinou de 1515 a 1547. NR

[7] moeda espanhola. NR

[8] os franceses chamam de "hotel" uma grande hospedaria, um hotel, um edifício ocupado por repartição pública, um paço, uma casa real. NR

[9] antiga moeda francesa, cunhada em ouro, circulante no séc. XIII, até 1633; depois, até 1793, em prata e, em 1834 foi retirada de circulação. Na época correspondia a 5 francos. NT

[10] Guise — família defensora do catolicismo. Nesta história há dois "Guise" famosos: o pai, Francisco, que é apenas citado, foi um grande general, um dos maiores de seu tempo, viveu de 1519 a 1563, quando morreu assassinado — dizem — a mando do protestante Gaspar de Coligny e, seu filho Henrique, aqui chamado de Duque de Guise. Ambos tomaram parte em inúmeras batalhas religiosas. NR

[11] cornija — ornato que se assenta sobre o friso de uma obra; ou molduras sobrepostas que formam saliências na parte superior da parede, porta, etc. Dic. Aurélio. NR

vala — espécie de fosso longo e mais ou menos largo, para recolher águas que escorram do terreno contíguo, ou para conduzi-las a algum ponto. Dic. Aurélio. NR

[12] ver "Planta de Paris", foto central.

[13] azinhaga — caminho estreito fora da povoação, no campo, entre muros, vaiados altos ou sebes. Dic. Aurélio. NR

[14] designação depreciativa que os católicos franceses deram aos protestantes, especialmente aos calvinistas e que estes adotaram. NT. Na pág. 50 de "Os Huguenotes", de Otto Zoff, encontramos o seguinte: a explicação mais plausível é a que se atribui à origem da palavra alemã Edgenoss, isto é, conjurados; nome que até hoje os suíços atribuem a si mesmos. NR

[15] Nêmesis — divindade grega que castiga o crime, sendo sua missão mais freqüente a de abater o orgulho e corrigir o excesso de felicidade com que um mortal pode despertar a inveja dos deuses. Todo aquele que se eleva acima de sua condição está sujeito à correção por parte dos Imortais, porquanto tende a comprometer o equilíbrio do Universo. Dic. de Mitologia Grega, de Ruth Guimarães, ed. Cultrix. NR

[16] lieves — léguas; antiga medida francesa, equivalente a 4,5 Km.. NT.

[17] "esquadrão volante" — era constituído de belas mulheres, bem jovens (segundo alguns, de 15 a 20 anos), muito bem cuidadas, cuja função única era obter informações de políticos eminentes, estrangeiros ou não. Assim, Catarina de Médicis ficava sabendo de tudo quanto se passava no país, ou fora dele. NR

[18] camisole — peça de vestuário masculino usado na época. NT

[19] "Par Dieu" — esta expressão indica grande surpresa. Outras que aparecem na "Histoire de France": "Pâques Dieu", "Palsambleu", "Par la mort Dieu", são do cotidiano da época. NR

[20] Bispo Marillac — existiu nessa época um arcebispo, segundo Albert Buisson, em "Michel d'Hôpital", cujo nome aparece nas págs. 175,176,177 e 189: "prelado humanista". NR

[21] filha do Imperador Maximiliano II da Áustria, casou-se com Carlos IX em 1570. NR

[22] Nevers — família muito importante na época. NR

[23] Margot — filha de Catarina de Médicis, neta de Marguerite, irmã de Francisco I. NR

[24] Torre de Nesle — tinha esse nome pela sua vizinhança com o Hotel de Nesle, era de mais ou menos 25 metros e olhava para a torre do Louvre, à borda do Sena. Foi demolida em 1663. NR

[25] Margot, cujo casamento é descrito adiante, se apaixonara por seu primo, Henrique de Guise, o "Duque", que aparece tanto neste livro. Ambos se exibiam na paixão, em qualquer lugar, desavergonhadamente. Em 25.06.1570 Carlos IX e Catarina chamaram a atenção de Margot severamente (alguns contam que lhe deram alguns tapas). Carlos detestava este Guise e mandou matá-lo. Margarida soube e avisou o amante. Algumas semanas mais tarde, para fazer crer que sua ligação tinha acabado, o obrigou a casar com Catarina de Clèves, viúva do Príncipe de Porcien. Henrique não gostava dela, mas o casamento se realizou naquele mesmo ano de 1570. "Memórias" de Margarida de Valois. NR

[26] Chefe da Guarda do Palácio (Louvre). NR

[27] Ambrósio Pare — (1517 — 1590) os trabalhos deste médico abriram grande campo à cirurgia na França; contrariamente à opinião corrente, ele demonstrou que as feridas feitas por armas de fogo não são envenenadas, ao invés de as cauterizar com óleo fervendo, ele as pensava com fios de linho. "Histoire de France", ed. Larousse. NR. ...esse espírito tão ativo (Bernardo) e infatigável no aliviar os sofrimentos dos encarnados, é mesmo o de Pare. Esta nota, do próprio Rochester, se encontra em "Abadia dos Beneditinos", pág. 282, ed. LAKE (2a ed.)

[28] Assembléia — os protestantes assim chamam suas reuniões. Havia na França, ao tempo da morte de Henrique II (1559), não menos que 2.000 igrejas protestantes. Tiveram em 25.05.59 seu primeiro Sínodo, com 11 Delegações. Ali eles adotaram uma confissão de fé dogmática e um Código de Disciplina que tinham sido ditadas por Calvino e que ficaram como base da Reforma Francesa. "Hist. de Fr.", pág. 364. NR

[29] (Margot era católica e Henrique II protestante!) esta data tem sua confirmação em "Lê Siècle de Ia Renaissance" de Louis Batiffol, pág. 237. Segundo "Hist. de Fr.", pág. 365, Joana d'Albret, mãe de Henrique, o Bearnês, foi a Blois para negociar o casamento em 14.03.72, depois foi a Paris, em maio de 72, para os preparativos do casamento; ficou doente em 4 de junho e no dia 9 faleceu. NR

[30] Paz de São Germano. De 1568 a 1570 deu vitória aos católicos, em Jarnac e Moncontour; vitória aos protestantes em La Roche Abeille e Arnay-le-Duc. NR

[31] Os excessos deste filho predileto de Catarina ficaram célebres. Conta a "Hist. de Fr.", págs. 378 e 380, e também em outros livros, que ele se vestia de mulher e tinha seu grupo de homens, aos quais brindava com ótimos presentes. Gostava de desacatar os costumes com suas infâmias e extravagâncias, Muito interessada em política, a Condessa inicialmente começou a falar à amiga sobre o casamento da Princesa Margot, mas vendo que Diana a ouvia distraída, notou seu aspecto abalado; então a Sra. de Montfort se calou, segurou a mão de Diana e amistosamente perguntou: deixando as finanças em situação das mais desfavoráveis. Ele não gosta de nenhuma espécie de exercícios nem diversões que fatiguem, escreveu o embaixador venesiano, por conseguinte não gosta de justas, torneios e coisas semelhantes. Nisto é oposto a seus irmãos e ao Rei, seu pai. É o amor à vida branda e aprazível, que faz com que ele muito perca aos olhos de seu povo. E outro diplomata diz dele: Adora roupas caras, jóias e perfumes. Está sempre barbeado, usa anéis e brincos. Diverte-se guardando em seu apartamento cãezinhos, aves e anões. Em seus escritórios ele coloca os alquimistas ou mecânicos que trabalham em seus engenhos. É um espetáculo doloroso, nessa época terrível, a presença no trono de um monarca diminuído pelo vício, se entregando a infames favoritos, instituindo confrarias de penitentes mas mesclando depravação às práticas da religião, mascaradas indecentes com peregrinações e retiros; travestindo-se de mulher e vivendo, a mais das vezes, em seu apartamento, todo ocupado com cuidados minuciosos de sua toalete, trazendo para a conservação de sua beleza um refinamento descarado, indo até se deitar com luvas de pele especial, para conservar a brancura de suas mãos e, besuntar seu rosto com uma pasta gordurenta. Suas prodigalidades com os "mignons" eram monstruosas. Ele criou o Duque Joyeuse Par e Almirante da França, e o fez casar com Margarida Lorraine-Vaudémonde, a irmã da Rainha, Louise de Lorraine, sua esposa, e despendeu nessa cerimonia 1.200.000 libras. Quando veio da Polônia, onde era Rei, trouxe consigo os diamantes da coroa! Passando por muitas festas, chegou enfim a ser sagrado em Reims em 13.2.1575. NR

[32] este nome é citado em "Hist de Fr.", pág. 376, como pessoa que morreu na Noite de São Bartolomeu. Era amigo íntimo de Coligny; ele, como Coligny, está sempre perto de Carlos IX. "Duc de Guise — Un Prince Charmant", pág. 80. NR

[33] muitas vezes Felipe II, Rei da Espanha, mandou dinheiro para que os protestantes fossem expulsos da França ou mesmo mortos nas guerras e escaramuças religiosas. NR

[34] Acredita-se que Joana d'Albret foi envenenada por um perfumista italiano de Catarina — René — mas o crime sempre ficou encoberto, nunca provado. O "H. de F.", pág. 375, confirma esse fato. "Henri de Guise, Un Prince Charmant", de Ch. Quinei e A. de Montgon, cap. 6, conta que as luvas eram seis. Joana demorou 5 dias para morrer. Segundo "Marguerite de Navarre", de Jacques Castelnau, pág. 65, Joana morreu sem uma queixa, presa de atrozes sofrimentos. Catarina, embora insensível, se toca com essa nobre paciência. Sob ordem de Carlos IX os cirurgiões se apossam do cadáver e tentam saber a causa da morte. O resultado é formal: Joana morreu naturalmente, dum "abcesso pulmonar " Por parte de mãe, os Guise eram primos-irmãos de Antônio de Bourbon (7-1562) que teve, com seu casamento com Joana d'Albret, a posse de Navarra. Este era um Rei sem dignidade, bravo somente no campo de batalha, mas perdendo-se em intrigas, ora sendo protestante, ora católico, segundo seus interesses. Esposou Joana, cujo principal traço de caráter era uma inquebrantável firmeza de opinião; boa herdeira de sua mãe, a encantadora Margarida, irmã de Francisco I, mulher excepcional para sua época. Joana era definida como uma mulher tendo de feminina apenas o sexo, a alma inteiramente entregue às coisas viris, espírito poderoso para os grandes acontecimentos, coração invencível na adversidade. No dia de Natal de 1560 abraçou solenemente o protestantismo. Foi por ela que, durante mais de dez anos (1560 a 1572), se sustentou a guerra civil (Navarra). Rainha, ela abandonou seu reino aos mais perigosos azares, enviando seu filho Henrique, com 15 anos na ocasião (por sugestão de Coligny), aos campos de batalha. A história da Reforma gravita em torno dela, que é a alma do partido, inspirando chefes, exaltando os corajosos, dando o sinal para a tomada das armas. "Os Huguenotes", pág. 112 e "H. de F.", pág. 365. NR

[35] diversos livros registram frase semelhante, como sendo dita por Carlos IX, irmão de Margot. No "H. de F.", pág. 375 consta: Dando minha irmã Margot ao Príncipe de Bearn, eu a dou a todos os huguenotes do reino. Em "Marguerite de Navarre" encontra-se a mesma frase à pág. 60. NR.

[36] Gaspard de Châtillon, Condi de Coligny (1519-1572) após ter feito seus estudos marciais em Flandres, se distinguiu em Cerisole, tendo recebido em 1547 o cargo de Coronel Geral di Infantaria, que o colocada na hierarquia, com - possibilidade de ser Marechal da França. Sua nomeação para Almirante se deu em 1532. Em 1557, na Batalha de S. Quentin, teve destacado papel. Foi o mais temível campeão das reivindicações protestantes devido à ascendência sobre o Rei Carlos IX, Seu irmão, Odet, foi Bispo-Conde de Beauvais (1517-1571), abjurou o catolicismo e se casou. O outro irmão célebre foi Francisco (1531-1569), soldado intrépido e hábil capitão. "H. de F.", pág. 365. A sabedoria do verdadeiro estadista que era Gaspard de Coligny tinha elevado seu partido ao nível de um poder independente da Coroa e com influência muito além das fronteiras da Prança. "Os Huguenotes", pág. 118. A "H. de F." ainda registra às págs. 342 e 375 o interesse dele em ir em defesa dos Países Baixos insurgidos, para livrá-los da dominação espanhola. Contava fundar colônias nas Américas e na Palestina. No Brasil Coligny pensava fazer uma colônia protestante, conquistando aquelas terras todas para a França. Em 1*55, sendo então o rei, Henrique II, marido de Catarina , após algumas hesitações do Rei, este confiou 2 navios com armas e munições sob o comando de Villegaignon, sob instigação de Coligny, que, partindo em julho de 1556, chegou a Baía de Guanabara em novembro. Villegaignon começou a construção de um porto, numa ilhota que ainda tem seu nome e Coligny queria fazer ali uma colônia calvinista; Villegaighon tinha descontentado seus companheiros pelo trabalho duríssimo que lhes impunha; a chegada de novos colonos, quase todos protestantes, em 56 e 57, provocou discórdias religiosas e Villegaignon fez matar

Decidiu voltar à França em 1558. Em março de 1560 o porto caiu em mãos dos portugueses. Os comerciantes franceses ainda visitaram por longo tempo o Brasil, mis nenhuma tentativa de colonização foi conseguida nessa região. Na América do Norte também os projetos de Coligny não atingiram o planejado, sendo que no início do reinado de Henrique IV (2.08.89), a Franca não mais possuía qualquer território nas terras americanas. NR

[37] a História registra este personagem como sendo o perfumista da Rainha-Mãe (Catarina). Morava na Rua Ponte São Michel. "A Rainha Margot" de Alexandre Dumas, pág. 197. NR

[38] em março de 1561, com a morte de seu primeiro filho, Francisco (5.11.60), casado com Maria Stuart, da Escócia, houve problemas para Catarina, quanto a ela manter o poder de regente para seus filhos. NR

[39] Catarina e seu marido, Henrique II, encontraram Nostradamus em 1555 quando, como resultado de suas profecias, eles o convidaram para a Corte. Nostradamus fez os horóscopos das crianças reais. Sabe-se o quanto ele acertou no prognóstico d morte deste Rei. Foi também num espelho quemostrou a Catarina o futuro. NR

[40] Henrique III foi assassinado em 1.8.1589. Henrique de Navarra também, em 30.4.1610; era chamado "Bearnais" por ter nascido em Bearn. NR

[41]Refere-se a Maria Stuart (1542-1587), que foi nora de Catarina por ter se casado com seu primeiro filho. Stuart foi sagrada Rainha com a idade de 6 anos. NR

[42]Os filhos de Catarina são "Valois"; Henrique de Navarra é "Bourbon". NR

[43] Felipe II era Rei da Espanha na ocasião, e seu General era o Duque d'Alba (conforme nota do próprio Rochester em "Abadia dos Beneditinos", pág. 252, 2a ed. LAKE, este Duque teria sido o "Bonifácio" do romance citado), ambos fanáticos pelo catolicismo. A Rainha da Inglaterra, de um lado, mandava tropas e dinheiro paia defender o protestantismo e, de outro lado, a Espanha, fazendo o mesmo para os católicos. "H. de F.", pág. 372. NR

[44] o Rei da Espanha tentou se opor a esse casamento, considerando suas conseqüências inquietantes. Felipe II era um constante perigo a todos os países da Europa. NR.

[45]O castelo de Châtillon pertencia a Coligny. Carlos IX apoiava amplamente Coligny e seus amigos, recebendo-os com intimidade no Palácio. No "Lê Siècle de Ia Renaissance", pág. 236, diz que houve uma terrível querela entre a Casa de Guise e a de Châtillon, e que o Rei nada pôde fazer. NR

[46] A História registra este fato como verdadeiro. "Os Huguenotes", Otto Zoff, pág. 124. Carlos IX tinha um humor muito variável e caprichoso. Uma história bastante contada em livros desse tempo: Carlos IX era mau, estripava animais, içava porcos, só pelo prazer de fazê-lo. Em certa ocasião ele quis fazer isso para um jumento Terminado o casamento, não observando os papistas, os espanhóis e alguns outros, reinava uma grande alegria entre os huguenotes. Qualquer desconfiança entre os partidos tinha sumido. Nas intermináveis comemorações apenas se atinham a festas, danças e festividades; isto durante a noite pois de dia se dormia. O Rei se entregava a esses divertimentos com entusiasmo, como se dedicasse a assunto importante.Para aumentar a abgria dos protestantes, casou-se também o Príncipe de Conde49, com grandes comemorações, e as festividades prosseguiram em honra aos recém-casados. Era certamente possível se surpreender com a cegueira dos protestantes; eles se dedicavam às festas com tal entusiasmo e confiança! O que era totalmente incompreensível se levássemos em conta as advertências dadas a eles pelo destino. Os próprios bailes e festas deveriam suscitar neles desconfiança e obrigá-los a manter cuidado, pois lá tudo era motivo de brincadeira com eles, cheias de maldade. Era impossível supor que o rude e apaixonado Carlos IX que não lhe pertencia, e sim a um pobre camponês, e este lhe teria perguntado: "O que este bicho tem a ver com o Senhor, Majestade?" fazendo com que Carlos IX caísse em si e desistisse da maldade. NR

[47] Em "Marguerite de Navarre — La Reine Margot" de Jacques Castelnau, pág. 51, encontra-se o seguinte: ...no jornal aparecido em Edimburgo, 1574, "Lê Réveüle-Matin dês Français et de leurs voisins" contém alusões escandalosas sobre estes casos. Margarida teria feito amor com seus três irmãos e, durante uma crise, teria feito confidências ao Bispo Grasse, seu primeiro capelão. NR

[48] Lepanto — ou Naupacto, cidade da Grécia no Estreito de Lepanto. Antigamente porto importante perto do qual João da Áustria (filho de Carlos V com uma de suas amantes, portanto irmão unilateral de Felipe II) derrotou os turcos, chefiados por Ali-Paxá, o "kapudan" (generalíssimo turco), numa grande batalha. Esse evento foi muito comemorado por Felipe II. NR

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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